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EXTRADIÇÃO E TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: O REGIME PORTUGUÊS NOS CASOS DE PENA DE MORTE E PENA DE PRISÃO PERPÉTUA Frederico Alcântara de Melo FDUNL N.º11 - 2002

EXTRADIÇÃO E TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: O … · II. O Caso Leung 1. O pedido extradicional – fase judicial ... do estudo de dois casos concretos, dos quais resultaram dois

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EXTRADIÇÃO E TRIBUNAL PENAL

INTERNACIONAL: O REGIME PORTUGUÊS NOS CASOS DE PENA DE

MORTE E PENA DE PRISÃO PERPÉTUA

Frederico Alcântara de Melo  FDUNL N.º11 - 2002

1

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 11/02

Extradição e Tribunal Penal Internacional:

o regime Português nos casos de pena de morte

e pena de prisão perpétua

Frederico Alcântara de Melo

© Frederico Alcântara de Melo

Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro, [email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Campus de Campolide, 1099-032 LISBOA.

2

Extradição e Tribunal Penal Internacional: o regime

Português nos casos de pena de morte e pena de prisão

perpétua1

I. Nota introdutória

II. O Caso Leung

1. O pedido extradicional – fase judicial

2. Oposição ao processo extradicional: recurso para o Tribunal Constitucional

III. O Caso Varizo

1. Pedido Extradicional

2. Garantias do Estado requisitante

3. Oposição ao processo extradicional

IV. Análise Comparativa e alterações legislativas

1. Pena de Prisão Perpétua e Pena de Morte

2. A questão das garantias

3. Cooperação e ingerência

4. Extradição vs. cooperação judiciária internacional ?

5. Direito aplicável do Estado requisitante

6. Evolução legislativa

7. Desenvolvimentos recentes: o TPI e a revisão constitucional de 2001

V. Conclusões

1 © Frederico Alcântara de Melo (mailto:[email protected]) Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Direito Penal, regida pela

Prof. Doutora Teresa Pizarro Beleza e assistida pela Mestre Elena Burgoa. Curso de licenciatura na Faculdade de Direito da

Universidade Nova de Lisboa, Outubro-Novembro de 2001. Inicialmente redigido como análise instrumental dos

casos Leung (Acórdão 417/95 do Tribunal Constitucional [TC]; processo 374/94, publicado no DR II série

nº266 de 17/11/95, p.13787) e Varizo (Acórdão 474/95, idem; processo 518/94; id:p.13792) e análise de

subsequentes alterações legislativas / mutação do regime no âmbito da extradição, foi entretanto actualizado

face à criação do Tribunal Penal Internacional (TPI). As últimas alterações datam de Julho de 2002.

3

I. Nota introdutória

A Extradição tem sido um tema fundamental para o Direito, para a diplomacia e as

relações internacionais e política em geral, bem como para o estudo particular dos direitos

humanos. No caso Português têm sido diversos os casos que, de uma forma ou de outra, têm

contribuído para a discussão – e construção – do regime jurídico aplicável. Recentemente, uma

questão associada surgiu: a possibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua2 por um Tribunal

Penal Internacional [TPI].

Isto reflectiu-se no debate político português. Afinal, uma das particularidades do regime

nacional é a inadmissibilidade de tal pena3. A preocupação evidente da sua aplicação pelo TPI seria

a da associação de Portugal a tal situação. O ‘orgulho nacional’ na abolição precursora da pena de

morte4 -- bem patente sempre que a questão surge em discussão -- não se poderia conformar com

um regresso infeliz. Ainda que não se aplicasse a Portugueses, seria inaceitável, porque dotada de

hipocrisia, a aplicação a quaisquer outros indivíduos, com o apoio da Nação. Esta conclusão é

incontestada tendo em conta a protecção da dignidade da pessoa humana – princípio para o qual a

ideia de nacionalidade não faz sentido5 – que encima a Constituição vigente [CRP].

Quanto ao sistema actual de extradição, defendemos a valorização das garantias-- e de

variáveis associadas, como o direito do Estado requerente – e em particular, a proposta de a

aproximação a essa análise ser feita com base nas teorias do risco; do moral hazard causado por

certos defeitos de regime.

A análise será feita ‘na especialidade’ -- apenas, portanto -- o regime da extradição nos

casos em que esteja em causa a aplicação (ou mera possibilidade de...) de penas de carácter perpétuo

ou de morte. Estamos em especial no domínio da Constituição Penal. Faremos tal análise através

do estudo de dois casos concretos, dos quais resultaram dois importantes acórdãos, reconhecidos

não só pela comunidade jurídica -- reflectidos em alterações ao regime Português de extradição e

até na CRP -- mas também pela atenção que lhes foi dedicada pelos meios de comunicação social

em Portugal e no exterior.

2 Doravante PPP. 3 Veja-se o art 29/5 CRP. 4 Doravante PM. Para crimes políticos, foi abolida em 1852; para crimes comuns em 1867, com o Decreto de

1 de Julho; mas só em 1976 para crimes militares. A questão do ‘crime político’ está indelevelmente associada

ao instituto da extradição. Por não estar necessariamente em causa nos casos ‘sub judice’, remetemos apenas

para um conhecido caso – Martelli – sugerindo o texto de Filomena DELGADO (op.cit, p.72) de resto

expressivo quanto à extradição em geral (note-se que entretanto o regime foi significativamente alterado).

Ainda que sejam distintas, a PM e a PPP aproximam-se do rejeitável elemento da irreversibilidade, o que no

caso da PM – é bem de ver – é total. 5 Nem que fosse por via da própria CRP, ao abrigo do princípio da universalidade (art 12), o que nos parece

incontroverso.

4

Existem em Portugal dois grandes instrumentos reguladores da figura da extradição, ainda

que se considere, em rigor, que o segundo é instrumental do primeiro. Por um lado, a lei

constitucional6 que no seu art 33/4 proíbe de forma liminar a extradição por crimes a que

corresponda a PM. Por outro lado, a lei ordinária que regula a extradição de forma específica, que

tem vindo a ser sucessivamente alterado.

No âmbito do regime consagrado por via ordinária, o pedido de extradição teria de ser

recusado sempre que o facto a que se refere fosse punível com PPP segundo o art 6/1-e do DL

43/91 de 22 Jan. Este diploma7, fundamental para análise jurisprudencial que se segue, regulava a

cooperação judicial internacional em matéria penal8 e substituiu em Portugal o DL 437/75 de 16

Ag. Quanto a este último diploma9, veremos em particular o seu art 4/1-a (que permite a extradição

que corresponda a crime punido com PM comutada) e subsidiariamente o art 21/c (que obriga a

incluir no pedido de extradição a indicação dos termos e garantia de comutação nos casos de PM

ou PPP) ambos objecto de pedido de declaração de inconstitucionalidade no caso Leung.

A Convenção Europeia de Extradição10 e Protocolos Adicionais, que deu origem ao DL

43/91, surge na jurisprudência em questão dada a reserva11 feita por Portugal ao art 11, para garantir

a possibilidade de recusa de extraditar nos casos cujo facto corresponda a PM ou de PPP. Esta

reserva, ao abrigo do art 26 da mesma Convenção e sobre o art 11 desta, tem sustentado a

equiparação12 entendida entre as duas situações (PM e PPP) e a sua necessária rejeição pelo

ordenamento nacional.

Por último iremos focar em particular a adesão portuguesa ao Estatuto do TPI e em

particular a V Revisão Constitucional, que aditou uma disposição à CRP em que aceita a jurisdição

do TPI. Como veremos, este aditamento era desnecessário – como todo o processo de revisão, que

foi extraordinário sem razão aparente – sendo que a adesão qua tale (questão de eficácia do direito

internacional na ordem interna) ao TPI não exigia qualquer modificação à CRP. Por outro lado,

nenhuma alteração ou aditamento à CRP poderia anular a inconstitucionalidade manifesta da pena

de prisão perpétua prevista do Estatuto do TPI, não sendo tal insconstitucionalidade sanada pelo

6 Desde o art 23/3 da versão originária (1976). Com a primeira revisão (1982), a numeração do preceito em

questão passou a ser 33/3. Na quarta revisão (1997) a disposição foi renumerada para 33/4. Note-se que para

os casos Leung e Varizo a numeração é a da primeira revisão. 7 Para um tratamento algo detalhado deste regime, ver ROCHA. 8 Revogado em 1999, como veremos adiante. 9 Veja-se a entrada ‘Extradição’, em que o Embaixador Calvet de Magalhães apresenta uma pormenorizada

explanação do regime, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, op cit. 10 Aprovada na Convenção de Paris de 13 de Dezembro de 1954; ratificada por Portugal em 1989 – ver

resolução 23/89 da Assembleia da República. 11 A questão das reservas é referida adiante, no que concerne à polémica (forma de) adesão ao TPI. 12 Fortemente rejeitada por Gomes Canotilho, como veremos infra. Defendido – por aplicação analógica –

por Pedro Caeiro, autor a referir adiante.

5

aditamento efectuado, nem sendo possível reduzir a protecção que o art. 33 confere nesse sentido,

na medida em que está resguardado pelos limites materiais à revisão e pelo princípio da proibição

do retrocesso.

6

II. O Caso Leung

Este caso foi decidido na pendência do processo Varizo. Trata-se de um cidadão de Hong

Kong (‘Leung’) que encontrando-se em Macau -- território à época sob administração Portuguesa --

é acusado na República Popular da China13 da autoria material do homicídio voluntário da sua

namorada, tendo a RPC pedido ao Estado Português a extradição de Leung (o ‘extraditando’).

1. O pedido extradicional – fase judicial

O pedido foi apreciado em pleno do Tribunal Superior de Justiça de Macau, que deferiu o

pedido de extradição14, confirmando as conclusões da decisão recorrida da secção de jurisdição

comum do mesmo Tribunal. Na decisão do Plenário, atribuiu-se especial importância à cooperação

internacional em matéria penal e à necessidade de não ‘impor a outros Estados modelos rígidos’, afirmando

também que ‘é seguro que Macau não pode tornar-se um local de asilo de marginais vindos, v.g., da RPC e de Hong Kong,

sob pena de ser posta em causa a estabilidade e a segurança dos seus habitantes’.

Nesta perspectiva possivelmente monista e securitária, havia pois indicações conducentes à

decisão final15, que se apoiou na negação de inconstitucionalidade do art 4/1-a do DL 437/75, que

proíbe a extradição existindo a possibilidade de PM e inexistência de garantias de não aplicação da

pena. O tribunal em Macau considerava que este preceito não colidia com o art 33/3, dado que a

disposição constitucional referir-se-ia a uma pena abstracta e o citado DL a uma pena concreta.

O que se retira de forma clara é que o Tribunal estava também a ter em conta o efeito

social e internacional da decisão, isto é, nas próprias palavras do colectivo:

‘o isolamento internacional de Macau face à cooperação para combate da grande criminalidade, com sistemática recusa de

extradição de autores de graves crimes (...) para um grande elenco de países’.

O Tribunal entendeu que a cooperação não deve ser excepcionada pela negação da extradição,

havendo garantias16. Inconformado com o deferimento da extradição por parte do tribunal em

Macau17, Leung recorreu ao TC, processo do qual resultou o acórdão que aqui se analisa.

13 Doravante RPC. 14 O regime processual geral de extradição Português – que não cabe ver aqui em detalhe – pressupõe duas

grandes fases: a administrativa e a judicial. Neste ponto referimos a fase judicial. Ver acórdão de 1 de Março

de 1994, proc. 115, publicado em Acórdãos do Tribunal Superior de Justiça de Macau-1994, tomo I, Novembro de

1995, pp.127-141. 15 Num curioso dilema fundamentação vs. violação do princípio da imparcialidade, cuja análise parece ser

impossível numa perspectiva exterior ao processo em questão. 16 Voltaremos a esta questão para comparar ao caso Varizo, dado que às garantias entendemos ser aplicável

uma taxa de risco em que o moral hazard será para algumas mesmo físico: no caso da PM, a aplicação de uma

pena irreversível.

