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FABIANA SÁ REGIS DOS SANTOS CONCEPÇÕES ACERCA DO GOVERNANTE ANÁLISE DA TEORIA POLÍTICA LEGISTA DE HAN FEI (SÉC. III a.C) Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa História, como requisito parcial da conclusão do Curso de Bacharelado e Licenciatura em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Renan Frighetto. CURITIBA 2006

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FABIANA SÁ REGIS DOS SANTOS

CONCEPÇÕES ACERCA DO GOVERNANTE

ANÁLISE DA TEORIA POLÍTICA LEGISTA DE HAN FEI (SÉC. III a.C)

Monografia apresentada à disciplina de Estágio

Supervisionado em Pesquisa História, como

requisito parcial da conclusão do Curso de

Bacharelado e Licenciatura em História, Setor de

Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade

Federal do Paraná.

Orientador: Prof.º Dr. Renan Frighetto.

CURITIBA

2006

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente aos professores André Bueno e Renan Frighetto.

Agradeço ao professor André, que desde os contatos iniciais, em meados de 2003, se

dispôs a co-orientar meus iniciantes estudos na área da Sinologia, apresentando-me as

fontes e bibliografias, que foram indispensáveis à realização desta monografia, bem

como por sua orientação em diversos aspectos e por suas valiosas sugestões,

comentários, e agradáveis conversas. Agradeço ao professor Renan, que gentilmente

aceitou orientar esta monografia, auxiliando-me nos estudos acerca de Política,

Exercício de Poder, na Antiguidade, bem como com suas sugestões, comentários e

conselhos. Agradeço a ambos por terem me auxiliado diversas vezes, a orientação e

atenção de ambos foi inestimável.

Agradeço aos demais professores do Departamento de História da Universidade

Federal do Paraná, pelos ensinamentos que tive. Agradeço aos meus amigos pelos

comentários, apoio e por me escutarem comentar sobre as minhas pesquisas.

Principalmente, gostaria de agradecer a minha mãe, que apesar das diversas

dificuldades, sempre buscou garantir as condições que me possibilitaram concluir o

curso universitário, e por seu constante apoio. Muito obrigada.

Dedico a minha mãe, Suely, e a memória de uma pessoa

fascinante, Gilberto, meu pai.

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SUMÁRIO LISTA DE ILUSTRAÇÕES......................................................................................... iv

RESUMO........................................................................................................................ v

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 6

1 A DESAGREGAÇÃO DO PODER REAL ZHOU E A FORMAÇÃO DO

SISTEMA DE MULTI-REINOS................................................................................ 11

2 ASPECTOS DA LEGITIMAÇÃO E DO EXERCÍCIO DO PODER REAL...... 19

3 O GOVERNANTE NO PENSAMENTO DE HAN FEI........................................ 29

3.1 FA JIA E HAN FEI................................................................................................... 29

3.2 O GOVERNANTE E O ESTABELECIMENTO DA ORDEM.............................. 34

CONSIDERAÇÕES..................................................................................................... 45

REFERENCIAS........................................................................................................... 48

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

a. Mapas:

Mapa 1. China Pré- Imperial (c. 250 a.C)...................................................................... 11

Mapa 2. Zhou Ocidentais (c. séc. XI- IX a.C)................................................................ 12

Mapa 3. Maiores reinos período Primavera e Outono (c. 770 a 481 a.C)...................... 14

Mapa 4. Maiores reinos período Reinos combatentes (c. 481a.C - 221 a. C)................ 15

b. Imagens:

Figura. 1. Osso oracular (escapula) com inscrição de completo registro de adivinhação

do reinado de Wu Ding (? - 1189 a.C) dos Shang.......................................................... 20

Figura 2. Ding (trípode) de Fu Ding – Fase inicial da Dinastia Zhou ocidentais (c.

século XI a.C)................................................................................................................. 21

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RESUMO

Entre os séculos VI a III a.C, a região que hoje conforma parte do território da atual China, e onde sua civilização teve inicio, passou por profundas transformações políticas, sociais e culturais, marcando a transição para o período Imperial. Estas mudanças, advindas da desestruturação do poder da casa real Zhou (c. 1045 a.C – 221.a.C), que possibilitou a formação de diversos reinos, antes domínios sob sua influência, e que passaram a disputar entre si pela hegemonia, a principio enquanto uma influencia política, e posteriormente, político-territorial, tiveram um forte impacto na sociedade, fazendo surgir novas demandas, novas situações, que levaram a busca de uma tentativa de racionalização e de soluções, levando o pensamento filosófico a alcançar grandes níveis, especialmente nos séculos VI a III a.C. Esta monografia analisa uma das diversas correntes filosóficas surgidas neste período, a Legista, ou “Escola da Lei” (Fa Jia), na interpretação de Han Fei, príncipe menor do reino de Han, presentes no Han Fei Tzu (Livro de Han Fei), compilação de seus escritos, feita posteriormente a sua morte em 233 a.C, observando em sua reflexão características que atribui ao governante, as ações deste no sentido de obter a ordenação.

Palavras-Chave: China Antiga – Teoria Política – Papel do Governante.

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INTRODUÇÃO

O tema da Antiguidade Oriental, apesar de vastíssimo e rico, por abranger uma

temporalidade bastante longa, ainda é pouco pesquisado no Brasil. No entanto, o estudo da

História Antiga é fundamental na compreensão do processo histórico. Além de sua

importância para o entendimento histórico do período em si, é fundamental para o

entendimento de outros períodos, uma vez que muitos dos conceitos, instituições, entre

outros elementos, presentes em outros períodos, e até mesmo ainda hoje, tanto nas

sociedades Orientais quanto Ocidentais, tiveram suas origens na Antiguidade. 1

O recorte proposto para a analise desta monografia, dentro da área da Antiguidade

Oriental, é o de estudo da História da Antiguidade Chinesa, que vem despertando a atenção

dos pesquisadores nos últimos anos, especialmente por haver um maior acesso a fontes e

publicações, especialmente por meios eletrônicos. Dentro das pesquisas de cunho cientifico

no Brasil, há trabalhos como o do Prof.Dr.André Bueno, que buscou analisar as relações da

China, entre os séculos I - III d.C. 2 em sua dissertação de mestrado; de Rosana da Costa

Maia, que analisou os textos de Shang Yang,3 importante autor Legista - mencionado neste

trabalho - ambos na área de História, bem como os estudos realizados pelo Prof.Dr. Mário

Bruno Sproviero, que, no campo filosófico e lingüístico, trabalha com diversos temas da

Antiguidade chinesa. 4

Como metodologia orientadora da analise, optou-se pelo viés da Historia Política.

Esta, segundo Foster, deve ser escrita como “recriação de uma cultura política”, o que

exigiria uma “ênfase naquilo que as pessoas pensavam que estavam fazendo e nas razões

pelas quais o queriam fazer, tanto quanto no resultado real (muitas vezes não pretendido)

de suas ações.”5 Esse entendimento de Foster acerca da História política complementa, e é

complementado, pela visão de François Furet, que entende que a História Política como

capaz de colocar em evidencia um esquema ou um conjunto de esquemas de ações e

1 CARDOSO, Ciro Flamarion S. A importância da História Antiga na compreensão do processo Histórico. In: MELLO, Maria Martha Pimentel de. (Org.). Anais do I Simpósio Nacional de História Antiga. Pesquisas, Problemas e Debates. João Pessoa: Imprensa Universitária: 1984, pp. 25 e 28. 2 Bueno, André S.Roma, China e o Sistema Mundial entre os séculos I ao III d.C. Dissertação de Mestrado em História Antiga da UFF; Niterói, 2002. 3 MAIA, Rosana da Costa. A proibição aos festejos e à música na proposta política de Shang Yang - séc. IV a.C. Monografia de conclusão do curso de Bacharelado em História da UFF. Niterói: 2005. 4 Professor da Universidade de São Paulo. A lista de sua produção acadêmica pode ser obtida no Portal Lattes. 5 FOSTER. Apud. CARDOSO, Ciro Flamarion. História do Poder, História Política. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. XVIII, n. 1, junho, 1997, p. 137 (aspas e parênteses no original)

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representações que comandam simultaneamente a formação e a encenação de uma

sociedade, e também sua dinâmica.6

Nesse sentido, dentro da análise da História da China Antiga, e levando-se em

consideração suas especificidades, bem como as possibilidades de possíveis paralelos com

o estudo da história de outras civilizações, esta monografia propõe analisar, dentro da

Cultura Política citada em Foster na interpretação de Ciro Cardoso, uma Teoria de Poder,

de organização Político-Administrativa, dentro das perspectivas da “Escola da Lei” (Fa

Jia), na concepção de um de seus autores, Han Fei, buscando observar o que este entendia

por governante; as características deste, e suas atribuições. Para tanto, a perspectiva teórica

empregada, dialoga com autores cuja contribuição, proveniente da área sinológica 7 ,

possibilita apresentar, definir e explicar os problemas relacionados ao pensamento político

na China Antiga. Esta, em sua maioria, provém de uma historiografia anglo-americana,

mais recente, abarcando as décadas de 70 ao ano 2000, e, em menor grau, uma

historiografia francesa, que contempla as décadas de 30 a 80.

A análise que se pretendeu nesta monografia viria a contribuir para as reflexões

históricas acerca da construção do pensamento político e suas instituições, trazendo para a

discussão histórica no Brasil os temas da antiguidade e suas concepções, contribuindo

assim para a ampliação das várias leituras do que significa o poder, analisando-se o

pensamento político antigo e suas permanências e legados nas sociedades contemporâneas,

uma vez que a análise da teoria política Legalista Chinesa, dos séculos IV a III a.C, nos

escritos de Han Fei, é de suma importância se levarmos em consideração que este foi o

período onde se funda uma análise racionalista do pensamento político chinês antigo,

dentro de uma proposta laica, sendo posteriormente, apropriado e reinterpretado ao longo

de todo o período imperial chinês.

6 François Furet segundo a interpretação de Claude Lefort sobre a sua obra Penser la révolution française. LEFORT, Claude. Pensar a Revolução na Revolução Francesa. trad. Denise Botmann. In: História: questões e debates. Curitiba, 1985, p. 28 O conceito de Política aqui é entendido segundo a definição de Moses Finley: “Como algo que abarca métodos formais e informais; como o governo é conduzido e as formas pelas quais as decisões políticas são tomadas, bem como a presença de ideologias concomitantes.” FINLEY, Moses I. Prefácio. In: A política no mundo antigo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 09 7 A história da China é tradicionalmente analisada por uma vertente das ciências humanas denominada como Sinologia, que incorpora e rediscute, num plano próprio, as diversas contribuições teóricas oferecidas pela história, lingüística, arqueologia, e demais áreas.

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O documento utilizado como fonte para a análise do governante dentro da teoria de

Han Fei, é uma tradução, publicada em língua inglesa, do Han Fei zi (obras do Mestre Han

Fei) ou Han Fei Tzu (Livro de Han Fei), como trás o titulo da tradução, feita por Wen-

Kuei Liao, cujo primeiro volume foi publicado em 1930, e o segundo apenas e, 1960, com

o auxilio da UNESCO, já após a morte do tradutor. 8 Para a composição do “The Complete

Works of Han Fei Tzu”, Liao indica que se utilizou como referencia publicações chinesas,

traduções e obras japonesas, e seus comentários.9 Ate onde se pode aferir, a versão feita

por Liao dos escritos de Han Fei é uma das últimas que apresenta o texto completo, com

55 sessões.

Segundo pesquisas, o “Livro de Han Fei” seria composto originalmente por 55

sessões, distribuídas em 20 “livros”, já que seus ensaios foram divulgados separadamente,

e posteriormente foram compilados em uma única obra, por seus seguidores.10 Este é um

dos mais completos escritos preservados da antiguidade, mas como a maior parte das obras

da preservadas da antiguidade,pesam dúvidas sobre a autoria de algumas partes, prováveis

acréscimos posteriores. Marcel Granet, em 1934, na introdução do “Pensamento Chinês”,

ao fazer uma critica as formas como os estudos sinológicos estavam sendo levados por

seus colegas, comentava que Henri Maspero, um dos pioneiros nestes estudos, no livro “La

Chine antique”, afirmava que podia-se conservar apenas 7 das 55 sessões da obra, uma vez

que:

“No conjunto, a obra parece datar da segunda metade do século III, mas não é inteiramente da mão de Han Fei; como no caso de Zhuangzi, Mozi e a maioria dos filósofos dessa época, uma parcela importante deve-se aos discípulos do Mestre (...) raramente é possível distinguir entre as partes que podem remontar ao mestre e as partes que devem ser atribuídas a sua escola.” 11

No entanto, como coloca Granet, o próprio Maspero analisou a obra citando partes por ele

condenadas, o que torna a discussão sobre a veracidade das partes, vazia, sendo meramente

um estudo sobre classificação de Obras ou Filiação doutrinaria. 12

8 PROBSTHAIN, Arthur. Foreword to Volume Two. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu. trad. W.K.Liao. London: A. Probsthain, 1960, v.2. 9 LIAO, W.K. Preface by the Translator. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu. trad. W.K.Liao. London: A. Probsthain, 1939, v.1; LIAO, W.K. Methodological Introduction by the translator. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v1. 10 NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical writings. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. (ed.) The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p.800. 11 MASPERO, Henri. La Chine antique. Paris, 1927, livo V, p. 552 (nota 1) apud: GRANET, Marcel. O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14. 12 GRANET, Marcel. Op. Cit. pp. 13-14

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Neste sentido, buscou-se analisar a obra de Han Fei seguindo, para tanto, a

metodologia de análise proposta por Granet e levando em consideração a afirmação de

Marc Bloch, “Não basta constatar o embuste. É preciso descobri seus motivos (..) Acima

de tudo, uma mentira enquanto tal é (também), a seu modo, um testemunho”. 13 Assim

sendo, mesmo sendo interpolada, estas podem significar o que a posteriori foi entendido ou

acrescentado a uma visão, no caso, a Legista, tanto por seus seguidores, querendo legitimar

uma nova concepção ou aspecto, remontando-o a obra clássica; como por seus opositores,

acrescentando elementos que em seu tempo possam vir a denegrir a obra. Portanto, as

interpolações têm seu valor quando se pretende compreender uma mentalidade, as

concepções, de um determinado grupo. Este entendimento da possibilidade de se utilizar a

versão completa da obra de Han Fei, a despeito das duvidas acerca das partes acrescidas e

do fato das publicações mais recentes apresentarem apenas extratos, esta de acordo com a

historiografia relativa ao Legismo, que em sua análise, se utiliza das diversas sessões da

obra.

