Expressões Na Madeira

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    expressões na madeira

    família Antônio de Dedé

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    164sala do artista popularMUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

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    Centro Nacional de Folclore e Cult ura PopularIphan / Ministério da Cultura

    expressões na madeira

    família Antônio de Dedé

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    Ministério da CulturaMinistro: Juca Ferreira

    Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacion alPresidente: Luiz Fernando de Almeida

    Departamento de Patrimônio ImaterialDiretora: Márcia Sant’Anna

    Centro Nacional de Folclore eCultura PopularDiretora: Claudia Marcia Ferreira

    PARCERIA

    Associação de Amigos do Museu deFolclore Edison CarneiroPresidente: Lygia Segala

    PATROCÍNIO

    Caixa Econômica FederalPresidente: Maria Fernanda Ramos Coelho

    apoio patrocíniorealização

    A CAIXA apoiaoartesanatobrasileiro

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    164sala do artista popular

    MUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

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    A Sala do Ar tista Popular, do Centro Nacional de Folclore eCultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivoconstituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendoao público objetos que, por seu signicado simbólico, tecnologia deconfecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver efazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos,estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas na

    confecção. oda exposição é precedida de pesquisa que situa o artesãoem seu meio sociocultural, mostrando as relações de sua produçãocom o grupo no qual se insere.

    Os artistas apresentam temáticas diversas, trabalhando matérias-primas e técnicas distintas. A exposição propicia ao público nãoapenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente,a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiaresou desconhecidas.

    Em decorrência dessa divulgação e do contato direto como público, criam-se oportunidades de expansão de mercado para osartistas, par ticipando estes mais efetivamente do processo de valorizaçãoe comercialização de sua produção.

    O CNFCP, além da realização da pesquisa etnográca e dedocumentação fotográfica, coloca à disposição dos interessadoso espaço da exposição e produz convites e catálogos, providenciando,ainda, divulgação na imprensa e pró-labore aos artistas no caso dedemonstração de técnicas e atendimento ao público.

    São realizadas entre oito e dez exposições por ano, cabendoa cada mostra um período de cerca de um mês de duração.

    A SAP procura também alcançar abrangência nacional, recebendoartistas das várias unidades da Federação. Nesse sentido, ciente do impor-tante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares,o CNFCP busca com elas maior integração, partilhando, em cadamostra, as tarefas necessárias a sua realização.

    Uma comissão de técnicos, responsável pelo projeto, recebe eseleciona as solicitações encaminhadas à Sala do Artista Popular, porparte dos artesãos ou instituições interessadas em participar das mostr as.

    Setor de PesquisaCOORDENADORA Maria Elisabeth Costa

    Programa Sala do Artista PopularRESPONSÁVELRicardo Gomes Lima

    EQUIPE DE PROMOÇÃO E COMERCIALIZAÇÃOMarylia Dias, Magnum Moreira e Sandra Pires

    PESQUISA E TEXTODaniel Reis

    EDIÇÃO E REVISÃO DE TEXTOSLucila Silva Telles

    Ana Cla ra das Ves tes

    DIAGRAMAÇÃOMaria Rita Horta e Lígia Melges

    FOTOGRAFIASDaniel ReisFrancisco Moreira da CostaRicardo Gomes Lima

    APOIO DE PRODUÇÃOFlávia Correia

    ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃOMárcia Shoo

    E96 Expressões na madeira: família Antônio de Dedé /

    pesquisa e texto de Daniel Reis.-- Rio de Janeiro :

    IPHAN, CNFCP, 2010.

    40 p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 164).

    ISSN 1414-3755

    Catálogo da exposição realizada no período de

    16 de dezembro de 2010 a 16 de janeiro de 2011

    1. Artesanato em madeira – Alagoas. 2. Artistas

    populares – Alagoas. I. Reis, Daniel org. II. Série.

    CDU 738(813.5)

    PROJETO DE MONTAGEM EPRODUÇÃO DA MOSTRA Luiz Carlos FerreiraTalita de Castro Miranda (assistente)

    PRODUÇÃO DE TRILHA SONORA Alexandre Coelho

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    Expressões na madeira: Família Antônio de DedéDANIEL REIS

    Da porta que se abre, um largo sorriso. O chapéu projetasombra no rosto negro, que traz um cavanhaque recobertopor alguns os brancos e outras marcasdo tempo impressas ao longo dos 57 anos.Físico magro, baixo, veias sobressaltadas,

    um leve ferimento no nariz. Simpático. Umpasso titubeante revela alguma diculda-de de locomoção. Estende a mão, “comovai o senhor?” Convite para entrar. Casamodesta. Pouca luz. Numa parede da sala,fotos dos lhos. Um deles, com uma bolanos pés, veste uniforme do time de futebollocal. Joga bem, segundo o pai. A estanteguarda material escolar dos mais novos. Alg umas cade iras. Uma corti na reser vao quarto dos lhos. Do canto esquerdo vemuma música. “Vamos entrando!”

    O segundo cômodo é chamado de despensa. Fogão, gela-deira, armário. Uma porta. O quarto do antrião. As parede s,até então brancas, ganham tonalidade azul. Um mosquiteirosobre a cama. As primeiras esculturas podem ser vistas nocanto direito. Grandes e expressivas, seduzem o olhar. UmSão Jorge talhado verticalmente na madeira; uma outra, emhomenagem ao cantor Michael Jackson. Chega-se à cozinha.Em uma espécie de bancada com prateleiras, várias delas.

    Menores, pintadas, feitas por suas lhas. Ao lado, no chão, m ais a lguma s dele e deseus lhos. O acervo se encerra em uma

    espécie de quartinho ou o que poderia seruma despensa. A porta da cozinha se in-sinua para o quintal. Amplo. Árvores, umtanque, varas de bambu para a secagem dofumo. O fogão à lenha desmoronou comas chuvas. Ao fundo o local de trabalho:“É ali que faço as pecinhas.”

    Primeira prosa. Antônio de Dedé, Antônio A lves dos Sa ntos, herdou o ape -lido do pai, Dedé Lourenço. De origemmodesta, é o mais velho dos quatro irmãosainda vivos. O quinto, nos seus termos,

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    Para isso aconselha-os:

    Olhe, meu lho, se você tem um sonho, você tem que correratrás dele. Se você não correr atrás dele, aí tudo ca maisdifícil. Que nem a colheita. O cara vai trabalhando, tra-balhando e devagarzinho a gente chega lá.

    Os mais novos, incentiva a seguirem nos estudos. Os de-mais já começaram a trilhar seus próprios caminhos. Quatrose casaram, saíram de casa e já trouxeram os primeiros netos.Inicialmente se opôs ao casamento de um deles. Achava que

    ainda eram muito jovens, sobretudo a esposa escolhida, aosseus 13 anos. Ao na l acabou cedendo ao desejo do lho.Sem se afastar do pai, moram todos próximos e mantêm

    estreito contato com ele. O trabalho na roça arrendada pelafamília agrega os irmãos no cultivo do fumo, que envolveuma organização coletiva na execução das tarefas. O custo,segundo um dos lhos, é alto. Há de ter adubo, remédios,pagar do arrendamento. O plantio exige cuidado constantepara evitar perdas e prejuízo. É trabalhoso, se estendendopor cerca de meses. A melhor época é entre o nal de maio,com previsão de colheita em agosto, feita em etapas, numtrabalho cuidadoso, das folhas mais baixas até as superiores.

    de se fazer o melhor: “a gente tem que ser um prossionalbom, pra ser procurado”, arma Dedé.

    Nos momentos de folga, quando jovem, gostava dedançar. Frequentava os bailes da cidade. Dançava bem,diz ele. Largo sorriso se abre ao lembrar. A sinuca era outradistração. Passava horas sobre o bilhar. Hoje, não ma is. Suapreocupação principal é o futuro dos lhos. A família éextensa. A esposa e companheira de vida, Maria Aparecidados Santos, o deixou há cerca de quatro anos, vítima deum derrame. Suas feições entristecem ao falar sobre ela.Conheceram-se quando jovens. Ele, pouco mais de 20 anos;

    ela, ainda prestes a completar a maioridade. Logo se c asarame foram viver juntos. Ao longo dos mais de trinta a nos de vidaconjugal tiveram nove lhos. O mais velho, 32 anos; a maisnova, nove. Em seu quarto, uma foto do casal poucos anosdepois do casamento. Uma lembrança e forma de amenizara ausente presença.

    Dedé é pai zeloso, o cuidado com os lhos é destacadoa todo o momento. Fala sempre em nome de sua família:“tudo o que eu faço é pros meus lhos.” Perguntado sobresonhos futuros: “rapaz , o meu sonho, se Deus me ajudar, eraarrumar um jeitinho pra que os meus lhos cassem ampa-rados. Os meus lhos acharem um jeitinho de sobreviver.”

    Ao longo de sua his-tória, Antônio de Dedéviu o trabalho na regiãose tornar cada vez maisdifícil de conseguir; pe-sado e sazonal. O invernoé narrado como a melhorépoca do ano, períododo trabalho nas roças defumo, mandioca, feijão.O verão é quente e seco.

    O trabalho escasseia: le-vantar uma casa, fazer umtelhado, algum serviço decarpintaria. Com o tempo,chegou o cercado, marcada transição para a criaçãode gado, e, com ele, menosserviço. O trabalho nas roças de fazendas declinou. Vieramas máquinas e os defensivos agrícolas, fazendo com que fossenecessária menos mão de obra. A saída passou a ser arren-dar a terra. Nesse cenário, há de se desdobrar em múltiplasfunções para garantir o sustento. E em cada uma dessas, há

    “seguiu a viagem” há poucos anos. Seus pais, no entanto,tiveram 28 lhos. “Nascia e morria; vingava não”, sublinhasua mãe, Santina Alves de Oliveira, reexo da vida difícilnuma região de poucos recursos. Dedé pouco saiu dos seusarredores. A vida é narrada em meio ao trabalho nas roças,fazendas – entre vários outros ofícios – e no cuidar dos seus.rabalhou muito. Desde os oito anos de idade começou aacompanhar o pai na roça. Devia aux iliar nos afazeres paraa manutenção da família: “eu saía mais meu pai cedinho.Eu saía cortando aqui e o sereno ia caindo na roça. Quandonós chegávamos lá ainda estava escuro.”

    Não teve tempo de ir à escola. Quando adolescente, ia ànoite, depois do trabalho. Logo desanimou. Os professores nãotinham paciência para ensinar. As longa s jornadas e o trabalhopesado deixaram marcas em seu corpo. Debilitaram-no. Estáaposentado: “eu adoeci de reumatismo. Mas foi forte. Adoecide uma perna, o doutor operou. Quando foi um ano, aí voltoua doença de novo. Já voltou na outra perna.” Ainda as sim, sentesaudades do tempo de trabalho na roça. Enquanto trabalhava,cantava, caminhava. Os patrões tratavam bem seus emprega-dos. Pagavam em dia, toda sexta-feira. Relembra ganharem,além do soldo, farinha, banha, leite. Com isso, faziam o boloque levavam para o café durante a jornada.