7

2. Oposição ao processo extradicional: recurso para o Tribunal Constitucional

Perante o TC, Leung alega a possibilidade de haver um erro sobre a base jurídica do

deferimento do pedido de extradição, dado que a norma em questão tinha sido já declarada

inconstitucional por violação do art 33/3. Tendo em conta que o art 21/c do mesmo DL é

adjectivo (processual perante o art 4/1-a, que constitui norma substantiva), deve concluir-se a sua

derrogação tácita pela mesma via, i.e., o art 33/3.

Alega ainda que sendo a norma, aplicada no caso em Macau, anterior à Constituição

vigente e considerada ferida de inconstitucionalidade18, o deferimento da extradição deve ser

revisto19 (via reforma), na sequência do pedido que faz ao TC: julgar inconstitucionais os arts. 4/1-a

e 21/c do DL 437/75, delimitando o art 33/3 e obrigando o tribunal a quo à sua aplicação.

O MP apoia Leung, ao considerar que o art 4/1-a, que atribui mero carácter facultativo à

recusa de extraditar, é incompatível ratione materiae com o art 33/3, não considerando razão bastante

a existência de garantias. Assim, defende a inconstitucionalidade parcial do diploma em questão; a

aplicação do art 33/3 no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (via art 18/1).

2.1. A importância do elemento das garantias

O TC também considera que o art 4/1-a viola os arts 24/2 e 33/320 declarando-o

inconstitucional e embora afirme não questionar a validade das garantias, entende que estas não

constituem direito do Estado requisitante (no sentido que lhe é dado pelo art 33/3, consideração

fundamental para a resolução do caso) mas, outrossim, um elemento vinculativo – segundo se

entende, de Direito Internacional Público21, i.e., perante o Estado (pacta sunt servanda) – que ainda

assim não obriga o poder judicial. Note-se que, sendo direito do Estado requisitante, seria

impossível obrigar o Estado a uma conduta de cumprimento da garantia, sendo ainda bastante

difícil -- mas não seria de negar ab initio -- o funcionamento de meios internacionais de obrigar ao

cumprimento da promessa, enquanto acto jurídico unilateral de DIP.

17 Com o voto vencido de um dos juízes, para quem a possibilidade de extradição não se coloca havendo

previsão da PM no direito do Estado requisitante aplicável ao caso concreto. O mesmo magistrado afirma

que ‘acaba de ser votada, neste Tribunal Superior, decisão no sentido da posição aqui tomada’. 18 Recorrendo aos arts 290/2 e 207. 19 Leung também alegou a violação dos arts 206 (coordenado com o art 18) e 24/1 (coordenado com o art

33/3) da CRP. 20 Ver considerando 10. O preceito em questão seria declarado inconstitucional, com força obrigatória geral

por fiscalização sucessiva, por via do Ac 1146/96 de 12 de Novembro, publicado na II série do DR de 20 de

Dezembro de 1996, com os votos vencidos dos mesmos juízes que votaram vencido no caso Leung. 21 Doravante DIP.

8

A questão não é simples. Qualificar as garantias como promessa (i.e. acto jurídico unilateral)

no âmbito do DIP, vinculando o Governante, mas não o Juiz, não nos parece solução líquida.

Razão bastante é o facto de segundo o ordenamento em questão (RPC), não só não existir uma

separação de poderes como o poder político fiscalizar o poder judicial que é, de resto, constituído

por membros do poder político (arts 3; 62; 63; 67; 128 da Constituição da RPC). Quer isto dizer

que deveria haver uma relação necessária entre esta obrigação (de reconhecer e aplicar a

garantia/promessa) perante o Governo e o Juiz – ultima ratio, na decisão final. O facto de no Estado

extraditante (Portugal) não se considerar tal forma de organização do Estado não parece ser

argumento suficiente para obstar à tomada da garantia como válida. Se no caso Varizo tal faria

sentido face a um possibilitado agravamento da pena, não o parece fazer no caso Leung.

Retomaremos esta questão mais tarde.

À decisão do TC foi anexada a declaração de voto de dois Conselheiros que consideram

que a política nacional de proibição da PM não deve ser imposta aos ordenamentos estrangeiros e

que o art 33/3 não impede o deferimento da extradição, devendo ser interpretado de forma ampla.

Acrescentam que a PM não tem sido pena única e que a pena a aplicar é objecto de estudo prévio

na RPC. Crêem ainda que se a garantia se reflecte na arena internacional, também encontrará

reflexo no plano interno, nem que tal se deva à boa fé esperada nas relações entre Estados.

Concluem pois que havendo garantias de substituição, não deverá haver negação de extradição,

protegendo-se igualmente o direito à vida conforme o espírito do art 33/3.

9

III. O Caso Varizo

1. Pedido Extradicional

Trata-se de um cidadão Brasileiro (‘Varizo’) que se encontrava em Portugal e era visado

num processo instruído num tribunal Americano relativo a tráfico de estupefacientes do Brasil para

os Estados Unidos da América (EUA). Perante a necessidade de instrução do processo, a

Embaixada dos EUA em Lisboa solicitou ao Governo Português a extradição de Varizo. Aos

crimes em questão correspondia uma pena com o limite mínimo de dez anos e o máximo de prisão

perpétua.

2. Garantias do Estado requisitante

Tendo em conta o regime Português relativo à Extradição, os EUA comprometiam-se a

não pedir uma PPP no caso que aí tinha sido instruído contra Varizo. Além disso, informavam que

nunca tinha sido aplicada a PPP no tipo de crime em questão.

Face a estas garantias, o Ministério Público Português (MP) mostrou-se favorável à

extradição, tendo por base o art 6/2-c do DL 43/91, que garante a cooperação judiciária

internacional na presunção de não aplicação da PPP, reforçada pelo facto de existirem garantias

diplomáticas de não aplicação da mesma pena.

3. Oposição ao processo extradicional

Varizo opõe-se ao processo de extradição, alegando a inconstitucionalidade do art 6/2-c do

DL 43/91, na interpretação dada pelo MP. Alega que a interpretação correcta não pode aceitar que

a cooperação judiciária seja válida para os casos de extradição, no que é apoiado por parecer de

Jorge de Figueiredo Dias. Numa palavra: a extradição seria excepção à cooperação judiciária

internacional

É também introduzido um novo dado, visto que Varizo afirmava ter sido julgado inocente

no Brasil pelos mesmos crimes, o que se insere no âmbito do princípio do non bis in idem22. Defendia

22 Ou ne bis in idem, ou seja, a impossibilidade de julgar mais do que uma vez a prática do mesmo crime. cfr.

29/5 CRP. No seu Parecer, Figueiredo DIAS (op.cit., p.221) entende que o facto é o mesmo, até pela

designação dada em ambos os Estados aos objectos dos processos: nos EUA ‘Pan Am conspiration’ e no

Brasil ‘Conexão Pan Am’, havendo lugar a extinção penal. Optando pela identificação factual, deveria aplicar-se,

segundo este Parecer, a lei Portuguesa aplicável (DL 15/93 de 22 Jan. - diploma sobre Tráfico e Consumo de

Drogas). A título de curiosidade, a Constituição Federal Brasileira impõe a regra geral de não extradição dos

seus nacionais, mas para os naturalizados o tráfico de droga é, ao lado dos crimes comuns, uma das excepções

(art 5/LI). Veja-se ainda a forma como na UE se tentou minimizar o problema, através da Convenção de 15

de Maio de 1987.

10

pois a extinção da responsabilidade penal, ‘mas não acusando qualquer norma de sofrer de

inconstitucionalidade’23.

Na sua reacção a uma nova garantia dos EUA, Varizo interpreta a CRP (maxime o seu art

33) de uma forma tal que a extradição seria proibida independentemente da existência de garantias

de não aplicação da pena. Reunindo estes argumentos, Varizo interpõe recurso junto da Relação24,

tendo esta indeferido o mesmo por considerar que o art 33 aplicar-se-ia apenas a extradição por

crimes a que corresponda PM. Sendo assim, não haveria qualquer inconstitucionalidade, dado que a

PPP não faria parte da previsão da norma em questão.

3.1. Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça

Negado provimento ao recurso na Relação, Varizo recorre ao Supremo25, que teve em

conta novas garantias dos EUA, onde o juiz encarregue do processo já tinha proferido uma decisão

relativa ao decorrer do processo judicial após a extradição. Segundo este, da sentença constaria uma

pena máxima de 20 anos de prisão e/ou uma multa de $1,000.000. Em termos muito simples, trata-

se de um plea of guilty ou nolo contendere, em que o arguido se sujeita à decisão a tomar no tribunal do

Estado que pede extradição para o julgar. Para Jorge MIRANDA e Miguel Pedrosa MACHADO, ‘os

Estados Unidos não comutaram a pena (...) O pedido (...) não pode ser deferido’. O Governo Americano

compromete-se perante o arguido a permitir recurso em caso de incumprimento. Nestes termos, o

STJ afastava a possibilidade de aplicação da pena, o que tornava irrelevante a questão de

inconstitucionalidade normativa referida supra, dado que a norma em questão não seria então

aplicável: a extradição não seria excepcionada e deveria ter lugar. Quanto à eventual violação do

princípio non bis in idem: não poderia concluir-se pela identificação dos processos26.

Temos evitado tanto quanto possível a referência ao Direito dos EUA, para evitar

elementos supérfluos. Porém, cabe referir que o mencionado compromisso – dos EUA permitirem

o arguido a interpor recurso -- foi fixado na jurisprudência Santobello v. New York (1971), mas acaba

por causar surpresa na parte em que se admite recurso por incumprimento (de outra forma não

podia ser), o que em dada perspectiva pode indiciar a possibilidade de incumprimento que,

naturalmente, colocaria em alto risco a garantia de não aplicação da pena e também o âmbito do

23 Citado do Relatório elaborado no TC (final do §4 do ponto 1). 24 Ver Acórdão de 10 de Maio de 1994 do Tribunal da Relação de Lisboa. 25 Ver Ac de 7 de Jul. de 1994 (e aclaratório de 6 de Out.) do STJ. O MP manteve a sua posição. 26 Embora nenhum dos tribunais Portugueses se tenha pronunciado – o que nem seria necessário, por terem

afastado essa pretensão ab initio – seria interessante saber se será líquida a aplicação do princípio non bis in idem,

conforme a CRP o plasma, a casos julgados em tribunais estrangeiros, com direitos estrangeiros (mais para

Estados fora da UE) e, mais do que isso, relativamente a dois processos que nem sequer tiveram relação

anterior com o ordenamento Português. No caso do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, o princípio

non bis in idem (art 20) acaba por ser delimitado de forma mais precisa.

11

regime Português, quando se presume a não aplicação. A contrario supor-se-á mesmo a situação em

que a pena em questão não é aplicada mas, após recurso – do Gabinete do Procurador, por

exemplo -- acaba por sê-lo. No caso da PM (este sistema aplica-se a qualquer processo criminal nos

EUA) a questão assumiria ainda maior relevância dado tratar-se, pela sua natureza, de uma pena

irreversível – ou seja, em caso de incumprimento da garantia, de nada serviria ao condenado recorrer

(e a contrario sensu dir-se-ia o mesmo) – nem poderia ele próprio -- porque não estaria vivo uma vez

cumprida a pena!

Esta situação peculiar pode ser interpretada como um moral hazard, sendo abordada tendo

em conta a necessidade de gestão do risco. Seria mais sensata a inexistência de direito de recurso, ainda

que suspensivo perante pena irreversível, visto que haveria sempre a hipótese (o risco associado) de

o recurso ser declarado improcedente. É pois de exigir uma garantia efectiva, o que como veremos

suscita diversos problemas, que não devem de resto obstar à sua solução, dada a necessidade de

protecção do valor superior vida.

