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FÁBIO RÉGIO BENTO TÓPICOS DE SOCIOLOGIA E ÉTICA SOCIAL Estudar para mudar a sociedade

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FÁBIO RÉGIO BENTO

TÓPICOS DE SOCIOLOGIA E ÉTICA SOCIAL

Estudar para mudar a sociedade

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JULHO 2008

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Sumário

Introdução

Capítulo 1 – Sociologia geral

Capítulo 2 – Campo como utopia da cidade

Capítulo 3 – Realismo, pessimismo e reformismo

Capítulo 4 – A questão social e a construção democrática no Brasil

Capítulo 5 – Televisão, publicidade e liberdade

Sobre o autor

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Nesta coletânea de ensaios sobre sociologia e ética social insistiremos no caráter não somente descritivo, mas, também, prescritivo da sociologia. A prescrição de tratamentos, precedida pela cognição descritiva dos problemas, é uma característica da sociologia crítica que não deve ser perdida.

Pensadores revolucionários como Karl Marx, e reformistas como Eduard Bernstein e Carlo Rosselli tinham em comum o desejo de estudar a sociedade para transformá-la.

O trabalho de cognição acompanha o desejo de mudanças na sociologia crítica. Renomados sociólogos latino-americanos concluíram que “o percurso feito pelas Ciências Sociais da América Latina esteve sempre fortemente ligado à análise dos problemas concretos – macro ou micro, segundo os períodos e países – assim como à vontade dos cientistas sociais de incidir sobre tais problemas”1.

Propostas revolucionárias de mudanças sociais entraram em crise a partir dos eventos de 1989 (crise do socialismo real e das utopias revolucionárias), mas não deveríamos permitir a perda pelo ralo da história do ardor pelas mudanças que animou as pesquisas de tantos sociólogos críticos, reformistas ou revolucionários.

Este livro destina-se, principalmente, aos professores de Sociologia (no ensino médio e cursos de graduação) e aos movimentos sociais e partidos políticos de orientação reformadora.

1 TRINDADE, Hélgio; GARRETÓN, Manuel; MURMIS, Miguel; REYNA, José; SIERRA, Gerónimo. Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada: Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai. In: TRINDADE, Hélgio (org.). As Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada – 1930-2005. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006, p.375.

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CAPÍTULO 1SOCIOLOGIA GERAL

1.QUESTÕES METODOLÓGICASA análise dos fatos sociais pela sociologia é um estudo que se faz a partir dos pés do

observador, que estão fixados no tempo (história) e no espaço (geográfico). A cabeça do observador pensa as informações captadas no ambiente onde os seus

pés estão fixados. Ou seja, se faz sociologia com a cabeça, mas por meio dos pés: observação do ambiente onde o pesquisador está inserido.

A sociologia é prática, ou ao menos têm uma intenção prática. Não gosta de ser confundida com a filosofia social porque utiliza métodos de estudo diferentes.

Não estamos afirmando que a sociologia seja melhor que a filosofia social. Estamos afirmando que as duas são diferentes, mesmo se tantos alunos, não habituados às discussões metodológicas, freqüentemente as confundem.

A sociologia, ao contrário da filosofia social, precisa ser física, baseada em fatos, em experiências; e a filosofia pode ser metafísica, pensamento situado além do físico, sem a necessidade de se sustentar nos fatos (físicos), nas experiências (físicas). A filosofia social pode prescindir do físico, mas a sociologia não.

Metafísica é palavra grega que significa para além do físico. A filosofia metafísica prescindia dos fatos (do físico) e se concentrava no além do físico. Mas não devemos confundir metafísica (além do físico) com espiritualidade. Metafísica não se refere à religião, mas ao mundo das idéias. Não é o mundo dos espíritos, mas um modo característico de pensar.

Os fatos (físicos) são obrigatórios para a sociologia, que cria suas construções racionais a partir dos dados obtidos pela observação das experiências.

Para a filosofia social os fatos não são obrigatórios. Pode ser suficiente a capacidade de especulação (racional) do filósofo.

A sociologia estuda sociedades reais, grupos sociais reais, experiências vividas e não imaginadas. Estuda o mundo real e não o que gostaríamos que existisse.

Pode parecer supérfluo escrever o que estamos escrevendo, mas vários sociólogos já constataram que tendemos a tratar mais sobre o mundo que gostaríamos que existisse do que sobre o mundo que realmente existe.

E quando adotamos tal metodologia ao avesso nossa compreensão dos fatos fica comprometida.

Há quem goste mais de falar sobre como será um dia sua vida do que sobre como ela é de fato hoje. Claro que sonhar com uma vida melhor é louvável (idealismo), mas sem negligenciar a necessidade da descrição detalhada da situação real (realismo). A distinção entre o que é o real e o que seria o ideal é importante na compreensão dos fatos.

O sonho (futuro) pode atrapalhar a descrição da situação real (presente) e, por sua vez, impedir a realização do próprio sonho. O sonho, quando mal-sonhado, pode atrapalhar a realização do próprio sonho. É o que chamamos de metodologia ao avesso.

Tal atitude metodológica equivocada corresponde à expressão popular “colocar a carroça na frente dos bois”.

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Para a sociologia, num primeiro momento a realidade deve ser descrita (o boi) para somente num segundo momento serem feitas avaliações e indicações de decisões para o futuro (a carroça). O problema é que na ânsia de serem obtidos resultados imediatos, a análise descritiva dos fatos é mal feita, feita pela metade, incompleta, e, assim, são indicados remédios errados para doenças mal identificadas.

Portanto, antes de pensarmos qualquer coisa sobre o futuro, deveríamos pesquisar com clareza a situação real dos fatos no presente.

Tal preocupação metodológica é negligenciada pelos sonhadores idealistas, mas não pelos sonhadores realistas.

O sonhador realista sonha e prepara um futuro melhor para si e sua comunidade atravessando corajosamente o túnel às vezes doloroso da realidade. Ele sonha com os pés-no-chão, fincados no tempo presente e no seu território específico.

Realista é a postura de quem analisa o real como condição prévia para qualquer raciocínio ideal.

Pelo realismo descrevemos o real; e pelo idealismo julgamos os fatos e prescrevemos soluções ideais com base em nossos valores morais.

Realismo e idealismo podem conviver juntos, mas a descrição do real deve PRECEDER a avaliação moral dos fatos e a prescrição de soluções.

Somos rápidos demais nos julgamentos e negligentes na descrição. Julgamos sem conhecer o que estamos julgando. Olhamos para o Corcunda de Notre

Dame e dizemos que ele é ruim porque é feio. A postura realista exige o contrário: julgar somente após conhecer, independentemente das aparências.

Método indutivo e método dedutivoA sociologia é uma ciência nova, com cerca de 200 anos de vida. Antes da

Revolução Francesa e da Revolução Industrial existia a filosofia social, mas ainda não existia a sociologia.

O vocábulo sociologia foi criado pelo francês Augusto Comte, que nasceu em 1798 (09 anos após a Queda da Bastilha-1789) e morreu em 1857. Augusto Comte é o pai da sociologia e o pai do método positivista.

Mas qual a diferença entre sociologia e filosofia social?A diferença principal é metodológica. A sociologia estuda a sociedade com o método indutivo e rejeita o método dedutivo

da filosofia social.Dedutivo é o método cujo ponto de partida do seu sistema cognitivo (ou sistema de

conhecimento) está numa idéia pré-concebida que, depois, é aplicada aos fatos. É como se primeiro escolhêssemos a luva para depois tentarmos ajustá-la às mãos, à realidade.

Indutivo é o método cujo ponto de partida do seu sistema de conhecimento é a observação sistemática dos fatos e a análise e interpretação dos fatos observados. Neste caso, primeiro é estudada a mão, que corresponde à realidade, aos fatos, para depois ser elaborada uma luva adequada à mão. O método indutivo parte dos fatos para somente depois chegar a uma idéia sobre ele.

Pelo método dedutivo há quem afirme que os seres humanos são livres. Pelo método indutivo os seres humanos não são considerados de forma abstrata e

geral, mas concreta e particular: há homens e mulheres, de idades diferentes, de lugares diferentes, de épocas diferentes, de profissões diferentes. E não existe “liberdade” em

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sentido abstrato, mas liberdade interior ou exterior, política, econômica, religiosa, cultural, artística, etc. Há quem seja livre para poder dizer o que pensa, mas só no seu quarto e com a porta bem fechada, para não ser preso ou demitido. Tal pessoa teria liberdade interior, mas não liberdade exterior.

O método indutivo usado pela sociologia é o mesmo método caracterizado pela observação dos fatos, das experiências, que utiliza o biólogo, só que aplicado ao estudo das sociedades humanas.

O método indutivo aplicado ao estudo das sociedades humanas pela sociologia rejeita suposições a priori, pré-conceitos, pré-noções.

Método dedutivo: pré-noções, pré-conceitos aplicados aos fatos.Método indutivo: noções, conceitos, idéias que derivam da observação e

interpretação dos fatos.Em geral, ao terminarmos um discurso, procuramos convencer quem nos escuta

sobre a veracidade do que dizemos citando alguns exemplos. Os exemplos servem para confirmar nossas idéias. Este procedimento é típico do raciocínio dedutivo.

No método indutivo o que ocorre é o contrário. O exemplo é o ponto de partida do raciocínio indutivo.

Método dedutivo: exemplos para confirmar idéias – exemplo como ponto de chegada.

Método indutivo: idéias que derivam do estudo dos exemplos – exemplo como ponto de partida do sistema de conhecimento.

No método indutivo os exemplos condicionam as idéias; e no dedutivo os exemplos são usados para confirmar determinadas pré-noções.

O método dedutivo gerou até algumas vítimas na sociedade.Vejamos duas:1.Charles Darwin (1809-1882) observando a vida sobre a terra (biologia) afirmou

que haveria um processo de evolução e que tal processo teria envolvido o próprio ser humano, que derivaria do macaco.

Os “dedutivistas” se irritaram com ele e o incomodaram bastante porque Darwin estaria contrariando uma pré-noção não verificada de que o ser humano teria sido criado por Deus do jeito que hoje o conhecemos.

Hoje, muitos teólogos críticos afirmam que a teoria da evolução não rejeita o criacionismo, e identificam em Deus o ponto de partida inteligente de um processo (histórico) de criação que pode ter sido evolucionário (desígnio inteligente de Deus).

2.Galileu Galilei (1564-1642) afirmou aquilo que hoje todos sabemos: a terra gira ao redor do sol e ao redor de si mesma. Mas na época em que confirmou tal observação, já era aceita por quem usava metodologias indutivas (ou científicas), teve que se retratar porque alguns “dedutivistas” afirmaram que ele estaria contrariando uma pré-noção não verificada segundo a qual a terra estaria parada e o sol giraria ao redor dela.

