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F u r u n d u m ! Canções e cores de carinho com a vida carlos rodrigues brandão escreveu as cores rubens matuck pintou as canções 1

F u r u n d u m · 2017. 10. 29. · Cobria com a terra fofa Ia embora e se esquecia E o pinhão ficava lá. Chuva da grossa e da fina Vinha a chuva de janeiro Molhava o som e inventava

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F u r u n d u m !Canções e cores de carinho com a vida

carlos rodrigues brandãoescreveu as cores

rubens matuckpintou as canções

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quero a palavraque sirva na bocados passarinhos

Manoel de Barros

As palavras que escutavaeram pássaros no escuro ...Pássaros de voz tão claraVoz de desenho tão puro ...

Cecília Meireles

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Como foi que isso nasceu

Foi assim. Nós dois gostamos muito de tudo isso: da vida e dosbarulhos bons e das cores da vida. De semente na terra esperando abrilpara virar o comecinho de uma árvore. E de tudo o que, saindo um dia deuma semente, é vivo e comparte com todos nós a alegria de ser parte damaravilha da vida: a planta, desde a florzinha pequenina até um jequitibádesses com vontade de encostar os galhos no céu. E os bichos, qualquerbicho: paca, tatu, capivara, minhoca, beija-flor, vagalume, vaca, macaco,anta, onça e papagaio.

E foi por causa de um bicho, de uma ave, de uma arara, de umaararinha azul que nós acabamos nos conhecendo. Vejam vocês, um pássarolá na caatinga do Nordeste, bem longe (bom, a não ser que você more “aí”no Nordeste) e nem sabendo que ia fazer duas pessoas serem amigas aponto de acabarem escrevendo e desenhando um livro juntas.

Fomos os dois e mais alguns amigos a um lugar na beira do rio deSão Francisco. Lá, entre outros bichos da caatinga, vive uma última“ararinha azul”. Pois todas as outras como ela foram sendo presas paraserem levadas longe. Para serem vendidas e presas em gaiolas e viveiros.

E foi lá, andando por aqueles caminhos em busca de uma últimaarara azul livre, voando pelo céu azul como ela, para ajudar ela a encontrarum companheiro, que resolvemos fazer juntos este furundum! Um livro comdesenhos de aquarela e palavras de poesia com um nome que na verdadenão quer dizer coisa nenhuma dessas que existem por aí no mundo que agente vive, no mundo que a gente pensa. Uma palavra que parece que nemexiste e nasceu pra não dar nome a coisa alguma. E que por isso mesmo,quem sabe? bem poderia servir para dizer o nome de todas as coisas.

Entre Carlos e Rubens e entre Rubens e Carlos, combinamos queum faria os escritos e outro os desenhos. Se tudo aqui tem vontade de serpoesia sobre a vida e suas gentes, plantas, bichos e até nós, então quevocês leiam e vejam conosco esses poemas de palavras e desenhos quenão querem ser outra coisa senão isto mesmo: canções e cores decarinho com a vida.

E furundum pra todos nos!

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É isso aí! (o que tem pra ler e pra ver)

bem lá dentrocantorio do sertãoumdoistrêsquatrocincoseiscoisa de comero eco e o ocoo zelo do matode quatro pernasora veja!sequênciaumaoutrae outra aindavivamentos de abrila gralha esquecidaa moça com as avesquatro avoantesum que voaum que cantaum que pintaum que pensatudo quantocantorio pra flautacavucagenseis aí!no brejo no mato e no pastono brejo

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no matoe no pastono claro da noitedentro delamas, como?

o começo do claromanhã de mimna rede da varandasentindo o sentirarvoredoo jardim da saúdeo povo do canto e do céua sementeum passarinho piadorararaurutaueuzinhofurundum!até logo, gente amiga ...

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Bem lá dentro

Num lugar Bem profundoA semente Guarda isto:Um mundo.

A sementeEscondidaEsconde um serPequenino:A vida.

Você já pensou(e pensou porque?)Que uma sementeAlgum dia já foi ... Você?

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Cantorio do sertão

Um

No meio da noitesaindo do sonoa coruja abre o olhoe olha pro mundo.E ela olha pra quê?pois se o olho que olha o mundoé o mundo que oolho vê!