3.2. Recurso para o Tribunal Constitucional

O extraditando chega ao fim da sua novela processual ao recorrer para o TC27, cuja decisão é

a que nos efectivamente interessa. Pede-se, aí, a declaração de inconstitucionalidade da norma

constante da alínea e) do art 6/1 do DL 43/91. Recorde-se que esta norma possibilitava a

extradição quando houvesse garantias de não aplicação da PPP, segundo a moldura penal abstracta,

ou seja, aplicável a todos os casos semelhantes. Para Varizo tal norma viola os princípios

fundamentais da dignidade humana; da igualdade; do non bis in idem. Quanto a este último, o MP

contra-alegou, defendendo que extrapolava o objecto processual.

3.2.1. A importância da jurisprudência Leung

Entretanto é publicado o acórdão relativo ao caso Leung, que vimos anteriormente. Com

esta jurisprudência, a garantia é afastada enquanto instrumento bastante para o deferimento da

extradição: o critério fundamental é o da possibilidade abstracta, isto é, a aplicação a todos os casos da

pena em questão.

27 Referimos, apenas a título acessório – para o nosso objectivo não tem grande interesse prático -- que o

processo foi inicialmente rejeitado, dado que Varizo não teria pedido claramente o juízo de

inconstitucionalidade na pendência do processo do qual recorreu ao STJ (i.e. no processo da Relação, não

pediu a apreciação da alínea e) do nº1, mas da c) do n.º 2 do artigo em questão). O recurso acabou por ser

admitido – Ac. 60/95 -- por se considerar a inoportunidade do recorrente suscitar a questão no momento

adequado. De resto, as disposições estavam claramente relacionadas (o artigo era o mesmo). Sobre a

admissibilidade do recurso em especial, ver o Parecer de MIRANDA et al.

12

O TC solicitou então ao MP que assegurasse que a decisão do juiz referida no último

parágrafo da página anterior tivesse transitado em julgado28. O MP apresentou uma declaração de

um Procurador Federal Assistente dos EUA que indicava que a ordem do juiz Americano não seria

objecto de recurso: afinal, o Procurador tinha-a pedido, não iria recusá-la e Varizo não iria arriscar

uma pena agravada. No entanto, os outros juízes que poderiam ser encarregues do processo não

assinariam declarações com garantias dado que tal conduta violaria a imparcialidade que devem aos

processos que tratam. O Assistente indicava também que o juiz seria o mesmo que tinha

condenado os restantes arguidos (Varizo não era o único indiciado) sem aplicar a PPP. O

extraditando questionou estas declarações.

O TC interpretou a norma em questão no sentido em que esta possibilita a extradição

presumindo-se a não aplicação da PPP. Na sequência do caso Leung, afasta-se este elemento da

previsibilidade para adoptar o critério da possibilidade. Isto significa que a interpretação da norma é

outra – não basta, para extraditar, que seja previsível a não aplicação da pena, mas sim que seja certa a

sua inaplicabilidade, em função das garantias e da possibilidade legal, no quadro normativo do Estado

que procederá ao julgamento.

Em suma, a PPP mantém-se como possibilidade (havendo recurso da sentença resultante da

garantia), o que não foi aceite pelo TC no caso Leung. Embora esse caso se refira à PM, o TC

entende por bem a equiparação no caso da PPP29. Isso conduz, inevitavelmente, a uma

interpretação maximalista do art 30/1 da CRP, extraindo deste a proibição da extradição nos casos

de crimes aos quais corresponda uma PPP (segundo o direito do Estado requisitante30), utilizando-o

como base jurídica para a declaração de inconstitucionalidade do art 6/1-e do DL 43/9131.

28 i.e. que fosse irrecorrível. Compreende-se esta exigência. Só assim – e mesmo assim... – se poderia evitar

que a garantia deixasse subitamente de existir, sobretudo depois de aprovada a extradição. 29 Ver §3 do ponto 9 do Acórdão Varizo. O constitucionalista Gomes CANOTILHO (in Anotação...) revoltou-se

contra esta equiparação. A posição de Gomes Canotilho seria por sua vez criticada por um seu par da

academia de Coimbra, Pedro CAEIRO (op. cit, pp.11ss.). 30 Foi esta a causa de uma das grandes polémicas associadas aos casos Leung e Varizo: a interpretação, aqui

restritiva, que considera como direito do Estado requisitante apenas o que internamente vincula os seus

tribunais, contestada por Gomes Canotilho e Carlos Fernandes, abordada de seguida. 31 A título de curiosidade, refira-se que houve no mesmo ano da publicação do acórdão do TC resultante do

caso Varizo um pedido de aclaração do mesmo (ver Acórdão 477/95 de 07/09/95, proc. 518/94) interposto

pelo MP e recusado pelo TC, que considerou o acórdão Varizo totalmente claro.

13

IV. Análise Comparativa e alterações legislativas 1. Pena de Prisão Perpétua e Pena de Morte

Os casos apresentados têm naturalmente semelhanças e diferenças e não conseguiremos

aqui abordá-las a todas de forma própria, dada a natureza do estudo proposto. Além disso, parece

mais relevante a noção das alterações operadas ao regime em questão – e pois aplicáveis a todos os

casos e não apenas a estes -- articulando jurisprudência e mutação legislativa ordinária e

constitucional.

Em primeiro lugar é de salientar a diferença óbvia do tipo das penas, que encerra mais

complexidades do que poderia parecer. O caso Leung reporta à PM; o caso Varizo à PPP. As penas

beneficiavam de tratamentos distintos quanto ao regime de recusa de extradição aplicável. À época

dos processos, a norma da CRP relativa à extradição nestes casos (33/3) não contemplava a PPP,

mas apenas a PM. À extradição que envolva PM corresponde, como vimos, uma proibição

absoluta32, sobretudo se coordenada com o art 24/2, onde tem sede evidente. À extradição que

envolva PPP a restrição é menos evidente, dado o carácter relativo com que é visada na letra da lei33.

Esta relatividade deve-se à existência de uma excepção: as garantias, que temos referido inúmeras

vezes. O caso Varizo veio estender (nesse caso aos EUA) a jurisprudência resultante dos ‘casos de

Macau’ (como Leung) que reportava ao direito Chinês.

2. A questão das garantias

A crítica que imediatamente se faz é a da margem de risco que envolvem certas garantias, como já

referimos e que inspiram parte da doutrina e algumas declarações de voto. Não entendemos a

opção por uma visão excessiva, que negue ab initio qualquer tipo de garantias. Mas, se todas as

garantias são iguais, há umas mais iguais que outras e, entre estas, algumas cujo contexto processual pode

oferecer certas dúvidas, ainda que na prática corrente inéditas, como vimos anteriormente. Há pois

que apurar que garantias efectivas existem e os casos em que devem -- ou não -- ser dignas de

confiança. Um sistema processual que admita recurso de uma decisão que aplique pena comutada

(que teria possibilitado a extradição) não é claro quanto à garantia efectiva: existe a possibilidade de

aplicação da pena, apesar de ter-se julgado pela sua improbabilidade ao deferir a extradição. Um

sistema que não tenha recurso e que haja garantido a comutação é, em princípio (há que analisar o

32 O mais que citado art 33/3 da CRP. A classificação de raiz é basicamente a mesma de Pedro CAEIRO,

embora seja bastante diferente a nossa concretização. 33 Não existia referência à PPP no art 33 antes da Revisão de 1997. A PPP era proibida pelo art 30/1 – não

aplicável, prima facie, à extradição. Indício desse facto é a coexistência dos arts 24/1 e 33/3 – o primeiro

proíbe a pena de morte, o segundo estende essa proibição a situações de extradição. Como facilmente se

entende, a inexistência de previsão autónoma da PPP quanto à extradição prova a inexistência de um regime

equivalente na Constituição positivada, como vimos anteriormente.

14

contexto judicial e de relações diplomáticas com esse Estado) de confiar no que concerne às

garantias. Este critério processual é, apenas, um dos possíveis e apenas serve aqui como exemplo.

Desta necessidade de não exacerbar o garantismo das garantias partamos para a sua origem:

não só a confiança entre Estados soberanos, mas a instabilidade que seria criada ao reter em

regimes como o Português indivíduos indiciados por crimes graves (aqueles a que normalmente

correspondem as duas molduras penais em questão). O regime Português pretende proteger o

direito à vida/dignidade o que, estando garantido, nada mais deve implicar. A garantia séria, nos

termos citados supra, de comutação da pena deve ser imediatamente aceite e accionado o processo

de extradição. Afinal, se a mera possibilidade for sempre razão para a proibição (da extradição), a PPP

não seria proibida mas sim obrigatória e única, dado que haveria sempre a ‘possibilidade’ de

reincidência criminal e total descrença na reinserção/reintegração social34. Além disso, se o risco a

gerir seria pouco na admissão de garantias sérias, o risco tornar-se-ia paralisante ao ter um Estado que

acolhesse em massa suspeitos de crimes graves. No entanto, há que atentar ao facto de a garantia

preceder muitas vezes o julgamento – aliás, na maioria dos casos, dado que o pedido legítimo de

extradição tem mesmo o julgamento como objectivo último – o que poderá ter consequências

nefastas quanto às garantias: quem poderia garantir uma sentença antes de efectuado julgamento ? É

pois útil recorrer ao enquadramento constitucional do poder judicial.

Nos casos da RPC e dos EUA é interessante verificar a consequência da diferença de

regime (de extradição) através da forma como estes Estados perspectivam a separação de poderes.

No caso Chinês o poder judicial e o político parecem estar intrinsecamente ligados, como vimos, o

que até poderia ter a consequência feliz (e de certo modo inesperada) de uma mais forte (ou, pelo

menos, menos fraca...) garantia de comutação da pena – afinal as garantias são habitualmente

transmitidas pelos canais diplomáticos e o sistema judicial nem sempre pode comprometer-se a

decidir de dada forma. No caso dos EUA – e possivelmente em qualquer dos designados ‘Estados

de direito democrático’ -- isso é evidente: a imparcialidade impede o juiz de garantir dada decisão e

a separação de poderes acaba por aumentar a taxa de risco (potenciando um claro moral hazard) das

garantias. Não significando isto que a separação de poderes e a imparcialidade são princípios

nefastos, prova-se as suas aparentes desvantagens num determinado campo. No caso de outros

Estados (que não os EUA e a RPC) a situação será naturalmente diversa e possivelmente também

insólita.

34 A reintegração não é, naturalmente, a única temática que justifica a falta de humanidade pela qual peca a

pena perpétua, até porque não cremos na prisão como instrumento regenerador, mas apenas de separação de

perigos localizados (criminosos) do corpo social (sociedade em geral). O exemplo é aqui exemplificativo, não

exclusivo. Recorde-se o caso da prisão de Attica, nos EUA, que originou uma obra cinematográfica: ainda

que não estejamos perante penas indeterminadas (ou geralmente determinadas pela morte do recluso), a

prisão perpétua pode ser causa de motins e outras situações de instabilidade caracterizadas pela prática de

(mais) ilícitos penais que podem culminar em fugas violentas.

15

As garantias deram pois origem a duas posições: a primeira é aquela que as considera válidas

como forma de possibilitar a extradição, defendida, segundo Pedro Caeiro -- que acaba por também

concordar -- apenas por Carlos Fernandes35; a segunda nega a validade de qualquer garantia e é

defendida por Gomes Canotilho, como vimos, mas também pela maioria da doutrina, segundo nos

diz Pedro Caeiro36. Esta divisão é visível, também, no sistema judicial. Os tribunais judiciais

optaram pela suficiência das garantias, o TC fez valer a sua desconfiança, exigindo garantias

vinculativas para os tribunais. Ora não havendo tal possibilidade, mercê do princípio da separação

de poderes – assunto que já tratámos – não são admitidas pelo TC quaisquer garantias. Como

teremos oportunidade de ver, esta perspectiva do TC foi afastada de forma súbita.

