Fabio Adour - Harmonia

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Fabio Adour da Camara

SOBRE HARMONIA:UMA PROPOSTA DE PERFIL CONCEITUAL

Belo Horizonte, Minas Gerais, 2008

Tese

de

Doutorado

apresentada

Faculdade de Educao de Minas Gerais com requisito parcial obteno do ttulo de Doutor. Orientador: Eduardo Fleury Mortimer

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Este

trabalho

dedicado

minha

encantadora famlia: minha adorvel esposa, Andra, e aos meus queridos filhotes, Theo e Otto.

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AgradecimentosA minha famlia. Alm de dedicar o trabalho Andra, ao Theo e ao Otto, devo toda gratido ao incrvel ato de carinho representado pela sofrida espera quanto ao processo de redao da tese. O amor e o afeto incondicionais que eles me do que tornam tudo possvel. Agradeo especialmente Andra por ter participado de todo o processo, me ajudando diretamente em inmeros detalhes ou mesmo me poupando de incontveis atividades extras! Quanto aos filhotes, espero que o Theozinho e o Ottinho notem que o papai est voltando a ser o pai que ele nunca quis deixar de ser... Ao meu extraordinrio orientador, Eduardo Mortimer, pela amizade e por no ter sequer esboado uma ponta de dvida quanto a minha capacidade de levar adiante uma pesquisa to pretensiosa e complexa. E, claro, pelo indispensvel auxlio! A toda a banca examinadora Ana Gomes, Antonio Jardim, Rafael dos Santos, Helosa Feichas, Alexandre Eisenberg e Orlando Aguiar pela atenciosa disponibilidade e pelos timos toques de finalizao. Um especial agradecimento Ana Gomes e ao Antonio Jardim, pela valiosa participao na qualificao. Ao Antonio Jardim de novo! , pela amizade, pelas ricas conversas e por ter me orientado no Mestrado. Um grande abrao e obrigado ao Alexandre Eisenberg, pela forte amizade, pelas mais profundas discusses sobre Msica e por ter encomendado uma pea para flauta e piano num momento em que eu no podia faz-la... E, ainda, por aceitar ficar de stand-by como suplente da banca e por ter me salvado com o Abstract!!! A toda equipe da Ps-Graduao da FAE/UFMG, pela essencial dedicao aos alunos e por terem segurado as pontas em todos os prazos possveis! A todos os meus alunos, sem nenhuma exceo!!! Se esse trabalho agora se apresenta sob uma forma palpvel e publicvel, por causa deles... Ao Thiakov, ao Boris, ao Marquinho louro, ao Rafael Ludicante e agregados, pela grande amizade, pela diverso, pelos banhos de Cultura e Msica, pelas discusses e pela admirao mtua. Um grande obrigado ao Ludicante pelo mosaico!!! A meu grande amigo Daniel Christofaro, pelas parcerias e por ter me ensinado ou pelo menos me lembrado , enquanto eu o ajudava no projeto de Mestrado, que as pesquisas tm que ter estrutura e, principalmente, limites!!! Ao Leo Barreto, pela enriquecedora parceria e por ter me dado o impulso incial de escrita! Afinal ele comeou a citar esse manuscrito autgrafo muito antes de ele ficar pronto...

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Ao Vandinho (Evandro Menezes) e ao Cludio Moraleida, por terem entendido grande parte da louca viso sobre Harmonia que venho propondo e assim me encorajado a compartilh-la com aqueles que no entendem... A todos os professores da Escola de Msica da UFMG, pelo encorajamento e por terem segurado as pontas no perodo do meu afastamento. Um especial abrao Helosa Feichas, pela participao na banca e ao Mauro Mascarenhas chefe de departamento da Escola de Msica , pela competncia e pelo confiante e perene apoio. Ao Mauro Rodrigues, pela amizade, pela sabedoria, pelas engrandecedoras parcerias e pela companhia nesse complexo caminhar acadmico em que a gente vem tentando preparar um espao adequado Msica Popular. A meu pai, Leopoldo Camara postumamente , pelo bom humor e pelo amor incondicional s habilidades e produes humanas! Queria ter te curtido mais... Um beijo pai! A minha me, pelas calorosas visitas e recepes e, principalmente, por sempre acreditar em mim e nos meus irmos, nos estimulando a ter autoconfiana suficiente para nos lanarmos em projetos impossveis como a presente pesquisa ou mesmo a carreira de msico. No posso deixar de agradecer, mais uma vez, aos meus pais, em conjunto, por nunca terem questionado minha escolha profissional. Esse um agradecimento que eu j tinha feito na dissertao de Mestrado, mas nunca exagerado repetir... A meu irmo, Tomaz, por ter tentado me ensinar que a vida no pra ser levada to a srio. O que no significa que eu o tenha levado a srio e muito menos que eu tenha internalizado sua considerao... A meu irmo mais velho, Pedro, por mostrar sempre de forma hilria que um pouco de atitude politicamente incorreta no faz mal a ningum!!! A todos aqueles que sempre me deram fora. impossvel fazer uma lista... Na verdade estou com medo de ter injustamente deixado algum importante de fora!!! Aos que assim se sentirem, desculpa e obrigado! Um abrao tambm a quem me deu apoio pela internet. Andra, voc j pode deletar aquela comunidade do Orkut: Fabio, termina a tese...

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ResumoO tema dessa pesquisa um dos parmetros mais importantes da Msica Ocidental: a Harmonia. A Harmonia estuda a combinao simultnea de notas, o que produz os chamados acordes, e investiga as diversas possibilidades de concatenao desses acordes. O material bibliogrfico sobre o assunto extenso, porm sofre de um marcante desencontro: as publicaes oriundas do universo da Msica Erudita geralmente desconsideram o repertrio popular mais ou menos recente; e as publicaes provenientes do mundo musical popular, por sua vez, no levam em conta os recursos h muito estabelecidos pela tradio histrica do estudo de Harmonia. Tal descompasso vem produzindo uma srie de incongruncias tericas, conceituais e epistemolgicas. Estando inseridos num meio acadmico tradicional e vivendo um momento em que a Msica Popular definitivamente adquire o direito sobre uma parcela desse espao, comeamos a pensar na possibilidade de lanar mo da noo de Perfil Conceitual, um aparato educacional que prev a convivncia de diversas conceituaes sobre um mesmo tema, as quais so chamadas de Zonas Conceituais. Conforme percebemos que outras vises sobre Harmonia coexistem com os dois caminhos tericos acima aludidos e como esse modelo didtico tambm prev a conscientizao quanto aos contextos e limites de aplicao de cada ponto de vista, resolvemos propor um Perfil Conceitual de Harmonia. Primeiro procuraremos definir e caracterizar esses domnios conceituais j existentes; em segundo lugar, faremos a sugesto de uma nova zona, que aproveita, revisa, critica e integra as ferramentas dos outros mbitos epistemolgicos, alm de criar novos aparatos explicativos; e, por fim, realizaremos uma anlise de discurso de um contexto de ensinoaprendizagem que ministramos e filmamos. Com esse material de campo temos a inteno de corroborar o Perfil proposto e de apontar futuros caminhos didticos. Tambm empregaremos uma ferramenta analtica oriunda do universo educacional que valoriza o dilogo e a contraposio de diversas perspectivas, permitindo uma avaliao de dados congruente com o carter polissmico da noo de Perfil Conceitual.

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AbstractThe present research is about one of the most basic elements of Western music: harmony. Harmony is the study of the simultaneous combination of sounds, the socalled chords, and investigates the myriad possibilities of organizing them. Despite all the number and variety of publications on harmony, there still is an important, not yet bridged gap: publications that originate in the classical music world do not include more or less recent popular repertoire, and publications that originate in the popular music world do not include so many materials that have been long established by the historic tradition of harmony studies. This gap has been producing much theoretical, conceptual and epistemological incongruence. Given the growing space allotted to popular music in the academic sphere, and our need to adjust the traditional music academe to this new reality, we deemed useful to work with the notion of conceptual profile, an educational device that allows for the cohabitation of different concepts of a subject. We call the latter conceptual zones. As we realized that other views on harmony coexist with the two theoretical trends mentioned above, and because our didactic model lays out the comprehension of the contexts and practical limitations of all views, we propose a conceptual profile of harmony. We start off our work by defining and describing such already existing conceptual domains. Then we propose a new zone which takes advantage of, revises, criticizes and integrates the available tools of other epistemological realms, and also creates new explanatory devices. And finally we perform a discourse analysis of a live teaching-learning situation that we enacted and filmed. This field material is then used to defend the profile that we propose and suggest didactic procedures for the future. In order to achieve our goal we use an educational analytical tool which values dialogue and the comparison of different perspectives, so as to interpret data according to the polysemic character of the notion of conceptual profile.

