Expressões de Bacon, sensações de Deleuze

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    Expresses de Bacon, sensaes de Deleuze

    Fernando Trres Pacheco

    Universidade Federal de Ouro Preto

    O convite ao encontro do projeto gora1j suscita de inicio um desconforto, dado o

    problema evocado pelo prprio tema: o que seria uma filosofia encarnada?. Na

    tentativa de definir sem, no entanto esgotar o tema, recorro ao bom e velho Dicionrio

    Aurlio da Lngua Portuguesacomo forma a dar incio comunicao proposta. Sem

    me demorar nas variadas definies do verbete encarnar, destaco trs que me so

    mais caras para o contexto em questo:

    Encarnar. (Do lat. Incarnare) V.t.d. 1. Dar cor de carne a (imagens,esttuas ou outros objetos). [...] 3. Dar rubor a; avermelhar. [...] 11.Tomar ou criar carne; converter-se em carne; cicatrizar-se: O ferimentoencarnou. (Dicionrio Aurlio,1985, p.518)

    A proposta desta comunicao visa uma breve apresentao de alguns temas

    convergentes a essas acepes, encontrados no livro Francis Bacon: Lgica da

    Sensao do filsofo Gilles Deleuze. Trata-se de uma exposio que investiga a

    possibilidade de uma obra de arte valer-se de um recurso no-narrativo, no-

    representativo, a-histrico em prol de uma atividade potencialmente intensa e

    expressiva. Deleuze, ao deter-se na vida e na obra do pintor irlands, cria conceitosteis para a compreenso de sua filosofia, para uma esttica ps-figurativa e, por

    extenso, para uma forma de valorao esttica da vida. Segundo o prprio autor, o

    livro parte do mais simples ao mais complexo, visto de uma ordem relativa que s vale

    do ponto de vista de uma lgica geral da sensao[...], mas em aspectos que

    convergem, principalmente na cor, numa sensao colorante.

    O verbo encarnar encontra pares conceituais no contato com a obra de Bacon e

    Deleuze ao:

    1- Apresentar-se tal e qual carne e corpo nas Figuras de Bacon;

    1Esse texto foi escrito a convite do projeto gora, dos alunos de graduao em filosofia da

    Universidade Federal de Ouro Preto, num encontro que propunha discutir o tema filosofia

    encarnada.

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    2- Ao propor uma descentralizao da perspectiva da narrao para uma expresso ou

    para uma deformao, o tema sugere outra forma de se posicionar frente ao mundo

    que no seja atravs da histria, atravs da ilustrao. As imagens tornam-se carne no

    corpo de quem as v.

    Antes de tratar das consideraes deleuzeanas sobre a obra de Bacon, preciso

    proceder como o pintor que se atira tela branca e traar as linhas gerais de ao as

    quais se pretende percorrer. Tratando-se de uma apresentao sobre um pintor ps-

    figurativista, faz-se necessrio passar pela noo do princpio de figurao presente

    nas artes plsticas at o surgimento das vanguardas. Sem maiores delongas em torno

    de especificaes sobre o conceito de mmesis, figurao, representao ou

    simbolismo caracterizam-se, em linhas gerais, por uma preocupao em ilustrar uma

    realidade do mundo sensvel de forma a pretender estabelecer um vnculo inerente deverdade entre a representao e a coisa representada. Numa pintura figurativa,

    notvel a relao harmnica entre os objetos representados, de tal forma que nos

    remete a uma histria subjacente ao representado.

    No captulo intitulado Nota sobre a relao entre a pintura antiga com a figurao,

    Deleuze sugere uma nova via interpretativa sobre a pintura e sua relao com o divino,

    demonstrando a potncia do sentimento religioso como forma de ruptura com a funo

    figurativa. Para tanto o autor se vale do quadro O enterro do conde de Orgazde El

    Greco, ressaltando a discrepncia de aluses pictricas ao mundo dos homens e o

    mundo divino. Nesse quadro podemos perceber uma linha horizontal dividindo o

    terrestre do celeste estabelecendo na parte inferior uma relao narrativa/figurativa que

    representa o enterro do conde e, na metade superior, uma libertao enlouquecida

    das Figuras.

