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8/3/2019 Fabiana Dultra Britto - Processo Como Lgica de Composio Na Dana e Na Histria
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Processo como lgica de composio na Dana e na Histria
Fabiana Dultra Britto
Universidade Federal da BahiaPs-Doutora pela Bauhaus Universitt - Weimar
Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Dana
Resumo: Esse artigo prope argumentar que uma idia de dana formulada corporalmente, apartir das snteses resultantes dos relacionamentos que o corpo estabelece em seu contexto deexistncia. E o que chamamos composio dramatrgica em dana um processo de manipulaodessas snteses para configurar estruturas de ao que, baseadas na explorao de estadoscorporais, promovem no espectador experincias perceptivas no usuais do espao-tempo e,assim, sugerem novos nexos de sentido para o seu prprio cotidiano. A histria da dana se fazdas coerncias instauradas pelas dramaturgias nos seus contextos.
Compreender a dana contempornea em sua diversidade de proposies dramatrgicas,
sem incorrer na impropriedade esttica e histrica de uniformiz-las sob um rtulo simplificador
como so os de dana contempornea, dana ps-moderna, ou dana conceitual, entre
tantos outros j forjados ao longo da histria da dana , requer um trabalhosos exerccio de
compreenso no dos ditos elementos constitutivos de cada dana mas, sim, do modo como o
comportamento e pensamento dos corpos/autores dessas danas so formulados e estabilizam-se
como procedimentos de seleo e organizao de material coreogrfico, definindo um certopadro de configurao compositiva.
Focalizar a dana pelo seu aspecto processual permite perceb-la na complexidade que
lhe prpria, ou seja, a partir dos agenciamentos que ela tanto promove quanto resultante. Uma
abordagem, portanto, bem diferente daquela que busca compreend-la pela descrio linear da
sua configurao: do que se compe e como seus componentes se ordenam no espao e no tempo.
Sendo o processo (BRITTO: 2008: 53) um fenmeno que descreve a ocorrncia
simultnea e contnua de muitas relaes de diferentes naturezas e escalas de tempo, salvo em
condies modelares, no h como identificar seu comeo ou seu fim visto que no descrevemtrajetrias de um ponto a outro. Tambm no possvel distinguir precisamente quais os termos
envolvidos num processo, pois sua natureza relacional e contnua implica em modificaes
mtuas, irreversveis e ininterruptas entre as coisas relacionadas. L se foram, pelo ralo das
imposturas conjugatrias, as idias de origem, matriz, influncia, identidade e genealogia, to em
voga nos atuais discursos de interpretao historiogrfica e crtica da cultura e da arte1, e to
1 Para uma introduo didtica aos principais argumentos atualmente em voga nos discursos interpretativosda cultura acadmicos ou no , frente ao processo de globalizao, remeto ao estudo de Moacir dos
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imprprias compreenso de sistemas complexos no-lineares, como o so a vida, a construo
da histria e a produo de idias. Nessas condies, torna-se mais apropriado referir-se afatores
ao invs de termos da relao e tratar suas potncias participativas como uma questo de nfase um adensamento circunstancial.
Os relacionamentos interativos vividos pelo corpo, ao longo da vida, so orientados por
diferentes princpios lgicos de associao movida por inmeros e concorrentes fatores de desejos
e necessidades. Nessas interaes, as coisas modificam-se reciprocamente e produzem snteses
que se estabilizam como padres, conforme a eficincia que demonstrem nas situaes em que
operam. Ao reconhecer o carter genuinamente criativo dos processos porque configurador de
estruturas chega-se a um sentido de continuidade totalmente avesso noo conservacionista de
preservao da dita identidade das coisas em si pois que a matria no se conserva eafeito noo dinmica de reorganizao contnua das configuraes existentes, pela ao dos
seus relacionamentos2.