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Folha de AprovaoBANCA EXAMINADORA Titulares: ____________________________________________________________ Ana Maria Rabelo Gomes UFMG FAE ____________________________________________________________ Antonio Jos Jardim e Castro UFRJ / UERJ ____________________________________________________________ Antonio Rafael Carvalho dos Santos UNICAMP ____________________________________________________________ Eduardo Fleury Mortimer UFMG FAE (orientador) ____________________________________________________________ Heloisa Faria Braga Feichas UFMG EMU Suplentes: ____________________________________________________________ Alexandre Jacques Eisenberg UFSM ____________________________________________________________ Orlando Gomes Aguiar UFMG FAE8

ndiceIntroduo ............................................................................................................................................131) HISTRICO DA PESQUISA .............................................................................................................14 2) MSICA POPULAR ............................................................................................................................18 3) ESTRUTURA DA TESE ......................................................................................................................27

Captulo I: Referencial Terico ............................................................................................291) PERFIL CONCEITUAL .....................................................................................................................29 2) FUNDAMENTOS TERICOS DA FERRAMENTA DE ANLISE DE DISCURSO .................32

Captulo II: Metodologia ..........................................................................................................401) DADOS ..................................................................................................................................................40 2) CAMINHOS BIBLIOGRFICOS .....................................................................................................41 2.1) Conceitos educacionais ......................................................................................................................41 2.2) Msica e Harmonia ...........................................................................................................................47 3) INVESTIGAO MUSICAL .............................................................................................................54

Captulo III: Perfil Conceitual de Harmonia ................................................................591) HARMONIA .........................................................................................................................................59 2) A GNESE DAS ZONAS DO PERFIL CONCEITUAL DE HARMONIA ...................................69 3) LEIS DA HARMONIA ........................................................................................................................75 4) AS ZONAS CONCEITUAIS E AS LEIS DA HARMONIA ............................................................79 4.1) Zona Auditiva-Instrumental .............................................................................................................81 4.1.1) A Zona Auditiva-Instrumental e a 1 Lei da Harmonia .............................................................86 4.1.1.1) Cifra ..............................................................................................................................................86 4.1.1.2) Escalas ...........................................................................................................................................86 4.1.1.3) Modalismo ....................................................................................................................................88 4.1.2) A Zona Auditiva-Instrumental e a 2 Lei da Harmonia .............................................................88 4.1.2.1) Omisses e divergncias ..............................................................................................................88 4.1.2.2) Harmonia Funcional ....................................................................................................................89 4.1.3) A Zona Auditiva-Instrumental e a 3 Lei da Harmonia .............................................................90 4.1.3.1) Cadncias ......................................................................................................................................90 4.1.3.2) Modulao ....................................................................................................................................90 4.1.4) A Zona Auditiva-Instrumental e a 4 Lei da Harmonia .............................................................91 4.1.4.1) Dissonncias, escalas e acordes ...................................................................................................91 4.1.4.2) Inverses, pedais e poliacordes ...................................................................................................92 4.2) Zona Histrica Popular .....................................................................................................................92 4.2.1) A Zona Histrica Popular e a 1 Lei da Harmonia ......................................................................95

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4.2.1.1) Cifra ..............................................................................................................................................95 4.2.1.2) Escalas ...........................................................................................................................................96 4.2.1.3) Modalismo ....................................................................................................................................97 4.2.2) A Zona Histrica Popular e a 2 Lei da Harmonia ......................................................................97 4.2.2.1) Omisses e divergncias ..............................................................................................................97 4.2.2.2) Harmonia Funcional ....................................................................................................................98 4.2.3) A Zona Histrica Popular e a 3 Lei da Harmonia ......................................................................98 4.2.3.1) Cadncias ......................................................................................................................................98 4.2.3.2) Modulao ....................................................................................................................................99 4.2.4) A Zona Histrica Popular e a 4 Lei da Harmonia ....................................................................100 4.2.4.1) Dissonncias, escalas e acordes .................................................................................................100 4.2.4.2) Inverses, pedais e poliacordes .................................................................................................100 4.3) Zona Histrica Clssica ...................................................................................................................101 4.3.1) A Zona Histrica Clssica e a 1 Lei da Harmonia ...................................................................104 4.3.1.1) Cifra ............................................................................................................................................104 4.3.1.2) Escalas .........................................................................................................................................105 4.3.1.3) Modalismo ..................................................................................................................................106 4.3.2) A Zona Histrica Clssica e a 2 Lei da Harmonia ...................................................................107 4.3.2.1) Omisses e divergncias ............................................................................................................107 4.3.2.2) Harmonia Funcional ..................................................................................................................108 4.3.3) A Zona Histrica Clssica e a 3 Lei da Harmonia ...................................................................109 4.3.3.1) Cadncias ....................................................................................................................................109 4.3.3.2) Modulao ..................................................................................................................................110 4.3.4) A Zona Histrica Clssica e a 4 Lei da Harmonia ...................................................................111 4.3.4.1) Dissonncias, escalas e acordes .................................................................................................111 4.3.4.2) Inverses, pedais e poliacordes .................................................................................................111 4.4) Zona Histrica Expandida ..............................................................................................................112

Captulo IV: A Zona Histrica Expandida ..................................................................1171) A ZONA HISTRICA EXPANDIDA E A 1 LEI DA HARMONIA ...........................................118 1.1) Cifras .................................................................................................................................................119 1.1.1) Os Padres de Cifragem ...............................................................................................................121 1.1.2) Uma proposta para o futuro ........................................................................................................129 1.1.3) O rigor de cifragem ......................................................................................................................135 1.2) Escalas ...............................................................................................................................................139 1.2.1) Escalas dos Acordes ......................................................................................................................142 1.2.2) A origem maior/menor dos materiais .........................................................................................145 1.2.3) Escalas tonais e o cluster ..........................................................................................................147 1.3.) Modalismo ......................................................................................................................................152 1.3.1) Caracterizao dos modos ...........................................................................................................155

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1.3.2) Funes modais .............................................................................................................................159 1.3.3) Emprstimo modal .......................................................................................................................163 1.3.4) Outros modos e escalas .................................................................................................................170 1.3.5) O Blues ...........................................................................................................................................177 2) A ZONA HISTRICA EXPANDIDA E A 2 LEI DA HARMONIA ...........................................187 2.1) Omisses e divergncias ..................................................................................................................189 2.1.1) Cadncia interrompida ................................................................................................................190 2.1.2) Casos polmicos ............................................................................................................................196 2.1.3) Formas alternativas de resoluo da dominante .......................................................................208 2.2) Harmonia Funcional ........................................................................................................................221 2.2.1) Definio, crticas e opes ..........................................................................................................221 2.2.2) Sistematizao ...............................................................................................................................233 3) A ZONA HISTRICA EXPANDIDA E A 3 LEI DA HARMONIA ...........................................242 3.1) Cadncias ..........................................................................................................................................243 3.1.1) Subdominante cadencial e inclinao .........................................................................................244 3.1.2) Os IIs graus relacionados ...........................................................................................................252 3.2) Modulao ........................................................................................................................................263 3.2.1) Organizao das tonalidades e modulaes por meio de cadncias bsicas ...........................265 3.2.2) Modulao por enarmonia ...........................................................................................................280 3.2.3) Modulao por emprstimo modal .............................................................................................289 4) A ZONA HISTRICA EXPANDIDA E A 4 LEI DA HARMONIA ...........................................297 4.1) Dissonncias, escalas e acordes .......................................................................................................298 4.1.1) Tabela dos acordes cadenciais escalas, dissonncias, substitutos e arpejos .........................298 4.1.2) Sistema de arpejos e pentatnicas ...............................................................................................316 4.1.3) Questes sobre notas meldicas e conduo de vozes ...............................................................336 4.2) Inverses, pedais e poliacordes .......................................................................................................346 4.2.1) Inverses ........................................................................................................................................347 4.2.2) Pedais .............................................................................................................................................354 4.2.3) Poliacordes ....................................................................................................................................369

Captulo V: Perfil Conceitual de Harmonia e a sala de aula .............................3781) CONTEXTO .......................................................................................................................................378 2) FERRAMENTA DE ANLISE DE DISCURSO ............................................................................384 3) COLETA DE DADOS ........................................................................................................................398 4) CRITRIOS DE SELEO .............................................................................................................401 5) FORMA DE APRESENTAO DAS ANLISES E OPES DE TRANSCRIO ..............402 6) AS ZONAS CONCEITUAIS E OS EXEMPLOS DISCURSIVOS ...............................................404 6.1) Zona Auditiva-Instrumental ...........................................................................................................405 6.1.1) Evidenciando aspecto(s) positivo(s) da Zona Auditiva-Instrumental: ....................................405 6.1.2) Evidenciando aspecto(s) negativo(s) da Zona Auditiva-Instrumental: ...................................412

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6.2) Zona Histrica Clssica ...................................................................................................................420 6.2.1) Evidenciando aspecto(s) positivo(s) da Zona Histrica Clssica ..............................................420 6.2.2) Evidenciando aspecto(s) negativo(s) da Zona Histrica Clssica ............................................425 6.3) Zona Histrica Popular ...................................................................................................................432 6.3.1) Evidenciando aspecto(s) positivo(s) da Zona Histrica Popular ..............................................432 6.3.2) Evidenciando aspecto(s) negativo(s) da Zona Histrica Popular .............................................444 6.4) Zona Histrica Expandida ..............................................................................................................454 6.4.1) Evidenciando aspecto(s) positivo(s) da Zona Histrica Expandida .........................................454 6.4.2) Evidenciando aspecto(s) negativo(s) da Zona Histrica Expandida ........................................462 7) AVALIAO FINAL ........................................................................................................................475

Concluso ...........................................................................................................................................483 Bibliografia .......................................................................................................................................496

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IntroduoSo Harmonias diferentes1. Essa singela frase expressa bem a inquietao que move toda a presente pesquisa. Ela faz parte do depoimento de um estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e remete especificamente a duas formas de investigar Harmonia, um parmetro de fundamental importncia na Msica Ocidental. Uma das abordagens se refere, em essncia, ao modo como os msicos populares constroem conhecimentos sobre o tema. A outra a abordagem tradicional, perpetrada pela maioria das instituies dedicadas ao estudo da chamada Msica Erudita ou Clssica. A sentena do aluno da UFRJ antecedida por uma afirmao ainda mais marcante: No possvel aplicar o tipo de conhecimento harmnico adquirido antes do curso de Harmonia2 [da UFRJ]. Tal incmodo no apenas fora o nosso durante muitos anos, como acreditamos que ele reflete a preocupao de muitos outros estudantes e provavelmente at de certos profissionais. O presente trabalho, em resumo, se fundamenta no ponto de vista de que no so duas Harmonias diferentes, ou seja, propomos uma aprofundada discusso sobre a Harmonia da Msica Ocidental com vistas a integrar os conhecimentos que h muito vm sendo erigidos sobre o assunto. Na verdade, primeiro mostraremos que no existem apenas as aludidas abordagens popular e erudita. Outros caminhos so possveis, mas no fundo todos so formas diversas de investigar o mesmo fenmeno musical. Assim, nos dedicaremos 1) identificao e caracterizao dessas formas, 2) realizao de um pormenorizado estudo tcnicomusical em que tentaremos assinalar possibilidades de integrao e de reviso das ferramentas tericas sobre Harmonia, 3) e anlise crtica de um contexto de ensinoaprendizagem onde tivemos a oportunidade de disponibilizar e discutir a viso sobre Harmonia que construmos.