A ciência não é contra a religião, como alguém poderia pensar, mas contra interpretações religiosas preconceituosas. A ciência não é contra a bíblia, mas contra a manipulação fundamentalista da bíblia para a justificação de determinados pré-conceitos de pessoas e grupos.

Metodologia positivista

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O método indutivo é chamado também de método positivista. Referimo-nos ao positivismo como intenção metodológica não-dedutiva.

Positivismo não significa otimismo.Uma vez ouvi uma pessoa dizer que seu filho estava muito “positivista” em relação

à possibilidade de conseguir um novo emprego. Positivismo não tem nenhum parentesco com pensamento positivo nem com otimismo.

Positivismo também não significa legalismo: apego excessivo a leis e procedimentos normativos.

A palavra positivismo foi usada por Augusto Comte para designar o método indutivo aplicado ao estudo da sociedade.

O método indutivo já existia. É o método típico da medicina. O médico (positivista) primeiro estuda os fatos – os pacientes – para depois elaborar uma idéia sobre a situação do paciente. Ele primeiro DESCREVE a situação do paciente após observá-la inclusive com a ajuda de exames. Somente assim ele poderá dizer como está o paciente.

O médico não pode fazer uma “metafísica médica” (mesmo se sabemos que alguns o fazem). Ele não pode aplicar “luvas” (idéias pré-concebidas) ao paciente (que seria a mão). Ele só pode dizer qual é a melhor luva para aquela mão após analisar o estado real do paciente. PRESCREVE um remédio ao paciente somente depois de ter DESCRITO a situação real dele.

A prescrição e intervenção supõem a descrição da situação real do paciente.O método indutivo parte daquilo que é real, vigente, sentido da palavra “positivo”,

de onde nasceu a corrente metodológica de pensamento denominada pensamento positivista.

Positivo, portanto, significa real, vigente, fático, observável. É positivo aquilo que pode ser estudado pela razão prática.

O contrário da palavra “positivo”, neste caso, não é negativo, mas abstrato. A intenção do positivismo era a de romper com a filosofia metafísica, dedutiva.

O método positivista elabora idéias sobre os fatos (experiências), a partir da observação, descrição e interpretação dos próprios fatos sociais.

Para tentar ser mais claro, mesmo se mais forte, podemos dizer que o positivista é um materialista. E aqui também podemos começar dizendo o que não é materialista.

A palavra “materialismo” não equivale a consumismo: aquele que está sempre comprando, “apegado às coisas materiais”, como normalmente se diz, é um comprador consumista. E materialista aqui também não significa ateísta, que é aquele que nega a existência de Deus.

Empregamos a palavra materialista em sentido metodológico: postura metodológica de quem prioriza os fatos (materiais) como ponto de partida de seus estudos sociais. Um sociólogo pode ser materialista do ponto de vista metodológico, e cristão do ponto de vista religioso.

Neutralidade absoluta e neutralidade relativaO método indutivo sugere que os estudiosos dos fatos devem se desapegar de suas

pré-noções em relação aos fatos estudados.Trata-se de importante discussão na sociologia a que diz respeito à neutralidade

(valores políticos, morais, religiosos) dos pesquisadores em relação aos fatos pesquisados.

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Evidentemente, cada pessoa é condicionada por pré-noções específicas, e as carrega sempre, mesmo quando está estudando. Não é que começamos do zero nossos processos de conhecimento quando nos encontramos diante de uma nova ou antiga situação a ser estudada.

Se você fosse convidado a estudar a comunidade das Testemunhas de Jeová, teria que saber lidar com seus valores e pré-conceitos (favoráveis ou contrários) em relação a eles. Pensaria que são ótimos cristãos ou que são fanáticos porque rejeitam a transfusão de sangue. Ora, condicionamentos são inevitáveis, mas a objetividade deve ser buscada no estudo dos fatos.

A sociologia discutiu tal questão e, em resumo, podemos dizer que a posição de neutralidade absoluta do estudioso em relação aos valores morais contidos nos fatos que estão sendo por ele estudados é impossível e desnecessária, mas a neutralidade relativa é importante, possível e necessária, mesmo se difícil.

Qual a diferença entre elas?Pela neutralidade absoluta o pesquisador não deveria pensar em nada de próprio

nem sentir nada de pessoal em relação aos fatos observados. Ora, isso é impossível nas ciências humanas e sociais, pois, ao contrário de outras ciências, estamos envolvidos efetiva e afetivamente com as coisas que estamos estudando. Todos nós temos nossas idéias e nossos gostos sobre fatos religiosos, políticos, etc.

Ao contrário da química e da física, nas ciências humanas e sociais estamos muito mais envolvidos do que pensamos com as coisas que estamos estudando. A neutralidade absoluta seria possível somente se estivéssemos dormindo, ou mortos.

A neutralidade relativa indica que o pesquisador pode buscar maior objetividade no estudo dos fatos pelo DESAPEGO METODOLÓGICO em relação às próprias pré-noções e gostos pessoais que condicionam sua compreensão dos fatos observados e analisados.

A neutralidade relativa sugere o desapego metodológico de nossas pré-noções e pré-juízos.

Os pesquisadores devem identificar suas simpatias e antipatias por determinadas experiências específicas estudadas. Eles podem ter suas posições, mas não deveriam se tornar reféns dos próprios julgamentos de valores.

Enquanto cidadão, o pesquisador pode e deve julgar os vários fenômenos sociais; mas enquanto profissional ele tem o dever de se desapegar das próprias posições éticas e políticas, para que as opiniões de ontem não impeçam a elaboração de uma visão mais atualizada.

A neutralidade relativa (desapego metodológico) é necessária e a neutralidade absoluta é impossível.

Se um médico for operar um amigo, sua amizade poderá ser benéfica ou não à operação. Ele pode operar melhor ou perder a objetividade e deixar que a emoção esconda alguma coisa. A emoção envolvida pode ajudar ou atrapalhar na cirurgia que ele deve realizar.

A Lei dos Três EstadosAugusto Comte, assim como Weber e Durkheim, estava com um pé na sociedade

tradicional (pré-industrial e monárquica) e outro na nova sociedade forjada pelas Revoluções Francesa e Industrial.

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A compreensão das características principais desta sociedade nascente, e das mudanças que estavam transformando a sociedade tradicional numa nova sociedade urbana, industrial e orientada para a democracia, foi objeto dos estudos de Max Weber, Augusto Comte, Émile Durkheim e Karl Marx.

Para Augusto Comte, a sociedade que estava desaparecendo era ao mesmo tempo teológica e militar: os valores sociais, a cola que cimentava existencialmente as comunidades humanas vinha da religião (poder teológico) e da disciplina militar. Os homens de guerra, juntamente com as autoridades religiosas, ocupavam as primeiras posições neste modelo de sociedade que estava sendo substituído por um outro, científico e industrial.

Na sociedade científica e industrial emergente, o modo de pensar dos teólogos e sacerdotes foi substituído pelo modo de pensar dos cientistas, que teriam herdado o poder espiritual e moral dos sacerdotes. Por outro lado, os industriais (empreendedores, diretores de fábricas, banqueiros) passam a assumir o lugar dos militares.

Assim, o pensamento científico ocupa o lugar de destaque antes ocupado pelo pensamento teológico. Não que o pensar teológico tenha sido eliminado. Ele foi deslocado a um nível inferior em relação ao pensamento científico, da mesma forma que a atividade industrial passou a ocupar uma posição de superioridade em relação à atividade militar.

Os militares e os clérigos foram substituídos pelos cientistas e pelos industriais.A industrialização gerou mudanças de papéis sociais e impôs também uma nova

forma de pensar.Com a Lei dos Três Estados Augusto Comte explicou tal mudança na forma de

pensar. A forma mentis (forma de pensar) típica da atividade industrial e, conseqüentemente, das sociedades modernas industrializadas é o pensamento científico, positivista que, como vimos, significa real, empírico, prático, experimental.

Os três estados da teoria de Comte equivalem a três etapas diferentes da história do pensamento humano, três diferentes tipos de saber, três diferentes métodos de compreensão.

O primeiro estado é o estado teológico ou fictício, onde os fenômenos são explicados de forma sobrenatural, com a invocação de forças ou seres religiosos.

A segunda fase ou etapa do pensamento humano é o estado filosófico ou metafísico. Trata-se de uma etapa intermediária, de ligação entre a primeira e a terceira, onde as explicações não são mais de caráter sobrenatural. As explicações já são racionais, mas ainda se trata de razão metafísica e não de razão científica.

Por último, o terceiro estado do pensamento humano, que é a etapa positiva ou científica, onde as explicações não são mais de caráter sobrenatural (estado teológico) ou de caráter natural metafísico (estado filosófico), mas de caráter técnico-científico. No terceiro estado as explicações são elaboradas a partir da observação empírica, sistemática dos fenômenos.

Vejamos dois exemplos:1.Uma pessoa cai por terra e começa a se contorcer e babar. Pelo primeiro estado,

ela poderia estar possuída pelo demônio. Pelo terceiro, estaria tendo uma crise convulsiva.2.Uma enchente destrói casas numa cidade. Pelo primeiro estado, poderia ser

castigo dos deuses. Pelo terceiro, efeito do desmatamento.Comte constatou de forma objetiva que o pensamento positivo começava a se tornar

o estilo de pensar predominante nas sociedades modernas. O problema é que os positivistas - entusiasmados com as promessas de progresso anunciadas pela ciência - acabaram

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desvalorizando outras formas de pensar. Todas as formas de pensar são importantes. E uma pode complementar ou mesmo corrigir a outra. A ciência pode corrigir a religião, e a religião a ciência.

Todavia, houve uma supervalorização do pensamento científico-positivista e, ao mesmo tempo, desqualificação do pensamento teológico-tradicional e do pensamento filosófico-metafísico, considerados ultrapassados. Excessos que talvez estejam sendo corrigidos.

A forma mentis positivista passou a ser não somente o estilo de pensar da indústria, mas o estilo de pensar geral, como se religião fosse sempre superstição.

Por meio da indústria, o raciocínio positivista passou a ser o estilo de raciocínio típico do homem moderno. O saber científico, positivo, técnico tornou-se quase onipotente.

Hoje, há positivismos mais moderados, caracterizados pela interpretação aberta dos fatos sociais e não pela pretensão de verificações exatas (não existe certeza matemática nas ciências humanas e sociais).

Para o positivismo tradicional, sócio-matemático, na hipótese de uma cidade acordar um dia sem os seus 50 principais filósofos, esta cidade choraria os seus mortos, mas continuaria vivendo normalmente. Da mesma forma, se esta cidade acordasse sem os seus 50 principais teólogos, ela choraria tal perda, mas continuaria vivendo normalmente. Todavia, se ela acordasse sem os seus 50 principais técnicos, ela choraria e, ao mesmo tempo, pararia, pois não conseguiria continuar vivendo normalmente.