Dois

O que seria, meninoDe uma onça amarelaSe as manchasQue o pelo temFugissem da peleDela?

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Três

Lá no céu e no matoNo cerrado ou no sertãoUma andorinha sóNão faz verão.Igual como na igrejaNo cemitério Ou no oratórioUm urubu sozinho Não faz velório.

Quatro

Pra você eu reveloO segredo secretoDo mundurucu:No escuro da noiteO boitatá tem medoDo minhocuçu.

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Cinco

Serenou a florestaE cantou tão sentidoDo alto do galhoO pássaro sofrê.E cantava tão lindoE foi pra ninguém.Ele sabe o que cantaE entoa com arte.Mas canta pra quê?E canta pra quem?

Seis

Lá na AmazôniaO canto de coresDo UirapuruColore o silêncioE a azula a folhagemDo Cupuaçu

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coisa de comer

fruta flor raizou carrapichoa terra boa criacada coisa de comerpra alimentar cada bicho.E no mato não nasceCoisa que a vidaNão coma.Pois o que sobra do homemComem os bichosQue o homem come.

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O eco e o oco

E no silêncioSem nome e donoEcava o ecoE ocava o oco:Um na sua tocaE outro no toco.

Depois ... silêncio(ah! Como é bom!)Como se fosseDentro dum ovo.

Mas de repenteNo comecinhoDo repetecoDe novo o novo:Ecava o oco E ocava o eco.

Então um disse:Agora chega!E o outro grita:Pra mim é pouco!

E adeus silênciotão silencioso(tava tão bom!)pois noite aforaum na sua tocae outro no toco:ecava o ecoe ocava o oco.

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O zelo do mato

Sabe de uma coisa?(você sabe ou não sabe?)se o mundo não acabae nem fica mais triste(mas será que não fica?)e nem feio ou doenteou pior: moribundo(mas será que não fica?)é porque o tempo todo:de noite ou de diano escuro ou no clarocom sol ou com chuvano alto ou no fundoos bichos e as plantasestão sempre cuidandocom zelo e carinhoda casa do Mundo.

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De quatro pernas

Anta mico e onça pretaCaxinguelê e caitetuSagui gambá capivaraPaca cotia e tatu

Lobo guará e ariranhaPorco-do-mato e preáSussuarana e preguiçaBugio sagui e sauáJaguar e jaguatiricaVeado ouriço-caixeiroTeiú e tamanduá.

Você que tem duas pernasPara um pouco pra pensarNessa gente tão bonitaQue tem duas e outro par.

Antes tinha muito maisAgora tem mais ou menos E alguns tem menos que mais.Será que essa gente todaUma dia vai se acabar?

Você que vive pensandoPare um pouco pra sentir:Pra que a vida dessa genteViva feliz junto à nossaO seu jeito de viverSerá que não existe nada(nada, nada. Nada mesmo!)que a gente possa fazer?

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Ora veja!

Será? Siriema dissePra traíra lá do poço:Que o preá sobe em posteQue mico muda de galhoQue tucano voa longeQuando aponta jacaré?Que cobra come deitadaE onça come sentadaPreguiça dependuradaE tamanduá come em pé?

Será? A traíra dissepra siriema do campo:que entre os bichos do mundotal como com o bicho-homemassim como homem-e-mulhermetade faz o que podemetade faz o que quer?

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Sequência

Uma

No começo da noiteO claro da lua cheiaBrilha como um mundaréu.Mas no meio da pressaDas seis horas da tardeCorrendo ... correndo(pra onde? Pra quê)Quem é que se lembraDe olhar para o céu?

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Outra

Mas a onça na tocaNo meio da mataNo claro da noiteLeva mesmo Uma hora e meia Namorando DeslumbradaA luz no céuDa lua cheia.

E outra ainda

O lobisomemCoitado deleTem medo do loboE do homem.