Feichas, H. 2006: p. 155. Para este trabalho, sua tese de doutorado, Formal and Informal Music Learning in Brazilian Higher Education, Heloisa Feichas entrevistou, em 2003, diversos alunos e alguns professores da Escola de Msica da UFRJ, levantando uma srie de informaes que, em resumo, a permitiram realizar uma ampla caracterizao do perfil daquela instituio. 2 Op. Cit. 2006: p. 155.

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1) HISTRICO DA PESQUISA Nossa formao acadmica foi realizada na rea musical: fizemos bacharelado e mestrado em Msica. No mestrado defendemos o trabalho Sobre a Composio para Violo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). interessante comentar sobre o histrico dessa dissertao, pois sua origem tambm participa da gnese da presente tese. Para uma disciplina da graduao chamada Histria da Msica Brasileira II, realizada na Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO) em 1994, desenvolvemos uma monografia sobre os 12 Estudos para violo de Heitor Villa-Lobos. A hiptese do trabalho era a de que existe uma intrnseca influncia da tcnica violonstica sobre as decises harmnicas do compositor e, vice-versa, uma influncia das intenes harmnicas de Villa-Lobos sobre a tcnica do violo. Ambas as direes de interferncia engendraram situaes bastante originais para a poca os estudos so de 1929. Nossa investigao de mestrado (Camara 1999) de certo modo d continuidade mesma pesquisa. Com a ajuda de diversos professores, conclumos que nossa verdadeira questo era a prpria escrita violonstica e a dissertao, basicamente, um tratado sobre as possibilidades tcnicas do violo no qual procura-se fornecer subsdios principalmente aos compositores e arranjadores que no dominam o instrumento. No vinculamos o trabalho a um nico compositor, como Villa-Lobos, nem nos limitamos a um parmetro musical especfico, como a Harmonia. Avaliamos, sim, a obra para violo de uma grande variedade de autores e estudamos diversos aspectos pertinentes da composio musical para o instrumento: ritmo, melodia, harmonia, textura, forma, intensidade, timbre, etc... Apesar da investigao sobre Harmonia ainda ocupar um captulo inteiro desse trabalho, ela deixa de ser o foco principal. Na verdade, nas 60 pginas do referido captulo, nos limitamos a uma espcie de enumerao das possibilidades harmnicas de determinado mediador instrumental (violo). Tal disciplina, entretanto, sempre foi uma de nossas eternas questes, como at melhor demonstra a mencionada monografia da graduao. A partir de nossa efetivao na escola de Msica da UFMG, em 1999, pudemos dar vazo a nosso anseio de continuar pesquisando sobre Harmonia, pois imediatamente comeamos a ministrar uma disciplina Improvisao intimamente 14

conectada com tal parmetro. importante ressaltar que a demanda pelo estudo de Msica Popular gnero em que a Improvisao fundamental muito forte em Belo Horizonte e na UFMG. Se por um lado a dissertao de mestrado tentava dar conta das possibilidades tcnicas do violo sem vnculos estilsticos ou estticos, a tese que agora propomos fruto de uma intensa investigao da Harmonia na Msica Popular, principalmente como ela se apresenta no Jazz, na MPB, no Rock, no Pop, etc. Recentemente, deixamos de ofertar a disciplina Improvisao, mudando o foco e o seu nome para Harmonia na Msica Popular, influncia direta dos estudos realizados no doutorado. Esse interesse, essa concentrao no estudo da Msica Popular muito decorre, para alm da mencionada demanda, da percepo de que diversos recursos utilizados nesse gnero no so explicados pelos manuais mais tradicionais de Harmonia. Isso no significa que a Msica Erudita, aquela que mais se associa a tais publicaes, no tenha desenvolvido uma igualmente rica Harmonia. O que queremos enfatizar que os materiais didticos mais consagrados se dedicam a elucidar, preponderantemente, os detalhes harmnicos do repertrio do chamado perodo clssico-romntico (sculos XVIII e XIX), e, assim, no abarcam procedimentos que s puderam ser desenvolvidos posteriormente. Aqui aludimos a diversos novos recursos harmnicos que o universo musical popular vem legitimando por meio de um uso reiterado e regular e por uma generalizada difuso cultural. Naturalmente, vrios tericos se propuseram, nos ltimos 50 anos, justamente a elucidar esses aspectos. O problema reside no fato de que os livros sobre Msica Popular geralmente no dialogam com os tratados consagrados. A gnese desta pesquisa, enfim, em grande medida resulta da verificao desse alarmante desencontro, que tambm claramente se manifesta na frase do aluno da UFRJ que citamos logo de incio: uma faco terica no abrange certo repertrio e a outra no interage com as teorizaes mais antigas. Como no fim propomos uma espcie de sntese das abordagens, acabamos por erigir um corpo de conhecimento sobre Harmonia muito amplo e complexo que, se muitas vezes cativa os alunos principalmente os que j tinham algum contato com Harmonia , tambm entra freqentemente em conflito com as vises prvias dos estudantes ou pelo menos representa uma demanda de aprendizado um pouco rdua para os menos experientes. Atentos a esse problema didtico, decidimos discuti-lo no 15

doutorado e ingressamos no Programa de Ps-Graduao da FAE (Faculdade de Educao) da UFMG. Tambm acabamos optando por filmar e investigar justamente um dos contextos de ensino-aprendizagem que ministramos na Escola de Msica da UFMG, uma disciplina optativa chamada Improvisao, mais precisamente os perodos realizados no segundo semestre de 2004 (Improvisao I) e no primeiro de 2005 (Improvisao II). Nesse universo educacional do doutorado, que contrasta com nossa formao exclusivamente musical, tomamos conhecimento de uma ferramenta didtica que muito se adapta viso mltipla de Harmonia que viemos construindo, a saber, a noo de Perfil Conceitual como proposta por Eduardo Mortimer, nosso orientador, no livro Linguagem e Formao de Conceitos no Ensino de Cincias (2000). Tal noo foi elaborada para lidar justamente com conceitos amplos, de relevncia considervel numa rea qualquer de atuao. Mortimer e alguns de seus orientandos j abordaram, por exemplo, temas da cincia significativos como tomo (Qumica) e Vida (Biologia). No mbito musical, pensamos que Harmonia tem uma importncia equivalente e assim propomos o estudo do Perfil Conceitual de Harmonia. No primeiro captulo traremos mais detalhes sobre o histrico e sobre a constituio dessa ferramenta didtica. Por ora podemos adiantar que ela prev a possibilidade de coexistncia de diversos significados sobre um mesmo conceito. Tal coexistncia contrasta com outros modelos didticos surgidos no mbito da Cincia escolar, que preconizam a necessidade dos estudantes abandonarem suas idias prvias para adquirirem as noes corretas propostas pela comunidade cientfica. Vale comentar que nossa prtica com o ensino de Harmonia j se configurou dessa forma e isso certamente se verifica em outros contextos didticos do mbito musical. A noo de Perfil Conceitual no apenas surge para enfatizar a possibilidade de coexistncia das diversas formas de pensar sobre um mesmo tema, como tambm postula a importncia de se conscientizar sobre o momento oportuno de aplicao de cada tipo de pensamento. Ou seja, certas vises sobre tomo, Vida ou Harmonia, funcionam perfeitamente em determinados contextos e limites e outros pontos de vista funcionam melhor em outras situaes. Isso no impede que determinada nuance conceitual no possa ser considerada mais abrangente, ou hierarquicamente superior, ou at englobar, num modelo mais amplo, os outros pontos de vista. 16

Muito embora a noo de Perfil Conceitual no preconize que os estudantes devam abandonar suas idias prvias, natural e comum que novos significados precisem ser introduzidos nos processos de ensino-aprendizagem. Muitas correntes educacionais, principalmente as influenciadas pela teoria sociocultural proveniente de Vygotsky, enfatizam que os conhecimentos so construdos em interao, em ambientes sociais. O prprio dilogo que se processa num plano social de certo modo se transfere para a mente dos indivduos: essa a maneira pela qual pensamos, mesmo quando isolados, e assim adquirimos novos significados. Se o nosso prprio pensar depende desse tipo de contraposio dialgica, pode-se dizer que sempre temos um outro em vista, um respondente, ou algum que nos incitou determinada atitude responsiva. Essas ltimas consideraes remetem, grosso modo, viso de dilogo proposta por Bakhtin e seus comentadores. O dialogismo bakhitiniano est na raiz da ferramenta de anlise de discurso que empregaremos para auxiliar a observao do contexto didtico selecionado. Ela foi proposta por diversos autores, mas principalmente desenvolvida por Mortimer e Scott no livro Meaning Making in Secondary Science Classrooms (2003). Mortimer e Scott no apenas fornecem subsdios para a anlise do discurso de sala de aula, como se preocupam especialmente em apontar os momentos efetivamente dialgicos dos contextos de ensino-aprendizagem, j que o dilogo est na base da construo de conhecimentos. Enfim, enquanto a noo de Perfil Conceitual nos permitir entender e sistematizar a possibilidade de co-existncia de vrios conceitos sobre Harmonia, essa ferramenta de anlise nos ajudar a avaliar criticamente nossas aulas. Assim poderemos tornar explcitos, via micro-anlise, os momentos dialgicos e no dialgicos das mesmas, com vistas a identificar quais os tipos de situao discursiva em que conhecimentos sobre Harmonia foram efetivamente construdos. Em ltima instncia, a ferramenta de anlise nos permitir compreender como o Perfil Conceitual de Harmonia se caracteriza discursivamente no plano social-didtico selecionado. Apesar de no termos uma completa conscincia dessas ferramentas educacionais quando comeamos a ministrar a disciplina que filmamos, a abordagem sobre Harmonia que vnhamos gradativamente desenvolvendo j se configurava como um campo onde diversos pontos de vista podiam se manifestar e entrar em dilogo. 17