Importa, ainda, destacar esse sentido de continuidade expresso no modo relacional de
existncia da dana (como tambm do corpo e tudo mais existente neste mundo submetido ao
da termodinmica), para diferenci-lo do sentido apriorstico ou essencialista que costuma
embasar os argumentos e procedimentos meramente acasaladores entre idias, pessoas e
situaes. Importa diferenciar o pressuposto que define as coisas como entidades dadas, daquele
que as considera sistemas dinmicos: o pressuposto co-evolutivo. Ou seja, a noo de que todas ascoisas existentes so correlatas em alguma medida porque partilham as mesmas condies de
existncia e, assim, afetam-se e definem-se mutuamente.
As diferentes danas que cada padro de coposio dramatrgica configura esto,
portanto, diretamente relacionadas com as estruturas de pensamento vigentes em seus contextos
de formulao. preciso, pois, abordar a dana considerando as duas instncias do seu modo de
existncia: como fato artstico e fator evolutivo. Isso significa trat-la sob a perspectiva da sua
permanncia evolutiva para alm da sua durao histrica como obra, reconhecendo-a como algo
que simultaneamente produto e ao corporal, cujas propriedades lhe possibilitam instaurar (ouno) coerncias (THAGARD: 2000:17), ou nexos de sentido, no seu contexto, de modo que a sua
vida til possa se estender no tempo pelas ressonncias que produz em outros campos.
Anjos, Local/Global: arte em trnsito, integrante da excelente coleo Arte +, dirigida por GlriaFerreira e publicada pela Jorge Zahar Editor (RJ) em 2005.2 Permanncia aqui entendida na acepo dada pela Teoria Geral dos Sistemas, no como o que semantm e preserva imutvel, mas como aquilo que no cessa sua continuidade de ao. Remeto ao captuloII do livro Temporalidades em Dana: parmetros para uma histria contempornea, de minha autoria,cujas referencias completas encontram-se na bibliografia.
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A compreenso da dana, portanto, no se resume ao que se v nos palcos as
composies coreogrficas propriamente ditas , mas inclui tudo aquilo o que se refere ou deriva
delas, como produo de conhecimento, ao pblica e/ou aplicao prtica. Importa entendercomo esses campos se engendram para compor um ambiente e como tudo isso se articula no
tempo modificando-se mutuamente, numa dinmica coevolutiva o pulo do gato que a
historiografia brasileira de dana custa a querer dar porque parece satisfeita com suas listas de
acontecimentos e personalidades da dana, sempre procurando culpados (origens, influncias e
autoria) e estabelecendo rankings (os primeiros, os melhores, os maiores) como mtodos de
justificao histrica,
Adotar uma outra abordagem, implica rever slidos hbitos de raciocnio e
comportamento, a comear pela clssica equao que sustenta o mosaico de clichs a que a danacontinua confinada, por fora do desservio prestado por divulgadores pblicos (crticos,
professores, curadores e artistas) comprometidos com indstria de entretenimento ou carreirismo
pessoal : aquela que concebe o corpo como um instrumento ou suporte que, como uma tbula
rasa poderia ser preenchido por alguma tcnica de dana que, ento, lhe habilitaria a danar
coreografias. Nesta equao, a dita tcnica de dana entendida e praticada como uma
roupinha que o corpo veste e pode tirar (!) e a coreografia como sequncia de passos ordenados
no tempo e distribudos no espao, sempre criada pelo autor-coregrafo e repetida pelo executor-
bailarino. Contudo, os pressupostos que embasam tais concepes soam, hoje, pura crendicefrente ao que se sabe acerca do modo como o corpo produz e transmite conhecimento; como as
estruturas dinmicas se organizam em sistemas; como os sistemas biolgicos e culturais
modificam-se e definem-se relacionando-se com outros; e como, pela constncia dessas
interaes, podem gerar padres diferentes e imprevistos pelo seu repertrio as chamadas
emergncias (PRIGOGINE: 1990: 130).
Se, por muito tempo, no campo da Dana, se tomou clichs por conceitos, agora, a
preocupao com definies claras e distintas parece ser a regra entre os artistas e outros
profissionais interessados em buscar uma nomenclatura mais precisa e apropriada para descreveros fenmenos com que lidam. Em muitos casos, a tentativa de conceituao, embora bem
intencionada de rigor resulta em noes insustentveis teoricamente mas, ainda em uso at
mesmo nas universidades, como acontece com as idias de essncia, dana abstrata;
energia ou presena cnica; movimento natural ou orgnico; dana como algo que vem
de dentro, linguagem do indizvel e dana como linguagem universal. Mas, de qualquer
maneira, j ntida a grande diferena observada no vocabulrio adotado atualmente entre os
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artistas, profissionais e estudantes de Dana, explicitando uma importante especializao do
discurso e conhecimento sobre o que fazem.