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    a cerca de 150km da capital, Maceió. A região é conhecidapelo clima seco e quente a vegetação de caatinga. A atividadeeconômica é voltada para o setor de serviço e agropecuária,fortemente direcionada para as plantações de fumo. C ontacom rede escolar que atende majoritariamente aos ensinospré-escolar e fundamental, e 13 unidades de saúde, todasda municipalidade. Sua população gira em torno de 18 milhabitantes, distribuídos num território de 103km².

    Segundo os moradores, a história de Lagoa da Canoaainda está por ser escrita. Há, no entanto, uma narrativasobre as origens e marcos políticos do município que vem

    sendo recontada pelos habitantes locais e consta, inclusive,em sites ociais sobre a cidade. Segundo ela, o surgimento deLagoa da Canoa remete às primeiras décadas do século 19.Há divergências quanto à data exata , sendo possível encontrarcitações dos anos de 1833 e 1842, quando dois casais teriamse instalado na região, próximo à pequena lagoa que dá nomeà cidade. Começaram a desenvolver agricultura e pecuáriade subsistência, dando início à ocupação do território.O nome da cidade, segundo relatos, vem da imagem difun-dida pelos que passavam ao largo e podiam ver um homempescando a bordo de uma canoa, daí Lagoa da Canoa.Em termos político-administrativos, foi considerada po-

    O beneciamento também é feito por eles. Envolve a “vira-ção” das folhas – movimento realizado no intuito de reduzira fermentação e a umidade –, a secagem, o destalo, a cordae, por m, a bola de fumo. Só então ele é levado para servendido na feira local. No restante do ano plantam tambémfeijão de corda e outros vegetais para consumo doméstico.

    A fa mília de A ntônio de Dedé vive no ag reste do Es -tado de Alagoas. Lagoa da Canoa está localizada a poucosminutos de Arapiraca, segunda maior cidade alagoana,

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    voado de Arapiraca quando esta foi elevada à condição deMunicípio, em 1924.

    Com o desenvolvimento do povoado, gerou-se umamobilização por sua independência política, que ocorreuem 1962, por meio da Lei 2472. Sua instalação ocial, comdesmembramento de Arapiraca, ocorreu no ano seguinte.

    Atual mente os cartõe s de visit a de Lagoa da Ca noa sãovistos logo no trevo que dá acesso ao município. O primei-ro, ícone da cidade e referência às suas origens: o homem

    a bordo da canoa; o segundo, maisvisível, o pórtico de entrada da ci-dade apresenta seus lhos ilustres:“Bem vindos a Lagoa da Canoa.erra de Hermeto Pascoal e Dida”.Entrando no município, o pontocentral é a praça d a Igreja Matriz.No entorno estão as instituições,prefeitura, banco, Correios, e a redede comércio e serviços. Paralelasàs ruas de calçamento de pedra,

    estão casas cuja arquitetura variasobretudo entre as ma is antigas, deportada de frente para a rua, e asmais novas, que trazem uma separação por muros e grades.

    Descendo uma rua chega-se à lagoa. No inver-no pode-se vislumbrar bela paisagem com água azulvibrante cercada de vegetação verde rasteira e algumaspoucas árvores. Ao seu lado, a antiga estação de tremda cidade, que está desativada, e seu edifício em ruínas.No verão, o local é ponto de lazer, atraindo, ainda hoje,pessoas para a prática da pesca, apesar de armarem acontínua redução dos cardumes. odavia, o entorno do

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    DESCOBRINDO ANTÔNIO DE DEDÉ

    Há pouco mais de três anos o nome de Antônio de Dedécomeçou a circular no circuito das chamadas artes popu-lares. De lá para cá, suas peças passaram a ser valorizadas.Participou de exposições no Sesc de Maceió e no MuseuTéo Brandão. Neste último ganhou o prêmio “Artesão doano”, em 2008. Seu trabalho ganhou visibilidade. Suas pe-ças começaram a ser procuradas, a circular num raio muitoalém do âmbito local, a ser exibidas em exposições e galeriasespecializadas.1 Seu nome se tornou conhecido como o de

    um artista popular. Antes de s er in serido no circ uito d as artes populare s,o trabalho de Dedé tinha uma circulação local e ocupavaoutro papel em sua vida: “eu trabalhava e, nas horas defuga, eu não era muito andejo... nas horas de fuga é que eufazia, pra ganhar um troco.” Ainda que almejasse a vendade suas peças, reconhecia a diculdade em fazê-lo. Numlugar onde a circulação de renda é pequena nem sempre erafácil encontrar um comprador. Eventualmente, no entanto,conseguia vender alguns bonecos.

    Os primeiros interessados em seu trabalho remontamà infância. Recorda ter começado a fazer suas primeiras

    “traquinagens” aos oito anos de idade. Con-feccionava seus próprios brinquedos, comocarrinhos e aviões a partir de lata e madeira.Quando saía com eles na rua as outras crian-ças cavam “doidas”, diz, querendo compraros seus brinquedos. Aproveitava, então, paraganhar um “dinheirinho”. Num segundomomento, sua clientela vinha, sobretudo, dosterreiros próximos à sua ca sa.

    Os bonequinhos, era assim: chegava uma

    pessoa que trabalha va nessa s casas d e mãede santo e “ah, faz um bonequinho praeu botar lá?”, aí eu fazia. Fazia Saravá,Ogum, Preto-Velho. Fazia. E eles levavam pra botar lá. Só que pagava m. Eu não fazia de graça não. Dava trabal ho pra fazer(risos).

    Essa venda já era reexo da ressonânciade seu trabalho na cidade. Nesse momento,contudo, era conhecido localmente comoa pessoa que esculpia bonecos na madeira. " O

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    local, beirando-se a linha férrea, é tido como perigoso,por ser um ponto de uso de drogas e mesmo de furtos.

    Para os interessados em arte popular as referências locaissão outras. Lagoa da Ca noa é a terra de Antônio de Dedé e seuslhos, de Raimundo, João da Lagoa, Marcondes, Neusvaldoe da cerâmica utilitária da comunidade de Lagoa do Mato,para citar os nomes mais conhecidos na localidade. Dedé e amaioria de seus lhos moram na Vila de Santa Izabel, localde ruas de pedras e casas simples, diferente da área central,com infraestrutura um pouco melhor. Para localizá-lo, os que

    chegam em Lagoa da Canoa devem pegar a rua principal atéa altura da igreja da Assembleia de Deus, pouco antes da Praçada Matriz. Segue-se por cerca de 500 metros por uma rua pa-ralela em sentido contrário até a altura de uma capela amarelaà direita. Logo em frente, pega-se a rua à esquerda. A cercade 100 metros à direita está a casa de Antônio de Dedé. Nafrente da casa, coberta por um muro de cerca de dois metrosde altura, um tronco que serve de banco. Bata no portão eo senhor simpático de sorriso sempre aberto atenderá. Da p ortaque se abre, um sorriso... Antônio de Dedé.

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    “descobridor” retornava trazendo madeira e levando as peças já confec cionadas . Dedé arma que o pre ço pag o por su aspeças ainda eram baixos. No entanto, valia a pena. A regu-laridade da venda garantia u ma fonte de renda suplementar.Era também uma forma de reconhecimento de seu trabalho.

    Em geral as peças eram encomendadas, com repertórioespecíco. Numa ocasião, no entanto, recebeu um pedidoque lhe dava liberdade para criar a seu modo. O resultadofoi entregue na visita seguinte:

    Aí, eu z um casal de noivo, um namora do com a noiva,

    pegado com véu; z um jornalista, bem feito; z duas tar-tarugas, bem feitas, com um rapaz em cima montadinho;e z um touro.

    O acordo teve m quando, após uma visita, seu com-prador desapareceu. Havia combinado retornar dentro dealguns dias como de costume, tendo deixado suas encomen-das, mas não o fez: “Eu me assustei não foi tanto por causado preço não, foi o negócio que ele me deixou um ano aquisem trabalhar. E não avisa.” Dedé cou chateado. Sentiu seutrabalho desrespeitado. Quando o comprador reapareceu,não quis mais trabalhar para ele:

    Aí ele chegou: “o senhor é o Antônio de Dedé?” eu disse: “sousim, senhor.” E ele: “rapaz, eu vim à procura do senhor.E atrás de mim vem um bocado de gente que está rodandoaí.” Eu digo: “ah, mas o senhor encontrou foi agora! O quedeseja?” “Eu vim aqui pra saber se o senhor tem condiçãode fazer umas peças pra mim. Se você é interesseiro de fazerumas peças.” Eu disse: “que peças?” E ele: “peças de arte sana-to. Fazer escultura de madeira.” Aí eu digo: “ah, faço sim.”“Tem alguma coisa pra me mostrar aí?” Aí digo: “aqui temumas amostrazinhas aí, só não sei se você agrada.” Aí ele pegou, mas, quando ele viu, já escolheu logo. Ele disse: “essa

    daqui já vou comprar. Já dá pro meu trabalho.” Eu disse:“ já?” Ele disse: “É. Tem como o senhor fazer melhor?” E eu:“tem. Faço melhor. Faço do jeito que o senhor quiser. Façomelhor, faço menor, faço maior.” E ele disse: “ah! É dessas queeu quero. Faz maior?” “Faço.” “Pois tá certo, vou levar essa.”

    Durante a visita, Dedé e o comprador fechara m um tratoverbal. Ele faria as esculturas e o galerista compraria todaa sua produção. Os termos incluíam o dado de que o primei-ro deveria vender exclusivamente para o segundo, que porsua vez forneceria a matéria-prima. No decorrer dos meseso trato foi levado a cabo. A cada quinze ou trinta dias o seu

    Seu nome não estava associado aindaà noção de arte e/ou cultura popular.

    No argumento do antropólogo João Leal, “O popula r é – literal-mente – o produto do encontrode duas culturas: a cultura quelá estava e que não sabia que erapopular e a cultura que chega lá ea nomeia como popular” (2009).Nesse sentido, a inserção do nomede Antônio de Dedé neste universo

    emerge do entrecruzamento de seutrabalho com o momento em que eleé “descoberto”, segundo seus termos,pelo universo do colecionamento emercado de arte popular.

    rata-se, na verdade, de encon-tros entre diferentes pessoas, emprincípio de dois universos culturaisdíspares. ais encontros geraramo deslocamento de seu nome e obrade um âmbito local, enquanto “artede fazer pecinhas” – como dene –,

    para uma escala mais ampla, nacional, de artista popular,segundo os que passaram a comprar e colecionar suas peças.