    [...]as Figuras se erguem e se alongam, afinam-se desmesuradamente,livres de toda coao. Apesar das aparncias, no h mais histria a sercontada, as Figuras so libertadas de seu papel representativo, entram

    diretamente em relao com uma ordem de sensaes celestes. Foi issoque a pintura crist j havia encontrado no sentimento religioso: umatesmo propriamente pictrico, onde se poderia tomar ao p da letra aidia de que Deus no deveria ser representado. (DELEUZE, 2007, p.18)

    Essa possibilidade anrquica de libertao da imaginao foi possvel dado o

    pressuposto do cdigo cristo de uma impossibilidade de se representar o divino.

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    Dessa maneira, a despeito das interpretaes que consideram o sentimento religioso a

    base de sustentao da figurao na pintura, Deleuze defende que exatamente

    atravs desse sentimento que a liberao pictrica tornou-se praticvel. H uma

    inverso da mxima se Deus no existe, tudo permitido, pois exatamente com a

    existncia de Deus que se pode pintar o sentimento religioso com toda a liberdade

    possvel. Logo, com Deus, tudo permitido:

    No s moralmente, pois as violncias e infmias encontram sempreuma santa justificao, mas esteticamente, de maneira muito maisimportante, pois as Figuras divinas so animadas por um livre trabalhocriador, por uma fantasia que se permite qualquer coisa. (DELEUZE,2007, p.18)

    Ao mesmo tempo em que no se pode mais dizer que o sentimento religioso

    sustentava a figurao, tambm no se pode defender que para a pintura moderna sejamais fcil obliterar a figurao. Deleuze e Bacon entendem que a pintura moderna

    esteja carregada de clichs trazidos pela fotografia que devem ser superados. A

    fotografia no s perigosa por ser figurativa, mas por pretender reinar sobre a viso.

    Segundo Bacon, ela no uma figurao do que se v, ela o que o homem moderno

    v (Cf.DELEUZE,2007,p19). Tal investida unificante da viso do mundo torna a tela

    lisa, a superfcie branca do quadro, virtualmente recheada de clichs.

    Assim, tendo renunciado ao sentimento religioso, mas cercada pela

    fotografia, a pintura moderna, por mais que se diga o contrrio, fica emsituao muito mais difcil para romper com a figurao [...] Estadificuldade confirmada pela pintura abstrata: foi necessrio oextraordinrio trabalho da pintura abstrata para arrancar a arte modernada figurao. Mas no haveria uma outra via, mais direta e maissensvel? (DELEUZE, 2007, p.19)

    Deleuze investiga dois procedimentos possveis para se conjurar o carter ilustrativo,

    narrativo, figurativo da pintura: um, que consiste em se dirigir a uma forma pura (a

    pintura abstrata) e a outra, cara a Bacon, que consiste num movimento a um puro

    figural por isolamento ou extrao. Aqui, tomado o termo figural para opor-se aofigurativo. O figurativo designa um carter de correlao entre a imagem e o objeto

    representado, mas tambm uma relao entre as prprias imagens em seu conjunto.

    Entre as figuras ilustradas h sempre uma narrativa, uma histria que se insinua para

    dar alma, para animar o conjunto representado. Embora no suficiente, o primeiro

    procedimento de isolar a Figura tem esse carter bsico de romper com a narrao. O

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    que Bacon persegue uma maneira de se coroar uma autonomia da prpria figura,

    pois que [...] a histria que contada de uma figura a outra anula antes de mais nada

    a possibilidade que a pintura tem de agir por si mesma. (Cf.DELEUZE, 2007, p.13). A

    figurao seria a ilustrao, enquanto a figura seria a deformao do real.

