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1 Extratos de fontes das Filosofias Medievais (sécs. II-XIII) 1 Seleção e notas: Prof. Dr. Ricardo da Costa (Ufes) 2 Temas selecionados 3 : A Filosofia. A Gnose. O Belo. A Linguagem e a Palavra. A Verdade. A Luz. A Natureza. O Mundo. A Experiência. O Argumento Ontológico. O Socratismo Cristão. A Humildade. O Fruto das Letras. A Comédia Humana. As Dignidades Divinas. Deus. A Morte. 1. Justino (†163) e a Busca da Filosofia (Diálogo com Trifon) ................................................................ 02 2. Clemente de Alexandria (c. 150-217) e a Gnose, na obra Stromata (Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia) ....................................................................... 03 3. Plotino (205-270) e o Belo, nas Enéadas ............................................................................................ 05 4. Gregório de Nissa (335-394) e a Linguagem, na obra Sobre a criação do homem ...................... 09 5. Agostinho (354-430) e a Verdade: “Existo, logo penso” (3 extratos) ...................................... 11 6. Boécio (c. 470-524) e seu encontro com a Filosofia, na Consolação da Filosofia ........................... 13 7. Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V) e a Dádiva da Luz, na Hierarquia Celeste .................. 15 8. João Escoto Erígena (c. 815-885), a Natureza, a Razão e a Autoridade, na Divisão da Natureza ............................................................................................................................ 17 9. Anselmo de Aosta (de Bec ou de Canterbury, 1033/34-1109) e o Argumento Ontológico, no Proslógio .................................................................................................. 19 10. Pedro Abelardo (1079-1142), e a importância da Linguagem, na Lógica para principiantes ................................................................................................................. 21 11. Bernardo de Claraval (1090-1153) e o Socratismo Cristão 4 , na Carta a Roberto, seu sobrinho e na obra Da Consideração (1149-1152) .................................. 22 12. Hugo de São Vítor (1096-1141) e a Leitura com Humildade, princípio do Conhecimento, no Didascálicon ....................................................................................... 25 13. João de Salisbury (c. 1115-1180), o Fruto das Letras e a Comédia Humana, no Polycraticus ...................................................................................................................................... 27 14. Anônimo do séc. XII, O que é Deus, em O Livro dos Vinte e Quatro Filósofos ........................ 33 15. São Boaventura (1221-1274) e a Palavra como Signo, na Recondução das Ciências à Teologia ............................................................................................... 35 16. Pseudo-Aristóteles (séc. XIII) e a Morte, em Sobre a maçã ou Sobre a morte de Aristóteles .................................................................................................................. 36 17. Santo Tomás de Aquino (c. 1225-1274) e busca do filósofo pela Verdade e pela Sabedoria, na Suma contra os gentios ...................................................................................... 39 18. Roger Bacon (c. 1210-1292), o Fim do Princípio da Autoridade e o Valor da Experiência, na obra Opus maius .................................................................................. 41 19. Ramon Llull (1232-1316) e as Dignidades Divinas, em sua Arte Breve (1308) ........................ 42 20. Sobre a Natureza da Filosofia, a Eternidade do Mundo, o Homem, a Ética e as Virtudes Cristãs, nas 219 Teses condenadas em 1277 ..................................................... 45 1 “...não se pode falar em „Filosofia Medieval‟, no singular, e sim em „Filosofias Medievais‟, no plural. A base da argumentação para tanto continua a mesma: se pensadores que possuem uma mesma fé produzem teologias tão diferentes, é porque possuem filosofias diferentes. E nestas filosofias, igualmente ortodoxas, que não se deixam reduzir uma à outra, é preciso fazer uma escolha.” – DE BONI, Luis Alberto. “Estudar Filosofia Medieval”. In: Filosofia Medieval. Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 22. 2 Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadèmic correspondente n. 90 da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com 3 Material selecionado para exposição e análise na disciplina “História da Filosofia Medieval” (FIL-05094), ministrada para o curso de Filosofia da Ufes, no segundo semestre de 2007. 4 Expressão cunhada por Etienne Gilson, em sua magistral obra O Espírito da Filosofia Medieval (São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 278-303).

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Extratos de fontes das “Filosofias Medievais” (sécs. II-XIII)1 Seleção e notas: Prof. Dr. Ricardo da Costa (Ufes)2

Temas selecionados3: A Filosofia. A Gnose. O Belo. A Linguagem e a Palavra. A Verdade. A Luz. A Natureza. O Mundo. A Experiência. O Argumento Ontológico. O Socratismo Cristão. A Humildade. O Fruto das Letras. A Comédia Humana. As Dignidades Divinas. Deus. A Morte. 1. Justino (†163) e a Busca da Filosofia (Diálogo com Trifon) ................................................................ 02 2. Clemente de Alexandria (c. 150-217) e a Gnose, na obra Stromata

(Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia) ....................................................................... 03 3. Plotino (205-270) e o Belo, nas Enéadas ............................................................................................ 05 4. Gregório de Nissa (335-394) e a Linguagem, na obra Sobre a criação do homem ...................... 09 5. Agostinho (354-430) e a Verdade: “Existo, logo penso” (3 extratos) ...................................... 11 6. Boécio (c. 470-524) e seu encontro com a Filosofia, na Consolação da Filosofia ........................... 13 7. Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V) e a Dádiva da Luz, na Hierarquia Celeste .................. 15 8. João Escoto Erígena (c. 815-885), a Natureza, a Razão e a Autoridade,

na Divisão da Natureza ............................................................................................................................ 17 9. Anselmo de Aosta (de Bec ou de Canterbury, 1033/34-1109)

e o Argumento Ontológico, no Proslógio .................................................................................................. 19 10. Pedro Abelardo (1079-1142), e a importância da Linguagem,

na Lógica para principiantes ................................................................................................................. 21 11. Bernardo de Claraval (1090-1153) e o Socratismo Cristão4,

na Carta a Roberto, seu sobrinho e na obra Da Consideração (1149-1152) .................................. 22 12. Hugo de São Vítor (1096-1141) e a Leitura com Humildade,

princípio do Conhecimento, no Didascálicon ....................................................................................... 25 13. João de Salisbury (c. 1115-1180), o Fruto das Letras e a Comédia Humana,

no Polycraticus ...................................................................................................................................... 27 14. Anônimo do séc. XII, O que é Deus, em O Livro dos Vinte e Quatro Filósofos ........................ 33 15. São Boaventura (1221-1274) e a Palavra como Signo,

na Recondução das Ciências à Teologia ............................................................................................... 35 16. Pseudo-Aristóteles (séc. XIII) e a Morte, em Sobre a maçã ou

Sobre a morte de Aristóteles .................................................................................................................. 36 17. Santo Tomás de Aquino (c. 1225-1274) e busca do filósofo pela Verdade

e pela Sabedoria, na Suma contra os gentios ...................................................................................... 39 18. Roger Bacon (c. 1210-1292), o Fim do Princípio da Autoridade e

o Valor da Experiência, na obra Opus maius .................................................................................. 41 19. Ramon Llull (1232-1316) e as Dignidades Divinas, em sua Arte Breve (1308) ........................ 42 20. Sobre a Natureza da Filosofia, a Eternidade do Mundo, o Homem,

a Ética e as Virtudes Cristãs, nas 219 Teses condenadas em 1277 ..................................................... 45

1 “...não se pode falar em „Filosofia Medieval‟, no singular, e sim em „Filosofias Medievais‟, no plural. A base da

argumentação para tanto continua a mesma: se pensadores que possuem uma mesma fé produzem teologias tão diferentes, é porque possuem filosofias diferentes. E nestas filosofias, igualmente ortodoxas, que não se deixam reduzir uma à outra, é preciso fazer uma escolha.” – DE BONI, Luis Alberto. “Estudar Filosofia Medieval”. In: Filosofia Medieval. Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 22.

2 Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadèmic correspondente n. 90 da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com

3 Material selecionado para exposição e análise na disciplina “História da Filosofia Medieval” (FIL-05094), ministrada para o curso de Filosofia da Ufes, no segundo semestre de 2007.

4 Expressão cunhada por Etienne Gilson, em sua magistral obra O Espírito da Filosofia Medieval (São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 278-303).

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1. JUSTINO (†163) e a Busca da Filosofia, Diálogo com Trifon (depois de 202), MG t. 6, c. 477.5 Eu também nutria, a princípio, o desejo de tratar com algum destes filósofos. Dirigi-me, pois, a um estóico, e passei com ele bastante tempo. Entretanto, como nada adiantasse no conhecimento de Deus – ele mesmo era incrédulo e julgava desnecessário tal saber – abandonei-o, e associei-me a um dos que passam pelo nome de peripatéticos.6 Este homem se tinha em conta de muito perspicaz. Freqüentei-o por alguns dias. Pediu-me então que lhe pagasse um salário, para que as nossas relações não resultassem inúteis. Por isso abandonei-o, deixando mesmo de tê-lo em conta de filósofo. Mas como a minha alma persistisse no desejo ardente de conhecer a natureza e a excelência da filosofia, fui ter com um renomado pitagórico, que muito se vangloriava de seu saber. Ao tratar com ele da minha admissão como ouvinte e discípulo, perguntou-me: “Como assim? Já estudaste, porventura, a música, a astronomia e a geometria? Ou julgas poder contemplar alguma daquelas realidades que conduzem à felicidade sem teres aprendido primeiro estas ciências, que desembaraçam a alma das coisas sensíveis, e a tornam apta para as inteligíveis, de modo a poder contemplar o que é belo e bom em si mesmo?”. E tendo elogiado sobremaneira aquelas ciências e insistido na sua necessidade, despediu-me, pois tive que confessar que as ignorava. Escusado dizer que me entristeci bastante com esta nova desilusão, tanto mais que eu tivera a impressão de que ele sabia alguma coisa. Mas, refletindo sobre o tempo que teria que gastar naquelas disciplinas, não me senti disposto a tão longa demora. Cada vez mais perplexo, resolvi procurar os platônicos, que também desfrutavam de grande fama. Ora, justamente naqueles dias chegara à nossa cidade um dos representantes mais doutos e eminentes desta escola. Pus-me a freqüentá-lo com a máxima assiduidade. Fiz grandes progressos e apliquei-me diariamente a ele, tanto quanto me era possível. Senti-me tomado de um grande entusiasmo pelo conhecimento das coisas incorporais, e a contemplação das Idéias dava asas a meu espírito. Comecei logo a ter-me por sábio, e, tolo como era, cuidei chegar sem demora à contemplação de Deus. Pois este é o objetivo da filosofia platônica.

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5 JUSTINO (†163). Diálogo com Trifon. In: BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã.

Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 32. “Este texto do Diálogo com Trífon é de uma importância capital, por nos mostrar, num caso concreto e

historicamente observável, como a religião cristã pôde assimilar imediatamente um domínio reinvidicado até então pelos filósofos (...) Justino se apresenta como o primeiro daqueles para quem a revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação mais ampla e, não obstante, cristã a seu modo, pois de toda a revelação vem do Verbo e que Cristo é o Verbo encarnado. Podemos, pois, considerá-lo o ancestral dessa família espiritual cristã, da qual o cristianismo largamente aberto reinvidica como seus todo o verdadeiro e todo o bem, que ele se dedica a descobrir para assimilar.” – GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 04 e 08.

6 Peripatético (“aquele que gosta de passear”) – todos os que aderem ao conjunto de doutrinas aristotélicas, e encontram na realidade (por isso “passeiam”) a explicação das coisas. Também se refere a uma escola, a Peripatética, que foi inspirada em alguns fundamentos da doutrina de Aristóteles.

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2. CLEMENTE DE ALEXANDRIA (c. 150-217) e a Gnose, na obra Stromata (Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia), 6,9; 71,1; 75,3.7

É da natureza do gnóstico não obedecer senão aos impulsos necessários para o sustento corporal, tais como a fome, a sede, e outros do mesmo gênero.8 Entretanto, seria ridículo afirmar que o corpo do Senhor necessitasse de serviços para o seu sustento. Pois Ele não se alimentava por causa do seu corpo, que era conservado por uma força sagrada, mas com o único intuito de evitar que seus familiares formassem uma idéia errada a seu respeito, como, de fato, mais tarde alguns julgaram que sua revelação não passasse de mera aparência. Todavia, não estava sujeito a nenhuma paixão, e era inacessível a quaisquer movimentos passionais de prazer ou dor. Também os Apóstolos, instruídos pelo Senhor, eram capazes de dominar, à maneira dos verdadeiros gnósticos, a ira, o temor e a concupiscência; não cediam nem mesmo aos impulsos passionais tidos em conta de bons, como a coragem, o zelo, a alegria e a jovialidade, mantendo-se numa espécie de disposição de ânimo inteiramente inabalável, e numa atitude de domínio inalterável de si próprios – pelo menos após a ressurreição do Senhor. Pois ainda que os referidos impulsos sejam considerados bons na medida em que se fazem acompanhar da razão, não se pode, contudo, admiti-los no homem perfeito. Pois este não tem motivo para ser corajoso, visto não expor-se a perigos, porque nada do que a vida lhe depara lhe parece perigoso, e porque, mesmo independentemente da coragem, nada consegue demovê-lo do amor de Deus. Tampouco necessita de alegria, pois nunca cede à tristeza, convencido de que tudo lhe reverterá em bem; também não se irrita, porque nada pode provocar a ira a quem não cessa de amar a Deus e de entregar-se inteira e exclusivamente a Ele. Pela mesma razão não alimenta ódio contra qualquer criatura de Deus. É-lhe estranho também todo zelo apaixonado, pois de nada carece para conformar-se ao bem e ao belo; e com razão, não ama a pessoa alguma com este amor comum; ao contrário, ama o Criador através das criaturas.

7 CLEMENTE DE ALEXANDRIA (c. 150-217). Stromata (Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia). In:

BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 46-47.

“Nos escritos de Clemente deparamos, repetidamente, com três tipos de homens: o pagão, o crente e o gnóstico (...) Ao igualar o gnóstico ao crente, e ao enraizá-lo na mesma fé dos simples fiéis, Clemente conseguiu superar o grave perigo que o gnosticismo herético representava para a fé cristã. Ao gnosticismo heterodoxo opôs ele a sua gnose ortodoxa que, no fundo, outra coisa não é senão o conhecimento perfeito do místico.” – BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 39-40.

8 “Define-se de um modo geral o gnosticismo como toda tendência e pretensão de conseguir o saber absoluto, sem que isso signifique sempre o acesso ao mesmo por via puramente racional ou intelectual, mas antes mística e extática. Usualmente chama-se gnósticos a uma série de pensadores que elaboraram grandes sistemas teológico-filosóficos durante os primeiros séculos da era cristã, nos quais se encontram misturados as especulações de tipo neoplatónico com os dogmas cristãos e as tradições judaico-orientais.” – FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982, p. 173.

“Saber se Deus existe e o que se pode afirmar razoavelmente a seu respeito, em suma, conhecê-lo como filósofo, não parece mais suficiente; o que se busca é uma gnose (gnôsis), isto é, uma experiência unificadora e divinizadora que permita alcançá-lo num contato pessoal e unir-se realmente a ele. (...) Uma „gnose‟ é um saber cuja posse assegura a salvação, libertando de um erro primitivo ligado à história do mundo os que o possuem. Todas essas doutrinas vinculam-se primeiro ao cristianismo pelo papel que atribuem a Jesus, mas tendem a reduzir sua obra à simples transmissão do conhecimento que salva.” – GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média, op. cit., p. 31.

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Não está, pois, sujeito à cobiça, nem a qualquer outro desejo, e não sente falta de coisa alguma, pelo menos no que respeita à alma, pois já se encontra unido ao seu amado pela caridade, e inseparavelmente ligado a Ele por sua própria escolha; aproxima-se progressivamente d‟Ele, graças ao seu autodomínio; sente-se feliz na abundância dos seus bens, e esforça-se por assemelhar-se o mais possível ao Mestre pelo domínio das paixões. Pois a palavra de Deus é espiritual e, por isso, Sua imagem só se manifesta no homem. Com efeito, o homem bom é igual e semelhante a Deus, graças à sua alma, como também Deus é semelhante ao homem. Pois a nota distintiva de todo homem é o espírito, pelo qual participamos da essência que nos caracteriza. Por este motivo, aquele que peca contra um homem é criminoso e ímpio. Há quem diga, com vã loquacidade, que não convém privar o gnóstico e o perfeito da ira e do ânimo, porque sem estas qualidades ele se tornaria incapaz de enfrentar os reveses e suportar os perigos. Se, além disso, lhe tirássemos a alegria, ele sucumbiria ao peso das adversidades, e sua morte seria extremamente triste. Mais ainda: quem carece de toda aspiração apaixonada não sente nenhum desejo pelas coisas que nos aparentam com o belo e o bem. É assim que muitos pensam. E, perguntam eles, se é impossível achegar-se ao belo sem almejá-lo, como poderia alguém aspirar a ele sem sentir-se apaixonado? Os que assim falam parecem desconhecer o modo de proceder do amor divino, pois este, ao invés de ser uma aspiração do amante, é uma aproximação amorosa, que transporta o gnóstico à unidade da fé, e isto sem qualquer dependência do espaço e do tempo. O amor lhe faz atingir, desde já, o lugar que lhe está reservado para o futuro, antedando-lhe, pelo conhecimento, o objeto de sua esperança. Por isso, já não deseja coisa alguma, pois já possui, na medida do possível, tudo quanto é digno de ser desejado. É, pois, com razão, que ele, amando à maneira dos gnósticos, se mantém naquela disposição inalterável. Também não tende apaixonadamente a assemelhar-se ao belo, pois já participa da beleza pelo amor. Que lhe aproveitariam o ânimo e o desejo, uma vez que já lhe foi dado aproximar-se, pelo amor, do Deus impassível, e ser contado, pelo mesmo amor, no rol dos seus amigos? Ser gnóstico ou perfeito, portanto, significa estar livre de toda agitação da alma. Pois o conhecimento produz o domínio de si próprio, e este, fixando-se numa disposição ou estado durável, tem por efeito a apatia, e não a simples moderação das paixões, pois a apatia é o fruto da completa extinção dos apetites. Mas o gnóstico também se aparta das chamadas tendências boas, ou seja, das emoções que acompanham as paixões. Quero referir-me, por exemplo, à alegria (que acompanha o prazer), ao abatimento (que se prende à aflição), e à cautela (que nasce do temor). Renuncia igualmente à exaltação apaixonada (associada à ira), se bem que muitos afirmem que tais emoções são um bem, não um mal. Pois é impossível que, uma vez chegado à perfeição da caridade, e admitido às alegrias imperecíveis, perenemente deliciosas e inesgotáveis da contemplação, alguém possa continuar a agradar-se nas coisas inferiores e terrenas. Com efeito, que motivo racional haveria para volver aos bens mundanos, depois de atingida a “luz inacessível”, se não em termos de tempo e lugar, pelo menos por meio daquele amor gnóstico que conduzirá à herança e à restauração, quando o “retribuidor” virá confirmar efetivamente aquilo que o gnóstico já antecipou pelo amor, graças à sua decisão? Na verdade, o gnóstico que, impelido pelo amor, sai em busca do Senhor – embora o tabernáculo do seu corpo permaneça visível na terra – por certo não se desfaz da própria vida (isto lhe é vedado), mas torna a viver, depois de haver destruído seus apetites e cessado de depender do seu corpo, ao qual permite apenas o uso do que é necessário para impedir sua dissolução.

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3. PLOTINO (205-270) e o Belo, nas Enéadas (“Sobre o Belo”).9 1. O Belo dirige-se principalmente à visão; mas também há uma beleza para a audição, como em certas combinações de palavras e na música de toda espécie, pois a melodia e o ritmo são belos. As mentes que se elevam para além do reino dos sentidos encontram uma beleza na conduta de vida: em atos, caráteres, bem como a encontram nas ciências e nas virtudes.10 Há uma beleza anterior a essa? O questionamento que se segue o mostrará. O que faz com que a visão vislumbre a beleza do corpo e a audição seja tocada pela beleza dos sons? Por que tudo o que está relacionado à Alma é belo? Todas as coisas belas tiram a sua beleza de um único princípio ou há uma beleza nas coisas corpóreas e outro nas incorpóreas? E o que são essas belezas ou essa beleza? Certas coisas, como as formas materiais, são belas não devido à sua própria substância, mas por participação.11 Outras são belas em si mesmas, como a virtude. Os mesmos corpos mostram-se ora belos, ora desprovidos de beleza, de modo que o ente do corpo é muito diferente do ente da beleza. Que beleza então é essa que está presente nas formas materiais? Eis a primeira pergunta a ser respondida em nosso questionamento. O que é que atrai o olhar do espectador para os objetos belos e faz com que se alegre com sua contemplação? Se encontrarmos a causa disso, talvez possamos nos servir dela como uma escada para contemplar as outras belezas. Quase todo mundo afirma que a beleza visível resulta na simetria das partes, umas em relação às outras e em relação ao conjunto, e, além disso, de certa beleza de suas cores. Neste caso, a beleza dos seres e de todas as coisas seria devida à sua simetria e à sua proporção. Para aquelas que pensam assim, um ser simples não será belo, mas apenas um ser composto. Ademais, cada parte não terá a beleza em si mesma, mas apenas ao combinar-se com as outras para constituir um conjunto belo. No entanto, se o conjunto é belo, é necessário que as partes também sejam belas, pois uma coisa bela não pode ser constituída de partes feias. Tudo o que ela contém precisa ser belo. Conforme essa opinião, as cores belas, e mesmo a luz do Sol, sendo

9 PLOTINO (205-270). Tratados das Enéadas. Polar: Editorial & Comercial, 2000, p. 17-35 (o capítulo sobre o belo

corresponde à primeira Enéada em ordem cronológica, e à Enéada I 6 na ordem estabelecida por Porfírio). Ennéa, em grego, significa nove. “Neste tratado, o primeiro que compôs Plotino, de acordo com Porfírio (Vida de Plotino, IV, 22), o mais traduzido e o mais popularizado, se entrecruzam caracteristicamente os dois temas fundamentais da filosofia plotiniana: a metafísica e a mística. A identificação da beleza com a forma marca uma revolução na história da estética e permite ao seu autor estabelecer a seguinte gradação: a beleza sensível se identifica com uma forma imanente; a da alma com uma forma transcendente, mas secundária; e a própria da inteligência com a forma transcendente e primária, que é o Bem como princípio de forma e de beleza.” – IOGA, Jesús. Porfírio. Vida de Plotino – Plotino Enéadas I-II. Madrid: Editorial Gredos, 2001, p. 271.