    Antônio de Dedé narra sua “desc oberta” a partir dedois momentos especícos, que estruturam sua biograaenquanto artista popular. Em verdade, “ser descoberto” erauma ideia já almejada por ele de longa data. Buscava esseobjetivo com tentativas que estavam ao seu alcance, em seucotidiano, de mostrar seu trabalho:

    “Quando era criança, eu fazia umas esculturinhas e botavanas estantes, botava no armário. Era a mostra do meu

    trabalho(risos). A gente tem que mostrar o trabalho praser descoberto. Um dia ele é valorizado. Aí eu deixava láe ia trabalhar.”

    Segundo Dedé, muitos passantes se esticavam paraolhar para dentro de sua casa quando notavam as peças.Os comentários sobre elas se espalhavam na vizinhança. Foiassim que, numa tarde em que havia saído para o trabalhona roça, bateram à sua porta. ratava-se de um galerista deMaceió. Havia ido a Lagoa da Canoa para comprar peçasde outro artista. No caminho ouviu falar no nome de umcerto Dedé. Decidiu procurá-lo. " P

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    de aquisições feitas em suas viagens pelo interior e fora doestado. Nessas viagens foram descobrindo e classicandoum universo de artistas populares.

    Pela memória de Dedé o encontro é narrado de modosemelhante ao anterior. Um dia, saiu para o trabalhona roça. Num dado momento seu lho veio chamá-lo.Um casal havia chegado à sua casa, por indicação de alguém

    Eu trabalhei um ano aí. Só que, nesse intervalo, ele marcoue não sei por onde o homem deu. El e disse: “olhe, pra daquia um mês eu venho trazendo umas madeiras pra você fazerumas peças, uma porção.” Eu disse: “sim, senhor. Traga asmadeiras. Então eu não posso pegar outro serviço?” Ele disse:“pode não.” Aí quei, esperei, esperei, esperei, um mês e elenão veio. O homem sumiu. Às vezes as pessoas adoecem. Àsvezes ele adoeceu. Passou um dia, passou outro, passou outro...e eu tava precisando. Com um ano é que ele veio dar as carasaqui. Com um ano, olhe! Aí ele chegou aqui com um carro demadeira e queria que eu zesse peças na marra. Aí eu disse:

    “ah, na marra eu não faço não. Eu não vou fazer peças prosenhor não, eu já estou t rabalhando pra outra pessoa aí.”

    Nesse intervalo de tempo, Dedé seria “descoberto” pelasegunda vez. Já havia desistido de esperar por seu compradore considerava quebrado o acordo entre eles. Foi então queDalton Costa e Maria Amélia chegaram à sua casa. Ele,natural de Goiânia, ela, de Maceió, onde residem. Ambosartistas plásticos, mantêm atualmente uma galeria na ca-pital alagoana, cujo foco, para além de suas obras, é a artepopular. As categorias norteadoras são a ênfase nos artistasalagoanos e na escultura em madeira. O material é resultado

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    punhos cerrados nos corpos de formas longilíneas, devolveo olhar ao espectador. Algumas transmitem uma sensação deangústia; outras, um humor irônico, ou até contemplação.Os personagens são uma recriação inspirada no mundo quevê ao seu redor, na rua, na roça, na V, etc. Gosta muito defazer animais, mas também santos e guras humanas dasmais variadas.

    Neste conjunto, o le-que de possibilidades decriação é vastíssimo. Podemtrazer ou cores vibrantes

    que procuram ser fiéiso quanto possível ao objeto,ou, como prefere, acaba-mento na cor da madeira,procurando ressaltar, juntodo “personagem”, o brilhoe características da matéria-prima. Possuem tamanhosvariados, de 50 centímetrosa dois metros de altura. Suaescala preferida de trabalhosão as de tamanho médio,

    pensar para o mundo dos objetos” (1998). Suas esculturassão, assim, o ‘entalhe’ de sua vida social.

    Para além da ideia de “arte na madeira”, bonecos,personagens e/ou pecinhas são as formas carinhosas – emais recorrentes – pelas quais se refere às suas esculturas.Sua principal característica talvez seja a expressividade doentalhe, que, com alta dramaticidade, evidente nos dentes e

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    DOM, TRABALHO, ARTE E OFÍCIO

    Dedé fala do trabalho como arte. Arte da carpintaria,arte do fumo, arte dos canteiros, arte de fazer tijolos. Domesmo modo e inversamente, ao se referir às suas esculturas,usa com frequência a categoria “arte na madeira”. Para ele,a noção de arte abarca todo e qualquer processo de produ-

    ção e criação. Envolve,dessa maneira, várias di-mensões da vida social. A esc ultu ra, enqu anto

    “arte na madeira”, é umrecorte e classificaçãodesse quadro mais am-plo. Nesse sentido, talvezseja correto armar, re-correndo ao argumentode Clifford Geertz, queseu entalhe, para alémde dimensões estéticas,“materializam uma for-ma de viver, trazendoum modelo especíco de

    na rua, interessado em suas peça s. Haviam novamente lhedescoberto. A partir disso, o casal passou a ocupar papelcentral na produção e circulação do trabalho de Dedé,sendo responsáveis pela aquisição da quase totalidade daspeças. O trato feito foi parecido com o anterior: Dedé recebea madeira, produz as peças, eles pegam e lhe pagam a cadaperíodo de tempo especíco.

    Na galeria, em Maceió, encontra-se considerável acervode obras do artista. Vários tamanhos, personagens, formatos.Segundo Dalton e Maria Amélia, tal qual já o zeram em re-lação a outros artistas, o objetivo não é só o de comercializar

    as peças do artista, mas também o de promover seu autor.Esta divulgação passa pela inserção do nome de Dedé nomundo das artes populares à criação de novos agentes e meiosde mostrar e escoar seu trabalho. De modo geral, trata-se deuma iniciativa de mão dupla: por u m lado atrai novos com-pradores, permitindo ao artista vender mais peças por umpreço melhor; por outro, valoriza também o próprio acervo.

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    refazendo com tijolo. A “cabana” foi feita há pouco mais detrês anos, data que coincide mais ou menos com a narrativade sua descoberta. Antes, fazia dentro da própria casa ou noquintal, próximo à porta da cozinha.

    Começo do trabalho. Dedé não dispõe, em geral, damatéria-prima. Antes havia madeira por todos os lados,era fácil conseguir. Hoje não mais. Há de se comprar nas

    telhas. No cume deum dos pilares algunscataventos atribuemum olhar lúdico aolocal, conferindo-lhecerta leveza. No centrohá um suporte que usapara esculpir – doistroncos, um baixo,outro mais alto, ondeapoia a madeira. Está

    próximo de uma mu-reta aberta, que dápassagem para a roçada família, assim comoà casa de sua mãe, quemora ao lado.

    Às v ezes alguns vizinhos passa m e cam a obser vá-lo,segundo ele, na expectativa de aprender também aquela arte:“muitos não tem o dom, mas vontade tem!” Dedé armaorgulhoso ter sido ele quem fez a instalação, assim comosua própria casa. Era de pau a pique. Aos poucos, à medidaque foi conseguindo recursos, foi demolindo as paredes e

    odavia, mais do que suavontade, quem determina oquanto vai trabalhar são oslimites de seu próprio corpo.rabalha um dia, dois, no

    terceiro as pernas e as costascomeçam a doer; se vê, então,forçado a parar, “tomar umafuga”, como diz. Caminha naroça arrendada pela família,se deita, descansa. Quando

    consegue, no entanto, tra-balha até o sol se pôr. Passao dia todo de pé. Pausa pa ra oalmoço, um café, um cigarro. Ao fim do dia , nova mentepede a um de seus lhos queguarde o personagem em processo. Forma de zelar para quenão ocorra nenhum imprevisto com a madeira.

    Hoje, Antônio de Déde trabalha em seu quintal, numapequena instalação que construiu para criar suas peças. Anteso fazia em casa, na cozinha. A “cabana”, como diz, é feitacom quatro pilares de madeira aparafusados e coberta com

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    geral, não se assemelham o bastante da imagem que almejarepresentar. Se a peça tiver o acabamento na cor da madeira,procura moldá-la de modo a valorizar suas bras e texturas.

    empo e duração são categorias essenciais para o seutrabalho. “O tempo é pouco. O tempo é pouco porque otrabalho é grande.” As expressões são repetidas a todo o

    braços e pernas da peça. A etapa mais difícil do processo éo acabamento, demorado e trabalhoso. A glosa é utilizadapara lixar a peça, a ssim como uma espátula. Quando ameaçasoltar uma lasca, utiliza cola para evitar. Para pintar produzsuas próprias misturas de tinta em casa. Arma que as opçõesde que dispõe no mercado local não o satisfazem, pois, em

    serralherias da região. O preço é sa lgado, segundo arma.Por isso pede aos “clientes” que a tragam. Em seu quintalarmazena as toras que chegam. Prefere madeiras duras,a jaqueira é uma das mais usad as e, atualmente, acessíveis.Certa vez, perguntado se não era muito dura, respondeu:“Não tem madeira dura. em escultor mole.”

    M a d e i r a e mposse, começa a fa-zer o contorno dopersonagem que vaitrabalhar. Logo sevêem traços do rosto,dentes, olhos, nariz,boca. O corpo co-meça a ganhar forma. As ferrame ntas campenduradas numabolsa, à mão do ar-tíce. São adquiridasno comércio localou em Arapiraca.O serrote acerta otamanho bruto do

    objeto. A faca batida com enxó começa a dar forma ao per-sonagem que pretende criar. Hábil, recorta rapidamente atora como se já tivesse toda a peça idealizada em sua cabeça.

    O formão entra em cena para fazer os olhos – queeventualmente podem ganhar colorido com a colagem dematerial plástico – e furar o local de encaixe e colagem dos

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    dos detentores desses saberes e seus lugares no campo dasartes populares (Maia, 2009).

    No caso de Antônio de Dedé, a partir do momento emque foi “descoberto”, ouviu de seus “agentes” que incenti-vasse os lhos a ta mbém fazerem as peças, ideia já cogitadapor Dedé. Sempre preocupado com o futuro dos seus, viana “arte na madeira” uma oportunidade a mais de trabalhoe renda. Estimulava-os, assim, a descobrirem sua “arte” efazerem suas “pecinhas”. Aos poucos foram se interessando,não só por conta do apelo, mas também pelo olhar e vivênciacotidiana com o pai.

    Hoje, cinco dos filhos e uma nora trabalham comatividade escultórica. al qual a trajetória do pai – e sogro–, dividem seu tempo entre a madeira e as demais “artes”,como o trabalho na roça, no lar e em empresas da região. Domesmo modo, suas “pecinhas”, “bonecos” e “personagens”– termos que, tal qual Dedé, empregam para se referir àssuas obras – começaram a se deslocar do domínio domésticolocal para ingressar também no circuito das artes populares.