    Com o propsito de se isolar a Figura, Bacon lana mo da rea redonda (fig. 4, 5)

    como o lugar que com freqncia delimita o seu espao. A rea redonda, ou pista,

    seria um lugar isolante, podendo transbordar pelas laterais do quadro, estar no centro

    de um trptico, ocupando maior ou menor espao. Em suma, o quadro comporta uma

    pista, uma espcie de circo como lugar.(Cf. DELEUZE, 2007, p.11). Eis que a Figura

    se apresenta isolada na cadeira, na cama, no sof ou na rea redonda. Ao que

    Deleuze coloca a questo: o que ocupa o restante do quadro? O resto do quadro

    ocupado exatamente pelas superfcies planas de cor viva, uniforme e imvel. Elas tmuma funo espacializante, no esto acima, abaixo ou atrs da Figura, mas em volta

    dela.

    Nesse estgio, no h relao alguma de profundidade ou dedistanciamento, nenhuma incerteza das luzes e das sombras, quando sepassa da Figura s grandes superfcies planas. [...] Se as grandessuperfcies planas funcionam como fundo, sobretudo em virtude de suaestrita correlao com as Figuras, a correlao de dois setores nummesmo Plano igualmente prximo. (DELEUZE, 2007, p. 15)

    Essa caracterstica de coexistncia entre a Figura e as superfcies planas que a

    engloba de fundamental importncia para o prximo passo da conjurao da

    figurao. Aqui, o contorno da superfcie plana considerada como lugar, lugar de uma

    troca entre a Figura e a grande superfcie. O isolamento no implica como

    conseqncia a imobilizao da Figura, mas sim um tornar sensvel uma espcie de

    itinerrio, onde algo ocorre.

    O contorno como uma membrana percorrida por uma dupla troca.Alguma coisa passa nos dois sentidos. Se a pintura no tem nada a

    narrar, nenhuma histria a contar, mesmo assim algo se passa, definindoo funcionamento da pintura.Na rea redonda, a Figura est sentada na cadeira, deitada na cama: svezes parece espera do que vai se passar. Mas o que se passa, vai sepassar ou j se passou no um espetculo, uma representao. EmBacon, aqueles que esperam no so espectadores. (DELEUZE, 2007,p. 20)

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    Figura4PortraitofGeorgeDyertalking

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    Figura5Twomenworkinginafield

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    Na obra de Bacon no h espectador, mas em muitos casos subsiste uma figura que

    espera, uma espcie de voyeur (fig.21) que est sempre espreita, esperando, assim

    como a prpria Figura central espera no centro da rea redonda. So testemunhos

    numa espera ou esforo, mas no espectadores, pois nada se representa ali (fig.27).

    No esforo de extinguir o espectador, a Figura empreende um movimento designado

    por Deleuze como um atletismo. Visto que h uma coexistncia entre a superfcie plana

    e Figura, e que o contorno j este lugar de cmbio onde algo se passa entre os dois,

    o lugar se torna uma forma de aparelho de ginstica para essa Figura isolada (fig. 23):

    [...] a Figura estica todo o corpo e uma perna para fazer girar a chave daporta com o p, do outro lado do quadro. Nota-se que o contorno, a rearedonda, de um belo laranja dourado, no est mais no cho, masmigrou, est situado sobre a porta, de modo que a Figura, na ponta dop, parece ficar de p sobre a porta vertical, numa reorganizao do

    quadro.[...] a Figura j d provas de um atletismo todo singular. Maissingular ainda porque a fonte do movimento no est nela. O movimentovai principalmente da estrutura material, da grande superfcie plana, paraa Figura. (DELEUZE, 2007, p. 21-22)

    Mas h outro movimento, coexistente ao primeiro, que consiste exatamente no

    movimento da Figura em direo superfcie plana. A Figura desde o princpio corpo,

    e esse corpo isolado no interior da rea redonda faz um esforosobre si mesmo para

    se tornar Figura. Agora o corpo a fonte do movimento, nele que algo acontece: h

    um deslocamento do lugar para o acontecimento. O corpo engendra um movimentoescapista, como num espasmo, um esforo intenso. No sou eu que tento escapar de

    meu corpo, o corpo que tenta escapar por... (Cf.DELEUZE, 2007, p.23) (fig. 26).