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Vivamentos de abril

Vamos lá! Cante comigo:Viva o limão e o sorvete!Viva o sal e viva o mel!Vamos lá! Mais forte, amigo:Viva quem nasce e nasceuEm trinta de fevereiroDe mil-novecentos-e-agora!Viva você nós e eu!Viva de dia o que é noiteViva de noite o que é diaE antes da noite ir emboraViva o sol! Viva a alegria.Vamos lá! Grite comigo:Viva quem foi e quem volta!Quem dorme e quem tá na ruaQuem brilha na noite escuraNo sol da sombra da lua!

Vamos lá, com toda a força:Viva tudo o quanto haviaNo romper dos nove-fora!Viva o que mói e o que amúaE quem planta colhe e comeDo que a terra dá de graçaPra quem nunca esquece dissoE pra quem nem sempre agradece!Viva vocês nós e tu!Vamos lá! A hora é agora!Viva tudo o quanto existeOu que não existe e apareceAqui, depois e ante-ontem!Viva no alegre o que é tristeViva o rastro do caaporaViva o rabo do tatuViva nós, vocês e tuViva vivar o que vivaPela vida, vida afora!

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A gralha esquecida

A gralha azul azulavaMeio céu do Paraná.Ia e vinha e avoavaPegava um pinhão no bicoNo claro do meio-diaFurava o chão, enterravaAqui, ali e acolá.Cobria com a terra fofaIa embora e se esqueciaE o pinhão ficava lá.

Chuva da grossa e da finaVinha a chuva de janeiroMolhava o som e inventavaIr chover noutro lugar.Uma mês passava e outro vinhaDa terra escura surgiaDe repente, bem ligeiro(mas sem pressa de chegar) um feixe de folhas verdesum verde-vida: um pinheiro.

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Primeiro um raminho a toaMas era só esperarPor um março e outro abril(pois tempo passando voacomo se fosse um instante)e o pinheirinho cresciacomo nunca já se viu.Ficava “desse tamanho”!Dava sombra, pau, pinhãoDava a casa e a comidaDava cantiga no ventoForrava de vida o chão.

Agora vocês me contem- minha amiga, meu irmão -vejam que acontecimento:como é que coisa tão lindacomo é que coisa tão grandepode chegar desse jeitonascendo do esquecimento?

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A moça com as aves

Dava miolo de pãoAos passarinhosE por um instanteLá no parqueElas fizeram neleUm ninho.O seu corpoCobriram de mil asasE na moça moraram Como em casa.Mas bastou um gestoAssim: um movimentoSó e o bando aladoFoi-se embora E voou da moçaAo lar do vento.

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Quatro avoantes

Um que voa

É tão ligeiroO colibriQue já está láE ainda aqui.

Um que canta

Melhor aindaÉ o sabiáQue canta aqui E se ouve lá.

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Um que pinta

Anda tão serelepeA saíra sararáSó porque pintouDe verde as penasCor de araçá!

Um que pensa

Chorava a corujaNo alto do tocoSó porqueOlhando do altoO longe de tudoEla cismavaQue o MundoÉ pouco!

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Tudo quanto

Tudo quanto é belo brilhaBrilha brilha brilha e brilhaNo país de bem com a vida.Brilha azul, brilha vermelhoBrilha lilás e violetaAmarelo e maravilha.

Tudo quanto brilha é beloBelo belo belo e beloQuando brilha o bem da vida.Brilha vermelho e a azulBrilha violeta e lilásMaravilha e amarelo.

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Cantorio pra flauta

Saruó saruú saruáA cotia a raposa e o gambá.Saruá saruú saruóCuriango chan-chan curió.Saruê saruí saruúO mutúm a perdiz e o nhambúSaruú saruê saruíSiriema peitica e sagui.Saruú saruó saruêCapivara calango e sofrê.

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Cavucagens

A gente nem imagina(e pra que imaginar?)mas quem cavar sem descansoum buraco sem pararchega no fundo ... ou na China.

Quem cava um buraco fundo(tem cada gente no mundo!)na casca dura do chãona casca amiga da terrachega já fundo ... ou Japão.

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Eis aí!

O esquiloÉ istoOu aquilo?

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No brejo no mato e no pasto

No brejo

A perereca soletraTodo o diaO que de noiteCantarola a gia.E o sapo coaxaDe manhãO que de tardeTagarela a rã.

no mato

Nem bemAmanheceE no galhoDa cabreúvaO urutau acordaE se estremece.Uai! Já é diaOu só parece?