    O trabalho dos lhos e nora guardam muitas caracte-rísticas do processo produtivo de Dedé: a concepção de arteabarcando todo e qualquer processo produtivo e criativo,a crença na dádiva do dom, a preferência pelo mesmo tipo

    em seus “personagens” com o ceticismo em relação a seupróprio tempo e duração. Diz-se doente, fraco e cansado,sentenciando que se o tempo de sua arte deve ser eterno,o seu se encurta.

    O “NASCIMENTO” DE UMA FAMÍLIA DE ARTISTAS

    Para além da circulação do nome de Antônio de Dedéno mundo das artes populares, mais recentemente o de seuslhos começou a trilhar o mesmo caminho. A extensão dosaber de um artista para sua família – e eventualmente atépara a comunidade – é um dado que aparece com algumarecorrência no campo da s artes populares. Entre os nomesmais conhecidos, podemos citar: as famílias Vitalino e de ZéCaboclo, no Auto do Moura/PE; de Dona Izabel, no Valedo Jequitinhonha/MG; e de G O, em Divinópolis/MG.2

    O envolvimento dos lhos e outros graus de parentescopode ser visto em duas direções: a transmissão de um co-nhecimento, mas também, em algu ns casos, a a mpliação demão de obra – e possibilidade de maior obtenção de renda –,para atender às demandas que crescem à medida que o nomeou “marca” familiar começa a ganha r notoriedade. Assim,surgem gerações de artistas que valorizam e reforçam o papel

    momento por Dedé e podem ser lidas em um duplo sentido.O primeiro justica o ritmo de sua produção, posto quenormalmente produz pouco, conforme diz, pois seus “per-sonagens” devem ser bem acabados, resistentes e perdurarpor longa data. Quando os “bonecos” saem de sua casa,desconhece o destino que tomarão. No entanto, seja ele

    qual for, procura garantir que tenham longa v ida.Zeloso por sua obra, acredita que o tempo gasto para

    fazê-la se reete no tempo que irão durar: “Eu não voufazer uma peça pra cair. Eu gosto de fazer a s peças, só quegosto de acabar bem acabadinho. É por isso que eu custonas peças.” O segundo contrasta a durabilidade que almeja

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    Segundo Antônio José, suaprodução se divide em duascategorias: peças de encomenda– quando recebe de seu com-prador o tema e especicidadescom que deve trabalhar; peças“criativas” – quando produza seu modo, criando modelosdiferentes, aludindo a ideia demovimento, por exemplo. Atu-almente, vem testando novastécnicas de confecção, comopossibilidades de encaixe entrevárias partes, a m de facilitaro transporte da peça, além de,segundo ele, ficar “uma peçainteressante”.

    O tempo de confecção de cada peça varia de acordocom as demandas dos demais trabalhos e suas sazonalida-des, podendo chegar a duas semanas. Ainda não é possívelviver somente da atividade escultórica, mas jamais deixoude produzir. Quanto ao acabamento, guarda o mesmozelo do pai. Diferente dele, no entanto, sempre pinta seus

    escultura através do meu desenho. Eutirei o dom do desenho e coloquei.”

    O repertório de Antônio Joséapresenta principalmente figurashumanas e animais. Dedica especialatenção, no entanto, à produção desantos. Nossa Senhora, São Jorge eSão Francisco, os mais frequentes.Perguntado sobre essa preferência,argumenta de modo singelo que “osantinho bem feitinho ca uma peçamuito bonita”, enquanto aponta paraa Nossa Senhora das Dores que estavaem processo de confecção.

    Na iconografia cristã NossaSenhora das Dores está associada à

    sexta das sete dores da paixão de Cristo3. A peça, com cercade 1,70 metro, guarda algumas particularidades. Diferentedas representações tradicionais, com as mãos sobre o peito,elas se posicionam postas ligeiramente abaixo, o que res-salta a cor e relevo do coração dilacerado pelas sete setas,conjugado à expressão atônita, que traduz o sentimento deangústia e dor.

    tora. Comecei devagarzinho. Falei: “vou fazer uma NossaSenhora Aparecida .” Aí comecei a fazer, direitinho. Aí fui, z. Termin ei el a todinha . Quand o eu terminei já coubonitinha, já. Aí z ela direitinho, os anjinhos de lado,o mapa do Brasil no meio, direitinho. Aí pintei. Rapaz, cou bonita, viu. S ério mesmo.

    A confec ção d a Nossa Senhora é narrad a por A ntônio José c omo a descobert a de um dom: “eu já sabia e nu ncatinha tentado. Aí não tinha como. ava escondido, né?”Seu encanto e gosto pela escultura vieram da possibilidadede transformação que ela oferece:

    Eu acho bonito mesmo, porque eu começo a fazer e o pautá aí. Não tem nada no pau, na madeira. Aí eu pego aconstruir do começo ao m e, quando termino, ca um serhumano em vida. Aí eu gostei de fazer.

    As caracterí sticas de sua ativida de escultórica se valera mtambém de outra habilidade. Desde criança sempre gostoude desenhar. Na adolescência estudou desenho e pinturacom Renalvo Oliveira, professor de artes da rede escolar domunicípio. Por essas razões, arma: “eu aprendi a a fazer

    de madeira – e também as diculdades para consegui-la –,as ferramentas, as técnicas de entalhe.

    O resultado, no entanto, apresenta peculiaridades,e o modo como assinam suas peças imprime uma marcapessoal. Inicialmente produziam com o pai, tornando a ati-vidade também um mecanismo de sociabilidade doméstica. Aos pouc os, à me dida qu e foram se ca sando e sai ndo par aassumir suas famílias, passaram a fazer em suas própriascasas. No entanto, sempre que possível voltam à moradado pai para esculpirem juntos, matar as saudades e lhefazer companhia.

    Antônio José, conhecido também como Zé Antônio,22 anos, ao ver o pai dar forma e vida a personagens, animaise outras guras na madeira, se sentiu instigado por estaforma de arte. A confecção de uma Nossa Senhora marcaseu ingresso neste campo.

    Essa arte aí o meu pai começou primeiro. Eu via ele fazendo e d izia a e le direto: “olhe, rapaz, essa arte aíeu faço.” Porque eu, de primeiro, gostava de desenhar.Eu estudava com o Renalvo, e gostava de desen har e pintar. Aí eu falei; “ dessa a rte aí eu faço.” Aí o pai d isse: “te steaí pra ver!” Aí eu peguei um pedaço de pau assim, uma

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    à cidade natal conheceu Luciene. Do encontro até o namoropassou-se um ano, entre as idas e vindas de Adailton. Logodepois decidiram morar juntos. Do relacionamento veio oprimeiro lho, atualmente com sete anos, que, segundo o paiorgulhoso, tem tudo para ser um artista, revelando grandedesenvoltura com desenho e pintura.

    Até pouco tempo Adailton trabalha va numa empresa deconstrução civil em Arapiraca. Nas horas de folga dedicavaseu tempo à família e à confecção de suas peças. Produz comhabilidade, conforme ratica seu pai: “ele é bom. Faz bemfeitinha as peças.” O repertório inclui animais e santos, quepinta com grande perícia. Começou a fazer sob incentivo dopai, que insistia para que aprendesse aquela arte, ao que sem-pre respondia: “‘olhe, pai, eu tô trabalhando a gora e depois eufaço’. ‘Mas você tem que aprender primeiro.’ ‘Mas, pai, essascoisas tem que aprender devagar, não é de carreira’. (risos)”

    Um dia, decidiu se aventurar. Sua primeira peça foiuma bailarina que insinuava estar dançando. Fez com aajuda do pai, que lhe deu alguma s instruções. erminada apeça enveredou-se num segundo empreendimento, desta vezsozinho. Após algum tempo de trabalho estava pronto umguarda de trânsito, com 1,70 metro de altura. O atestadode que já havia dominado a técnica veio quando esta peç a

    cerca de dois anos, a rotina de Edinês ganhou recentemente osatributos da maternidade. No momento, suas peças são feitasnos intervalos que os cuidados com a família e, sobretudo,com o bebê exigem.

    Completam o quadro de escultores Adailton, 32 anos,e Luciene, 25. O casal se conheceu em Lagoa da Canoa hácerca de dez a nos. Naquele época, Adailton passava a maiorparte do tempo na cidade de Barreiras, BA, onde traba-lhava numa fazenda de produção de limão. Numa visita

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    prima. Considera também que a confecção dos “bonecos”não é atividade simples: “Nós trabalha mos muito num dia.Num dia, nós fazemos uma. Por mais que você olhe, assim:‘ah, é fácil!’ Não é. Só sabe quem faz.” Além disso, acrescen-ta as diculdades em obter a matéria-prima, cada vez maisescassa na região.

    Por outro lado, advoga que produzir uma peça é umprocesso de permanente aprendizado, “porque, cada vez quea pessoa faz, ela vai aprendendo coisas novas.” Casada há

    grupos de bonecos que fazem alusão a uma estrutura familiarcom pai, mãe e lhos.

    A c onfecção segundo ela é t rabalhos a. Quatro, cincohoras, às vezes um dia inteiro para fazer uma única peça.O marido lhe consegue a madeira. Para pintar, pincéis etinta plástica. A preocupação com o acabamento é herdadado pai. Ao nal, termina por ser uma atividade prazerosa eaté surpreendente, como arma:

    É bom. É uma coisa que a gente faz não é tanto assim pelodinheiro, é um divertimento também. Eu mesmo tem horasque olho pra elas e eu co[achando]incrível, porque é umacoisa que eu nunca tinha feito, nunca tinha imaginado queeu podia fazer o que eu faço.

    Inspirada na irmã, Edinês, 16 anos, decidiu seguiro mesmo caminho: “Ela que inventou de fazer. Aí eu f ui edisse: ‘eu vou tentar pra ver se eu sei também!’ Aí eu z.”Suas peças têm características próximas às de Maria Cíce-ra, cabeças acopladas a um busto longilíneo. Confeccionacom ela a série “A família”. Uma peculiaridade, no entanto,é o perl ligeiramente mais no e alongado, o que podevariar de acordo com a madeira obtida como matéria-

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    zer algo novo e que indique seutraço pessoal, sempre com grandecuidado e perfeccionismo.

    Luciene, sua esposa, começoua se interessar pela escultura apartir do trabalho do marido ede Maria Cícera, com quem re-serva grande amizade. No início,suas peças tinham característicasparecidas com as das demais mu-lheres da família. Aos poucos foimudando o perl de sua produção.Um dia, quando Adailton chegoudo trabalho, se surpreendeu comum “personagem” de quase doismetros de altura feito pela esposa.Seu “homem do campo”, terminado recentemente, con- juga o olha r ex pressivo e a riqueza do ent alhe escultóric ocaracterístico da família, c om detalhamentos feitos com apintura no acabamento da peça, indicando a marca pessoalde seu trabalho.

    oda a produção familiar tem como referência a casa de Antônio de Dedé. Ainda que os lhos produzam um trabalho

    foi confundida com as de seu pai. Desde então não pa roumais de fazer. “Se a gente aprende uma arte, tem que tocarpra frente, não pode jogar fora.”

