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António Martins Gomes
Exumações de sombras, dissecação da morte - um estudo do macabro
na obra de Camilo1
O que somos hoje, é a sombra do que fomos ontem. Ontem, sim, vivemos e amámos... Mas o dia de hoje é dos espectros.
(Teixeira de Pascoaes, 0 penitente)
1. Introdução
Camilo Castelo Branco irá, nos primeiros anos da sua carreira literária,
dedicar-se à produção de algumas pequenas novelas e romances que, pelo seu
conteúdo narrativo e pelas ideias temáticas que apresentam, se integram no género
do romance "negro" ou de terror, sucessor do romance gótico.
Ao seleccionar um "corpus" de cinco novelas escritas no espaço de três
décadas - de 1842 a 1877 -, procurei extrair as ideias básicas que transparecem
destas narrativas, marcas importantes que determinam a futura produção de Camilo e
a posição crítica que este irá tomar em relação ao género "negro".
Camilo, grande mestre criador dos sentimentos humanos mais fortes,
apresenta nestas pequenas produções, consideradas menores por muitos críticos, os
grandes temas que o condicionarão ao longo da sua obra e da sua vida: a sedução e o
abandono, o remorso e a saudade, a vingança e o crime, enfim, toda a grande
tragédia de amor e morte de que a vida humana é composta.
Por ordem cronológica, Impressão Indelével (1842), Maria! não me mates,
que sou tua mãe! (1848), O esqueleto (1848), A caveira (1855), e Voltareis, ó Cristo?
(1871), são cinco pequenas novelas que merecem, neste trabalho, um estudo mais
aprofundado não só pelas razões já acima citadas, mas igualmente pelo facto de se
relacionarem polemicamente com diversos factos da vida do seu autor, bem como
pelas semelhanças e contrastes que apresentam em relação à literatura gótica,
espécie de ficção tão popular em Inglaterra entre 1790 e 1820.
1 Vértice, 72. Maio-Junho 1996: 79-86.
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2. O terror "grosso" de Camilo
Após longos anos de repressão criativa imposta pelas noções de ordem e
decorum do racionalismo setecentista, o romance gótico surge como o grande
representante da libertação dos mais fortes sentimentos e das mais violentas
emoções, os quais contribuem decisivamente para despertar a imaginação do leitor.
O gosto do público pelo romance "negro" no século XIX, que o pré-
romantismo fez despertar, levou a que entre 1841 e 1846, ou seja, num espaço de
cinco anos, se traduzissem e publicassem 40 novelas, e nos anos posteriores, entre
1848 e 1859, com o género já em declínio, se publicassem ainda 21 novelas2.
Conforme afirma Maria Leonor Machado de Sousa, "não houve uma escola
negra em Portugal, mas apenas tentativas soltas, geralmente sem grande valor,
embora por vezes bastante significativas de um ambiente." (Sousa 1978: 285-286).
Após uma breve análise da produção deste período, concluímos que apenas alguns
poemas pertencentes à escola sepulcral, e que seguem a tradição da literatura
tumular, marcam verdadeiramente esse ambiente soturno e elegíaco: é o caso de "Os
túmulos" (1845), de José da Silva Mendes Leal Jr., ou de "Os túmulos" (1850), do
brasileiro Domingos Borges de Barros, do qual se reproduz aqui um excerto:
Cercado estou de tumulos... abri-vos Reino da morte, abrigo do infortunio! De chimeras caducas desengano. Erguei-vos mestas, pavorosas loizas! Ossos mirrados, lividos despegão, Fetidas carnes, podres ligamentos Que impuros vermes em silencio pascem; Ascosos restos de formosas fórmas.
Na década de 40 do século XIX, Camilo encontra-se sob a influência das
produções de Mrs. Radcliffe, e atribui a denominação de terror "grosso" às novelas e
aos romances que escreve com conteúdo macabro e tétrico.
Se este género de literatura utiliza as características góticas do terror (através
do misterioso) e da compaixão (através das peripécias do herói ou da heroína),
empregando por diversas vezes as palavras “sepultura”, “túmulo”, “cadáver”,
“sepulcro”, “espectros”, “fantasmas”, “funeral”, “lúgubre”, “campa”, “ruínas” ou
“sudário”, Camilo procurará aplicá-las muitas vezes mais nos ambientes neuróticos
que cria, e acrescenta outras menos comuns que enriquecem igualmente a narrativa
do ponto de vista do thriller, que o leitor oitocentista tanto procura: “esqueleto”,
“ossadas”, “caveiras”, “dissecação”, “mortalha”, “crânio”, “escalpelo", “cemitério”. À
semelhança do romance gótico, o ambiente das novelas "negras" camilianas é
2 Note-se que a célebre obra de Matthew Gregory Lewis, The Monk, publicada em 1796, é traduzida e publicada em Portugal apenas em 1861, passando quase despercebida pelo público.
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intensamente melodramático e demasiado sensacionalista; no entanto, este não é
verdadeiramente o clima tradicional da literatura "negra" – a grande novidade deste
autor é fazer transportar todo o ambiente geralmente vivido num tempo distante, de
sombrios castelos feudais em ruínas, para uma época totalmente contemporânea, e
fazer as cenas ocorrerem em locais extremamente vulgares: uma pequena aldeia, um
cemitério de província ou uma mera divisão de casa, com os quais o leitor fácil e
perfeitamente se identifica.