2) MSICA POPULAR Temos utilizado as expresses Msica Popular e Msica Erudita. Devemos, portanto, nos posicionar sobre essa dicotomia. O que estamos distinguindo quando dizemos isto Msica Popular? possvel definir Msica Popular? Ou: colocar essa questo tem alguma relevncia? Ou ainda: no seria mais fcil e producente abster-se por completo do uso de tal adjetivao? A partir do momento em que grande parte dos indivduos ocidentais utilizam tal expresso para designar uma parcela especfica da produo musical, temos que reconhecer que a questo mais que pertinente. Ento, quando algum enuncia Msica Popular, a que se refere? Como primeira aproximao, devemos lembrar que o termo Popular normalmente contraposto ao termo Erudito. Pensamos no ser necessrio realizar profunda pesquisa etimolgica para verificar que os dois adjetivos no so antagnicos. Comprova-se isso facilmente por meio de simples exemplos: 1) uma pea famosa de Mozart (compositor considerado erudito), como a Pequena Serenata Noturna , hoje, muito mais popular que a maior parte da obra de Dorival Caymmi; 2) a maioria das canes de Tom Jobim (compositor considerado popular) foi elaborada com grande erudio. Exatamente por sua impreciso e pedantismo etnocntrico, o termo erudito vem sendo muito questionado nas instituies acadmicas. Vale lembrar que tal adjetivao j havia sido cunhada como uma alternativa outra classificao no melhor sucedida: Msica Clssica. Tal denominao sempre confundiu estudantes e leigos, pois ela assinala tanto um gnero musical como um perodo histrico (final do sculo XVIII, aproximadamente). Pensou-se na expresso msica de concerto, mas nem sempre uma msica concebida como erudita destinada a tal ritual, como, por exemplo, boa parte da produo de Murray Schafer, compositor que regularmente sugere que suas obras sejam executadas em ambientes naturais. Alm disso, freqente o emprego do termo concerto em manifestaes tpicas da chamada Msica Popular, como nos in concert das bandas de Rock. Outra via de aproximao a idia de ritual, que acabamos de mencionar. De fato, muitas vezes se reconhece uma manifestao musical como erudita ou popular por 18

meio de seu contexto ritualstico: o local de apresentao, o tipo de pblico que freqenta e suas atitudes, os instrumentos utilizados, etc. So, entretanto, caractersticas reversveis: com o auxlio da mdia, possvel transportar uma msica de um universo para o instrumental ou para um local especfico de outro gnero. E o pblico continuar identificando, ou melhor, rotulando os fenmenos musicais como de costume. Ser, ento, que no conseguiramos validar a distino erudito X popular por meio do estudo dos elemenos constituintes de ambos os gneros? Em nossa prxis didtica, entretanto, temos visto que a reduo dos fenmenos musicais a seus elementos, com vistas a uma categorizao estilstica ou esttica, costuma produzir uma verborragia tcnica facilmente refutvel. Temos, contudo, que resistir tentao de refutar toda e qualquer abstrao e, ao mesmo tempo, assumir que os conceitos que por ventura aqui venham a ser expostos possam e devam ser futuramente relativizados. Assim, a dicotomia em questo sempre poder ser, em ltima anlise, considerada arbitrria; ela , no obstante, cultural e historicamente estabelecida, como todos os conceitos o so. Talvez, enfim, seja pela via histrica que melhor cercaremos a questo. Durante quase toda a trajetria da Msica Ocidental, podemos identificar sempre duas formas de produo musical: uma elitista, aristocrtica, acadmica, autoral, mais comumente crist, que geralmente associa-se ao conceito de erudito e outra, camponesa, com menos recursos, annima, no raramente pag, que geralmente associa-se ao conceito de folclore3. Conforme o processo de urbanizao foi se intensificando, primeiramente com o surgimento da burguesia ainda no perodo feudal e, depois, com as revolues Francesa e Industrial, e atravs da mtua interferncia entre a cultura europia e a dos povos dominados pelo processo de colonizao, pode-se identificar o surgimento gradativo de um terceiro plo de produo musical (Tagg 1982), que se convencionou chamar de Msica Popular4.

Nos ltimos anos, no Brasil, o termo folclore comeou a ser usado de maneira pejorativa. De modo algum esse o nosso caso. No assumimos, entretanto, ser necessria a adoo de expresses geralmente consideradas mais neutras como msica tnica ou msica tradicional, pois pensamos que se tratam de adjetivaes igualmente ambguas. 4 importante mencionar que tal terminologia funciona especificamente no Brasil, como bem alerta Carlos Sandroni em seu artigo Adeus MPB (in Cavalcante, Eisenberg, Starling 2004). Ele menciona que na Frana, por exemplo, a expresso musique populaire se refere msica folclrica, mas os franceses no cunharam um termo com conotao semelhante que aqui entendemos com a adjetivao popular. Optamos, portanto, por empreg-la na acepo que o senso comum de nosso pas consagrou.

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Msica hbrida em essncia, que basicamente acopla o carter harmnico da Europa com o carter rtmico dos povos negros e indgenas (simplificando bastante para no complicar o panorama) e que muito se legitima, posteriormente, com o surgimento das possibilidades fonogrficas. Msica que se mantm hbrida, continuamente recebendo influncias das mais diversas fontes e, assim, refletindo o dinamismo e o cosmopolitismo tpico de uma cultura fundamentalmente urbana. No que os outros gneros sejam estticos, mas como as produes musicais eruditas e folclricas ainda se sustentam deriva da comercializao da indstria fonogrfica, elas so marcadamente menos volveis s intempries da moda e dos recursos tecnolgicos. exatamente essa interseo que a Msica Popular estabelece entre o erudito e o folclrico que torna to difcil qualquer tentativa de definio esttica de nosso objeto. E, de fato, h uma gama enorme de compositores e peas que transitam sobre essa tnue linha divisria. Na verdade, uma boa parcela da Msica Popular compartilha diversos elementos com os outros dois gneros. No entanto, a Msica Folclrica, em seu percurso histrico, manteve-se alheia a um determinando elemento que tambm se revela estranho quando introduzido em certas situaes da Msica Popular: a escrita musical, a partitura. No queremos dizer que no se usa a escrita nesses gneros, mas sua funo e importncia na Msica Erudita so totalmente diversas. Na maioria das vezes, a partitura utilizada no repertrio popular e folclrico apenas para fins de registro. No mbito popular, no obstante, a escrita se aproxima do inevitvel com a figura do arranjador5. Mas a principal diferena est no fato de que o compositor erudito, no momento mesmo de criao, dialoga intensamente com a escrita, enquanto que o processo de composio nos outros mbitos mais espontneo e a dispensa quase por completo. No que a produo erudita seja avessa espontaneidade: uma boa parte das melodias e temas eruditos surge de forma muito parecida com as canes populares, mas para erigir uma estrutura musical como a de uma sinfonia e para controlar a complexa instrumentao que conforma uma orquestra, a partitura se torna fundamental. Evidentemente esse comentrio nos remete idia de que no a escrita,5

O arranjador aquele que, de posse de um material musical bsico fornecido pelo compositor, organiza texturalmente os elementos j compostos (harmonia e melodia em geral), cria novos elementos para enriquecer a textura (contracantos, frmulas rtmicas de acompanhamento, blocos de acordes) e realiza a orquestrao, escolhe os instrumentos, para todo esse material. Dependendo da complexidade do que ele cria, a escrita apresenta-se como indispensvel. Normalmente ela necessria nos arranjos que envolvem grande quantidade de instrumentos.

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mas sim a forma musical e a instrumentao que poderiam delimitar e definir o mundo musical erudito. Acreditamos, por outro lado, que foi justamente a escrita que permitiu e, de certa maneira, at sugeriu a pesquisa e o desenvolvimento dos compositores nessa direo. Ela constitutiva da chamada Msica Erudita. Vygotsky nos auxilia a compreender como um mediador no caso, a escrita interfere na prpria atividade para a qual ele foi criado:O uso de meios artificiais - a transio para a atividade mediada - muda, fundamentalmente, todas as operaes psicolgicas, assim como o uso de instrumentos amplia de forma ilimitada a 6 gama de atividades em cujo interior as novas funes psicolgicas podem operar.

A Msica Popular como estamos concebendo uma manifestao urbana, intimamente ligada fonografia e hbrida em seus elementos constituintes nasce mais ou menos no momento em que esse desenvolvimento mencionado da msica erudita j era um dado plenamente estabelecido. No obstante, o impulso criador que engendra composies populares e eruditas fundamentalmente diferente quanto necessidade e utilizao da escrita musical e a indiferena do repertrio popular com relao aos aspectos formais e instrumentais no deve ser interpretada como um atestado de inferioridade. Que fique claro desde j que complexidade musical no garante qualidade e que a prpria questo da qualidade nos remete discusso sobre gostos pessoais e filiaes estticas, enfadonho debate que de forma alguma nos interessa. Algumas idiossincrasias do universo popular, portanto, esto intimamente conectadas com a atitude que prescinde da escrita. Dentre as diversas particularidades, a Improvisao , sem dvida, o aspecto mais evidente. Ela se manifesta a todo o momento e no apenas nas sees de solo, onde assume primeiro plano. Cada detalhe do acompanhamento de uma cano popular, cada instrumento que realiza essa funo permeia-se em maior ou menor grau pela improvisao. O prprio ato composicional costuma inclu-la de forma natural. A no obrigatoriedade da escrita e a Improvisao, que interferem em diversas camadas do fenmeno musical, acabam por demandar uma configurao de aprendizagem muito peculiar. Vale dizer que a maioria das academias tradicionais considera indispensvel a utilizao da escrita como suporte para o estudo de Msica. Enfim, os modelos de ensino musical consagrados, histricos, ainda no esto6

Vygotsky, L. S. 1991: p. 62 e 63.