3. Cooperação e ingerência

Destas duas posições podemos inferir o debate de duas atitudes: a intervencionista, que

interpreta a negação de cooperação judiciária37 como uma forma de firmar a posição Portuguesa

quanto à PM e PPP nas relações internacionais38; a não ingerente, que pretende garantir a não

aplicação da PM e da PPP39 sem que com isso obste à cooperação, dado conceder valor a

determinadas garantias, sem exigir a vinculação do julgador – porque habitualmente impossível

perante um processo aberto (separação de poderes) ou por abrir/transferir (imparcialidade) no

chamado mundo ‘ocidental’.

4. Extradição vs. cooperação judiciária internacional ?

Um dos problemas colocados pela jurisprudência estudada é mesmo este: a dissociação

extradição/cooperação judiciária. Mais: a noção do seu confronto, sobretudo associado à

equiparação PPP/PM. Em Leung, o tribunal em Macau defendia, como vimos, a cooperação

judiciária, entendendo a extradição como ‘instituto de colaboração internacional para a repressão da

criminalidade’, o que tinha como resultado (ou originava...) a interpretação restritiva da CRP. A

extradição surge umas vezes como instrumento de cooperação40; outras como ‘excepção’ a essa

cooperação.

35 FERNANDES:56. 36 CAEIRO:13. 37 De forma abstracta, que é como quem diz, única. 38 O argumento da possibilidade per si não parece fazer sentido, como vimos. Visão defendida mais tarde, no

importante Ac 1/2001 do TC – ‘Compreende-se, assim, que a Constituição tenha imposto uma política internacional

abolicionista ao Estado Português’.(n.º 11, in fine). 39 Em concreto, ou seja, de forma casuística. Novos problemas seriam levantados em 2001, com a adopção pelo

TPI da obrigação estadual de ‘cooperação plena’ plasmada no art 86 do seu Estatuto, questões a ver no final

deste texto. 40 Ver a segunda nota ao art 229 em Maia GONÇALVES.

16

É claro que encarar a extradição como excepção não é rigoroso. Porém, a própria lei41 nem

sempre é clara nestes meandros terminológicos. No caso do DL 43/91 nota-se uma evolução nesse

sentido, dado extradição passar a ser considerada ‘requisito geral negativo da cooperação’42,

designação mantida após a revogação pelo DL 144/99, como veremos adiante.

Esta discussão nada vale. A extradição só deve ser recusada nos casos extremos. A excepção

existe quanto ao instrumento, não em relação aquilo a que serve, neste caso a cooperação. Por

casos extremos entendemos aqueles que se prendam com razões humanitárias, sendo no caso

Português exemplos a PM e a PPP. Parece claro que nesses casos não seria adequado referir uma

intromissão à cooperação, dado o valor superior da vida. Quaisquer outras deambulações teórico-

terminológicas correm o risco de serem perfeitamente desnecessárias e até confusas, afastando o

essencial.

5. Direito aplicável do Estado requisitante

A noção de ‘direito aplicável do Estado requisitante’ é também de referir, pela associação

essencial que tem com as garantias. Aqui a divisão é igualmente dupla. Defronta-se a visão fechada,

que apenas considera o Direito Penal, abstracto, do Estado requisitante; com a visão aberta, que

admite que esse ‘direito aplicável’ deve incluir mais do que as normas de índole Penal (adoptada no

Acórdão Leung e -- com base neste -- na decisão Varizo43). Cite-se para o efeito o assente em Leung:

‘A expressão "segundo o direito do Estado requisitante", usada no n. 3 do artigo 33, tem de

entender-se como sendo o direito

internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas

penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos

- e só eles - que se inscrevam vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que

decorrentes do direito constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos

quais resulta que a pena de morte será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser

aplicada’44.

41 Art 4/1 do DL 437/75 (‘Casos em que pode negar-se a extradição’). 42 Vide epígrafe do art 6. 43 A jurisprudência Leung inspirou longamente o Ac 1146/96 do TC, referido supra. No sumário dessa decisão

apresenta-se de forma clara a expressão aqui em causa: ‘o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-

só, pelo respectivo campo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos

– e só eles – que se inscrevam vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que decorrentes do direito jurisprudencial

do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser

aplicada’. 44 O destaque é nosso.

17

Como vimos, a distinção acaba por não ser relevante nos casos em que não exista, por exemplo,

separação de poderes e independência do poder judicial. Opor aí a promessa enquanto instrumento

de direito internacional público ao direito do Estado requerente (na pressuposição de que esse seria

vinculativo para os juizes) não tem qualquer validade.

6. Evolução legislativa

6.1. IV Revisão Constitucional [1997]

Finalmente, apresentamos um sumário das alterações legislativas/regime da extradição em

questão após a jurisprudência apresentada. Em 1997 a Constituição é revista pela quarta vez em

pouco mais de vinte anos de vigência e são alteradas -- para além de uma incompreensível alteração

da numeração -- inter alia, as disposições constantes do art 33. Este artigo, no que concerne à

extradição no contexto que aqui trabalhamos, rezava o seguinte:

Art 33.º

Extradição, expulsão e direito de asilo

(...)

3. Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do

Estado requisitante.

(...)

Após a revisão de 1997, passa a prever-se a PPP neste sentido45:

Art 33.º

Expulsão, extradição e direito de asilo46

(...)

45 Idem. 46 A expulsão passou a primeiro lugar da epígrafe de forma não inocente. Embora não nos interesse para

efeitos deste trabalho, o número 1 proibia in limine a extradição de cidadãos Portugueses do território

nacional, desde a versão originária da CRP, aí no art 23/1. Essa proibição passa a reservar-se à expulsão. A

extradição de Nacionais depende agora do direito convencional, conforme a letra do actual 33/2. Isto deve a

nosso ver ser associado ao avanço do ‘espaço de liberdade, segurança e justiça’ da UE e da sua cooperação

judiciária (art31/b:TUE), nomeadamente à recente vaga mundial de alterações legislativas justificadas pelo

‘combate ao terrorismo’. O que, ainda que em muito menor escala, já se verificava antes de 11 de Setembro

de 2001. Certas Constituições (e.g. a Italiana, no seu art 26/1) limitam-se a referir que a extradição apenas se

exerce de acordo com o direito convencional) já o previam. Outras, mantêm-se fiéis à tradicional proibição da

extradição (e.g. Constituição Alemã, no seu 16/2).

18

4. Não é admitida a extradição por motivos políticos, nem por crimes a que corresponda,

segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão

irreversível da integridade física.

5. Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado

requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter

perpétuo ou de duração indefinida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção

internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena não será

aplicada ou executada.

(...)

Actualmente, a extradição por crimes aos quais seja possível aplicar – no Estado requisitante – a

PM é proibida pelo art 33/4. No caso da PPP, a Constituição possibilita a extradição no art 33/5,

desde que haja garantias de comutação (atenuação) da pena. Ambas as disposições constituem parte

integrante do catálogo de direitos fundamentais da actual Constituição da República, gozando a

força jurídica de direitos, liberdades e garantias. Os cidadãos estrangeiros que se encontrem em

Portugal, embora não beneficiando dos direitos conferidos aos nacionais47 qua tale, são igualmente

protegidos nos casos de extradição citados supra.

As diferenças de regime são expressivas: por um lado, abre-se a porta à PPP na tipificação

do 33/1; por outro lado, inclui-se a excepção quanto a esse mesmo tipo no 33/2, por via do direito

convencional e ao abrigo de garantias. A razão de ser desta abertura às garantias é clara neste

momento do texto: não mais do que uma tentativa de evitar um hipotético bloqueio do sistema de

cooperação internacional já referido, para o qual estaria a contribuir o maximalismo da

jurisprudência constitucional.

O próprio TC reconheceu esta perspectiva: ‘a alteração era desejada pelo Governo como forma de superar

as dificuldades que, segundo a sua interpretação, a jurisprudência do TC levantava à cooperação’48. Ainda assim, acabaria

no Acórdão citado por restringir a sua interpretação do art 33/4,5; aceitando as garantias (cuja

discussão recusou-se desenvolver49) como suficientes.

Mais recentemente teve lugar a V Revisão Constitucional (Dezembro de 2001). O actual art

33 tem a seguinte letra50:

Artigo 33.º

(Expulsão, extradição e direito de asilo)

(...)

47 Art 144 CRP. Veja-se também CANOTILHO[1998]:381-2. 48 Ver §2 do n.º 8 do Ac 1/2001. 49 Veja-se o n.º 10 in fine do mesmo acórdão. 50 O destaque é nosso.

19

4. Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado

requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter

perpétuo ou de duração indefinida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção

internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena ou medida

de segurança não será aplicada ou executada.

5. O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de

cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia.

6. Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por

crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de

que resulte lesão irreversível da integridade física.

(...)

Novamente, apenas citamos as disposições relevantes para efeitos do presente estudo. O

número 6 corresponde ipsis verbis ao anterior número 4, não merecendo quaisquer comentários

adicionais. O número 4 também corresponde na íntegra ao anterior número 5.

A grande novidade é pois o novo número 5, cujo destaque é merecido pela imposição da

subsidiariedade das normas constitucionais em questão vis-à-vis as ‘normas de cooperação judiciária

penal’ da UE51. Naturalmente que duas questões logo se colocam.

A primeira não é necessariamente de saber se era necessário face ao processo de

integração52 incluir ou não tal remissão. Poderia existir interesse, do ponto de vista jurídico-penal,

em tal distinção, na medida em que se afecta a imputação de pena (ou do cumprimento de pena) a

um agente. Ou porque, simplesmente, se incorre numa dada pena num processo de extradição que

envolva julgamento sobre matérias sobre as quais incidem penas rejeitadas pela orderm jurídica

Portuguesa53. Porém não tem qualquer relevância do ponto de vista jurídico-penal – sendo que tal

análise é pois de afastar deste texto – a questão de considerar ou não necessária tal remissão, à luz

de uma confrontação do princípio da subsidiariedade da Comunidade face aos Estados-Membros e

dos princípios do efeito directo e do primado do Direito Comunitário sobre os ordenamentos

jurídicos nacionais.

51 Ver o estado actual na seguinte ligação do site do Conselho Europeu:

www.consilium.eu.int/ejn/extraditionfr.html. Em Portugal a Resolução 63/2001 da AR, publicada no DR I-

A de 16 de Outubro de 2001 aprovou para ratificação a Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em

Matéria Penal (ratificada pelo decreto presidencial 53/2001). Note-se que de acordo com o art. 1/2 in fine

desta Convenção, a mesma não afasta disposições mais favoráveis constantes de acordos unilaterais ou

multilaterais entre Estados-Membros da UE. 52 Ou de aprofundamento da integração, dado o actual plano político face ao considerado ‘ultrapassado’ plano

económico. 53 Exemplos clássicos para efeitos do presente estudo são a PPP ou, de forma incontroversa, a PM.

20

Quer isto dizer que independentemente de tal necessidade – para a qual concorreriam

também as polémicas sobre as perspectivas monista e dualista do Direito Internacional (e por essa

via de todos os direitos não nacionais54) – a inserção de tal remissão implica, necessariamente55,

como que uma derrogação (operada pela/na própria Constituição) sendo aplicável o entretanto

(rectius: imediatamente) disposto na Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria

Penal entre os Estados Membros da UE56. Isto num peculiar momento de tensão internacional face

aos ‘ataques terroristas’ ocorridos nos EUA em 11 de Setembro de 2001. A relevância jurídico

prática reside pois na definição do direito aplicável, independentemente da forma de tal definição.

Regressamos pois à já referida questão da ‘Extradição vs. cooperação judicial internacional’.