Apesar de Liao ter se utilizado de termos, ao traduzir a obra, que, como ele mesmo

apontou, permitiriam conservar a poética da escrita clássica chinesa,14 mas que muitas

vezes são inadequados, por expressar idéias possivelmente anacrônicas, sua versão ainda é

utilizada pela historiografia, mas levando-se em conta estas particularidades. Dessa forma,

na presente monografia, todas as traduções feitas, incluindo as citações de bibliografias,

são livres, e sempre que foi possível, buscou-se adaptar os termos àqueles que poderiam

ser mais adequados ao contexto do século III a.C. No entanto, respeitou-se as

transliterações dos caracteres a escrita fonética, mantendo nas traduções o sistema Wade-

Giles, usado pelo tradutor, e de uso corrente até a década de 70, quando houve uma

padronização, promovida pelo governo da Republica Popular da China, instituindo o

sistema Pinyin. Os termos em chinês aparecem aqui destacados em itálico, por sua grafia

especifica.

Devido ao fato de ser uma publicação sem novas edições, ela se encontra

atualmente disponível no site da Profª: Anne Behnke Kinney, do departamento de Línguas

e Culturas asiáticas e do Oriente Médio, no Institute for Advanced Technology in the

Humanities, da Universidade de Virginia, nos Estados Unidos. 15

13 BLOCH, Marc. Apologia da história. Ou o oficio de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 98. 14 LIAO, W.K. Methodological Introduction by the translator. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v1. 15 <http://jefferson.village.virginia.edu/xwomen/intro.html>

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Esta monografia foi estruturada em três capítulos. O primeiro trata de uma

contextualização do processo de desagregação do poder legitimo da casa dinástica Zhou e a

formação do sistema de multi-reinos, fundamental para a compreensão dos motivos que

levaram Han Fei a elaborar sua obra, bem como dos temas por ele tratado. O segundo

capitulo consta de uma análise dos aspectos que embasavam a legitimação e o exercício do

poder pelos governantes, desde a dinastia Shang, o que possibilita aferir as possíveis

diferenças propostas por Han Fei, bem como as possíveis permanências destas concepções

em sua teoria. O terceiro capitulo refere-se a analise da teoria, privilegiando os aspectos

concernentes ao governante, ao exercício de seu poder. Este capítulo foi dividido em duas

partes, com a primeira apresentando aspectos acerca da corrente teórica a qual Han Fei

pertenceria, bem como aspectos relativos à sua vida.

O site é parte do projeto de estudos acerca da mulher na China antiga. Além de informações e fontes sobre o tema, o site disponibiliza diversos textos, inclusive os Clássicos Chineses, que se encontram fora de publicação.

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1 A DESAGREGAÇÃO DO PODER REAL ZHOU E A FORMAÇÃO DO

SISTEMA DE MULTI-REINOS

No século III a. C, o que conhecemos atualmente como China, estava circunscrito

as áreas centro-leste e nordeste do atual espaço geográfico por ela ocupado, especialmente

as regiões compreendidas no entorno dos vales dos rios Amarelo e Yangzi, dividido entre

diversos reinos, especialmente os sete maiores: Yan (Yen), Qi (Ch’i), Wei, Zhao (Chao),

Hann, Qin (Ch’in) e Chu (Ch’u), que disputavam entre si a hegemonia política.

Mapa 1. China Pré- Imperial (c. 250 a.C)

Os antecedentes desta conformação podem ser vistos em seu esboço já na dinastia

Shang (c. 1570-1045 a.C), onde o rei era o chefe de uma teocracia patrimonial, exercendo

uma autoridade derivada de sua relação única com os ancestrais, por sobre uma rede de

domínios ligados entre si por laços de parentesco,1 sendo aprimorado na dinastia Zhou, (c.

1045 a.C – 221.a.C), com o inicio de uma laicização2 do exercício do poder real, com o

1 KEIGHTLEY, David N. The Shang. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. (ed.) The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, pp.270-272; 290-291. 2 No entanto, o caráter religioso nunca deixou de estar presente, sendo muitas práticas burocráticas derivadas de práticas rituais, como aponta Mark Edward Lewis, ao afirmar que: “A assim chamada organização administrativa burocrática emergiu de um estado teocrático organizado em torno do culto ancestral, na qual a escrita serviu a comunicação com os mortos. Os usos políticos da escrita que re-criaram o estado durante o período Reinos Combatentes (c. 481-221 a.C) vincularam-se a adaptação desses usos religiosos antigos.” LEWIS, Mark Edward. Writing the State. In: Writing and Authority in Early China. Albany [NY]: State University of New York press, 1999, p. 13.

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distanciamento do rei da população, uma vez que, com os Zhou, o rei teve seu poder

mediado, e provavelmente, controlado, por uma burocracia real. 3

A partir do século VIII a.C inicia-se um processo de perda de legitimidade do poder

da casa dinástica dos Zhou devido à instabilidade do poder de seus reis, que além de

sofrerem as constantes pressões das populações “bárbaras” do norte e oeste, enfrentavam

problemas de sucessão, disputas internas e até deposições, que forçaram alguns de seus reis

a exilar-se, movendo a capital para regiões mais orientais. 4 Além disso, havia o

crescimento dos domínios mais afastados da região da Planície Central5, fundamentados no

inicio da dinastia Zhou pelos filhos segundos6 dos reis e seus dependentes, que com o

passar dos anos e devido a distancia, tornavam-se cada vez mais independentes da

supervisão da burocracia real.

Mapa 2. Zhou Ocidentais (c. séc. XI- IX a.C)

3 SHAUGHNESSY, Edward L. Western Zhou History. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). Op. Cit. p. 326. 4 GERNET, Jacques. O Mundo Chinês. Coleção Rumos do mundo. Lisboa/Rio de Janeiro: Cosmos, 1974, v.I, p. 59. 5 A região da Planície Central, ou Zhongyuan, é a região onde os principais elementos da Civilização Chinesa se desenvolveram. Essa região é compreendida entre os vales do Rio Amarelo, no norte da China, regiões do Henan, sudoeste do Shanxi, e o vale do rio Wey, no Shaanxi. Segundo Su Bingqi, em termos históricos, o Vale do Rio Amarelo exerceu um importante papel, frequentemente ocupando uma posição de liderança em momentos importantes da civilização. No entanto, havia culturas em outras regiões, o que proporcionava trocas freqüentes. SU Bingqi. Wenwu, 1981. Apud KWANG-chih Chang. China on the eve of the Historical Period. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). Op. Cit. pp. 55 – 58. 6 O termo utilizado pelo autor, Cho-yun Hsu, “Scion” significa, em uma tradução literal: “Jovem membro de uma família rica e famosa” (a young member of a rich and famous family), segundo a terminologia do Cambridge Advanced Leaner’s Dictonary. Disponível em: <http://dictionary.cambridge.org/define.asp?key=70416&dict=CALD>. Acesso em 19 abril. 2006 Aqui foi traduzido como “filhos segundos” na intenção de indicar os demais filhos do soberano, aqueles que, não assumindo a posição deste, fundavam seus próprios domínios, mas mantinham-se ligados ao reino de origem por laços familiares e pela realização dos cultos aos ancestrais.

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As invasões de povos do norte e oeste das fronteiras do mundo Zhou, além de

causarem despesas com defesa e pagamento dos saques, causaram uma grande pressão

demográfica sob os recursos, uma vez que muitas dessas populações acabavam por se

estabelecer dentro dos domínios Zhou. Somados a isso, a presença de fenômenos e

desastres naturais constantes, especialmente terremotos sucessivos, além de trazerem

prejuízos à economia, afetava a legitimidade da casa dinástica no plano simbólico. Isto por

que, como aponta Edward Shaughnessy, aquela sociedade concebia os eventos naturais e

humanos como correlatos, cada um exercendo uma irresistível influencia sobre o outro.

Assim, um terremoto, um eclipse solar, sozinhos, eram suficientes para indicar um período

de dificuldades.7 É preciso ter em mente também, que na sociedade de então, a organização

política não era entendida como não era uma emanação de um corpo social, mas sim como

uma dádiva celeste, onde o Céu (T’ien), a entidade reguladora do mundo físico, espiritual e

humano, delegava seu supremo poder àquele, entre os homens, que surgia como mais

qualificado para fazer respeitar suas leis. 8 Uma sucessão de desastres naturais significava

que a casa real perdeu sua condição de mandatário celeste, e, portanto, a sua base de

legitimação. Este tema será melhor discutido no capitulo seguinte, onde é abordado as

bases de legitimação e o exercício do poder.

Assim, como a casa dinástica dos Zhou não era mais vista como capaz de manter a

união entre as diferentes linhagens, estas passaram a disputar entre si o direito de assumir a

função da casa real. Para tanto, era concedido pelo rei Zhou, que ainda possuía certo poder

simbólico, o titulo de Ba (senhor único, ou o único, em chinês) a um chefe de domínio, que

deveria assegurar a coesão entre estes e liderá-los em campanhas militares. A principal

função do Ba, era assegurar a continuidade do sistema de organização dos Zhou. 9 O

sistema de Ba é uma entre as várias mudanças ocorridas no período conhecido na

historiografia com o Período da Primavera e Outono ou Chun qiu10, dentro do que é

denominado Zhou Orientais, período que marca de transição para o sistema de multi-

reinos; de uma economia baseada na unidade da terra para uma economia mercantil; de

7 SHAUGHNESSY, Edward L. Western Zhou History…, p. 349. 8 MIRIBEL, Jean de; VANDERMEERSCH, Léon. Sabedorias Chinesas. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. Coleção Biblioteca Básica de Ciência e Cultura, pp. 92 – 93. LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty. In: Imperial China. London: George Allen an Unwin LTD, 1966, p. 74. 9 CHO-yun Hsu. The Spring and Autunn period…pp. 550 – 555. 10 Nome derivado dos títulos das crônicas do reino de Lu, pátria de Confúcio, uma das mais importantes fontes sobre o período, juntamente com o Zuo zhuan (Tradição de Zuo). Ibid. p. 547.

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uma sociedade baseada nas famílias tradicionais para uma sociedade de grande mobilidade

social, e é delimitado entre os anos de 770 a 481 a.C.

Outro importante aspecto do período é a expansão territorial, com a emergência de

domínios além da área da planície central chinesa. O zhuo zhuan menciona a existência de

148 domínios, que acabaram por tornarem-se reinos independentes de Zhou; mas a grande

maioria, de tamanho ínfimo, acabou por ser anexado pelos vizinhos maiores,

essencialmente 15: Qi; Jin; Qin; Chu; Lu; Zheng; Song; Xu; Chen; Wey; Yan; Cai; Wu e

Yue, que disputavam ente si por domínios e pelo exercício do Ba, que oficialmente foi

exercido pelos soberanos dos reinos de Qi, Jin e Chu. 11

Mapa 3. Maiores reinos período Primavera e Outono (c. 770 a 481 a.C)

No entanto, se o sistema de Ba visava proteger e manter a organização existente sob

os Zhou, que já não possuíam o poder efetivo para fazê-lo, foi justamente esse sistema que

favoreceu o surgimento de poderes regionais em um constante realinhamento de domínios,

que acabaram por se tornar reinos independentes.12 São estes os reinos que vão disputar

constantemente o poder hegemônico entre si, no período conhecido como Reinos

Combatentes (c. 481a.C - 221 a. C).

11 CHO-yun Hsu. The Spring and Autunn period…pp. 547 – 548. 12 Ibid. pp. 555, 562 - 565.

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Mapa 4. Maiores reinos período Reinos combatentes (c. 481a.C - 221 a. C)

O período dos Reinos Combatentes foi o de surgimento da maior parte das

instituições políticas que definem o inicio da China Imperial. A antiga liga de domínios

governada pela nobreza Zhou foi substituída por um sistema de domínios territoriais

construídos em torno de um soberano praticamente inquestionável, que comandava um

grande número de oficiais dependentes. O poder era agora centrado unicamente na figura

do soberano. 13

Assim, na definição de Mark Edward Lewis:

“A história política dos Estados Combatentes consistiu não apenas no desenvolvimento de uma nova forma de estado, mas também na emergência de um novo padrão de interação. Enquanto o mundo inicial Zhou era composto por uma multidão de cidades e postos avançados, ligados por laços familiares, ritos religiosos, e continua beligerância, o período dos Estados Combatentes foi caracterizado por um pequeno número de estados territoriais envolvidos em constantes manobras diplomáticas e intermitentes, porém freqüentes, conflagrações militares de larga escala. O século e meio entre 481 e a metade do século IV foi o período formativo para este padrão de relações inter-estados, um padrão forjado na beligerância. Isto teve duas grandes conseqüências: absorção de pequenos estados e populações não-Hua na expansão dos poderes territoriais, e a formação de um equilíbrio do poder, em que cada estado agia independentemente para favorecer seus próprios interesses completados pela seletiva aplicação do combate e da diplomacia.” 14

13 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). Op. Cit. pp. 597. 14 Ibid, p. 616.

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16

A mudança da concepção de um ‘Senhor de domínio’, ligado a Zhou e aos demais

por laços hereditários, para a de um ‘Soberano de um reino independente’ é marcada pela

mudança de denominação daquele que exerce o poder. Em meados do século quarto, a

maior parte dos governantes acrescentou a frente de seu nome, o termo Wang (rei), em

substituição a Gong (geralmente traduzido como ‘duque’). 15 Esta mudança tem grande

importância se entendermos, como aponta Marcel Granet, que a linguagem chinesa busca

representar e sugerir condutas. Possuir um nome ou dar o nome a um objeto não significa

apenas nomear, mas sim, ser dotado ou dotar o objeto com as características da nomeação. 16 Como já descrito anteriormente, o exercício do poder era entendido como uma delegação

do Céu. Assim, ao adotarem o título antes exclusivo de uso do Filho do Céu (T’ien zi), ou

seja, os reis Zhou, esses soberanos legitimavam o exercício de seu poder igualando-se a

estes. Além disso, esses soberanos buscaram apoios em elementos externos e das baixas

camadas da sociedade, uma vez que este tipo de apoio era decisivo para assegurar vitórias

sob linhagens nobres rivais em um período de constante usurpação do poder. Para Mark

Edward Lewis, a aquisição no serviço burocrático de novos elementos sociais, em

detrimento aos elementos das aristocracias de linhagem, juntamente com novos métodos

para garantir a lealdade destes, definem a política dos Reinos Combatentes.