E no pasto

Dizia pra umO outro boi:O melhor capimÉ o que já foi...

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No claro da noite

Antes de ir pra noiteA tarde arruma a vidaVarre a casa do mundoE acende a vela.A noite chega acesaA lua luz no brejoE o cantorio dos saposNoite adentroCantarola com a harpaDas estrelas.

Dentro dela

A alma da vidaTem cara de menino

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E na vida de tudoMora um sonho dele:Es-con-di-di-nho ...

Mas, como?

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Um passarinho ontem me espiavaE pensava - mineiro - desse jeito:Se esse bicho-gente não tem asa, uaiComo a gente-de-pena desse mundoComo é que ele vai pra onde ele vai?

O começo do claro

De madrugadinhaCom a arte da artesã

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A luz acende a velaE a chamazinhaClareia a casa da hora da manhã.

Manhã de mim

Toquei de manhãzinhaNo orvalho do capim.Minha mão me amanheceuCom cheiro do alecrim.

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Na rede da varanda

Meu coração menino Se arvora de preguiça.Ele se apressa todoPra hora do sossego.

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Ele olha pro céuE vê um lago com um barco Voltando do outro lado.Ele olha pro lagoE vê um mato carregadoDe bicho e de arvoredo.Ele vira pro lado e cai no sono.Vou dormir de novoQue ainda é cedo!

Sentindo o sentir

Não apressa o sentirda hora do momento.Não apressa nada com a pressa do repente:

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nem o sonho da terrae nem o doce e lento trabalho da semente.Não apressa a vida Não pensa em nadaE sente só esse bem De ser sentente.Não fala nada sérioE nem decora o que O coração não quer lembrar:Porque nem sempreO sentimento gostaDe pensar o que ele sente.

Arvoredo

O pau-d’óleo o jatobáSibipiruna canelaSuinã e jacarandáOiticica e paraibaO pau-alto o tamborilBordão-de-velho e angicoA imbuia e o pau brasilA embiriba e o chauá

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O pau-pombo e o pau rosaSeringueira e camará

Jequitibá e angelimO cedro e a madeira-novaO bálsamo e o pau-marfimA araucária e a perobaCapiúba sapucaiaQuina cedro e suinãPau-de-canela e uvaiaPrimavera quaresmeiraO murico e o muricóA peroba e a aroeira

A paineira o babaçuO pau-de-colher o pau-ferroCamnuzé cupuaçuTamarindo e perobinhaPau-de-jangada e embaúbaO pinheiro a pitombeiraLacre caixeta e campecheA algaroba e a mangueiraPau-canudo e macaúba

A canafístula e o mognoA cássia e a caribeiraTento pau-d’arco e ipê

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Guaririba e goiabeira(me ajuda a contar, você!)Cajazeiro e o buritiPitangueira e fruta-pãoLagarteiro e o açaíPalmeiteiro e jatobáXique-xique e mangostãoSinamomo e buritíLaranja e pé-de-limão

O jardim da saúde

Malva sávia e maravilhaA salsa o louro e a lavandaSete-sangria e artemísiaCravo congonha e tomilhoMama-cadela e espelinaAngico salsaparrilhaFitolaca e camomilaErva-mate e madressilva

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Cataúba e catuabaCevada gerânio e rosaA manjerona e a mangabaOra-pro-nobis coentroErva-de-santa-luziaA segurelha o alecrimTanchagem poejo e endroO confrei e o caiubim

Cipó-cururu e arrudaInhame e ver-pombinhaO corefócio e a carquejaErva-cidreira e roxinha.O cominho e o araticumQuina tinguí azedinhaUrucum urtiga e anetoErva-doce e douradinha

O capim corobobóComani mangericãoBorago hortelã babosa

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Erva-de-tiú e limãoErva-de-passarinhoCominho e erva-tostãoCurare mate e mastúrcioPequi e arroz-com-feijão

O povo do canto e do céu

Papa-capim caga-ceboSaíra-de-sete-coresAlma-de-gato canarinhoManuelzinho-da-coroaO joão-congo e o sanhaçoPinhé curiango e anuGaúna bico de lacreCoração-de-boi colerinhoMartim-pescador e nhambuArapacu e socoíA viuvinha e a freirinha