    Seu trabalho se caracteriza pela preferência à produçãode “personagens” grandes, sempre na tentativa de repro-duzir o tamanho natural. Santos, bichos, guardas surgemdo entalhe que veio, segundo afirma, de fonte divina:“eu estudei pouco, mas a inteligência que Deus me deu éimensa.” Procura variar seus personagens, buscando tra- P e

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    MAIA, Marilene Corrêa.Le oeuvres d’art populaire brésilien au Musée du Fo lklore Ed ison Carn eiro: entre terrain, musée et marché.ese (Doutorado em Etnologia) – Université de Paris, Laboratoired’Ethnologie et de Sociologie Comparative. Paris, 2009.

    MAUSS, M.Sociologia e antropologia.São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

    SOUZA, Marina Mello e. Mestre Is abel e sua e scola : cerâmica no Valedo Jequitinhonha. Rio de Janeiro: Funarte, Coordenação de Folclore eCultura Popular, 1995. (Sala do Artista Popular, 59).

    VARGAS, Carmen. A família Vital ino e sua arte . Rio de Janeiro: Funarte,Instituto Nacional do Folclore, 1983. (Sala do Artista Popular, 6).

    WALDECK, Guacira.Família Zé Caboclo. Rio de Janeiro: IPHAN,Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2008. (Sala do ArtistaPopular, 143).

    INS I U O BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ES A ÍS ICA.Cidades . Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2010.

    INS I U O BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ES A ÍS ICA.Cidades : Lagoa da Canoa – AL. Disponível em: . Acesso em:30 nov. 2010.

    LAGOA DA CANOA (Alagoas). Prefeitura Municipal.Website .Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2010.

    NOTAS

    1 Entre as exposições das quais participou, cabe citar: “Imaginár io”,Maceió, Sesc Guaxuma, 2009 (coletiva); “O Olhar”, Maceió.Museu Téo Brandão, 2008; exposição na Galeria Pontes, SãoPaulo, 2009 (coletiva). Além disso, suas peças já se fazem presentesem alguns acervos institucionais importantes; Museu TéoBrandão, Museu do Homem do Nordeste, Casa do Patrimôniode Alagoas, Museu AfroBrasil, Pavilhão das Culturas Brasileiras,Museu da Galeria Karandash, Sebrae Alagoas.

    2 Para maiores dados sobre estes nomes, vide indicações nas Referênciasbibliográcas.

    3 A sexta dor de Cristo refere-se ao momento em que Maria recebe ocorpo de Cristo após seu descendimento da cruz.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BARRE O, Lázaro. Arte em ma deira : escultores de Divinopolis, MG.Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional do Folclore, 1986.(Sala do Artista Popular, 22).

    GONÇALVES, Luciana.Virgínio Rios : esculturas. Rio de Janeiro:IPHAN, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2007.(Sala do Artista Popular, 136).

    GEER Z, Clifford.O saber local : novos ensaios em antropologiainterpretativa. Petropolis: Vozes, 1998.

    LEAL, João. Da arte popular às culturas populares híbridas.Etnográca. Lisboa, Nov 2009, v.13, n.2, p. 472-476, nov. 2009.

    autoral em suas residências, todo o contato, encomendase, em certa medida, o a rmazenamento das peças são feitosna casa do pai. Ele é o ponto central dessa rede parental deartistas, agregando em torno de si a marca das expressõesimpressas na madeira nesses trabalhos. Sua morada, umlugar de fomento desta atividade. Ao visitar Dedé, mais doque seu trabalho, pode-se conhecer um saber-fazer da “artena madeira”, transmitido por gerações. Ao chegar a Lagoada Canoa, bata à porta. A primeira expressão, certamenteserá um... ou vários sorrisos da fa mília Antônio de Dedé.

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    CONTATOS PARA COMERCIALIZAÇÃO

    SALA DO ARTISTA POPULAR | CNFCP

    Rua do Catete, 179 (metrô Catete)Rio de Janeiro – RJ cep 22220-0 00tel (21) 2285.0441 | 2285.0891fax (21) [email protected] | www.cnfcp.gov.br

    ADAILTON

    tel (82) 9648 3727

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    R I O D E J A N E I R O | 1 6 D E D E Z E M B R O D E 2 0 1 0 A 1 6 D E J A N E I R O D E 2 0 1 1 |

    M I N I S T

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    C U L T U R A P O P U L A R | M U S E U D E F O L C L O R E E D I S O N C A R N E I R O

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    MUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

    A Sala do Ar tista Popular, do Centro Nacional de Folclore eCultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivoconstituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendoao público objetos que, por seu signicado simbólico, tecnologia deconfecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver efazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos,estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas naconfecção. oda exposição é precedida de pesquisa que situa o artesão

    em seu meio sociocultural, mostrando as relações de sua produçãocom o grupo no qual se insere.

    Os artistas apresentam temáticas diversas, trabalhando matérias-primas e técnicas distintas. A exposição propicia ao público nãoapenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente,a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiaresou desconhecidas.

    Em decorrência dessa divulgação e do contato direto como público, criam-se oportunidades de expansão de mercado para osartistas, par ticipando estes mais efetivamente do processo de valorizaçãoe comercialização de sua produção.

    O CNFCP, além da realização da pesquisa etnográca e dedocumentação fotográfica, coloca à disposição dos interessadoso espaço da exposição e produz convites e catálogos, providenciando,ainda, divulgação na imprensa e pró-labore aos artistas no caso dedemonstração de técnicas e atendimento ao público.

    São realizadas entre oito e dez exposições por ano, cabendoa cada mostra um período de cerca de um mês de duração.

    A SAP procura também alcançar abrangência nacional, recebendo

    artistas das várias unidades da Federação. Nesse sentido, ciente do impor-tante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares,o CNFCP busca com elas maior integração, partilhando, em cadamostra, as tarefas necessárias a sua realização.

    Uma comissão de técnicos, responsável pelo projeto, recebe eseleciona as solicitações encaminhadas à Sala do Artista Popular, porparte dos artesãos ou instituições interessadas em participar das mostr as.

    Setor de PesquisaCOORDENADORA Maria Elisabeth Costa

    Programa Sala do Artista PopularRESPONSÁVELRicardo Gomes Lima

    EQUIPE DE PROMOÇÃO E COMERCIALIZAÇÃOMarylia Dias, Magnum Moreira e Sandra Pires

    PESQUISA E TEXTODaniel Reis

    EDIÇÃO E REVISÃO DE TEXTOSLucila Silva Telles

    Ana Cla ra das Ves tes

    DIAGRAMAÇÃOMaria Rita Horta e Lígia Melges

    FOTOGRAFIASDaniel ReisFrancisco Moreira da CostaRicardo Gomes Lima

    APOIO DE PRODUÇÃOFlávia Correia

    ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃOMárcia Shoo

    E96 Expressões na madeira: família Antônio de Dedé /pesquisa e texto de Daniel Reis.-- Rio de Janeiro :

    IPHAN, CNFCP, 2010.

    40 p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 164).

    ISSN 1414-3755

    Catálogo da exposição realizada no período de

    16 de dezembro de 2010 a 16 de janeiro de 2011

    1. Artesanato em madeira – Alagoas. 2. Artistas

    populares – Alagoas. I. Reis, Daniel org. II. Série.

    CDU 738(813.5)

    PROJETO DE MONTAGEM EPRODUÇÃO DA MOSTRA Luiz Carlos FerreiraTalita de Castro Miranda (assistente)

    PRODUÇÃO DE TRILHA SONORA Alexandre Coelho

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    Expressões na madeira: Família Antônio de DedéDANIEL REIS

    Da porta que se abre, um largo sorriso. O chapéu projetasombra no rosto negro, que traz um cavanhaque recobertopor alguns os brancos e outras marcasdo tempo impressas ao longo dos 57 anos.Físico magro, baixo, veias sobressaltadas,um leve ferimento no nariz. Simpático. Umpasso titubeante revela alguma diculda-de de locomoção. Estende a mão, “comovai o senhor?” Convite para entrar. Casamodesta. Pouca luz. Numa parede da sala,fotos dos lhos. Um deles, com uma bolanos pés, veste uniforme do time de futebollocal. Joga bem, segundo o pai. A estanteguarda material escolar dos mais novos. Alg umas cade iras. Uma corti na reser vao quarto dos lhos. Do canto esquerdo vemuma música. “Vamos entrando!”

    O segundo cômodo é chamado de despensa. Fogão, gela-deira, armário. Uma porta. O quarto do antrião. As parede s,até então brancas, ganham tonalidade azul. Um mosquiteirosobre a cama. As primeiras esculturas podem ser vistas nocanto direito. Grandes e expressivas, seduzem o olhar. UmSão Jorge talhado verticalmente na madeira; uma outra, emhomenagem ao cantor Michael Jackson. Chega-se à cozinha.Em uma espécie de bancada com prateleiras, várias delas.

    Menores, pintadas, feitas por suas lhas. Ao lado, no chão, m ais a lguma s dele e deseus lhos. O acervo se encerra em umaespécie de quartinho ou o que poderia seruma despensa. A porta da cozinha se in-sinua para o quintal. Amplo. Árvores, umtanque, varas de bambu para a secagem dofumo. O fogão à lenha desmoronou comas chuvas. Ao fundo o local de trabalho:“É ali que faço as pecinhas.”

    Primeira prosa. Antônio de Dedé, Antônio A lves dos Sa ntos, herdou o ape -lido do pai, Dedé Lourenço. De origemmodesta, é o mais velho dos quatro irmãosainda vivos. O quinto, nos seus termos,

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    a cerca de 150km da capital, Maceió. A região é conhecidapelo clima seco e quente a vegetação de caatinga. A atividadeeconômica é voltada para o setor de serviço e agropecuária,fortemente direcionada para as plantações de fumo. C ontacom rede escolar que atende majoritariamente aos ensinospré-escolar e fundamental, e 13 unidades de saúde, todasda municipalidade. Sua população gira em torno de 18 milhabitantes, distribuídos num território de 103km².