10 A virtude significa propriamente força, poder, eficácia. Desde cedo foi entendida como um hábito que se torna possível por haver previamente nela uma capacidade de ser de um determinado modo. Em relação à coisa, a virtude é o que completa a boa disposição da mesma, e se confunde com o valor, a coragem, o ânimo: é o que caracteriza o homem. Este caráter é expresso pelo justo meio, a devida proporção ou moderação prudente. Em Platão são a sabedoria prática ou a prudência, o valor ou a coragem e a temperança. Aristóteles classificou-as como intelectuais (procedentes da alma) e não intelectuais (do hábito). Ver FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia, op. cit., p. 419-420.

11 Plotino se vale do conceito aristotélico de substância: “Temos ciência das coisas particulares só quando conhecemos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o mesmo que ocorre com o bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por essência existe, e o que é uno por essência não é uno (Met., VII, 6, 1031b 6). Esse argumento significa que tudo é o que é em virtude de sua essência necessária (substância, quod quid erat esse): portanto, tudo o que há de real ou de cognoscível nas coisas faz parte da essência necessária e existe necessariamente. – ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 925.

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desprovidas de partes, e, portanto, desprovidas de uma bela simetria, seriam desprovidas de beleza. E por que o ouro é belo? E o relâmpago que vemos na noite, o que faz que ele seja belo? O mesmo pode ser perguntado dos sons, pois se essa opinião estiver correta, a beleza não poderia estar associada a um som simples. No entanto, freqüentemente cada um dos sons que fazem parte da composição é belo em si mesmo. E se é notório que quando um rosto, cujas proporções permanecem idênticas, mostra-se às vezes belo, às vezes feio, podemos ter alguma dúvida de que a beleza seja algo mais que a simetria dessas proporções, de que a causa da beleza do rosto bem proporcionado seja outra? Se nos voltarmos para as belas condutas e os belos discursos, poderemos atribuir a causa de sua beleza à simetria? É possível falar de simetria no que diz respeito às condutas nobres, às leis, aos conhecimentos ou às ciências? As teorias ou especulações podem ser simétricas umas em relação às outras? Se uma concordância entre elas faz com que sejam simétricas, também pode haver concordância entre teorias más. Por exemplo, a opinião de que a “honestidade é uma espécie de estupidez” harmoniza-se perfeitamente com a opinião de que a “moralidade é uma ingenuidade”. A correspondência e concordância entre ambas é completa. E se falarmos agora da virtude, que é uma beleza da Alma – e uma beleza que está realmente acima das mencionadas antes – como dizer que ela é composta de partes simétricas? Embora a Alma seja constituída de várias partes, suas virtudes não podem ter a simetria das dimensões e dos números: pois qual padrão de medida pode haver na relação entre as partes da Alma? Por fim, conforme essa opinião, no que consistiria a beleza da inteligência que permanece livre em si mesma? 2. Caminhemos então em direção à origem e indiquemos o princípio que concede a beleza às coisas materiais. Sem dúvida esse princípio existe. É algo perceptível ao primeiro olhar, algo que a Alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e, ao reconhecê-lo, acolhe-o e entra em ressonância com ele. Por outro lado, quando contempla a feiúra, ela se agita, recusa-a e a repele como uma coisa discordante, que lhe é estranha. Afirmemos, portanto, que a Alma, pela própria verdade de sua natureza, por descender do mais nobre dentre os existentes na hierarquia do Ser, deleita-se ao ver seres do mesmo gênero que ela ou com traços semelhantes aos dela. Quando os vê, ela se surpreende, pois eles a remetem a si mesma, fazem com que se lembre de si e do que lhe pertence. Porém, será que há alguma semelhança entre as belezas lá do alto e as deste mundo? Tal semelhança faria com que as duas ordens se assemelhassem; mas o que há em comum entre a beleza lá do alto e a beleza deste mundo? Toda e qualquer beleza deste mundo advém da comunhão com uma Forma ideal.12 Todas as coisas privadas de Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Idéia permanecem feias e estranhas ao pensamento divino13 enquanto não comungarem com um pensamento ou uma Idéia. A feiúra absoluta consiste nisso. Tudo o que não é denominado por uma Idéia e por um pensamento (logos) é algo feio.

12 Forma, figura latente e invisível, captável só pela mente. Platão a chama de idéia ou forma; Aristóteles (na Física e

na Metafísica) afirma que a matéria é aquilo com o que se faz alguma coisa; a forma é aquilo que determina a matéria para ser alguma coisa, isto é, aquilo por que alguma coisa é o que é.

13 Logos spermatikoy – a razão seminal.

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Porém, quando a Idéia (ou Forma ideal) se aproxima de algo e o organiza, combinando as várias partes das quais ele é composto, a Idéia as reduz a um todo convergente e, colocando-as de acordo entre si, cria a unidade – uma vez que a Idéia é uma unidade e o que é moldado por ela deve unificar-se, mas na medida do que é possível a uma coisa composta de muitas partes. Quando algo é conduzido à unidade, a beleza entroniza-se ali, pois ela se difunde por cada uma de suas partes individualmente e pelo conjunto (...) Assim, a beleza das coisas materiais provém de sua comunhão com um pensamento que provém dos deuses.

(...) 4. Quanto às belezas mais elevadas, que não podem ser percebidas pelos sentidos, mas que são vistas pela Alma e a respeito das quais ela se pronuncia sem o auxílio dos órgãos dos sentidos, para contemplá-las temos de nos elevar ainda mais, abandonando os sentidos embaixo. Assim como aqueles que nasceram cegos não podem falar a respeito das belezas sensíveis, assim também não é possível se falar a respeito da beleza das condutas, das ciências e das outras coisas semelhantes sem ter antes se interessado por essas questões, nem é possível falar a respeito do esplendor da virtude sem antes ter contemplado a bela face da justiça e da temperança, “cuja beleza é maior que a da aurora e a do crepúsculo”.14 Tais belezas só podem ser vistas por aqueles que vêem com os olhos da Alma. E quando as vêem, experimentam um deleite, uma alegria e um assombro bem maiores do que os experimentados diante das belezas precedentes, pois nesse caso contemplam o reino da verdadeira Beleza. Eis o que experimentamos quando entramos em contato com a beleza: o maravilhamento, um súbito deleite, o desejo, o amor e uma alegre excitação. É possível sentir isso diante das belezas invisíveis. E as Almas realmente o sentem: praticamente todas as Almas, mas especialmente as Almas que as amam. O mesmo ocorre no que diz respeito à beleza dos corpos: todos a vêem, mas nem todos sentem o mesmo impacto; os que mais o sentem são os que chamamos de “amorosos”. 5. Então, temos de fazer a seguinte pergunta aos amantes da beleza que está além dos sentidos: “O que sentis antes as belas condutas, os belos caráteres, os modos virtuosos e a beleza da Alma? O que sentis quando vedes a vossa própria beleza interior? Que deleite, emoção e desejo de estarem convosco mesmos é esse que, recolhendo-vos em vosso verdadeiro eu, vos arrebata para fora do corpo?” Pois é isso que experimentam os verdadeiros amorosos. Porém, o que os faz experimentar isso? Não é a forma, cor ou dimensão alguma, mas a Alma: pois, embora não tenha cor, é nela que brilham a sabedoria e os resplendores de todas as outras virtudes. Experimentais isso quando vedes em vós mesmos ou em outra pessoa a grandeza da Alma, um caráter justo, a pureza dos costumes, a coragem de uma face nobre, a dignidade – esse respeito por si mesmo que advém de uma Alma calma, serena e impassível – e, brilhando sobre tudo isso, a luz da Inteligência, cuja essência é divina. Todas essas qualidades nobres devem ser reverenciadas e amadas – mas porque são chamadas belas? Porque realmente existem como belezas e quem quer que as veja afirma que elas têm uma existência real. Porém, o que significa a expressão “existência real”? Sem dúvida elas são belas, mas a razão também deseja saber o que faz com que, ao vê-las, o amor se inflame na Alma. O que é essa graça, esse resplendor que emana de todas as virtudes? Talvez se considerarmos o seu 14 ARISTÓTELES, Ética, V, 3.

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contrário, a feiúra da Alma, e perguntarmos o que esta é e como surge, possamos responder mais facilmente a questão anterior. Imaginemos uma Alma feia, dissoluta e injusta, cheia de todas as concupiscências e desequilíbrios interiores, que por ser covarde está sempre com medo e por ser mesquinha está sempre com inveja. Uma Alma que só pensa nas coisas perecíveis e baixas, é sempre perversa, deleita-se com os prazeres impuros, vive a vida das paixões corporais e tem prazer com a sua própria feiúra. Só podemos dizer que essa feiúra veio até ela como um mal adquirido, que a suja, que a torna impura, a impregna com grandes males e, com isso, sua vida e suas sensações perdem sua pureza, de modo que ela leva uma vida obscurecida pela mistura com o mal, uma vida mesclada de morte. Esta Alma não mais vê o que uma Alma deve ver, não mais lhe é permitido permanecer em si mesma, pois ela é incessantemente atraída para a região exterior, inferior e obscura. Impura, arrastada para todos os lados pelas atrações dos objetos sensíveis, muito infectada pela natureza corporal, absorvendo muita matéria e acolhendo em si uma Forma (eidos) diferente da sua, ela troca sua Forma essencial por uma natureza que lhe é estranha. É como um homem que mergulha no lodo: sua beleza deixa de ser visível, pois só o lodo passa a ser visível.

(...) 6. (...) A beleza é a existência real ou a verdadeira realidade, e a feiúra é o princípio contrário à existência. A feiúra é o primeiro mal. Assim, para Deus, as qualidades da bondade e da beleza são as mesmas, bem como as realidades do Bem e da Beleza.

(...) 8. Como poderemos ver essa Beleza imensa que permanece, por assim dizer, no interior do santuário e não se dirige para fora para ser vista pelo profano? Que aquele que pode fazê-lo siga-a até a sua interioridade, abandonando a visão dos olhos, e não se volte para o esplendor dos corpos que admirava antes. Quando vemos as belezas corporais, não devemos correr atrás delas, mas saber que elas são imagens, traços e sombras; e que, portanto, devemos fugir em direção àquela Beleza da qual elas são uma imagem (...) Fujamos, então, para a nossa querida pátria15: eis o melhor conselho que se pode dar (...) Nossa pátria é o lugar de onde viemos e nosso Pai está lá.

(...) 9. Então, o que esse olho interior vê? Ao despertar ainda não é capaz de olhar para o grande esplendor que está diante dele. Por isso, a Alma precisa habituar-se primeiro a contemplar as belas ocupações, depois as belas obras – não as produzidas pelas artes, mas pelos homens de bem – e, por fim, precisa habituar-se a contemplar as Almas daqueles que realizam belas obras. Mas como é possível sermos capazes de ver a Beleza da Alma boa? Volta o teu olhar para ti mesmo e olha. (...) Quando a tua interioridade estiver pura e não apresentar obstáculo algum à tua unificação; quando nada de exterior estiver misturado com o Homem Verdadeiro; quando te encontrares totalmente verdadeiro para com a tua natureza essencial e fores apenas essa luz verdadeira que não tem dimensão ou forma mensuráveis espacialmente, pois é uma luz absolutamente imensurável, maior que toda a medida e toda quantidade; quando te vires nesse 15 HOMERO, Ilíada, II, 140.

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estado, então saberás que te tornaste uma potência viva e poderás confiar em ti mesmo; já não terás necessidade de alguém para te guiar, pois, embora ainda estando aqui, terás ascendido. Fixa então o teu olhar e vê. Esse é o único olho que vê a grande Beleza.

(...) Portanto, todo aquele que queira contemplar a Deus e ao Belo, se torne antes divino e belo. Tornando a subir, chegará primeiro à Inteligência; verá que as Idéias são belas e reconhecerá que essa é a Beleza: que as Idéias são belas, pois elas provêm da Inteligência e do Ser. Para além da Beleza está o que chamamos de “natureza do Bem”, que irradia de si a Beleza.16

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4. GREGÓRIO DE NISSA (335-394) e a Linguagem, na obra Sobre a criação do homem, 8s.; 148C-149C17

Sendo o homem um ser vivo dotado de linguagem, era necessário que o instrumento do seu corpo fosse convenientemente adaptado para tal fim.18 Com efeito, observamos que os músicos

16 “A concepção plotiniana da beleza baseia-se na análise platônica contida em O banquete. Plotino descreve o

movimento ascendente da alma, que se eleva e passa da beleza sensível à beleza inteligível, do diverso à unidade, até alcançar finalmente a visão indizível da beleza suprema. Nesse encontro, o sujeito se une ao objeto, o olhar se identifica com o que vê, a alma se torna ela mesma luz e beleza (...) Essa metafísica do Belo e da luz, na qual se percebe a influência de concepções orientais e de correntes esotéricas, marcará o pensamento de santo Agostinho e, através dele, o de toda a Idade Média. O neoplatonismo do Renascimento, particularmente graças aos trabalhos de Marsílio Ficino, irá revalorizar as grandes intuições plotinianas, cujos vestígios podem ser encontrados até o século XIX, no idealismo e no romantismo alemão.” – LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura. Textos essenciais. Vol. 4: O belo. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 26-27.

“Plotino (205-270 d.C.), nas Enéadas, também distingue a beleza das coisas materiais daquela que se contempla no mundo supra-sensível. Com os olhos naturais, segundo o filósofo neoplatônico, percebemos a beleza natural; com os olhos da alma, miramos as belezas mais elevadas e abandonamos o ilusório e enganoso terreno dos sentidos (Enéadas, I, 4). Com Plotino minimiza-se um pouco a idéia de participação e se acentua a dualidade entre o uno, percebido pela inteligência, e o múltiplo, identificado com as coisas materiais. Em Platão, o sensível é mímese do inteligível, porque o imita sem jamais igualá-lo, razão pela qual, em sua Teoria das Idéias, há mais dualidade do que propriamente dualismo entre o sensível e o inteligível, e mais gradação do que separação entre a beleza física e a espiritual. Em Plotino, o mundo material das belezas corporais parece relegado mais decisivamente a ser imagem, traço, sombra, espectro da verdadeira beleza. Por isso, o homem deve habituar sua alma à contemplação das belas ocupações, das belas obras, e especialmente das almas daqueles que realizam essas belas obras. De toda forma, para Plotino a beleza atrelada ao bem (ordem moral) é também um imperativo. Por isso, o símbolo maior da feiúra é a alma dissoluta e injusta, cheia de concupiscências e desequilíbrios – alma covarde, mesquinha, invejosa, infectada pelo deleite dos prazeres impuros das paixões corporais (Enéadas, I, 5). Com Plotino já está esboçada a tríade que marcará profundamente todo o pensamento medieval: Unum, Verum, Bonum. A beleza decorre da consideração desses transcendentais. Tais esferas de valor estavam integradas, completavam-se e não podiam separar-se. Por fim, para contemplar retamente a beleza – das criaturas e da natureza – haveria uma única exigência por parte da mente contemplativa (muito mais tarde definida belamente por Dante Alighieri [1265-1321]): um olhar claro e uma mente pura (“con occhio chiaro e con affetto puro”, Paraíso, Canto VI, 87).” – COSTA, Ricardo da. “Ramon Llull e a Beleza, boa forma natural da ordenação divina”. In: Revista Sofia 2006, número 1. Vitória: Edufes, 2006.

17 GREGÓRIO DE NISSA (335-394). Sobre a criação do homem. In: BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 104-105.

18 “Desde os pré-socráticos, muitos pensadores gregos equipararam „linguagem‟ e „razão‟: ser um „animal racional‟ significava, em grande parte, ser „um ente capaz de falar‟ e, ao falar, refletir o universo. Deste modo o universo podia falar, por assim dizer, de si mesmo, através do homem. A linguagem equivalia à estrutura da realidade. Desde os começos da „filosofia da linguagem‟, vemos até que ponto estão estreitamente unidas a questão da

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produzem suas melodias consoante a natureza dos instrumentos: não usam a lira para tocar flauta, nem a flauta para tocar cítara; de modo semelhante, a conformação dos órgãos teria que adaptar-se à fala, para que esta se produzisse com toda a naturalidade através dos órgãos vocais. É por isso que o corpo foi dotado de mãos. Sem dúvida, os peritos nas artes da paz e da guerra poderiam nomear um sem-número de funções vitais dependentes do emprego das mãos, órgãos tão hábeis quanto úteis, mas a natureza deu-as ao corpo principalmente em atenção à linguagem. Pois se o homem estivesse privado de mãos, a forma do seu rosto deveria ser inteiramente semelhante a dos animais, a fim de poder desempenhar as funções nutritivas: terminaria em ponta, estreitando-se na parte do nariz; os lábios seriam salientes, calosos e grossos, para poderem arrancar a forragem; a língua situar-se-ia na parte interna da dentadura e seria diferentemente constituída, isto é, carnosa, resistente e áspera, para assistir aos dentes na trituração dos alimentos; ou então seria úmida e delgada nas bordas externas, como nos cães e outros animais carnívoros, nos quais ela se derrama pelos interstícios dos dentes agudos. Portanto, se o corpo não dispusesse de mãos, como poderia ele produzir a voz articulada, já que a formação dos órgãos da boca seria imprestável para a formação dos fonemas? Nada restaria ao homem senão balar19, ou berrar e rinchar, ou emitir bramidos à maneira dos bois e dos burros, ou produzir algum outro som semelhante aos dos brutos. Mas já que o corpo foi provido de mãos, a boca torna-se livre para servir de instrumento para a linguagem. Quem não vê que as mãos são uma propriedade característica da natureza dotada de linguagem, pois foi este meio que o Criador a tornou apta para o discurso? Tendo presenteado as suas criaturas com um dom divino, o Criador depositou em sua imagem as semelhanças dos seus próprios bens. Por isso, beneficiou-nos também, por pura bondade, com os demais bens. Do nous20 e do entendimento não se pode dizer que tenham sido propriamente doados, senão que foram “condoados”, ao proporcionar Deus à imagem o ornato de sua própria natureza. Todavia, em vista do caráter espiritual e incorpóreo do nous, este dom de nada lhe aproveitaria para a sociedade e o intercâmbio mútuo, a não ser que se encontrasse um meio de manifestar-lhe os movimentos. Era-lhe necessário, pois, tal instrumento orgânico, que lhe possibilitasse tanger os órgãos vocais à maneira de uma cítara, e expressar os movimentos internos pela articulação exata dos sons. Assim como o músico que, tendo perdido a própria voz em conseqüência de alguma enfermidade, deseja exibir a sua arte, faz executar os seus hinos por vozes estranhas, e passa a usar da flauta ou

linguagem e a da realidade enquanto realidade. Não obstante as diferenças entre Heráclito e Parmênides, ambos concordavam, pelo menos, em considerar a linguagem como um aspecto da realidade: a „realidade falante‟.” – FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia, op. cit., p. 240-241.

19 Balar – Soltar balidos (berros de ovelha). 20 “Nous (gr., mente). Razão e, em especial, a faculdade de apreensão intelectual, distinta do mero conhecimento

empírico. Para Platão, o nous é a qualidade que permite apreender as formas. Aristóteles distinguiu o nous pathetikos (razão passiva) do nous mais elevado, o aspecto imortal da alma que está para a nous pathetikus como a forma está para a matéria.” – BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 269.

“A alma ou nous humano é inseparável do corpo por ela habitado e informado, ainda mesmo que ele se decomponha em seus elementos. Como se vê, Gregório baseia-se na idéia de um paralelismo entre o nous humano e o nous divino” – BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 97.