Associados a todo este ambiente soturno, encontramos os sentimentos mais
fortes da existência humana retratados por Camilo de uma forma clara e inequívoca:
vinganças, saudades, ódios, grandes paixões e amores, traições, desonras, ciúmes;
um exemplo perfeito desta ideia é o próprio título do folheto de cordel publicado em
1848:
MARIA!
NÃO ME MATES, QUE SOU TUA MÃE!
Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa:
Uma filha que mata e despedaça sua mãe. Mandada imprimir por um mendigo,
que foi lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmola pelas portas.
OFERECIDA Aos pais de famílias,
e àqueles que acreditam em Deus
A partir da segunda metade do século XIX, a literatura "negra" começa a
perder o seu interesse em Portugal, e o próprio Camilo, em 1856, no seu romance
Onde está a felicidade?, tece fortes críticas a este género, denunciando os malefícios
derivados deste tipo de produção narrativa e da construção das personagens que dela
fazem parte. Dois anos mais tarde, no prefácio de O que fazem mulheres - “Uma
história que faz arrepiar os cabelos", segundo o próprio autor -, criticará igualmente, e
com toda a ironia, os autores deste género:
Este romance foi escrito num subterrâneo, ao bruxulear sinistro duma lâmpada.
Alfredo de Vigny não diz que escreveu um drama, às escuras, em vinte dias? E Frederico Soulié não se rodeava de esqueletos e esquifes?
E outros não se espertaram com todos os estímulos imagináveis de terror? Menos o do subterrâneo... este é meu, se dão licença.
Pois foi lá que eu desentranhei do seio estes lôbregos lamentos. No fim de cada capítulo, vinha ao ar puro sorver alguns átomos de oxigénio,
e todos me perguntavam se eu tinha pacto com o diabo.
Poder-se-ia inferir que, a partir desta altura, Camilo rejeita, de facto, a sua
produção "negra" anterior, limitando-se simplesmente a recorrer à parodização do
género. No entanto, na novela Voltareis, ó Cristo?, publicada em 1871, regressam com
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toda a seriedade as mesmas obsessões temáticas e macabras desses primeiros
produtos do terror "grosso"; na década anterior, mais precisamente em 1865, o
romance O esqueleto apresenta igualmente uma passagem final digna de um
verdadeiro ambiente de “terror".
Para além destas esporádicas produções de Camilo, vemos ainda outros a
manterem o seu interesse por este género, como é o caso de alguns contos
publicados na década de 60 na Revista Contemporânea, do romance O Balio de Leça
(1872), de Arnaldo Gama, do conto "O defunto" (1895), de Eça de Queiroz, ou mesmo
já no século XX, as novelas de Mário de Sá-Carneiro.
3. Estética e ética
Camilo nunca se submeterá totalmente ao romance "negro", devido, em parte,
à parodização que faz a este género nos seus romances-folhetins: o elevado número
de vezes em que o narrador comunica com o narratário provoca uma desmontagem
da própria narrativa, já que interrompe o seu fio condutor, e quebra o ambiente de
tensão, devolvendo-lhe assim o seu verdadeiro carácter ficcional, como sucede na
obra que, em 1851, assinala a sua estreia literária em romance - Anátema -,
classificada pelo próprio autor de "romance tenebroso".
Uma outra razão para Camilo não encarar seriamente o género seria o facto
de a sua escrita estar bastante associada a uma questão estética - é moda compor,
nesta altura, este tipo de romance tão ao gosto do público. Mas, para além desta
função de entretenimento, o autor encara este tipo de produção como uma
oportunidade de ganhar algum dinheiro, e o próprio se refere repetidas vezes a este
facto, entre as quais na edição de 7 de Fevereiro de 1849 do jornal portuense Eco
Popular, em alusão ao êxito monetário da novela de cordel Marial Não me mates, que
sou tua mãe!, escrita por si no ano anterior: “A tal Maria José que matou a mãe tem
dado bom dinheiro”; também numa carta enviada a José Barbosa e Silva, datada
provavelmente de 1856, e na qual lhe propõe quatro correspondências mensais para o
jornal Aurora do Lima, o autor volta a fazer alusão à sua escrita por dinheiro:
"Gratuitamente não posso; bem sabes que não escrevo por prazer nem por glória."
(Cabral 1980, 82).
No entanto, nas cinco pequenas novelas que constituem o "corpus" de
análise deste trabalho, não encontramos sátira ou paródia ao género. Note-se a forma
como o narrador de A caveira se dirige ao leitor, por mais de uma vez:
Como vinha dizendo, leitor atencioso, quando eu tive a honra de ser admitido ao trato íntimo de D. João de Noronha, reparei numa caveira, contida em
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uma redoma de vidro, com pedestal de pau preto, enviezado de arabescos de marfim. (p. 59)
- E a caveira? - perguntou ainda a amável síndica dos meus romances. - A caveira deve estar confundida nos ossos de D. João de Noronha. A
viúva cumpriu religiosamente às suas ordens: envolveu-a na mesma mortalha. (p. 74).