A especializao artstica dos profissionais corre pari passu com a especializao doambiente cultural pois este , justamente, configurado pelas resolues adaptativas e pelas
proposies interativas elaboradas a cada nova circunstncia dos assuntos, pessoas e contextos. A
prpria idia de ambiente ganha, assim, um sentido bem mais complexo do que costuma ter
quando est associado noo topogrfica de lugar e adquire um sentido de circunstncia ao ser
entendido como um conjunto de condies para as interaes acontecerem.
esse princpio de reciprocidade que estabelece um continuum entre os sistemas e seus
ambientes de existncia (sub-sistemas) que permite compreender que as formulaes produzidas
em certo contexto no se impem por substituio s anteriores, mas emergem delas e geramnovas, por contaminao ainda que remota. A variedade de gneros e formatos de dana que,
mesmo elaborados em diferentes perodos histricos e condies culturais, coexistem no contexto
atual brasileiro, c esto, ainda integrando o nosso repertrio porque mantm seus nexos de
sentido com seus ambientes de interao. Fato, alis, que j parece suficiente para colocar sob
suspeita a simplista definio de dana contempornea como sendo aquela que do nosso
tempo ou deduziramos, sem tropeo (nem rigor), que todas as danas existentes hoje so
contemporneas o que , no mnimo, uma grande impropriedade histrica3.
O fato da dana ser produto e ao corporal, torna mais evidente a falcia do ideal deconservao histrica dos seus formatos estticos. Quanto mais distante no tempo o modelo
original de um certo formato de dana, menos provvel a preservao de seu conjunto total de
caractersticas. Em vista da degradao informativa sofrida pelos sistemas ao longo do tempo, por
conta de todas as mesclas sofridas nos seus processos interativos e dos tpicos erros de cpia, a
caracterizao deles modifica-se tanto que seu nome at deixa de corresponder quilo que
denominava embora no mais das vezes ainda seja mantido, por oportunismo ou descaso, o que
d no mesmo.
Para compreender como alguma coisa permanence no tempo para alm da sua durao deexistncia, preciso entender o sentido de continuidade associado aos processos e no s
configuraes resultantes deles. O formato das coisas restringe as suas possibilidades de
ressonncia e continuidade nos contextos porque estabelece as suas condies relacionais com
outras mas o que se preserva como continuidade operativa no mundo no so as coisas mas,
3 Engrossando o caldo da inespecificidade cultuada pelo senso comum, a prima-irm dessa noo aquelaoutra que apregoa ser a dana contempornea um estilo vale tudo - um saco de gatos em que tudo cabe etudo pode.
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suas lgicas organizativas que demonstraram eficincia como procedimento de formulao das
snteses resultantes dos relacionamentos a que as coisas foram submetidas. Portanto, no so as
danas, como tais, que continuam a existir no presente mas, a lgica de estruturao corporal eartstica a partir da qual foram formuladas, que continuam a produzir ressonncia neste contexto.
Embora a dana contempornea ainda esteja se debatendo com as velhas questes de
nacionalidade, do conceitualismo, da autoria, da originalidade, da elitizao, etc., o sentido de
atualidade das suas composies coreogrficas e dramaturgias parecem residir justamente no
modo como tais questes so assimiladas, resolvidas, reorganizadas ou ignoradas pelos artistas
em seus corpos, a partir do aproveitamento que fazem do repertrio de aes e conhecimento que
dispem. Tratam-se de escolhas artsticas que, por mais gratuitas que paream, esto ancoradas
em complexas lgicas de afinidades eletivas que o corpo estabelece involuntria e naturalmentepara definir seu conjunto de possibilidades interativas em cada situao.