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do alaúde para manifestar a sua perícia, assim o espírito humano, este inventor de toda sorte de pensamentos, faz soar, qual músico habilidoso, os órgãos vivos de sua voz, servindo-se do seu timbre para exprimir seus pensamentos ocultos, já que não lhe é dado transmiti-los pela alma sozinha aos que não chegam ao conhecimento salvo pelas percepções corporais.21

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5. AGOSTINHO (354-430) e a Verdade: “Existo, logo penso” – 3 Extratos.22 – Tu, que desejas conhecer-te, sabes que existes? – Não sei. – És um ser simples ou composto? – Não sei. – Sabes que te moves? – Não sei. – Sabes que pensas? – Sei. – Logo, é verdade que pensas. – Certamente. Solilóquios, II, I, 1. Quem duvidará que vive, que recorda, que entende, que quer, que pensa, que sabe e que julga? Pois se duvida, vive; se está em dúvida acerca daquilo de que duvida, lembra-se (ou tem consciência disso); se duvida, sabe que está duvidando; se duvida, é porque quer ter certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não se deve assentir temerariamente. E ainda que se pudesse duvidar de tudo o mais, disto não se pode duvidar. Caso contrário, já não haveria do que duvidar, o que tornaria impossível a própria dúvida. Da Trindade, X, 10; 981.23

21 “Através dos sentidos, o mundo externo age sobre o nous; pela linguagem, o nous age sobre o mundo externo.

Pois é por meio dela que se manifesta a atividade espiritual interior. A linguagem serve para lançar pontes entre os homens, cujos espíritos não podem perceber senão o que lhes vem pelos sentidos.” – BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 100.

22 AGOSTINHO (354-430). Extratos. In: SARANYANA, Josep-Ignasi. La Filosofía Medieval. Desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca. Pamplona: Eunsa, 2003, p. 75; BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 150; SANTO AGOSTINHO. O Livre Arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia, 1986, p. 87-88.

Para Agostinho, “...a filosofia é o amor à sabedoria, e a sabedoria não é outra coisa que a contemplação e a posse da verdade: „O próprio nome da filosofia expressa uma grande coisa que deve ser amada com todo afeto, pois significa amor e desejo ardente da sabedoria‟ (AGOSTINHO, De moribus Ecclesiae catholicae, I, 21, 38). Definir a filosofia como a investigação ou estudo da verdade visando à posse da sabedoria não significa apenas um estudo especulativo, mas uma investigação que busca a vida feliz, a felicidade: „Por acaso pensas que a sabedoria é outra coisa que a verdade, na qual se contempla e se possui o sumo bem?‟ (AGOSTINHO, De libero arbitrio, II, 9, 26). Sabedoria e verdade, portanto, se identificam. Alcançá-las implica obter o sumo bem, possuir a felicidade. Por essa razão, a busca da sabedoria, da verdade, é também a busca da felicidade, que é o fim último a que tende todo homem, algo reconhecido por todos os filósofos, e no qual todos coincidiram: „Comumente todos os filósofos, com seus estudos, sua investigação, disputas e ações, buscam a vida feliz. Aqui está a única causa da filosofia. Penso que os filósofos têm isso em comum conosco‟ (AGOSTINHO, Sermo, CL, 4).” – In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval. Madrid: Akal, 2002, p. 27-28.

23 “Tenha-se em mente que Santo Agostinho pretende mostrar a existência do mundo extramental (reduzido ao caso limite da existência do eu pensante) a partir da operação de pensar, que exige um sujeito. Descartes, por um método semelhante, pretende fundamentar a evidência de uma idéia que conduzirá à recuperação da realidade extramental. Agostinho parte da realidade extramental para mostrar, via pensamento, que sua não existência

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Quem não existe, não pode se enganar. Por isso, se me engano, existo. Logo, se existo porque me engano, como posso enganar-me, crendo que existo, quando é certo que existo se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, enquanto conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, enquanto conheço que me conheço, não me engano. Como conheço que existo, assim conheço que conheço. A Cidade de Deus, XI, 26; 551, 6 s. Agostinho – Investiguemos, pois, se estás de acordo, por esta ordem: primeiramente, o modo

como se torna evidente que Deus existe; depois, se d‟Ele procedem todas as coisas, precisamente enquanto são boas; finalmente, se a vontade livre deve ser contada entre as coisas boas. Averiguados estes pontos, ver-se-á claramente, segundo penso, se a vontade livre foi legitimamente dada ao homem. Assim, pois, e para partirmos de verdades perfeitamente evidentes, pergunto-te, antes de tudo, se tu mesmo existes. Ou receias porventura enganar-te a respeito desta pergunta, quando, se não existisses, de modo nenhum te poderias enganar?

Evódio – Passa já a outras considerações. Agostinho – Por conseguinte, sendo evidente que existes, e que isso não seria para ti evidente de

outra maneira, se não vivesses, também e evidente isto – que tu vives. Inteleccionas que estas duas realidades são evidentíssimas?

Evódio – Intelecciono perfeitamente. Agostinho – Logo, é também evidente esta terceira realidade, a saber, que tu inteleccionas. Evódio – É evidente. Agostinho – Qual dentre essas três realidades se te afigura prevalecer? Evódio – A inteligência. Agostinho – Porque te parece isso? Evódio – Porque, sendo três essas realidades – existir, viver, inteleccionar – a pedra também

existe, e o animal vive. Apesar disso, não é minha opinião que a pedra viva ou que o animal inteleccione. Em contraposição, é certíssimo não só que existe o ser que intelecciona, mas também que vive. Por isso, o ser em que se reúnem as três realidades, não hesito em o dijudiciar mais excelente que outro a que faltem as duas, ou uma que seja...

O Livre Arbítrio, Livro II, III, 7.24

seria um absurdo (sum, ergo cogito). Descartes questiona sua existência para recuperá-la pela via do pensamento (cogito, ergo sum). Há, talvez, coincidência no método; mas os propósitos e pontos de partida são totalmente diferentes.” – SARANYANA, Josep-Ignasi. La Filosofía Medieval. Desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca, op. cit., p. 75.

24 “Verdade é o êxito de um procedimento cognoscitivo, no qual se constrói uma correspondência – por mais difícil e esquiva que seja a verdade daquilo que oferecem os testemunhos de uma época. Segundo Aristóteles, „Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade‟ (ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 ss., V, 29, 1024 b, 25). Também é verdade que apreender a realidade a partir das fontes é um trabalho difícil. O historiador vive com esse problema diante de si (DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 1993, p. 34). Um conhecimento é verdadeiro na medida em que seu conteúdo concorda com o objeto intencionado (...) para os estudos históricos, o conceito de verdade deve ser um conceito relacional: quanto maior o número de comparações evidenciais mais preciso será o resultado. Esta teoria é também chamada teoria da verdade como correspondência (BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 401-404), e determina e precisa o conceito de verdade como aquilo que possui conformidade entre o intelecto e a coisa (HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 23). Embora para os historiadores não seja possível reconstituir completamente o evento (ou processo) analisado – como prega a doutrina da correspondência (BLAKE, Christopher. “Poderá a História Ser Objectiva?”. In: GARDINER, Patrick [org.]. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 416-417) –, a correspondência é obtida, ou boa parte da realidade é

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6. BOÉCIO (c. 470-524) e seu encontro com a Filosofia, na Consolação da Filosofia.25 I.2. Enquanto meditava silenciosamente essas coisas comigo e confiava aos meus manuscritos minhas queixas lacrimosas, vi aparecer acima de mim uma mulher que inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e revelavam uma clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma força inexaurível. Ela parecia ter vivido tantos anos que não era possível que fosse do nosso tempo. Sua estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras parecia atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos céus e desaparecia dos olhares humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos fios, trabalhados minuciosamente e feitos de um material perfeito; ela revelou mais tarde ter sido ela própria quem teceu a veste.26 A poeira dos tempos, assim como acontece com o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor. Embaixo de sua imagem estava escrito um Pi e em cima um Theta.27 E, entre essas duas letras, via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento inferior ao superior. No entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma tomou um pedaço dela. Mas ela tinha livros na mão direita e um cetro na esquerda. Quando viu as Musas da poesia junto a mim, cantando versos de dor, ficou muito perturbada e, lançando-lhes olhares inflamados de cólera, disse: “Quem permitiu a estas impuras amantes do teatro aproximarem-se deste doente? Elas não só não podem remediar a sua dor como vão ainda acrescentar-lhe doces venenos (...) Afastai-vos, Sereias de cantos mortais, e deixai que eu e minhas próprias Musas curemos esse doente”.

(...) Quanto a mim, estava com os olhos tão cheios de lágrimas que não podia discernir essa mulher que tinha tanta autoridade; calado, atirei-me ao solo e esperei em silêncio o que ela iria fazer.

(...) I.4. E, fixando-me com toda a intensidade de seus olhos, ela me disse: “Mas és tu que outrora foste nutrido com nosso leite, com nosso alimento, que se exercia com uma força viril? E, no entanto, tínhamos te fornecido todas as armas necessárias para venceres, perdeste-as por tua culpa, e com elas vencerias! Tu me reconheces? Por que te calas? É a vergonha ou o abatimento? Oxalá fosse a vergonha! Mas não, é o abatimento que te oprime. (...) Ajudemo-lo. Comecemos por abrir seus olhos, que se cegaram pelas coisas humanas”. Tendo dito isso, ela enxugou com um pedaço de suas vestes os meus olhos inundados de lágrimas. I.5. Então se dissiparam as trevas noturnas, e, aos meus olhos, foi dada a capacidade de discernir novamente a luz. (...)

(...)

revivida, através da confrontação dos testemunhos da época.” – COSTA, Ricardo da. “Entre o Realismo e o Interpretismo: uma proposta alternativa de teoria histórica”, Internet, www.ricardocosta.com/pub/entre.htm

25 BOÉCIO (c. 470-524). A Consolação da Filosofia (trad. do latim por Willian Pi). São Paulo: Martins Fontes, 1998. 26 Os delicadíssimos fios de sua roupa são, metaforicamente, a capacidade dialética de argumentação da Filosofia. 27 Abreviaturas das palavras “Prática” e “Teoria”. “...o Theta era então a marca infamante impressa na carne dos

condenados à morte, para distingui-los dos outros prisioneiros. Boécio sofreu essa queimadura. No símbolo que orna as vestes sagradas da Visitante, como não ver a ligação entre a condenação à morte e a ascensão espiritual de que ela é o ponto de partida?” – FUMAROLI, Marc. “Prefácio”. In: BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. XXVI.

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I.6. E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz celeste e recebi o discernimento para contemplar aquela face. E, mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz, que desde a adolescência freqüentava a minha mente: era a Filosofia.

(...) E ela disse: “Haveria eu de abandonar meu discípulo e não tomar também do fardo que suportas e da calúnia que te impuseram? Mas à Filosofia não é lícito deixar caminhando sozinho um discípulo seu. (...) Achas que esta é a primeira vez que a Sabedoria se confronta com os perigos e as más ações dos homens? E também não foi assim aos antigos, antes da época de nosso caro Platão, quando tivemos grandes embates com o perigo da estultícia? E na sua época não estava lá Sócrates que, vencendo uma morte injusta, foi levado por mim à imortalidade? (...) O que os levou a serem malvistos foi que, imbuídos de meus princípios morais, eles eram totalmente distintos da turba.” Portanto, não é de surpreender se neste oceano da vida somos perturbados por muitas tempestades, principalmente se desejamos afastar-nos dos homens maus. E seu número, embora grande, deve ser desprezado, pois eles não têm guia algum que os dirija, e ficam na ignorância, que os deixa ao capricho da Fortuna.28

(...) I.10. Quando acabei de gemer minhas mágoas, ela, com seu semblante tranqüilo e sem se deixar comover por minhas palavras, disse: “Bastou-me ver tua tristeza e tuas lágrimas para compreender que sofrias no exílio. Mas não poderia saber quão distante é o exílio, a menos que me narrasses. No entanto, não foste expulso de tua pátria, mas te desviaste dela. Ou, se preferes ser considerado como banido, foste tu mesmo que te baniste.” “De fato, não podias ser banido por ninguém. Se te lembrasses de tua verdadeira pátria, saberias então que ela não era, como a Atenas de outros tempos, governada pela opinião da maioria, mas por „um só mestre e um só rei‟29, que se alegra com o crescimento de seu povo, não com o banimento. De fato, deixar-se guiar e frear por ele e obedecer à sua justiça: nisso consiste a verdadeira liberdade.” (...)

28 Como veremos nos extratos seguintes, Boécio lega à Idade Média o tema da Fortuna – a fortuna imperatriz mundi.

Entre os romanos, a Fortuna era uma divindade alegórica que representava o acaso. Presidia a todos os acontecimentos, distribuindo os bens e os males segundo sua cega vontade. Assumia diferentes designações: Fortuna Virilis (invocada pelos homens), Fortuna Muliebris (invocada pelas mulheres). No período imperial, uma estatueta de ouro da deusa presidia o dormitório dos imperadores. Outro bom exemplo é a coleção anônima de canções profanas denominada Carmina Burana (c. 1300, e provenientes da abadia bávara de Benedictbeuern) que, por tradição, transmite a obra do Arquipoeta (latino anônimo, †1165). Provavelmente da Renânia, patrocinado pelo arcebispo de Colônia e chanceler de Frederico Barba-Ruiva, Reinaldo de Dassel, a obra mais famosa do Arquipoeta, Confessio, expressou o brilho da Renascença cultural do século XII, com sua confiança na razão e na natureza. Nela sobressaem-se vigorosos impactos rítmicos, e, em duas canções (CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca estabilidade da Fortuna, que, com seu sobe-e-desce, traz alegrias e desgraças aos homens: “I. O Fortuna / velut luna / statu variabilis / semper crescis / aut decrescis / vita detestabilis / nunc obdurat / et tunc curat / ludo mentis aciem / egestatem / potestatem / dissolvit ut glaciem.” (Ó Fortuna / tal a Lua / uma forma variável! / Sempre enchendo / Ou encolhendo / ó que vida execrável! / Pouco duras / quando curas / de nossa mente as mazelas / a pobreza / a riqueza / tu derretes ou congelas). “II. Sors immanis / et inanis / rota tu volubilis / status malus / vana salus / semper dissolubilis / obumbrata / et velata de / michi quoque niteris / nunc per ludum / dorsum nudum / fero tui sceleris.” (Bruta sorte / és de morte / tua roda é volúvel / benfazeja / malfazeja / toda sorte é dissolúvel / Disfarçada / boa fada / minha ruína sempre queres / simulando / estar brincando / minhas costas nuas feres).

29 HOMERO, Ilíada.

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(...) I.13. Escondidas por negras nuvens As estrelas não podem emitir nenhuma luz. Se, na superfície do mar, o virulento Austro sacode as ondas30 Cuja transparência tem o aspecto do brilho do céu, Sob uma negra fusão de areia e lama extinguem-se seus fogos. A torrente que vai desbastando os cumes das altas montanhas Freqüentemente se choca contra um rochedo. Tu também, se queres, com uma luz límpida discernir a verdade, Renuncia à alegria, afasta os prazeres e também a dor. O espírito fica nebuloso e aprisionado quando está sob seu jogo.31

***

7. PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA (séc. V) e a Dádiva da Luz, na Hierarquia Celeste, cap. I.32

Todo bom dom e toda dádiva perfeita vem de cima, descende do Pai das luzes.33 Mais ainda: a Luz procede do Pai, se difunde copiosamente sobre nós e, com seu poder unificador, nos atrai e nos leva para o alto, fazendo-nos retornar à deificante simplicidade una do Pai, congregando-nos n‟Ele, porque d‟Ele e para Ele são todas as coisas, como diz a Escritura.34 Assim, invoquemos a Jesus, Luz do Pai, “Luz verdadeira que, vindo a este mundo, ilumina todo homem”35, e é “por quem obtemos acesso”36 ao Pai, Luz, fonte de toda luz. Fixemos nosso olhar o melhor que pudermos nas luzes que os Padres nos transmitem através das Sagradas Escrituras; enquanto nos for possível, estudemos as hierarquias dos espíritos celestes, conforme a Sagrada Escritura nos revelou, de modo simbólico e anagógico.37 Centremos fixamente o olhar imaterial do entendimento na Luz mais transbordante que fundamental, que se origina no Pai, fonte de toda

30 Austro – Entre os antigos, o vento do sul. 31 Alteramos a metrificação do poema. Ademais, é fundamental levar em consideração que a poesia era, tanto para

a tradição clássica quanto a medieval, a quinta essência da expressão inteligível, a própria manifestação da verdade. Por exemplo, Aristóteles considerou a capacidade cognoscitiva de imitação da Poética com um valor superior à imitação historiográfica (Poética, 6, 1448 b 5-14), o que equivalia colocar a Poesia na esfera da verdade filosófica.

32 PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA (séc. V). La Jerarquia Celeste. In: Obras Completas. Madrid: BAC, MCMXCV, p. 119-122.

33 A luz é portadora de inteligibilidade, tanto para os neoplatônicos quanto na Bíblia (Gn 1, 3-4; Ex 24, 17, por exemplo)

34 “Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente.” Rm 11, 36. 35 Jn 1, 9. 36 Rm 5, 2; Ef 2, 18; 3, 12. 37 “A Idade Média recebeu dos Padres da Igreja e dos doutores cristãos da Antigüidade um método de

interpretação dos textos conhecido com o nome de doutrina dos quatro sentidos da Escritura. Sua elaboração responde a uma poderosa obrigação intelectual (...) Dentro dessa teoria se distingue o sentido histórico ou literal, que é o que tem o texto de maneira óbvia e evidente; remete a um fato ou a uma dada situação histórica. Não há nisso nenhum mistério. O sentido alegórico é a verdade religiosa geral ou o artigo da fé que o episódio anterior sugere ou anuncia. O terceiro sentido, que se chama moral ou tropológico, é o que pode tomar um texto quando o cristão tenta pôr na prática de sua vida a lição do texto. O quarto, o sentido anagógico, é o da mesma passagem, mas com respeito à vida futura, à que se seguirá à morte ou ao fim do mundo.” – PAUL, Jacques. Historia Intelectual del Occidente Medieval. Madrid: Catedra, 2003, p. 39-40.

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Divindade. Por meio de figuras simbólicas, as bem-aventuradas hierarquias angélicas nos são ilustradas. Mas elevemos-nos sobre esta profusão luminosa até o puro Raio de Luz em si mesmo. Naturalmente, este Raio de Luz não perde nada de sua própria natureza, nem de sua íntima unidade. Mesmo quando atua e se multiplica exteriormente – como é próprio de sua bondade, para enobrecer e unificar os seres que estão sob sua providência38 – permanece interiormente estável em si mesmo, absolutamente firme em sua imóvel identidade. Dá a todos, na medida de suas forças, o poder de elevarem-se e unirem-se a Ele, de acordo com sua própria simplicidade. Contudo, este Raio divino não poderá nos iluminar se não estiver espiritualmente velado na variedade de figuras sagradas, acomodadas ao nosso modo natural e próprio, conforme a paternal providência de Deus. Por isso, nossa sagrada hierarquia foi estabelecida por disposição divina à imitação das hierarquias celestes, que não são deste mundo. Mas as hierarquias imateriais se revestiram de múltiplas figuras e formas materiais para que, conforme nossa maneira de ser, elevássemos-nos analogicamente desde estes signos sagrados até a compreensão das realidades espirituais, simples, inefáveis. Nós, homens, não poderíamos de modo algum elevar-nos pela via puramente espiritual para imitar e contemplar as hierarquias celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiassem, como requer nossa natureza. Qualquer pessoa que reflita se dá conta que a aparente formosura é sinal de mistérios sublimes; o bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual39; as luzes materiais são imagem da copiosa efusão de luz imaterial; as diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa capacidade contemplativa da mente; as ordens e graus sagrados daqui de baixo simbolizam as harmoniosas relações do Reino de Deus; a recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da participação em Jesus, e o mesmo ocorre com os seres do Céu que, de modo transcendente, recebem os dons, dados simbolicamente a nós. A fonte de perfeição espiritual nos proveu de imagens sensíveis que correspondem às realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua semelhança. Deu-nos a conhecer as hierarquias celestes; instituiu o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste; enquanto é possível humanamente, em seu divino sacerdócio, revelou-nos tudo isso por meio das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos espiritualmente desde o sensível e conceitual através de símbolos sagrados, até o simplíssimo cume daquelas hierarquias celestes.

***

38 Idéia extraída de Proclo (In Parm. 6, 231). 39 “Há muitas histórias sobre a força vital de fragrâncias: Demócrito teria sobrevivido três dias inalando o cheiro

de pães quentes. Nos escritos sagrados de Mandeus fala-se de uma árvore da vida, no sul da Mesopotâmia, de que se diz: eu sou a videira da vida, a árvore do louvor, de cujo aroma qualquer um revive ao respirá-lo” – TER REEGEN, Jan. G. J. De pomo sive. De morte Aristotelis. Sobre a maçã ou Sobre a morte de Aristóteles (apres., introd. e notas de Jan G. J. Ter Reegen). Fortaleza: edUECE, 2006, p. 75, nota 18.