Entre as práticas para assegurar a lealdade e o poder destes soberanos, encontram-

se a transformação dos pequenos domínios da aristocracia de linhagem em distritos

administrativos sob o controle direto da burocracia administrativa destes soberanos; a

centralização da administração; a criação de novos códigos legais e sua “promulgação” nos

vasos de bronze cerimoniais; taxação da propriedade privada, e, no plano simbólico, a

realização de juramentos, quase que públicos e até coletivos, em que os participantes

juravam lealdade a linhagem dominante e chamavam uma maldição sob aqueles que o

violassem. 17

O período Reinos Combatentes foi marcado por uma maior burocratização da

administração dos reinos. O crescimento do poder real mudou o caráter das ocupações

Apesar de Mark Edward Lewis e outros autores denominarem “Estados”, a opção aqui por se utilizar o termo “Reinos” ou “Domínios” se deve ao fato de o termo Estado poder remeter o leitor à idéia de estados nacionais modernos, o que não caberia aqui. O termo reinos aparece também na historiografia pertinente, em substituição ao termo Estado. Nesta tradução, o termo Estado foi mantido apenas em respeito ao texto original, em inglês, onde aparece o termo “states”. O termo “não-Hua” designa populações não pertencentes a linhagens Zhou, ou a sua esfera de influencia. 15 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History…,pp. 602 - 603. 16 A concepção de xing ming (ou shing-ming), “forma e nome”. GRANET, Marcel. O pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, pp. 29; 36; 41 – 42. 17 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History…,pp. 599 – 600.

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oficiais, que se tornaram uma extensão do poder régio. Houve uma redefinição dos laços

políticos, com oficiais recrutados nas diversas camadas da sociedade, deixando de ser

exclusivo aos membros das altas camadas das aristocracias de linhagem, já surgindo o

esboço dos exames oficiais, que se tornam norma na burocracia imperial posterior. O

termo shi, antes empregado para designar indivíduos de posição baixa na hierarquia das

aristocracias de linhagem, passa a ser empregado para indicar “letrados”, indivíduos aptos

ao exercício de funções administrativas dos reinos.18 Esses funcionários eram pagos com

salários em cereais, mas recebiam pagamentos especiais em ouro e prata como

reconhecimento de serviços que alcançaram méritos. Esses salários em cereais podiam ser

trocados por moedas, uma vez que cada um desses reinos buscou cunhar suas moedas, em

uma economia em que o comércio ganhava espaço. A maior parte dos cargos e terras

recebidas pelos oficiais no serviço ao soberano não eram hereditários, como nos períodos

anteriores, o que garantia ao soberano um maior controle, por dificultar o acúmulo de

poder por parte de um indivíduo e sua família.19 Outras medidas do período foram: o

serviço militar, que era essencial para a defesa dos reinos em continuas guerras de defesa e

expansão de seus territórios; o registro sistemático da população; a divisão das famílias em

pequenas unidades, para servirem de unidades autônomas de produção, especialmente

agrícola, o que aumentava a produção, e os tributos não eram mais pagos aos senhores

locais, mas revertidos a administração do reino; codificação das leis e uso rigoroso de

punições para assegurar a obediência.20

Todas estas medidas, associadas à habilidade de apontar oficiais, mandá-los para

cidades distantes, manter o controle sobre eles, mesmo com a distancia, e removê-los

quando necessário, era essencial. Assim, a história institucional do período constitui-se do

desenvolvimento de práticas e valores que garantissem esse poder. Leis e procedimentos

legais são mencionados nos trabalhos de “escolares” (mestres), empregados na burocracia

destes reinos, que nas fontes do período - “livros” que surgiram e foram preservados como

legados de grupos - acabaram por caracterizar as instituições políticas do período como

obra de um único oficial, um sábio, como por exemplo, “O Livro de Shang Yang”21,

18 GERNET, Jacques. Op. Cit. p. 69. 19 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History…pp. 606 - 608 20 Ibid. p. 611. 21 Gongsun Yang, ou Shang Yang (? – 338 a.C), reformador do reino de Qin durante o governo do duque Xiao (r. 361 – 338 a.C). Teria estudado com Li Kui, sendo assistente de Gongshu Cuo, em seu reino de origem Wei, mas não sendo empregado na administração após a morte deste, dirigiu-se a Qin, segundo sua biografia presente no Shi Ji 68. Sua obra, Shangjun shu, contem 29 capítulos, enfatizando a lei como mecanismo máximo para a obtenção do fortalecimento do reino.

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ministro do reino de Qin.22 Nesse sentido, os textos do período definem um tipo de

idealização que constituiria a política dos “Reinos Combatentes”: O Monarca (soberano);

Ministro Reformador; o Comandante Militar; o Diplomata (persuasivo) e o “Escolar”. 23

A figura do “Erudito” ou “Mestre”, “Sábio”, apesar de não ser um elemento

indispensável na nova estrutura e também não ser, necessariamente, um participante ativo

no mundo político, parece ser de fundamental importância devido à necessidade da

construção de todo um novo arcabouço teórico que legitimasse as novas práticas e o novo

caráter da sociedade. 24 De fato, o pensamento filosófico alcançou grandes níveis durante

os períodos Primavera e Outono e Reinos Combatentes, uma vez que buscava-se até

mesmo entre as ditas populações “bárbaras” técnicas, idéias e símbolos. As profundas

mudanças na organização da sociedade fizeram surgir novas demandas, novas situações,

que levaram a busca de uma tentativa de racionalização e de soluções.25

São os “mestres” que formam os ministros reformadores, os comandantes e outros

altos oficiais da burocracia administrativa destes reinos, e, obviamente, os próprios

soberanos. Um dos primeiros mestres que aparecem nos textos é Confúcio (Kong Fuzi –

mestre Kong), cujos discípulos alcançaram altos postos em pequenos reinos ou

encontraram patronos que os sustentaram em suas atividades culturais como professores e

mestres de rituais, atraindo estudantes, que com o prosseguimento dos ensinamentos e

transmissão dos ideais, criaram a tradição das “Escolas”. 26

É neste contexto que se insere a figura de Han Fei, nobre do reino de Han, noroeste

da China e sua obra, o Han Fei zi, que influenciou a política do primeiro imperador, bem

como as políticas das dinastias subseqüentes. 27

ZHENGYAN Fu. China’s Legalists: The Earliest Totalitarians and their art of Ruling. Armonk [NY]: M. E. Sharpe, 1996,, pp. 16 – 18. 22 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History…pp. 587; 603. LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty. Op. Cit. p. 79. 23 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History… p. 587. 24 GRANET, Marcel. Op. Cit. p. 261. 25 Ibid. p. 257. 26 LEWIS, Mark Edward. Warring States: Political History…p. 641. 27 GRAZIA, Sebastian de. Masters of Chinese political thought. From the beginnings to the Han dynasty. New York: The Viking Press, 1973, pp. 350-351.

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2 ASPECTOS DA LEGITIMAÇÃO E DO EXERCÍCIO DO PODER REAL

“O soberano é um sábio que, possuindo uma virtude mais humana e mais abstrata que a virtude própria dos heróis, civiliza o mundo pelo efeito direto de sua eficácia e reina de acordo com o Céu, para a felicidade do povo. Ele reina sem pensar em governar.” 1

O Soberano Chinês, seja ele entendido como Rei (Wang), como com os Shang e

Zhou; ou como Imperador (Di), após a primeira dinastia imperial dos Qin (221 a.C – 209

a.C), não é apenas aquele escolhido entre seus pares e dentro de uma linha sucessória

hereditária, que governa, mas sim, alguém que possui características singulares que o

tornam o escolhido para ordenar “Tudo abaixo do Céu”.2

Como apontado no primeiro capitulo, os reis Shang (c. 1570-1045 a.C), eram

chefes de uma teocracia patrimonial. A linhagem real estava à frente de uma organização

de tipo clãnica, em que os chefes de linhagens eram ao mesmo tempo chefes do culto

familiar.3 Como bem definiu Michael Loewe, no estudo da História Chinesa é impossível

separar o estabelecimento de um rei por razões que podem ser entendidas hoje - devido a

existência da separação entre as funções de Estado e as funções Religiosas na maior parte

das sociedades que seguem um modelo proposto na Europa em meados do século XVIII -

como “práticas”, da sua função de mantenedor das observações religiosas.4 Neste sentido,

o exercício do poder era suportado pelo privilegiado acesso aos poderes espirituais dos

ancestrais, como demonstrado pelos usos da escrita encontradas nas carapaças de

tartarugas e ossos oraculares, que, juntamente com os sacrifícios, buscavam determinar os

desejos e pedir benesses aos ancestrais, tornados espíritos. As atividades religiosas dos

soberanos, sua ligação com os espíritos, serviam como emblema do poder real 5 , e a

adivinhação pelo fogo constituía um dos aspectos mais importantes da atividade real,

servindo ao culto aos antepassados e as divindades; as expedições militares; nomeações

para cargos; convocações para a corte 6 ; construção de cidades; assuntos agrícolas e

1 GRANET, Marcel. A Civilização Chinesa. Rio de Janeiro: Otto pierre editores, 1979, p. 33. 2 GRANET, Marcel. O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 253. 3 GERNET, Jacques. O Mundo Chinês. Coleção Rumos do mundo. Lisboa/Rio de Janeiro: Cosmos, 1974, v. I, p.54. 4 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty. In: Imperial China. London: George Allen an Unwin LTD, 1966, p. 72. 5 LEWIS, Mark Edward. Writing and Authority in Early China. Albany [NY]: State University of New York press, 1999. The suny series in Chinese philosophy and culture, pp. 14 -15. 6 Local da habitação real, a capital Shang, Shang-yin, no noroeste do Henan, próxima a atual cidade de Anyang. GERNET, Jacques. Op. Cit. p. 51.

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meteorológicos (chuvas, secas, ventos) ligados ao estabelecimento do calendário. 7 A

autoridade estava baseada no poder genealogicamente garantido pelos espíritos ancestrais,

que davam a organização política uma graduação hierárquica na qual a posição tomava

prioridade sobre o caráter pessoal, definida através do estabelecimento de práticas rituais

em torno dos cultos a estes Ancestrais.8

Figura. 1. Osso oracular (escapula) com inscrição de completo registro de adivinhação, do reinado de Wu

Ding (? - 1189 a.C) dos Shang. 9

7 GERNET, Jacques. Op. Cit, pp. 54-55. Acerca da importância do estabelecimento do calendário, consultar: ELIADE, Mircea. As religiões da China Antiga. In: História das crenças e das idéias religiosas. Das religiões da China antiga à síntese Hinduísta. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, Tomo II, v. 1, p. 29; GRANET, Marcel. O tempo e o Espaço. In: O pensamento Chinês... pp. 65 – 81. 8 LEWIS, Mark Edward. Op. Cit, p. 49 9 A frente e a parte de trás registram diversas adivinhações que foram realizadas sobre um período de pelo menos trinta dias, na quinta e sexta luas. Em cada caso, o registro dos resultados confirma o inicial prognostico do rei de desastre. Assim, a inscrição na esquerda (que começa no topo da coluna a esquerda da linha vertical, e é lida de baixo e para a esquerda) registra: [Prefacio:] Fendendo no guisi (dia 40), Que adivinhou: “Nos próximos dez dias não haverá desastres.”[Prognostico:] “Haverá calamidades; pode haver alguém trazendo as noticias alarmantes.” [Verificações:] Quando chegou para o quinto dia, dingyou [dia 34], houve realmente alguém trazendo noticias alarmantes do oeste. Guo of Zhi [um general Shang] reportou e

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Com a conquista Zhou, o culto aos Ancestrais se mantém como importante

emblema de geração de poder e autoridade, com substituição das inscrições em ossos ou

carapaças, pela inscrição e a realização de sacrifícios nos vasos de bronze cerimoniais. 10

Estes vasos eram de suma importância como um símbolo e uma garantia de poderes e

privilégios na organização sócio-política Zhou. Esta organização se baseava em uma

hierarquia de domínios e cultos familiares, tendo no topo o domínio real e o culto aos

antepassados Zhou. Essa hierarquia de domínios advém de concessões territoriais dadas

pelos reis Zhou em reconhecimento a serviços prestados a casa dinástica e/ou necessidades

logísticas. Devido às dificuldades para manter o controle por uma área extensa, com

geografias contrastantes e com a presença de diferentes grupos, muitos considerados

“bárbaros” hostis, os primeiros reis Zhou delegaram limitado poder aos seus seguidores

para o exercício do controle e da autoridade, submetidos as suas ordens. Estes eram seus

parentes e outros que se associaram na conquista, bem como aqueles que já exerciam

controle sobre determinadas regiões, especialmente quando da expansão Zhou nos

primeiros séculos após a conquista por sobre os Shang, quando estes colocaram sob sua

influencia territórios e suas populações, das regiões da atual Beijing, extremidade nordeste

do Shandong e as planícies do baixo Yangzi.11 Até o filho do soberano Shang derrotado

recebeu um domínio do rei Wu, o finalizador da conquista Zhou, para possibilitar a

continuidade dos sacrifícios aos soberanos ancestrais Shang, sob a supervisão, obviamente,

de elementos Zhou, apontados como “inspetores”, em uma estratégia para evitar a possível

ira dos ancestrais sobre a nova dinastia, já que estes ancestrais assistem seus descendentes

se satisfeitos, e os punem severamente se aborrecidos, sendo os sacrifícios necessários para

a manutenção da ordem. 12

Em cada um destes domínios, o poder era exercido por uma família que devia o seu

prestigio ao seu poder militar; aos seus privilégios religiosos (direito a certos sacrifícios e a

execução de certas danças e hinos); a antiguidade de suas tradições e a ligação com a casa

real, “comprovada” pela pose de emblemas e tesouros (vasos de bronze, peças de jade,

disse: “Os Tufang [um reino inimigo] atacaram em nossa fronteira oriental e capturaram duas colônias.” Os Gongfang (outro reino inimigo) igualmente invadiram os campos de nossas fronteiras ocidentais. KEIGHTLEY, David N. The Shang. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. (ed.) The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p. 242. 10 LEWIS, Mark Edward. Op. Cit. pp. 15-16. 11 GERNET, Jacques. Op. Cit. p. 59. 12 CREEL, Herrlee G.The Origins of Statecraft in China. The Western Chou Empire. Chicago/London: University Of Chicago Press, 1970, pp. 69 – 71; 82.

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carrilhões de pedras sonoras, sinos, entre outros), especialmente a partir do reinado do rei

Mu (c. 956 – 918 a.C), quando se impôs o hábito de gravar nos vasos de bronze

cerimoniais uma espécie de “Ata” das cerimônias de investidura ou doação, o que

corroborava a posição e o exercício da autoridade local, perpetuando a lembrança dos

direitos adquiridos pela concessão real.13

Figura 2. Ding (trípode) de Fu Ding – Fase inicial da Dinastia Zhou ocidentais (c. século XI a.C)

Aos membros da aristocracia de linhagem eram reservados cargos na administração

Zhou, sendo os senhores de domínio, em nível local, em teoria pelo menos, entendidos

como uma espécie de governante em nome do rei. Apesar dos usos de escritas de

documentos, e a existência de uma rede de cargos e funções hierarquizadas, Herrlee G.