    Como no quadro Figura na pia, em que a Figura agarrada nas torneiras da pia, faz

    sobre si mesma um esforo imvel para escapar pelo ralo.

    A cuba da pia um lugar, um contorno, uma retomada da rea redonda.Mas aqui, a nova posio do corpo em relao ao contorno mostra quechegamos a um aspecto mais complexo [...] No mais a estruturamaterial que se enrola no contorno para envolver a Figura; a Figura

    que pretende passar por um ponto de fuga no contorno para se dissiparna estrutura material. Essa a segunda direo da troca e a segundaforma do atletismo derrisrio. (DELEUZE, 2007, p.24)

    Dessa maneira, assim como a pia, o guarda-chuva e o espelho assumem essa

    caracterstica de ponto de fuga para o corpo-figura. necess dizer que os espelhos de

    Bacon, ao contrrio dos espelhos de Lewis Carrol, no refletem nada, so espelhos

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    Figura21Studyofnudewithfigureinamirror

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    Figura27centerTrptico1973(centro)

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    Figura23Painting

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    Figura26Figurestandingatawashbasin

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    opacos. O corpo no refletido, o corpo se transfere para o espelho e ali se aloja, no

    h um atrs do espelho. Ento ele pode se alongar e se achatar (fig. 32) ou at mesmo

    se dilacerar, como a cabea rachada de George Dyer no quadro Retrato de George

    Dyer no espelho (fig. 35) que se espalha por todo o espelho como uma massa

    malevel dissolvendo-se numa superfcie lquida. Nota-se ento que o espelho se aloca

    no mesmo limiar da superfcie plana, e dela s se distingue por seu ponto de fuga. Da

    mesma maneira o guarda-chuva ou apia se manifestam nos quadros de Bacon: (...)

    medida que os instrumentos tendem para o conjunto da estrutura material, no

    precisam mais ser especificados(...). Assim o ponto de fuga pode ser exatamente a

    superfcie plana. O acontecimento dos corpos-figuras de Bacon procede por uma

    deformao no movimento em que o corpo se esfora em se dissipar na superfcie

    material. Em ltima instncia, as deformaes instrumentais se transportamdiretamente para a Figura: (fig. 9)

    [...] Auto-retrato, de 1973, o homem com cabea de porco: a deformaose faz no prprio lugar. Da mesma forma como o esforo do corpo incidesobre si mesmo, a deformao esttica. Todo o corpo percorrido porum movimento intenso. Movimento disformemente disforme, que remete,a cada instante, a imagem real ao corpo, para constituir a Figura.(DELEUZE, 2007, p.27)

    O corpo o material da Figura e no deve ser confundido com a estrutura material

    espacializante. H um movimento atltico de fuso entre as duas instncias, porm nose pode dizer que as duas coisas se equivalem, por isso a Figura se lana a um

    movimento de auto-deformao. Dadas as diferenas, pode-se afirmar que o corpo no

    estrutura. Os corpos de Bacon no tm rostos, pois o rosto uma organizao

    espacial estruturada que recobre a cabea, enquanto a cabea parte do corpo,

    mesmo sendo sua extremidade (Cf.DELEUZE,2007,p.28). Dessa forma, a Figura tem

    cabea, pois a cabea o prolongamento do corpo. Ainda assim no lhe falta esprito,

    haja vista que toda a Figura percorrida por um sopro de esprito que j corporal e

    vital (...) um esprito animal, o esprito animal do homem: esprito-porco, esprito-

    bfalo, esprito-cachorro, esprito-morcego... (Cf.DELEUZE,2007,p.28). O projeto

    empreendido por Bacon consiste em desfazer, lacerar, violentar o rosto e fazer surgir a

    cabea que subjaz no rosto. Esse empreendimento d continuidade neutralizao da

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    Figura32Lyingfigureinamirror