O que valeria seria somente o saber técnico-científico, enquanto que o saber teológico e o saber filosófico seriam apenas decorativos, dispensáveis ou, no máximo, complementares em relação ao saber científico.

Para os positivistas dos primeiros tempos os cientistas seriam os novos sacerdotes da humanidade, o novo clero da modernidade, que libertaria o mundo dos resíduos de uma mentalidade teológica e feudal por meio da força espiritual do saber científico.

O entusiasmo com o método positivista foi tão grande que os primeiros positivistas acabaram criando até mesmo uma religião positivista.

Hoje tal debate está mais tranqüilo, e o positivismo voltou a ser apenas o que é: uma importante postura metodológica.

A sociedade necessita do saber dos técnicos, dos teólogos e dos filósofos.As sociedades humanas são sociedades vivas, orgânicas, o que impede que a

sociologia seja confundida com matemática social, já que a matemática estuda objetos inorgânicos.

Sobre o caráter prescritivo da SociologiaA sociologia tem como objetivo a realização de tarefas cognitivas, mas objetivos

avaliativos e prescritivos também acompanham direta ou indiretamente o sociólogo no exercício de suas atividades de pesquisa.

Há conclusões (explícitas ou implícitas) de caráter avaliativo e prescritivo também nas pesquisas sociológicas que pretendem ser apenas cognitivas.

Valorações mal-feitas e prescrições descabidas são inoportunas e contraproducentes, mas nem todas as valorações são mal-feitas assim como nem todas as prescrições são descabidas.

A sociologia não é incompatível com valorações e prescrições.

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Valorações e prescrições são etapas possíveis na pesquisa sociológica, posteriores à cognição do real.

Uma ciência que estudasse problemas rejeitando a busca de valorações e soluções, como se isso a desmerecesse, seria uma ciência difícil de ser justificada quanto à sua plena utilidade pública. Seria como se a medicina se dedicasse somente à compreensão (cognitiva) das doenças sem indicar nenhum tratamento ao paciente e, pior, considerando a indicação de tratamentos como defeito metodológico grave a ser evitado.

A sociologia é uma ciência descritiva e interpretativa que sugere, também, avaliações e prescrições bem fundamentadas.

A cientificidade da sociologia não exclui valorações e prescrições. Problemas sociais devem ser estudados e, também, resolvidos, ou ao menos amenizados.

A sociedade necessita de uma ciência do social que explique os problemas e apresente também valorações sólidas e prescrições caracterizadas pela eficácia, dentro dos limites de prazo de validade de todas as prescrições: não existem soluções definitivas, mas soluções válidas por determinado período de tempo.

Não estamos autorizados a abandonar o caráter prescritivo da sociologia somente porque algumas prescrições do passado não foram bem sucedidas. Afinal, também na medicina há revisão de tratamentos, e as prescrições de ontem são substituídas por prescrições mais atualizadas.

Se prescrições de ontem fracassaram, elas devem ser modificadas, mas isso não significa que o caráter prescritivo da ciência deva ser abandonado.

Se um tratamento não produz os efeitos desejados, o que deve ser abandonado (ou modificado) é o tratamento específico anteriormente recomendado, e não a lógica metodológica da descrição, avaliação e indicação de medidas (prescrição de tratamentos).

2.GÊNESE DA SOCIEDADE MODERNAA sociologia é a ciência que surge com a sociedade moderna e a estuda; e a

sociedade moderna é o resultado de duas grandes revoluções: a francesa e a industrial.Do ponto de vista histórico, a Revolução Francesa teve início na França, em 1789,

com a queda da Bastilha, e a Revolução Industrial teve início na Inglaterra, em 1763, com a invenção da máquina a vapor por James Watt.

Para a sociologia, estas duas revoluções não foram somente dois fatos históricos, mas, também, dois fatos paradigmáticos, dois critérios fundamentais de interpretação social.

O que significa isso?Significa que alguns fatos históricos extrapolam os limites geográficos e históricos

de onde surgiram e passam a ser modelos, referências para várias outras regiões do mundo, ou seja, passam a ser fatos paradigmáticos.

Foi o que aconteceu com as Revoluções Francesa e Industrial: chegaram a várias partes do mundo, inclusive ao Brasil.

No Brasil, a industrialização começa no início de 1900, em São Paulo. Junto com ela, a urbanização: São Paulo era uma cidade pequena e tranqüila antes da industrialização, se comparada à São Paulo de hoje. E ainda hoje a industrialização é paradigma de desenvolvimento. Quantos prefeitos sonham em trazer indústrias às suas cidades?

Da mesma forma, as revoltas políticas da Revolução Francesa, com os seus gritos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade motivaram a organização de vários movimentos

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políticos de revoltas contra a monarquia no Brasil. Dentre eles a Revolução Farroupilha (1835-1845). Mas o fim da monarquia só acontecerá em 1889, com a Proclamação da República. E os gritos por Liberdade, Igualdade e Fraternidade ainda são atuais em tantos lugares onde os seres humanos continuam sendo tratados como se fossem súditos.

Fato histórico: fato específico, de uma determinada região, e válido para tal região.Fato paradigmático: experiência tão relevante que serve como um farol que lança

seus reflexos noutros lugares e provoca mudanças em regiões distantes daquelas onde tiveram origem.

Cabe sublinhar também as diferenças entre idade moderna e sociedade moderna para que não seja feita confusão entre elas.

A idade moderna é a situada no período da Reforma Protestante e Descoberta da América; e as sociedades modernas - filhas das duas revoluções citadas, a francesa e a industrial – são posteriores, correspondem ao período da história classificado como idade contemporânea.

As sociedades hoje denominadas modernas são as que foram submetidas a mudanças semelhantes às provocadas pelas Revoluções Francesa e Industrial. E as Revoluções Francesa e Industrial são, afinal, paradigmas do quê?

A Revolução Francesa é paradigma da passagem da monarquia à democracia. Ela é a que simboliza de forma mais marcante tal passagem. Sabemos que a França passará por momentos de retrocesso em relação à democracia. Mas a revolução desencadeada a partir de 14 de julho de 1789 (data da Queda da Bastilha)2, permanece como data-símbolo da luta pela transformação de uma sociedade de privilégios (de poucos) numa sociedade de direitos, onde o ser humano passa de súdito a cidadão, processo ainda hoje em desenvolvimento.

A Revolução Industrial é paradigma da passagem de um modo de produção agrícola e artesanal a um modo de produção industrial e urbano. O modelo de desenvolvimento industrial da Revolução Industrial foi e continua sendo “exportado” ao mundo todo.

Portanto, a sociedade moderna é o resultado de dois processos radicais de mudança social: processo de democratização (paradigma da Revolução Francesa) e processo de industrialização e urbanização (paradigma da Revolução Industrial).

A sociologia nasce no contexto de surgimento da sociedade moderna e, como afirmamos, será tal sociedade o principal objeto de estudos desta nova ciência, a partir de pontos diferentes de observação.

As Revoluções Francesa e Industrial modificaram radicalmente a paisagem política, geográfica, econômica e cultural dos ambientes onde foram colocadas em prática.

Ambas foram revoluções burguesas, não somente porque representaram a conquista do poder econômico (Revolução Industrial) e do poder político (Revolução Francesa) pela burguesia, mas porque afirmaram a cultura, os valores da burguesia na nova sociedade que surgia3.

2 Durante a Revolução Francesa a guilhotina foi usada para decapitar os inimigos do novo regime. Em 1791 o médico parisiense Joseph Guillotin pediu que os condenados à morte fossem executados pela tal máquina de decapitar, que passou a ser conhecida como a máquina de Guillotin, ou guilhotina. Ao contrário do que possamos pensar, ele fez tal pedido movido por preocupações humanitárias. Afinal, a morte por guilhotina era mais rápida e menos dolorosa que a morte por esquartejamento ou outras formas de execução de condenados à morte.3 A palavra burguês geralmente é usada em sentido pejorativo, como se fosse sinônimo de esnobe. Burguês significa comerciante, é o profissional do burgo (Hamburgo, Friburgo), cidade comercial.

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As Revoluções Francesa e Industrial foram, na prática, revoluções burguesas porque realizaram objetivos burgueses, mesmo se, em teoria, anunciaram a realização de objetivos universais.

Antes dessas revoluções, comandavam os clérigos e a nobreza (primeiro e segundo estados da hierarquia social da época). A burguesia fazia parte do terceiro estado, junto com os demais súditos da monarquia.

Depois das revoluções burguesas, o mundo foi gradualmente transformando-se num mundo burguês, interpretado a partir de uma visão geral burguesa da vida. Surge uma arte burguesa; moda burguesa; arquitetura burguesa; educação burguesa. O estilo burguês de ser e de viver passou a ser o estilo normal de vida da sociedade.

Industrialização e urbanizaçãoA Revolução Industrial não foi feita por cientistas (inventores), mas pela burguesia.Do ponto de vista cronológico, a Revolução Industrial teve início na Inglaterra, com

a invenção da máquina a vapor por James Watt, em 1763. Do ponto de vista sociológico, a Revolução Industrial consistiu na utilização das novas descobertas científicas pela burguesia, em função do aumento da produção, tendo em vista a busca de um lucro maior.

O caráter revolucionário de tal evento não está tanto na invenção da máquina, mas no uso dela. Revolucionário foi o uso social e não tanto a invenção. Quantas coisas são inventadas e abandonadas por falta de utilidade?

Revolução Industrial não foi a invenção desta ou daquela máquina, mas a utilização desta ou daquela máquina pela burguesia em função do incremento da produção e do lucro. A Revolução Industrial não foi uma revolução dos cientistas, mas uma revolução dos burgueses, que deram sentido revolucionário à invenção dos cientistas. Revolucionário não foi tanto James Watt, mas a burguesia comercial, que se tornou burguesia industrial.

A burguesia há muito já tinha aprendido a comprar para vender, mas agora aprenderá a produzir em grande escala, para vender em escala maior ainda.

Do lado de dentro da Revolução Industrial será gerada uma outra revolução, a da urbanização.

Antes da Revolução Industrial as cidades eram periféricas em relação às áreas rurais. Com ela, as áreas rurais perdem a centralidade, que passa a ser ocupada pelas cidades que, por sua vez, cedem o lugar às metrópoles e às megalópoles.

A Revolução Industrial incrementou fenômenos de êxodo rural (saída do campo para a cidade) e de aglomeração humana em pequenos espaços residenciais urbanos.

A centralidade da cidade grande (metrópole) e a transformação dela em cidades gigantescas (megalópoles) são filhas da Revolução Industrial.