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8. JOÃO ESCOTO ERÍGENA (c. 815-885), a Natureza, a Razão e a Autoridade, na Divisão da

Natureza, Livro I.40

Mestre – Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que posso a primeira e suprema divisão de todas as coisas que ou estão ao alcance de nossa mente ou a superam, as coisas que são e as que não são, veio-me à mente, como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura.41 Por acaso pensas tu de outra maneira?42 Discípulo – Não. Estou totalmente de acordo, pois eu também, quando me ponho a raciocinar, penso que as coisas são assim. Mestre – Ficamos então de acordo que o nome de natureza é o nome geral tanto para as coisas que são como para as que não são? Discípulo – Sim, pois nada pode apresentar-se ao nosso pensamento a que não possa aplicar-se este nome. Mestre – Já que estamos de acordo que este termo é geral, dize-me, te rogo, como se faz a divisão em espécies e por diferenças43: ou, se preferes, procurarei eu fazer tal divisão e tu darás depois tua opinião a respeito. Discípulo – Começa então, pois estou impaciente para ouvir de ti a verdadeira opinião sobre esta matéria. Mestre – Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em quatro espécies: a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada; a segunda, na que é criada e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a quarta, na que não cria e não é criada. Mas nestas quatro há dois pares de opostos: a terceira se opõe à primeira, e a quarta à segunda; porém, a quarta fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de sua essência o não poder ser. Parece-te bem feita esta divisão ou não? Discípulo – Parece-me bem feita. Tenha, porém, a bondade de repeti-la, para que fique mais clara a oposição entre estas formas. Mestre – Creio que vês a oposição da terceira divisão com relação à primeira (a primeira, com efeito, é a que cria e não é criada: à qual, portanto, põe-se como contrária à que é criada e não

40 JOÃO ESCOTO ERIÚGENA (c. 815-885). A Divisão da Natureza. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia

Medieval – Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 75-83. 41 O conceito de natureza como o princípio de vida (ou substância) e de movimento de todas as coisas existentes tal como se

baseia Escoto Erígena está fundamentado em Aristóteles: “A natureza é o princípio e a causa do movimento e do repouso da coisa à qual ela inere primariamente e por si, não por acidente” (Física, II, 1, 192 b 20). A exclusão da acidentalidade distingue a obra da natureza da obra do homem. Contudo, a natureza não é somente causa, mas causa final (Física, II, 8, 199 b 32): é a tese do finalismo na natureza, que também se encontra na obra de Escoto Erígena.

42 “Natureza é, portanto, o termo mais apto para designar toda a realidade, compreendendo nele tanto as coisas que são como as que não são, o ser e o não-ser, tanto as que podem ser conhecidas pela mente humana como as que superam sua possibilidade de conhecê-las” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval. Madrid: Akal, 2002, p. 99.

43 Espécie – conceito que é parte ou elemento de outro conceito, empregado por Platão, Aristóteles e na Isagoge de Porfírio: “Espécie é o que se situa sob o gênero e a que o gênero é atribuído essencialmente” (Isagoge, 4, 10).

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cria), e a oposição da segunda com relação à quarta, já que a segunda é da que é criada e cria, à qual, por conseguinte, opõe-se em toda a linha à quarta, a da que não cria e nem é criada. Discípulo – Percebo-as claramente. Porém, deixa-me muito perplexo a quarta espécie que introduziste. Das outras três não me atreveria a apresentar qualquer dúvida, já que na primeira está designada, se não me engano, a causa de tudo quanto existe e de que não existe; na segunda, as causas primordiais; na terceira, aquelas coisas que se manifestam através de geração no tempo e no espaço. Por isso, penso que é necessário partir para uma discussão mais detalhada de cada espécie. Mestre – E pensas bem. Deixo, porém, à tua escolha determinar a ordem que devemos seguir no raciocínio, isto é, por qual espécie de natureza devemos começar. Discípulo – Parece-me que está fora de dúvida que devemos dizer da primeira, antes que de todas as demais, o que a luz que ilumina a toda mente se digne comunicar-nos. Mestre – Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas palavras a respeito desta que chamamos a divisão suprema e principal de todas, a saber, a divisão entre as coisas que são e as que não são. Discípulo – Parece-me muito razoável e prudente. Com efeito, não vejo outro princípio de onde deva partir nosso raciocínio, não somente porque se trata da primeira diferenciação, mas porque parece mais obscura que as demais, e de fato o é. Mestre – Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coisas requer cinco modos de interpretação. O primeiro parece ser aquele pelo qual a razão nos persuade de que todas as coisas que caem sob a percepção dos sentidos corporais ou da inteligência se dizem com a verdade e racionalmente que são e, ao contrário, as que pela excelência de sua natureza escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo entendimento e razão, parecem com razão que não são, o que não tem reta interpretação senão só em Deus e nas razões e essências de todas as coisas por ele criadas. E com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita, é essência de todas as coisas aquele que é o único que verdadeiramente é, “pois – diz ele – o ser de todas as coisas é a divindade que está sobre o ser”.44

(...) Mestre – Assim, a verdadeira autoridade não se opõe à reta razão, nem a reta razão à verdadeira autoridade. Pois não há dúvida alguma que ambas dimanam de uma só fonte, a sabedoria divina.45

(...) Mestre – Que nenhuma autoridade te separe daquelas coisas que a razoável persuasão da reta contemplação te ensinou.46

(...)

44 PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA, Da hierarquia celeste, IV, 1. 45 “Vera enim auctoritas rectae rationi non obsistit, neque recta ratio verae auctoritati. Ambo siquidem ex uno

fonte, divina videlicet sapientia, manare dubium non est.”, Da divisão da natureza, I, 66. In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 92.

46 “Nulla itaque auctoritas te terreat ab his quae rectae contemplationis rationabilis suasio edocet.”, Da divisão da natureza, I, 66. In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 92.

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Mestre – Aprendemos que a razão é, por natureza, anterior, enquanto a autoridade é pelo tempo. Pois ainda que a natureza tenha sido criada simultaneamente com o tempo, a autoridade não começou a ser desde o início do tempo e da natureza. A razão, contudo, nasceu desde o princípio das coisas, com a natureza e o tempo. Discípulo – Isso nos ensina a própria razão. Pois a autoridade procede da reta razão, mas a razão nunca da autoridade. Toda autoridade que não seja dada como boa pela reta razão parece que está enferma. Em contrapartida, a verdadeira razão, por subsistir imutável e fundada nas virtudes, não precisa ser corroborada pela confirmação de nenhuma autoridade. Assim, nada me parece ser a verdadeira autoridade a não ser a verdade descoberta por virtude da razão, e consignada pelos santos padres em seus escritos para proveito da posteridade.47

(...) Mestre – Assim, devemos seguir a razão que investiga a verdade das coisas e que não é oprimida por nenhuma autoridade, para que ela manifeste publicamente e difunda aquilo que no âmbito de sua inquirição buscou com afã, e que, laboriosamente encontrou.48

***

9. ANSELMO DE AOSTA (de Bec ou de Canterbury, 1033/34-1109) e o Argumento Ontológico, no Proslógio, II.49

Então, oh, Senhor, Tu que dás a inteligência da fé, dá-me, para que eu saiba, o que é necessário para entender que Tu existes tal como cremos, e que és o que cremos. E certamente cremos que Tu és algo maior do qual nada mais pode ser cogitado. Mas e se não existe tal natureza, como quando diz o insipiente50 em seu coração “não existe Deus”?51

47 “Mag.: Rationem priorem esse natura, auctoritatem vero tempore didicimus. Quamvis enim natura simul cum

tempore creata sit, non tamen ab initio temporis atque naturae coepit esse auctoritas. Ratio vero cum natura ac tempore ex principio rerum orta est. Disc.: Et hoc ipsa ratio edocet. Auctoritas siquidem ex vera ratione processit, ratio vero nequaquam ex auctoritate. Omnis enim auctoritas, quae vera ratione non approbatur, infirma videtur esse. Vera autem ratio, quoniam suis virtutibus rata atque inmutabilis munitur, nullius auctoritatis astipulatione roborari indiget. Nil enim aliud mihi videtur esse vera auctoritas, nisi rationis virtute reperta veritas, et a sanctis Patribus ab posteritatis utilitatem litteris comendata.”, Da divisão da natureza, I, 69, In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 93.

48 “Nunc enim nobis ratio sequenda est, quae rerum veritatem investigat, nullaque auctoritate opprimitur, ne ea quae et studiose ratiocinantium ambitus inquirit et laboriose invenit, publice aperiat atque pronuntiet.”, Da divisão da natureza, I, 63, In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 93.

49 In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 127-128. “Eadmero (seu discípulo e biógrafo) nos fala de sua laboriosa e dramática gestação. Anselmo „encontrou

nessa investigação, como ele mesmo contava, uma grande dificuldade. Esse pensamento lhe tirava o apetite e o sonho e, o que era ainda pior, lhe impedia de pôr a devida atenção nas vigílias e demais exercícios de piedade. Deu-se conta disso e, não tendo nada mais que uma idéia confusa do fim que perseguia, imaginou que essa idéia, objeto de suas preocupações, era uma tentação do demônio, e fez todos os esforços para tirá-la de seu espírito. Mas quanto mais tentava rechaçá-la, mas ela a perseguia. Uma noite em que não podia dormir, a graça de Deus brilhou em seu coração: o que buscava se manifestou à sua inteligência e encheu seu coração de uma alegria e um júbilo extraordinários‟ (Vita Anselmi 1, 26). Diz também Eadmero que é um „livro pequeno no tamanho, mas grande pelo peso dos pensamentos e de uma contemplação muito sutil; chamou-o Proslogium, porque nele se entretêm com Deus ou consigo mesmo.” – M. COLOMBÁS, García. La Tradición Benedictina. Ensayo histórico. Tomo tercero: Los siglos VIII-XI. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1991, p. 561-562.

50 Em seu sentido literal: aquele que não tem sabedoria, que ignora. 51 Sl 13, 1.

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No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer “algo maior do qual nada pode ser cogitado”, entende o que ouve, e o que entende está em seu intelecto, embora não entenda que isso exista. Pois uma coisa é a coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe. Porque quando o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no intelecto, mas ainda não entende que exista o que ainda não fez. Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o que fez. Portanto, o insipiente deve convencer-se que, ao menos em seu intelecto, existe algo maior do qual nada pode ser cogitado, porque, quando ouve isso, entende e, tudo o que se entende, está no intelecto.52 No entanto, aquilo maior do qual nada pode ser cogitado não pode existir somente no intelecto, pois se só existe no intelecto, pode pensar-se algo que seja maior e que também exista na realidade.53 Assim, se aquilo maior do qual nada pode ser cogitado só existe no intelecto, este mesmo ser, do qual nada maior pode ser cogitado, tornar-se-ia o ser do qual é possível pensar algo maior, mas certamente isso é absurdo.54 Portanto, existe, sem dúvida, algo maior do qual nada pode ser cogitado, tanto no intelecto quanto na realidade.55

52 Em outras palavras: uma coisa é maior se existente na inteligência e na realidade do que uma coisa existente

apenas na inteligência. “O que deve ser considerado em primeiro lugar é que Anselmo afirma a existência da idéia de Deus inclusive no insipiente, o ignorante: até ele tem a idéia de Deus para poder negar sua existência, pois não poderia negá-la se carecesse do conceito de Deus ou se não compreendesse o que significa essa idéia” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 128.

53 Ou seja, uma coisa é certamente maior se é pensada como existente na inteligência e na realidade do que somente na inteligência.

54 Outra tradução dessa frase: “Se, portanto, „o ser do qual não é possível pensar nada maior‟ existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo.” – SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA. “Proslógio” (trad. e notas de Angelo Ricci). Os Pensadores VII. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 108.

55 “Ergo, Domine, qui das fidei intellectum, da mihi, ut quantum scis expedire intelligam, quia es sicut credimus, et hoc es quod credimus. Et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari potest. An ergo non est aliqua talis natura, quia dixit insipiens in corde suo: non est Deus? Sed certe idem ipse insipiens, cum audit hoc ipsum quod dico: aliquid quo maius nihil cogitari potest, intelligit quod audit; et quo intelligit in intellectu eius est, etiam si nom intelligat illud esse. Aliud enim est rem esse in intellectu, aliud intelligere rem esse. Nam cum pictor precogitat quae facturus est, habet quidem in intellectu, sed nondum intelligit esse quod nondum fecit. Cum vero iam pinxit, et habet in intellectu et intelligit esse quod iam fecit. Convincitur ergo etim insipiens esse vel in intellectu aliquid quo nihil maius cogitari potest, quia hoc cum audit intelligit, et quidquid intelligitur, in intellectu est. Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse in solo intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse in re, quod maius est. Si ergo id quo maius cogitari nom potest, est in solo intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari potest. Sed certe hoc esse non potest. Existit ergo procul dubio aliquid quo maius cogitari non valet, et in intellectu et in re”, Proslogium, cap. II. In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 127-128.

“O problema que está implicado no argumento anselmiano é o de saber se se pode pensar o absoluto como existente ou não. Quem aceite a presença de Deus na mente humana sem a necessidade da experiência; quem afirme nela uma presença do inteligível, não mediatizada pelo sensível; quem admita, em suma, uma teoria platônica do conhecimento, na qual se mantenha o inatismo das idéias, aceitará a prova ontológica, que não requer a experiência para nada. Pelo contrário, quem sustente que o homem só alcança o inteligível a partir do sensível, quem só reconheça como único ponto de partida do conhecimento humano os dados da experiência que nos chegam através do conhecimento sensível, quem, em definitivo, seja aristotélico em sua teoria do conhecimento, negará a validez do argumento, porque a idéia de Deus só será obtida enquanto se demonstre sua existência a partir da experiência dos distintos aspectos que o mundo limitado e finito oferece. Esta dupla alternativa de aceitação ou

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10. PEDRO ABELARDO (1079-1142), e a importância da Linguagem, na Lógica para principiantes56

Para aqueles dentre nós que se introduzem na lógica, falemos previamente um pouco a respeito de sua característica própria, começando pelo gênero a que pertence, isto é, a filosofia. Ora, Boécio não chama de filosofia qualquer ciência, mas apenas a que se ocupa das coisas mais elevadas; de fato, não chamamos de filósofos a quaisquer pessoas dotadas de conhecimento, mas apenas aquelas cuja inteligência penetra as sutilezas. Boécio distingue três espécies de filosofia, a saber: a especulativa, que se ocupa da natureza das coisas, objeto de investigação; a moral, que se ocupa da dignidade da vida, objeto de consideração; a racional, denominada lógica pelos gregos, que se ocupa da ordem dos argumentos, objeto de construção. No entanto, alguns, ao separarem esta última da filosofia, diziam que ela não é parte da filosofia, mas antes instrumento segundo o testemunho de Boécio. Isto porque, de certo modo, as demais partes se ocupam na medida em que se servem de seus argumentos para provar suas próprias questões. Assim, se se coloca uma questão pertinente à investigação da natureza ou moral, os argumentos são tirados da lógica. Contra estes, o próprio Boécio diz que nada impede que o mesmo seja tanto instrumento como parte de algo, assim como a mão o é em relação ao corpo humano. Além disso, a própria lógica se apresenta muitas vezes como instrumento de si própria, visto que demonstra também uma questão a si pertinente, com argumentos seus como, por exemplo, a seguinte: o homem é uma espécie de animal. Contudo, nem por isso é menos lógica, por ser instrumento da lógica. Assim, também não é menos filosofia por ser instrumento da filosofia. O próprio Boécio a distingue das duas outras espécies de filosofia, pelo seu fim próprio que consiste em construir argumentações. Pois embora o estudioso da natureza construa argumentos, não é o estudo da natureza que o instrui para tal, mas apenas a lógica. A respeito desta, Boécio lembra também que foi redigida e reduzida a regras certas das argumentações pela seguinte razão: para que não leve ao erro, pelos falsos raciocínios, os excessivamente inconstantes, ao parecer assegurar por suas razões o que não se encontra na natureza das coisas e muitas vezes reunir contrários quanto às suas condições, do seguinte modo: Sócrates é corpo; ora, o corpo é branco, logo, Sócrates é branco. E, por outro lado, Sócrates é corpo; ora, o corpo é preto; logo, Sócrates é preto.

rechaço foi confirmada ao longo da história do argumento ontológico.” (os grifos são nossos) – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 130.

“Sabemos, pelo próprio santo Anselmo, que o título primitivo do seu Monologium era Meditação sobre a racionalidade da fé, e que o título do seu Proslogium era nada menos que sua famosa fórmula: Uma fé que busca a inteligência. Nada exprime com maior fidelidade seu pensamento, pois ele não procura compreender para crer, mas crer para compreender; a tal ponto que ele crê nessa primazia mesma da fé sobre a razão antes de compreendê-la e para compreendê-la, pois que ela lhe é proposta pela autoridade da Escritura: nisi crediteritis, non intelligetis. (...) Os mesmos que recusam ao pensamento cristão qualquer originalidade criadora fazem em geral algumas reservas em favor do argumento de santo Anselmo, que, desde a Idade Média, não cessou de reaparecer sob as mais diversas formas nos sistemas de Descartes, Malebranche, Leibniz, Espinosa e até no de Hegel. Ninguém contesta que não haja vestígios dele nos gregos, mas ninguém parece ter se perguntado por que os gregos nunca pensaram nele, nem por que, ao contrário, é natural terem sido os cristãos os primeiros a concebê-lo.” – GILSON, Etienne. O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 41 e 79.

56 In: ABELARDO. Lógica para principiantes (trad. e introd. de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento). Petrópolis: Vozes, 1994, p. 33-35.

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Ao pôr por escrito a lógica, é necessário observar a seguinte ordem: uma vez visto que as argumentações resultam das proposições e as proposições das palavras, aquele que põe por escrito de modo acabado a lógica, deve escrever primeiro sobre os termos simples, em seguida sobre as proposições, enfim consumar o acabamento da lógica nas argumentações como o fez o nosso príncipe Aristóteles, que compôs as Categorias sobre a doutrina dos termos, o Peri Hermeneias sobre a das proposições, e os Tópicos e os Analíticos sobre a das argumentações.57

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11. BERNARDO DE CLARAVAL (1090-1153) e o Socratismo Cristão, na Carta a Roberto, seu sobrinho e na obra Da Consideração (1149-1152)58

1. Diletíssimo filho Roberto, esperei até o limite do possível, confiando que talvez a piedade de Deus se dignasse a visitar tua alma por si e a minha por ti, isto é, que Ele infundisse em ti a saudável compunção e em mim a grande alegria de tua salvação. Mas já que até agora me senti frustrado em minha expectativa59, não posso encobrir mais a minha dor, nem reprimir a minha ansiedade, nem dissimular a minha tristeza. Por isso, mesmo contra toda a ordenação jurídica, minha ferida me induz a chamar àquele que me feriu e a desprezadamente requerer àquele que me desprezou, humilhando-me para satisfazer a injúria de meu injuriante, e rogando a quem devia me rogar. Claro que a dor excessiva não delibera nem se ruboriza, não consulta a razão, não teme o dano da própria dignidade, não se atém à lei, não aquiesce com o juízo; ignora o modo e a ordem, pois, antes de tudo, busca uma solução para o sofrimento ou o gozo do que falta. Tu poderás replicar-me: “Eu não feri ninguém, e a ninguém desprezei. Pelo contrário: eu fui o ferido e desprezado de mil maneiras; limitei-me a fugir de meu malfeitor. A quem eu injuriei fugindo das injúrias? Não é melhor distanciar-se do perseguidor que viver agüentando-o? Não é preferível fugir daquele que te fere que feri-lo?” Estou de acordo. Não pretendo discutir, mas dirimir a discussão. Fugir da perseguição não é culpa do fugitivo, mas do perseguidor. Não o contradigo. Omito os fatos, não discuto as culpas, não retrato as causas, não recordo as injúrias. Isso só serve para instigar as discórdias, não para mitigá-las. Somente quero falar o que mais me afeta. Sofro muito porque não te tenho ao meu lado, não te vejo, pois vivo sem ti e, para mim, morrer por ti é viver, e viver sem ti é morrer. Não me pergunto por que fostes; o que me dói é que não voltes. Não denuncio as causas de tua partida, mas a dilação de teu regresso. Vem e façamos as pazes; volta e satisfaça meus desejos. Vem, insisto, volta que eu cantarei com gozo: “Fora morto e reviveu; fora perdido e encontrado”.60

57 “Abelardo reconhece a importância da linguagem como intermediária entre a realidade e o pensamento. Por

isso, a análise da linguagem é o ponto de partida para analisar pensamento e realidade (...) a significação tem a ver mais que somente com uma palavra, e sim com um grupo de palavras corretamente construídas, isto é, que constituem uma frase, composta dos elementos que já assinalou Aristóteles: o nome e o verbo (...) A integração da análise gramatical da linguagem dentro da dialética daria lugar à gramática especulativa e à aparição, já no século XIII, dos modistae, isto é, os que expunham as propriedades, ou o modi da linguagem, na pretensão de criar uma gramática universal dependente das estruturas metafísicas da realidade.” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 155 e 157.