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totalmente adaptados ao contexto da Msica Popular. Como se d, ento, a construo de conhecimento musical neste universo? Como grande parte dos compositores e instrumentistas populares que no tiveram acesso a uma educao musical formalizada adquire o saber necessrio criao e interpretao musicais? Tal conhecimento vinha sendo desconsiderado pelas escolas tradicionais de Msica. Talvez o prprio fato de ele no ser registrado e prescindir da escrita associado diversas outras razes tenha contribudo para essa omisso. Assim, por muito tempo no se concedeu status de conhecimento musicalidade de um percussionista de Samba, por exemplo. Um msico como esse adquire suas habilidades no contato direto com outros msicos, ouvindo suas execues, imitando-as, dialogando com eles e trocando opinies, dicas e macetes informalmente, pela oralidade. Particularmente significativos so os saberes adquiridos pela audio e pela via instrumental. O conhecimento auditivo se refere exposio constante e reiterada a que todo msico se submete cultura sonora que ele almeja participar. O conhecimento mediado pelo instrumento musical se refere ao fato de que a observao da topografia do instrumento e das mos fornece dados que podem ser reformulados como saberes musicais. Aqui caberia uma correta contra-argumentao na qual se poderia afirmar que o conhecimento musical produzido pela audio e pela mediao instrumental no seria exclusividade do universo musical popular; o msico erudito tambm usufrui desses recursos em sua formao. Nesse caso, no se pode esquecer que essas vias de aprendizado so diretamente ancoradas pela escrita musical, conformando, portanto, referenciais tericos de natureza totalmente diversa dos referenciais da Msica Popular. Por exemplo: quando um saber construdo unicamente pelo contato direto com o instrumento, fica registrado na mente do estudante apenas em sua forma visual e topogrfica; quando transferido para a partitura, acaba por se vincular a uma conceituao terica de outra ordem. , portanto, fundamental que se d a devida ateno a essa diferena quando se pretende discutir a produo de conhecimento nos dois universos. De qualquer modo, estamos inevitavelmente tornando patente que a Msica congrega uma grande heterogeneidade de percursos de aprendizado. Isso pode ser bem 22

sentido quando observamos o processo de introduo da Msica Popular nas academias tradicionais, principalmente nas universidades: uma grande tenso se estabelece entre os variados referenciais conceituais dos estudantes. Antes, porm, de pormenorizar essa tenso, se faz necessria uma digresso com o intuito de esclarecer como o gnero popular penetrou paulatinamente no mundo acadmico. Os motivos que levaram as instituies de ensino musical formalizado a abrirem espao para esse repertrio so os mais diversos, mas podemos arriscar que o prprio amadurecimento filosfico que a Cultura Ocidental sofreu, principalmente a partir do final do sculo XIX, quando o relativismo desequilibrou a estabilidade dos conceitos absolutos, fornece pistas para tal atitude. Em nosso campo, tal relativizao foi primordialmente conduzida pelos estudos etnomusicolgicos, que puseram repetidamente em xeque a idia de superioridade esttica da Msica do Ocidente e, mais especificamente, da Msica Erudita; no no sentido de atribuir tal superioridade s culturas marginais estudadas, realizando apenas uma trivial inverso de valores, mas sim no sentido de incentivar o respeito diferena e no de questionar o aprisionamento que a quantificao (maior/menor melhor/pior) assume num universo essencialmente interpretativo como o da arte. Contudo, as pesquisas com enfoque etnogrfico bem como outros estudos tericos das cincias humanas em geral que, da mesma maneira, duvidam de qualquer tendncia eurocntrica so uma realidade j antiga no Brasil. O que explicaria, ento, o atraso que representa o fato de a abertura para o repertrio popular ser to recente, tendo acontecido basicamente a partir da dcada de 90? verdade que esse gnero sempre se mostrou desconfortvel com o academicismo majoritariamente adepto da escrita musical e os interessados em aprender Msica Popular sempre conseguiram adquirir seus conhecimentos prescindindo das escolas tradicionais. O que reverte essa situao? Inmeras razes podem ser levantadas levantamento que certamente constituiria outra pesquisa , mas podemos citar, por exemplo, o crescimento da indstria de entretenimento e fonogrfica a partir da dcada de 70, que ampliou o espao de atuao profissional do msico popular, conseqentemente reduzindo as oportunidades de trabalho com Msica Erudita. Flvio Barbeitas, professor e pesquisador da UFMG, nosso colega na Escola de Msica, em seu artigo Msica, cultura e nao tambm assinala a perda assustadora do espao pblico urbano, 23

espao democrtico que fora essencial para a constituio e desenvolvimento da chamada MPB. Deixemos o leitor um tempo com as belas palavras de Barbeitas:... pertinente apontar as transformaes da vida urbana no Brasil que vm minando as condies que favoreciam exatamente o dilogo e as trocas culturais caractersticas da MPB. Falo especificamente da crescente criminalidade nas cidades, da perda assustadora do espao pblico urbano das ruas e das praas cada vez mais preterido por uma populao amedrontada, alienada e, em parte, exclusivamente preocupada em manter inclumes os seus restritos ambientes privados. O velho abismo social brasileiro ganha aqui um contorno de separao cultural que vai muito alm do parmetro econmico, medido pelo acesso aos bens de consumo. que ao perder-se a rua, perde-se a experincia compartilhada que gera a cidadania, perde-se o espao do dilogo e da mediao. A msica popular brasileira, o que se entende com essa expresso, sempre foi um fenmeno de rua, de praas, de praias, de bares, de festas, de casas abertas. De lugares no 7 excludentes, essencialmente democrticos, inspiradores at de uma certa noo de povo.

Quando dissemos que o espao pblico fora essencial para a constituio e o desenvolvimento da MPB, estvamos subentendendo que essas palavras tambm abarcam a idia de aprendizado, mas que fique explcito: aprendia-se Msica Popular de forma geral, no apenas MPB nas ruas. Seja porque o mercado e a demanda por essa parcela musical se ampliaram, seja porque os lugares no excludentes deixaram de existir, se acreditamos em Barbeitas, e os interessados precisam procurar lugares alternativos e no caso da Msica Popular, o alternativo vem significando justamente o espao mais formalizado, institucional , fato que as escolas de Msica das universidades abrem suas portas para o gnero popular. Mas a absoro ainda tmida e insipiente. Tenses de certa forma inesperadas emergem desse processo. A Msica Popular solicita esforos cognitivos que se fundam principalmente na acuidade auditiva e na observao topogrfica dos instrumentos, bem como sobrecarrega as memrias desacostumadas pela escrita; a Msica Erudita, com todo seu aparato educacional h tempos montado, exige um bom domnio da leitura musical (partitura) e demanda um razovel empenho para a compreenso de diversos sistemas explicativos desenvolvidos numa extensa bibliografia acadmica. Muitas outras diferenas ainda podem ser enumeradas, mas so nos pontos de interseo que os atritos se explicitam; quando as leis mais consagradas da teoria musical se chocam com o empirismo quase sempre indiferente a rigores de nomenclatura e funcionalidade. Emergem, assim, conhecimentos coincidentes, mas que

Barbeitas, F. 2007: p. 143. Artigo publicado no peridico Artefilosofia do Instituo de Filosofia, Artes e Cultura (IFAC) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

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pertencem a nveis lgicos diferentes, que remetem a referenciais constitudos em situaes inconciliavelmente distintas. , ento, das divergncias de perspectiva sobre um mesmo tema que surgem as tenses em sala de aula e que exigem um grande dinamismo do professor, que agora precisa transitar por diversos domnios conceituais com naturalidade e criar condies para que os alunos tambm o faam. Nosso trabalho dedicado a um dos temas que mais incita o debate entre vrios pontos de vista: a Harmonia. Harmonia a disciplina que examina as notas musicais em suas diversas sobreposies, formando os chamados acordes, e se aprofunda na pesquisa sobre a combinao desses acordes. Nessas investigaes uma srie de leis e regras estabelecida, conforme certos procedimentos vo sendo repetidamente encontrados nas obras de diversos compositores. Esse uso reiterado de recursos musicais institui um verdadeiro domnio consensual (Maturana 1997), o qual, em ltima anlise, instaura a prpria linguagem musical, tornando possvel a comunicao entre msicos (compositores) e ouvintes. Giovanni Piana nos auxilia no entendimento desse processo:Um trecho musical eminentemente um objeto cultural a msica antes de mais nada uma prxis social que deve ser considerada na sua integrao com a cultura a que ela pertence. Isso significa que a msica traz consigo o peso de uma tradio que determina no s as modalidades da ao musical, mas obviamente tambm as modalidades da escuta. Por isso, determinados mdulos compositivos se impem cada vez mais com o passar do tempo, gerando hbitos de escuta e, portanto, esquematismos de expectativas na sucesso de eventos que constituem o contedo do trecho musical. Uma prxis que de incio certamente podia ser instvel, tende progressivamente a se estabilizar assumindo a dignidade de uma regra, a ponto de poder manifestar a pretenso de uma justificao objetiva, congnita na prpria natureza do fenmeno sonoro. De fato, no verdade que durante muito tempo se considerou a resoluo da dissonncia na consonncia [...] ser uma regra intrinsecamente conexa com a noo de dissonncia e com a forma da relao entre consonncia e dissonncia? Ela, ao contrrio, tem o seu ponto de apoio somente nas prticas da arte e destas prticas no se pode dar nenhuma justificao alm do fato de serem usadas. Assim, no fundo de uma aparente necessidade h, 8 afinal, uma acidentalidade de princpio.

Essa pesquisa tambm focaliza o estudo de Harmonia associado ao chamado Sistema Tonal, aparato terico no qual a maior parte das obras musicais produzidas no mundo ocidental se baseia. A prpria dicotomia consonncia X dissonncia mencionada por Piana foi erigida congruentemente com a gnese desse sistema. Apesar da grande difuso e do generalizado emprego do tonalismo, o repertrio erudito, desde o incio do sculo XX, em grande medida se caracteriza por ter colocado em xeque os seus ditames. O repertrio popular, por outro lado, partindo das configuraes8

Piana, G. 2001: p. 19 e 20.