A urbanização foi (e continua sendo) processo radical de modificação dos espaços de vida. Modificou drasticamente a paisagem dos nossos centros residenciais.

O processo de urbanização desencadeado pela Revolução Industrial não se serviu de pistolas e baionetas para a sua realização, mas foi, certamente, um dos processos mais revolucionários da história da humanidade.

Pode ser que tenhamos uma idéia equivocada de revolução, associando-a à luta armada. Para a sociologia, revolução não significa luta armada. Significa mudança radical, pela raiz. É por isso que a Revolução Industrial é uma revolução. Ela mudou radicalmente (pela raiz) a sociedade, sem disparar tiros. Nem toda revolução é feita com luta armada, assim como nem toda luta armada é sociologicamente revolucionária.

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Quais foram as principais mudanças provocadas na sociedade pela Revolução Industrial?

Ascensão econômica da burguesia; êxodo rural; transformação dos servos da gleba em operários da indústria; surgimento das grandes cidades.

Os agricultores dependentes dos senhores feudais (servos da gleba) chegaram às cidades e experimentaram certa sensação de liberdade, de onde a frase “o ar das cidades é o ar da liberdade”. Tais agricultores passaram a ser operários da burguesia. Trocaram a opressão no campo pela exploração na cidade. Valia para poucos o dito: “o ar da cidade é o ar da liberdade”. E que certamente não exprime mais o espírito do nosso tempo, em que o ar da cidade, entendido como oxigênio que se respira, é poluído, e o ar entendido como atmosfera cultural não é libertador, mas assustador: medo da violência.

Identificamos na Revolução Industrial vantagens e desvantagens.Com a revolução econômica da burguesia, uma sociedade baseada na produção

agrícola e artesanal é substituída por uma sociedade que produz com pressa e fúria, acelerando o ritmo de produção.

Aumenta a densidade populacional urbana e aumenta, também, o ritmo de trabalho e de vida.

Viver de forma apertada e apressada, estressada, passa a ser o estilo de vida da maioria dos habitantes dos centros urbanos. Fenômeno muito relevante para a compreensão do incremento da demanda hoje pelo turismo da “tranqüilidade” (onde se situa também o turismo rural).

As razões da busca atual de um ritmo diferente do urbano numa experiência de turismo rural ou numa praia tranqüila (não numa praia de turismo de badalação) - válvula de escape do ser humano moderno – podem ser encontradas no cansaço com o estilo de vida imposto pela Revolução Industrial.

A industrialização-urbanização modificou economicamente e culturalmente a sociedade.

Sofreram modificações a nossa forma de trabalhar e de viver em sociedade.Produzir rapidamente, e muito, passou a ser o grande critério de avaliação não

somente do trabalho, mas da vida humana. A família também será obrigada a assumir uma forma diferente.

Se antes o local de trabalho coincidia com o local de habitação, no campo e na oficina de artesanato, agora, na indústria moderna, trabalham lado a lado pessoas estranhas, desconhecidas, provenientes de lugares diferentes.

Antes da Revolução Industrial o número de filhos representava uma vantagem econômica para a família: mais mão-de-obra para a agricultura. Agora, num espaço cada vez mais reduzido e com uma distribuição mais rígida de tempo e de tarefas, cada filho representa um custo adicional (prejuízo econômico).

A industrialização-urbanização imporá novas necessidades, como a do controle da natalidade; criação de creches (dada a separação entre local de trabalho e de habitação); a necessidade de aproveitamento do espaço geográfico com a criação de habitações verticais (apartamentos).

Nem sempre nos damos conta, mas os apartamentos também são filhos da Revolução Industrial. No planeta terra ainda há muito espaço (e menos mal), mas como nos aglomeramos nas grandes cidades, tivemos que construir para cima, substituindo o silêncio dos sótãos pelo barulho dos saltos dos sapatos dos vizinhos do andar de cima.

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Durante centenas de anos vivemos em sociedades com ritmos mais lentos de produção, em contato direto com a natureza e, na maioria das vezes, condicionados radicalmente por ela. Há pouco mais de dois séculos uma parte significativa da humanidade ingressou nesta aventura histórica chamada industrialização, com evidentes vantagens do ponto de vista tecnológico, mas com outras tantas evidentes desvantagens do ponto de vista humano-comunitário e ecológico.

Várias promessas otimistas de progresso constante e crescente não se concretizaram.Realizaram o contrário do prometido, pela perda de qualidade de vida em tantas

frentes de batalha.Cabem certamente algumas interrogações: será que a história nos leva sempre em

direção a um mundo melhor? Será que o futuro é sempre melhor que o passado? Será que a inovação, sempre e em qualquer circunstância, é melhor que a tradição?

As inovações não significam sempre progresso. Podem significar também regresso.Inovação hoje, em tantas situações, significa justamente retorno à tradição.É como se a sociedade moderna tivesse subido ao sótão que, como sabemos, é o

lugar onde guardamos valores que podem ser novamente utilizados.

Revisão da modernidadeNa sociedade moderna o que vale é o novo, não o tradicional. O que vale é a

mudança, a troca do antigo pelo novo, a busca constante da novidade, em todos os setores da existência humana.

O novo é concebido como sinônimo de melhor, e o antigo como sinônimo de pior.Na publicidade, há sempre o novo carro, o novo produto de limpeza, o novo isso e

aquilo. Há uma espécie de ditadura cultural do novo pelo novo, mas há, também, gente cansada com essa ditadura, que resolveu verificar se o novo seria mesmo sempre melhor que o tradicional.

A revisão crítica das promessas da modernidade caracteriza a pós-modernidade.Há uma modernidade ideal, com tantas promessas de progresso social, e uma

modernidade real, feita de progresso tecnológico, mas, também, de estresse, ativismo, destruição do ambiente, bombas atômicas, etc.

O novo não se demonstrou melhor que o tradicional em muitos setores da vida humana. Mas ainda tendemos a rejeitar o antigo e optar pelo novo pelo simples fato dele ser novo.

Se você pensa que não é condicionado pela idéia que o novo seja melhor que o antigo, faça o teste do consultório médico e do supermercado. Num consultório médico, enquanto espera pelo atendimento, você pega na mesinha um jornal. Verifica que a data é de ontem. Provavelmente você nem abrirá o jornal, porque “é jornal velho”, mesmo se você não leu jornal algum no dia anterior. No supermercado, você está escolhendo um produto de limpeza. Há um sabão em pó que você já conhece, e há outro, mais caro, escrito “NOVO” na parte superior da embalagem. Há quem compre logo o “novo” sem nem ao menos verificar de que “novidade” se trata, por confiar incondicionalmente no “novo”. Mas será que tal novidade realmente qualifica o produto?

Talvez a exaltação do novo pelo novo e a rejeição do tradicional seja o ponto mais crítico da cultura da modernidade, objeto de revisões radicais ou mais moderadas.

Há uma revisão de tipo radical que, a partir de uma utopia regressiva (o melhor lugar estaria no passado) rejeita a tecnologia e propõe um retorno ao passado pré-industrial.

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Mas a tendência cultural mais forte, certamente, é aquela forma de revisão do moderno que poderíamos chamar de pós-modernidade moderada.

Esta segunda tendência não é pela volta ao passado, mas pela reativação de determinados valores tradicionais socialmente necessários no presente. Trata-se de uma tentativa de conciliação entre o novo e o tradicional a partir de uma visão que não considera o novo como sinônimo de melhor e o antigo como sinônimo de pior. Progresso não significa, para esta tendência cultural, necessariamente, eliminação do tradicional ou do novo, mas, sobretudo, ajuste entre o novo e o tradicional.

Tomando como exemplo a ascendência do turismo no meio rural, penso que quem vai a um hotel-fazenda não está buscando somente um descanso conjuntural, de um ano de trabalho, mas, sim, um descanso estrutural, de décadas de modernidade.

Por trás da busca do leite fresco de vaca, do pão caseiro, do contato direto com os ritmos da natureza, encontramos a busca por um passado perdido na exaltação do novo pelo novo e na insensata desmoralização do tradicional. Dentro do copo de leite fresco do turista que se encontra num hotel-fazenda estão anos de tradição, que matam uma sede que não é somente de leite, mas, também, de passado, de memória.

A revisão pós-moderna da modernidade é animada pela nostalgia racional, crítica de quem sente saudades de algumas experiências e valores perdidos em algum lugar do passado, mas reencontráveis e reaviváveis no presente.

Modernidade e democraciaA palavra modernização é usada com muito entusiasmo por quem pretende renovar

a própria empresa. E penso que seja justo tal sentimento. Afinal, criticar alguns aspectos da modernidade não significa rejeitá-la, mas propor correção de rumo.

Todavia, a palavra modernização não deveria ser usada em sentido unilateral, incompleto. Ela possui duplo sentido. Quais são esses dois sentidos e qual deles é deixado de lado?

A sociedade moderna é filha das Revoluções Francesa e Industrial, e dessas duas revoluções derivam os dois sentidos dos processos de modernização.

Da Revolução Industrial a sociedade moderna herdou o desenvolvimento tecnológico. Modernização significa industrialização, tecnologização. Mas este é somente um lado da moeda. O outro lado da moeda é o que deriva da Revolução Francesa.

No que ele consiste? Consiste nos processos de democratização.Modernização, portanto, significa democratização (Revolução Francesa) e

tecnologização (Revolução Industrial). Esses são os dois sentidos dos processos de modernização. E o sentido que é esquecido, de propósito ou não, é o que envolve os processos de democratização.

Há quem encha a boca para falar em modernização, mas empregando a parte, industrialização, pelo todo, modernização.

Tratar-se-ia de uma modernização Saci, incompleta, sem a perna da democratização.Uma empresa se moderniza quando associa os recursos tecnológicos aos processos

participativos responsáveis de gestão.Equivoca-se quem pensa que uma empresa seja moderna somente pelo emprego de

recursos tecnológicos, sem a democratização das decisões. Em tais casos, a Revolução Francesa é deixada de lado. Fica-se somente com a Revolução Industrial.

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Os ideais da Revolução Industrial penetraram até em espaços indevidos, reduzindo o pensar ao pensar tecnológico, igualando ritmo de produção e ritmo de vida. Ao contrário, os ideais da Revolução Francesa ainda não penetraram naquelas empresas que se assemelham mais a feudos (senhorios) que a comunidades co-responsáveis de trabalho.

Sabemos que a Revolução Industrial deu à burguesia poder econômico, mas ela continuava subordinada ao rei, à monarquia, ou seja, ainda não tinha poder político.

A Revolução Industrial é paradigma da conquista do poder econômico pela burguesia, e a Revolução Francesa é paradigma da conquista do poder político por esta mesma burguesia, que passa a ocupar, na pirâmide social, o lugar do rei e da nobreza.