Até mesmo as passagens que parecem transmitir uma certa ironia, acabam
por transmitir mais força à cena e manter a mesma tensão. Como afirma Guerra
Junqueiro, "Camilo tem a ironia fúnebre de Quevedo.” (Pascoaes 1985: 21).
Diversas passagens de O penitente, de Teixeira de Pascoaes, confirmam
igualmente o sentido de seriedade no que respeita às alusões macabras e "negras" na
produção literária camiliana. Para este autor, tudo o que Camilo escreve é
verdadeiramente sentido, e a sua caminhada para a morte é um irreversível processo
dramático que acompanhará sempre este escritor desde o dia em que nasce: toda a
sua infância é percorrida pelo espectro da morte, que o faz perder o pai aos dez anos
de idade, para além de nunca ter chegado a conhecer verdadeiramente a mãe; com
dez anos, encontra-se perdido num meio sombrio de Vila Real, sob a protecção da tia
Rita, sempre de luto, e, segundo ele, anos mais tarde, já adolescente, desenterra o
cadáver de Maria do Adro, a primeira paixão da sua juventude. Este episódio marcá-
lo-á para o resto da vida, tal como os da dissecação dos cadáveres na cadeira de
Anatomia, na Escola Médica do Porto, em 18443.
A exumação de Maria do Adro,
descrita em 1842 por Camilo na
pequena novela Impressão indelével, é,
contudo, bastante polémica, dado
existirem bastantes dúvidas em relação
à veracidade deste episódio,
acreditando muitos críticos tratar-se
antes de uma pura invenção do autor
aos 19 anos de idade. Tal, porém, não é
a opinião de António Cabral; no seu livro
Camilo desconhecido, esta história é
confirmada como tendo sido uma
experiência pessoal:
Saavedra Machado, Exumação de Maria do Adro
3 Entre 1844 e 1845, Camilo frequenta o curso de Medicina, e essa experiência permite-lhe obter bastantes conhecimentos nesta área.
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Debaixo do leito do padre António, esteve escondido, algum tempo, dentro dum cesto, o esqueleto de Maria do Adro, que, depois de ter sido depositado por Camilo e o cunhado no interior escuro de uma mina, para ali foi transferido e ali foi oculto, com desconhecimento do sacerdote, que só mais tarde, quando um cão que lhe entrou sorrateiramente no quarto saiu de sob o catre com um fémur entre os dentes, descobriu o segredo e verificou a exactidão do rumor, que corria na aldeia, do desenterramento do cadáver. (apud Coelho 1982: 243).
Alberto Pimentel, para além de fazer a mesma confirmação, vai ainda mais
longe ao acrescentar que a ideia desta exumação não teria partido do Doutor
Francisco de Azevedo, mas antes do próprio Camilo, devido às saudades amorosas
que dela sentia. As formas interiores do escritor serão, pois, sempre sombrias, e o
macabro acompanhá-lo-á, em maior ou menor grau, ao longo de toda a sua obra.
A veracidade deste episódio é, no entanto, posta em causa quando o próprio
Camilo, numa carta dirigida a Freitas Fortuna, e datada de 14 de Setembro de 1889,
comenta o seguinte: "Caveiras, só tive uma perto de mim quando estudava anatomia.
Mais nada a tal respeito." (Moutinho 1985: 12). Ora, segundo a sua cronologia
biográfica, ao frequentar a Escola Médica do Porto entre 1844 e 1845, leva-nos a
concluir que tal facto não é coincidente com as palavras de Jacinto do Prado Coelho;
segundo este crítico, que corrobora o testemunho do Padre Sena Freitas,
Camilo, não apenas como escritor, mas como homem, imitava nesse período aquele Soulié que, para escrever, se rodeava de 'esqueletos e esquifes'; em 1852, teria levado o 'realismo ascético' ao ponto de fazer do seu quarto uma espécie de câmara ardente, com um crânio ao fundo, [...]. (Coelho 1982: 303).
Polémica, sem dúvida, toda esta relação macabra de Camilo com a morte!
Para Teixeira de Pascoaes, só Fialho de Almeida supera Camilo quando se trata de
descrever a morte.
Se, por um lado, então, o macabro na obra camiliana tem um intuito estético,
correspondendo à moda da época e seguindo a corrente social de Eugène Sue, terá
igualmente uma função moralizadora, entrando aqui, naturalmente, em paralelo com a
antecedente literatura gótica, já que ambas procuram, à semelhança do ideal trágico,
suscitar terror e piedade. No entanto, e ao contrário dos romances góticos, nos quais
os heróis virtuosos têm sempre a recompensa final após levarem de vencida as forças
do mal, as personagens de Camilo são mais humanizadas e mais manchadas pelos
pecados cometidos, sendo contra os seus próprios sentimentos que têm de lutar;
desta forma, sem a existência de personagens virtuosas ou de recompensas finais,
restam apenas a penitência e a morte como punição.
Há sempre um fundo moral nestas novelas, predominando fundamentalmente
o moralismo cristão e, apesar de uma profunda visão pessimista em que a vida tem o
mero sentido de um percurso disfórico entre o nascimento e a morte, a conclusão é de
que todo o crime é condenado, como em Maria! Não me mates, que sou tua mãe!:
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“Vereis como esta filha sem alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do
inferno, é descoberta como matadora de sua mãe, por um milagre, pela providência de
Deus!”.