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harmnicas que os compositores clssicos desenvolveram at fins do sculo XIX, ampliou e, importante dizer, de forma sistemtica em vrios aspectos os recursos do Sistema Tonal. Esse vnculo que assinalamos entre a harmonia dos temas populares com os exemplares do final do Romantismo foi conseguido exclusivamente pela via sonora, auditiva, ou seja, geralmente os msicos populares desconhecem a tradio histrica do estudo da Harmonia. Assim, como antes afirmamos, as publicaes tericas que eles produzem costumam entrar em conflito com as leis h muito estabelecidas pelas obras e pelos tratados oriundos do universo erudito. Esses tratados, por sua vez, no abarcam os aludidos novos recursos do universo popular. perfeitamente possvel, contudo, unir os conhecimentos historicamente construdos pela tradio musical europia com os novos desenvolvimentos da Harmonia, principalmente os proporcionados pelo Jazz, pela MPB, pelo Rock e pelo Pop. Essa unio vem sendo testada em nossas aulas de Improvisao na UFMG desde 1999. A disciplina Improvisao aborda, fundamentalmente, as possibilidades de criao de melodias em tempo real ou seja, inveno e execuo devem ocorrer ao mesmo tempo. Simplificando um pouco o conceito de Melodia, pode-se dizer que ela , basicamente, a justaposio de notas musicais, em contraposio com a Harmonia, que versa sobre os sons simultneos. No obstante, os dois parmetros musicais so intimamente ligados: tanto a Harmonia em grande medida se baseia em conjuntos de notas justapostas, como a Melodia quase sempre se apia nos chamados acordes. Da o sentido de estudarmos Harmonia com profundidade numa aula de Improvisao. Em 2004 e 2005 filmamos 32 horas dessas aulas para uma investigao mais pormenorizada da aplicao dessa proposta que agrega diversos universos estilsticos. Com o auxlio da noo de Perfil Conceitual e da ferramenta de anlise de discurso que mais acima mencionamos poderemos, enfim, no apenas definir com mais propriedade e corroborar a viso mltipla sobre Harmonia que viemos construindo, como poderemos assinalar quais as situaes discursivas que se revelaram mais propcias instaurao dessa viso num plano social-didtico.

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3) ESTRUTURA DA TESE No primeiro captulo iremos expor a fundamentao terica dessa pesquisa. Detalharemos o histrico e os princpios da noo de Perfil Conceitual como proposta por Mortimer (2000) e discutiremos os fundamentos que aliceram o aparato analtico desenvolvido principalmente por Mortimer e Scott (2003). A discusso sobre o funcionamento do mesmo, bem como sua transposio ao universo musical, ser deixada para o Captulo V, que onde investigaremos o Perfil Conceitual de Harmonia que estamos erigindo num contexto de sala de aula. O Captulo II ser dedicado metodologia. Explicaremos como foi feita a ampla pesquisa que fundamenta as consideraes sobre Harmonia que regem os trs captulos principais (III, IV e V) e descreveremos o caminho bibliogrfico por meio do qual chegamos aos conceitos educacionais que justificam nossa adoo do modelo de Perfil Conceitual e da ferramenta de anlise de discurso. Certos recursos metodolgicos e revises bibliogrficas mais especficas sero trabalhados diretamente nesses captulos, como a descrio mais detalhada do processo de seleo e de coleta de dados (ver Captulo V) e algumas fundamentaes mais localizadas, como a noo de Discurso que Gee (1999) sugere (ver Captulo V), a reavaliao das Leis da Harmonia a partir de Koellreutter (1978) (ver Captulo III), ou a discusso sobre a viso de diversos autores quanto Harmonia Funcional (ver Captulo IV). Temos a inteno, com esses deslocamentos, de promover maior clareza, pois aproximaremos diversas consideraes conceituais e procedimentais de suas aplicaes prticas. O Captulo III basicamente prope o Perfil Conceitual de Harmonia. Identificaremos a gnese e as caractersticas distintivas das diversas formas de abordar o assunto. Um razovel aprofundamento tcnico-musical j se far necessrio e ser auxiliado e estruturado pela delimitao das quatro Leis da Harmonia e pela seleo de uma srie de temas polmicos que sempre permeiam o estudo da disciplina. No Captulo IV, realizaremos um detalhamento tcnico ainda mais radical desses temas, tendo como referncia uma das maneiras de pensar a Harmonia, justamente aquela que adotamos em nossas aulas de Improvisao. Em resumo faremos um inventrio dos aspectos da Harmonia que de uma forma ou de outra precisavam ser 27

revisados ou mesmo criados, haja vista que as publicaes existentes sistematicamente omitem certos procedimentos j consagrados pelo uso ou mesmo desconsideram teorizaes histricas que j haviam se demonstrado eficientes. No Captulo V, faremos uma anlise de um contexto de ensino-aprendizagem, buscando compreender como o Perfil Conceitual de Harmonia se configura discursivamente. Alm da apresentao dos detalhes metodolgicos que optamos por descrever a, realizaremos a microanlise de 8 situaes discursivas polmicas e ricas em contedo, onde teremos a oportunidade de observar o embate dos diversos conceitos sobre Harmonia. Na concluso revisitaremos os pontos mais marcantes da pesquisa e apontaremos aspectos que podem vir a ser trabalhados em futuras investigaes.

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Captulo I:

Referencial Terico1) PERFIL CONCEITUAL A noo de Perfil Conceitual uma ferramenta educacional oriunda do universo da cincia escolar. Se referindo especificamente a esse mbito, Francisco Coutinho pesquisador que trabalhou no mesmo programa de Ps-Graduao que fomenta o presente trabalho , em sua tese de doutorado9, traa um rpido porm preciso histrico das principais tendncias educacionais das ltimas dcadas e afirma:das preocupaes sobre o que e como ensinar, sobre como devemos organizar os conhecimentos para facilitar sua aquisio, passou-se preocupao sobre como de fato aprendemos e sobre como adquirimos nossas crenas. Houve, portanto, uma mudana de enfoque da lgica do 10 currculo para a lgica da aprendizagem.

Dentre as diversas correntes que tentam elucidar como se processa a aprendizagem de conceitos cientficos, destacam-se as pesquisas que pressupem que s se constri um novo conhecimento a partir daquilo que j se conhece. Assim, as idias prvias dos alunos ou, como tem sido mais comum encontrar, as concepes alternativas dos estudantes comearam de algum modo a ser consideradas. Dos modelos de ensino que levam em conta a bagagem dos aprendizes, o modelo de Mudana Conceitual talvez tenha sido o mais difundido. Eduardo Mortimer, em seu Linguagem e Formao de Conceitos no Ensino de Cincias (2000), faz um razovel detalhamento das diversas nuances que ele adquire nas mos de diversos autores, mas o que parece comum a todas a premissa de que os pontos de vista que os estudantes trazem de antemo geralmente so incompatveis com os conceitos defendidos pela comunidade cientfica e devem, portanto, ser substitudos. Mortimer divide as pesquisas que adotam a teoria de Mudana Conceitual em duas tendncias. A primeira pressupe ser importante explicitar as idias prvias dos estudantes e freqentemente lana mo do conflito como um recurso essencial para produzir um desequilbrio cognitivo e assim gerar a necessidade de mudana. Mortimer menciona que as lacunas tambm promovem esse desequilbrio, muito embora afirme9 10

O Perfil Conceitual do Conceito de Vida (2002). Coutinho, F. A. 2002: p. 10.

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que a maioria dos autores considera para ele erroneamente o conflito como mais efetivo. Na verdade o autor traa um verdadeiro paralelo com a teoria da equilibrao de Piaget e discute como funcionam os processos de assimilao e de acomodao no decorrer de uma mudana conceitual. A segunda tendncia desse universo de pesquisa aquela que no pensa ser importante a explicitao das idias prvias dos estudantes. Geralmente essa corrente adota a analogia como um dos principais recursos de ensinoaprendizagem: procura-se resgatar intuies corretas dos alunos e ofertar situaes anlogas que contm ou representam o conhecimento almejado, construindo pontes entre a viso cotidiana e a cientfica. Diversos problemas podem ser apontados contra essa linha, porm Mortimer simplesmente afirma que as analogias dificilmente substituem a riqueza promovida pela explicitao e discusso das idias alternativas. Para ele, alm de auxiliar na aquisio de conhecimentos cientficos, o processo de explicitao mais propcio formao de indivduos crticos. Em seguida, Mortimer erige uma srie de contundentes crticas ao modelo de Mudana Conceitual, das quais destacaremos duas. Em primeiro lugar ele afirma que no temos como cancelar ou neutralizar nosso conhecimento cotidiano do mundo e isso, obviamente, tambm vale para os cientistas. A prpria linguagem social (Holquist 1981 apud Mortimer, Scott 2003) que a comunidade cientfica paulatinamente constri para lidar com os fenmenos que ela se prope investigar parte indubitavelmente da linguagem cotidiana para no falar das diversas vezes que sentimos necessidade de traduzir os enunciados mais sofisticados numa linguagem mais de acordo com o nosso dia a dia. Alm disso e esta a segunda crtica na cincia como um todo, e na qumica em particular, temos muitos exemplos de aplicaes de conceitos j tidos como ultrapassados, mas que so teis em determinados contextos11. Em suma, diferentes formas de ver o mundo convivem num mesmo indivduo ou num mesmo grupo social. Mortimer conclui, portanto, no ser imperativo o abandono pelos estudantes de suas idias iniciais: apenas necessrio identificar o domnio em que cada ponto de vista se mantm vlido. Assim ele cria um modelo de ensino alternativo, a noo de Perfil Conceitual, que no preconiza esse abandono. Mortimer aponta diversos autores onde tal modelo j estava latente, mas o desenvolve principalmente a partir da

11

Mortimer, E. 2000: p. 64.