Num Brasil de 50 anos atrs, as experincias artsticas e pedaggicas estiveram
embebidas pelo iderio modernista de composio narrativa inspirada em mitos e psicologismos e
cujas tcnicas de treinamento corporal consistiam em sistemas personalistas, diferentemente da
codificao universalista do bal. Um pensamento que se baseava na lgica dualista de extrao
cartesiana e ainda encontra morada nobre no imaginrio popular da dana, povoado de pares
ordenados tais como: corpo/mente, tcnica/expresso, natureza/cultura, sujeito/objeto,
forma/contedo, etc.Como herana desse pensamento moderno, o modelo de produo artstica
hierarquicamente organizado foi dominante na dana brasileira at que os ideais de organizao
social e distribuio de recursos igualitrios ganhassem equivalncia reivindicatria como
preceitos estticos de criao coreogrfica, derivando em propostas alternativas de agregao e
distribuio do trabalho, tais como: grupos com coregrafo ou diretor fixos e elenco varivel,
conforme os projetos de criao desenvolvidos; grupos com elenco fixo e sistema de criao
coletiva ou elencos que se agrupam para criaes isoladas e organizam-se no hierarquicamente4.
Neste contexto, o formato solo de criao, longe de significar apenas uma soluo prticade viabilizao financeira, como querem alguns, mostra-se extremamente eficiente como
plataforma propulsora da sofisticao dos processos investigativos mais diretamente relacionados
com a corporalidade e dramaturgia de dana. Porque, nos solos que melhor se explicitam o
sentido de continuidade entre corpo, movimento e estrutura de pensamento vigente nos contextos.
4 Ilustrativas e at sintomticas da extrao moderna de pensamento vigente ainda na dana ditacontempornea, so as denominaes dadas aos seus ncleos artsticos, usando o nome prprio de seuscriadores, como Fulano de tal Companhia de Dana.
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Mesmo sendo alvo predileto do preconceito tpico do despreparo intelectual para lidar com
filigranas das especificidades destas dramaturgias costumeiramente tachadas de dana
conceitual, deve-se a essas propostas justamente o mrito da demonstrao do recenteentendimento da dana como ao cognitiva do corpo, que fundamenta a definio que proponho
para dana contempornea: um modo de composio no-programtico, cujas regras no so
estabelecidas previamente ao processo criativo, como um modelo geral ou programa esttico
mas, so elas prprias resultantes da experincia de problematizao espao-temporal a que o
corpo se submete em busca de snteses transitrias para as hipteses de reconfigurao de
contexto que deseja testar e compartilhar. E o que chamamos composio dramatrgica em dana
um processo de manipulao dessas snteses para configurar estruturas de ao que, baseadas na
explorao de estados corporais, promovem no espectador experincias perceptivas no usuaisdo espao-tempo e, assim, sugerem novos nexos de sentido para o seu prprio cotidiano.
Esse tipo de dana se oferece compreenso do espectador no pela traduo literal que
a coreografia possa sugerir acerca do tema declarado no programa, mas pelo confronto com seus
prprios hbitos interativos, exigindo-lhe o engajamento crtico da sua percepo no
reconhecimento dos agenciamentos instaurados pela movimentao.
Apesar do alto grau de complexidade organizativa apresentado ultimamente pelas
dramaturgias e composies coreogrficas, a Dana ainda se v constrangida nas suas
possibilidades de expanso como arte e forma de conhecimento pelos tratamentos simplificadorese generalizadores ainda dominantes por fora de certa preguia terica ancorada nos ideais
essencialistas e modelares, que desconsideram justamente o aspecto mais importante e
caracterstico da dana sua processualidade. Mudar o ponto de vista sobre Dana implica mudar
os pressupostos com que buscamos compreend-la. Tudo indica que h muito trabalho pela
frente
Bibliografia
BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidades em dana: parmetros para uma histria contempornea. Belo
Horizonte, FID Editorial, 2008.
DAWKINS, Richard. The Extended Phenotype. Oxford/New York, Oxford Univesity Press, 1982.
PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle.Entre o Tempo e a Eternidade. Lisboa, Gradiva, 1990.
THAGARD, Paul. Coherence in Thought and Action. MIT Press, 2000.
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