Creel afirma que durante os Zhou Ocidentais (c. 1045 – 770 a.C) , não havia uma

burocracia de fato, uma vez que os oficiais não eram profissionais, especialmente os de

13 LEWIS, Mark Edward. Op. Cit, p. 16. GERNET, Jacques. Op. Cit. p. 61.

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postos mais importantes, ocupados por altos membros da aristocracia, que não dependiam

única e exclusivamente dos rendimentos pelo exercício de suas atividades.14 Este autor

define burocracia dentro dos termos propostos por Max Weber, onde uma organização

burocrática compreende a existência de uma divisão de trabalho; hierarquia da autoridade;

normas extensivas, incluída a separação entre a administração e propriedade; o pagamento

de salários e promoção baseados na competência técnica, o que não ocorre neste

contexto.15 No entanto, há de se ressaltar que o fato de a organização Zhou não contemplar

todas as características apontadas por Weber na constituição do tipo ideal de burocracia,

não descarta a possibilidade de compreender certos aspectos da organização dos Zhou

Ocidentais como burocratizada, como entende Mark E. Lewis, por esta conter princípios

burocráticos derivados dos usos da escrita nas praticas rituais, tanto no campo religioso

como no campo organizacional.16 Essa interpretação de Lewis é coerente dentro do que

afirma Alvin Gouldner, “O tipo ideal de Burocracia pode ser usado como uma medida que

nos possibilita determinar em que aspecto particular uma organização é burocratizada.”17

Para Creel, entre outros especialistas, a organização Zhou, com a concessão de

domínios feita pelos reis a seus apoiadores, revelaria uma organização de tipo feudal,

entendendo-se feudalismo como um sistema em que um governante de forma pessoal

delega soberania limitada por sobre porções de seu território. Contrariando os especialistas

que afirmam que o feudalismo é um fenômeno exclusivamente europeu, derivado das

especificidades das organizações européias, Creel defende que haveria poucas mudanças

para o caso Chinês, oriundas da especificidade Chinesa em relação à Europa, da mesma

forma como havia distinções dentro da própria “Europa Feudal”. Estas características

seriam semelhantes às apontadas por Marc Bloch, em a “Sociedade Feudal”:

“A presença de um campesinato subjugado; difundido uso do serviço de habitações comunitárias (i.e feudo), ao invés de um salário, o qual estava fora de questão; a supremacia de uma classe especializada de guerreiros; laços de obediência que unem homem a homem, dentro da classe guerreira, assumindo a forma distintiva chamada vassalagem; fragmentação da autoridade - conduzindo inevitavelmente a desordem; (...).”18

14 CREEL, Herrlee G. Op. Cit. pp. 114 – 115. 15 Ibid, p. 32, nota 10; WEBER, Max. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1974. Apud HALL, Richard H. O conceito de burocracia: uma contribuição empírica. In: CAMPOS, Edmundo. (Org.) trad. Sociologia da Burocracia. Biblioteca de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, pp. 30 – 31. 16 LEWIS, Mark Edward. Op. Cit. pp. 42 – 51. 17 GOULDNER, Alvin. Studies in leadership. New York: Haper e Bros, 1950, p. 53 – 54. Apud HALL, Richard H. Op. Cit, p. 32. 18 BLOCH, Marc. Feudal Society. Trad. L.A. Manyon. Chicago, 1961, p. 446. Apud CREEL, Herrlee G. Op. Cit, p. 321 e nota 15. Termo em parênteses pertence ao original de Creel.

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Segundo Creel, não apenas o fenômeno seria semelhante, mas o conceito de

feudalismo e algumas terminologias seriam análogas, como o termo enfeudar, que em

chinês é feng-chien. Este termo aparece nas aparece nas inscrições em bronze como feng

na forma pictográfica de uma planta (ou talvez semear), juntamente com mais dois

pictogramas que mostram uma ou duas mãos, segurando a planta, evidentemente

“plantando”. Deste, desenvolve o senso de estabelecer um novo domínio, “enfeudar” e o de

“feudo”. Chien significa estabelecer. No “Livro dos Documentos”, é descrito que o que o

Céu “enfeudou”, chien, os soberanos Shang, e assim, para Creel, até mesmo a idéia de

Mandato Celeste, discutido a seguir, seguiria esta lógica, como o soberano sendo alguém

que recebe uma concessão Celeste para exercer autoridade, submetida a sua vontade. 19

Jacques Gernet também entende o termo feng como enfeudar, e traduz várias

terminologias com os análogos utilizados para o caso europeu, mas afirma que:

“abusou-se tanto do termo feudal que este perdeu toda a significação. Melhor será que o esqueçamos e nos limitemos a caracterizar pelas suas instituições especificas ao sistema político e social, que na longa história do mundo chinês, se aproximaria mais daquilo a que os historiadores do Ocidente atribuíram pela primeira vez este qualificativo.” 20

Para Gernet, o sistema de concessão de um domínio, que permite atribuir a uma família um

poder simultaneamente religioso e militar em um território definido e delimitado, nada

mais é que uma replica da realeza no seio de uma vasta hierarquia de família e domínios,

sendo a ordem dos cultos familiares que asseguraria a coesão do conjunto. 21

Ao contrario do que afirma Creel, Léon Vandermeersch não entende que se possa

fazer transposição direta do conceito de feudalismo para o caso chinês, por que esta

organização deriva das características próprias das relações e rituais chineses, e não são

conseqüência de fenômenos análogos aos que ocorreram Europa. Enquanto nesta, o

sistema feudal adveio da desestruturação da soberania real, no caso chinês é justamente

esta desestruturação, que ocorre progressivamente do final do período Zhou Ocidentais,

iniciando o período Primavera e Outono, que culmina na formação de reinos independentes

durante o período Reinos Combatentes, e, portanto, na desestruturação da organização

formada por senhores de domínios. 22 Neste sentido, a organização durante os Zhou

Ocidentais poderia ser interpretada, retirando-se a carga o termo Feudalismo, dentro do

19 CREEL, Herrlee G. Op. Cit, p. 322- 323. Parenteses e aspas no original. 20 GERNET, Jacques. Op. Cit. pp. 60 – 61. 21 Ibid, p. 67. 22 VANDERMEERSCH, Leon. La Formation du Legisme. Recherche sur la constituition D’une Philosophie Politique caractéristique de la Chine Ancienne. Paris : École Française D’extrême Oriente, 1965, pp. 138 – 139.

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conceito proposto por Weber de Dominação Tradicional, onde a organização possui um

“senhor” que ordena, no caso chinês, o Rei; e, em nível local os Senhores de

Domínio/Chefes de Linhagem; o quadro administrativo é composto por membros ligados

por laços hereditários a aquele que exerce o poder, ou por um vinculo de fidelidade. O

exercício do poder é vinculado à tradição e desvios dela podem colocar em perigo a

legitimidade do exercício do poder. 23

Por este motivo, a concepção de Rito ou Ritual (Li), era de sua importância. Com

uso de diversas práticas rituais, desde o culto ao Céu; viagens pelos territórios; visitas

cerimoniais, onde os senhores dos domínios prestavam contas ao rei e recebiam

vestimentas e ornamentos cerimoniais, entre outras práticas, o rei mantinha o controle por

sobre as regiões distantes, por meio da manutenção e estabelecimento de laços. 24 Dentro

concepção de Rito, a tradição política seria entendida como um modelo de concepção de

vida que atribuía aos indivíduos funções, direito e deveres nesta sociedade relativamente

estratificada, cujo bom desempenho dependia da administração eficaz destas relações,

pautadas na instituição de um direito baseado no costume e nas práticas culturais. 25

Assim, além da autoridade concedida pela exclusividade ao culto aos antepassados

reais Zhou, a autoridade do soberano derivava, como aponta John C. Wua, pela análise dos

documentos presentes no “Livro da História” (Shujing)26 - concebido tanto por Lao zi, a

quem se atribui o Dao De Jing, um dos primeiros textos do pensamento Daoísta; como por

Confúcio e seus seguidores, como uma fonte comum de sabedoria política - de três fontes

principais: o Mandato Celeste; o Bem-Estar do Povo, e a Virtude do Governante. 27

23 WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (org). Sociologia: Max Weber. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1986, pp. 131 – 134. 24 LEWIS, Mark Edward. Op. Cit, pp. 48-49 25 GRANET, Marcel. O pensamento Chinês…, pp. 20, 239 e 253. 26 Segundo Herrlee G. Creel, o Shujing é geralmente traduzido como livro da História, mas não é uma obra de história, e sim uma coleção de documentos que permitem algumas deduções concernentes a instituições políticas, atribuídos a um período anterior a dinastia Shang, conhecida tradicionalmente como dinastia Hsia (2205-1766 a.C). A maior parte dos críticos atribui esses documentos há no máximo um pouco antes do inicio da dinastia Zhou (c.1045 a.C – 221.a.C). No entanto, a veracidade ou não dos documentos não é a questão central, e sim a importância dada a eles como um “manual” de conduta para quem exerce poder político. CREEL, Herrlee G.Op. Cit, p. 30 e nota 3. Acerca da dinastia Hsia consultar: KWANG-chih Chang. China on the eve of the historical period. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). Op. Cit, pp. 37-73. 27 WUA, John C. Chinese Legal and Political Philosophy. In: MOORE, Charles A. Philosophy and Culture – East and West: East – West Philosophy in practical perspective. Honolulu (Hawaii): University of Hawaii Press, 1962, p. 610 e 613

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26

A concepção de Mandato Celeste parece ser uma inovação Zhou, ou como afirma

Creel, um mecanismo de legitimação do exercício do poder a principio da conquista dos

Zhou por sobre os Shang.28 Deriva da crença de que o rei possui uma “sacralidade”

conferida pela mais alta divindade, T’ien (Céu), o que lhe permite governar por um longo

tempo para garantir o bem estar do povo, mas sujeito a parecer caso ele caia da confiança,

quando então o Céu irá apontar outro para rebelar-se e substituí-lo. 29 Os Zhou,

identificando a divindade Shang, Ti ou Shang Ti, a quem os soberanos Shang atribuíam

descender seu primeiro antepassado, como idêntica a sua suprema divindade T’ien, e

crendo que destino de “tudo sob o céu” era controlado desde a dinastia Hsia pelo T’ien - o

que a tornava uma deidade universal, conhecida desde os tempos antigos - atribuíram sua

vitória ao Céu, que tornando-se desgostoso com as práticas Shang, retirou destes o seu

mandato.30

Os reis Zhou, assim como os seus antecessores em relação à Shang Ti, eram os

únicos que podiam prestar culto ao Céu, e sendo o Céu o poder supremo, a exclusividade

do culto tornava a posição do soberano a do líder legitimado, sendo ele o representante

entre os homens do ser supremo, o intermediário nas negociações com este. Dentro do

ideal Confucionista, seguindo a idéia de Mandato Celeste, o soberano era caracterizado,

como um governante que foi providenciado pelo Céu, para surgir em um momento

apropriado na Terra, por isso ele era chamado de “Filho do Céu” (T’ien zi), sendo o

mandato concedido a um individuo e não a sua família. Como já descrito, o soberano é

dotado de qualidades singulares, e na prática delas, ele seria capaz de influenciar os

comportamentos de seus súditos. 31

A concepção de Mandato Celeste pode ser entendida como um forte mecanismo

legitimador da figura do soberano, mas justamente por ser entendido como representante

do Céu, sua posição é fragilizada em calamidades e, tradicionalmente, a história chinesa

conta as sucessões dinásticas como falhas dos últimos soberanos destas. Ao falhar no

esforço de suas qualidades diferenciais, o soberano é alertado de suas imperfeições pelo

Céu, que irá infestar seu governo com desastres naturais e irá desprover seu povo da

prosperidade que eles deveriam esperar. Assim, dentro do ideal Confucionista, o dever do 28 CREEL, Herrlee G. Op. Cit. pp. 44; 82; 103-105. 29 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty…, pp. 72, 74, 78; GRANET, Marcel. O pensamento Chinês…, p. 254-255; 261 30 CRELL Herrlee G. Op. Cit, p. 494. ELIADE, Mircea. Op. Cit. p. 20 – 22. 31 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty…, pp. 72, 74, 78; GRANET, Marcel. Op. Cit. p. 254-255; 261 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty…, p. 76

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soberano era ordenar seu governo para o benefício de seus súditos e não para a realização

de seus objetivos pessoais 32, como demonstra “Os conselhos do grande Yu”, presente no

Shujing:

“Conservai cuidadosamente o trono, que devais ocupar, cultivando as virtudes que são para desejar-se em vós. Se houver miséria e pobreza na terra compreendida nos quatro mares, terão fim perpetuo as vossas rendas concedidas pelo Céu. É a boca que origina o que é bom e desperta das guerras. 33

Por este motivo, Confúcio considerava difícil ser um soberano, pois não era um

privilégio, mas uma grave responsabilidade34, que consistiria em tomar conta do povo.

Todas as medidas governamentais e políticas adotadas deveriam ser julgadas a luz de seus

efeitos para o bem-estar da população. E a falha nessa garantia do bem-estar, poderia

representar o fim de uma dinastia.35 Neste sentido, observa-se que existia uma relação de

interdependência entre os ideais de Mandato Celeste, Virtude do Soberano e o Bem-estar

do Povo. O Mandato se explicitava na forma de agir do povo, pelo aceitamento tácito por

parte destes da autoridade real, em um reinado de boa ordem e prosperidade, que parece

emanar da figura real, que possui a virtude ordenadora. 36

Ao longo do período Primavera e Outono (770 a 481 a.C), inicia-se uma

progressiva modificação das estruturas de organização, com a crescente perda do poder

efetivo e a legitimação da figura dos soberanos Zhou. Como tratado no primeiro capitulo,

isto se deveu a uma série de fatores, desde conseqüências de conflitos e invasões de povos

não pertencentes à esfera de domínio Zhou, disputas de sucessão, até fenômenos naturais,

devido seu impacto direto, como no caso de secas, terremotos, ou enchentes, bem como

seu impacto no plano simbólico, incluídos a estes, os eclipses e outros fenômenos naturais,

entendidos como sinal da perda do mandato celeste. Durante Reinos Combatentes, essa

modificação de estruturas leva a gradativa substituição da estrutura hereditária tradicional

de postos mantidos pelas casas aristocráticas, substituídas por uma burocracia de oficiais

apontados por suas habilidades, remunerados e revogáveis, dentro de uma reorganização

dos domínios, que tornam-se reinos independentes. Neste sentido, houve uma maior

32 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty…, p. 76. WUA, John C. Op. Cit., p. 610 33 Os conselhos do grande Yu, segunda parte. Shujing. In: YUTANG, Lin. Sabedoria da Índia e da China. Rio de Janeiro: Ponguetti, 1945. 34 Analects (Lun Yu) XX. 2. Apud WUA, John C. Op. Cit, p. 614. 35 WUA, John C. Op. Cit, p. 614. Os conselhos do grande Yu, segunda parte. Shujing. In: YUTANG, Lin. Op. Cit. 36 NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). Op. Cit. pp. 748 – 751.