Num primeiro momento, a passagem da monarquia à república significou, na prática, passagem da monarquia à democracia burguesa. Pela Revolução Francesa não foi o “povo soberano” que chegou ao poder, mas uma pequena parte dele, a burguesia.

A Revolução Francesa propunha Liberdade, Igualdade e Fraternidade para todos os cidadãos, mas, no final desta, serão os burgueses os cidadãos mais livres, emancipados.

Todavia, não obstante tal redução prática, a Revolução Francesa resta como paradigma da soberania popular, ou seja, paradigma da passagem de uma sociedade de súditos a uma sociedade de cidadãos, pelo fato dela ter sido proposta como meio de emancipação política de todos os cidadãos.

O direito de todos, por exemplo, à propriedade privada equivalerá, na prática, a privilégio da burguesia à propriedade. Mas isso não por razões teóricas. Por razões práticas. A Revolução Francesa é uma revolução inacabada.

Na Revolução Francesa a burguesia utilizou os súditos da monarquia como escada para subir ao poder. Uma vez lá encima, derrubou a escada e os súditos da monarquia mudaram somente de nome: tornaram-se operários da indústria, trabalhadores assalariados, ou proletariado, pelo elevado número de filhos (prole).

Todavia, é também verdade que a burguesia abriu um precedente importante.Com a Revolução Francesa, os súditos, ao menos teoricamente, deixaram de ser

súditos e nas décadas sucessivas, motivados pelas conquistas sociais da burguesia, os trabalhadores assalariados criarão associações operárias destinadas à popularização das conquistas políticas e econômicas da burguesia (sindicatos operários).

A burguesia foi pioneira na luta pela transformação dos súditos em cidadãos e abriu importantes espaços políticos, que serão posteriormente utilizados por um número cada vez maior de pessoas.

A Revolução Francesa deu início a um processo de popularização do poder que continua até hoje. Primeiro tal poder chegou à burguesia, fase 1, e, depois, foi transformado em ideal político dos trabalhadores assalariados, a fase 2, na qual ainda nos encontramos.

Várias promessas da democracia já foram realizadas, mas ela ainda é muito mais um desejo, uma aspiração, um sonho do que realidade.

A burguesia foi revolucionária, pioneira nas lutas pela emancipação política dos súditos. Com a Revolução Francesa ela ficará com as maiores fatias de poder, mas os pobres se servirão das migalhas desta democracia inicialmente burguesa para lentamente organizar os seus movimentos políticos de participação social, popularizando gradualmente o acesso ao exercício do método democrático. Neste sentido, a Revolução Francesa foi diretamente uma revolução burguesa, mas, indiretamente, uma revolução política popular, pois as chances de participação política popular serão maiores a partir dela.

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A democracia, a partir de então, vai gradualmente assumindo uma perspectiva radical de liberdade. Passa a ser concebida como método de organização livre e responsável de todos os âmbitos da vida em sociedade.

A luta em função do alargamento da concepção de democracia caracterizará estes nossos dois séculos de democracia moderna: democracia é o direito de todos à liberdade e em todos os setores da vida em sociedade. Trata-se de um método sócio-político-econômico que consiste no exercício ou prática da liberdade exterior em todos os âmbitos da vida social.

Para a democracia, não basta a liberdade de pensar, é necessária a liberdade de manifestar publicamente tal pensamento sem ser preso nem demitido por isso, já que a liberdade que a democracia quer garantir é a liberdade de divergir, de discordar, de fazer oposição responsável sem ser punido por isso.

O preso político é somente interiormente livre. O ex-empregado de uma empresa que foi demitido porque disse o que pensava,

também. Ambos foram punidos pelo exercício exterior da liberdade interior. O método democrático quer garantir o exercício público da liberdade privada, mas

isso ainda é um sonho nos países e nas empresas onde o medo de ser punido pela manifestação pública do próprio pensamento é usado como meio político de manutenção do poder.

Democracia é o exercício, em primeiro lugar, da liberdade exterior no âmbito político (liberdade política). Sem a garantia do exercício público desta liberdade, o exercício de todas as outras dimensões sociais da liberdade fica comprometido. Todavia, a democracia não se esgota no âmbito político: há, também, o âmbito econômico da liberdade.

O título de eleitor é a carteira técnica de identidade do cidadão-político. E qual seria a carteira de identidade do cidadão-econômico? O salário. Falou-se muito em socialismo e muito pouco em salarismo.

O cidadão que reivindica para si o direito à liberdade, não quer somente o exercício da liberdade no âmbito político, mas, também, a liberdade de entrar e comprar, por exemplo, num supermercado, o necessário para ele e sua família.

Como sabemos, há pessoas com liberdade apenas para passear no supermercado, mas não para comprar, por falta de salário competitivo.

O cidadão não quer somente poder político para votar. Ele quer, também, poder econômico para comprar, e disponibilidade de tempo liberado para si, sua família e comunidade.

3.REFORMA X REVOLUÇÃODurante quase todo o século passado discutiu-se se o capitalismo seria melhor ou

pior que o comunismo. O mundo se dividia em três: os que eram a favor do capitalismo sem mudanças profundas nele (conservadores); os que eram radicalmente contrários ao capitalismo e a favor do comunismo (revolucionários comunistas); e os que eram a favor de mudanças no capitalismo por meio de reformas sociais estruturais (reformistas).

Tal debate sofreu alterações profundas no final do século passado, e por uma razão muito simples: o comunismo real, aquele praticado na história (diferente do comunismo ideal), não realizou as promessas de igualdade e criou ditaduras contra o povo, mesmo se feitas em nome dele (proletariado).

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Para Karl Marx (1818-1883), as razões dos problemas sociais eram econômicas. Para outros pensadores, como Émile Durkheim e Max Weber a economia não explicava tudo. Fatores culturais também deveriam ser relevados na explicação dos problemas sociais.

No Brasil, se um jovem pobre, de uma favela, comete um delito, as pessoas geralmente atribuem tal delito ao fato dele ser pobre; mas quando adolescentes de classe média cometem delitos, como queimar um índio, ou assassinar os próprios pais, as pessoas ficam chocadas com o fato de terem sido praticados por jovens de classe média.

Karl Marx e Eduard Bernstein (1850-1932) tiveram idéias críticas em relação à situação dos operários no capitalismo. Os dois queriam mudar tal situação, mas por caminhos diferentes: Marx é o pai do comunismo, e das mudanças por meio de uma revolução contrária ao capitalismo e à burguesia; e Bernstein é o pai do reformismo, e das mudanças por meio de reformas sociais no capitalismo burguês, que deixaria de ser exclusivamente burguês.

Em fevereiro de 1848, Karl Marx e seu amigo Friedrich Engels publicaram em Londres o Manifesto do Partido Comunista, opúsculo revolucionário que será a carta magna dos partidos comunistas do mundo inteiro.

No Manifesto, Marx e Engels afirmam que a história da humanidade é na verdade a história da luta de classes: escravos e senhores de escravo; servos da gleba e senhores feudais; proletários e burgueses; em suma, oprimidos e opressores em conflitos entre eles desde os primórdios da humanidade.

A partir desta interpretação da história Marx apresentará o comunismo como o desfecho final da história dos conflitos sociais. O comunismo seria a solução definitiva dos conflitos entre ricos e pobres.

Na nova sociedade comunista, não haveria lugar para a burguesia, para aquela mesma burguesia que, também segundo Marx, “criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (1988, p.79).

Marx reconheceu o papel revolucionário da burguesia na Revolução Francesa, mas, ao mesmo tempo, anunciou a sua morte. Não haveria lugar para ela no futuro comunista.

Com as revoluções comunistas a burguesia foi eliminada da Rússia após a revolução de 1917; de Cuba, em 1958; da China, em 1949; etc.

Todavia, vários países que entraram ou foram obrigados a entrar na aventura comunista anti-burguesa, e que no final da década de 1980 abandonaram o comunismo e ingressaram na economia capitalista de mercado - como os países ex-comunistas do leste europeu -, tiveram que direcionar seus esforços na criação de uma nova classe empresarial. Descobriram que se com os burgueses era ruim, sem eles era pior ainda.

A burguesia era vista como espécie de “pecado original” da sociedade moderna, a ser eliminado com a revolução.

Os reformistas não são contra a burguesia, mas contra a exploração burguesa, e afirmam que a exploração burguesa pode ser combatida sem a eliminação da burguesia.

Para os reformistas, o capitalismo é como uma galinha dos ovos de ouro. Não querem a morte da galinha, mas uma melhor distribuição dos ovos.

Entre o sonho e a realidade

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Paradoxalmente, mesmo reconhecendo o papel revolucionário da burguesia, Karl Marx, no Manifesto do Partido Comunista, anuncia também o “inevitável” desaparecimento dela.

Para Marx, as constantes crises do capitalismo seriam as armas que poderiam ser utilizadas pelos operários para “trazer a morte à burguesia” (1988, p.82).

Tal morte (estrutural) da burguesia derivaria, segundo as previsões de Marx, de um processo de deterioração gradual das já precárias relações entre capital (empresários) e trabalho (operários), caracterizado pelo crescente enriquecimento da burguesia, que seria acompanhado por um inevitável processo de proletarização da classe média e pauperização do proletariado. Ou seja, a tendência geral do capitalismo seria a de tornar a classe média cada vez mais pobre e os pobres cada vez mais miseráveis.

A autodestruição do capitalismo e da burguesia derivaria deste duplo processo de enriquecimento da burguesia e empobrecimento do proletariado. O inevitável distanciamento entre burguesia e proletariado seria a mola que levaria ao salto revolucionário, onde “o proletariado estabeleceria sua dominação pela derrubada violenta da burguesia” (Ibidem, p.87).

Hoje, sabemos que tal previsão catastrófica não se realizou nos países do mundo onde ocorreram entendimentos sindicais entre empresários e trabalhadores assalariados. As reformas sociais superaram os conflitos: reformas salariais por meio de lutas sindicais.

Marx pensava que o operário moderno “longe de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de sua própria classe”, e a existência da burguesia seria “incompatível com a da sociedade” (Ibidem, p.87).

Ora, a pobreza dos operários era incontestável. Não havia garantias jurídicas (constitucionais, trabalhistas) para os trabalhadores assalariados. Mas não havia, também, fundamento científico na tese da rejeição da reformabilidade do capitalismo e da burguesia.

Na nova sociedade marxista não haveria lugar para a burguesia. O proletariado seria o “coveiro” da burguesia (Ibidem, p.88). A eliminação dela e a vitória dos seus “coveiros” seriam acontecimentos históricos quase inevitáveis.