    Segundo os moradores, a história de Lagoa da Canoaainda está por ser escrita. Há, no entanto, uma narrativasobre as origens e marcos políticos do município que vemsendo recontada pelos habitantes locais e consta, inclusive,

    em sites ociais sobre a cidade. Segundo ela, o surgimento deLagoa da Canoa remete às primeiras décadas do século 19.Há divergências quanto à data exata , sendo possível encontrarcitações dos anos de 1833 e 1842, quando dois casais teriamse instalado na região, próximo à pequena lagoa que dá nomeà cidade. Começaram a desenvolver agricultura e pecuáriade subsistência, dando início à ocupação do território.O nome da cidade, segundo relatos, vem da imagem difun-dida pelos que passavam ao largo e podiam ver um homempescando a bordo de uma canoa, daí Lagoa da Canoa.Em termos político-administrativos, foi considerada po-

    O beneciamento também é feito por eles. Envolve a “vira-ção” das folhas – movimento realizado no intuito de reduzira fermentação e a umidade –, a secagem, o destalo, a cordae, por m, a bola de fumo. Só então ele é levado para servendido na feira local. No restante do ano plantam tambémfeijão de corda e outros vegetais para consumo doméstico.

    A fa mília de A ntônio de Dedé vive no ag reste do Es -tado de Alagoas. Lagoa da Canoa está localizada a poucosminutos de Arapiraca, segunda maior cidade alagoana,

    a bordo da canoa; o segundo mais

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    voado de Arapiraca quando esta foi elevada à condição deMunicípio, em 1924.

    Com o desenvolvimento do povoado, gerou-se umamobilização por sua independência política, que ocorreuem 1962, por meio da Lei 2472. Sua instalação ocial, comdesmembramento de Arapiraca, ocorreu no ano seguinte.

    Atual mente os cartõe s de visit a de Lagoa da Ca noa sãovistos logo no trevo que dá acesso ao município. O primei-ro, ícone da cidade e referência às suas origens: o homem

    a bordo da canoa; o segundo, maisvisível, o pórtico de entrada da ci-dade apresenta seus lhos ilustres:“Bem vindos a Lagoa da Canoa.erra de Hermeto Pascoal e Dida”.Entrando no município, o pontocentral é a praça d a Igreja Matriz.No entorno estão as instituições,prefeitura, banco, Correios, e a redede comércio e serviços. Paralelasàs ruas de calçamento de pedra,estão casas cuja arquitetura varia

    sobretudo entre as ma is antigas, deportada de frente para a rua, e asmais novas, que trazem uma separação por muros e grades.

    Descendo uma rua chega-se à lagoa. No inver-no pode-se vislumbrar bela paisagem com água azulvibrante cercada de vegetação verde rasteira e algumaspoucas árvores. Ao seu lado, a antiga estação de tremda cidade, que está desativada, e seu edifício em ruínas.No verão, o local é ponto de lazer, atraindo, ainda hoje,pessoas para a prática da pesca, apesar de armarem acontínua redução dos cardumes. odavia, o entorno do

    DESCOBRINDO ANTÔNIO DE DEDÉ “traquinagens” aos oito anos de idade Con-

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    DESCOBRINDO ANTÔNIO DE DEDÉ

    Há pouco mais de três anos o nome de Antônio de Dedécomeçou a circular no circuito das chamadas artes popu-lares. De lá para cá, suas peças passaram a ser valorizadas.Participou de exposições no Sesc de Maceió e no MuseuTéo Brandão. Neste último ganhou o prêmio “Artesão doano”, em 2008. Seu trabalho ganhou visibilidade. Suas pe-ças começaram a ser procuradas, a circular num raio muitoalém do âmbito local, a ser exibidas em exposições e galeriasespecializadas.1 Seu nome se tornou conhecido como o deum artista popular.

    Antes de s er in serido no circ uito d as artes populare s,o trabalho de Dedé tinha uma circulação local e ocupavaoutro papel em sua vida: “eu trabalhava e, nas horas defuga, eu não era muito andejo... nas horas de fuga é que eufazia, pra ganhar um troco.” Ainda que almejasse a vendade suas peças, reconhecia a diculdade em fazê-lo. Numlugar onde a circulação de renda é pequena nem sempre erafácil encontrar um comprador. Eventualmente, no entanto,conseguia vender alguns bonecos.

    Os primeiros interessados em seu trabalho remontamà infância. Recorda ter começado a fazer suas primeiras

    traquinagens aos oito anos de idade. Con-feccionava seus próprios brinquedos, comocarrinhos e aviões a partir de lata e madeira.Quando saía com eles na rua as outras crian-ças cavam “doidas”, diz, querendo compraros seus brinquedos. Aproveitava, então, paraganhar um “dinheirinho”. Num segundomomento, sua clientela vinha, sobretudo, dosterreiros próximos à sua ca sa.

    Os bonequinhos, era assim: chegava uma pessoa que trabalha va nessa s casas d e mãe

    de santo e “ah, faz um bonequinho praeu botar lá?”, aí eu fazia. Fazia Saravá,Ogum, Preto-Velho. Fazia. E eles levavam pra botar lá. Só que pagava m. Eu não fazia de graça não. Dava trabal ho pra fazer(risos).

    Essa venda já era reexo da ressonânciade seu trabalho na cidade. Nesse momento,contudo, era conhecido localmente comoa pessoa que esculpia bonecos na madeira. " O

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    local, beirando-se a linha férrea, é tido como perigoso,por ser um ponto de uso de drogas e mesmo de furtos.

    Para os interessados em arte popular as referências locaissão outras. Lagoa da Ca noa é a terra de Antônio de Dedé e seuslhos, de Raimundo, João da Lagoa, Marcondes, Neusvaldoe da cerâmica utilitária da comunidade de Lagoa do Mato,para citar os nomes mais conhecidos na localidade. Dedé e amaioria de seus lhos moram na Vila de Santa Izabel, localde ruas de pedras e casas simples, diferente da área central,com infraestrutura um pouco melhor. Para localizá-lo, os que

    chegam em Lagoa da Canoa devem pegar a rua principal atéa altura da igreja da Assembleia de Deus, pouco antes da Praçada Matriz. Segue-se por cerca de 500 metros por uma rua pa-ralela em sentido contrário até a altura de uma capela amarelaà direita. Logo em frente, pega-se a rua à esquerda. A cercade 100 metros à direita está a casa de Antônio de Dedé. Nafrente da casa, coberta por um muro de cerca de dois metrosde altura, um tronco que serve de banco. Bata no portão eo senhor simpático de sorriso sempre aberto atenderá. Da p ortaque se abre, um sorriso... Antônio de Dedé.

    “descobridor” retornava trazendo madeira e levando as peçasAí ele chegou:“o senhor éo Antôniode Dedé?” eu disse:“souSeu nome não estava associado aindapara uma escala mais ampla, nacional, de artista popular,

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    descobridor retornava trazendo madeira e levando as peças já confec cionadas . Dedé arma que o pre ço pag o por su aspeças ainda eram baixos. No entanto, valia a pena. A regu-laridade da venda garantia u ma fonte de renda suplementar.Era também uma forma de reconhecimento de seu trabalho.

    Em geral as peças eram encomendadas, com repertórioespecíco. Numa ocasião, no entanto, recebeu um pedidoque lhe dava liberdade para criar a seu modo. O resultadofoi entregue na visita seguinte:

    Aí, eu z um casal de noivo, um namora do com a noiva, pegado com véu; z um jornalista, bem feito; z duas tar-

    tarugas, bem feitas, com um rapaz em cima montadinho;e z um touro.

    O acordo teve m quando, após uma visita, seu com-prador desapareceu. Havia combinado retornar dentro dealguns dias como de costume, tendo deixado suas encomen-das, mas não o fez: “Eu me assustei não foi tanto por causado preço não, foi o negócio que ele me deixou um ano aquisem trabalhar. E não avisa.” Dedé cou chateado. Sentiu seutrabalho desrespeitado. Quando o comprador reapareceu,não quis mais trabalhar para ele:

    Aí ele chegou: o senhor é o Antônio de Dedé? eu disse: sousim, senhor.” E ele: “rapaz, eu vim à procura do senhor.E atrás de mim vem um bocado de gente que está rodandoaí.” Eu digo: “ah, mas o senhor encontrou foi agora! O quedeseja?” “Eu vim aqui pra saber se o senhor tem condiçãode fazer umas peças pra mim. Se você é interesseiro de fazerumas peças.” Eu disse: “que peças?” E ele: “peças de arte sana-to. Fazer escultura de madeira.” Aí eu digo: “ah, faço sim.”“Tem alguma coisa pra me mostrar aí?” Aí digo: “aqui temumas amostrazinhas aí, só não sei se você agrada.” Aí ele pegou, mas, quando ele viu, já escolheu logo. Ele disse: “essadaqui já vou comprar. Já dá pro meu trabalho.” Eu disse:

    “ já?” Ele disse: “É. Tem como o senhor fazer melhor?” E eu:“tem. Faço melhor. Faço do jeito que o senhor quiser. Façomelhor, faço menor, faço maior.” E ele disse: “ah! É dessas queeu quero. Faz maior?” “Faço.” “Pois tá certo, vou levar essa.”

    Durante a visita, Dedé e o comprador fechara m um tratoverbal. Ele faria as esculturas e o galerista compraria todaa sua produção. Os termos incluíam o dado de que o primei-ro deveria vender exclusivamente para o segundo, que porsua vez forneceria a matéria-prima. No decorrer dos meseso trato foi levado a cabo. A cada quinze ou trinta dias o seu

    Seu nome não estava associado aindaà noção de arte e/ou cultura popular.

    No argumento do antropólogo João Leal, “O popula r é – literal-mente – o produto do encontrode duas culturas: a cultura quelá estava e que não sabia que erapopular e a cultura que chega lá ea nomeia como popular” (2009).Nesse sentido, a inserção do nomede Antônio de Dedé neste universoemerge do entrecruzamento de seu

    trabalho com o momento em que eleé “descoberto”, segundo seus termos,pelo universo do colecionamento emercado de arte popular.

    rata-se, na verdade, de encon-tros entre diferentes pessoas, emprincípio de dois universos culturaisdíspares. ais encontros geraramo deslocamento de seu nome e obrade um âmbito local, enquanto “artede fazer pecinhas” – como dene –,

    para uma escala mais ampla, nacional, de artista popular,segundo os que passaram a comprar e colecionar suas peças.

    Antônio de Dedé narra sua “desc oberta” a partir dedois momentos especícos, que estruturam sua biograaenquanto artista popular. Em verdade, “ser descoberto” erauma ideia já almejada por ele de longa data. Buscava esseobjetivo com tentativas que estavam ao seu alcance, em seucotidiano, de mostrar seu trabalho:

    “Quando era criança, eu fazia umas esculturinhas e botavanas estantes, botava no armário. Era a mostra do meutrabalho(risos). A gente tem que mostrar o trabalho pra

    ser descoberto. Um dia ele é valorizado. Aí eu deixava láe ia trabalhar.”