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mobilidade social, e David Nivson aponta que para os eruditos que desejavam ser

empregados esta nova organização, a questão básica era discernir que políticas deviam

informar um bom governo. 37

Dentro deste contexto, as diversas obras das diferentes correntes de pensamento da

china clássica - Confucionismo, Moísmo, Daoísmo, Legismo – refletiam , apontando causa

e possíveis soluções acerca destas mudanças. Em relação a outras correntes, o Legismo se

destaca pela ênfase nos aspectos concernentes ao exercício do poder, a organização

administrativa, e o papel do soberano, sendo as práticas propostas pelos autores legistas

consideradas por Michael Loewe como elementos acrescidos às praticas que legitimavam e

permitiam o exercício do poder pelos soberanos dos reinos combatentes. 38

37 GERNET, Jacques. Op. Cit. p. 69. NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings…, pp. 747 – 748. 38 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty…, p. 71.

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3 O GOVERNANTE NO PENSAMENTO DE HAN FEI

3.1 FA JIA E HAN FEI

Os termos Legismo e Legistas (também designados como Juristas, Realistas ou

Teoria Autoritária, por alguns autores.)1, são uma tradução e adaptação do termo chinês Fa

Jia. Esta expressão designa um grupo de autores particularizados devido à importância que

atribuíam a Lei, Fa. O termo Fa Jia designando a “Escola da Lei” apareceu, pelo menos

nos textos que restaram da antiguidade, pela primeira vez dentro do Shi Ji de Sima Qian. 2

Apesar deste autor a chamar de “escola”, o Legismo não teve um fundador comum

reconhecido, e seus conceitos não foram transmitidos de um mestre para um discípulo. 3

De fato, apenas Confucionistas e Moístas foram conhecidos como “escolas” do período

Reinos Combatentes. A despeito do indiscutível florescimento cultural dos períodos

Primavera e Outono e Reinos Combatentes 4, as tradições contemporâneas ao segundo

período – reformas institucionais, arte militar ou adeptos da persuasão e alianças – foram

transformados em categorias, tais como o Legismo, aqui tratado; Escola dos Nomes; e a

Escola Militar, apenas pelos cronistas da dinastia imperial Han (206 a.C – 220 d.C). 5

1 Na tradução brasileira de O pensamento Chinês, de Marcel Granet, o termo utilizado é Juristas. Na obra de Arthur Waley, Three Ways of Thought in Ancient China, o autor dedica um capitulo a Fa Jia, chamando os eruditos nela inseridos de Realistas. (Realists no original) Michael Loewe utiliza a expressão “teoria Autoritária”, no Imperial China. (Authoritarian Theory no original) 2 VANDERMEERSCH, Léon. La Formation du Legisme. Recherche sur la constituition d’une Philosophie Politique caractéristique de la Chine Ancienne. Paris: École Française D’ Extrême-Oriente, 1965, p. 5. Shi Ji, de Sima Qian ou Ssuma Ch’ien (c. 145 a.C – 90 a.C), oficial na corte do rei Wu dos Han (c. 140- 87 a.C). Sucedendo seu pai, Sima Tan, como escriba, historiador imperial, continuou o trabalho deste na escrita de uma história que contempla desde as origens da civilização chinesa até os primeiros reis Han, A obra é composta por 130 capítulos, divididos em 5 sessões: Anais básicos de reinos e reis; Tabelas Cronológicas; Ritos, Música, Astronomia, Assuntos religiosos e Econômicos; Casas Hereditárias; e Biografias. WATSON, Burton. General Introduction. In: SIMA Qian. Records of the Grand Historian: Han Dynasty I. trad. Burton Watson. Hong Kong/ New York: Columbia University Press, 1993, edição revista. pp. xv – xvii. 3 ZHENGYAN Fu. China’s Legalists: The Earliest Totalitarians and their art of Ruling. Armonk [NY]: M. E. Sharpe, 1996, p. 11. 4 CHO-yun Hsu. The Spring and Autunn period. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p. 545; 584 -585; LEWIS, Mark Edward. Warring States Political History. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (ed). Op. Cit. pp. 641 – 645; ZHENGYAN Fu. Op. Cit. p. 3. 5 LEWIS, Mark Edward. Warring States Political History..., pp. 641 – 642. Acerca das escolas e tradições de mestres no período Reinos Combatentes consultar o capitulo “Writing the Masters” inserido em LEWIS, Mark Edward. Writing and Authority in Early China. Albany [NY]: State University of New York press, 1999, pp. 53 – 97.

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Neste sentido, o Han shu (História dos primeiros Han), de Ban Gu (32 – 92 d.C),

lista, como Legistas, dez autores, que incluem Guan Zhong (?- 645 a.C.), Li Kui (c. 445 -

396 a.C), Wu Qi (? - 381 a.C.) Shen Dao (c. 350 a.C), Shen Buhai (c. 395 -337 a.C), Shang

Yang (?-338 a.C.), Li Si (280-208 a.C), e Han Fei ( c.280 - 233 a.C.) 6 A maior parte

destes autores iniciaram seus estudos nas tradições Confucionistas ou Daoístas,

complementando com estudo das Leis, Artes Militares, entre outras. O que particulariza

estes autores, e que possibilitou seu entendimento posterior dentro da categoria chamada

Legista, são os temas de suas obras ou atribuídas a eles. Estes temas perfazem o interesse

pelas “receitas”, como chama Marcel Granet, das quais os reinos poderiam extrair sua

força interna. Estes autores preocupavam-se com a organização do território e do exército,

fundamental no contexto de conflitos intermitentes que marca o período Reinos

Combatentes; economia e finanças; prosperidade, e disciplina social. O tema central era a

soberania do governante, bem como a da Lei, a qual todos estão sujeitos dentro dos

preceitos Legistas, e que tem um caráter essencialmente penal, na intenção de conformar

um comportamento adequado dentro da organização que propunham. 7

A ênfase a estes temas nos escritos Legistas deve-se ao contexto do período Reinos

Combatentes, onde os governantes dos vários reinos tiveram a necessidade de oficiais

competentes e conselheiros, que poderiam auxiliá-los no fortalecimento da administração,

e, consequentemente, do poderio de seu reino. Os teóricos Legistas, em sua maioria,

estavam incumbidos de proeminentes posições nos cargos da administração destes reinos,

exercendo funções de chanceleres, ministros-chefes, altos conselheiros. Motivo este da

importância dada nos escritos destes autores à consolidação da autoridade do governante e

a centralização em sua figura; o fortalecimento do reino, com a correta organização e

administração, bem como o emprego de oficiais escolhidos por suas habilidades para o

exercício das funções administrativas dos reinos e não por sua posição na hierarquia da

aristocracia de linhagem, a qual estes novos governantes buscavam diminuir a presença. 8

Deste fato decorre que os escritos destes autores geralmente eram dirigidos a

exposição dos aspectos particulares e problemas da arte de governar, e não com o objetivo

de tratar das diversas atividades e qualidades humanas, como no caso confucionista. 9

6 ZHENGYAN Fu. Op. Cit. pp. 9; 13 – 21. 7 GRANET, Marcel. O pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, pp. 254-255; 277 – 278. 8 WALEY, Arthur. The Realists. In: The Three Ways of Thought in Ancient China. London: George Allen an Unwin LTD, 1974, pp. 232 – 233; ZHENGYAN Fu. Op. Cit. p. 12. 9 LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty. In: Imperial China. London: George Allen an Unwin LTD, 1966, pp. 78 – 79;

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O objetivo dos escritos não era servir para a formação de indivíduos para o exercício de

cargos, mas sim aconselhar sobre as dificuldades e formas de governar.

Sima Qian apontou, ao caracterizar os Legistas no Shi ji, aspectos que considerava

importante permanecer na organização dos Han. Para ele, a “Escola da Lei” era:

“(...) rigorosa e falta benevolência. No entanto, sua retificação do apropriado relacionamento entre o governante e seus ministros, e sua insistência na diferenciação entre o superior e o subordinado, deveriam todas ser mantidas sem mudança. A escola da Lei não distingue na base da proximidade de relação pessoal ou status de linhagem nobre, mas faz decisões baseada uniformemente na lei. (...). Tal modo de conduzir negócios pode ser apenas um expediente temporário, mas não pode ter sucesso por muito tempo. Por isso é dito que esta escola é rigorosa e falta benevolência. Ainda sua insistência no [principio da] elevação do governante e rebaixamento dos ministros, e sua obrigação [do governante da] clara divisão das obrigações das posições oficiais não deve ser mudada a despeito [do clamor das] outras cem escolas.” 10

Han Fei e sua obra, o Livro de Han Fei, se inserem neste contexto. Acredita-se que

Han Fei era um príncipe menor do reino de Han, noroeste da China, e que:

“deleitou-se no estudo de formas e nomes (xing ming ou hsing-ming), leis e métodos, mas a real base de seu pensamento era ‘Huang Lao’11. Ele tinha problemas para falar e não era bom em discurso, mas era um ótimo escritor. Juntamente com Li Si, ele serviu [i.e estudou sob] Xunxi.”12

Com Xunxi (ou Hsun Tzu) teve uma formação dentro da tradição Confucionista.13 Esta lhe

garantia o conhecimento dos textos que tornaram-se os clássicos chineses, tais como o

Shijing (O livro dos Versos), o Shujing (O livro da História), o I Ching (O Livro da

Adivinhação), os livros dos Rituais, I Li e Liji, bem como os Anais de Lu, o Chunqiu (ou

Anais da Primavera e Outono)14; o estudo do Huang Lao, das tradições Daoístas, bem

como os ideais atribuídos a Shang Yang, reformador do reino de Qin durante o governo do

duque Xiao (r. 361 – 338 a.C), e Shen Buhai, entre outros teóricos legistas, o que fica

explicito ao longo de sua obra, repleta de citações e comentários acerca destas obras e

autores. ZHENGYAN Fu. Op. Cit. p. 13. 10 Shi Ji capítulo 130. Apud ZHENGYAN Fu. Op. Cit. p. 12. (Colchetes presentes no original em inglês, parênteses meus.) 11 Huang Lao (Huang Di e Lao zi) refere-se ao pensamento Daoísta em Qin e Han, especialmente aplicado à política. NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical writings. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (Org). Op. Cit. p. 799, nota 112. Huang Di aqui refere-se ao Imperador Amarelo, um dos soberanos civilizadores da tradição chinesa. Não há relação com Qin Shi Huang Di, primeiro imperador da dinastia imperial dos Qin. 12 Shi ji 63 apud NIVISON, David Shepherd. Classical Philosophical writings…, p.799. Colchetes no original de Nivison, parênteses meu. Sobre “xing ming”, vide capitulo 1, nota 16. 13 WALEY, Arthur. The Realists. Op. Cit. p. 204 14 GRANET, Marcel. Op. Cit. p. 288 e 289

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Roger Ames, entre outros autores, indica que o Legismo, apesar de ser chamado de

“escola”, não era uma tradição única, como já descrito, mas que havia três orientações

principais, que acabaram eventualmente sendo trazidas juntas nos textos de Han Fei, o que

pode ser observada na passagem em que este comenta sobre as abordagens políticas de

Shen Buhai e Shang Yang. Colocando como se alguém o houvesse questionado sobre qual

dos ensinamentos era de necessidade mais urgente aos reinos, Han Fei responde:

“ (...) Shên Pu-hai [Shen Buhai] falou sobre a necessidade da tática e Kung-sun Yang [Shang Yang] insistiu no uso da lei. Tática é o meio pelo qual se criam postos acordando-os com responsabilidades, mantém-se serviços atuais valorados de acordo com os títulos oficiais, exercita-se o poder sobre vida e morte, e examinam-se as habilidades dos oficiais. É isto que o senhor de homens mantém em sua posse. Lei inclui mandatos e ordenanças que são manifestadas nos departamentos oficiais, penalidades que são definitivas na mente do povo, recompensas que são devidas à observação cuidadosa das leis, e punições que são infligidas nas ofensas contra a ordem. Isto é o que subordinados e ministros tomam como modelo. Se o governante é sem tática, desilusão virá para o superior; se subordinados e ministros são sem lei, desordem irá aparecer entre os inferiores. Portanto, nenhuma pode ser dispensada com a outra: ambas são implementos para imperadores e reis.” 15

À tradição de Shen Dao16 é creditada a ênfase na “estratégia da vantagem política” (shih),

que advém do exercício da personalidade do governante, de sua posição enquanto “senhor

de homens”; a tradição de Shen Buhai17, que enfatiza das técnicas de governo (shu), ou

seja, a adoção de expedientes adequados aos métodos de controle e delegação de cargos e

de seus oficiais, como demonstrado no trecho acima; e a tradição de Shang Yang, que

enfatiza a “Lei Penal”, caracterizada por Fa.18 Com relação ao termo Fa, foi com os

15 Deciding between two legalistic doctrines. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu. trad. W.K.Liao. London: A. Probsthain, 1960, v. 2. (colchetes meus) 16 Shen Dao (c.350 a.C), nativo do reino de Zhao. Segundo o Shi ji, cap. 46 e 74, Shen Dao teria estudado os escritos do Imperador Amarelo (Huang Di) e Laozi, pertencendo ao grupo conhecido como Hang-Lao, enquanto o Han Shu, no capitulo 30, o lista enquanto Legista. De sua obra, Shen Zi (obras do mestre Shen [Dao]), restam apenas fragmentos compilados em sete capítulos, os quais pesam duvidas se não são escritos de eruditos posteriores a ele. Nos escritos presentes no Shen zi, há a crença da lei como decretada pelo governante para funcionar como critério universal para o comportamento social. A obra também enfatiza a importância da posição do governante (shih), o qual Shen Dao acreditava ser a real base da autoridade do governante. ZHENGYAN Fu. Op. Cit, p. 16. 17 Shen Buhai (395? – 337 a.C), também grafado como Shen Pu-hai, teria advindo da corrente Daoista, e teria servido por 15 anos como ministro de Zhao Hou (r. 362 – 333 a.C) do reino de Han. É conhecido pela sua ênfase no Shu, advertindo o governante da necessidade da cultivação de técnicas para manipular os ministros e controlar a burocracia. De acordo com as idéias atribuídas a Shen Buhai, o governante não deveria colocar toda a sua confiança unicamente em um único ministro; deveria manter firme seus status de ordenador e estar constantemente vigilante contra potenciais usurpações. Suas idéias, as quais Han Fei se utilizou em sua interpretação, estão presentes no Shen zi (obras do mestre Shen [Buhai]), que durante a dinastia Han estava listada enquanto Legista e incluía 6 capitulos, mas que posteriormente apenas fragmentos desta foram encontrados, dispersos em diversas coleções. Durante a Dinastia Qing (1644-1911 d.C), houve uma tentativa de reconstituí-lo. Atualmente, a mais completa reconstituição foi feita por Herrlee G. Creel. ZHENGYAN Fu. Op. Cit, pp. 16 – 17. 18 AMES, Roger T. Op. Cit. p. 72.