A revelação de que todo o crime acaba por ser descoberto e punido é, de
facto, o fundo moralizante do relato deste crime hediondo descrito no folheto de cordel
publicado em 1848: “Estes atentados contra Deus, esta guerra de irmãos com irmãos,
estes acontecimentos de filhos matarem pais, e esses sinais que nos aparecem no
céu, tudo indica que o fim do mundo está chegado” (pág. 33).
Outra novela que patenteia ainda a visão pessimista de Camilo perante a
ausência de sentimentos nobres no ser humano, onde se lhes sobrepõem o ciúme e a
vingança, que originam os crimes, é Voltareis ó Cristo?:
- Meu Deus, enviai segunda vez à Terra o vosso divino Filho! Esta negridão gentílica é pior que a de há dois mil anos. Naquele tempo esperava-se; nas entranhas sociais estremecia o pressentimento de um regenerador... Hoje em dia, nada, nada, ó altíssima Providência! Nada! Mas... voltareis, ó Cristo? (pág. 201).
Ideia igualmente obsessiva será a condenação moralista do sedutor sem
escrúpulos, que abandona a amada e regressa, tarde demais, arrependido e coberto
de remorsos. A servirem de exemplo ao tema da sedução e abandono, encontram-se
Impressão indelével, A caveira e O esqueleto, esta última publicada pela primeira vez
em 10, 13 e 14 de Julho de 1848, nas páginas d'O Nacional, e que parece também
estar associada ao episódio da vida de Camilo contado em Impressão indelével.
Não é por acaso que Camilo é considerado por muitos o penitente por
excelência: ele compreendeu, como ninguém, a tragédia do amor.
4. A tragédia do amor
As cinco novelas aqui analisadas têm, para além do género "negro" em que
se inserem, um denominador temático comum - o amor, sentimento que conduz,
fatalmente, as personagens à morte, seja ela por ciúme, vingança, ou até mesmo de
doença por desgosto. 0s sentimentos mais fortes prevalecem acima de tudo, e a morte
é, assim, dramatizada ao mais alto grau.
As paixões sentimentais, ao comandarem o sentido da vida, serão igualmente
condicionantes da morte, que, estando marcada pela exaltação romântica que dela se
faz, nunca é natural, e será desta forma que Eros e Thanatos se associarão
obsessivamente:
- em Impressão indelével, após o narrador ter seduzido a sua amada Maria do Adro,
parte para Lisboa. Quando regressa e a tenta encontrar é já tarde demais: Maria do
Adro tinha morrido um mês antes de tísica;
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- em Maria! Não me mates, que sou tua mãe!, Maria José mata a mãe por esta querer
interferir na relação que a filha tinha com José Maria, o seu sedutor;
- em O esqueleto, Carlos seduz Amália e parte em seguida para o Porto. De lá
regressa, passados dois anos, esperando reencontrá-la; a sua noiva, contudo, tinha
morrido já de desgosto, e perante o cadáver com que a família de Amália, por
vingança, o presenteia, acaba por vir a definhar de remorsos e morrer;
- em A caveira, Heitor Correia e Pedro de Mesquita travam um duelo por amor a
Marta, e o primeiro sai morto deste confronto; Fernando Correia, irmão de Heitor,
vinga este, matando Pedro a tiro. Marta, por sua vez, acaba por morrer, aos
poucos, de saudades dos seus amantes. A maior prova de amor é, no entanto,
dada por D. João de Noronha que, não tendo conseguido fazer com que Marta o
amasse em vida, acaba por cuidar diariamente da sua sepultura durante três anos
e, após a exumação dos seus restos mortais, conservar a sua caveira como forma
de perpetuar as saudades amorosas que dela sentia;
- em Voltareis ó Cristo?, um fidalgo pune as infidelidades da mulher que amava,
matando o seu amante, por quem estava bastante apaixonada, e encerra-a dentro
do seu quarto juntamente com o esqueleto do amante.
A par desta temática do amor, encontramos igualmente a da sedução, que é
tradicionalmente considerada uma estratégia diabólica, estando, por isso, associada
sempre ao mal. A sedução, pelo seu carácter artificial e mundano, é ausente de
finalidade: o sedutor serve-se apenas de um meio - o objecto seduzido - para saciar o
seu desejo.