A diferença é pois o facto de se tratar de um sistema de cooperação próprio do espaço comunitário

europeu. Porém – e este dado é de especial importância -- tal sistema não se sobrepõe a outro

direito convencional estabelecido entre os Estados Membros, desde que esse direito convencional

seja mais favorável (art.2/1 in fine).

6.2. Regime do DL 437/75

O diploma que estabelecia o regime Português de extradição era, como vimos, o DL 437/75, que para os

caso Leung referia o seguinte:

Artigo 4.º

Casos em que pode negar-se a extradição

1. A extradição pode ser negada quando:

a) O crime for punível no Estado requerente com a pena de morte ou com prisão perpétua, e não

houver garantia da sua substituição

(...)

54 Sendo normas relacionadas com organizações internacionais, por exemplo, ou simples normas de direito

internacional público, das quais os tratados internacionais são fonte essencial. Note-se que no caso da UE não

se considera estar perante uma organização internacional. No clássico acórdão do Tribunal de Justiça das

Comunidades Europeias (TJCE) Costa/ENEL (6/64) afirmou-se mesmo a existência de uma ‘ordem jurídica

própria’ (e não simplesmente uma ordem jurídica integrada no direito internacional, como no igualmente

clássico Van Gend & Loos, 26/62). Tratámos o tema em União Europeia: Associação de Estados ou Comunidade

Integrada ?, FDUNL, 1999. 55 O que no seguimento do referido supra, inclui os dualistas, na medida em que tal remissão acaba por

encontrar sentido somente no art. 8 CRP (apesar da referência explícita do art. 7/5 e do art. 8/3, este último

numa interpretação histórica e teleológica, visto que ao referir ‘organizações internacionais’ pode, numa

perspectiva referida na nota supra, ser considerada como já não abrangendo a UE). 56 Aprovada pela Resolução 63/2001 da AR, publicada no DR-I de 16 de Outubro de 2001.

21

Artigo 21.º

Conteúdo do pedido de extradição

c) Indicação, nos casos de pena de morte ou de prisão perpétua, dos termos em que essas penas

serão substituídas e a garantia dessa substituição

(...)

6.3. Regime do DL 43/91

Dois anos depois da revisão constitucional de 1997 e quatro anos depois da decisão dos casos em

referência, o DL 43/91, que tinha substituído o DL 437/75, seria revogado pela Lei 144/99 de 31

de Agosto, a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal portuguesa em vigor. O

regime que vigorava à época dos processos (DL 43/91) era o que se transcreve57:

Artigo 6.º

Requisitos gerais negativos da cooperação internacional

1 – O pedido de cooperação é recusado quando:

(...)

e) O facto a que respeita for punível com pena de morte ou pena de prisão perpétua.

(...)

2 – O disposto nas alíneas e) e f) não obsta à cooperação:

a) Se o Estado que formula o pedido tiver comutado aquelas penas ou retirado o carácter

perpétuo à medida;

(...)

c) Se respeitar a auxílio solicitado com fundamento na relevância do acto para presumível não

aplicação dessas penas ou medidas.

(...)

6.4. Regime do DL 144/99

No contexto deste estudo, o recente regime58 estabelecido pelo DL 144/99 é o que se segue:

57 Idem. 58 Idem.

22

Artigo 6.º

Requisitos gerais negativos da cooperação internacional

1 - O pedido de cooperação é recusado quando:

(...)

e) O facto a que respeita for punível com pena de morte ou outra de que possa resultar lesão

irreversível da integridade da pessoa;

f) Respeitar a infracção a que corresponda pena de prisão ou medida de segurança com

carácter perpétuo ou de duração indefinida.

2 - O disposto nas alíneas e) e f) do número anterior não obsta à cooperação:

a) Se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais

ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado a pena

de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa ou tiver

retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança;

b) Se, com respeito a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado

requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter

perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou

medida de segurança não será aplicada ou executada;

c) Se o Estado que formula o pedido aceitar a conversão das mesmas penas ou medidas por

um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicáveis ao crime que

motivou a condenação;

(...)

3 - Para efeitos de apreciação da suficiência das garantias a que se refere a alínea b) do

número anterior, ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da legislação e da prática do

Estado requerente, a possibilidade de não aplicação da pena, de reapreciação da situação da

pessoa reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto,

perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado requerente.

23

4 - O pedido de cooperação é ainda recusado quando não estiver garantida a reciprocidade,

salvo o disposto no n.º 3 do artigo 4.º59

5 - Quando for negada a extradição com base nas alíneas d), e) e f) do n.º 1, aplica-se o

mecanismo de cooperação previsto no n.º 5 do artigo 32.º60

Para além de um reforço dos laços de cooperação em geral – nomeadamente via

reciprocidade -- não parece existir alteração de maior, seja quanto à PM seja em relação à PPP.

Destaque-se no entanto a possibilidade de conversão das penas por tribunal Português (que parece

ser uma confirmação do que já sucedia em regimes específicos – não é clara a sua generalização --

como o do tráfico de estupefacientes, que referimos no âmbito do caso Varizo). A presunção de

não aplicação das penas; as garantias e os casos de indulto; possibilidades de não aplicação, etc. ,

acabam por fechar-se num mesmo círculo, caracterizado por alguma discricionaridade e

flexibilidade, que tenderá a equilibrar as vantagens da cooperação ao respeito pelos direitos,

liberdades e garantias, nos termos que apreciámos ao referir a necessidade de boa ponderação do

valor das garantias, inter alia.

A título acessório, note-se que também a constitucionalidade da citada disposição do DL

144 foi recentemente colocada em causa61, daí resultando o Acórdão 1/2001. Nesse caso o

Provedor de Justiça pediu a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, com

base nos arts 33/4 e 18/2, recorrendo à jurisprudência Leung e Varizo. O TC não deferiu o pedido,

por partir de uma análise abstracta do art 33/4. Para o TC, a interpretação tem de ser concreta, de

acordo com a jurisprudência Leung.

59 Artigo 4.º - Princípio da reciprocidade

(...) 3 - A falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação desde que essa cooperação: a) Se mostre

aconselhável em razão da natureza do facto ou da necessidade de lutar contra certas formas graves de criminalidade; b) Possa

contribuir para melhorar a situação do arguido ou para a sua reinserção social; c) Sirva para esclarecer factos imputados a um

cidadão português. 60 Artigo 32.º - Casos em que é excluída a extradição

(...) 5 - Quando for negada a extradição com fundamento nas alíneas do n.º 1 do presente artigo ou nas alíneas d), e) e f) do n.º

1 do artigo 6.º, é instaurado procedimento penal pelos factos que fundamentam o pedido, sendo solicitados ao Estado requerente

os elementos necessários. O juiz pode impor as medidas cautelares que se afigurem adequadas. 61 Note-se que antes desse, já tinha sido colocado novamente em causa o DL 43/91 – mas não na óptica

PP/PPP -- resultando daí o Ac 35/00, que não deu provimento a quaisquer pedidos de declaração de

inconstitucionalidade, tanto orgânica como material.

24

7. Desenvolvimentos recentes: o TPI e a revisão constitucional de 2001

‘Legitimacy is dependent, in other words, on acceptance of the

established systems as morally and practically appropriate’62

Uma das questões actualmente discutidas tem sido a criação de um Tribunal Penal

Internacional. Foi assinado um tratado internacional (‘Tratado de Roma de 1998’) que estabeleceu o

Estatuto do TPI63. Foi ultrapassada a dúvida inicial quanto à sua criação institucional, tendo sido

conseguidas as sessenta ratificações64 apesar das dificuldades nesse sentido, desde 1998. Isto

malgrado as cento e trinta e nove assinaturas inicialmente conseguidas (sendo cerca de 190 os

Estados Membros da ONU).

O problema mais relevante que decorre deste Estatuto para a Constituição Penal

Portuguesa é a admissibilidade da PPP65. Nenhum outro ordenamento constitucional parece rejeitá-

la de forma tão empenhada66. O objectivo de um regime uniforme de penas67 acabaria por colidir

com determinados ordenamentos, apesar de o texto do Tratado tentar minimizar a questão,

colocando a PPP como de aplicação excepcional. Naturalmente que isto reflectiu-se nas

negociações do Tratado:

‘Among the strongest opponents were Portugal and a number of Latin-American states’68;

‘the Portuguese delegation raised this problem early in the negotiations but it faced a consensus

of having the penalty of life imprisionment as the most serious of the penalties to be applied by

the court. A review mechanism, as it is now enshrined in article 110, was the most our

delegation could achieve’69.

62 VOLCANSEK:9. 63 O estado da arte quanto a esta questão pode ser consultado através de ligação na página das Nações Unidas

na Internet (http://www.un.org). O Tratado está classificado como doc. A/CONF 183/9* de 17 de Julho de

1998. 64 De acordo com o art. 126 do Estatuto. O Tribunal foi constituído a 1 de Julho de 2002, tendo sido obtidas

139 assinaturas e 76 ratificações até essa data. O Estado Português ratificou em 5 de Fevereiro desse ano. 65 Pelo art 77/1-b do Estatuto do TPI. 66 Neste sentido, ESCARAMEIA. 67 ‘A uniform penalties regime for all persons convicted by the Court’, ver FIFE:1010. 68 FIFE:1013. Estados como El Salvador e a Costa Rica, por influência Espanhola. 69 Paula ESCARAMEIA, ‘Notes on the Implementation of the Rome Statute in Portugal’ in [2000] The Rome

Statute and Domestic Legal Orders, vol. I, Kress, Claus e Lattanzi, Flavia, Nomos Verlagsgesellschaft:Baden-

Baden, il Sirente, p.151 ss. (esp. p.281).

25

Nem o estado Português nem os seus ‘aliados’ conseguiram evitar a previsão da PPP no

âmbito do TPI. Existem duas soluções de alegado compromisso: a primeira é a não aplicação de tal

pena no território Português; a segunda será a revisão obrigatória da pena, por cada 25 anos

volvidos70. Como vimos, o art 110 tem sido considerado uma solução de compromisso. Resta saber

o que poderá ficar comprometido.

7.1. A V Revisão Constitucional - 2001 a) O debate parlamentar

Num dos mais altos órgãos de soberania os argumentos – dos quais extraímos alguns --

são, de facto, comprometedores: ‘A imutabilidade da Constituição representaria, num certo sentido, um sinal

de estagnação e de resistência ao progresso’71. De facto, uma Constituição não deve ser imutável na sua

globalidade, mas deve ser fiel aos seus valores, e a dignidade da pessoa humana, ultima ratio, da vida.

Trocar de valores seria trocar de Constituição...

‘Seria de uma total falta de visão não rever a Constituição; seria de uma total falta de visão,

por exemplo, que Portugal se distinguisse de todos os outros países da Europa, por ser aquele

cuja Constituição o impedia de ratificar o Estatuto do TPI’72.