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teóricos Legistas que passou-se a entender Fa, de seu significado primário “norma”,

“modelo”, “critério”, para “Lei Penal”, que anteriormente era designado por hsing, que

significava basicamente “punições” e por extensão, “lei penal”. 19

Segundo narrativas, Han Fei, aflito com a fraqueza do reino de Han, mas não

conseguindo fazer o rei escutar suas idéias, expressou sua frustração em ensaios como Gu

fen (indignação solitária), Wu du (os cinco parasitas), e Shui nan (a dificuldade de

persuasão). Alguns destes ensaios chegaram ao reino de Qin, e após a leitura, o rei Zheng,

posteriormente Qin Shi Huang Di, teria exclamado que: “Apenas se eu, o Rei, pudesse

conhecer o autor e torna-se me amigável com ele, eu não lastimaria minha morte

posteriormente.” 20 Li Si, que havia se tornado alto oficial e conselheiro do rei, teria

afirmado que pertenciam a Han Fei, e após uma extensiva campanha contra Han, o rei

deste reino enviou Han Fei a Qin como mensageiro, mas este não conseguiu ser ouvido.

Han Fei se suicidou em 233 a.C, em uma prisão Qin, segundo sua biografia, devido a

intrigas fomentadas por Li Si e Yao Ku, conselheiros do rei.21

Os ensaios de Han Fei teriam circulado primeiramente separados e compilados

posteriormente em um único volume. Estes ensaios são coerentes e bem construídos em

prosa, fazendo uso de historietas, retiradas das narrativas históricas ou inventadas, para

ilustrar suas idéias. 22

LEVI, Jean. Los Funcionarios divinos. Política, despotismo y mística en la China Antigua. Madrid: Alianza editorial, 1991, p. 106. LOEWE, Michael. The Basis and Practice of Imperial Sovereignty …, p. 79. 19 AMES, Roger T. The Art of Rulership. A study of ancient Chinese political thought. Albany [NY]: State University of New York, 1994, p. 109. 20 The Biography of Han Fei Tzu by Ssu-ma Chien. [Sima Qian, Shi Ji 63] apud Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu. trad. W.K.Liao. London: A. Probsthain, 1939, v.1. 21 GRAZIA, Sebastian de. Masters of Chinese political thought. From the beginnings to the Han dynasty. New York: The Viking Press, 1973, pp. 350 – 351. NIVISON, David Shepherd. Classical Philosophical writings …, p.800. QIAN Mu. Xian Qin zhuzi xinian. 2 v. Shanghai: Shangwu, 1935; rev. rpt. Hong Kong: Hong Kong University Press, 1956 apud NIVISON, David Shepherd. Classical Philosophical writings…, p.800. The Biography of Han Fei Tzu by Ssu-ma Chien. [Sima Qian, Shi Ji 63] apud Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 22 NIVISON, David Shepherd. Classical Philosophical writings…, p.800.

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3.2 O GOVERNANTE E O ESTABELECIMENTO DA ORDEM

A perfeita ordenação do reino é o principio da teoria política de Han Fei, e o

governante aparece como a figura central para obtenção desta ordem. Isto por que, para

Han Fei, o governante, “o senhor de homens”, é como o Dao.23 O conceito de Dao é um

conceito chave nas elaborações filosóficas chinesas clássicas. Dao, em seu caractere,

significa “caminho” ou “estrada”, sendo entendido de diferentes formas, tais como o

“modo de fazer algo”, ou a “correta moral”, ou “caminho”, em um sentido mais

transcendente, em termos filosóficos. Também é entendido como “o caminho de todo

natural”, especialmente nos escritos atribuídos a Laozi e Zhuangzi. Nestes, Dao é a

realidade, transcendendo número, mas dando origem ao “Um”, criador de todo o mais.

O Dao De Jing (Clássico do Caminho e Virtude), atribuído a Laozi, teve vinte e uma, de

suas oitenta e uma sessões comentadas no Livro de Han Fei,24 que utiliza a idéia Daoísta

de Dao, que sem esforço determina tudo, como um modelo para um governante

virtualmente transcendente, cujo poder é absoluto por que ele é silencioso, misterioso, mas

sempre segurando em suas mãos as supremas armas do controle. 25 Assim, em Han Fei, o

Dao é descrito como o “inicio de uma miríade de coisas, o padrão do certo e errado”26, e

o governante é uma figura única, sem par, como o próprio Dao,27 e “por manter consigo o

inicio, conhece a fonte de tudo, por manter o padrão, conhece a origem do bem e mal” .28

Neste dialogo com o Daoísmo do Dao De Jing, Han Fei parece entender o

governante como um ser que possui uma condição diferenciada, nos moldes do

entendimento acerca do soberano apontados no segundo capitulo, alguém singular, com

23 The Tao of the Sovereign; Wielding the Sceptre. Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1 Como indicado na introdução da presente monografia, procurou-se respeitar o sistema utilizado por Liao nas transliterações dos caracteres chineses, quando da transcrição das passagens de Han Fei. Os demais termos, quando foi possivel, foram transliterados dentro do sistema Pinyin. Por este motivo, o termo ‘Dao’ aparece nas transcrições como ‘Tao’. 24 É possível encontrar analogias com as idéias presentes no Dao de Jing ao longo de todo o livro de Han Fei, no entanto, Han Fei os comenta mais explicitamente nos capítulos: Commentaries on Lao Tzu’s Teachings e Illustrations of Lao Tzu’s Teachings. Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 25 NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings…, pp. 748 – 751; 802 -804. 26 The Tao of the Sovereign. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 27 “Tao nunca é um par. Portanto é considerado um. Portanto, o governante inteligente considera singularidade o aspecto característico do Tao.” Wielding the Sceptre. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. CHANG, Leo S; WANG, Hsiao-po. The Philosophical Foundations of Han Fei’s Political Theory. Monographs of the Society for Asian and Comparative Philosophy n.7. Honolulu [Havaí]: University of Hawaii Press, 1986, p. 10. 28 The Tao of Sovereign. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1.

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características únicas que o possibilita ordenar “Tudo abaixo do Céu”. “O soberano

inteligente faz Tudo abaixo do Céu inevitavelmente ver e ouvir em seu favor. Portanto,

ainda que sua figura esteja confinada na mais reclusa corte, seu brilho ilumina tudo

dentro dos quatro mares.”29 O governante é único e sua figura é crucial para a manutenção

da ordem, uma vez que para Han Fei “Sem um soberano, nenhum domínio pode, por

qualquer meio, ser governando”. 30 Assim como o Dao é o inicio de uma miríade de

coisas, o governante é entendido por Han Fei como aquele que compreende e proporciona

os meios para o estabelecimento da ordem. 31

Assim, o governante de Han Fei parece ter duas naturezas. A transcendente, que o

torna alguém acima da dualidade que permeia a divisão hierárquica social, e sem par, vazio

e ao mesmo tempo contempla tudo, semelhantemente ao Dao,32 e outra humana, com

desejos, interesses pessoais, passível de ser enganado, da qual ele deve ter consciência, e

assim, buscar os meios para subjugá-la, fazendo aparecer unicamente sua aura

transcendente, daquele que tem o apoio do Céu, que busca unicamente ordenar a

sociedade. 33

As características humanas do governante devem desaparecer por que Han Fei

entende que são as ações do governante que “moldam” sua população, e nesse sentido se

apropria de idéias de Confúcio para sua argumentação, afirmando que: “Confúcio disse:

“O senhor de homens é como a bacia, o povo como a água. Se a bacia é quadrada, a água

é quadrada; se a bacia é circular, a água é circular”.”34Assim, como a função primeira do

governante em Han Fei é o estabelecimento da ordem, todas as suas ações, seus atos,

devem ser dirigidos para a aquisição e manutenção desta.

“O senhor de homens deve ser inteligente o suficiente para conhecer o verdadeiro caminho para a ordem e severo o suficiente para efetivar suas ordens sem reservas. Portanto, ainda que ele tenha de agir contrario a mente do povo, ele deve por todos os meios estabelecer um governo ordenado.” 35

Nesse sentido, o governante não governa no objetivo de atender seus interesses pessoais,

mas sim para a busca do atendimento a aquilo que na teoria de Han Fei pode ser entendido

enquanto um “bem-comum”, que para o seu contexto, ele entende como sendo a segurança

29 Ministers apt to Betray, Molest, or Murder the Ruler. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 30 Criticism of the Ancients, Series One. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu …, v. 2. 31 LEVI, Jean. Op. Cit, pp. 116 – 117. 32 Wielding the Sceptre. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 33 Achievement and Reputation. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…v.1. 34 Outer Congeries of Sayings, The Upper Left Series. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…v.2. Annotations to canon V. 35 Facing the South. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1.

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do reino, com o fortalecimento socioeconômico, com grande produção agrícola e exército

forte.36 Para Han Fei, o atendimento do governante aos seus interesses e desejos traz a

ruína ao reino.37 E portanto afirma que o governante deve evitar excessos, pois isto traz

danos:

“O Céu tem seu destino; seres humanos têm seu destino também. De Fato, qualquer coisa cheirando bem e macio, seja isto o rico vinho ou a gorda carne é deliciosa a boca, mas causa mal ao corpo. A bela tendo pele delicada e belos dentes brancos agrada as sensações, mas exausta as energias. Portanto, evite excessos e extremos. Então você não sofrerá dano”. 38

O atendimento aos seus desejos leva o governante esquecer suas funções, e pode ser

utilizado como forma de atingi-lo e manipula-lo, como aponta ao afirmar que o governante

deve cuidar para não ser facilmente persuadido por aqueles que “compartilham a mesma

cama”; por dar atenção demasiada a atores, entretenidores, e palhaços, que podem ser

utilizados para confundi-lo; por escutar unicamente concubinas e seus filhos, bem como

confiar totalmente em seus conselheiros e oficiais da corte, que podem ser utilizados

também para manipulá-lo; por amar decorações, construções magníficas, piscinas e

terraços, e para tanto, esgotar os rendimentos do reino, taxando e exaurindo as forças da

população. 39 O governante deve buscar não satisfazer seus desejos pessoais, por que “O

Tao do Senhor de homens considera tranqüilidade e humildade como tesouros. Sem

segurar ele mesmo nada, ele pode distinguir habilidade especial da falta de habilidade;

sem seus próprios interesses em mente, ele pode distinguir boa da má sorte.” 40

Principalmente, o governante não deve deixar seus desejos ser conhecidos de ninguém,

como coloca Han Fei, utilizando-se de uma citação: “Portanto o dito: “O governante não

deve revelar seus desejos. Se ele revelar seus desejos, os ministros polirão suas maneiras

de acordo”. 41

Nesse sentido, Han Fei indica que o governante deve comportar-se como o Dao,

que existe na invisibilidade, agindo de forma a “ver, mas nunca ser visto; ouvir, mas nunca

sendo escutado; conhecer, mas nunca sendo conhecido.”42 O governante deve comportar-

se como tão alto quanto o Céu e denso como a Terra, evitando assim que seus servidores se

36 Learned Celebrities: A Critical Estimate of Confucians and Mohists. . In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 2. 37 Portents of Ruin. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 38 Wielding the Sceptre. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 39 The Eight Villainies; Portents of Ruin. Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 40 The Tao of the Sovereign. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 41 Ibid. 42 Ibid.

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ajustem as suas idéias, e não revelem o que pensam; ajam de acordo como as atitudes do

governante, e não de acordo com suas próprias ações e habilidades, o que inviabiliza o

governar. 43 Como aponta Jean Levi, na teoria política de Han Fei, somente o súdito é

transparente. O governante é opaco, obscuro, o que lhe confere um caráter divino e não o

expõe a ataques, por que seus desejos e fraquezas não são conhecidos, tornando-se assim,

temível. 44

Possuindo a condição diferenciada que o torna “senhor de homens”, e suprimindo

seus interesses pessoais, buscando unicamente os interesses do reino, o governante tem a

autoridade legitimada para impor os mecanismos que controlam, regulam a sociedade,

obtendo assim a ordem.45 Para propor estes mecanismos, Han Fei se utiliza das idéias

categorizadas como Legistas, propondo a utilização dos princípios Shih, Fa, e Shu, que

como apontado anteriormente, foram sintetizados em sua teoria. 46

O Shih contempla o exercício da transcendência da figura do governante, de sua

posição enquanto “senhor de homens”, como fator de autoridade e de obediência. Ele a

possui por que é apoiado e reconhecido enquanto o governante. A concepção de Shih em

Han Fei é derivada das idéias de Shen Dao, cuja interpretação feita por Han Fei, aponta

que é o Shih que possibilita, por exemplo, as ordens de homens não valorosos terem efeito.