0 acto de sedução é visto, pois, como um factor de corrupção da ordem
divina, ao mergulhar, segundo o pensamento religioso ocidental, as suas raízes no
mito do pecado original. Um excerto de A caveira dá a imagem da mulher como meio
primordial de aliciação intermédia do Diabo, e como estando na origem da queda do
homem e dos males da humanidade:
Quando encontrei uma mulher, que me imprimiu nos sonhos a sua imagem, perdi o império da vontade, e as fervorosas vocações do sacerdócio. Adorei uma dessas belas mulheres, que trazem consigo uma sina de desgraças, um contágio de desastres, e a perpetuidade duma chaga, aberta no coração com um ferro em brasa. (pág. 61)
0s actos de sedução e de abandono que encontramos em Impressão
indelével (1842) e O esqueleto (1848) enquadram-se na linha temática da literatura
romântica, como podemos observar através dos exemplos de alguma produção
francesa (Ernest Desprez, Un enfant, 1833; Émile Souvestre, L'école des femmes,
1835; Mme. Ancelot, Marie ou les trois époques, 1836) e portuguesa (Alexandre
Herculano, O monge de Cister, 1848), e, pelo que nos é dado a entender por Jacinto
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do Prado Coelho e muitos outros autores, este tema está relacionado directamente
com o próprio drama pessoal de Camilo, quando abandonou Maria do Adro e Joaquina
Pereira, tendo vindo a arrepender-se posteriormente. Daí que, nas suas obras, a
sedução se encontre sempre associada à noção de culpa, esse terrível anátema
proveniente do pecado original. Em Uma praga rogada nas escadas da forca, escrita
em 1854 - no início da sua carreira, portanto -, podemos ler, na introdução do autor,
uma passagem que reflecte a ideia camiliana do fatal sentimento de culpa, sentido por
todo o ser humano e ao qual não lhe é possível escapar:
A sociedade, a família, e o homem expiam incessantemente a culpa do homem, da família, e da sociedade. Opera-se uma contínua redenção do género humano. O homem é, desde o seu princípio, a vítima da culpa com o lábio colocado no cálix da agonia.
A vida sobre a terra é uma interminável expiação. Eu pago pelos crimes de meu pai, meus filhos expiarão meus crimes, e o último ser vivo da animalidade inteligente será o holocausto do primeiro homem criminoso.
É forçoso recorrer ao inconcebível, ao sobrenatural, ao misticismo da
providência oculta para compreender o que vulgarmente se diz «fatalidade». (1970a, pp. 195-196)
Nestas novelas, o sedutor acaba sempre por sentir o pungente e amargo
gosto do remorso, talvez pelo condicionamento do autor à sua experiência pessoal -
note-se que O esqueleto, escrito em 1848, coincide precisamente com os anos em
que Camilo atravessa uma profunda reflexão moral, o que, muito provavelmente, o
obriga a fazer a sua própria catarse através de uma produção literária enquadrada na
linha do "negro" e do macabro. Não é por acaso que António José Saraiva e Óscar
Lopes se referem à típica novela camiliana como a novela de grandes penitentes do
amor, e destas que aqui são analisadas podem ser retirados excelentes exemplos; até
a própria forma de narrar, através de conversas acerca do passado ou até mesmo de
cartas - como em O esqueleto -, indicia este sentido confessional com funções de
penitência e de exorcismo que deixam transparecer um extremo clima masoquista de
recordação e sofrimento:
Senti vivas saudades de Maria, e também remorsos de esquecê-la, quase, em Lisboa. (Impressão indelével, pág. 68)
Aqueles ossos, aquele meu tesouro, ambicionado há três anos, tinham
agora para mim uma superstição, um cunho sagrado, que me jazia na alma não sei que pesar semelhante ao remorso. (A caveira, pág. 71)
Amália é Amália! - é assim que o anjo de meus sonhos se despe de seus
atractivos... Não é só Amália - é a inocente seduzida, atraiçoada, vilipendiada! É a flor desbotada, e calcada aos pés do ingrato, que a colhera viçosa na madrugada de seus encantos... E a filha que chora no regaço da mãe, que anima, e não castiga... é a irmã que suplica perdão a um irmão irado, feroz, e inexorável! Carlos! Carlos é um infame, que abandona a amante, a mãe, e a pátria, para na prostituição das cidades corruptas comprar deleites e distracções... (O esqueleto, pp. 34-35)
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O remorso, senhor, o remorso, é um braço que lhe está cravando punhaladas, que se reproduzem… (idem, pág. 43)
Conforme Teixeira de Pascoaes refere, "CamiIo foi o remorso feito esqueleto
lusitano, o penitente da montanha. E fez-se esqueleto como símbolo da sua
eternidade ou expressão máxima da tragédia." (Pascoaes 1985, 44)
5. Relíquias macabras
É a partir do século XVII que, através da "morte secca", o esqueleto e os
ossos se tornam familiares na sociedade, chegando mesmo a fazer parte dos objectos
caseiros. Crânios e ossos das mais diferentes partes do corpo são os elementos
macabros que vão aproximar o ser humano da morte, fazendo-o adquirir uma atitude
reflexiva perante a sua existência, fazendo-o tomar consciência de si mesmo como
forma englobante de um passado, um presente e um futuro.
A presença do macabro nas novelas de Camilo é transmitida pela inclusão
dos elementos tétricos que são os restos mortais do ser humano, os quais, pela sua
relação directa com os seres vivos, apresentam determinadas funções ao longo da
narrativa. É com toda a naturalidade que Camilo descreve episódios macabros de
exumações e dissecações, bastante frequentes no século XIX, como o podemos
constatar através do à-vontade das personagens que dialogam sobre a dissecação de
um cadáver numa passagem da novela O esqueleto:
Queres tu ajudar-me num serviço que trago entre mãos, e mais aprendes a trabalhar com escapelo?