70Na p.10 do projecto de Relatório que citaremos de seguida, afirma-se claramente que ‘Há, pois, conflito

indisfarçável entre a solução do Estatuto e a solução constitucional. E tal conflito não desaparece por no Estatuto se prever uma

reapreciação da pena perpétua ao fim de 25 anos de cumprimento de tal pena’. 71 Deputado Sr. Luís Marques Guedes (PSD), na discussão parlamentar dos projectos de revisão

constitucional de 2001. 72 Deputado Sr. Alberto Costa (PS), idem. O mesmo deputado foi relator do importante Relatório que

referimos na nota seguinte. Nesse documento, conclui-se que ‘a norma do Estatuto que prevê que o Tribunal aplique

a PPP não é compatível com o art 30/1 da Constituição’. Daí que não tenhamos compreendido que nas mesmas

conclusões se admita que a CRP ‘mantém-se fiel à sua identidade substancial se, por via de revisão, se abrir à possibilidade

de reconhecer a jurisdição do TPI e ratificar o Tratado de Roma, não implicando tal revisão violação dos limites de revisão

material’. A falácia parece residir no limite material.. Como veremos, não é sequer esse que está em causa. A

revisão e a adesão per si não são obviamente violadoras dos limites materiais. O mesmo não pode dizer-se,

como veremos de seguida, das consequência fácticas dessa adesão (i.e. com as implicações de jure): a previsão

legal de aplicação, sem mais, da PPP. Sobretudo tendo em conta que as ‘decisões punitivas’ do TPI são

obrigatórias e inalteráveis vis-à-vis os Estados (p.6 do Relatório). O mesmo sucedeu quanto à aplicação da PM:

ainda que à época da abolição Portuguesa muitos Estados a previssem, a situação alterou-se. Não parece pois

adequado que Portugal ceda neste ponto, num momento crítico quanto à estabilidade mundial, porque a

maioria dos Estados possa prever a PPP no seu direito interno. Não defendemos o jus puniendi (Estadual).

Não rejeitamos o TPI ab initio, mas sim uma pena que a ordem constitucional clara e justificadamente não

admite.

26

Este argumento, no âmbito do TPI e da previsão da PPP não pode, a nosso ver, proceder,

porque atentatório da ordem constitucional e do seu princípio máximo: a dignidade da pessoa

humana. Não se trata de ‘falta de visão’, trata-se de humanidade. A revisão constitucional é, numa

das suas dimensões, um acto de soberania nacional e a proibição da PPP um dos seus mais elevados

valores porque relacionado, como vimos, com o mais alto de todos eles. A revisão constitucional

nos termos do discurso parlamentar que se cita seria (ou constituiu) um atentado à soberania e aos

designados valores Portugueses – supondo que a rejeição da PPP não é um valor

humanitário/universal -- ou como disse alguém, uma ‘fraude constitucional’. Daí que mais do que

ser a uma questão de nacionalismo ou de defesa da soberania, não o é per si, sendo a nossa

abordagem numa perpectiva estrita de constitucionalidade. E antes de ser de constitucionalidade –

porque não acreditamos no direito pelo direito – é uma questão de vida73: o valor que o TPI

pretende proteger e que justifica a adesão Portuguesa a um Tribunal Penal Internacional.

b) Inconstitucionalidade da adesão ?

A questão é controversa precisamente neste ponto, em que concordamos parcialmente

com o Relatório apresentado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e

Garantias, que avaliou a constitucionalidade da adesão ao TPI, à luz da resolução 41/VIII (na qual

se propõe a ratificação do Estatuto do TPI). As posições, duas, unem-se num ponto: a necessidade

de um tribunal com jurisdição internacional. A divergência está na adesão apesar da

inconstitucionalidade. Ainda que no citado relatório se preveja o suprimento dessa

inconstitucionalidade via revisão, a realidade é que a revisão que se seguiu acabou por não o fazer.

Isto significa que a ‘revisão não reviu’; a revisão ‘acrescentou’, dado que prevê a adesão ao

TPI (com jurisdição plena, ainda que se fale num carácter complementar, que veremos já de

seguida) mas não tenha sido alterado o regime de proibição da PPP. Por um lado, essa não alteração

revela a preocupação em proteger tal princípio – e provavelmente o receio do legislador de ferir

limites materiais à revisão -- por outro lado, é criada uma situação insólita: no mesmo texto, com

valor constitucional, surgem duas disposições com conteúdos opostos. Suponhamos que não se

admite tal contradição, com base no dogma de que ‘o legislador nunca se contradiz’. Não é

defensável que se receba por via indirecta de um artigo aditado, um Tratado que prevê a aplicação

da PPP (seja a quem for – nacionalidade -- seja onde for -- território) e seja ignorado o art 33/5. A

ponderação é óbvia – ou a PPP ou o TPI: um deles tem de ceder (‘opt-in ou opt-out’, como se

refere na p.20 do Relatório) face a inexistência de flexibilidade (o TPI não admite excepções; o art

33/5 também não admite a aplicação da pena). Como diria um Economista, ‘there is no such thing as a

free lunch’. E tal máxima também também se aplica aos valores.

73 Valor pré-constitucional, que os documentos constitucionais meramente reconhecem para efeitos de

efectivação a nível jus-constitucional e da lei ordinária.

27

A punição dos crimes previstos no Estatuto do TPI não legitima a aplicação arbitrária de

uma pena. Justifica uma pena proporcional e adequada. E a CRP a tal obriga, pelo que não é

legítima a sua alteração nesse sentido – ou, pior, à sua adaptação a um tratado que atenta contra um

valor que, mais do que ser da Nação, é universal porque humanitário. Trata-se mesmo de um valor

pré constitucional: perante a ausência do disposto no art. 33 CRP, a mesma posição seria

defensável. Tendo o TPI como objectivo a protecção da humanidade, aqueles que punir têm de o

ser com humanidade, ainda que o sentimento subsequente ao crime possa ser antagónico. Afinal, a

defesa da PPP consta certamente do curriculum de muitos dos visados que o TPI pretende punir. E é

o início para a defesa de (ainda) menos decentes penas.

c) Os projectos de revisão em particular

A revisão extraordinária de 2001 da CRP foi motivada, inter alia, pela adesão Portuguesa ao

TPI. Dos três projectos apresentados74, dois incluíram alterações decorrentes da referida adesão. O

projecto do Partido Social Democrata (PSD) contemplou de forma mais explícita e destacada o

tema, mas a nosso ver foi a referência no projecto do Partido Socialista (PS) que acabou por ser

mais expressiva quanto à questão em particular. De qualquer das formas, acabou por optar-se por

uma fusão dos projectos.

O PSD optou por dedicar a primeira parte da sua proposta ao TPI, sendo esse o tema que

mais desenvolve textualmente75. No entanto, grande parte desse texto não é mais do que – ainda

que necessária – informação genérica sobre o TPI. A proposta concreta acaba por ser dupla: a

apresentação de uma declaração interpretativa relativa ao Estatuto do TPI, em que Portugal garanta

o direito de julgar os seus nacionais de acordo com o direito interno, evitando a complementaridade

de jurisdição do TPI76; a recusa pelo sistema prisional Português de execução de penas não

previstas pela ordem jurídica interna. A proposta de alteração do texto constitucional adita ao art 7

um número 7:

‘Portugal pode, em condições de complementaridade face à jurisdição nacional e tendo em vista

a realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa

humana e dos povos reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional’.

O PS preferiu o tom lacónico, num texto cuja extensão contraria as largas alterações que propõe,

maxime ao aditar à CRP o art 298-A, com epígrafe ‘Justiça Internacional’:

74 Projectos de Revisão Constitucional n.º 1/VIII (PSD); 2/VIII (PS); 3/VIII (CDS-PP). 75 Considerando-o o principal: ‘em primeiro lugar, possibilitar a adesão de Portugal à jurisdição do TPI’. Deputado Sr.

Luís Marques Guedes (PSD), na discussão referida supra. 76 A ‘complementaridade’ é um lobo em pele de cordeiro: envolve uma ‘corrective action’, em que o TPI pode

sobrepor-se aos regimes nacionais. Veja-se BOS:44, citado pelo relatório parlamentar que referimos atrás, p.3.

28

‘Portugal pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional instituído pelo

Estatuto de Roma, de 17 de Julho de 1998, nas condições nele previstas’.

Impõe-se um breve comentário. Apesar das aparentes diferenças de estilo, ambos os projectos

acabam por conduzir a igual resultado: a recepção no ordenamento jurídico Português, da jurisdição

incondicional do TPI, através de remissão introduzida na CRP 77. Resta avaliar a sua legitimidade.

Se não existem dúvidas quanto à posição da CRP como fonte legitimadora principal da

ordem jurídica Nacional, o mesmo não sucede quanto às alterações ao seu texto. Quer isto dizer

que legitimar a adopção Portuguesa da jurisdição do TPI por via da CRP não pode resultar de uma

recepção total, tendo em conta os actuais termos do Tratado. A introdução não se justifica por si,

sem atender à compatibilidade da aceitação dessa jurisdição com o texto da Constituição existente,

sob pena de fazer-se uma nova Constituição ou -- numa visão extrema -- de criar-se um ‘hiato

constitucional’. Nem é necessário recorrer aos limites materiais à revisão para aceitar esta conclusão.

Como vimos, a PPP encontra – em termos de Direito comparado -- a sua maior oposição

constitucional na Constituição Portuguesa, o que demonstra o empenho do legislador constituinte

em banir tal instituto do nosso Direito e realidade social.

Ambos os projectos de revisão referidos aceitam sem restrições a adesão ao TPI, maxime a

adopção do seu Estatuto78. Recordem-se certos aspectos de ambos os projectos, relativamente ao

Estatuto do TPI: ‘conforme estabelecido no Tratado de Roma’ (PSD); ‘nas condições nele previstas’ (PS). Se o

PS nem sequer aborda a questão da previsão da PPP no Estatuto do TPI, o PSD acaba por propor

uma solução juridicamente irrelevante, porque desprovida de qualquer vinculatividade79. No

projecto deste último partido propõe-se, por um lado, a emissão de uma ‘declaração interpretativa’80

que garanta a jurisdição total Portuguesa para julgar os seus nacionais de acordo com o Direito

77 Os restantes partidos demarcaram-se, de uma forma ou de outra, desta posição: ‘Não integraremos nenhuma

norma receptiva do TPI’ (CDS-PP); o PCP e ‘Os Verdes’ defenderam a abertura de um debate nacional sobre a

adesão e revisão da CRP. 78 O que aliado à recente Resolução do Parlamento (n.º 63/2001), que vimos atrás, indiciava já a ratificação

do Tratado assinado em Roma em 1998. 79 Curiosamente, só o partido ‘Os Verdes’ referiu esta realidade no debate parlamentar (Deputada Sr.ª Isabel

Castro). 80 Proposta também pelo Deputado Sr. Alberto Costa (PS) e aceite pelo Deputado Sr. Basílio Horta (CDS-

PP) aquando da discussão parlamentar referida supra.

29

Português81 e, por outro lado, a recusa pelo sistema prisional Português da execução de penas não

previstas no ordenamento nacional82.

A declaração interpretativa não tem, prima facie, qualquer valor. Isto porque, como veremos

de seguida, o tratado que estabelece o TPI não admite reservas83. A alteração constitucional proposta

pelo PSD nesta matéria (rectius: a total absorção do Estatuto) é, assim, cega, não tendo em conta a

impossibilidade de formular quaisquer reservas. A não aplicação da PPP em território Português –

conteúdo essencial do citado artigo -- não parece ser a solução, mas antes um frágil paliativo que

não satisfaz os requisitos da ordem constitucional. Isto mesmo tendo em conta que nenhum tratado

é perfeito, mas sim o resultado de concessão mútua por via negocial. O facto de não se aplicar no

território Nacional não invalida a sua aplicabilidade noutros sob a égide de um tratado assinado

pelo Estado Português.

Ainda que não aplicável a Portugueses, não estaria Portugal a permitir, passivamente, a

aplicação de tal pena a seres humanos? É necessário ponderar muito bem a matéria. Uma reserva ao

art 77/1-b do Estatuto do TPI, ao abrigo do art 19/c da Convenção de Viena sobre Direito dos

Tratados (1969), não será solução – logo porque o Estatuto do TPI, no seu art 120, afasta de forma

inequívoca a possibilidade de reservas. Ainda que fosse possível, o problema a resolver é o da

aplicação em outros territórios.