58 Tradução de Ricardo da Costa (Ufes), feita a partir da edição Obras completas de San Bernardo (edicion bilíngüe). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1990, vol. VII, Cartas, p. 2-59 e vol. II, 1994, p. 52-185.

59 Sl 118, 116. 60 Lc 15, 24.

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2. É certo que a culpa de sua partida foi minha. Fui muito austero com um delicado adolescente, tratei com dureza desumana a um jovem. De fato, essa era a causa de teus murmúrios contra mim, que eu recordo, quando ainda vivia conosco. E por essa mesma razão, segundo soube, não cessas de desprestigiar-me. Não te culpo. Eu poderia desculpar-me e explicar-te que era necessário coagir as paixões de tua adolescência lasciva, e conduzir a difícil idade desde seu começo com uma disciplina dura e áspera, como diz a Escritura: “Dá a vara a teu filho que o livrará da morte”, e em outro lugar, “O Senhor castiga aos que ama e açoita os filhos que reconhece como seus”, e este outro, “São preferíveis os golpes do amigo que os beijos do inimigo”. Mas, como disse, vamos reconhecer que a culpa de tua partida seja minha; não nos detenhamos em discutir quem perpetrou o delito, porque assim atrasaríamos a emenda. Apesar disso, se não perdoas o arrependido, se não és indulgente com o confesso, a culpa começaria a recair sobre ti. Posso ter ultrapassado os limites contigo em algumas coisas, mas certamente não por má vontade. E se suspeitas que no futuro eu me portaria contigo da mesma maneira, deves saber que eu não sou o que era, porque tu tampouco serás o que fostes. Tu mudaste, e também me encontrarás transformado. Podes estar seguro que aquele mestre que temias será para ti um companheiro que te abraça.

(...) 7. Virá sim, virá o dia em que se julgarão novamente os juízos injustos e se anularão os juramentos ilícitos por aquele que faz justiça aos pacientes61, Ele, que sentenciará de acordo com o direito em favor dos pobres, e acusará com retidão em defesa dos mansos da terra.62 Certamente virá o que o Salmo ameaça por meio do Profeta, dizendo: “Quando chegar o tempo, julgarei retamente”. Que fará com os juízos injustos Aquele que julgará até o mais justo?63 Virá, insisto, virá o dia do Juízo, em que pesarão mais os corações puros que as palavras sagazes, mais as consciências retas que as bolsas cheias, porque então as palavras não enganarão o Juiz, nem Lhe dobrarão os subornos.

(...) Filhinho meu, se os pervertidos tentam te enganar, não concordes.64 Não creias em qualquer espírito.65 Que sejam muitos os que te saúdam, mas mestre, um entre mil.66 Evite as ocasiões, despreze a lisonja, feche os ouvidos à adulação, interroga a ti mesmo, porque tu te conheces melhor que qualquer outro. Vigia teu coração, interrogue tua intenção, consulte a verdade. Que tua consciência responda por que fugistes, por que abandonastes tua ordem, os irmãos, o lugar e a mim, que sou teu chegado na carne e muito mais no espírito. Se o fizestes para viver mais austeramente, com maior integridade e perfeição, podes estar seguro que não olhastes para trás; glorifica-te melhor com o apóstolo, dizendo: “Esquecendo o que fica para trás e lançando-me ao que está na frente, corro ao prêmio da glória”.67

61 Sl 145, 7. 62 Is 11, 4. 63 Sl 74, 3. 64 Prov 1, 10. 65 1Jo 4, 1. 66 Ecl 6, 6. 67 Phil 3, 13-14.

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Mas se é o contrário, não sejas soberbo e anda com cuidado,68 porque, me permita dizer, todo o supérfluo que te concedas em comer e em vestir, na conversa desnecessária ou, se comportando como um folgazão licencioso e curioso, equivale a olhar para trás, prevaricar e apostatar da promessa que cumpristes vivendo conosco.

(...) Uma exortação bastante meticulosa V.6. Escuta minha repreensão e meus conselhos. Se tu dedicas toda a tua vida e todo o teu saber às ações e não reservas nada à consideração, poderia eu felicitar-te? É por isso que não te felicito.69 E ninguém que tenha escutado o que Salomão disse – “Aquele que modera sua atividade se tornará sábio”70 – pode fazê-lo, pois até as mesmas ocupações sairão ganhando se forem acompanhadas por um tempo dedicado à consideração. E se tens a ilusão de ser tudo para todos, imitando aquele que se fez tudo para todos71, louvo tua humanidade, se é plena. Mas como pode ser plena se te excluis dela? Tu és homem.72 Assim, para que tua humanidade seja plena e integral, seu seio, que abarca a todos os homens, também deve acolher-te. Do contrário, de que serve – conforme a palavra do Senhor – ganhar a todos se te perdes a ti mesmo?73 Então, já que todos te possuem, seja um dos que dispõem de ti. Por que tens de ser o único que não se beneficia de teu próprio ofício? Até quando tu serás um alento fugaz que não retorna?74 Quando darás audiência a ti mesmo entre tantos a quem acolhes? Tu deves a sábios e néscios75 e só rechaças a ti? O estulto e o sábio76, o escravo e o liberto77, o rico e o pobre78, o homem e a mulher79, o velho e o jovem80, o clérigo e o laico, o justo e o ímpio81, todos dispõem de ti igualmente, todos bebem em teu coração como uma fonte pública, e só tu ficas com sede? Se é maldito aquele que dilapida sua herança, que será daquele que fica sem ele próprio? Rega as ruas com teu manancial82, para que bebam nele homens, jumentos e animais83, sem sequer excluir os camelos do criado de Abraão84, mas que tu também bebas com eles do caudal de tua fonte.85 E não a dividas com estranhos.86 Ou será que tu és um estranho?

68 Rom 11, 20. 69 1Cor 11, 22. 70 Ecl 38, 25. 71 1Cor 9, 22. 72 Jo 10, 33. 73 Mt 16, 26. 74 Sl 77, 39. 75 Rm 1, 14. 76 Ecl 6, 8. 77 Ef 6, 8. 78 Pr 22, 2. 79 Gn 1, 27. 80 Ier 31, 13. 81 Gn 18, 25. 82 Pr 5, 16. 83 Ion 3, 7. 84 Gn 24, 14. 85 Pr 5, 15. 86 Pr 5, 17.

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Para quem não és um estranho se o és para ti mesmo? Para quem é bom aquele que é cruel consigo mesmo?87 Não te digo para que sejas sempre, nem te digo para que sejas pouco, mas pelo menos alguma vez que tu te voltes para ti mesmo. Mesmo que sejais como os demais, ou depois dos demais, sirva-te a ti mesmo. Qual indulgência é maior? Digo isso mais por exigência da indulgência88 que da justiça, e acredito que sou mais indulgente contigo que o próprio Apóstolo. “É mais que conveniente”89, tu dirás.

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12. HUGO DE SÃO VÍTOR (1096-1141) e a Leitura com humildade, princípio do conhecimento, no Didascálicon90

Procure em cada ciência somente aquilo que consta pertencer especificamente a ela (...) Não queira multiplicar os atalhos antes de ter conhecido as estradas. Você estará seguro nas discussões quando não tiver medo de errar.

(...) Três coisas são necessárias aos estudantes: 1) as qualidades naturais, 2) o exercício e 3) a disciplina. As qualidades naturais para que entenda facilmente aquilo que ouve e memorize firmemente aquilo que entendeu. O exercício, para que eduque as qualidades naturais mediante o trabalho e a persistência. A disciplina, para que, vivendo de modo louvável, harmonize a conduta com o saber.

(...) A meditação é um pensar freqüente com discernimento, e ela investiga prudentemente a causa e a origem, o gênero e a utilidade de cada coisa. A meditação começa com a leitura, mas não se amarra a nenhuma regra ou proscrição da leitura. Ela se deleita em correr pela campina aberta, onde fixa o olhar para a verdade a ser contemplada, e deleita-se em examinar ora estas, ora aquelas causas, em penetrar as coisas profundas, em deixar nada ambíguo, nada obscuro.

(...) O começo da disciplina moral é a humildade, da qual existem muitos ensinamentos, três dos quais interessam mais ao estudante: 1) não reputar de pouco valor nenhuma ciência e nenhum escrito; 2) não ter vergonha de aprender de qualquer um; 3) não desprezar os outros depois de ter alcançado o saber.91

87 Ecl 14, 5. 88 1Cor 7, 6. 89 Rm 12, 3. 90 HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon. Da arte de ler (introd. e trad. de Antonio Marchionni). Petrópolis: Editora

Vozes, 2001, Livro III, 6, 10, 13. 91 Segundo Bernardo de Claraval, a humildade “...é uma virtude que incita o homem a menosprezar-se diante da

clara luz de seu próprio conhecimento”. (Os graus da humildade e da soberba, Prólogo, 2, Obras completas de San Bernardo I, Madrid, BAC, MCMXCIII, p. 175), atitude desconhecida no mundo antigo (o primeiro a empregar a palavra foi São Paulo, com o sentido de “falta de espírito de competição e de vanglória”, Fl, 2, 3).

A humildade é considerada uma virtude pelos medievais e, dentre todas, a mais difícil de ser entendida pelos jovens, como ressalta Werner Jaeger, a propósito do encontro entre Hipócrates e Sócrates (no início do Protágoras): “...Sócrates tenta sondar a firmeza da decisão do jovem Hipócrates e fazer-lhe compreender a aventura em que vai se meter. A simplicidade de Sócrates, a sua modéstia humaníssima, fazem com que o jovem

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Muitos ficam decepcionados porque querem parecer sábios antes do tempo. Por esta razão, explodem numa intumescência de arrogância, começam a fingir aquilo que não são e a envergonhar-se daquilo que são, e tanto mais se afastam da Sabedoria quanto mais se preocupam não em serem sábios, mas em serem considerados tais. Conheci muitas pessoas assim, as quais, mesmo necessitando ainda dos conhecimentos básicos, se dignam interessar-se somente das coisas sublimes, e acham que se tornaram grandes apenas por ter lido os escritos ou ouvido as palavras dos grandes e dos sábios. (...) Quanto a mim, porém, oxalá ninguém me conheça e eu conheça tudo! Mas vocês se gloriam de ter visto Platão, não de tê-lo entendido. Conseqüentemente, considero indigno para vocês que me escutem. Eu não sou Platão, nem mereci ver Platão. A vocês é suficiente ter bebido da própria fonte da filosofia, mas oxalá ainda tiverdes sede!

(...) O estudante prudente, portanto, ouve todos com prazer, lê tudo, não despreza escrito algum, pessoa alguma, doutrina alguma. Pede indiferentemente de todos aquilo que vê estar-lhe faltando, nem leva em conta quanto sabe, mas o quanto ignora. Daqui se origina o dito platônico: “Prefiro aprender modestamente as coisas dos outros a ostentar descaradamente as minhas”.92 Por que, então, você se envergonha de aprender, e não se envergonha de ser ignorante? Esta vergonha é maior que aquela. E ainda, por que você aspira a coisas altíssimas, quando ainda jaz no lugar mais baixo? Avalie, antes, aquilo que as tuas forças podem sustentar. Avança bem, quem avança ordenadamente.

(...) Aprenda de todos com prazer aquilo que você não conhece, porque a humildade pode tornar comum para você aquilo que a natureza fez próprio para cada um. Será mais sábio de todos, se quiser aprender de todos. Aqueles que recebem de todos, são os mais ricos de todos. Não considere vil conhecimento algum, porque todo conhecimento é bom. Se tiver tempo livre, não recuse ler algum escrito. Se você não lucra, também não perde nada, sobretudo porque não há nenhum escrito, creio eu, que não proponha algo agradável, se é tratado no lugar e no modo devido, e não há nenhum escrito que não contenha algo especial.

(...) Igualmente lhe convém que, quando começar a conhecer alguma coisa, não despreze os outros. Este vício da vaidade ocorre a alguns, porque olham com demasiada diligência o seu próprio conhecimento e, parecendo-lhes de ter-se tornado alguma coisa, pensam que os outros não são como eles nem poderiam nunca sê-lo, sem conhecê-los. Por isso, agora ferve o fato que alguns charlatães, gloriando-se não sei de que, acusam professores mais velhos de ingenuidade, achando que a Sabedoria nasceu com eles e morrerá com eles.93

não se aperceba da envergadura dele. Nem por um só momento compreende que aquele homem tão simples que tem diante de si é o verdadeiro mestre.” – JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 428-429.

92 HIERONIMUS, Epist. 53, 1, 2 (Eusebius Sophronius Hieronymus, isto é, São Jerônimo, de Strídon, c. 342-419). 93 Já nessa época alguns estudantes criticavam o currículo escolar. Por exemplo, João de Salisbury (c. 1115-1180),

humanista da Escola de Chartres, defendeu o ideal de totalidade do saber, ao contrário dos cornificianos, estudantes universitários que desejavam uma redução dos programas de estudos. O mesmo ocorreu a Gilberto de la Porrée (1076-1154), professor de Chartres, que também combateu esse mesmo partido dos cornificianos, e defendeu o ideal

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(...) Não é meu conselho imitar esse tipo de pessoas. O bom estudioso deve ser humilde e manso, afastado totalmente das preocupações vãs e dos ilícitos das volúpias, diligente e constante, para que aprenda com prazer de todos, nunca presuma de sua ciência, fuja dos autores de doutrinas perversas como do veneno, aprenda a refletir longamente sobre alguma coisa antes de julgá-la, não queira aparecer douto, mas sê-lo, ame os ensinamentos aprendidos dos sábios e procure tê-los sempre diante dos olhos como espelho do seu próprio rosto. E se, por acaso, certas coisas mais obscuras não são admitidas por sua inteligência, o bom estudioso não prorrompa em impropérios, como se cresse que nada é bom a não ser aquilo que ele pode entender. Esta é a humildade da disciplina dos estudantes.94

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13. JOÃO DE SALISBURY (c. 1115-1180), o Fruto das Letras e a Comédia Humana, no Polycraticus95

Prólogo O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e temporal, elas exibem aos amigos a presença mútua e não permitem que pereçam com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam perecido, os juramentos ter-se-iam esvaído e os ofícios todos de qualquer religião teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido se a misericórdia divina não tivesse providenciado para os mortais o uso das letras como remédio para a fraqueza humana. O exemplo

clássico do estudo desinteressado: “Queixa-se ele (Salisbury) de que essa orientação desdenha os autores, a gramática e a retórica. Os que respeitam os auctores, diz ele, sofrem impropérios como: „Que quer o burro velho? Por que nos cita palavras e feitos dos antigos? Tiramos nosso saber de nós mesmos; nós, os jovens, não reconhecemos os antigos.‟ Como nos parecem familiares essas palavras! Conhecemo-las da cena dos estudantes, na segunda parte do Fausto, e do movimento estudantil do século XX. Consola escutá-las no século XII.” – CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 90.

94 Ainda sobre o ideal monástico da humildade, diz São Bernardo de Claraval: “A virtude da humildade tem três requisitos: submeter-se ao superior e não deixar-se arrebatar por nenhuma ambição ou inveja, não se preferir diante de seu igual, nem pretender mostrar-se superior a ele por qualquer desejo ilícito, e submeter-se ao inferior ao invés de antepor-se a ele, para que assim se comprove a verdade da humildade.” (“Segunda série de sentenças”, 28, Obras completas de San Bernardo VIII, Madrid, BAC, MCMXCIII, p. 73).

95 Traduções: Prólogo – Marcos Martinho dos Santos (In: MONGELLI, Lênia Márcia, VIEIRA, Yara Frateschi. A Estética medieval. Cotia: Íbis, 2003, p. 60); Livro III, 8 – Luis Alberto de Boni, em Filosofia Medieval – Textos (Porto Alegre, Edipucrs, 2000, p. 137-143).

“João de Salisbury não foi nenhum mestre de escola e sim um homme de lettres, um escritor elegante, um observador cético, um moralista, um narrador agudo. Percebeu que em seu tempo uma boa educação permitia fazer carreira e criticou os mestres que programavam seu ensino com vistas à ascensão social. Propôs um sistema ideal de ensino. Baseou-se no sistema das sete artes, mas o complementou com o estudo de outras matérias. Seu pensamento era mais afim a Platão que a Aristóteles. Não obstante, lhe devemos a introdução dos Analíticos segundos e os Tópicos de Aristóteles para o Ocidente latino. Dessa maneira, o Ocidente teve acesso a uma teoria da demonstração (...) Seu Policraticus combina a crítica social com o esboço de uma ética política que contém uma passagem muito conhecida na qual justifica o assassinato do tirano. João de Salisbury pensa que o poder da autoridade não vem da linhagem, mas é uma missão de serviço conferida e controlada pelo clero. Se o senhor não atua de acordo com a lei divina proclamada pelo clero, torna-se um inimigo do bem comum e deve ser eliminado. A vida política torna-se pura arbitrariedade se não é controlada por normas éticas e religiosas. João de Salisbury tinha tido uma experiência: uma leitura atualizada de A Cidade de Deus o havia convencido. (a tradução é minha)” – FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana. D’Agustí a Maquiavel. Barcelona: Obrador Edèndum, 2006, p. 246-247.

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dos Antigos, exortação e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada, se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, o não tivessem transmitido aos pósteros. De fato, a vida breve, o torpor da negligência, as ocupações inúteis permitem-nos conhecer muito pouco, e mesmo esse pouco é continuamente dilapidado e roubado por aquele que é o defraudador da ciência e o eterno inimigo e infiel padrasto da memória, o oblívio. Pois quem conheceria os Alexandres e Césares, quem admiraria os estóicos e peripatéticos, se os não tivessem dignificado as obras dos escritores? Quem imitaria o caminho, digno de abraçar, dos apóstolos e profetas, se os não tivesse consagrado para a posteridade a Sagrada Escritura? (...) Nada, pois, é mais aconselhável aos que buscam a fama que merecer, sobretudo, a graça dos letrados e escritores. Pois é-lhes inútil empreender feitos egrégios, que trevas perpétuas hão de obscurecer, se não forem iluminados pela luz das letras. Qualquer favor ou elogio que se receba de outra forma é como se Eco, conhecida nos mitos, fosse aplaudida no teatro: acaba assim quem começa. As fiéis letras trocam essas coisas por consolo na dor, restabelecimento no trabalho, conforto na pobreza, comedimento na riqueza e nos prazeres. Porque o espírito se redime dos vícios e se refaz, ainda que na adversidade, com doce e espantoso conforto, quando dirige a agudeza da mente à leitura e redação de coisas úteis.

(...) Livro III 8. A comparação de Petrônio é sem dúvida elegante: as ações praticadas pelo homem no burburinho do mundo assemelham-se mais a uma comédia que a um empreendimento heróico.96 Foi dito que “a vida do homem sobre a terra é uma milícia”.97 Contudo, se o profeta houvesse podido imaginar o nosso tempo, sem dúvida ele também haveria de dizer que a vida do homem sobre a terra é uma comédia, na qual cada um, esquecido de si mesmo, recita a parte do outro. Mas creio que o profeta apenas queria ensinar que aqueles a quem a vida terrena ainda não absorveu, devem ser sempre soldados.98

96 Petrônio (c. 27-66 a.C.). “Quanto a Petrônio, devemos reportar um pouco antes. É certo que ele dedicava o dia

ao sono, as noites aos deveres e às distrações da vida. E assim como outros devem sua fama ao trabalho, ele a devia à preguiça, e não era tido como um libertino e um dissipador, como muitos que dissipam seu patrimônio, mas como um erudito no luxo. E como suas palavras e ações eram livres e providas de uma aparência de negligência de si mesmo, elas eram recebidas mais de bom grado sob uma aparência de simplicidade.

Malgrado tudo, foi procônsul da Bitínia e, depois, cônsul, dando provas de energia e de estar à altura dos negócios públicos. Voltando aos seus vícios ou tomando o ar de um viciado, Petrônio foi admitido entre os poucos íntimos de Nero, como um árbitro de elegância, até o ponto em que o príncipe não acreditava que houvesse nada mais encantador e delicado em seu luxo além daquilo que Petrônio lhe recomendava.” – TÁCITO, An., 16, 18. “Satiricon é uma novela que, pelos lábios de um tal de Encolp, descreve os ambientes baixos de uma grande cidade do sul da costa italiana onde chegaram dois jovens, Ascilto e Gitão, aos quais se unirá um velho e ridículo poeta chamado Eumulpo. (...) A parte conservada dessa obra contêm uma explicação do banquete oferecido a Trimalcião, um libertino estúpido, personagem enriquecido de uma maneira escandalosa, aos seus amigos; a cena é uma paródia cheia de permissividades desavergonhadas (escravos, libertos, prostitutas, mulheres de má vida, etc.). Em resumo, trata-se de uma novela pitoresca, realista, tendendo mais para a caricatura que ao retrato, mas expressa com uma língua e um estilo próprio de um mestre da arte de escrever, com uma elegância clássica e expressões da época imperial, sem negar, contudo, o lugar para as palavras vulgares, os solecismos, os barbarismos e os termos de baixo calão.” – VILLALBA I VARNEDA, Pere. Roma a través dels historiadors clàssics. Barcelona: Universitat Autònoma, 1996, p. 424-425.