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    Figura35PortraitofGeorgeDyerinamirror

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    Figura9Selfportrait

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    narrativa, pois que o simbolismo do rosto contm em si todo um carter de identidade,

    que por sua vez carrega consigo traos de uma histria particular ou de uma essncia.

    As deformaes pelas quais o corpo passa so tambm os traosanimais da cabea. No se trata de modo algum de umacorrespondncia entre formas animais e formas de rosto. Com efeito, orosto perdeu sua forma sofrendo as operaes de limpeza e escovaoque o desorganizam, fazendo surgir uma cabea em seu lugar. E asmarcas ou traos de animalidade no so mais formas animais, masespritos que habitam as partes limpas, que alongam a cabea,individualizam e qualificam a cabea sem rosto. (DELEUZE, 2007, p.28-29)

    Aqui Bacon traa um fato comum entre o homem e o animal. Uma simbiose que

    ultrapassa correspondncias formais caractersticas: a pintura de Bacon constitui uma

    zona de indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o animal

    (Cf.DELEUZE,2007,p.29). O homem se torna animal e o animal se torna esprito:esprito fsico do homem. a vianda - carne animal, carcaa, conjuno de carne e

    ossos - que vai caracterizar essa zona de indiscernibilidade entre o homem e o animal.

    Geralmente a carne separada dos ossos, toma-se a carne como matria amorfa e os

    ossos como estrutura espacial que d forma ao corpo. A vianda nas pinturas de Bacon

    surge para criar uma tenso entre a carne e os ossos. A vianda esse estado do

    corpo em que a carne e os ossos se confrontam localmente, em vez de se comporem

    estruturalmente(DELEUZE,2007,p.30). Na vianda, a carne desce aos ossos enquantoos ossos se erguem na carne. Segundo Deleuze, se h uma interpretao do corpo na

    obra de Bacon, ela pode ser encontrada nos quadros onde as Figuras aparecem

    deitadas (...) cujo brao ou cuja coxa levantados so como um osso, de tal maneira

    que a carne adormecida parece escorrer. (DELEUZE, 2007, p.30). (figs. 43, 44, 46,

    37). O atletismo do corpo se transpe com mais veemncia como esforo auto-

    deformativo, esforo da Figura sobre si mesma: a acrobacia da carne que utiliza os

    ossos como aparelhos. Por outro lado, os ossos empreendem um movimento

    escorregadio ao descerem da carne. (figs. 56, 58 trpticos). A vianda a zona comum

    entre o homem e o bicho, a zona de indiscernibilidade, o prprio estado em que o

    pintor se identifica com os objetos de seu horror ou de sua compaixo. (fig.30). Para

    ilustrar como se d esse coeficiente de agenciamento do animal com o homem,

    Deleuze relata um escrito do autor pr-romntico Moritz, no qual um personagem de

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    Figura43Lyingfigure

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    Figura44Recliningwomam

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    Figura46Lyingfigure

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    Figura37Lyingfigurewithhypodermicsyringe

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    Figura56TrpticoThreestudiesforacrucifixion

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    Figura58TrpticoCrucifixion

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    Figura30Painting

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    sentimentos bizarros tomado por uma sensao de isolamento e insignificncia ao

    testemunhar uma execuo de quatro homens. Aps serem exterminados, os homens

    so mutilados, esquartejados e jogados sobre uma balaustrada, como peas de carne

    num aougue. O fato advm ao personagem que, tomado pelos afetos de tal

    brutalidade, acreditava ter sentido por um instante o tipo de existncia de tal ser.