“O proletariado”, ainda segundo o Manifesto, deveria “utilizar sua supremacia política para arrancar todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante” (Ibidem, p.95). Como sabemos, o feitiço virou-se contra o feiticeiro, e o proletariado não construiu a sua ditadura, mas foi vítima dela.

Para o historiador francês François Furet, “a idéia comunista viveu mais tempo nos sentimentos que nos fatos... a sua trajetória imaginária foi mais misteriosa do que a história real” (1995, p.07).

O marxismo foi mais desejo de libertação do que ciência da revolução. Paixão política caracterizada pelo ódio contra a burguesia e contra os valores burgueses. Paixão que entusiasmou intelectuais do mundo inteiro com o anúncio do advento de uma terra prometida que nasceria das cinzas da derrubada violenta da burguesia.

Mudanças estruturais por meio de reformas sociaisMarx acreditava na autodestruição do capitalismo, pelos processos constantes de

empobrecimento da classe média e do proletariado. Tal empobrecimento pioraria o já terrível quadro de miséria dos trabalhadores assalariados, provocando um clima de indignação e revolta coletiva entre os operários das indústrias.

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Tal previsão catastrófica não se realizou devido às intervenções reformistas dos sindicatos de trabalhadores assalariados.

Por meio das lutas sindicais, os operários conquistaram melhorias salariais, e se afastaram da revolução: “Se podemos melhorar a vida dentro do capitalismo, por que lutar contra ele?”, pensaram os operários que adotaram o reformismo. Os operários se aburguesaram e passaram a lutar por melhorias no sistema, ao invés de lutar pelo seu fim.

A expressão aburguesamento dos operários tem um sentido prático e teórico. No sentido prático significa desfrutar dos benefícios da sociedade de consumo. Os

críticos do aburguesamento dos operários dizem que isso significa acomodação, mas os defensores de tal comportamento afirmam que significa bom-senso, razoabilidade.

No sentido teórico, aburguesamento significa reconhecer a superioridade econômica do estilo de vida burguês (pequeno-burguês).

As reformas sociais demonstraram que as relações entre trabalhadores e empresários não estavam automaticamente destinadas à catástrofe. Poderiam melhorar por meio de conquistas sindicais reformistas: legislação trabalhista; reformas salariais; férias remuneradas; licença maternidade; etc. As reformas sociais derrubaram a crença na inevitável destruição do capitalismo.

Os principais responsáveis pelo sucesso do reformismo foram os sindicatos operários reformistas e aqueles empresários que compreenderam que a superação dos conflitos sociais traria vantagens também para eles. O medo das revoltas motivou empresários reconhecerem valor nas reformas sociais ao menos por uma questão de sobrevivência. Depois, perceberam também que um operário com melhores salários é mais útil ao sistema porque gasta mais.

No Brasil, as desigualdades sociais estão pelas esquinas de todas as cidades. Foram feitos poucos investimentos na diminuição das desigualdades sociais, pela transformação dos pobres em cidadãos de classe média. As reformas sociais são sempre prometidas, mas pouco realizadas.

Ao invés de programas de reformas, os governos adotam geralmente políticas assistencialistas destinadas a objetivos eleitoreiros.

Marxismo-bernsteiniano (social-democracia)Os reformistas não defendem o capitalismo e a burguesia de forma ingênua. O que o

reformismo propõe é a correção social do capitalismo e da atuação da burguesia por meio de reformas sociais, sobretudo salariais.

O pai do reformismo laico foi Eduard Bernstein, autor de uma profunda revisão crítica do pensamento marxista.

Bernstein é a referência política central da tradição reformista, ou social-democrata. E seu pensamento revisionista tem como base de apoio o pensamento marxista.

Podemos dizer que os reformistas são marxista-bernsteinianos, ao contrário dos revolucionários, que são marxista-leninistas.

Foi no livro “Os Pressupostos do Socialismo e a tarefa da Social-Democracia”, de 1899 - publicado no Brasil pela Jorge Zahar Editor com o título “Socialismo Evolucionário” (Rio de Janeiro, 1997) – que, contrariamente às previsões catastróficas de Marx, Bernstein constatou que o incremento da produção, por meio do progresso tecnológico, unido ao sucesso das lutas sociais reformistas (sindicalismo reformista), poderia melhorar concretamente, no capitalismo, a situação político-econômica dos

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operários, demonstrando que o capitalismo é socialmente reformável e desmentindo as previsões da inevitável autodestruição.

O aburguesamento dos operários era a exceção e não a regra, mas o surgimento de uma exceção deste tipo, quando a regra rígida prevista por Marx falava em inevitável pauperização, acabou transformando a luta reformista no objetivo principal de amplos setores do movimento operário. Por que jogar-se numa aventura revolucionária - onde se sabe o que se quer destruir, mas não se sabe muito bem o que se quer construir - se é possível obter melhorias mediante reformas, dentro do sistema vigente (capitalista)?

Aos poucos o reformismo foi conquistando espaços, sendo, hoje, praticamente, o ponto de referência político principal dos movimentos e partidos de luta pela diminuição das desigualdades sociais.

Bernstein foi odiado pelos revolucionários marxistas, dando início a uma cisão que dividirá a esquerda em duas partes antagônicas: de um lado, a esquerda reformista, social-democrata (marxista-bernsteiniana) e, de outro, a esquerda revolucionária (marxista-leninista).

A esquerda reformista quer reformas no sistema e a esquerda revolucionária queria o fim do sistema capitalista burguês.

As reformas sociais podem ser reivindicadas somente onde houver liberdade política. Por isso, a democracia representativa (ou democracia indireta, exercida por meio de representantes) deixa de ser vista como democracia “burguesa” (concepção pejorativa dos seus opositores) e passa a ser valorizada como método político por excelência. Método não somente da burguesia para a burguesia, mas, também, dos operários para os operários.

Os reformistas querem a democracia social por meio da democracia política.Para eles, liberalismo e socialismo não são posições antagônicas, mas

complementares.Surpreendente a constatação do reformista italiano Carlo Rosselli (1899-1937),

autor do livro Socialismo Liberal, para o qual o proletariado é o “herdeiro da função liberal” desenvolvida inicialmente pela burguesia (1997, p.133).

Para a burguesia, a Revolução Francesa é ponto de chegada. Para os trabalhadores assalariados, é ponto de partida na luta pela sua emancipação econômica.

A Revolução Francesa foi iniciada pela burguesia, mas precisa ser completada pela ação dos movimentos sociais reformistas de trabalhadores assalariados.

Reformismo não significa paliativo, mas radicalização da democracia: não só democracia política, mas, também, econômica; popularização das conquistas liberais da burguesia: teoria e prática da conquista popular do poder econômico por meio do exercício do poder político, ao interno de um quadro capitalista e liberal-democrata.

O reformismo quer mudanças no sistema (capitalista e liberal-democrata) e o revolucionário queria a mudança de sistema.

O reformista percebe, no capitalismo e na liberal democracia, pontos positivos e negativos. Quer modificar os negativos, conservando os positivos. Por isso é uma posição ao mesmo tempo progressista e conservadora. Já o revolucionário marxista-leninista, em nome da edificação de uma sociedade futura perfeita, ou ao menos quase perfeita, não encontrava pontos positivos, mas, somente, negativos nas sociedades capitalistas (economia “burguesa”) e liberal-democratas (democracia “burguesa”).

O reformista não acredita na edificação de uma sociedade perfeita, nem quase perfeita. Ele quer uma sociedade que seja melhor, e acredita que a economia burguesa pode

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e deve ser também economia operária, assim como a democracia burguesa pode e deve ser também democracia operária.

O reformista não é contrário às liberdades burguesas, quer somente que elas sejam conquistadas também pelos trabalhadores assalariados.

O revolucionário era favorável à eliminação da burguesia, e o reformista acredita que a ascensão econômica dos trabalhadores assalariados depende também da ação empreendedora da burguesia, ascensão esta que, na prática, significa, sobretudo, transformação dos pobres em classe média.

O reformista valoriza a burguesia, e não apenas a tolera. O revolucionário acreditava que o proletariado seria o “coveiro” que a enterraria por meio de uma revolução.

Quem seria capaz, hoje, de acreditar em desenvolvimento econômico sem empresas privadas e empreendedores?

As empresas e os empreendedores são importantes para as cidades, para os países, para os trabalhadores assalariados.

O revolucionário não acreditava na possibilidade de justa conciliação entre burguesia e proletariado, capital e trabalho, liberalismo e socialismo. Para o reformista, tais metas são possíveis, necessárias e urgentes.

Da assistência estatal às reformas sociaisOs revolucionários combateram o reformismo tanto quanto os conservadores porque

temiam que, com as reformas sociais, os processos de aburguesamento dos operários se acelerassem e a revolução perdesse sua força de atração.

Os reformistas não acreditam num mundo perfeito, sem problemas, com soluções definitivas. Lutam por um mundo melhor, e é por isso que são chamados também de melhoristas.

O movimento reformista surgiu a partir da revisão de Bernstein, no final do século XIX, assumiu uma forma mais explícita em 1959, com as declarações da social-democracia alemã em Bad Godesberg, e está em constante processo de revisão e reformulação.

No Brasil, há vários partidos reformistas, e o debate não é mais entre reforma ou revolução, mas entre tipos de reformismo.

Algumas fórmulas e experiências social-democratas de décadas recentes estão sendo revisadas e corrigidas. Trata-se da correção dos exageros do assim chamado Estado do Bem-Estar Social. Exageros que acabaram paralisando investimentos e afogando os cidadãos no excesso de tributação.

Poderíamos dizer, em síntese, que o reformismo, hoje, quer passar do Estado do Bem-Estar à Sociedade do Bem-Estar.

Estado do Bem-Estar é aquele que assume a responsabilidade financeira de garantir uma renda mínima satisfatória para os cidadãos desempregados, ou subsídios para aqueles outros que, com o próprio trabalho, não conseguem atingir um patamar econômico satisfatório para a alimentação, educação, saúde e habitação sua e de sua família. Tais políticas foram promovidas principalmente em alguns países do norte da Europa Ocidental.

Estado do Bem-Estar significa proteção econômica do cidadão pelo Estado. Esta concepção do papel do Estado foi praticada em muitas democracias ocidentais modernas para resolver problemas de instabilidade social, em função da construção da estabilidade, mas, posteriormente, ao invés de gerar estabilidade, gerou também instabilidade, insatisfação em muitos setores da opinião pública.

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O problema é que o aumento das despesas do Estado com subsídios de proteção social exige sempre novas entradas, incremento da arrecadação pelo aumento das alíquotas dos impostos já existentes e criação de novas taxas.

Quem garante o funcionamento deste sistema de proteção social estatal são os contribuintes, e tais contribuintes constatam que o Estado do Bem-Estar, além de caro (exige carga fiscal cada vez maior porque a torneira do subsídio social tende a se transformar em cachoeira) nem sempre é eficaz.