A CRP exige a sua resolução, nomeadamente no art 33/5: a proibição casuística da

extradição, de que aqui tratamos, é a prova evidente do compromisso que o Estado Português tem

obrigatoriamente com a protecção dos direitos humanos, que envolve necessariamente a rejeição

incondicional da PPP, ainda que a Revisão Constitucional de 1997 tenha flexibilizado o sistema

quanto à extradição e o TC o tenha reconhecido de forma mais ou menos tímida84.

d) A Constituição revista – Dezembro de 2001

81 Proposto também pelo PCP via projecto de lei entregue no dia da discussão parlamentar referida supra.

Também o CDS-PP manifestou o seu apoio. 82 Mesmo que num caso não estivesse em causa a PPP qua tale, existem outras variantes: o cúmulo jurídico,

admitido em Espanha, para dar um exemplo a (quase) todos os níveis próximo. 83 Recorde-se o conceito jusinternacional de reserva, que consta do art. 2/1-d da Convenção de Viena sobre o

Direito dos Tratados (1969): ‘A expressão «reserva» designa uma declaração unilateral, qualquer que seja o seu

conteúdo ou a sua designação, feita por um Estado quando assina, ratifica, aceita ou aprova um tratado ou a ele adere,

pela qual visa excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado na sua aplicação a este Estado’. O destaque

é nosso. Note-se que esta Convenção tem vindo a ser pacificamente considerada princípio geral de direito

internacional, com eficácia erga-omnes (i.e. independentemente de os Estados serem dela Partes). 84 O já referido Ac 1/2001.

30

Entretanto, foi publicada a Lei Constitucional n.º 1/2001 de 12 de Dezembro, que procede

à V Revisão Constitucional. Para efeitos desta parte do nosso texto, interessam apenas as

referências ao TPI e ao Tratado de Roma de 199885.

Aditamento ao art. 7:

‘7 — Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o

respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal

Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos

estabelecidos no Estatuto de Roma86’.

Perante este aditamento, duas questões prévias imediatamente se colocam:

Era necessário rever a Constituição para aceder ao TPI ?;

Qual a relação do presente aditamento (art. 7/7) com o art. 33 ?

Tentaremos procurar respostas de forma muito sucinta. Quanto à primeira questão, o elemento

essencial para a determinação de uma resposta foi já referido neste texto: a questão da soberania

nacional/direito internacional público-jurisdição internacional e a polémica monismo/dualismo na

abordagem do direito internacional público. Isto porque o Tratado em si – e em especial o facto de

instaurar uma jurisdição internacional a nível penal – pretere o problema da PPP e do art 33 CRP.

Quanto à polémica monismo/dualismo, resume-se a essência ao entender-se, perante as

duas ordens jurídicas (estadual/internacional), se ‘as duas são independentes uma da outra e que

cada uma delas precisa de ter normas específicas sobre a sua relação recíproca, ou se pensa, pelo

85 Nesta revisão alterou-se, inter alia, a redacção do art. 33, tranbscrevendo nós o art. 5 da Lei de revisão: ‘O

n.º 5 do artigo 33.º da Constituição passa a n.º 4 do mesmo artigo.

2 — É aditado ao artigo 33.º um novo n.º 5, com a seguinte redacção:

«5 — O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação

judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia.»

3 — O n.º 4 do artigo 33.º passa a n.º 6, sendo-lhe aditada entre vírgulas a expressão «nem a entrega a

qualquer título» entre «extradição» e «por motivos» e substituída a expressão «nem» pela expressão «ou» entre

«políticos» e «por crimes», passando o preceito a ter a seguinte redacção:

«6 — Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que

corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão

irreversível da integridade física.»

4 — Os n.os 6, 7 e 8 do artigo 33.º passam, respectivamente, a n.os 7, 8 e 9’. 86 O destaque é nosso.

31

contrário, que o Direito constitui uma unidade, de que ambas são meras manifestações, ficando a

validade das normas interna e internacional a resultar da mesma fonte a elas comum’87.

No ordenamento português um sistema de recepção automática por via do art. 8/2 CRP88,

o que afasta esta questão, na medida em que o que interessará para o efeito será o conteúdo do

Tratado vis-à-vis a CRP. A única limitação à recepção será a publicação oficial89. Desta forma, no

âmbito convencional, há apenas um requisito de ratificação/aprovação, de forma a reconhecer – e

não de incorporar – as normas de direito internacional público no direito interno. Desta forma,

temos um sistema tendencialmente equilibrado, na medida em que não determina a sujeição

imediata ao direito internacional – como que uma diluição do direito interno – mas que também

não implica uma transformação explícita do direito internacional em direito interno, numa

balcanização indesejável. Estes dois polos derivam da oposição monismo/dualismo, como é

evidente.

A questão subsidiária de saber qual o lugar do direito internacional convencional – questão

de eficácia -- na hierarquia das fontes de direito no ordenamento português (maxime face aos ‘actos

legislativos internos’)90 parece ter como solução possível paridade entre a norma internacional e a

norma interna, conquanto esta primeira não viole a parte garantística da Constituição – questão de

validade -- ou, se quisermos, paridade-hierárquico-normativa infra constitucional91 quanto a direitos,

87 PEREIRA:82ss. 88 Artigo 8º-Direito internacional

1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.

2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a

sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.

3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente

na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos. 89 Que não se limita ao direito internacional particular (Tratados, ...) mas também vale quanto ao direito

internacional geral. Sobre a questão aqui tratada, ver CANOTILHO[1998]:722. Anteriormente o problema não

teria muita razão de ser, visto que o direito penal internacional era limitado ab initio pelo princípio da

territorialidade. Ver GUEDES:170ss. Note-se no entanto que quanto à eficácia do direito internacional no

ordenamento estadual, a posição portuguesa não era diferente da actual: recepção plena, isto até à

Constituição de 1933. A discussão faz pois sentido apenas no período histórico 1933-1976. Ver PEREIRA:106-

107. 90 CANOTILHO[1998]:723. A hierarquia no âmbito da querela monismo/dualismo não resolve totalmente

questões de jurisdição (extraconstitucionais), na medida em que surgem problemas de delimitação de

competências entre organizações internacionais, aplicação de Tratados, etc. Ver GUGGENHEIM:289. 91 CANOTILHO[1998], p.723, ao opor o valor infraconstitucional (mas supralegislativo) à paridade hierárquico

normativa, rejeita esta última, sempre que o conteúdo convencional seja materialmente constitucional. Como

afirmámos, a limitação – não apenas a nível convencional, mas do direito internacional geral – deve ser a da

limitação constitucional quanto a direitos liberdades e garantias. No caso do Estatuto do TPI, é violado o art

33, como vimos.

32

liberdades e garantias. Esta concepção seria intermédia face às tradicionais soluções de valor

constitucional e de valor infraconstitucional mas supralegislativo. Desta forma, o direito

internacional não seria limitado pela Constituição enquanto lei superior estadual92, conquanto este

primeiro não impusesse menores níveis quanto a direitos, liberdades e garantias do que aqueles

consagrados na CRP.

Não havia pois necessidade de modificar a CRP para aceitar a jurisdição do TPI, ainda que

incidisse sobre matéria penal, tradicionalmente reservada aos Estados, mormente via princípio da

territorialidade93. Mesmo quem não opte pela concepção intermédia apresentada supra – isto é,quem

perfilhe as restantes posições apresentadas – é forçado a retirar igual conclusão. Isto porque o

sistema português vigente é de recepção plena e automática. Isto porque o problema da eficácia não

deve ser confundido com o plano da validade. Não se referindo a CRP a uma qualquer limitação

(e.g. na área penal) – entretanto ultrapassada no âmbito do direito internacional em geral – deve ser

considerada ilegítima qualquer pretensão nesse sentido.

Qual então a intenção do legislador constituinte aquando da revisão? Infelizmente, parece

ser a da fuga ao art. 33. Como afirmámos, a revisão não reviu, a revisão acrescentou. De facto, se

não é dogmaticamente aceitável a criação de hiatos constitucionais (isto à margem dos limites

materiais à revisão), ainda menos aceitável será entender que se trata de uma derrogação, que não só

violaria os limites materiais à revisão (art. 288/d CRP) como constituiria um acto de anarquia

legislativa, de irresponsabilidade política e de desprezo pela Constituição enquanto documento

garantístico do qual a rejeição de penas perpétuas é elemento parte do núcleo essencial de garantias,

ínsito ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1 CRP).

A essência desta questão reside no novo art. 7/7 CRP, quando se refere às ‘condições de

complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto’. Isto porque está ultrapassada a questão da

adesão per si, resolvida na primeira questão: não era necessária qualquer referência da CRP ao

Tratado de Roma de 1998, na medida em que a sua eficácia estava garantida tanto pela ratificação

como pela publicação à luz do mencionado princípio da recepção plena e automática do direito

internacional.

92 Para André Gonçalves PEREIRA e Fausto de QUADROS (op.cit, p.117), com quem parcialmente

concordamos, ‘dizer-se que o Direito Internacional geral ou comum cede perante as Constituições dos Estados é negar que ele

obrigue todos os Estados, é ignorar que ele é geral ou comum’. A posição exposta apenas merece reparo quanto aos

direitos, liberdades e garantias: não faz sentido que uma Constituição – e é o caso na portuguesa em diversas

áreas, como é pacífico – que ultrapasse em mérito as garantias internacionalmente consagradas veja a sua

aplicação restringida. Desta forma, o núcleo de direitos, liberdades e garantias deve ser considerado um acquis,

sendo que qualquer protecção inferior deve ser considerada materialmente inconstitucional e inválida no

ordenamento nacional, e que qualquer protecção de nível superior deva ser considerada aceite através do

mecanismo geral da recepção plena e automática pelo direito português. 93 GUEDES:170.

33

Como abordar a citada parte do aditamento ao art. 7 CRP, ao referir a

complementaridade94 e os ‘demais termos’ constantes do Tratado? Abordar será, em primeira linha,

interpretar tal conteúdo no seio do texto constitucional, nomeadamente quando o seu conteúdo é

contraditório ao disposto no art. 33 CRP. Tal exigirá um maior estudo – detalhado – das

disposições do Tratado, maxime aquelas de natureza processual.

Porém, o que poderemos concluir de imediato e sem dificuldade – o Tratado é de facto

claro nesse ponto, bem como a CRP – que o art. 71/1-b do Estatuto do TPI, enquanto parte do

manancial para o qual remete o art 7/7 CRP (i.e. o texto convencional), viola o art. 33/5 CRP., na

parte em que este último proíbe a aplicação pena de prisão perpétua. Ora a remissão operada no art.

7/7 CRP para uma jurisdição em que tal pena é aplicável – seja ou não a nacionais portugueses,

como vimos – não pode ser aceitável face à proibição do art. 33/5, insusceptível, como referimos

anteriormente, de revisão constitucional.

94 Vejam-se os arts. 12 e 13 do Estatuto do TPI.

34

V. Conclusões

1. O regime da extradição tem sido vítima de uma constante instabilidade (seja por via

legislativa ou jurisprudencial);

1.1. Instabilidade não isolada quanto aos agentes, o que pode ser razão de preocupação. A

triangulação Exterior/Político/Judicial (traduzida em relações internacionais e direito

convencional/política legislativa governamental e parlamentar/jurisprudencial) assume aqui o

centro nevrálgico de toda a mutação do regime de extradição.

1.2. A mutação é global, não específica (quanto à PPP; PM). No caso da PPP e PM, nota-se

uma evolução (na acepção estrita) no sentido de uma abertura do ordenamento nacional face ao

‘Exterior’, por via da política externa95. Naturalmente que as organizações das quais o Estado

Português é parte assumem especial importância, nomeadamente as Nações Unidas e a UE – do

qual o TPI é exemplo expressivo. O que sobressai são as suas consequências e interacções ao nível

nacional, especialmente nos referidos Político e Judicial.