“Se valorosos homens são súditos de homens não valorosos, isto é por que o poder deles é fraco e seu status é baixo; ao passo que se homens não valorosos podem ser subjugados por valorosos, isto é por que o poder dos últimos é forte e seu status é alto. Yao, enquanto um comum, não pode governar três pessoas, enquanto Chieh, sendo o filho do Céu, pode lançar Tudo Abaixo do Céu em caos.” (...). “Disto eu sei que posição e status são suficientes para ser confiada.” 47

A principio, o Shih é inerente ao governante, estando com ele no momento que é

alçado como “senhor de homens”. No entanto, o Shih é passível de ser perdido pelo

governante quando este, como apontado anteriormente, deixa-se levar por seus interesses e

negligência as necessidades do reino, e não empregando os métodos de controle. 48

43 Wielding the Sceptre. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v.1; Outer Songeries of Sayings, The Upper Right Series. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 44 LEVI, Jean. Op.Cit, pp. 130-131. 45 Facing the South. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1; A Critique of the Doctrine of Position; Absurd Encouragements; Eight Canons; Surmising the Mentality of the People: A Psychological Analysis of Politics. Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 46 AMES, Roger T. Op. Cit, p. 72. NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings…, pp. 806-807. 47 A critique of the Doctrine of Position. . In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 48 Portents of Ruin. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1

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Han Fei entende que é da natureza humana a busca pelo atendimento aos seus

interesses, e de fato esse entendimento permeia toda a sua construção acerca dos

mecanismos de controle e ordenação. Assim, sendo que “empregar coragem desesperada

para conseguir o que quer, é da natureza humana”49, o governante não deve contar:

“nas pessoas lhe fazer bem, mas utiliza a inabilidade deles de lhe fazer o errado. Se ele conta nas pessoas lhe fazer bem, dentro das fronteiras nunca haverá tais pessoas suficientes para contar com elas. Mas se ele utiliza a inabilidade deles lhe fazer o errado, um reino inteiro pode ser uniformizado.” 50

O governante é obedecido, respeitado, por ser governante, por sua posição enquanto

“senhor de homens”, esta é a razão do principio Shih. Porém a posição e autoridade do

governante é constantemente ameaçada por chefes de linhagem, ministros e outros

pertencentes à esfera da administração, 51 e a obediência e lealdade das pessoas são

facilmente esquecidas em virtude da busca de seus interesses. 52 Por esta razão, o

governante deve exercer o Shih constantemente, fazendo lembrar a sua condição única de

“senhor de homens”:

“Nada é mais valioso que a pessoa real, mas honorável que o trono, mais poderoso que a autoridade do soberano, e mais ‘augusta’ que a posição do soberano. Estas quatro

49 Regulations and Distinctions. In: Han Fei Tzu. Complete Works of Han Fei Tzu.., v. 2. 50 Learned Celebrities: A critical estimate of Confucians and Mohists. In: Han Fei Tzu. Complete Works of Han Fei Tzu.., v.2. Passagem semelhante pode ser encontrada no Ministers apt to Betray, Molest, or Murder the Ruler: “Deste ponto de vista, eu posso ver que o sábio, ao governar um reino, segue a política de fazer as pessoas fazer a ele o bom, mas nunca confia na capacidade deles de lhe fazer o bom com amor. Por que confiar no fazer bem o bom com amor das pessoas é perigoso, mas confiar na sua inevitabilidade para fazer a ele o bom, é seguro.” 51 “Teu servente ouviu: “O governante de mil carros, se não em sua guarda, encontrará próximo a si dependentes de cem carros visando sacudir sua autoridade e por em desordem seu reino.” Assim sendo, maus ministros podem multiplicar, enquanto a influencia do soberano declina. Consequentemente, a expansão territorial dos chefes de linhagem conduz para a derrocada do Filho do Céu; a extraordinária riqueza dos ministros conduz a queda do governante. Portanto, generais e ministros que deixam atrás os interesses do governante e prosperam o bem estar de suas próprias famílias, deveriam ser desalojados pelo governante de homens.” On Favourite vassals. In: Han Fei Tzu. Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. Carros aqui são empregados enquanto medida do poderio. Segundo Liao, o carro de guerra era uma unidade básica para estimar a força militar bem como a posição política dos chefes de linhagem. Um carro de guerra carregava 13 soldados pesadamente armados e era seguido por 72 homens de infantaria. Originalmente, apenas o Filho do Céu era intitulado o “senhor de 10 mil carros” e chefes de linhagem como “senhor de mil carros”. Durante o período Reinos Combatentes todo senhor de domínio poderoso clamava, muitas vezes indevidamente, como sendo “senhor de 10 mil carros”, passando assim a significar um governante de grande poder e influencia. LIAO, W.K. The First Interview with the King of Ch’in: A Memorial. In: Han Fei Tzu. Complete Works of Han Fei Tzu.., v. 1, nota 16. Com relação a nota de Liao, fiz uma distinção em relação ao chefe de linhagem do chefe de domínio, devido a existência destes últimos ao longo do período Reinos Combatentes, sem terem relação com a antiga aristocracia de linhagem, conforme apontado no capitulo 1 da presente monografia. 52 Inner Congeries of Sayings, The Lower Series: Six Minutiae. In: Han Fei Tzu. Complete Works of Han Fei Tzu.., v.2 LEVI, Jean. Op. Cit, pp. 119 – 120.

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excelências não são obtidas de fora nem assegurada por ninguém mais, mas é ponderada na mente do próprio governante e dessa forma alcançada. Portanto o dito: “O Senhor de homens, se incapaz de exercitar seu aparato [enquanto governante, sua figura de suprema autoridade] como estas quatro excelências, é destinado para terminar seus dias em exílio.” Isto é o que o governante deve manter firme em mente.” 53

Desta forma, conjuntamente com o Shih, o governante deve se utilizar de outros

mecanismos que estimulem a obediência e respeito, confirmando a posição e, por

conseguinte, a autoridade, do governante.

A instituição da lei penal, entendida tanto pela historiografia relativa ao Legismo,

bem como pelos cronistas imperiais como o principio fundamental dos teóricos Legistas, o

que possibilita a categorização destes teóricos enquanto “Escola da Lei”, é utilizada por

Han Fei como o principio objetivo que regula a sociedade. Como apontado no capitulo

três, a importância da Fa, entendida enquanto lei penal é creditada a tradição atribuída a

Shang Yang, e, de fato, Han Fei atribui a ele a importância do uso da lei.54 Em Shang

Yang, a lei penal é entendida como a fonte da ordem, sendo sua estrita aplicação o

condutor no sucesso das duas grandes ações do reino, a agricultura e a guerra,

fundamentais em sua analise para a manutenção da força do reino.55 Han Fei se apropriou

desta visão da lei, entendendo-a enquanto o instrumento objetivo que regula a sociedade e

suprime o caos.56 Isto por que, por meio da lei, são estabelecidos os padrões a serem

seguidos, determinando as atribuições dos indivíduos na sociedade ordenada que o

soberano deve estabelecer.57 Assim, Han Fei afirma que: “inteligente soberano faz as

pessoas conformarem para a lei, e desse modo conhece o verdadeiro caminho; por que

com facilidade ele colhe resultados de mérito”. (...). O soberano que faz leis desse modo

estabelece o padrão de correto.” 58

Em sua teoria, Han Fei não estabeleceu quais leis ele considerava que deveriam ser

aplicadas nos reinos, esta não era a sua intenção, especialmente porque em seu

entendimento, as leis deveriam ser estabelecidas de acordo com a sociedade em que elas se

fazem necessárias, devendo sempre ser adequadas às mudanças dela, sendo absurdo o uso

ou o estabelecimento de leis que não tem utilidade real:

53 On Favourite Vassals: A memorial. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. Explicação entre colchetes não presente no original. 54AMES, Roger T. Op. Cit, p. 126. Deciding between two legalistic doctrines. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v. 2. 55 AMES, Roger T. Op. Cit, pp. 126 -127. 56 CHANG, Leo S; WANG, Hsiao-po. Op. Cit, p. 10 57 NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings…, p. 806. 58 On pretensions and Heresies: A memorial. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1

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“Na época da remota antiguidade, seres humanos eram poucos, enquanto pássaros e animais ferozes eram muitos. A humanidade sendo incapaz de dominar pássaros, feras, insetos e serpentes, apareceu um sábio que fez redes, colocando peças de madeira juntas, para abrigar as pessoas do perigo. Desse fato, as pessoas ficaram tão encantadas que fizeram dele o governante de Tudo sob do Céu e o chamaram-no de o Habitante do Ninho. Nestes dias as pessoas viviam de frutas das árvores e sementes, bem como mariscos e moluscos, que cheiravam mal e fétido e machucavam os órgãos digestivos. Como muitos deles eram infectados com doenças, apareceu um sábio que girou uma madeira sobre outra para fazer fogo, o que mudou o fétido e bolorento cheiro. Desse fato, as pessoas ficaram tão encantadas que fizeram dele o governante de Tudo sob o Céu. Na época da meia antiguidade, houve uma grade enchente no Tudo abaixo do Céu, razão pela qual Kung e Yu abriram canais para a água. Na época da antiguidade recente, Chieh e Chow eram violentos e turbulentos, razão pela qual T’ang e Wu os destronaram. Agora, se alguém amarrasse madeiras ou as girasse na época do Clã Hsia-hou, ele seria certamente ridicularizado por Kung e Yu. Novamente, se alguém abrisse canais para água na época das dinastias Yin e Chou, ele certamente seria ridicularizado por T’ang e Wu. Assim sendo, se alguém da presente época louva os caminhos de Yao, Shun, Kung, Yu, T’ang e Wu, ele seria, sem duvida, ridicularizado pelos sábios contemporâneos. Esta é a razão pela qual o sábio nem procura para seguir os caminhos dos antigos, nem estabelece qualquer padrão para todos os tempos, mas examina as coisas de sua época e então prepara para acordar com elas.” 59

As leis e medidas deveriam ser claras, facilitando seu entendimento e cumprimento

por todos, bem como evitando a possibilidade de haver diferentes interpretações e

questionamentos:

“O que pode ser entendido apenas por eruditos clarificados não deveria ser feito como uma ordem, por que as pessoas não são todas clarificadas. O que pode ser praticado apenas por sábios não deveria ser feita como uma lei, por que as pessoas não são todas sábias”. (...) “Quando escritos não são muito completos, discípulos debatem; quando leis são muito vagas, vagabundos disputam. Por esta razão, os escritos do sábio sempre ilustram suas discussões, as leis do governante inteligente sempre penetram os menores detalhes do fato. (...). O soberano inteligente aceita o que é fácil para o homem estúpido, mas rejeita o que é difícil para o homem sábio. Portanto, sem valer-se sabedoria e pensamento, o reino está em boa ordem.” 60 Como instrumento do governante para o estabelecimento da ordem por sua natureza

normativa, 61 Han Fei entende a lei como um mecanismo que fortalece o reino, por

controlar comportamentos e direciona-los para o atendimento das necessidades do reino, 62

mas isto só é possível se as leis forem cumpridas integralmente, alcançando toda a

59 Five vermin: A pathological analysis of Politics. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v. 2. 60 Eight Fallacies. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 61 “Portanto, corrigir falta do alto, repreender vícios do baixo, suprimir desordem, decidir contra enganos, subjugar o arrogante, corrigir o desonesto e unificar os costumes das massas, nada pode comparar-se a lei”. Having regulations: A Memorial. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. “Sem nenhum padrão fixado, mesmo que dez Imperadores Amarelos não seriam aptos a governar.” Five Vermin: A Pathological Analysis of Politics. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 62 “Nenhum reino é permanentemente forte. Nem qualquer reino é permanentemente fraco. Se a obediência à lei é forte, o reino é forte; se a obediência à lei é fraca, o reino é fraco.” Having Regulations: A Memorial. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1

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população, não apenas os humildes ou baixos, como coloca Han Fei, mas também os

nobres ou altos. 63 Inclusive o próprio governante não pode desvirtuá-la, pois isso

acarretaria a perda da credibilidade da lei, e assim não haveria como ela alcançar seu

objetivo de normatizar e controlar a sociedade. 64 Portanto, o principio da lei, seu uso

enquanto uma política deve ser permanente, e a o governante deve utilizar os meios para

garantir o seu comprimento, pelo uso da tática do estabelecimento de recompensas e

punições.

O sistema de recompensas e punições faz parte igualmente das concepções de Fa e

de Shu, e deriva do entendimento de Han Fei, e de outros teóricos legistas, sobretudo

Shang Yang, de que os sentimentos humanos têm gostos e desgostos. Assim a ordem de

“Tudo sob o Céu” deve acordar com isto.65 Para Han Fei, se “punições e recompensas

são aplicadas, proibições e ordens prevalecem e o curso do governo é completado.”66 Por

meio da concessão de recompensas, o governante estimula o cumprimento da lei e o

obtém o máximo esforço no atendimento das ordenações. 67 Com as punições o

governante evita a busca pelo atendimento dos interesses pessoais e pune qualquer ato

contrario a lei estabelecida. Desse modo:

“recompensas não devem ser mais que liberal, de maneira que as pessoas as considerarão lucrativas; honras não devem mais que atrativa, de maneira que as pessoas as considerarão gloriosas; censuras não deve ser mas que estrita, de maneira que as pessoas as considerarão severas; e culpa não deve ser outra que odiosa, de maneira que as pessoas a considerarão desgraçosa. Consequentemente, o governante irá universalmente impor suas leis.”

68

“o governante inteligente, ao conferir recompensas é tão benigno quanto a chuva sazonal, da qual as massas se beneficiam se beneficiam por suas graças; ao infligir punições, ele é tão terrível quanto o alto trovão, que até divinos e sábios não podem reparar por seus crimes. (...) Se recompensa é negligenciada, ministros de mérito irão relaxar em seus deveres; se punição é protelada, maus ministros se tornaram suscetíveis a má conduta. Portanto, homem de real mérito, por mais distante e humilde, deve ser recompensados; aqueles de verdadeiro demérito, por mais perto e querido, devem ser censurados.”

69

63 Having Regulations: A Memorial. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 64 “Se o governante agrada-se em distorcer leis pela virtude se sua sabedoria, mistura assuntos públicos com assuntos privados de tempos em tempos, altera leis e proibições ao acaso, e emite comandos e ordens frequentemente, então a ruína é possível.” Portents of ruin. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1 “Se a lei não é de credito, sua imposição pelo governante é absurda.” Having regulations: A Memorial. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 65 Eight Canons. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 66 Ibid. 67 Ministers apt to Betray, Molest, or murder the ruler. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 68 Eigth cannons. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 69 The Tao of Sovereign. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1.

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O uso de recompensas e punições é um dos principais mecanismos, se não o único,

como coloca Han Fei, que permite ao governante manter o controle de seus ministros e

oficiais.70 Para governar, o soberano deve delegar o exercício de funções a aqueles aptos a

ela, conformando uma rede de cargos, que permite gerir o reino. Por meio desta rede, os

negócios do reino podem ser dispersados pelas quatro direções, mas a “chave” da

administração permanece no centro, e o governante deve ter esta “chave” em sua pose, o

que garante sua posição e autoridade.71 Na teoria de Han Fei, os ministros, necessários ao

governar, são os principais ameaçadores da posição do governante, pois sempre estão

interessados em atender seus interesses, estabelecer seus aparentados nos cargos, violar a

leis, se apropriar dos recursos, o que causa distúrbios ao reino, enfraquecendo o poder do

soberano. Isto fica claro quando Han Fei opõe o governante ao ministro, demonstrando

que para ele, o governante:

“está interessado em apontar homens hábeis para os cargos, os ministros estão interessados em assegurar emprego sem habilidades competentes. O soberano está interessado em recompensar com posições e prêmios serviços de distinção, o ministro está interessado em obter riqueza e honra sem mérito. O soberano está interessado em ter homens heróicos exercendo suas habilidades, o ministro está interessado em ter seus amigos e partidários efetivando propósitos próprios.” 72

Assim, os usos das recompensas e punições tornam possível que ministros, que

nunca são leais, 73 tornem-se, por igualar o atendimento aos próprios interesses, aos

interesses do governante, que devem, por sua vez, ser os interesses do reino.74 Assim, Han

Fei propõe que:

“Os meios pelos quais o governante inteligente controla seus ministros são apenas duas manobras. Estas são castigos e o comendas. Infligir pena de morte e torturas sobre culpa, é chamado castigo; conferir encorajamentos ou recompensas aos homens de mérito, é chamado conceder comendas. Portanto, se o senhor de homens usar manobras de castigos e concessão de comendas, todos os ministros irão temer sua severidade e se voltar para a sua generosidade.”75 Conjuntamente com o emprego da técnica de recompensas e punições, Han Fei

aponta a utilização de outras que conformam o principio de Shu, que o soberano deve

empregar. Neste sentido, o governante deve utilizar a tática de comparar diferentes visões,

70 The Two Handles. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 71 Wielding the Sceptre. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1 LEVI, Jean. Op. Cit. pp. 119 – 120. NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings…, p. 801. 72 Solitary Indignation. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 73 Inner Congeries of Sayings, The Lower Series: Six Minutiae. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 74 CHANG, Leo S; WANG, Hsiao-po. Op. Cit, p. 42. 75 The Two Handles. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1.