- Pois que é?! - Dissecar um cadáver. - Um cadáver! - É verdade... Tenho grande precisão de um esqueleto, para estar bem ao
facto da osteologia, como parte essencial das operações. - E o cadáver? - Ali o tenho bem borrifado de espíritos alcoólicos que o não deixam
apodrecer... Está dito... vamos lá... é súcia! (pp. 39-40),
ou então em relação a uma exumação, como sucede em Impressão indelével:
«Atreve-se a ajudar-me a preparar um esqueleto? - Poderei ajudá-lo. «Então, guarde segredo, porque é preciso que meu mano padre o não
saiba. Temos de ir à igreja desenterrar um cadáver de uma rapariga que morreu tísica.
- A Maria do Adro?- atalhei eu com estranha vivacidade. «Sim: quer? - Quero, quero. Vamos hoje mesmo desenterrá-la?... Não estará ainda
corrompida? «Não: como estava muito magra, bem sabe que os tecidos que primeiro se
corrompem são celulares... É natural que nem sequer cheire mal. Em todo o caso, levaremos água de cal para borrifar o cadáver... (pp. 71-72)
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Todos estes actos, embora estejam associados a uma curiosidade científica,
não deixam de reflectir uma certa forma mórbida de violência, já que todo o cadáver é
inumado para ser protegido contra toda a espécie de ameaça ao lento processo da
sua deterioração física.
Apercebemo-nos, através das palavras do próprio Camilo, de que a carne não
é mais do que um ilusório vestuário que reveste os ossos, que são a verdadeira e
perpétua realidade. No Proémio do Volume I de Noites de insónia, publicado em 1874,
o autor revela-nos o seu processo de criação literária, dando-nos a conhecer os seus
próprios fantasmas íntimos:
Vou ao jazigo das minhas ilusões, exumo os esqueletos, visto-os de truões, de príncipes, de desembargadores, de meninas poéticas à semelhança das que eu vi quando a poesia era o aroma dos seus altares. Visto-me também eu das cores prismáticas dos vinte anos, aperto a alma com as garras da saudade até que ela chore abraçada ao que foi. E, depois, nesse festim de mortos, conversamos todos; […]. (pág. 8)
A presença perturbante do cadáver ou do esqueleto, para além de provocar
uma maior familiarização com a morte, coloca o homem num confronto reflexivo entre
o passado e o presente, através de todos esses elementos macabros que simbolizam
a fugacidade da vida e a mutabilidade das coisas. Durante o acto de exumação dos
restos mortais de Maria na novela A caveira, D. João de Noronha evoca os momentos
do passado e, ao anular o tempo e o estado transitório do mundo, reconstitui
mentalmente o corpo da mulher que amou e continua a amar:
Era ela, quando me perguntava o segredo daquela atracção irresistível, que a arrastava para mim, que a entristecia sem motivo, que a fazia ambicionar uma riqueza imaginária, que a fazia sonhar umas delícias que sua mãe não lhe explicava nem realizava com os seus carinhos… Foi assim que eu a vi, enquanto o eco da enxada, que feria o seio da sepultura, reboava nas naves da igreja... Gelava-se-me de terror o pensamento... a fantasia ensinava-se ao roçar pela mortalha daqueles ossos, e eu sentia-me morto em metade da vida, quando a terra sacudida da enxada me vinha cair aos pés. (pág. 70)
A utilização dos ossos como souvenirs religiosos desenvolve-se igualmente
bastante no século XIX, e podemos comprovar isso mesmo através do excerto de uma
carta de Armand de B., Secretário da Obra das Peregrinações à Terra Santa, datada
de 22 de Abril de 1853:
Mas são sobretudo as relíquias que aqui constituem objecto de um comércio desavergonhado. Vários de nós conseguiram arranjar espinhos que pertenceram à coroa que o Nosso Salvador transportava na noite da Flagelação, e que ainda sangravam.
O tráfico dos ossos é também muito florescente; todos os dias desenterram uns quantos, e penso que o corpo de todos os apóstolos já foi inteiramente reconstruído várias vezes. Propuseram-me até um dedo de São Tomé conservado em álcool, justamente o que teria tocado a chaga do Salvador. Causou-me horror. (Bettencourt 1990: 35)
Os ossos, no entanto, não são apenas essas relíquias religiosas tão
naturalmente comercializadas por vendilhões que se aproveitam da fé de crentes e
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peregrinos ingénuos - nestas novelas de Camilo, ossos, caveiras e esqueletos são os
guardiões silenciosos de desventuras amorosas, simbolizando, por isso, momentos do
passado ao lado de uma paixão não correspondida ou frustrada, como é o caso dos
exemplos que se seguem:
- Sente-se aqui ao pé desta relíquia - prosseguiu o consternado ancião. - Devo-lhe um favor muito delicado: nunca o senhor me perguntou o segredo deste crânio.- Eu gosto de quem respeita a dor alheia. Quero pagar-lhe essa fineza invocando do túmulo do meu coração o mistério, que aqui está sepultado há sessenta anos. (A caveira, pág. 60)
Subimos uma longa escada, que levava a um pequenino quarto. Logo que
ali entrámos, Carlos levantou uma baieta negra, e apresentou-me um esqueleto. - Oh! Isto que significa?!! Interroguei eu, possuído daquele espanto comum
aos meus leitores. - Quase nada - respondeu Carlos - Este painel era-te preciso para
entenderes a minha vida... - faz de conta, que ele é a perífrase desse papel que te dei. (O esqueleto, pág. 26)
A conservação destas relíquias macabras tem a função de ir alimentando a
recordação de quem as possui numa intensidade crescente, de ir torturando através
das lembranças que trazem. O narrador faz, por isso, muitas vezes a evocação do
passado num imenso desejo de confessar antigos pecados que o oprimem
continuamente; a narração não é mais do que uma forma de remissão dessas
"impressões indeléveis" que estigmatizam uma personagem em sofrimento, e é
através dessa mesma narração que a personagem penitente se exorciza: “Nunca te
contei, meu caro Barbosa, o fecho ou desfecho duma afeição dos meus quinze anos?