A sociedade necessita mais de novos empregos e melhores salários do que de subsídios estatais. Até porque tais subsídios se prestam a fins eleitoreiros, e o Estado do Bem-Estar é usado como máquina de arrecadar votos por meio da assistência social, espécie de cabo eleitoral mantido com o dinheiro dos contribuintes.

Os trabalhadores se emancipam com educação, emprego e melhores salários, e não por meio do assistencialismo eleitoral de Estado.

4.ÉMILE DURKHEIM E A RECONSTRUÇÃO DA COMUNIDADESe você tiver a oportunidade de passar algumas semanas na Suíça perceberá que se

trata de um ótimo país, mas que tem também seus problemas sociais, mesmo se diferentes dos nossos. Eles não têm favelas, mas têm problemas sociais. Há jovens que se drogam até morrer e há jovens que se suicidam, mesmo tendo dinheiro no bolso. Eles têm problemas sociais, mesmo não tendo problemas sócio-econômicos, ao menos do porte dos nossos.

Conheci lá um rapaz que dizia precisar visitar o Brasil uma vez por ano, para poder viver relações humanas mais diretas, menos formais. Dizia que as relações entre eles na Suíça eram mais frias que no Brasil.

As pessoas que se embriagam se drogam ou se suicidam - muitas delas com bastante dinheiro no bolso - nos provam que a falta de um sentido válido para a vida é também um problema social, mesmo não sendo problema econômico.

A sociologia não estuda apenas as desigualdades sociais e os problemas socioeconômicos. Em 1897, Émile Durkheim publicou o livro Le Suicide (o suicídio), um estudo sociológico sobre o suicídio, manifestando seu interesse por problemas sociais diferentes daqueles econômicos, estudados por outros autores.

Certamente nos lembramos dos cinco jovens de classe média de Brasília que atearam fogo num índio há alguns anos. Matar uma pessoa por divertimento é problema social, mesmo não sendo problema econômico. E é problema grave, de ordem cultural, moral, referente aos valores coletivos que temos ou que perdemos pelos caminhos tortuosos da modernidade.

Educação e adaptação socialÉmile Durkheim (1858-1917) nasceu 10 anos após a publicação do Manifesto do

Partido Comunista e morreu no ano da Revolução Comunista na Rússia (1917).Sua atenção intelectual se voltou para a compreensão de temáticas diferentes

daquelas típicas do marxismo, às vezes ignoradas ou até desprezadas por marxistas.Certa vez conversei com um estudioso marxista sobre o tema do suicídio, e ele disse

que se tratava de uma “preocupação pequeno-burguesa, coisa de gente que não tem o que fazer na vida”. De fato, quem se mata é porque não sabe mais o que fazer com a vida. O problema é que a expressão “preocupação pequeno-burguesa” escondia a desqualificação

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de questões não diretamente relacionadas à revolução. “Isso é coisa típica de classe média”, dizia outro intelectual marxista todas as vezes que queria dizer que determinadas questões nem valiam a pena serem estudadas. Problemas existenciais como a tristeza, o tédio e o suicídio eram considerados “coisas de classe média”, de pouco valor.

Durkheim não era um utopista revolucionário, mas um analista realista. Para ele os seres humanos são muito mais reprodutores de velhas tradições do que criadores de inovações. E o caráter não-utópico de suas reflexões fez com que ele fosse desprestigiado pelos entusiasmados defensores de revoluções sociais.

Durkheim se preocupou mais com a integração do indivíduo na sociedade do que com o tema das revoluções sociais. Por isso, os revolucionários o rotularam como “burguês conservador”, socialmente inútil.

Pensando na sociedade como sujeito principal nos processos sociais de transmissão de valores, o sociólogo francês afirmou que educação significa “ação exercida por uma geração sobre a geração seguinte, com o fim de adaptá-la ao meio social em que esta última está chamada a viver” (1978, p.60).

Educação é ação da geração adulta sobre a jovem, para adaptá-la às exigências da sociedade.

Ora, para os que concebiam a educação como conscientização do proletariado em função da revolução anti-burguesa e anti-capitalista, a expressão “adaptação social” soava como blasfema.

Os defensores da revolução interpretaram a adaptação social como adaptação conservadora, conformista. Todavia, a adaptação social não é necessariamente conformista. Ela pode ser crítica.

Adaptação social crítica – posição reformista de quem se insere na sociedade de forma crítica, selecionando o melhor.

Adaptação social conformista – posição típica das nossas atuais sociedades de consumo, nas quais as pessoas consomem acriticamente os produtos divulgados pela publicidade televisiva: a música do momento, a roupa do momento, a sandália do momento, o salgadinho do momento, a gíria do momento.

A escola certamente deve ser um instrumento de resistência à cultura de massa, idéia que é compatível com a adaptação social crítica, e não com a adaptação social conformista.

Segundo Durkheim, “estamos mergulhados numa atmosfera de idéias e de sentimentos coletivos que não podemos modificar à vontade” (1978, p.60). Não que ele tenha dito que mudanças sejam impossíveis. Elas são complexas.

Aqui está um dos pontos que aborrecia os revolucionários: Durkheim, com suas afirmações realistas, jogava água na fogueira do entusiasmo dos revolucionários.

No seu entender, “cada sociedade - considerada num momento determinado do seu desenvolvimento - possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de modo geralmente irresistível” (Ibidem, p.36).

Para Durkheim, quem educa não é tanto a escola, mas a sociedade. A sociedade é a grande pedagoga. E educação significa, sobretudo, transmissão cultural e adaptação social.

Aquilo que uma geração construiu não se perde, mas é transmitido para a geração seguinte, através dos meios educativos de que a sociedade dispõe. Modificações serão possíveis neste processo, mas com o realismo de quem admite que elas inserir-se-ão num quadro geral caracterizado pela reprodução de noções precedentes.

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Integração e desintegração socialProfessor de moral, pedagogia e sociologia, no livro “Da Divisão do Trabalho

Social” (1893) Émile Durkheim analisa a crise da solidariedade tradicional e o desfecho desta crise em situações patológicas de anomia social, que ele explicará, por sua vez, 04 anos depois, no livro “O Suicídio – Estudo de Sociologia” (1897).

No seu estudo sobre as causas sociológicas do suicídio, Durkheim constatou que as mudanças provocadas pela Revolução Industrial no estilo de trabalho e de vida das pessoas e comunidades, geraram situações de crise capazes de incrementar as taxas de suicídio.

Tal crise consistia na perda ou enfraquecimento do sentimento de pertença a uma comunidade, pela perda dos vínculos morais tradicionais que integravam os indivíduos numa comunidade.

Durkheim estudou o que podemos chamar de crise do cimento, onde o cimento - a cola que une a sociedade, que une os tijolos e gera uma estrutura social mais ou menos sólida, dependendo da sua qualidade - é o consenso social, a coesão social em torno de algumas normas sociais comuns, obrigatórias.

Crise do cimento: assim como não podemos chamar de estrutura arquitetônica um amontoado de tijolos sem cimento (cola), sem um objetivo, não podemos chamar de estrutura social um simples amontoado de pessoas. Nenhum muro é sólido sem cimento. Da mesma forma, não existe comunidade só com pessoas, sem uma argamassa capaz de fazer delas uma comunidade, unida por valores e objetivos específicos.

O cimento que une os tijolos é fácil de identificar, mas o cimento social, mesmo sendo também real, não é de fácil identificação. Qual é o cimento social que faz das pessoas uma comunidade?

Imagine um ônibus de linha e um de excursão. Cada um com trinta pessoas, saindo do mesmo lugar e para as mesmas cidades. Qual a diferença entre eles? “A bagunça”, alguém poderia responder. E é verdade. Mas por que num há bagunça e noutro não? Porque no ônibus de excursão as pessoas se conhecem, há vínculos entre elas. Esses vínculos são invisíveis, mas tão reais quanto o cimento das construções.

O cimento das construções humanas são os vínculos entre as pessoas: normas, relações, valores e objetivos que as unem numa comum-unidade (comunidade). O cimento é o consenso social (aquilo que sinto com os outros). Quando não há cimento suficiente, um muro é derrubado pelo vento.

O mesmo ocorre nas estruturas humanas: sem valores, são frágeis, pouco resistentes às intempéries.

Conheci uma família pobre onde todos esmolavam pelas ruas da cidade e se encontravam em determinadas horas do dia em lugares combinados para rezarem pela própria situação e para que um pudesse dizer ao outro os próprios problemas. Eram pobres no bolso, vítimas de uma sociedade injusta, mas não estavam na crise do cimento: os valores fortes impediam que eles perdessem a própria unidade familiar. Eram pobres de dinheiro, mas ainda ricos de valores.

Durkheim constatou que a Revolução Industrial mudou as relações entre as pessoas e provocou anomia (crise do cimento): patologia social caracterizada pelo enfraquecimento dos vínculos societários pelas mudanças radicais que ocorreram no final de 1700 e início de 1800, transformando as comunidades tradicionais em sociedades anômicas ou tendentes à anomia (sociedades modernas).

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Consenso social e anomiaO consenso social foi radicalmente modificado, alterado pela Revolução Industrial,

que transformou as sociedades rurais e as pequenas cidades de trabalho artesanal em metrópoles industriais, anômicas.

A Revolução Industrial mudou o consenso social tradicional. A vida no campo e na pequena cidade artesanal e comercial era sustentada por um

modo específico de pensar e de viver que não era mais válido na grande cidade industrial. As pessoas foram obrigadas a transformar o sentido coletivo de viver no campo num novo estilo de vida, próprio para as cidades industriais nascentes.

Para Durkheim, há dois tipos de consenso social: consenso mecânico, ou tradicional, das sociedades pré-industriais, que ele chamou de solidariedade mecânica; e consenso orgânico, funcional, das sociedades industriais, que ele chamou de solidariedade orgânica.

A solidariedade mecânica é a solidariedade por semelhança, onde os indivíduos pouco diferem uns dos outros. É o consenso social típico das sociedades tradicionais, pré-industriais, onde os membros de uma mesma comunidade têm os mesmos sentimentos, os mesmos valores. Nestas sociedades, a consciência coletiva é mais sólida, e mais forte é a indignação com o crime, concebido como ato proibido pela consciência coletiva, como violação do imperativo social, que exige um direito caracterizado pela repressão: punição dos crimes ou das faltas contra a consciência coletiva. Nas sociedades tradicionais a consciência coletiva é mais forte que a consciência individual.