    Segundo Dedé, muitos passantes se esticavam paraolhar para dentro de sua casa quando notavam as peças.Os comentários sobre elas se espalhavam na vizinhança. Foiassim que, numa tarde em que havia saído para o trabalhona roça, bateram à sua porta. ratava-se de um galerista deMaceió. Havia ido a Lagoa da Canoa para comprar peçasde outro artista. No caminho ouviu falar no nome de umcerto Dedé. Decidiu procurá-lo. " P

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    de aquisições feitas em suas viagens pelo interior e fora doestado. Nessas viagens foram descobrindo e classicandoum universo de artistas populares.

    Pela memória de Dedé o encontro é narrado de modosemelhante ao anterior. Um dia, saiu para o trabalhona roça. Num dado momento seu lho veio chamá-lo.Um casal havia chegado à sua casa, por indicação de alguém

    q , ,e não sei por onde o homem deu. El e disse: “olhe, pra daquia um mês eu venho trazendo umas madeiras pra você fazerumas peças, uma porção.” Eu disse: “sim, senhor. Traga asmadeiras. Então eu não posso pegar outro serviço?” Ele disse:“pode não.” Aí quei, esperei, esperei, esperei, um mês e elenão veio. O homem sumiu. Às vezes as pessoas adoecem. Àsvezes ele adoeceu. Passou um dia, passou outro, passou outro...e eu tava precisando. Com um ano é que ele veio dar as carasaqui. Com um ano, olhe! Aí ele chegou aqui com um carro demadeira e queria que eu zesse peças na marra. Aí eu disse:“ah, na marra eu não faço não. Eu não vou fazer peças pro

    senhor não, eu já estou t rabalhando pra outra pessoa aí.”

    Nesse intervalo de tempo, Dedé seria “descoberto” pelasegunda vez. Já havia desistido de esperar por seu compradore considerava quebrado o acordo entre eles. Foi então queDalton Costa e Maria Amélia chegaram à sua casa. Ele,natural de Goiânia, ela, de Maceió, onde residem. Ambosartistas plásticos, mantêm atualmente uma galeria na ca-pital alagoana, cujo foco, para além de suas obras, é a artepopular. As categorias norteadoras são a ênfase nos artistasalagoanos e na escultura em madeira. O material é resultado

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    punhos cerrados nos corpos de formas longilíneas, devolveD

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    DOM, TRABALHO, ARTE E OFÍCIOna rua, interessado em suas peça s. Haviam novamente lhe

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    o olhar ao espectador. Algumas transmitem uma sensação deangústia; outras, um humor irônico, ou até contemplação.Os personagens são uma recriação inspirada no mundo quevê ao seu redor, na rua, na roça, na V, etc. Gosta muito defazer animais, mas também santos e guras humanas dasmais variadas.

    Neste conjunto, o le-que de possibilidades decriação é vastíssimo. Podemtrazer ou cores vibrantesque procuram ser fiéis

    o quanto possível ao objeto,ou, como prefere, acaba-mento na cor da madeira,procurando ressaltar, juntodo “personagem”, o brilhoe características da matéria-prima. Possuem tamanhosvariados, de 50 centímetrosa dois metros de altura. Suaescala preferida de trabalhosão as de tamanho médio,

    pensar para o mundo dos objetos” (1998). Suas esculturassão, assim, o ‘entalhe’ de sua vida social.

    Para além da ideia de “arte na madeira”, bonecos,personagens e/ou pecinhas são as formas carinhosas – emais recorrentes – pelas quais se refere às suas esculturas.Sua principal característica talvez seja a expressividade doentalhe, que, com alta dramaticidade, evidente nos dentes e

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    Dedé fala do trabalho como arte. Arte da carpintaria,arte do fumo, arte dos canteiros, arte de fazer tijolos. Domesmo modo e inversamente, ao se referir às suas esculturas,usa com frequência a categoria “arte na madeira”. Para ele,a noção de arte abarca todo e qualquer processo de produ-

    ção e criação. Envolve,dessa maneira, várias di-mensões da vida social. A esc ultu ra, enqu anto“arte na madeira”, é um

    recorte e classificaçãodesse quadro mais am-plo. Nesse sentido, talvezseja correto armar, re-correndo ao argumentode Clifford Geertz, queseu entalhe, para alémde dimensões estéticas,“materializam uma for-ma de viver, trazendoum modelo especíco de

    descoberto. A partir disso, o casal passou a ocupar papelcentral na produção e circulação do trabalho de Dedé,sendo responsáveis pela aquisição da quase totalidade daspeças. O trato feito foi parecido com o anterior: Dedé recebea madeira, produz as peças, eles pegam e lhe pagam a cadaperíodo de tempo especíco.

    Na galeria, em Maceió, encontra-se considerável acervode obras do artista. Vários tamanhos, personagens, formatos.Segundo Dalton e Maria Amélia, tal qual já o zeram em re-lação a outros artistas, o objetivo não é só o de comercializaras peças do artista, mas também o de promover seu autor.

    Esta divulgação passa pela inserção do nome de Dedé nomundo das artes populares à criação de novos agentes e meiosde mostrar e escoar seu trabalho. De modo geral, trata-se deuma iniciativa de mão dupla: por u m lado atrai novos com-pradores, permitindo ao artista vender mais peças por umpreço melhor; por outro, valoriza também o próprio acervo.

    recriar o trabalho do pai. Desde então, arma, nunca dei-f

    se caso, tem duplo sentido: metafórico, na medida em que

    com cerca de 80 centímetros a um quando chegava de noite os cabras jáf

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    xou o trabalho com as peças de lado, que eram feitas emmomentos de descanso, nos ns de semana ou no trabalho,entre uma tarefa e outra. Relata que, quando fazia tijolos,sempre mandava junto para o forno algum “bichinho”; nasroças, quando achava uma madeira que se parecia com algumpersonagem, a trabalhava e deixava “ilustrando” o ca nteiro.Em alguns momentos foi criticado por isso:

    Tinha gente que dizia : “mas que cabra à toa, como é que umhomem perde um diade serviço todinho pra

    mexer com uns pedaçosde pau?” Eu digo: “sevocê não faz é porquesua paciência não dá.E eu estou com tempodisponível pra fazer.”E fazia.

    Para Dedé: “o homemque vive só de uma arteestá morto.” A morte, nes-

    arma recorrentemente nunca ter conseguido deixar de ladoa confecção de seus “bonecos”, explicitando-os enquantoatividade que organiza e dá sentido à sua vida; literal, numlugar onde a escassez dos meios de vida imprime a necessi-dade de se desdobrar em múltiplas funções.

    O processo de confecção das peças é narrado como umtrabalho duro. A jornada começa cedo, às seis da manhãDedé já está de pé. oma um café enquanto espera um deseus lhos colocar a madeira em seu ponto de trabalho.

    Não consegue carregá-la.É pesada, rígida, difícil

    de manusear. Seu entalheexige esforço. Prefere osdias de sol, são melho-res para trabalhar e paraa madeira. Nos períodoschuvosos, com a umida-de, surgem problemas,como o risco de fungose outros bichos. Afirmademorar cerca de oitodias para fazer uma peça.

    metro. Acha o manuseio da madei-ra melhor nessas medidas.

    Ant ônio de Ded é não tev eum aprendizado formal em arte. Aprendeu sozinho, olhando. Desdecriança observava seu pai trabalhara madeira na “arte da carpintaria”.Desse olhar cotidiano trouxe a ins-piração para começar a fazer suaspeças. Daí armar:

    Aprendi n a visão, e eu fui mo-dificando. Eu fui olhando ascores e fui me incentivando. Eu primeiro z os bichinhos; depois peguei a fazer uma avezinh a de pena . Depoi s um passa rinh o,bem feitinho. Fazia com asa,com tudo, fazia na madeira,bem feitinho. Aí lixava ele e bo-tava num canto. Aí ia perceberde noite se tava prestando. Mas

    estavam falando “ei, rapaz, passari-nho bonitinho”. Aí eu digo: “olhe quetá dando certo”. Aí eu continuava, pegava outras pecinhas diferent es e fui mudando.

    É um dom da natureza. O meu paitrabalhava com outra espécie de tra-balho. Mas é quando o homem nasce pra se r. Essas coisas s ão de família.O meu pai já trabalhava nessas artes.

    Só que era outras artes, não era artede artista, era madeira. Meu pai fazia casa de madeira, carroça, carro pra fumo, macaco, mesa, cadeir a,cama. Meu pai fazia tudo.

    Dedé atribui sua habilidadea um dom. Sua “arte na madeira”é uma dádiva recebida de modogeracional. Algo que veio à tonaa partir do olhar e vontade de

    telhas. No cume ded il lg

    odavia, mais do que suat d d t i

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    refazendo com tijolo. A “cabana” foi feita há pouco mais detrês anos, data que coincide mais ou menos com a narrativade sua descoberta. Antes, fazia dentro da própria casa ou noquintal, próximo à porta da cozinha.

    Começo do trabalho. Dedé não dispõe, em geral, damatéria-prima. Antes havia madeira por todos os lados,era fácil conseguir. Hoje não mais. Há de se comprar nas

    um dos pilares algunscataventos atribuemum olhar lúdico aolocal, conferindo-lhecerta leveza. No centrohá um suporte que usapara esculpir – doistroncos, um baixo,outro mais alto, ondeapoia a madeira. Estápróximo de uma mu-

    reta aberta, que dápassagem para a roçada família, assim comoà casa de sua mãe, quemora ao lado.

    Às v ezes alguns vizinhos passa m e cam a obser vá-lo,segundo ele, na expectativa de aprender também aquela arte:“muitos não tem o dom, mas vontade tem!” Dedé armaorgulhoso ter sido ele quem fez a instalação, assim comosua própria casa. Era de pau a pique. Aos poucos, à medidaque foi conseguindo recursos, foi demolindo as paredes e

    vontade, quem determina oquanto vai trabalhar são oslimites de seu próprio corpo.rabalha um dia, dois, no

    terceiro as pernas e as costascomeçam a doer; se vê, então,forçado a parar, “tomar umafuga”, como diz. Caminha naroça arrendada pela família,se deita, descansa. Quandoconsegue, no entanto, tra-

    balha até o sol se pôr. Passao dia todo de pé. Pausa pa ra oalmoço, um café, um cigarro. Ao fim do dia , nova mentepede a um de seus lhos queguarde o personagem em processo. Forma de zelar para quenão ocorra nenhum imprevisto com a madeira.