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Papa-mosca e bem-te-vi

Tucano garça e socóTiê-sangue e periquitoJoão-de-barro emaritacaJoão-da-noite mãe-da-mataInhuma pardal xororóPasso-preto e siriemaCaturrita e bacurauPomba-do-bando e jaúTiziu saracura e emaTesourinha e pica-pauA peitica e o peixe-fritoCaburé sofrê e urutau

Quero-quero e beija-florFogo-apagou gralha azulAsa-de-anjo e biguáMaritaca irerê sabiáAguia real e urubuA garrincha e o trinca-ferroCalafate e colibriFrango-d’água tico-ticoPomba-do-campo e do matoPatativa e a juritiMaracanã e matracaE o falcão quiriquiri

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A cambaxirra e o fim-fimPula-pula e pia-cobraMarido-é-dia e chumpimJuruviana e codornaA limpa-casa e o quenquémGraveteiro maluquinhoO carcará e o chacuruO gente-de-fora-evémGaturamo gurinhatãO tangará e o asa-brancaVira-bosta tucanuçuCochicho, curió e cancã.

A semente

Somente A menteDe um ser Tão bomPode criarDo sentimentoUm bemTão grandeComo a semente

Somente

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Um domCheio de vidaComo a sementePode gerar:Da vida a terraDa terra a plantaDa planta a florAcontecidaDe seu amorDe flor e frutoDentro do sonhoQue há na menteDe uma sementeCheia de vida.

Se um deus não háDentro de quemExiste o gestoQue sente e sonhaNascer da terraTudo o que brotaDa maravilhaDa força vivaDe uma semente?

Mas se há um deusOnipotente

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Que cria tudoCom o seu poderMas se um deus háQue tudo criaCom o seu amorComo um presenteDo dom da vidaSe um deus existeEterna-menteAh! Pode crerQue ele algum diajá foi semente.

Um passarim piador

Um passarinho vagaroso piaUma canção que o vento quis ouvir.E o vento, eco, ecoa o cantoE afina a flauta no oco da viola.Ele canta com a alma um canto finoE no sopro enrola e desenrolaUm segredo que eu sei e conto agora:

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Page 43: F u r u n d u m · 2017. 10. 29. · Cobria com a terra fofa Ia embora e se esquecia E o pinhão ficava lá. Chuva da grossa e da fina Vinha a chuva de janeiro Molhava o som e inventava

Em todo o passarinho há um meninoQue, quando voa ... voa e vai emboraViaja um mundo e meio num momento.Pois tanto podem no menino e na ave:O canto e o pio o amor e o sentimento.

Furumdum!

E ocava no vão de um vôo fundoO oco sem-começo de outro mundo.E era tudo e todos e nenhumE era outro e o mesmo e o sim e o nãoE era alto e baixo e claro e noiteE ecava o oco e o eco ocavaComo um furo no escuro do sertão!

E ara! E ora! E a era não chegaraE era tanta espera e – coisa rara –Quem de nada não sabia perguntava:

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O quê? E quando? E onde? Aqui? Agora?E quem sabia calava e não sabiaE no meio da hora meditava:Isso é assim ou foi e não é mais?E pro eco do oco fundo alguém dizia:O que se faz se quem não veio foi embora?E quando atrás do quando não tem quem?E na casa do nada tem ninguém?

E foi a dança sem-fim do dois com o umAo som de coisa alguma ... como um zeroÀ esquerda da soma de nove com nenhum.E de longe - de tão longe como o nunca -Vinha um eco de sombra e trovoadaDe trovejo de trovão de raio e chuvaTrovoando trovejando furundum!Enquanto ocava o eco e ecava o ocoTrovejando trovoando furundum!

araraurutau

quando a arara calasono do silênciodo urutauembala a mata.

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euzinho

eu era tão pequenotão pequeno: pequeninoque de repente crescie nem senti.

até logo, gente amiga

já era de noitee eu vinha vindoo dia amanheceue a vinda ... ainda.de noite de novoe eu vou indo

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eu já na ida.quem é que não acaba:a estrada ou a vida?

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