    As pginas de Moritz so esplndidas. No se trata de um acordo entrehomem e bicho, nem de uma semelhana, mas de uma identidadeprofunda, de uma zona de indiscernibilidade mais profunda que todaidentificao sentimental: o homem que sofre um bicho, o bicho quesofre um homem. a realidade do devir. Que homem revolucionrio,na arte, na poltica, na religio ou em qualquer outra coisa, nunca sentiuo momento extremo em que ele no passava de um bicho e se tornavaresponsvel no pelos bezerros que morrem, mas diante dos bezerrosque morrem? (DELEUZE, 2007, p.32)

    o que Deleuze nomeia devir-animal: esse agenciamento que se passa no homempor uma potncia de afeto animal. No se trata de uma semelhana, mas de um tipo

    de sobressalto animal, um devir. o que Raskolnikv, personagem de Dostoievski

    em Crime e Castigo, transmite-nos ao relatar o seu sonho, em que h um cavalo

    sendo aoitado e ele se lana para abra-lo. Mesma cena que repetida por

    Nietzsche em Turim no ano de 1888, demarcando o comeo de sua loucura (Cf.

    PIGLIA, 2004, p.75). a obsesso do capito Ahab em busca da baleia. O destino

    final do capito, amarrado ao corpo de Moby Dick que cumpre o seu devir (Cf.DELEUZE, 1997, p. 90).

    Estas so algumas das questes expostas por Deleuze sobre a obra de Francis

    Bacon, considerado pelo filsofo como um pintor de foras do presente. Nessa

    exposio, no procurei abarcar todas as passagens do livro, mas especificamente as

    mais correlatas ao que propus no princpio. Tambm foi proposto no incio dessa

    exposio pensar a reao contra a narrao, a histria levada para a vida. Como

    pensar assim? Uma sada -nos apresentada pelo cineasta Bernardo Bertolucci em

    seu filme O ltimo tango em Paris. O filme descreve o movimento do personagem

    Paul (Marlon Brando), um homem de meia idade angustiado pelo suicdio da esposa

    que encontra em Jeanne (representada por Maria Schneider), uma jovem de vinte

    anos, a possibilidade de reconstruir uma vida at ento negada. Essa possibilidade

    de sair da forma e viver na pura expresso o questionamento levantado por

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    Bertolucci em seu filme, pontuado por quadros de Bacon. Em vrias seqncias do

    filme, Bertolucci reproduz perfeio alguns quadros do pintor irlands. O triunfo da

    histria, da narrao, da forma no desfecho do filme, ou seja, a tragicidade da cena

    do salo de dana nos leva questo implacvel que se coloca: possvel traar

    essa linha de fuga, possvel inventarmos a nossa desmemria, o nosso

    esquecimento para reafirmar a prpria vida? possvel tornar-se um estrangeiro de si

    mesmo?

    Referncia bibliogrfica:

    DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lgica da sensao. Rio de Janeiro: Zahar,2007.

    Trad. Roberto Machado e outros.

    DELEUZE, Gilles. Crtica e clnica. So Paulo:34, 1997. Trad. Peter Pal Pelbart.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil plats vol. 4. So Paulo: 34, 1997. Trad.

    Suely Rolnik.

    PIGLIA, Ricardo. Formas breves. So Paulo: Cia das Letras, 2004. Trad. Jos Marcos

    Mariani de Macedo.

    DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e Foucault: a vida como obra de arte. In.: O cmico e o

    trgico. Rio de Janeiro:7 letras, 2008.

    Referncia filmogrfica:

    O ltimo tango em Paris(Ultimo tango a Parigi Itlia, 1972) de Bernardo Bertolucci

    Internet:

    http://www.francis-bacon.cx/

    http://italian.vassar.edu/MagritteBaconBertolucci/tango.html