    Hoje, Antônio de Déde trabalha em seu quintal, numapequena instalação que construiu para criar suas peças. Anteso fazia em casa, na cozinha. A “cabana”, como diz, é feitacom quatro pilares de madeira aparafusados e coberta com

    M a d e i r a e mposse começa a fa

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    geral, não se assemelham o bastante da imagem que almejarepresentar. Se a peça tiver o acabamento na cor da madeira,procura moldá-la de modo a valorizar suas bras e texturas.

    empo e duração são categorias essenciais para o seutrabalho. “O tempo é pouco. O tempo é pouco porque otrabalho é grande.” As expressões são repetidas a todo o

    braços e pernas da peça. A etapa mais difícil do processo éo acabamento, demorado e trabalhoso. A glosa é utilizadapara lixar a peça, a ssim como uma espátula. Quando ameaçasoltar uma lasca, utiliza cola para evitar. Para pintar produzsuas próprias misturas de tinta em casa. Arma que as opçõesde que dispõe no mercado local não o satisfazem, pois, em

    serralherias da região. O preço é sa lgado, segundo arma.Por isso pede aos “clientes” que a tragam. Em seu quintalarmazena as toras que chegam. Prefere madeiras duras,a jaqueira é uma das mais usad as e, atualmente, acessíveis.Certa vez, perguntado se não era muito dura, respondeu:“Não tem madeira dura. em escultor mole.”

    posse, começa a fa-zer o contorno dopersonagem que vaitrabalhar. Logo sevêem traços do rosto,dentes, olhos, nariz,boca. O corpo co-meça a ganhar forma. As ferrame ntas campenduradas numabolsa, à mão do ar-

    tíce. São adquiridasno comércio localou em Arapiraca.O serrote acerta otamanho bruto do

    objeto. A faca batida com enxó começa a dar forma ao per-sonagem que pretende criar. Hábil, recorta rapidamente atora como se já tivesse toda a peça idealizada em sua cabeça.

    O formão entra em cena para fazer os olhos – queeventualmente podem ganhar colorido com a colagem dematerial plástico – e furar o local de encaixe e colagem dos

    dos detentores desses saberes e seus lugares no campo dasartes populares (Maia 2009)

    em seus “personagens” com o ceticismo em relação a seupróprio tempo e duração Diz-se doente fraco e cansado

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    artes populares (Maia, 2009).No caso de Antônio de Dedé, a partir do momento em

    que foi “descoberto”, ouviu de seus “agentes” que incenti-vasse os lhos a ta mbém fazerem as peças, ideia já cogitadapor Dedé. Sempre preocupado com o futuro dos seus, viana “arte na madeira” uma oportunidade a mais de trabalhoe renda. Estimulava-os, assim, a descobrirem sua “arte” efazerem suas “pecinhas”. Aos poucos foram se interessando,não só por conta do apelo, mas também pelo olhar e vivênciacotidiana com o pai.

    Hoje, cinco dos filhos e uma nora trabalham com

    atividade escultórica. al qual a trajetória do pai – e sogro–, dividem seu tempo entre a madeira e as demais “artes”,como o trabalho na roça, no lar e em empresas da região. Domesmo modo, suas “pecinhas”, “bonecos” e “personagens”– termos que, tal qual Dedé, empregam para se referir àssuas obras – começaram a se deslocar do domínio domésticolocal para ingressar também no circuito das artes populares.

    O trabalho dos lhos e nora guardam muitas caracte-rísticas do processo produtivo de Dedé: a concepção de arteabarcando todo e qualquer processo produtivo e criativo,a crença na dádiva do dom, a preferência pelo mesmo tipo

    próprio tempo e duração. Diz se doente, fraco e cansado,sentenciando que se o tempo de sua arte deve ser eterno,o seu se encurta.

    O “NASCIMENTO” DE UMA FAMÍLIA DE ARTISTAS

    Para além da circulação do nome de Antônio de Dedéno mundo das artes populares, mais recentemente o de seuslhos começou a trilhar o mesmo caminho. A extensão dosaber de um artista para sua família – e eventualmente atépara a comunidade – é um dado que aparece com alguma

    recorrência no campo da s artes populares. Entre os nomesmais conhecidos, podemos citar: as famílias Vitalino e de ZéCaboclo, no Auto do Moura/PE; de Dona Izabel, no Valedo Jequitinhonha/MG; e de G O, em Divinópolis/MG.2

    O envolvimento dos lhos e outros graus de parentescopode ser visto em duas direções: a transmissão de um co-nhecimento, mas também, em algu ns casos, a a mpliação demão de obra – e possibilidade de maior obtenção de renda –,para atender às demandas que crescem à medida que o nomeou “marca” familiar começa a ganha r notoriedade. Assim,surgem gerações de artistas que valorizam e reforçam o papel

    momento por Dedé e podem ser lidas em um duplo sentido.O primeiro justica o ritmo de sua produção, posto quenormalmente produz pouco, conforme diz, pois seus “per-sonagens” devem ser bem acabados, resistentes e perdurarpor longa data. Quando os “bonecos” saem de sua casa,desconhece o destino que tomarão. No entanto, seja ele

    qual for, procura garantir que tenham longa v ida.Zeloso por sua obra, acredita que o tempo gasto para

    fazê-la se reete no tempo que irão durar: “Eu não voufazer uma peça pra cair. Eu gosto de fazer a s peças, só quegosto de acabar bem acabadinho. É por isso que eu custonas peças.” O segundo contrasta a durabilidade que almeja

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    à cidade natal conheceu Luciene. Do encontro até o namoropassou-se um ano, entre as idas e vindas de Adailton. Logo

    cerca de dois anos, a rotina de Edinês ganhou recentemente osatributos da maternidade. No momento, suas peças são feitas

    prima. Considera também que a confecção dos “bonecos”não é atividade simples: “Nós trabalha mos muito num dia.

    grupos de bonecos que fazem alusão a uma estrutura familiarcom pai, mãe e lhos.

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    depois decidiram morar juntos. Do relacionamento veio oprimeiro lho, atualmente com sete anos, que, segundo o paiorgulhoso, tem tudo para ser um artista, revelando grandedesenvoltura com desenho e pintura.

    Até pouco tempo Adailton trabalha va numa empresa deconstrução civil em Arapiraca. Nas horas de folga dedicavaseu tempo à família e à confecção de suas peças. Produz comhabilidade, conforme ratica seu pai: “ele é bom. Faz bemfeitinha as peças.” O repertório inclui animais e santos, quepinta com grande perícia. Começou a fazer sob incentivo dopai, que insistia para que aprendesse aquela arte, ao que sem-pre respondia: “‘olhe, pai, eu tô trabalhando a gora e depois eufaço’. ‘Mas você tem que aprender primeiro.’ ‘Mas, pai, essascoisas tem que aprender devagar, não é de carreira’. (risos)”

    Um dia, decidiu se aventurar. Sua primeira peça foiuma bailarina que insinuava estar dançando. Fez com aajuda do pai, que lhe deu alguma s instruções. erminada apeça enveredou-se num segundo empreendimento, desta vezsozinho. Após algum tempo de trabalho estava pronto umguarda de trânsito, com 1,70 metro de altura. O atestadode que já havia dominado a técnica veio quando esta peç a

    nos intervalos que os cuidados com a família e, sobretudo,com o bebê exigem.

    Completam o quadro de escultores Adailton, 32 anos,e Luciene, 25. O casal se conheceu em Lagoa da Canoa hácerca de dez a nos. Naquele época, Adailton passava a maiorparte do tempo na cidade de Barreiras, BA, onde traba-lhava numa fazenda de produção de limão. Numa visita

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    Num dia, nós fazemos uma. Por mais que você olhe, assim:‘ah, é fácil!’ Não é. Só sabe quem faz.” Além disso, acrescen-ta as diculdades em obter a matéria-prima, cada vez maisescassa na região.

    Por outro lado, advoga que produzir uma peça é umprocesso de permanente aprendizado, “porque, cada vez quea pessoa faz, ela vai aprendendo coisas novas.” Casada há

    A c onfecção segundo ela é t rabalhos a. Quatro, cincohoras, às vezes um dia inteiro para fazer uma única peça.O marido lhe consegue a madeira. Para pintar, pincéis etinta plástica. A preocupação com o acabamento é herdadado pai. Ao nal, termina por ser uma atividade prazerosa eaté surpreendente, como arma:

    É bom. É uma coisa que a gente faz não é tanto assim pelodinheiro, é um divertimento também. Eu mesmo tem horasque olho pra elas e eu co[achando]incrível, porque é umacoisa que eu nunca tinha feito, nunca tinha imaginado queeu podia fazer o que eu faço.

    Inspirada na irmã, Edinês, 16 anos, decidiu seguiro mesmo caminho: “Ela que inventou de fazer. Aí eu f ui edisse: ‘eu vou tentar pra ver se eu sei também!’ Aí eu z.”Suas peças têm características próximas às de Maria Cíce-ra, cabeças acopladas a um busto longilíneo. Confeccionacom ela a série “A família”. Uma peculiaridade, no entanto,é o perl ligeiramente mais no e alongado, o que podevariar de acordo com a madeira obtida como matéria-

    zer algo novo e que indique seutraço pessoal, sempre com grande

    id d f i i

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    cuidado e perfeccionismo.Luciene, sua esposa, começou

    a se interessar pela escultura apartir do trabalho do marido ede Maria Cícera, com quem re-serva grande amizade. No início,suas peças tinham característicasparecidas com as das demais mu-lheres da família. Aos poucos foimudando o perl de sua produção.Um dia, quando Adailton chegoudo trabalho, se surpreendeu comum “personagem” de quase doismetros de altura feito pela esposa.Seu “homem do campo”, terminado recentemente, con- juga o olha r ex pressivo e a riqueza do ent alhe escultóric ocaracterístico da família, c om detalhamentos feitos com apintura no acabamento da peça, indicando a marca pessoalde seu trabalho.

    oda a produção familiar tem como referência a casa de Antônio de Dedé. Ainda que os lhos produzam um trabalho

    foi confundida com as de seu pai. Desde então não pa roumais de fazer. “Se a gente aprende uma arte, tem que tocarpra frente, não pode jogar fora.”

    Seu trabalho se caracteriza pela preferência à produçãode “personagens” grandes, sempre na tentativa de repro-duzir o tamanho natural. Santos, bichos, guardas surgemdo entalhe que veio, segundo afirma, de fonte divina:“eu estudei pouco, mas a inteligência que Deus me deu éimensa.” Procura variar seus personagens, buscando tra- P e

    ç a s

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    A d a

    i l t o n

    MAIA, Marilene Corrêa.Le oeuvres d’art populaire brésilien au Musée du Fo lklore Ed ison Carn eiro: entre terrain, musée et marché.ese (Doutorado em Etnologia) – Université de Paris, Laboratoired’Eth l i t d S i l i C ti P i 2009

    NOTAS

    1 Entre as exposições das quais participou, cabe citar: “Imaginár io”,

    autoral em suas residências, todo o contato, encomendase, em certa medida, o a rmazenamento das peças são feitosna casa do pai Ele é o ponto central dessa rede parental de

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    d’Ethnologie et de Sociologie Comparative. Paris, 2009.

    MAUSS, M.Sociologia e antropologia.São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

    SOUZA, Marina Mello e. Mestre Is abel e sua e scola : cerâmica no Valedo Jequitinhonha. Rio de Janeiro: Funarte, Coordenação de Folclore eCultura