97 Jo 7, 1. 98 Isto é, soldados de Cristo.

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De fato, os que são prisioneiros dos vícios e presas da concupiscência estão destinados à pena, tal como o boi ao sacrifício, e embora seus corpos habitem a terra, já foram absorvidos e lançados ao inferno.99 Noutras palavras, a terra é habitada por homens que não pensam no céu, e não sabem que no céu existe algo para eles, mas aspiram somente as coisas materiais. O jugo da milícia pesa também sobre aqueles cuja vontade não sabe realizar o que se propôs, porque está longe do Senhor e ligada ao mundo. Usando as imagens da fábula, eles conhecem a onda de Tântalo100, o abutre de Tício101, a roda de Ixião102, a urna das Danaidas103 e a pedra de Sísifo.104 A vida deles é, pois, uma milícia: uma milícia na malícia.105

99 Nm 16, 30, que trata da revolta de Datã e Abiram, passagem do Velho Testamento que ignora a responsabilidade

individual: “E aconteceu que, acabando de pronunciar todas essas palavras, o solo se fendeu sob os seus pés, a terra abriu a sua boca e os engoliu, eles e suas famílias, bem como todos os homens de Coré e todos os seus bens. Desceram vivos ao Xeol, eles e tudo aquilo que lhes pertencia. A terra os recobriu e desapareceram no meio da assembléia. A seus gritos, fugiram todos os filhos de Israel que se encontravam ao redor deles”, Nm 16, 31-33.

100 Tântalo roubou néctar e ambrosia do Olimpo para servir às suas concubinas, pediu emprestado a Mercúrio o cão de Júpiter e não o devolveu, e matou o filho, Pélope, e serviu-o aos deuses num banquete. Como castigo, foi lançado ao Tártaro. Mergulhado em um lago até os joelhos, foi sentenciado a não poder saciar sua fome e sede em um vale abundante de vegetação e água: sempre que se aproximava da água, esta escoava; ao tentar colher os frutos das árvores, os ramos moviam-se para longe de seu alcance, sob a força do vento. Este é o suplício de Tântalo: desejar algo muito próximo, mas que está sempre inalcançável. Dicionário de Mitologia Grego-Romana. São Paulo: Abril, 1976, p. 172.

101 Tício (ou Titio) era filho de Elara e Zeus. Este, por medo de Hera, escondeu Elara na Terra, e ela deu à luz Tício, um gigante (ou monstro ctônico), tentou violentar a Hera de Leto (ou, em outras versões, a Ártemis) que, aos gritos, foi socorrida por Apolo e Ártemis, quem flecharam o monstro. Por ser imortal, foi lançado ao Tártaro, com as pernas abertas no solo, e dois abutres (ou serpentes) passaram a comer eternamente seu fígado. É considerado um personagem que representa a luxúria desenfreada (por isso seu fígado é devorado: os antigos acreditavam que era o centro sede das paixões). As fontes clássicas que citam o mito são Apolodoro, Biblioteca i, 4, 1, Homero, Odisséia, XI, 660-668, Pausânias, II, 30, 3; X, 4, 5 e X, 6, 5, Plutarco, Aetia Graeca 12, Higino, Fábulas 55 e Píndaro, Odas Píticas IV, 90 e seg.

A tradição literária cristã manteve a citação de João de Salisbury. Por exemplo, o nosso Padre Antônio Vieira (1608-1697) a cita, em seu Sermão da Primeira Dominga do Advento (1655), III (edição eletrônica de Karina Beatriz Espíndola): “Só uma coisa há que não pode passar, porque o que nunca foi, não pode deixar de ser, e tais parece que foram as fábulas que neste mesmo tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não passaram em si mesmas, passaram naqueles casos e coisas que deram ocasiões a se fingirem. Na seca universal que abrasou todo o mundo, passou a fábula de Faetonte: no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou a fábula de Deucalion; no estudo com que el-rei Atlante contemplava o curso e movimento das estrelas, passou a fábula de trazer o céu aos ombros; na especulação contínua de todas as noites, com que Endimion observava os efeitos do planeta mais vizinho à Terra, passou a fábula dos seus amores com a Lua. E porque também os nossos vícios, a nossa fraca virtude, e a nossa mesma vida passam como fábula; o amor e complacência de nós mesmos passou na fábula de Narciso; a riqueza sem juízo, na fábula de Midas; a cobiça insaciável, na fábula de Tântalo; a inveja do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a inconstância da fortuna mais alta, na fábula e roda de Ixion; o perigo de acertar com o meio da virtude, e não declinar aos vícios dos extremos, na fábula de Cila e Caribde; e finalmente a certeza da morte, a incerteza da vida, pendente sempre de um fio, passou e está continuamente passando na fábula das Parcas. Assim envolveram e misturaram os sábios daquele tempo o que há com o que não há, e o certo com o fabuloso; para que nem o louvor nos desvaneça, nem a calúnia nos desanime, pois o verdadeiro e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa.”

102 Rei dos lápitas (na Tessália), após inúmeras infrações, Ixião foi condenado por Zeus a ser amarrado a uma roda de fogo e lançado através dos ares. Os autores costumam localizar esse castigo de Ixião no Tártaro. Dicionário de Mitologia Grego-Romana, op. cit., p. 100.

103 As Danaidas (ou Danaides) eram cinqüenta filhas de Dânao (com diferentes mulheres). Desposaram cinqüenta egípcios e, por incitação de Dânao, na noite de núpcias mataram seus maridos (exceto Hipermnestra, que poupou Linceu). Mais tarde, o próprio Linceu assassinou as Danaidas, que, por seu crime, desceram aos Infernos e receberam como punição a pena de encher um tonel sem fundo, o “tonel das Danaidas), ou seja, um trabalho inútil.

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Se esta definição não agrada, pode-se adotar uma outra, e dizer que a vida do homem sobre a terra é uma tentação, isto é, como diz originalmente o termo, um contínuo medir-se com o mal. Perdido nesta tentação ou milícia, quase todo o mundo – digo quase porque o Senhor reservou para Si sete mil justos106 – quase todo o mundo é, ao mesmo tempo, como diz Petrônio, ator e espectador de uma comédia e, o que é pior, não sabe mais retornar à realidade quando é necessário. De fato, conheci crianças que imitaram por tanto tempo os balbucios que, depois, nem mesmo querendo, conseguiram falar corretamente. Como se costuma dizer, o hábito é esquecido com dificuldade, e o costume plasma outra natureza que, “se a expulsares com o forcado, retorna por si sorrateiramente.107 Por isso, é útil o conselho do poeta ético quando diz: “Escolhe para ti desde criança o melhor modo de vida, e o hábito haverá de torná-lo agradável”.108 Através de seu conhecimento do mundo, os grandes escritores de comédia combatem os defeitos humanos. O configurar-se vários dos atos introduz certa variedade na comédia. E os atores estão a serviço do que representam, realizando-se neles o jogo da Fortuna caprichosa.109 De fato, quem é que ora reveste de enorme poder a alguém novo e desconhecido, elevando-o à glória do trono, ora coloca em grades hostis um rei que se vestia de púrpura110 antes mesmo de nascer e, após torná-lo escravo, lança-o na miséria mais extrema? Ou o que é – como seguidamente acontece – que mancha as espadas infames não só com o sangue dos tiranos, mas também com o sangue daqueles príncipes cujos súditos são débeis e até mesmo vis? “Se a Fortuna quiser, torna-se cônsul um mestre; mas se o quiser, torna mestre um cônsul”.111

104 Condenado por Júpiter aos Infernos, Sísifo sofreu a seguinte pena: rolar uma enorme rocha por uma escarpa;

sempre que atingia o cume, a rocha caía, forçando Sísifo a recomeçar o trabalho. Em muitas passagens do Policraticus João de Salisbury faz alusões à mitologia grega para criar analogias com sua filosofia humanista cristã.

105 Jogo de palavras muito apreciado pelos escritores medievais. Por exemplo, São Bernardo de Claraval escreve o mesmo a respeito da milícia secular (milícia/malícia).

106 3Rs 19, 18. 107 Horácio, Ep. I, 10, 24. “Poeta nascido em 65 a.C. em Venúsia, na Apúlia; filho de um escravo libertado que

dispunha de um pequeno pé-de-meia, estudou em Roma, depois em Atenas, onde se viu arrastado pelo exército dos „libertadores‟, Bruto e Cássio, em 42 a.C., com o grau de tribuno militar. Depois da derrota de Filipos, regressou à Itália, mas, arruinado, tornou-se escrivão para sobreviver (...) Mecenas procurou atrair o jovem para o seu grupo de amigos, e, em 31, ofereceu-lhe uma propriedade em Sabina. Foi nessa época que o poeta escreveu as suas Sátiras, e peças líricas, as Odes, cujos três primeiros livros foram publicados em 23. Seguiram-se-lhes dois livros de Epístolas (compreendendo a Arte Poética) e, em 17 a.C., Carmen Saeculare. Horácio morreu em 8 a.C.” – GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 300.

108 PSEUDO-CÍCERO, Retórica a Herêncio IV, 17, 24 (Rhetorica ad Herennium, obra de Retórica escrita no séc. I). No século XII circulavam várias obras apócrifas de autores latinos.

109 O tema da fortuna imperatrix mundi é muito recorrente, tanto na literatura quanto nas filosofias medievais. 110 A cor púrpura era um sinal de realeza. Na Idade Média, já com os merovíngios a túnica púrpura representava o

poder real: “Nessa época, Clóvis recebeu do imperador Anastácio os codicilos consulares e, revestido de uma túnica purpúrea e de uma chlamyde, na basílica do bem-aventurado Martinho, colocou sobre a cabeça um diadema. Em seguida, montado a cavalo, distribuiu ao povo presente, por sua própria mão e de muito boa vontade, ouro e prata pelo caminho situado entre a porta do átrio [da basílica] e a igreja da cidade e, desse dia em diante, foi chamado cônsul e Augusto.” – Gregório de Tours, Decem Libri Historiarum II, 38 (trad.: Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas – Uff)

111 Juvenal, Sátiras, VII, 197s. “...nasceu em Aquinum, na Campânia, cerca de 60 d.C. Publicou suas primeiras Sátiras quando muito em 96 (depois da morte de Domiciano). Estamos mal informados sobre sua vida; talvez tenha sido soldado; em todo caso, estava familiarizado com os retóricos. Morreu depois de 128.” – GRIMAL, Pierre. A civilização romana, op. cit., p. 305.

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Por isso, a vida dos homens se parece mais com uma tragédia que com uma comédia, pois quase ninguém tem um fim alegre: por mais doces que as coisas tenham sido, acabam amargas, e o luto sucede as grandes alegrias. Por mais que os ímpios prosperem e enriqueçam graças ao concurso de causas favoráveis, por mais que a Fortuna se submeta a eles, no término de seus caminhos haverá de abatê-los e será tão amarga como o absinto. “Como é que os maus vivem, diz Jó, envelhecem e cresce seu vigor? Sua prosperidade prospera diante deles e seus descendentes crescem sob seus olhos; sua casa é tranqüila, sem alarmes, a vara de Deus não os atinge. Seu touro é cada vez fecundo, sua vaca dá cria sem nunca abortar. Deixam os filhos correrem como carneiros e os seus pequenos saltam e brincam. Cantam ao som do tímpano e da cítara, divertem-se ao som da flauta. Passam seus dias na alegria e descem tranqüilamente ao sheol”.112 Que conclusão pode ser mais amarga após a alegria anterior ou que fim pode ser mais infeliz depois de um caminho tão feliz? Mas este é o final daqueles que “não tomam parte no trabalho dos homens, nem são flagelados com estes”.113 De fato, a vontade do Senhor os abate enquanto se exaltam, pois tudo quanto acontece deve ser atribuído à Sua vontade, mais que à Fortuna, que dele provém ou, como julgo mais provável, nem sequer existe. A respeito dela diz o escritor ético: “Não digas que a Fortuna é cega, porque não existe”.114 Também Homero, naquele seu poema de tão célebre perfeição, recusou-se a admitir a existência da Fortuna, que não é nomeada em nenhuma parte do texto. Quis confiar somente a Deus – a quem chamou de Moipan – o governo de todo o universo, sem atribuir nada à temeridade da Fortuna, que não pode ser uma deusa, se é cega, com lá se diz e se pinta; e por outro lado seria vã a empresa de demonstrar a cegueira daquilo que não existe na natureza.115 Também o acaso – que é definido como um acontecimento fortuito – não existe, pois nada existe sem uma causa e uma razão procedente116, e o pregador fiel ensina que nada acontece na terra sem um motivo.117 Contudo, como não poucas coisas acontecem inesperadamente, para além da intenção de quem age, costuma-se colocá-las sob o acaso. Em verdade, porém, elas foram previstas por aquele que as dispôs segundo a razão, da mesma forma daquelas que parecem determinadas pela lei natural. Portanto, também o contingente depende da causa primeira, enquanto tudo é reduzido a esta e, a meu juízo, a existência da causa primeira segue-se necessariamente da posição de todas as coisas. Talvez os mais sábios haverão de rir de minha ignorância, pois admito derivar a existência de Deus a partir da existência de todas as coisas. Mas foram os peripatéticos que me ensinaram a inferir ou a conjeturar a existência da causa a partir dos efeitos.118 Além disso, os próprios doutores da fé tiravam das coisas aquela causa da qual, pela qual e na qual tudo existe119, e sem a qual nada é criado e pode existir.

112 Jo 21, 7-13. 113 Sl 72, 5. 114 CATÃO, Dist. 4, 3. 115 MACRÓBIO, Sat. V, 16, 8. 116 PLATÃO, Timeu, 28a. 117 Jo 5, 6. 118 Ver nota 6. 119 Rm 11, 36 e Jo 1, 3.

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Assim sendo, quando pareço atribuir algum papel à Fortuna, não o faço em detrimento da causa primeira. Simplesmente como meu discurso se dirige aos homens, utilizo a linguagem dos homens, os quais – como já afirmei – agem em cada caso como a gorda Minerva, sem dar a razão precisa a respeito de nada. E se tal coisa é pacificamente admitida, por que se proibirá de ouvir aquilo que os filósofos gentios escreveram para a utilidade pública? “Tudo o que foi escrito, foi escrito para o nosso ensinamento, a fim de que pela paciência e a consolação das Escrituras conservemos a esperança”.120 De fato, como não existe paz para os filhos de Adão – que nasceram para o sofrimento, destinados à desgraça, concebidos em pecados, paridos em dor, e que não caminham, mas antes correm para a morte, da qual nada é mais triste – é necessária a perseverança e útil a consolação, que favorece e reforça os predestinados para a vida eterna com a esperança do futuro, na consciência do bálsamo da alegria e da imensidão da clemência divina. “Ó guardião dos homens – diz o bem-aventurado Jó, sintetizando em si as calamidades do gênero humano – por que me colocaste contra ti e me tornaste um peso para mim mesmo?”.121 De fato, não existe ninguém que, quando é atingido pela culpa, não encontre em si mesmo a causa e a matéria de seu sofrimento. Até mesmo o testemunho da filosofia diz que a cada um acontece de encontrar-se onde não quer, e de estar ausente de onde gostaria de estar. É por isso que a alma fiel, à qual são concedidas as alegrias da verdadeira felicidade, pede um campo irrigado acima e um irrigado abaixo.122 Por isso, a fim de adaptar os ouvidos piedosos às invenções dos gentios, direi que o fim de todas as coisas é trágico. Mas nada tenho a objetar se se quiser manter, como mais agradável, o nome de “comédia”, pois é sabido também entre nós que, como diz Petrônio, quase todos se comportam como histriões. A este respeito, um ilustre escritor de nosso tempo exprimiu com elegância as palavras dos pagãos, ao dizer: “A sorte cega revira as ridículas fadigas dos homens; os nossos dias são o jogo e a brincadeira dos deuses”.123 O teatro no qual acontece uma tão grande, tão admirável e tão inenarrável tragédia, ou comédia, é perfeitamente adaptado à representação. Sua superfície é do tamanho da terra. É muito difícil que seja aceito quem foi excluído, ou que seja admitido quem foi expulso, enquanto carrega a veste suja da carne. É necessário despir-se totalmente desta indumenta, a fim de conseguir passar ileso pelo buraco da agulha.124 De outra forma, ninguém sairá ileso, talvez porque “o Estinge, que lhe passa pelo meio, o cinge nove vezes”.125 Diz o Eclesiastes: “Vi todas as coisas que existem sob o sol, e eis que tudo é vaidade”.126 Quando a gente se afasta do sólido terreno da verdade, cai naquele da vaidade, que é o terreno próprio de nossa comédia, “pois a criatura está sujeita à vaidade não por sua própria vontade”.127

120 Rm 15, 4. 121 Jo 7, 20. 122 Js 15, 19. 123 Bernardo Silvestre de Chartres (c. 1100-1169) foi um filósofo de tendência neoplatônica, autor de uma obra

dedicada a Teodorico de Chartres intitulada De universitate mundi sive megacosmus et microcosmus, onde converte os atributos das Pessoas da Trindade em atributos cosmológicos, isto é, as funções que as Pessoas realizam no mundo (como a Potência, a Sabedoria e a Bondade). Sua filosofia está maravilhosamente representada na catedral de Chartres.

124 Mt 19, 4. 125 VIRGÍLIO, Geórgias 4, 480. 126 Ecl 1, 14.

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Embora o local em que moramos esteja cercado por nove orbes ou esferas, contudo, um dia deveremos dele sair, e o inexorável Caronte haverá de fazer que todos atravessem o rio com sua barca carregada de anos.128 Uns sucedem-se aos outros e assim, passando os indivíduos, permanece a espécie humana, do mesmo modo como, passando a água, a mesma corrente permanece no rio. “Onde se encontram aqueles poderosos que desde o início conhecem a arte da guerra, que jogam com as aves do céu e que acumulam o ouro em que os homens põem sua confiança, acrescentando casa a casa, campo a campo, até os confins da terra, e que não têm limites em suas posses?”.129 E logo a Escritura dá a resposta que todos conhecem por repetida experiência: “Desceram aos infernos e outros vieram em seus lugares”.130 É, pois, conforme a eqüidade, e não por capricho da Fortuna, que são lançados nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes131; e que, como recorda o santo Jó132, passam das águas das neves para o calor mais insuportável. Também é conforme a eqüidade que os que chegam aos Campos Elíseos sejam iluminados pelo verdadeiro sol da justiça. Mas porque excluo implicitamente que os Campos Elíseos estejam excluídos do mundo das coisas passageiras? Eles estão sem dúvida incluídos em parte, estendendo-se a todos os espíritos justos, aos quais foi concedido pelo Pai das Luzes de poderem dedicar-se com todo o ardor ao conhecimento e ao amor do bem.133 Por isso, o poeta ético respondeu a quem, inquieto, lhe perguntava sobre a felicidade impossível fora de si mesmo: “Aquilo que procuras, está em toda a parte; encontra-se em Ulubras, se não lhe faltar um ânimo justo”.134

***

14. ANÔNIMO DO SÉC. XII, O que é Deus, em O Livro dos Vinte e Quatro Filósofos135 Prólogo

Vinte e quatro filósofos se reuniram, e só uma questão ficou sem resposta: o que é Deus? Então, por decisão comum, concederam um tempo, e fixaram a data de um novo concílio. Cada um deles exporia sua própria proposição de Deus em forma de definição, para que, a

127 Rm, 8, 20. 128 CÍCERO, O sonho de Cipião, 4. 129 Br 3, 16-18, 26. 130 Br 3, 19. 131 Mt 8, 12. 132 Jo 24, 19. 133 A referência ao “Pai das Luzes” é, sem dúvida, do Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V). 134 HORÁCIO, Epístola I, 2, 29-30. 135 El libro de los veinticuatro filósofos (ed. de Paolo Lucentini. Trad. de Cristina Serna y Jaume Pòrtulas). Madrid:

Ediciones Siruela, 2000. Agradeço ao Prof. Dr. Alexander Fidora (ICREA – Universitat Autònoma de Barcelona) pela correção de minha tradução.

“Este interessante texto forma parte da diversidade de interesses própria do século XII. Para alguns intérpretes, a tradição manuscrita e as peculiaridades estilísticas permitem supor que o texto se baseia em um livro perdido de Aristóteles, Da Filosofia (...) Outros acreditam que se deve situar o texto no conjunto de interesses próprios do Ocidente latino do século XII, e o relacionam com a teologia axiomática de Allain de Lille (c. 1117-1203) e com o Livro das causas.” – FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana. D’Agustí a Maquiavel, op. cit., p. 255-256.