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o que lhe permite observar, por meio da comparação, o que é correto, o que é melhor para

o reino, e evita que ele possa ser iludido, ao utilizar-se da opinião de apenas um

conselheiro, ministro, oficiais. Para Han Fei, “Se o soberano não compara o que ele vê e

ouve, ele nunca chegará ao real.”76 Igualmente, o governante deve se utilizar da táctica de

fazer a punição definitiva, e deste modo fazer a ler ser cumprida. A idéia de punições

severas é extinguir punições. Em sua teorização, se punições para as menores faltas forem

severas, as pessoas se “acostumariam” a fazer o que é necessário para evitá-las, e assim as

punições se tornariam desnecessárias.77 Na concepção de Han Fei, penalidades leves não

evitam crimes, por que o “fogo parece severo, razão pela qual os homens raramente se

queimam, a água parece suave, razão pela qual frequentemente se afogam.”78 Por esta

razão, Han Fei entende que “se o governante é muito compassivo, a lei nunca prevalecerá.

Se a autoridade é muito fraca, o inferior ofenderá o superior. Por esta razão, se

penalidades não são definitivas, proibições e decretos não terão efeito.”79 O governante

deve estabelecer penalidades severas como a única forma de garantir o cumprimento da lei

e a manutenção da ordem, mesmo que isto possa ser entendido como “desagradável”.80

Para o estabelecimento correto das punições e recompensas; da possibilidade de

comparação; a correta escolha dos aptos ao exercício dos cargos; e a manutenção de

censores por sobre os oficias que os exercem, medidas estas que conformam o Shu do

soberano, e permitem a regulação da sociedade e o estabelecimento da ordem permanente,

Han Fei indica a necessidade da aplicação da correta adequação entre forma e nome, o

princípio de xing-ming. Este originalmente estava ligado à idéia da correta associação entre

forma e a palavra designada. Han Fei a transforma em um principio de controle

administrativo e político, por possibilitar a verificação do cumprimento das ordenações,

estabelecendo assim corretamente as recompensas, bem como as punições, por meio da

comparação.81 Assim:

76 Inner Congeries of Sayings, The Upper Series: Seven Tacts. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1 annotations to cannon II. 77 Commentaries on Lao Tzu’s Teachings. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. Learned Celebrities: A Critical Estimate of Confucians and Mohists. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 78 Inner Congeries of Sayings, The Upper Series: Seven Tacts. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 79 Ibid. 80 “De fato, furúnculos abertos causam dor; tomar remédios causam gosto amargo. Contudo, se furúnculos não forem abertos por causa da dor e remédios não forem tomados por causa do amargor, a pessoa não irá viver e a doença não irá parar.” Six Contrarieties. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. 81 AMES, Roger T. Op. Cit. pp. 47 – 48; LEWIS, Mark Edward. Writing and authority in early china…, pp. 31 – 33.

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“O senhor de homens, quando quer suprimir culpas, deve ver se norma acorda com nome e palavra nunca difere da incumbência. Se o trabalho [realizado] corresponde com a incumbência, e a incumbência com a palavra, ele deve ser recompensado. Ao contrario, se o trabalho não é equivalente a incumbência e a incumbência não é equivalente a palavra, ele deve ser punido. Então, quando um governante inteligente mantém ministros no serviço, a nenhum ministro é permitido nem ultrapassar seu posto e ganhar méritos assim, nem pronunciar qualquer palavra não equivalente ao fato. Qualquer que vá além do seu posto, é colocado a morte; qualquer que faz uma palavra não equivalente a um fato, é punido.” 82

O principio de xing-ming possibilita ao governante aferir a realidade através da

aparência e adequar a ela,83, e desta forma, “Ele decidirá entre certo e errado de acordo

com a relação entre nome e fato e escrutinará palavras e frases pelos meios da

comparação e verificação.”84

O emprego de táticas possibilita o governante controlar todos os aspectos de seu

reino, sem exercer uma ação direta, o que se adequa a apropriação de Han fei das idéias

acerca do Dao, no que se refere ao “não – ação” (wu-wei) do governante, mas que o

permite manter o controle de tudo. 85

“Portanto, se você tem o a arte correta para governar o reino, então ainda mesmo que você permaneça sentado no hall do palácio e conserva a cor de uma encantadora garota, [provavelmente refere-se a permanecer com o tom pálido] não haverá dano a ordem política. Mas se você não tem tática paras governar um reino, então mesmo que seu corpo se torne exausto e magrelo, ainda será de ajuda para a ordem política.”86 Assim a utilização dos princípios de Fa e Shu possibilitam a ampliação do poder do

governante, bem como a manutenção do Shih do governante, que por sua vez possibilita,

por conferir a autoridade para tal, em uma relação de interdependência. Com o emprego

destas e a conformação de suas ações, o governante de Han Fei deixa de ser um individuo,

por que busca a ordenação do reino e não seus interesses, conformando-se na sua posição

de ordenador, a qual Han Fei parece entender como sendo a razão da existência do

governante, e desse modo, buscou em sua teoria propor formas como estes poderiam obter

a ordem, em um contexto que, pela sua análise, parecia longe de ser restabelecido.

82 The Two Handles. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 83 CHANG, Leo S; WANG, Hsiao-po. Op. Cit, p. 70. 84 Ministers apt to betray, molest, and murder the ruler. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 85 AMES, Roger T. Op. Cit, p. 48; NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings…, pp. 802 – 804. 86 Outer Congeries of Sayings, the upper left series. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.2. Annotations to cannon I.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Han Fei, possivelmente um príncipe menor do reino de Han, escreveu uma série

de textos tratando dos aspectos particulares da arte de governar, objetivando, como

aponta sua bibliografia, e que pela analise de sua obra, com os seus comentários acerca

de seu contexto, parece ter pertinência,1 chamar a atenção do governante de Han acerca

da difícil situação do reino, fraco internamente, e perigosamente ameaçado no âmbito

externo. 2

A despeito de sua educação inicial dentro da tradição Confucionista, um

confucionismo já adaptado as realidades do século III a.C, Han Fei propôs em seus

escritos uma organização política dentro das preposições dos teóricos legistas anteriores

a si, mesclando diferentes vertentes desta com idéias apropriadas do Daoísmo presente

no Dao De Jing, conformando uma elaboração teórica para as idéias legistas.3

Assim, Han Fei propõe uma administração centralizada na figura do governante,

que controla uma rede de oficias que governam em seu nome, por meio de mecanismos

de controle e de manipulação dos interesses pessoais, conformado-os para os interesses

do reino, entendidos como a segurança interna; prosperidade obtida por uma agricultura

produtiva e exército forte, o que propicia a força necessária ao reino para defender-se e

atacar com segurança no contexto de guerras intermitentes que marcou o período Reinos

Combatentes. 4

1 Claramente indica isto em: On Pretentions and Heresies: A Memorial. The Complete Works of Han Fei Tzu. trad. W.K.Liao. London: A. Probsthain, 1939, v.1. 2 NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical writings. In: LOEWE, Michael; SHAUGNESSY, Edward L. (Org). The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p. 799 – 801. The Biography of Han Fei Tzu by Ssu-ma Chien. [Sima Qian, Shi Ji 63] apud Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1; 3 AMES, Roger T. The Art of Rulership. A study of ancient Chinese political thought. Albany [NY]: State University of New York, 1994, p. 72; CHANG, Leo S; WANG, Hsiao-po. The Philosophical Foundations of Han Fei’s Political Theory. Monographs of the Society for Asian and Comparative Philosophy n.7. Honolulu [Havaí]: University of Hawaii Press, 1986, pp. 6 – 7; NIVISON, David Shepherd. Op. Cit, p. 799; WALEY, Arthur. The Realists. In: The Three Ways of Thought in Ancient China. London: George Allen an Unwin LTD, 1974, p. 206. 4 Eight Canons; Surmising the Mentality of the people: A Psychological Analysis of Politics. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu. trad. W.K.Liao. London: A. Probsthain, 1960, v.2. CHANG, Leo S; WANG, Hsiao-po. Op. Cit, pp. 47 – 50.

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Sua critica aos usos dos “ditos dos Antigos Reis” se deve ao entendimento,

principalmente por certas vertentes de pensamento, surgidas nos contextos dos períodos

Primavera e Outonos e Reinos Combatentes, em especial a Confucionista, que entendia

as ações dos primeiros reis e pregavam a observação destas, enquanto normas de

condução de diversos aspectos sociais e políticos, conformando uma verdade imutável,

e que, portanto, deveria permear as ações políticas.5 A critica ou a conformidade com as

ações dos antigos reis aparecem em Han Fei como ilustrações as preceitos que propõe

em sua teoria. Para ele, as medidas devem ser adequadas às necessidades que surgem, e,

portanto são variáveis em cada época. Em sua concepção, as ações tomadas pelos

antigos reis, suas formas de condução, foram respostas às situações e necessidades que

surgiram em sua época, e dessa forma, seria absurdo a aplicação exata destas medidas,

em contexto diferente. Han Fei argumenta nesse sentido, que o governante deve

observar a realidade do momento, e assim aplicar as medidas adequadas a ela, podendo

inclusive, caso seja pertinente, agir tal qual os antigos reis. 6 É possível que este

entendimento de Han Fei seja uma das razões pelas quais ele não propõe claramente

quais leis o governante deve empregar, a forma como ele deve organizar a população e

quais punições corresponderiam a cada crime, como ocorre em outros escritos legistas.7

O governante é o centro da sua teoria por que Han Fei considera que é o

governante que possui a autoridade necessária, devido a sua posição enquanto

governante, o “senhor de homens”, para estabelecer os mecanismos que permitem a

regulação e o estabelecimento da ordem.8 Han Fei também entende que é o governante

que molda seus súditos, e neste sentido ele deve estar atento as suas ações. Han Fei

aponta ao longo dos 55 capítulos que são as atitudes do governante que levam a ruína

do reino, seja por não aplicar os princípios que permitem a regulação, seja por atender

aos seus desejos. A função do governante na concepção de Han Fei é estabelecer por

todos os meios a sua disposição a ordem, e nada deveria desviá-lo desta função. Em sua

idealização, o governante deveria ter identificado em si os interesses que podem ser

entendidos enquanto um “bem comum”, este se referindo basicamente aos interesses do

5 WALEY, Arthur. Op. Cit, pp. 202 – 203. 6 Facing the South. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1. 7 Vide o “Livro de Shang Yang” (Shangjun shu). 8 Facing the South; On Pretentions and Heresies: A memorial; Portens of Ruin In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v.1; Inquiring into the Origin of Dialectic; Six Contrarieties. In: Han Fei Tzu. The Complete Works of Han Fei Tzu…, v. 2.

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reino, já mencionados. Nesse sentido, o governante agiria unicamente no sentido destes

interesses e não deveria fazer nada por si mesmo. 9

Pela análise do Han Fei tzu observa-se que o governante para Han Fei, apesar de

manter em si a “chave da administração 10 , e o comprimento das incumbências

promovem a honra de sua figura, não é um soberano absoluto, que busca atender única e

exclusivamente suas necessidades, explorando a energia nos campos e a vida na guerra

de sua população, como parte da historiografia relativa ao Legismo buscou entender.

Como demonstrado, o contexto dos Reinos Combatentes foi o de grandes modificações

nas estruturas socioculturais, bem como organizacionais dos domínios que constituíam

anteriormente a esfera de influencia Zhou. A perda de legitimidade da casa real Zhou,

que mantinha a coesão destes domínios, deixou um vazio de poder, que foi ocupado

com os poderes regionais, que disputaram o poder hegemônico, e de certa forma,

buscavam restaurar a coesão destes domínios. Nesse sentido, as teorizações acerca da

melhor forma desta coesão ser alcançada, prosperaram ao longo dos séculos VI a III

a.C, e Han Fei e sua teoria se inserem neste movimento.

Assim, Han Fei propôs uma teoria política que pretendia a previsibilidade, por

meio da obediência a leis claramente definidas, a instituição de punições e recompensas,

que levariam, utopicamente, ao fim da necessidade de punições, com a harmonização da

sociedade e o governante é entendido enquanto o centro irradiador desta conformação,

estabelecendo a ordem. Em Han Fei o governante é absoluto por que tem o controle de

tudo, mas ter o poder absoluto em sua teoria não permite ao governante exercer esse

poder para o seu beneficio, mas unicamente para o beneficio do reino. Assim, na teoria

de Han Fei, o papel do governante é o mais importante e o mais difícil, por que ele

deve, ao ser alçado “senhor de homens”, se despir de sua condição de homem, como

paixões, interesses próprios, para encarnar sua posição de ordenador, assemelhando-se

assim ao Dao, acima da dualidade que permeia a divisão hierárquica social, e sem par,

vazio e ao mesmo tempo, contemplando tudo. 11

9 The Tao of the sovereign; Wielding the sceptre; 10 Wielding the Sceptre. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1. 11 Wielding the Sceptre. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v. 1; Outer Congeries of Sayings, The Upper Left Series. In: Han Fei tzu. The complete Works of Han Fei Tzu…, v.2.

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Figura 1. A full divination recorde oracle-bone inscription. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p. 242.

Mapa 2. China Ocidental Chou: do século 11 ao século 9 a.C. In: Atlas da História do Mundo. São Paulo: Folha da Manhã S.A, 1995, p. 62.

Figura 2. Ding (trípode) de Fu Ding. Fase inicial da Dinastia Zhou do Oeste (século XI a.C). In: Objetos Antigos Chineses de Bronze. Beijing: Gabinete de Imprensa do Conselho de Estado da Republica Popular da China/China Intercontinental Press. s/d.

Mapa 3. Major states of the Spring and Autunm period. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p. 548.

Mapa 4. Major states of the Warring States period. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. The Cambridge History of Ancient China. From the Origins of Civilization to 221 B.C. Cambridge/ Nova York: Cambridge University Press, 1999, p. 594.