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proposta de Perfil Epistemolgico apresentada por Gaston Bachelard em seu Filosofia do No (1972). Ambas as teorias trabalham com a idia de que diversos significados convivem num mesmo conceito, formando reas conceituais: Bachelard as batiza de filosofias ou sistemas filosficos de pensamento e Mortimer de Zonas Conceituais. Mortimer tambm resgata de Vygostsky (1991) a direcionalidade socialindividual dos processos de internalizao para, assim, poder afirmar que as categorias conceituais que convivem num indivduo podem ser generalizadas a um grupo social ou at a toda uma cultura , j que foram a partir da que elas foram constitudas. O grau com que cada zona ou filosofia se manifesta em cada indivduo ainda varivel e ambos os autores mencionam a possibilidade dos domnios conceituais serem organizados de forma hierrquica, isto , certos pontos de vista podem e costumam ser considerados como superiores ou mais abrangentes que outros. Mas isso no significa que as nuances menos valorizadas devam ser excludas, como determinam os adeptos do modelo de Mudana Conceitual. Preocupado tambm com formas no cientficas de explicao da realidade e interessado em processos cognitivos dois aspectos que Bachelard no contempla , Mortimer muda o nome de Perfil Epistemolgico para Perfil Conceitual e estabelece os princpios que o transformam num modelo de ensino. Dois aspectos metodolgicos dessa teoria nos parecem fundamentais. Primeiro o professor deve identificar as diversas idias que ele prprio e os alunos de uma turma j trazem sobre o tema em foco, comparando-as e unindo-as em zonas de mesmo nvel epistemolgico. Em segundo lugar, o professor deve permitir que os alunos se conscientizem das mesmas, entendam seus diferentes domnios de atuao e aprendam a transitar pelos diversos nveis conceituais. claro que, para tanto, ele tambm deve fornecer os subsdios para a resoluo dos conflitos e para o preenchimento das lacunas que impedem esse trnsito. Apesar de sua origem no universo didtico das cincias, acreditamos que a transposio desse aparato terico ao universo artstico no engendra nenhum grande problema justamente por valorizar, em essncia, a pluralidade de significados, caracterstica que, evidentemente, permeia todas as artes. Tambm plurais so os tipos de formao que os estudantes de Msica apresentam, principalmente no Brasil. Vale lembrar que, em nosso pas, no h nenhuma regularidade de ensino musical nas escolas 31

comuns. Dessa forma, os interessados buscam os mais diversos caminhos de aprendizagem: a troca direta de informaes em crculos de amigos (aspecto da maior importncia numa arte que em grande medida se configura coletivamente), aulas particulares, cursos livres de msica, festivais, etc. A aplicao da noo de Perfil Conceitual na rea musical se deparar, portanto, com um campo rico de idias provenientes tanto dos estudantes quanto das teorias j estabelecidas. Nossa opo tambm se fundamenta no fato de estarmos trabalhando com um parmetro musical de considervel amplitude, a Harmonia. Com efeito, Mortimer prev que seu modelo de ensino funciona melhor na investigao de conceitos amplos como tomo, Vida, Fora, etc. Coutinho (2002) autor que citamos mais acima e que investiga o Perfil Conceitual de Vida , enriquece essa premissa resgatando do artigo Defining Life, Explaining Emergence de Claus Emmeche (1997) a noo de ontodefinies,para se referir quelas categorias muito amplas que se apresentam como os conceitos mais gerais de um determinado campo cientfico [...] As ontodefinies se situam na fronteira entre a cincia e a metafsica e cumprem papel integrativo dentro do paradigma cientfico do qual fazem 12 parte.

Se abordarmos historicamente o estudo da Harmonia, veremos que o perfil de sua evoluo no muito diferente das transformaes epistemolgicas que os diversos campos cientficos vm sofrendo, ou seja, surgem tantas propostas de abordagem e de ensino de Harmonia quanto formas de conhecer, por exemplo, os tomos. No seriam, portanto, diversas Harmonias? Acreditando no papel integrativo das ontodefinies, temos justamente a pretenso de fornecer subsdios para que seja possvel, em ltima instncia, negar de forma substancial e fundamentada a frase do aluno da UFRJ So Harmonias diferentes13 com a qual iniciamos esse trabalho. 2) FUNDAMENTOS TERICOS DA FERRAMENTA DE ANLISE DE DISCURSO Como informado na Introduo, o funcionamento da ferramenta de anlise de discurso que adotamos e sua transposio ao universo musical sero detalhados no Captulo V, Perfil Conceitual de Harmonia e a sala de aula, o que tem a inteno de12 13

Coutinho, F. A. 2002: p. 5. Feichas, H. 2006: p. 155.

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facilitar a compreenso dos critrios e das anlises que l apresentaremos, j que os diversos procedimentos e termos dessa metodologia analtica ficaro mais prximos do texto que os emprega. O presente espao, portanto, est reservado explicitao dos fundamentos que levaram os autores14 da ferramenta a constru-la do modo como o fizeram. A pluralidade de significados no s est na raiz e na gnese da noo de Perfil Conceitual, como em grande medida se revela como um dos princpios fundamentais da estrutura de anlise em foco. Mortimer e Scott (2003) sugerem que toda palavra encerra duas foras opostas: um componente estvel (fora centrpeta), que tende a uniformizao dos significados; e um componente varivel (fora centrfuga), que faz o significado depender do contexto. Naturalmente, ambas as foras esto em permanente dilogo, ou seja, a construo de significados um processo dialgico. difcil falar sobre dilogo ou dialogismo sem fazer referncias obra do importante terico russo Mikhail Bakhtin (1895 1975). Alm da polissemia intrnseca das palavras, precisamos resgatar a noo de enunciado que ele prope. Para Bakhtin, o enunciado se constitui como o principal elo na cadeia da comunicao discursiva15 e, como tal, sempre conjuga uma atitude responsiva pois responde aos enunciados que o antecederam , com uma atitude que requer e que at antecipa uma resposta. Ao lado da idia de enunciado jaz outro conceito importante, complementar, o de alteridade: nossos enunciados se envolvem de responsividade porque pressupomos um outro a quem respondemos ou de quem esperamos uma resposta. Os outros povoam os discursos de cada indivduo. O dialogismo bakhtiniano em grande medida se funda na noo de que todo enunciado encerra mltiplas vozes. No obstante Bakhtin citar situaes discursivas onde se sente a tendncia fixao de um nico ponto de vista, um enunciado completamente monolgico , para ele, uma impossibilidade. Mas os outros no precisam estar presentes para o estabelecimento de dilogo. Mesmo quando sozinhos, produzimos respostas s questes que a realidade nos coloca e14

Estamos aludindo principalmente aos pesquisadores Eduardo Mortimer e Philip Scott, autores do livro Meaning making in secondary science classrooms (2003). Excetuando-se essa, todas as publicaes que utilizaremos para a descrio do funcionamento da ferramenta no Captulo VI so artigos. nela que encontramos, portanto, a maior parte dos pressupostos que aqui pretendemos expor. 15 Bakhtin, M. 2003: p.289

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o fazemos de forma muito semelhante de uma interao verbal entre duas pessoas. Essa a maneira pela qual pensamos. H quem diga que no dominamos um conceito se no conseguimos verbalizar sobre o mesmo. Embora isso seja discutvel uma vez que existem conceitos que se estabelecem em linguagens diferentes da verbal, como a linguagem musical ou a matemtica , tal idia aponta para a intrnseca relao entre pensamento e linguagem, como de forma marcante propuseram o psiclogo russo Lev Semenovich Vygotsky (1896 1934) em seu livro no coincidentemente chamado Pensamento e Linguagem (2001) e seus seguidores. Tambm no por acaso que Heidegger diz em Sbre o Humanismo: A linguagem a casa do Ser. Em sua habitao mora o homem.16 Vygotsky uma figura central da presente fundamentao terica no apenas por aproximar o pensar do falar, mas tambm por lembrar da origem social de toda interao. Mortimer e Scott nos auxiliam:primeiro encontramos novas idias (novas para ns, pelo menos) em situaes sociais onde essas idias so ensaiadas entre as pessoas [...] As palavras, gestos e imagens usadas nas interaes 17 sociais fornecem justamente as ferramentas necessrias ao pensamento individual .

Essa passagem do social ao individual, conhecida como internalizao, o principal alicerce da teoria propagada por Vygotsky. Ele assim a manifesta:Um processo interpessoal transformado num processo intrapessoal. Todas as funes no desenvolvimento da criana aparecem duas vezes: primeiro, no nvel social, e, depois, no nvel individual; primeiro, entre pessoas (interpsicolgica), e, depois, no interior da criana (intrapsicolgica). Isso se aplica igualmente para a ateno voluntria, para a memria lgica e para a formao de conceitos. Todas as funes superiores originam-se das relaes reais entre 18 indivduos humanos.

Se encontramos novas idias em situaes sociais e, por meio de um dilogo tanto externo (no plano social mesmo) quanto interno (em nossa mente), aprendemos a dar sentido s mesmas, pode-se entender a internalizao como o prprio processo de aprendizagem. exatamente esse o raciocnio que caracteriza a perspectiva de origem vygotskyana conhecida como sociocultural. Assim, quando se pretende compreender como as pessoas pensam ou constroem significados, importante comear investigando como elas se comunicam e interagem.16 17

Heidegger, M. 1967: p. 24. Mortimer, Scott. 2003: p. 9 e 10. No original: we first meet new ideas (new to us, at least) in social situations where those ideas are rehearsed between people [...] The words, gestures and images used in the social exchanges provide the very tools needed for individual thinking (a traduo nossa). 18 Vygotsky. L. S. 1991: p. 64.