O axioma é, segundo Aristóteles, uma proposição de que parte a demonstração (Analíticos posteriores, I, 10), ou seja, um princípio que se mostra evidente de imediato. O método axiomático consiste em definir as proposições desse tipo, bem como os processos de demonstração ou as regras de inferência.

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partir de cada uma de suas definições, pudessem estabelecer, de comum acordo, algo certo a propósito de Deus.136

I. Deus é uma mônada que engendra uma mônada137, e reflete em si mesmo um só ardor.

II. Deus é uma esfera infinita, cujo centro se encontra em todas as partes, e sua circunferência em nenhuma.138

136 “A estrutura da obra apresenta fortes analogias com os escritos que, na segunda metade do século XII,

introduzem na Teologia o método axiomático (...) Deste modo, as vinte e quatro definições que compõem o Livro expressam as condições gerais que levam a mente humana a traduzir em conceitos a intuição noética do divino.” – LUCENTINI, Paolo. “Introducción”. In: El libro de los veinticuatro filósofos, op. cit., p. 11.

137 Mônada – Organismo simples, unidade orgânica. 138 “As duas primeiras sentenças, que representam respectivamente a Deus como uma mônada e como

uma esfera infinita, são as mais célebres de todas, e têm sido amplamente citadas e discutidas na literatura medieval. Ambas definem a natureza da primeira causa por meio de imagens que representam a Deus em termos matemáticos (...) A origem dessas metáforas é antiqüíssima, e remete a Pitágoras (no tocante à mônada ou unidade) e a Parmênides, Empédocles e aos Hinos Órficos (no que diz respeito à esfera).” – LUCENTINI, Paolo. “Introducción”. In: El libro de los veinticuatro filósofos, op. cit., p. 16.

Platão já afirmara no Timeu (VI, 33b): “Quanto à forma (do universo), concedeu-lhe a mais conveniente e natural. Ora, a forma mais conveniente ao animal que deveria conter em si mesmo todos os seres vivos, só poderia ser a que abrangesse todas as formas existentes. Por isso, ele torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas extremidades a igual distância do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhante a si mesma, por acreditar que o semelhante é mil vezes mais belo do que o dessemelhante. Ademais, por vários motivos, deixou lisa sua superfície exterior.”; e VI, 34a: “...por todas essas razões, a divindade eterna, tendo em mente a divindade que viria algum dia a existir, deixou-a lisa e uniforme, com todas as partes eqüidistantes do centro, completa e perfeita e composta só de corpos perfeitos. No centro colocou a alma, fazendo que se difundisse por todo o corpo e completasse seu envoltório, depois do que formou o céu circular com movimento também circular, céu único e solitário, porém capaz, em virtude de sua própria excelência, de fazer companhia a si mesmo, sem necessitar de ninguém nem de conhecimentos nem de amigos, mas bastando-se a si mesmo. Com todas essas qualidades, engendrou uma vida feliz.” – PLATÃO. Diálogos (trad. de Carlos Alberto Nunes). Belém: EDUFPA, 2001, p. 69-70.

O tema do círculo como figura geométrica perfeita remonta, no mínimo, a Santo Agostinho. Em sua obra Sobre a potencialidade da alma (Petrópolis, RJ: Vozes, 2005), Agostinho dialoga com Evódio sobre as figuras geométricas, discutindo as propriedades destas, entre elas a igualdade, até chegarem ao círculo, a figura geométrica mais perfeita. Agostinho diz (cap. 11, p. 58): “Quanto a figura mais excelente, não duvidará que seja aquela cujo perímetro está eqüidistante do centro de tal maneira que qualquer ponto da superfície dista igualmente do centro, sem ângulos que impeçam a igualdade, de cujos centros podemos traçar linhas iguais para qualquer dos limites da figura”.

A seguir, o Pseudo-Dionísio, o Areopagita, em Dos Nomes Divinos (trad. e notas de Bento Silva Santos. São Paulo: Attar editorial, 2004, cap. IV, “Do bem, da luz, do belo, do amor, do êxtase, do zelo, e de que o mal não é um ser, nem deriva do ser, nem existe nos seres”, p. 99): “§ 8. “Diz-se que as inteligências divinas se movem circularmente, se unidas as iluminações, que não têm princípio e fim, do belo e do bem, ou em linha reta, quando acedem à providência de seus inferiores e regulam todas as suas operações em linha reta, ou helicoidalmente, quando, ocupando-se dos seres inferiores, permanecem em sua identidade sem mover-se, girando incessantemente em torno do belo e do bem, que é causa da sua fixidez”. § 9. “O movimento da alma é circular quando, entrando em si mesma, se afasta do mundo exterior, quando reúne, unificando-as, suas faculdades intelectuais em uma concentração que as guarda de todo erro, quando se desprende da multiplicidade dos objetos exteriores para primeiramente recolher-se em si mesma e, em seguida, tendo atingido a unidade interior, unir-se

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III. Deus está inteiro em qualquer parte de si. IV. Deus é mente que gera a oração e continua na perseverança. V. Deus é aquilo do qual nada melhor se pode cogitar. VI. Deus é aquilo em comparação com o qual toda a substância é acidente, e o

acidente é nada. VII. Deus é princípio sem princípio, processo sem variação, fim sem fim. VIII. Deus é o amor que quanto mais se possui, mais se esconde. IX. Deus é o único que tem presente tudo quanto pertence ao tempo. X. Deus é aquele cujo poder não é numerável, cujo ser não é finito, cuja bondade

não é limitada. XI. Deus se encontra acima do ser, necessário, abundante e suficiente, só para Si. XII. Deus é aquele cuja vontade é igual à potência e sabedoria divinas. XIII. Deus é a eternidade que atua em si, sem divisão e hábito. XIV. Deus é oposição ao nada, mediante o ente. XV. Deus é a vida, cujo caminho até a forma é a verdade, e até a unidade, bondade. XVI. Deus é o único que, por Sua excelência, faz com que as palavras não alcancem

Seu significado, nem a mente, por causa de sua dessemelhança, O compreenda. XVII. Deus é intelecto só de si, e não recebe predicado. XVIII. Deus é uma esfera que tem tantas circunferências como pontos. XIX. Deus sempre se move de maneira imóvel. XX. Deus é o único que vive do intelecto de si. XXI. Deus é a treva que permanece na alma depois de toda luz. XXII. Deus é aquele de quem é tudo o que é sem participação, pelo qual é sem

alteração, e no qual é aquilo que é sem mescla. XXIII. Deus é aquele que a mente conhece só mediante a ignorância. XXIV. Deus é luz que brilha sem fratura, se difunde, mas nas coisas só resta uma forma.

***

15. SÃO BOAVENTURA (1221-1274) e a Palavra como Signo, na Recondução das Ciências à Teologia139

15. ...O principal objeto da filosofia racional é o estudo da palavra. Nele devem considerar-se três aspectos correspondentes à tríplice consideração da própria palavra, a saber: em relação a quem profere, a disposição da sua enunciação, e a relação a quem a ouve ou a razão do seu fim. 16. Se considerarmos a palavra em relação a quem a profere, verificamos que toda palavra é signo de um conceito da mente140, e este conceito interior é uma palavra mental141, prole da mente, conhecida por aquele que a concebe. Mas, para que seja conhecida de quem a ouve, reveste forma de voz, e mediante esse revestimento, essa palavra142 inteligível torna-se sensível, é ouvida de fora

às potências unidas singularmente (...)”. Agradecemos às estudantes de História da Ufes, Layli Rosado e Juliane Albani de Souza pela investigação realizada sobre a perfeição do círculo.

139 SÃO BOAVENTURA. Recondução das Ciências à Teologia (trad. e posfácio de Mário Santiago de Carvalho). Porto: Porto Editora, 1996.

140 ARISTÓTELES, Periherm., I, c. 1. 141 No original “verbum mentis”. 142 No original, “verbum”.

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e é recebida no ouvido do coração de quem a ouve, sem que por isso se afaste da mente daquele que a profere. De modo semelhante, vemos que o Verbo eterno, que o Pai desde a eternidade concebe, quando o gerou, conforme o que está escrito no oitavo capítulo dos Provérbios, “ainda não existiam os abismos e eu já estava concebido”143, para dar-se a conhecer ao homem sensual tomou a forma de carne, “e o Verbo se fez carne e habitou entre nós”144, permanecendo, não obstante, “no seio do Pai”.145 17. Mas, se considerarmos a palavra pela sua disposição, então veremos nela a regra de viver. Na verdade, para a perfeição da palavra são necessárias estas três condições: conveniência, verdade e elegância. Conforme a estas três propriedades, toda a nossa ação deve ter modo, deve ter espécie e deve ter ordem146, de sorte que tome a forma do modo pela modéstia na obra exterior, a especiosidade pela pureza do afeto, e a ordem e o embelezamento pela retidão na intenção. Pois que só se vive reta e ordenadamente quando a intenção é reta, o afeto é puro e a ação é modesta. 18. Já se considerarmos a palavra na razão do seu fim, ela consiste em exprimir, em instruir e em mover. Porém, não é possível exprimir o que quer que seja senão mediante uma idéia, nem ensinar senão mediante o lume da argumentação, nem mover senão mediante a virtude. Verifica-se que isto não se dá senão pela idéia, o lume e a virtude intrínseca, intrinsecamente unidas à alma, pelo que Agostinho conclui que só é verdadeiro doutor aquele que é capaz de imprimir a idéia, e infundir o lume, e dar a virtude ao coração do ouvinte.147 E, por isso é que “tem a cátedra no céu aquele que ensina no íntimo dos corações”.148 Assim, pois, como nada é perfeitamente conhecido palavra a não ser por meio da virtude, do lume e da idéia unidas à alma, assim também, para que a alma seja instruída no conhecimento de Deus pela locução interna dele, é necessário que se uma àquele “que é o esplendor da sua glória e a imagem da sua substância, e que tudo sustenta com o poder de sua palavra”.149 Por aqui se patenteia quão maravilhosa é esta contemplação, da qual se vale Agostinho em muitas obras a fim de nos guiar pela mão até a sabedoria divina.

*** 16. PSEUDO-ARISTÓTELES (séc. XIII) e a Morte, em Sobre a maçã ou Sobre a morte de

Aristóteles150

(...) 2. Naquele tempo, vivia um grande, famoso, e inteligente sábio, cujo nome era Aristóteles. Todos os sábios de seu tempo ouviram suas ciências, compreenderam suas questões, e foram por ele ensinados. Quando se aproximava o tempo de sua morte e ele sofria uma grave doença que o

143 Prov., 5, 24. 144 Jo, 1, 14. 145 Jo 1, 18. 146 BOAVENTURA, Brevilóquio, p. 3, c. 1. 147 AGOSTINHO, Epist. Jo., tr. 3, n. 13. 148 AGOSTINHO, Jo. Evang., tr. 20, n. 3 e tr. 26; De Magistro, c. 2, n. 38. 149 PAULO, Heb., 1, 13. 150 PSEUDO-ARISTÓTELES. De pomo sive. De morte Aristotelis. Sobre a maçã ou Sobre a morte de Aristóteles (apres.,

introd., ver. técnica e notas de Jan G. J. Ter Reegen). Fortaleza: Ed. Uece, 2006.

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levaria à morte, todos os sábios se reuniram e vieram vê-lo, para conhecer as causas de sua morte. Encontraram-no segurando uma maçã na mão, que, vez por outra, cheirava.151 Estava, porém, acometido de uma grande fraqueza por causa da seriedade de sua doença, e abatido por dores mortais. 3. Quando o viram nesse estado, ficaram muito perturbados e se aproximaram dele (...) 4. Aristóteles, porém, brincou com eles, dizendo: “(...) sei que estou moribundo e que não me livrarei, porque a dor aumentou muito. E se não fosse esta maçã que tenho na minha mão e cujo cheiro me conforta e prolonga um pouco a minha vida, já teria expirado (...).

(...) 7. Um dos sábios presentes, de nome Syman152, respondeu, lhe dizendo: “Nosso senhor e nosso mestre, sempre nos fizeste o bem e nos ensinaste muitas ciências; agora faça-nos um favor, e conforta o nosso coração, para que aprendamos a não temer o dia da morte e que não fiquemos perturbados, como certos homens que ficam transtornados diante da morte, como vemos em moribundos, que estão partindo e se encontram em grande temor e inquietação, porque não sabem para onde vão, e que esperança podem ter. 8. Aristóteles lhe respondeu: “Então, eu lhes ensinarei e mostrarei como entender e saber a verdade das minhas palavras. Mesmo que isto signifique para mim um enorme esforço, cheirarei o aroma desta maçã para reconduzir a mim as minhas forças até terminar minhas palavras (...) 9. Os discípulos então se levantaram, e alguns beijaram a sua cabeça. Aristóteles disse-lhes: “Primeiro quero perguntar se vocês confessam e crêem na ciência da Filosofia, que contém todas as ciências, que é verdadeira, e que, quem a procura, procura a verdade, a retidão e os degraus mais altos e divinos, e que é por ela que os homens e os animais se diferenciam”. Responderam: “Querendo ou não, confessamos que é assim”. (...) 10. Então Aristóteles falou: “Agora os interrogarei a respeito de outra questão: vocês sabem que a morte nada mais é do que uma retirada da alma do corpo?”. Disseram: “Sim”. Ele lhes falou: “Vocês estão felizes porque entenderam e aprenderam a ciência, e estão tristes por não poderem compreender ou aprender nada a respeito dela?”. Responderam: “Sim”.

151 Há muitas estórias sobre a força vital das fragrâncias. Por exemplo, Demócrito teria sobrevivido três dias inalando o

cheiro de pães quentes. Nos escritos sagrados de Mandeus fala-se de uma árvore da vida, no sul da Mesopotâmia, de que se diz: “eu sou a videira da vida, a árvore do louvor, de cujo aroma qualquer um revive ao respirá-lo”. No Cântico dos Cânticos (2, 5): “Sustentai-me com bolos de passas, dai-me forças com maçãs, oh! Que estou doente de amor” (nota de Jan G. J. Ter Reegen, p. 75). Ver também ACKERMAN, Diane. Uma História Natural dos Sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

152 Nome claramente inspirado em Simmias, do Fédon de Platão (nota de Jan G. J. Ter Reegen, p. 79).

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Ele lhes disse: “Se for assim como estão dizendo, neste caso estão vendo que o corpo ignorante não vê, não ouve, nem entende qualquer coisa senão pela força da alma, com ele unida no seu ser. E o corpo, consentindo com os prazeres da mesa, bebida e outros deleites, é contrário à ascensão da alma, aos degraus que lhe são bons e adequados, e quando se retirar do corpo, retirar-se-á daquilo que é contrário à realização de seu desejo, e daquilo que é oposto ao seu bem.153 11. Já lhes declarei que o homem não pode compreender as ciências mais nobres senão através dos degraus da alma, quando é purificada, aperfeiçoada e santificada de suas impurezas, quando se retira da impureza, que nele está encarcerada, e que foi contraída da terra, correndo atrás dos prazeres do corpo, em mesas fartas, bebidas e deleites, como fazem os outros animais que não possuem uma alma sábia, que faz com que possam dominar suas inclinações e seus desejos. Porque, através desses degraus, o homem supera um igual em grau, quando domina seus prazeres e reprime sua natureza, criando uma aversão aos divertimentos do corpo, que o sujam, e quando procura as delícias da alma no aprender das ciências sobre Deus – que, por Sua sabedoria, criou o mundo – e quando investiga os seus caminhos e entende seus segredos. Então, abrem-se os olhos da alma, deleitam-se muito e regozijam-se com um prazer diferente dos prazeres corporais, porque todos os atrativos do corpo são limitados, terminam e destroem sua substância, e fazem-no chegar à destruição. Mas as delícias da alma são compreender seu criador, contemplar as obras dos céus e sua sapiência, o curso de suas esferas e de suas formas, e o fato que tudo isso é fundado e baseado na Sabedoria. E se sua ciência não consegue compreender os grandes degraus de tudo isso, o homem deve refletir sobre si mesmo e a subtilidade de seus membros (...) Através disso, pode conhecer, em sua mente, o seu criador, e saber que a ciência do homem, enquanto estiver com vida, é desprezível, mas que a alma que deseja obter e aprender as ciências que explicam tudo isso, é perfeita e reta, e esta alma não ficará nem triste, nem perturbada, quando afastar do corpo aquilo que contradiz à perfeição do seu desejo e de sua procura. 12. E vocês ignoram que o filósofo puro e perfeito mata neste mundo todos os seus desejos a respeito dos prazeres de mesa, de bebida, de vestimentas caras e de outras delícias, como também de tesouros de ouro e prata, e menospreza todos os prazeres que o conduzem à destruição do corpo e da alma?154 Porque aquele que está muito inclinado aos prazeres de mesa e a bebida, e que desfruta os prazeres inferiores desse tipo, em que se encontra alegria somente durante um tempo em que se come, aquele corrompe seu corpo com enfermidades e tristezas, porque, por causa de muita comida e bebida, os humores que nascem em seu corpo – e nos quais está a raiz da vida do homem e sua força – aumentam excessivamente. Pois um humor é o sangue, a fonte da vida, e ele é quente e úmido; o segundo é a bílis negra, fria e seca; o terceiro é a bílis, quente e seca; o quarto é a fleuma, fria e úmida.155

153 Referência ao pensamento platônico exposto no Fédon, que prega a necessidade de o homem se distanciar dos

prazeres corporais e se preparar para a verdadeira ciência (80C-84B); nesta perspectiva, a filosofia é apresentada como um aprender a morrer, uma verdadeira catarse. O tema é também desenvolvido na Sétima Carta, com uma descrição bem concreta, quando Platão se queixa da vida dissoluta dos sicilianos, que lhes impossibilita praticar a filosofia e se tornarem sábios (nota de Jan G. J. Ter Reegen, p. 82).

154 Não são somente os desejos carnais que levam o homem ao desequilíbrio e à impossibilidade de chegar à sabedoria; também os desejos dos bens temporais, simbolizados no querer ouro e prata são empecilhos para este objetivo. A razão da necessidade de se fugir de todos esses bens é a sua fugacidade, ao contrário da verdadeira sabedoria, a verdadeira riqueza, que consiste em bens que duram para sempre (nota de Jan G. J. Ter Reegen, p. 83).

155 Para a teoria dos quatro humores, ver COSTA, Ricardo da. “Olhando para as estrelas, a fronteira imaginária final – Astronomia e Astrologia na Idade Média e a visão medieval do Cosmo”. In: Dimensões - Revista de História da UFES

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E qualquer um desses quatro humores diminui, aumenta e altera sua natureza por causa da comida excessiva ou variada. De forma semelhante, aquele que usa muito o desejo sexual, envelhece seu corpo e enfraquece sua substância. (...) E vocês outros, se forem sábios e inteligentes, conforme dizem, e odiarem todos os prazeres do corpo, como estão obrigados a fazer em razão do caminho das ciências, de que então têm medo e se perturbam? Se criarem raiz, então gozem do fruto.

(...) 25. Quando o sábio chegou ao fim dessas explicações, suas mãos começaram a tremer, e caiu a maçã que segurava nelas. E enquanto sua face começava a ficar preta, ele expirou. Um após outro, os discípulos caíram sobre ele e o beijaram, e juntos ergueram gritos de lamento, chorando copiosamente, e disseram: “Que possa aquele que recolhe as almas dos filósofos, recolher a tua alma e colocá-la nos seus tesouros156, como é digno à alma de um homem reto e perfeito, como és tu!”.157

***

17. SANTO TOMÁS DE AQUINO (c. 1225-1274) e busca do filósofo pela Verdade e pela Sabedoria, na Suma contra os gentios158

Livro I Cap. I

(...) 3. b) O nome de sábio é simplesmente reservado só para quem se dedica à consideração do fim do universo, que é também o princípio. De onde afirma o Filósofo que pertence ao sábio considerar as altíssimas causas.159

14. Dossiê Territórios, espaços e fronteiras. Vitória: Ufes, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Edufes, 2002, p. 481-501. Internet, www.ricardocosta.com/univ/astrologia.htm

156 Uma referência à região sublunar, que é substancialmente diferente do mundo acima da Lua, visto que ela é temporal, mutável, etc. (nota de Jan G. J. Ter Reegen, p. 95).