Creio que não. […] Queres ver, meu amigo, uma das minhas exumações?” (Impressão
indelével, pp. 59-60).
O derradeiro acto de penitência só é, contudo, atingido com a morte, o estado
em que os restos mortais se unirão debaixo da terra; se em vida essa união se gorou
perante um destino cruel, o encontro dos amantes perpetuar-se-á na eternidade da
morte. Assim sucede com D. João de Noronha, que ordena que o seu cadáver seja
sepultado juntamente com a caveira de Marta:
- E a caveira? - perguntou ainda a amável síndica dos meus romances. - A caveira deve estar confundida nos ossos de D. João de Noronha. A
viúva cumpriu religiosamente as suas ordens: envolveu-a na mesma mortalha. (A caveira, pág. 74),
tal como o episódio de Carlos, cuja última vontade ao morrer será de que o inumem ao
lado do esqueleto de Amália:
- Leste aquele papel? - Li. - Segredo. Fazes um favor ao teu amigo? - Ohl... diz... - Que esse esqueleto seja enterrado comigo… não te quero mais nada…
adeus… Nesta ocasião entrou um padre para ajudá-lo a bem-morrer. Uma hora
depois, Carlos estava na eternidade.
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O desgraçado rasgara as cicatrizes das punhaladas, e escoara-se de sangue!
Deus lhe perdoe... que os homens já lhe tem perdoado! Vila Real 2 de Julho de 1848. (O esqueleto, pág. 43).
Acontece assistirmos, por vezes, à remissão forçada dos pecados de uma
personagem quando o destino age por meio de outrem, através de uma vingança. O
tema da vingança, proveniente da tradição romântica, está presente em duas das
novelas aqui analisadas, e confirma a noção moral de Camilo perante o pecado
humano, particularmente no que respeita à fuga aos compromissos sociais assumidos
perante Deus; a justiça praticada é semelhante à do Antigo Testamento, ao obrigar o
prevaricador a penitenciar os seus erros ainda em vida. O esqueleto, onde Carlos é
punido pelo irmão da noiva, que a vinga por ele fugir aos seus compromissos
matrimoniais com Amália, serve de exemplo a esta ideia:
Entrámos em uma pequena câmara. Albano deu-me um escalpelo - puxou para fora um braço mirrado do cadáver - e disse-me:
- Experimenta aí o escalpelo nesse braço - vê se corta... Eu dei um golpe no braço. - Devoraste-lhe a vida - era justo que lhe incertasses o cadáver! Dizendo isto, retirou de repelão a baieta negra, que cobria aquele corpo, e
descobriu... O cadáver de Amália! (pág. 40) O inocente pediria o perdão de seu verdugo, mas eu não podia perdoar-lhe!
Oh! Senhor! Verta duas lágrimas nessa carta que lhe não ficam mal! Abrace-se com o esqueleto da sua vítima, e desça com ele à sepultura. Eu entrei de noite no Templo, e roubei à paz dos mortos o cadáver de minha irmã - beijei-o muitas vezes, e parece que um riso de candura me respondia sobre o trono da morte! Pus a minha mão sobre aquele peito minado pelos vermes, e jurei uma vingança de demónio... pedi perdão ao cadáver da sua desgraçada amante, porque esse cadáver representava-se-me erguido a pedir pelo seu matador. E a minha vingança foi de demónio! Vingança setenta vezes mais horrível que a morte!
(pág. 42-43).
É o que acontece, igualmente, na novela Voltareis ó Cristo?: um fidalgo vinga-
se da relação que a sua mulher mantém com o amante, matando-o e encerrando-a,
mais tarde, num quarto com o esqueleto do seu amante como forma desta se redimir
do pecado de traição conjugal:
Uma noite, meu marido conduziu-me a este quarto. Fechou-se por dentro e disse-me: «A senhora entra aqui de onde nunca mais sairá; e para não estar sozinha, aqui lhe deixo uma adorada companhia com quem pode conversar à sua vontade». E, dizendo isto, abriu aquele armário, e apontou para um esqueleto, dizendo: «Aqui tem o seu amante. Abrace-se nele até ficar reduzida ao estado em que lho ofereço para que o possa gozar com toda a liberdade.
(pág. 192).