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Mortimer e Scott no por acaso resgatam a importncia da interao verbal e lhe do um verdadeiro destaque no livro Meaning making in secondary science classrooms (2003). Que desde j fique claro que eles no desconsideram as formas de comunicao que vo alm da palavra falada ou escrita, nem negligenciam os diversos recursos que enriquecem o processo de ensino-aprendizagem nas aulas de cincias. Mencionam o significativo papel dos gestos, das figuras, dos grficos, dos diagramas, etc., mas elegem o discurso verbal como a principal via de comunicao, at porque as outras possibilidades comunicativas no falam por si mesmas, ou seja, a linguagem verbal que no fim lhes d significado. Alm disso, os professores tomam conhecimento da evoluo cognitiva de suas turmas preponderantemente pela fala dos alunos. Usamos a palavra resgatam porque Mortimer e Scott, logo no incio do livro, aludem a algumas configuraes de aula onde claramente se verifica uma desvalorizao do dilogo, quando no sua ausncia completa. Destacamos trs tipos: 1) as aulas essencialmente expositivas, com pouca ou nenhuma interao, no obstante termos conscincia de que esse gnero de aula vem se tornando cada vez mais raro; 2) as aulas com muita interao, mas quase sem espao para as vozes dos estudantes, isto , aquelas em que o professor almeja um ponto de vista e aos alunos s permitido o preenchimento das lacunas; e 3) um gnero de aula muito comum no mbito da cincia escolar, a saber, aquele em que uma profuso de atividades e experimentos so propostos, mas com pouco apoio do discurso verbal, este sim essencial para que todas as tarefas adquiram algum significado. Mortimer e Scott erigem, enfim, uma ferramenta analtica que valoriza especialmente a interao e o dilogo este no sentido bahkhtiniano de mltiplas vozes. Como todo aparato de anlise, ele aplicado a posteriori. Os prprios autores ressaltam, contudo, que s faz sentido analisar contextos em que o professor compartilha mais ou menos das mesmas preocupaes que os pesquisadores. No fim das contas a ferramenta acaba ajudando esses professores a se conscientizarem dos recursos discursivos que promoveram melhores ou piores condies para a aquisio de significados pelos estudantes. Naturalmente, o professor interessado pode programar modificaes em suas estratgias discursivas com base nos resultados obtidos.

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No caso do contexto do livro, os significados almejados eram os que transitam pelo ensino da cincia escolar. Mais acima citamos a expresso linguagem social, um outro conceito atribudo a Bakhtin. Para Mortimer e Scott, aprender cincia dominar a linguagem social da cincia, a qual pode ser definida como uma forma distintiva de falar e de pensar sobre o mundo natural validada pela comunidade cientfica. Os autores especificam mais e afirmam estarem trabalhando na verdade com a linguagem social da cincia escolar. A presente pesquisa, por sua vez, se dedica a elucidar a linguagem social da Msica ou mesmo a linguagem social da Harmonia musical. Assim os indivduos aos poucos vo adquirindo diversas linguagens sociais, cada uma delas com suas apropriadas formas de falar e de conhecer. Wertsch, em Mind as Action (1998), acaba chamando-as de cultural tools (ferramentas culturais) e com o auxlio delas que aprendemos a lidar com os diferentes contextos da realidade. No Captulo V detalharemos com mais cuidado cada aspecto da ferramenta de anlise, mas aqui j podemos fazer um apanhado geral do seu funcionamento. Como Mortimer e Scott assumem, para o contexto que investigam, que aprender dominar as diversas linguagens sociais que transitam no universo escolar e que os alunos adquirem essas linguagens no prprio plano social e por meio da fala, o aspecto central da ferramenta acaba sendo a abordagem comunicativa. Eles estabelecem duas linhas analticas complementares: 1) a presena de interao verbal (discurso interativo e discurso no interativo) e 2) a dicotomia discurso dialgico X discurso de autoridade. O discurso dialgico aquele em que vrias vozes se manifestam e o de autoridade o que tende fixao de apenas um ponto de vista. As duas linhas combinadas produzem quatro tipos de abordagem: discurso interativo dialgico, discurso interativo de autoridade, discurso no interativo dialgico, discurso no interativo de autoridade. Apesar de haver uma valorizao das abordagens dialgicas, nem sempre os contextos didticos se configuram com tempo suficiente para que tudo seja assimilado da maneira mais bakhtiniana. Muitas vezes mais fcil resolver um conflito cognitivo ou preencher uma lacuna apenas expondo a informao necessria para tanto, isto , empregando um discurso no interativo e/ou de autoridade. Isso de certo modo previsto na seo The rhytnm to the classroom discourse19 e numa outra publicao, o

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Mortimer, Scott. 2003: p. 66.

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artigo The tension between authoritative and dialogic discourse: a fundamental charcteristic of meaning making interactions in high school science lessons (Scott, Mortimer, Aguiar 2006). Ambos os textos assinalam que as quatro abordagens comunicativas se alternam de diversas maneiras. Para cada fase didtica h um tipo discursivo mais apropriado. Um outro aspecto da ferramenta, os propsitos de ensino, explora justamente essas fases: 1) criando um problema; 2) explorando a viso dos estudantes; 3) introduzindo e desenvolvendo a estria cientfica; 4) guiando os estudantes no trabalho com as idias cientficas e dando suporte ao processo de internalizao; 5) guiando os estudantes na aplicao das idias cientficas e na expanso do seu uso, transferindo progressivamente para eles o controle e responsabilidade por esse uso; 6) mantendo a narrativa: sustentando o desenvolvimento da estria cientfica20. Cada um desses propsitos se associa melhor com determinadas abordagens comunicativas. Exemplos: 1) para explorar a viso dos estudantes essencial que haja interao; 2) para promover internalizao, o discurso dialgico parece ser o mais apropriado, pois permite a integrao das vises prvias dos estudantes com o conhecimento novo que se pretende internalizar; 3) a estria cientfica geralmente apresentada pelo professor (sem interao), quem provavelmente transitar entre o discurso dialgico e o de autoridade; e assim por diante... Aqui se torna patente que a ferramenta analtica pressupe que o processo de ensino-aprendizagem totalmente conduzido pelo professor. No universo escolar isto , de fato, o mais freqente: o professor que determina as fases didticas, que direciona ou induz ao estabelecimento de um tipo discursivo, que controla o contedo a ser disponibilizado, etc. Mortimer e Scott propem um contraste a essa tendncia ao analisarem episdios em que a atitude do professor se transfere para alguns alunos, inclusive o seu gnero discursivo (Bakhtin 2003)21. Para tanto, o plano de aula tem que fornecer condies para que esses alunos assumam esse papel, o que geralmente 20

Os propsitos foram extrados do artigo Atividade discursiva nas salas de aula de cincias: uma ferramenta sociocultural para analisar e planejar o ensino de Mortimer e Scott (2002). 21 Wertsch, de forma sinttica, nos auxilia a diferenciar os gneros discursivos das linguagens sociais: Em contraste com os gneros de discurso, que so ligados a tipos de situaes discursivas, Bakhtin associava linguagens sociais com grupos particulares de falantes. (Wertsch, J. V. 1998: p. 76) (No original: In contrast with speech genres, which are tied to types of speech situations, Bakhtin associated social languages with particular groups of speakers. a traduo nossa). Contudo, ele ressalta que as duas maneiras de categorizar os enunciados esto interligadas de modo complexo.

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conseguido por meio de trabalhos em grupo. O nosso contexto, entretanto, universitrio e, como tal, proporciona uma situao social mais rica quanto a essa questo hierrquica, o que ficar claro no Captulo V. Tanto mais comum que alunos assumam o papel do professor sem nenhum plano de aula especial ou seja, mesmo numa aula tradicional, expositiva, essa troca de papel costuma ocorrer , como nem sempre se pode atribuir ao professor o controle do contedo, das fases didticas e das estratgias discursivas. Mais outros trs aspectos completam a estrutura analtica: 1) as intervenes do professor, que compartilha pontos comuns e se relaciona de modo intrnseco com o aspecto propsitos de ensino22; 2) os padres de interao o tridico I R A e as cadeias I R F R F... (onde I = Iniciao, R = Resposta, A = Avaliao e F = Feedback), que enriquece a anlise dos turnos com uma srie de informaes adicionais; 3) e as discusses sobre contedo. A presente pesquisa no se dedica exclusivamente anlise de discurso e uma considervel importncia foi dada justamente ao aspecto contedo. Os amplos Captulos III e IV so inteiramente dedicados construo do Perfil Conceitual de Harmonia. No Captulo III discutiremos um pouco sobre a pluralidade de significados que a palavra Harmonia encerra, investigaremos o processo gentico das 4 zonas conceituais que identificamos 1) Zona Auditiva-Instrumental; 2) Zona Histrica Clssica; 3) Zona Histrica Popular; 4) Zona Histrica Expandida e faremos uma caracterizao geral, mas no superficial, das mesmas. O Captulo IV detalha com profundidade uma delas, a Zona Histrica Expandida, justamente o paradigma que desenvolvemos e adotamos nas aulas que foram filmadas. O no menos amplo Captulo V ser dedicado anlise de discurso exatamente para permitir que lancemos um olhar crtico sobre nossa prpria prtica didtica, j que estamos envolvidos com a criao e com o ensino dos elementos constituintes de uma das zonas conceituais. A nfase dialgica da ferramenta nos ajudar a perceber em que momentos tentamos impor pela autoridade esse paradigma e em que momentos fomos mais didaticamente efetivos, seja porque havia entre professor e alunos uma natural concordncia quanto a determinado

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interessante que esse aspecto seja omitido em alguns dos artigos que usamos para o detalhamento do funcionamento da ferramenta no Captulo V (Ver sub-seo Intervenes do professor da seo 2) Ferramenta de anlise de discurso do Captulo V).

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assunto, seja porque fomos mais dialgicos e assim permitimos que os estudantes expressassem suas idias em genuno e saudvel dilogo com as que vnhamos propondo. De todo modo, a ferramenta de anlise nos auxiliar a erigir uma verdadeira caracterizao discursiva do Perfil Conceitual de Harmonia no plano social-didtico escolhido.

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Captulo II:

Metodologia1) DADOS Essa pesquisa constituda por duas aes que se complementam. Uma mais terica, centrada sobre aspectos relativos questo do contedo de uma disciplina, e outra mais voltada para a coleta e avaliao de dados, os quais so provenientes de filmagem. Vale ressaltar que dados no falam por si mesmos, como bem nos ajuda Frederick Erickson: Uma fita de vdeo em si no dado. um recurso para a construo de dados, uma fonte de informao contendo dados potenciais a partir dos quais verdadeiros dados devem ser definidos e procurados23. Er