157 “As filosofias clássica e medieval tinham como um de seus principais fundamentos a meditação da morte. Platão (c.428-347 a. C.) foi um dos primeiros a expressar esse pilar reflexivo: “...aqueles que filosofam, no reto sentido da palavra, se exercitam em morrer”. Cícero (106-43 a.C.), mantendo essa mesma linha de pensamento, disse que toda a vida filosófica é um comentário sobre a morte. Por sua vez, desde cedo o cristianismo abraçou com muito vigor e profundidade a meditatio mortis. Em sua Segunda Carta aos Coríntios, São Paulo expressou a serenidade com a qual o cristão constantemente reflete sobre a corrupção do homem exterior, isto é, do corpo, em oposição à diária e serena renovação do homem interior, isto é, da alma. E por isso, os verdadeiros cristãos deveriam atentar não para as coisas visíveis, porque são temporais e perecíveis, mas para as invisíveis, que são atemporais e eternas. Portanto, a preparação para a morte era o verdadeiro exercício da filosofia, e especialmente da filosofia cristã: meditativa, a alma do crente se encontrava em si mesma e tinha consciência do permanente exílio que significava viver nesse tempo fugaz e habitar a frágil moradia terrena, o corpo.” – COSTA, Ricardo da. “A meditatio mortis no Livro do Homem (1300) de Ramon Llull”. In: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Série de Filosofia, II Série, volume XXIII/XXIV, Porto, 2006/2007, p. 237. Internet, www.ricardocosta.com/pub/meditatio.htm.

Sobre o tema da morte no pensamento medieval, ver também COSTA, Ricardo da e SILVEIRA, Sidney. “A morte na perspectiva de Santo Tomás de Aquino”. In: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de (org.). Idade Média: tempo do mundo, tempo dos homens, tempo de Deus. Porto Alegre: EST Edições (Escola Superior de Teologia), 2006, p. 223-229.

158 SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios (trad. de D. Odilão Moura e D. Lugiero Jaspers; rev. de Luis Alberto de Boni). Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990.

159 ARISTÓTELES, Metafísica, I, 1, 981a; 2, 982a.

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4. a) O fim último de cada coisa é intencionado pelo seu primeiro autor ou motor. O primeiro autor e motor do universo é o intelecto, como mais além se verá. Convém, pois, que o fim último do universo seja o bem do intelecto, que é a verdade. Donde ser a verdade o fim último de todo o universo. Donde, também, convir à sabedoria entregar-se, acima de tudo, à sua consideração (...) 5. Esclarece também o Filósofo que a Filosofia Primeira é a ciência da verdade160, não porém de qualquer verdade, mas daquela verdade que é a origem de toda a verdade, isto é, a que pertence ao primeiro princípio do ser e de todas as coisas. Donde também ser a verdade o princípio de toda a verdade, já que as coisas estão dispostas na verdade como no ser.161

(...) Cap. II 8. Entre os estudos humanos, o da sabedoria é o mais perfeito, o mais sublime e o mais alegre.162 a) O mais perfeito porque enquanto o homem entrega-se ao estudo da sabedoria, participa, de algum modo, da verdadeira beatitude. Por isso diz o sábio: “Feliz o homem que permanece na sabedoria” (Ecl 14, 22). b) O mais sublime, porque por ele o homem aproxima-se o mais possível da divina similitude, que tudo fez sabiamente.163 E porque a semelhança é causa da dileção, o estudo da sabedoria nos une de modo precípuo a Deus, pela amizade, como se diz no livro da Sabedoria: “A sabedoria é um tesouro infinito para os homens, que, ao usarem dele, fazem-se participantes da amizade de Deus (Sb 7, 14). c) O mais útil, porque pela própria sabedoria chega-se ao reino da imortalidade: “O desejo da sabedoria conduz ao reino eterno (Sb 6, 21). d) O mais alegre, porque também está escrito: “Sua companhia não é amarga, nem enfadonha é sua convivência, mas alegre e cheia de gáudio (Sb 8, 16).

160 ARISTÓTELES, Metafísica, II, 1, 993b. 161 “A sabedoria consiste em conhecer a ordem das coisas (...) e esse ideal não só afeta aos assuntos da vida prática,

segundo os exemplos colocados por Tomás, mas também ao conhecimento teórico, no qual o sábio deve descobrir e contemplar o universo, aquele conhecimento que mais propriamente merece o nome de sabedoria (...) E como o fim do universo é o que é pretendido por seu primeiro motor, que é um entendimento, e o pretendido é o bem do entendimento, que é a verdade, então o sábio busca o conhecimento da verdade. E, diante de tudo, a Verdade suprema e fonte de toda a verdade e de todo o ser, que é Deus (...) Deus é o objeto da sabedoria. Isto o compreendeu Tomás nos textos dos filósofos, mas sobretudo na Metafísica de Aristóteles.” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 189-190.

162 “Nesse conceito tradicional de filosofia, o sentido literal da palavra grega philosophia é tomado, sobretudo por Platão, de modo muito mais originário do que ocorre usualmente. Platão toma estritamente ao pé da letra um dito de Pitágoras segundo o qual só Deus seria sábio (sophos), enquanto o homem, na melhor das hipóteses, é somente alguém que busca amorosamente a sabedoria (um philo-sophos). A afirmação de Sócrates, em O banquete, de que nenhum dos deuses filosofa, não passa afinal de uma outra forma de exprimir o mesmo pensamento. E não somente Platão – a quem chama „o pai de todos os sonhadores filosóficos‟ – que faz essa afirmação; também um realista como Aristóteles vem a dizer o mesmo. Aristóteles está convencido de que a pergunta sobre „Que é isto? Algo real?‟ – formulada por ele, de modo resumido e compacto, em apenas três sílabas: ti to on? – não é apenas uma questão que se coloca „desde sempre, hoje e para sempre‟; ela estaria almejando, para além disto, como diz Aristóteles, uma reposta, conhecida unicamente por Deus.” – LAUAND, Luiz Jean e SPROVIERO, Mario Bruno. Verdade e Conhecimento. Santo Tomás de Aquino. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 44.

163 Sl 103, 24.

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(...)

11. b) Por esses motivos, é necessário recorrer à razão natural, com a qual todos são obrigados a concordar. 12. Além disso, ao investigarmos uma verdade, mostraremos os erros excluídos por ela, e como a verdade racional concorda com a fé da religião cristã.164

***

18. ROGER BACON (c. 1210-1292), o Fim do Princípio da Autoridade e o Valor da Experiência, na obra Opus maius165

Na investigação da verdade, a debilidade de nosso entendimento é muito grande para que, no que nos diz respeito, na medida do possível mantenhamos distanciadas de nossa débil mente as causas e ocasiões do erro. São principalmente quatro os obstáculos para a perfeita visão da verdade, obstáculos com os quais todos e cada um de nós, estudiosos, nos deparamos, e que dificilmente permitem a qualquer um chegar a merecer verdadeiramente o título de sábio. São eles: o exemplo da autoridade frágil e indigna; o costume; o modo de sentir da gente comum; a ocultação da própria ignorância para manifestar uma aparência de saber. Todo homem se vê pego por estes obstáculos, todo indivíduo está em contato com eles.

(...) Não falo daquela autoridade sólida e autêntica, que é a que foi conferida por Deus à Igreja, ou que surge propriamente do mérito e da dignidade dos santos filósofos e profetas perfeitos, os quais se exercitaram no estudo da sabedoria tanto quanto é possível ao homem, mas daquela autoridade que muitos neste mundo usurparam com a violência e sem a ajuda de Deus, e que não nasce do mérito do saber, mas da presunção e do desejo de fama, e que o vulgo ignorante concedeu a muitos.

(...) Após ter mostrado que as raízes das sabedoria para os latinos se encontram nas línguas, nas matemáticas e na ótica, quero agora chamar a atenção para os fundamentos da ciência experimental, já que sem experiência nada pode ser suficientemente conhecido. Dois são os modos de conhecer: pelo caminho do raciocínio e pelo da experiência. A demonstração conclui e faz com que admitamos a conclusão, mas não nos certifica nem impede a dúvida, de modo que faça descansar nossa mente na intuição da verdade, se não encontra sua confirmação na experiência.166

164 “A razão colabora com a fé, não indagando suas verdades, que não pode fazê-lo, mas as razões da fé, seu

conteúdo. Porque ambas, razão e fé, filosofia e teologia, têm o mesmo objetivo: a sabedoria, o conhecimento da causa primeira e última de toda a realidade.” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 192.

165 Citado em RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 204-205. 166 “Bacon foi discípulo de Grosseteste, de quem herdou a nova sensibilidade para com a ciência, e Pedro de

Maricourt, estudioso das propriedades do ímã, que o impulsionou em direção à investigação experimental e a fundamentar as principais questões filosóficas na natureza e na experiência. Roger Bacon soube associar as qualidades do científico, do filósofo, do teólogo e do místico. Se interessou por todos os âmbitos do saber,

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19. RAMON LLULL (1232-1316) e as Dignidades Divinas, em sua Arte Breve (1308)167

(...)

A razão pela qual fazemos esta Arte Breve é para que a Arte Magna seja mais facilmente conhecida, pois se se conhece esta, tanto a Arte supracitada como as outras artes podem ser conhecidas e aprendidas com facilidade. A finalidade dessa Arte é responder a todas as questões, sempre que se saiba o significado de cada termo.

(...) Colocamos um alfabeto nessa Arte para com ele poder fazer figuras e mesclar princípios e regras para investigar a verdade, já que por meio de uma letra que possui muitos significados, o intelecto é mais geral para receber muitos significados e fazer ciência. Convém saber de memória este alfabeto, já que de outro modo o artista dessa Arte não poderá aplicá-la bem. O Alfabeto B significa bondade, diferença, se?, Deus, justiça e avareza. C significa magnitude, concordância, que?, anjo, prudência e gula. D significa eternidade ou duração, contrariedade, de que?, céu, fortaleza e luxúria. E significa poder, princípio, por que?, homem, temperança e soberba. F significa sabedoria, meio, quanto?, imaginativa, fé e acídia. G significa vontade, fim, qual?, sensitiva, esperança e inveja. H significa virtude, maioridade, quando?, vegetativa, caridade e ira. I significa verdade, igualdade, onde?, elementativa, paciência e mentira. K significa glória, minoridade, como e com que?, instrumentativa, piedade e inconstância.

inclusive as línguas e a astrologia.” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 203.

167 Trad.: Prof. Dr. Ricardo da Costa (Ufes) e Felipe Dias de Souza, baseada na edição RAMON LLULL, Arte breve (introd. y trad. de Josep E. Rubio), Pamplona, EUNSA, 2004, que, por sua vez, baseou-se na edição princeps de Alexander Fidora, Raimundus Lullus: Ars brevis (lateinisch-deutsch), (Übers., eingel. und hrsg. von Alexander Fidora) Hamburg: Felix Meiner (Philosophische Bibliothek 518), 1999, disponível na Internet: www.ramonllull.net/br/studies/t_ars.htm

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Da Segunda Parte, das quatro figuras 1. Da primeira figura, significada por A Esta parte se divide em quatro partes, ou seja, em quatro figuras. A primeira figura é a A.168 Esta figura contém em si nove princípios, a saber, bondade, magnitude, etc., e nove letras, ou seja, B, C, D, E, etc.169 Esta figura é circular, já que o sujeito se transforma em predicado e vice-versa, como quando se diz: “a bondade é magna”, “a magnitude é boa”, etc.170 Nessa figura o artista da Arte inquire a conjunção natural entre o sujeito e o predicado, sua disposição e proporção, para que possa encontrar o meio termo que lhe permita chegar à conclusão. Qualquer princípio tomado em si mesmo é absolutamente geral, como quando se diz “bondade” ou “magnitude”. Mas quando um princípio se refere a outro, é subalterno, como quando se diz “bondade magna”, etc. E quando algum princípio se refere a algo singular, então é um princípio especialíssimo, como quando se diz “a bondade de Pedro é grande”, etc. Assim, o intelecto dispõe de uma escala ascendente e descendente, de um princípio absolutamente geral até um não absolutamente geral nem absolutamente especial, e de um não absolutamente geral nem absolutamente especial a um absolutamente especial. O mesmo se pode dizer do ascenso dessa escala. Nos princípios dessa figura se encontra incluído tudo o que existe, pois tudo o que existe ou é bom, ou é grande, etc., como Deus e o anjo, que são bons e grandes, etc. Por isso, tudo o que é se pode reduzir aos supracitados princípios.

168 Letras B (Bondade/Bem), C (Grandeza/Grande), D (Duração/Durabilidade), E (Poder/Potência), F

(Sabedoria/Sapiência), G (Vontade/Desejo), H (Virtude/Virtuosidade), I (Verdade/Verdadeiro) e K (Glória/Glorioso). “Deus, naquilo que pode ser conhecido aos homens, se caracteriza por uma série de atributos essenciais, e estes são os princípios substanciais de todas as coisas (...) estas Dignidades se refletem em todos os aspectos da Criação (...) todo o método indutivo, comparativo e demonstrativo da Arte consiste na redução das coisas particulares aos aspectos transcendentais da realidade que são estas Dignidades e, conseqüentemente, a comparação das coisas particulares entre si à luz das dignidades divinas” – PRING-MILL, Robert D. F. Estudis sobre Ramon Llull. Barcelona: Publicacions de l‟Abadia de Montserrat, 1991, p. 42-43.

169 “Os princípios básicos da Arte foram extraídos do substrato coletivo dos lugares comuns da cultura medieval, compartilhado por cristãos, judeus e muçulmanos, e que, em boa parte, deriva da síntese neoplatônica que, durante os séculos anteriores ao XIII, foi adaptada às três crenças monoteístas. No caso, a atribuição de determinadas qualidades a Deus, identificadas com sua própria essência, não era um dado estranho à teologia muçulmana ou judaica, pois remete às hadras ou nomes divinos dos teólogos do Islã, e às sephiroth da cabala hebraica (...) Convém ainda destacar a ausência de referências especificamente cristãs nas dignidades divinas: conceitos como a Trindade (ou Paternidade, Filiação, etc.) não entram na figura A.” – RUBIO, Josep E. “Introducción”. In: RAMON LLULL, Arte breve (introd. y trad. de Josep E. Rubio), Pamplona, EUNSA, 2004, p. 26.

170 As virtudes divinas “...estão unidas entre si por linhas à figura, o que indica que são co-essenciais à essência divina e mutuamente convertíveis: a bondade de Deus é grande, eterna, poderosa, sábia, etc. O mesmo ocorre com a grandeza de Deus: é boa, eterna, poderosa, etc.” – RUBIO, Josep E. Les Bases del Pensament de Ramon Llull. Els orígens de l’Art lul.liana. València/Barcelona: Institut Universitari de Filologia Valenciana / Publicacions de l‟Abadia de Montserrat, 1997, p. 74-75.

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2. Da segunda figura, significada por T

A segunda figura se chama T, e contém em si três triângulos, e qualquer deles é geral a respeito de tudo o que existe. 1. O primeiro triângulo é de diferença, concordância e contrariedade. Nele, à sua maneira, entra tudo o que existe, pois tudo o que existe ou existe em diferença, ou em concordância ou em contrariedade, e não se pode encontrar nada fora desses princípios. Convém saber que cada ângulo desse triângulo tem três espécies, pois há diferença entre o sensual e o sensual, como, por exemplo, entre a pedra e a árvore, e também entre o sensual e o intelectual, como, por exemplo, entre o corpo e a alma, e ainda, entre o intelectual e o intelectual, como entre a alma e Deus, ou entre a alma e o anjo, ou ainda entre um anjo e outro anjo, ou entre Deus e o anjo. O mesmo se pode dizer, à sua maneira, da concordância e da contrariedade, e esta diferença que há em qualquer ângulo desse triângulo é uma escala do intelecto pela qual este ascende e descende para poder encontrar um meio-termo natural entre o sujeito e o predicado e com ele poder chegar a uma conclusão. O mesmo se pode dizer, à sua maneira, da escala da concordância e da contrariedade.

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20. Sobre a Natureza da Filosofia, a Eternidade do Mundo, o Homem, a Ética e as Virtudes Cristãs, nas 219 Teses condenadas em 1277171

7. O intelecto não é forma do corpo, a não ser como o piloto o é da nave, e nem é perfeição

essencial do homem. 9. Não existiu um primeiro homem, nem haverá um último, mas sempre houve e haverá a

geração do homem pelo homem. 11. O homem é homem independentemente de sua alma racional. 15. Após a morte o homem perde todo o bem. 21. Nada acontece por acaso, mas tudo necessariamente. E todas as coisas futuras, que haverão

de ser, sê-lo-ão necessariamente, e as que não haverão de ser, é impossível que venham a ser. E considerando-se todas as causas, nada acontece por contingência.

– Trata-se de erro, porque o concurso das causas exclui o acaso, como diz Boécio no De Consolatione.172

24. Excetuando as disciplinas filosóficas, todas as demais ciências não são necessárias, a não ser pelo costume dos homens.

33. O êxtase e as visões, se acontecem, são devidos a causas naturais. 40. Não existe estado mais sublime do que o de dedicar-se à filosofia. 98. O mundo é eterno, pois o que lhe permite possuir uma tal natureza que lhe permite existir

através de todo o tempo futuro tem também uma natureza que lhe permite existir durante todo o passado.

116. A alma é inseparável do corpo. A alma se corrompe pela corrupção da harmonia do corpo. 144. Todo o bem possível ao homem consiste nas virtudes intelectuais. 154. Os sábios do mundo são somente os filósofos. 155. Não deve haver preocupação com a sepultura. 172. A deleitação nos atos venéreos não impede o ato ou o uso do intelecto.173

171 In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval. Textos, op. cit., p. 272-294. “No dia 07 de março de 1277 – terceiro aniversário da morte de Tomás de Aquino –, o bispo de Paris,

Estêvão Tempier, auxiliado por 16 professores da Faculdade de Teologia, condenava 219 teses, como contrárias à fé católica. Atingidos eram principalmente os professores da Faculdade de Artes, influenciados pela doutrina aristotélica, lida por um viés averroístico. Mas também Tomás de Aquino estava entre os atingidos. Para muitos, o bispo exorbitou de suas funções e da solicitação que o papa lhe fizera, para que informasse a respeito da situação na universidade. As teses condenadas constituem um aglomerado, revelando que o trabalho foi feito às pressas. Pesquisas modernas não conseguiram encontrar quem defendia determinadas posições; noutros casos, constataram que o texto, arrancado do contexto, afirma o contrário do que o autor estava dizendo; noutros, percebe-se que elas nada têm a ver com a fé católica.” – DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval. Textos, op. cit., p. 271.

“Esta condenação reflete a oposição de dois grandes movimentos que a cristandade mantinha no século XIII: o apego à tradição da Igreja e o inovador, representado por aqueles que queriam reconhecer a validez do pensamento pagão. No fundo, não foi senão o afloramento da tensão entre as duas atitudes que o cristianismo manteve desde seu início perante a sabedoria humana (...) Contudo, a condenação não impediu, como já havia ocorrido no começo do século, a difusão e o ensino de Aristóteles e da filosofia árabe.” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 214-215.

172 BOÉCIO (c. 470-524). A Consolação da Filosofia (trad. do latim por Willian Pi). São Paulo: Martins Fontes, 1998. 173 “Pode-se evidentemente sustentar que, ao professar a compatibilidade da atividade amorosa com o exercício do

pensamento, os partidários da proposição 172 colocavam indiretamente em questão o celibato dos padres – mas não seria esse ataque enviesado um benefício muito pequeno comparado aos danos que arriscava causar, desta vez diretamente, à apologia filosófica do status virginalis? (...) Qual era, com efeito, o perigo que mais ameaçava o poder do teólogo? Não era, como crêem certos historiadores, a ascensão de uma libertinagem intelectual, fruto do encontro entre averroístas e goliardos, mas, muito pelo contrário, como esperamos tê-lo sugerido, uma tendência crescente à assimilação filosófica do discurso cristão.” – DE LIBERA, Alain. Pensa na Idade Média. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 221.

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176. A felicidade é possuída nesta vida, não em outra vida.174 179. A confissão deve ser feita, quando muito, por aparência.175 180. Não se deve rezar. 181. A castidade não é um bem maior que a perfeita abstinência. 183. A fornicação simples, como a de um homem solteiro com uma mulher solteira, não é

pecado.176 200. A duração e o tempo não são realmente nada, mas só no conhecimento.

174 “Essa tese, novamente, retoma a afirmação de Averróis sobre a impossibilidade de uma vida futura pessoal. Não

há imortalidade pessoal, pois o pensamento (o intellectus) não é uma faculdade da alma humana. Não existe nada após a morte (...) A felicidade está nesse mundo; ela passa de um sujeito a outro, de um receptáculo a outro, numa dança de roda sem começo nem fim (...) Essa perspectiva radicalmente anticristã supõe uma definição de felicidade como união entre um Pensamento único, anônimo, transcendente, e uma alma individuada por seus „fantasmas‟ (as imagens que resultam de sua presença num corpo), e portanto incapaz de pensar por si mesma.” – DE LIBERA, Alain. Pensar na Idade Média. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 189.

175 “Para um filósofo, Deus é impassível e imutável, não podendo ser atingido nem alterado por uma demanda.” – DE LIBERA, Alain. Pensa na Idade Média, op. cit., p. 189.

176 “A moral sexual que elas esboçam [167 a 173] é claramente anticristã, porém, mais especificamente ainda, antimonástica (...) A novidade da mudança dos séculos XIII e XIV não é a profissionalização e depois a desprofissionalização da licenciosidade, mas a propagação social de um mal filosófico inesperado: o ascetismo.” – DE LIBERA, Alain. Pensa na Idade Média, op. cit., p. 193.