Quando a sua mulher exige, também, vingança, a resposta do marido é uma
prova cabal de que o conceito de justiça aqui praticada assenta, sobretudo, na noção
da moral cristã: “Afinal, esta mulher crê ainda imperfeita a sua vingança, e na hora
extrema invoca os irmãos para que a vinguem. De quê? de que hão-de vingá-la os
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irmãos? De eu lhe haver matado o amante? Que me responde a sua cristã filosofia?”
(pág. 197).
Em todas estas cenas trágicas, condicionadas por um destino cruel, paira
sempre um terrível ambiente de expectativa e de tensão, que corresponde
paralelamente à necessidade emocional do leitor: exagera-se nas descrições no
momento do encontro macabro, criam-se ambientes de tempestades que contrastam
com outros momentos tranquilos do passado, e transformam-se lugares familiares em
algo desconhecido e ameaçador. Pequenos parágrafos são indícios preciosos para
podermos identificar esta verdadeira instabilidade na ordem natural dos elementos:
“Era um silêncio de cemitério naquela casa! - nem uma voz, nem um riso, nem um
criado a dissipar-me um terror involuntário e inexplicável que me comprimia o
coração!” (0 esqueleto, pág. 38).
O ritmo sincopado de pequenas frases revela igualmente a respiração
expectante da narrativa, como é também o caso de Voltareis, ó Cristo?:
Ouvi dar meia-noite. Era tudo escuridão neste quarto. Apalpei à volta de mim. Não conheci onde estava. Continuei apalpando. Poisei as mãos numa coisa fria e áspera que estremeceu. Recuei horrorizada… Eram ossos… eram as costelas do esqueleto. Então acordei… então me fugiu outra vez a razão com um grito do peito dilacerado. Caí outra vez para diante com a face de encontro aos ossos frios, horrivelmente frios… (págs. 192-195)
Assim se apresentam, na obra camiliana, relíquias e actos macabros que,
apesar de simbolizarem a morte, condicionam os grandes sentimentos humanos. A
utilização do macabro passa, efectivamente, pela inserção de todos estes elementos
tétricos na narrativa, e estes reflectem não só a generalidade da tragédia humana,
mas muito particularmente a de Camilo que, numa carta escrita a 21 de Maio de 1890
- dez dias antes de se suicidar -, confessa:
Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma representação gloriosa neste País, durante quarenta anos de trabalho.
Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego.
Camilo foi, sem dúvida nenhuma, um penitente numa íntima e dolorosa
comunhão com a morte, e as novelas aqui analisadas, apesar da ínfima parte que
representam em relação à sua obra, dão-nos essa confirmação.
Bibliografia: - Alves, José Édil de Lima. 1990. A paródia em novelas-folhetins camilianas. Lisboa: Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa; - Ariès, Philippe. 1989. Sobre a história da morte no ocidente desde a Idade Média. 2ª, edição.
Lisboa: Teorema; - Bettencourt, Pierre. 1990. O abismo oculto ou a peregrinação a Jerusalém. Lisboa: Gradiva; - Branco, Camilo Castelo. 1987. Marial Não me mates, que sou tua mãe!. Lisboa: Hiena
Editora;
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- Branco, Camilo Castelo. 1985a. “A caveira", in O esqueleto. Lisboa: Edições Rolim; - Branco, Camilo Castelo. 1985b. O esqueleto. Lisboa: Edições Rolim; - Branco, Camilo Castelo. 1970a. Cenas contemporâneas. 6ª. ed.. Lisboa: Parceria A. M.
Pereira; - Branco, Camilo Castelo. 1970b. Onde está a felicidade?. 12ª. ed.. Lisboa: Parceria A. M.
Pereira; - Branco, Camilo Castelo. 1969. O esqueleto. 10ª. ed.. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; - Branco, Camilo Castelo. 1967. O que fazem mulheres. 8ª. ed.. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; - Branco, Camilo Castelo. 1957. "Impressão indelével", in Duas horas de leitura. 7ª. ed.. Lisboa:
Parceria A. M. Pereira; - Branco, Camilo Castelo. 1929. Noites de insónia. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmão; - Branco, Camilo Castelo. S. d. Voltareis, ó Cristo?. Porto: Lello & Irmão. - Cabral, Alexandre. 1980. Camilo Castelo Branco - Roteiro dramático dum profissional das
letras. Lisboa: Terra Livre; - Coelho, Alexandre do Prado. 1919. Camilo. Lisboa: Bertrand; - Coelho, Jacinto do Prado. 1982. Introdução ao estudo da novela camiliana. I volume. 2ª. ed..
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda; - Moutinho, José Viale. 1985. "Notas sobre ossadas camilianas", in Camilo Castelo Branco, O
esqueleto. Lisboa: Edições Rolim; - Pascoaes, Teixeira de. 1985. O penitente (Camilo Castelo Branco). Lisboa: Assírio e Alvim; - Pimentel, Alberto. 1974. O romance do romancista. 2ª. ed.. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; - Saraiva, António José; Lopes, Óscar. 1976. História da literatura portuguesa, 9ª. ed.. Porto:
Porto Editora; - Sousa, Maria Leonor Machado de. 1979. O "horror" na literatura portuguesa. Lisboa: Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa; - Sousa, Maria Leonor Machado de. 1978. A literatura "negra" ou de terror em Portugal (séculos
XVIII e XIX). Lisboa: Editorial Novaera.