1.3. A mutação não é coordenada. O Governo e o Parlamento, por um lado, legislam de

acordo com as exigências internacionais, modificando até a Lei Fundamental; o Tribunal

Constitucional reorienta a sua jurisprudência eliminando uma tendência maximalista (maxime em

Leung e Varizo) para um ‘eterno retorno’ que é revelado pela jurisprudência mais recente e relevante,

como no referido Ac. 1/2001. Tal descoordenação é desvantagem ínsita à separação de poderes,

cuja resolução através de maior interdependência merece estudo;

2. No caso específico do TPI, pareceu existir uma ‘convergência de ratificação’, i.e., a criação

de condições para que o Tratado fosse ratificado, sem quaisquer restrições. O mesmo se aplicará,

com as devidas adaptações, à cooperação judiciária entre Estados em matéria penal, maxime na

contemporânea definição comunitária nesse campo.

A questão não reside na dependência ou não do exterior para a formulação ou reorientação

de políticas. Pelo contrário, o diálogo internacional – para o qual a diplomacia tem sido essencial – é

fundamental e de incentivar. O que não é aceitável é a cedência de valores fundamentais do

Estado. Ainda que se discuta a erosão do Estado-Nação, não é também essa a nossa referência. O

que é relevante é que é inegável a existência de princípios comuns à humanidade (de resto

defendidas pela doutrina anti-Estadual como argumento pró-

funcionalista/supranacional/federal/outra variante) e, ultima ratio, às ideologias e religiões ou

95 O que no contexto do TPI é publicamente reconhecido. Veja-se Assembleia da República (op.cit., p.19): ‘É

mais realista reconhecer que, nos dias de hoje, o poder constituinte nacional e por maioria o poder de revisão estão longe de ser

poderes inteiramente autónomos, que exclusivamente gravitem em torno do Estado soberano e dos seus impulsos internos’.

35

crenças. No actual momento político internacional, activado pelo sucedido a 11 de Setembro de

2001, este argumento de valores comuns ganha ainda mais credibilidade, sendo que na nossa

acepção, mais do que fomentar/apenas incentivar o investimento na defesa militar comum, deve

potenciar a defesa dos direitos humanos.

2.1. A dignidade da pessoa humana é um desses valores comuns, senão – pelo menos para

a maioria das sociedades – o mais alto, sendo base fundante da proibição das penas de prisão

perpétuas. As alterações de regime que envolvam direitos, liberdades e garantias não devem

de forma alguma ser afectadas de forma negativa (de redução). A grande dificuldade reside em

negociações diplomáticas entre Estados com pesos desiguais. O Estado Português é especialmente

afectado por este problema. Formas de minorar a questão passam por uma intervenção

determinada dos Governos nacionais e restantes órgãos de soberania (tribunais constitucionais

incluídos) na recepção – a constitucionalidade (validade) é limite à eficácia -- do direito

internacional96.

2.1.1. No caso dos Governos, estes deverão conduzir a sua política externa segundo a

Constituição97.

No caso dos Parlamentos, na fiscalização da actividade dos Governos.

No caso dos tribunais Constitucionais no controlo e fiscalização da constitucionalidade de

legislação/decisão dos processos que aí sejam propostos. Nesta triangulação é essencial a boa

aplicação da separação e interdependência de poderes, independência dos tribunais incluída.

A redução da vertente negativa das negociações diplomáticas não está pois apenas

na competência dos diplomatas98 ou do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) mas

sim num funcionamento harmonioso e eficaz dos órgãos (internos...) de soberania.

2.2. Não era necessária a alteração da Constituição para a adesão ao TPI;

2.3. A jurisdição em matéria penal – ou outra área legal -- não é limite à intervenção do

direito internacional;

96 Cabe notar que esta referência a uma adequada recepção nada obsta ao que referimos supra quanto à

adesão ao TPI,por um lado, e sobre eficácia do direito comunitário na ordem interna, por outro. Pelo

contrário, com bem se deduzirá. 97 No caso Português é de lamentar a fraca margem negocial à disposição da delegação Portuguesa nos

trabalhos do Tratado de Roma de 1998, por exemplo, o que corresponde à ineficácia de muitas negociações

diplomáticas pelo peso desigual dos Estados partes, como referido acima. 98 Até porque não lhes cabe função decisora, mas de intermediação governamental/organizacional. Veja-se

sobre esta temática a acutilante análise em MAGALHÃES[1996] pp. 152-165.

36

2.3.1. A Constituição é limite à eficácia do direito internacional apenas em matéria de

direitos, liberdades e garantias;

2.3.2. Tal limitação é meramente positiva, de forma a consagrar a proibição do retrocesso.

Normas de direito internacional mais favoráveis do ponto de vista garantístico não são

limitáveis pela Constituição;

2.4. O art 7/7 CRP, aditado, remete para uma jurisdição que inclui norma contrária ao

art. 33/4 CRP;

2.4.1. Tal remissão não pode constituir uma derrogação constitucionalmente aceite do

princípio fundamental constante do art. 33/5;

2.4.2. O princípio constante do art. 33/5 está abrangido pelos limites materiais de revisão

constitucional;

2.5. As ‘declarações interpretativas’ apresentadas pelo Estado Português ao Estatuto

TPI estão desprovidas de valor jurídico;

2.6. O art. 77/1-b do Tratado de Roma de 1998 é materialmente inconstitucional na

parte em que prevê a aplicação de pena de prisão perpétua;

2.6.1. Tal disposição convencional é inválida perante a ordem jurídica portuguesa.

Questões pendentes:

Havendo muito mais para estudar neste campo – nomeadamente uma boa exploração de outra

jurisprudência relacionada (a começar pelos restantes casos ‘de Macau’); a comparação com

jurisprudência anterior e posterior; a avaliação do actual regime em comparação com o anterior; a

análise comparada de regimes de extradição a nível internacional e europeu em especial; as

perspectivas de evolução da harmonização no âmbito de organismos internacionais, etc. – ficámos

com uma ideia geral do regime de extradição em Portugal, tendo sido prioridade a análise dos dois

casos apresentados. Perante este panorama, algum conforto perante a posição gaulesamente irredutível

face à negação da extradição estando em causa PM e a flexibilidade controlada (logo pelas garantias)

da extradição em casos de PPP. Em ambos os casos, resta saber se novas (e esperemos que não

breves) alterações de regime não venham, como que numa ‘livre concorrência internacional’, abrir o

‘mercado Português de penas’ a surpresas desnecessárias.

37

No âmbito do TPI, apesar das dificuldades na sua criação, há que estar atento aos avanços

na aplicação de PPP com base num Tratado assinado – e entretanto ratificado -- pelo Estado

Português. Não faz sentido considerar que o Estado Português não se revê como parte do Estatuto

do TPI caso se aplique a pena de prisão perpétua nesse âmbito. Isto porque ratificou o Estatuto.

Isto apesar de tal disposição ser inválida para a ordem jurídica portuguesa. Não existe forma de

impedir a aplicação de tal pena a cidadãos não portugueses – acto igualmente inconstitucional face à

ordem jurídica portuguesa, mercê do princípio da universalidade -- pelo que tem de existir um

esforço permanente para a abolição de tal disposição, na medida em que é impossível reevogar a

ratificação.

Há também que melhorar o sistema das garantias para assegurar a fiabilidade da política

legislativa que tem vindo a ser seguida, em especial quanto a Estados não comunitários (Estados

Terceiros para efeitos do direito comunitário). Para esse efeito, é essencial a coordenação de

esforços nas áreas judicial; política; diplomática. Seria infeliz depender de reformas internacionais e

desejável proceder à sua proposta e participação.

Finalmente, sendo definitivo que o Estado Português ratificou o Tratado que institui o TPI

– cuja adesão em si é pacífica – não pode no entanto ignorar-se a questão da previsão da pena de

prisão perpétua. O Estado Português não poderá, por si, intervir de forma aberta na matéria. Isto

porque ao ratificar, aceitou os termos do Tratado, que não admite reservas, como vimos. E seria

controverso que o Estado Português de desvinculasse do Tratado99. Por outro lado, tal

impossibilidade de acção do Estado não implica que a tão em voga ‘sociedade civil’ não se

pronuncie sobre a questão e, mais, não intervenha juridicamente de forma a tentar eliminar a

previsão da prisão perpétua do Estatuto do TPI. Como é evidente, tratar-se-á de uma acção

localizada e nada implica – favorável ou desfavoravelmente – a nível da validade do Tratado na

globalidade e na criação de uma jurisdição penal internacional.

A acção (em sentido amplo) em questão seria sempre no plano do direito internacional

público, em particular no âmbito do designado ‘Direito dos Tratados’, sendo pedra de toque a

Convenção de Viena de 1969, à qual já tivemos oportunidade de aludir ao longo deste texto. Isto do

ponto de vista processual. Do ponto de vista material – com implicações a nível processual (e.g.

99 Como prevê o art. 127 do Estatuto. Ainda que juridicamente fosse correcto quanto aos princípios

humanitários, seria incorrecto dada a ratificação sabendo que o Tratado previa a pena de prisão perpétua –

independentemente do facto de não aceitar reservas, como vimos. Do ponto de vista diplomático a resposta

seria igualmente negativa e do ponto de vista político a solução seria a mesma, porque a origem burocrática

da diplomacia. Por último, numa análise económica (custos/benefícios), o trade-off seria favorável à

manutenção da participação portuguesa, seja pela importância da inovação trazida pelo TPI em geral, seja por

razões estratégicas, que consideramos – estando em causa questões humanitárias em abstracto -- em segundo

plano.

38

jurisdição: Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; etc100) – será de recorrer ao

progressivamente autónomo ‘Direito Humanitário’ (Human Rights Law), sendo um óbvio ponto de

partida a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o direito convencional das Nações

Unidas. Sempre, note-se, sob a batuta da referida Convenção de Viena. Fica o desafio.

100 Dificilmente o Tribunal Internacional de Justiça, na medida em que apenas aceita como partes Estados.

Não admira pois que desde o final da década de 1940’ não tenham sido decididos muito mais de cem

processos, muitas vezes relacionados com disputas territoriais. Não é provável que algum Estado venha a

sindicar a nulidade da disposição em questão. O que seria impossível sendo parte. Seria no entanto curioso

colocar o ponto de vista do direito federal/constitucional dos EUA, discutindo se a) poderia haver algum

interesse em colocar a questão; b) se tal questão poderia ser interposta junto do Supremo Tribunal Federal

dos EUA, dada a controvérsia em torno da sua jurisdição internacional. Resta ainda a possibilidade de os

EUA ou outro Estado que não ratificou o Tratado poder, mutatis mutandis, supervisionar a actividade de

investigação e acusação do TPI – porque detem poder de veto no seio do Conselho de Segurança das Nações

Unidas -- à luz do art. 16 do Estatuto, o que não deixa de ser intrigante.

39

VI. Referências Bibliográficas

Assembleia da República, Comissão de Assuntos Constitucionais, Liberdades e Garantias, Proposta

de resolução n.º41/VIII, ‘Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional’, Sobre a questão

prévia da conformidade à Constituição, Projecto de Relatório, s/d (Dezembro de 2000)

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CAEIRO, Pedro [1998] in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, Fasc. 1º, Jan-Mar., pp.7-27

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MAGALHÃES, José Calvet de [1996] A Diplomacia Pura, Lisboa:Bertrand

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VOLCANSEK, Mary L. [1997] ‘Supranational Courts in a Political Context’, in Law above Nations,

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41

Acrónimos

Ac - acórdão

AR - Assembleia da República

CRP - Constituição da República Portuguesa

DIP – Direito Internacional Público

DL – Decreto-Lei

DR - Diário da República

FDUNL – Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

MNE – Ministério dos Negócios Estrangeiros

MP – Ministério Público

PM - pena de morte

PPP - pena de prisão perpétua

RPC – República Popular da China

STJ – Supremo Tribunal de Justiça

TC – Tribunal Constitucional

TJCE - Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias

TPI – Tribunal Penal Internacional

TUE – Tratado da União Europeia

UE – União Europeia