Já na solidariedade orgânica, típica das sociedades modernas, industriais, urbanas – onde o local de trabalho foi separado do local de habitação -, o consenso social resulta da diferenciação das funções (solidariedade funcional). Os indivíduos não se assemelham. As partes são diferentes, mas dependem umas das outras, se complementam no trabalho (diferenciação e dependência).

Este segundo tipo de consenso foi gerado pela divisão social do trabalho, típica da Revolução Industrial, onde ocorre a multiplicação das atividades industriais e a diferenciação das tarefas ao interno da indústria.

Nas sociedades industriais urbanas, há maior margem de liberdade na interpretação dos imperativos sociais (obrigações sociais impostas pelo grupo de pertença), maior autonomia da vontade e maior abertura às decisões individuais. Prevalece o direito restitutivo, onde o fundamental não é a punição da violação das regras sociais (crime contra a consciência coletiva), mas a reposição daquilo que foi violado (pagamento de uma dívida).

Nas sociedades profissionalmente diferenciadas (sociedade industrial), os indivíduos são mais autônomos e a consciência coletiva é bem menos rígida. Mas, se por um lado o enfraquecimento da consciência coletiva gera uma sociedade com menor controle social, e maior liberdade de decisão, o outro lado desta medalha é que estes indivíduos mais livres são, também, menos protegidos socialmente pela comunidade de pertença.

O ser humano típico desta nova sociedade é mais livre, mas mais isolado do grupo, menos protegido pela comunidade: mais livre e mais só.

A consciência coletiva das sociedades de solidariedade mecânica era mais rígida, as pessoas se sentiam mais controladas, até vigiadas, mas, também, mais protegidas socialmente.

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As sociedades modernas tendem à anomia e o desafio maior é o de manter ou produzir um minimum de consciência coletiva, para que a solidariedade débil, de tipo orgânico, não degenere em desintegração social.

A anomia consiste na ausência deste mínimo de consciência coletiva, pela ausência ou enfraquecimento de vínculos satisfatórios que sustentem a comunidade. Trata-se de uma patologia social das sociedades industrializadas que pode produzir comportamentos individuais extremos, como a prática do suicídio (suicídio anômico).

Retorno à comunidadeO consenso social é necessário à vida humana. Sem um forte sentido de pertença à

comunidade o indivíduo pode não sobreviver às intempéries da vida (suicídio anômico). Mas como recriar o sentido de pertença a uma comunidade, numa sociedade onde a consciência coletiva é cada vez mais fragmentada e enfraquecida, e onde a sobrevivência individual e a competição são ingredientes do próprio sistema econômico?

Durkheim indicou os grupos profissionais como espaço privilegiado de recriação do consenso perdido. Mas podemos dizer que qualquer grupo vale (exceto as quadrilhas) na recriação do consenso social perdido.

Superação da anomia significa recriação da identidade comunitária do indivíduo.Recriação, pelo grupo social, do sentimento de pertença do indivíduo a uma dada

comunidade de valores.O grupo social pode ser a minha prisão ou ocasião privilegiada de comunicação e

fortalecimento do meu ser pessoal pela partilha de valores e significados.Interpretando o pensamento de Émile Durkheim, o sociólogo Raymond Aron,

também francês, afirmou que, para Durkheim, “o problema social não é um problema econômico, mas principalmente um problema de consenso, isto é, de sentimentos comuns aos indivíduos, graças aos quais os conflitos são atenuados, os egoísmos recalcados e a paz mantida. O problema social é um problema de socialização” (1982, p.346).

Sem normas sociais a vida coletiva se torna impossível. E a vida é coletiva, mesmo nas suas versões mais individuais. Até os monges, que se retiram à solidão, o fazem pela multidão: rezam pela humanidade (PENCO, 2000).

Na modernidade, os laços que prendem o indivíduo à comunidade são mais frágeis. O consenso social moderno é precário, e a sua precariedade talvez seja a maior prova da sua necessidade.

A autonomia adquirida pela separação do local de trabalho e de habitação e pela divisão do trabalho social torna o indivíduo moderno mais adverso aos imperativos sociais da comunidade.

Antes da Revolução Industrial as pessoas residiam e trabalhavam no mesmo local por décadas e até por séculos. Havia uma maior aproximação geográfica entre as pessoas de uma mesma comunidade por um maior período de tempo. As pessoas viviam mais tempo sob a disciplina dos mesmos valores. Se, por um lado, tal disciplina poderia ser vista hoje como uma prisão cultural, por outro significava também maior proteção social. A mobilidade horizontal (mudança de uma cidade a outra) era coisa raríssima. Hoje, é o que há de mais comum. E as pessoas não apenas se mudam. Elas vivem em situação de mudança: pensemos, por exemplo, nos universitários que estudam numa cidade (onde está a universidade), moram noutra, trabalham numa terceira cidade e seus namorados (as) residem numa quarta cidade. Passam boa parte da vida acadêmica dentro de carros e

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ônibus. Além disso, sabem que ao término dos estudos existe ainda a possibilidade de mudança para outra cidade ou mesmo outro país. Com o surgimento das indústrias e com o conseqüente crescimento das cidades, a solidariedade tradicional se diluiu ou se perdeu. Os valores de referência fornecidos por uma dada comunidade foram se enfraquecendo, substituídos pela concorrência e pela qualificação do indivíduo, não do grupo.

O ser humano moderno gira para lá e para cá como se fosse o elo separado de uma corrente despedaçada à procura da força do consenso perdido. A consciência coletiva (valores e crenças comuns) se enfraquece, e diminui a coesão social com a diminuição do consenso tradicional e insuficiência do novo consenso. Assim, a sociedade moderna fica ameaçada de desintegração, gerando um ser humano socialmente desprotegido.

Sem o sentido de pertença social, crescem as chances de anomia, com a decorrente decomposição social e dissolução do indivíduo na massa.

Nas sociedades industriais o que se busca não é a qualificação do grupo, mas do indivíduo. A convivência tradicional quase definitiva do indivíduo ao interno de uma mesma comunidade de valores dá lugar a uma movimentação constante em busca da qualificação profissional (pessoal), em detrimento da qualificação da comunidade e dos vínculos comunitários.

Nas sociedades modernas a qualificação profissional do indivíduo é exaltada e a qualificação da sua comunidade de pertença é negligenciada quando não chega a ser até desqualificada. A comunidade (família e outros grupos específicos de pertença) perde valor, e o trabalho (com a qualificação profissional) passa a ser supervalorizado.

O ser humano moderno perde rapidamente o próprio sistema de valores de referência, não encontrando um substituto culturalmente satisfatório, capaz de suprir tal perda.

Imaginemos a situação de uma moça que reside numa cidade pequena e, por motivo de trabalho ou de estudo, se transfere para uma cidade grande.

Nas primeiras semanas, ela diz alegremente: “Puxa, aqui ninguém se mete na minha vida!”.

Na sua cidade de origem, com poucos habitantes, quando ela comprava um par de sapatos novos, já no outro dia as amigas (e as inimigas) tinham conhecimento do número, cor e preço do seu novo par de sapatos.

Quando ela abria a janela pela manhã, a vizinha já a esperava para fazer algum comentário.

Nada daquilo que ela fazia passava em vão, e ela se sentia escrava do controle exercido pela sua comunidade.

Por isso, a sua alegria na nova experiência, na cidade grande, onde ela se sentia agora mais livre das observações dos vizinhos, dos parentes, dos amigos e dos inimigos.

Todavia, três ou quatro meses depois, a sua alegre constatação inicial se transforma em sensação de abandono: “Puxa, aqui ninguém sabe nada sobre mim. Corro o risco de morrer na rua e ser enterrada como indigente”.

Ela se sentirá só, mesmo em meio à multidão.A sensação de liberdade passa a dar lugar à insegurança, à saudade da vizinha

bisbilhoteira, cuja bisbilhotice exprimia um mínimo de interesse por ela. Na sua comunidade de origem havia controle e, também, proteção.

Agora, com saudades, passará a enaltecer ao extremo as virtudes da sua comunidade: as festas, o bate-papo na praça, o queijo do seu fulano, as galinhas da granja do seu beltrano.

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A sua pequena comunidade será o seu ponto de referência cultural, mesmo que ela se encontre a dezenas ou centenas de quilômetros.

Sentir saudades de alguém ou de alguma coisa significa sentir-se parte do que sentimos saudades. Podemos sentir saudades de uma cidade, de um país, de uma pessoa, ou de uma experiência bonita que fizemos no passado.

Vimos que Durkheim indicou os grupos profissionais como instrumentos de recriação do consenso perdido. Para ele as associações profissionais não teriam somente uma função reivindicativa, como os sindicatos, mas uma função integrativa.

A superação da anomia depende da experiência de pertença a um grupo, com identidade definida, valores definidos e força de agregação capaz de revigorar a identidade do indivíduo pelo fortalecimento dos vínculos comunitários.

Podemos observar que, no caso do problema das drogas, a superação do vício não depende de tratamentos farmacológicos, mas, sobretudo, da utilização de terapias de caráter social: comunidade terapêutica.

Na comunidade terapêutica, o ex-dependente de drogas revigora suas determinações pessoais aderindo a valores fortes, rígidos, criados pelo grupo em função do fortalecimento da personalidade do indivíduo pelo fortalecimento dos vínculos comunitários.

Todas as comunidades livremente escolhidas e sustentadas têm força terapêutica, poder terapêutico, função terapêutica, e não apenas as comunidades de recuperação de ex-viciados em alguma coisa: álcool, drogas, compras (comunidades dos devedores anônimos).

A comunidade é forte antídoto à anomia, e prova que o grupo é importante no fortalecimento da personalidade do indivíduo.

A comunidade pode ser asfixiante porque vigia, controla, mas ela também protege das tendências destrutivas da desagregação social. Por isso, é ponto de partida de uma vida nova, integrada, onde se aprende a viver a liberdade de uma forma socialmente contextualizada, condição para a felicidade do ser humano, que é um ser social.

5.MAX WEBER E A SOCIOLOGIA DO DESENCANTOIndustrialização e racionalizaçãoNo célebre livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905), Max

Weber (1864-1920) explicou que alguns valores da ética protestante (cultura protestante): entender a riqueza como sinal de predestinação (salvação), e ética do trabalho (que afasta o puritano dos vícios), conduziram tais protestantes à acumulação e investimento de capital lá onde era moralmente lícito gastá-lo, ou seja, no trabalho, favorecendo o desenvolvimento do capitalismo.

Os protestantes estudados por Weber entendiam a riqueza como sinal da bênção de Deus, ao contrário de outros cristãos, para os quais a riqueza representaria obstáculo à salvação. Ora, tal visão favorecia a busca do dinheiro para “confirmar” o benefício da salvação, e esse dinheiro não poderia ser desperdiçado, mas investido no trabalho, o que favoreceu, repetindo, o desenvolvimento do capitalismo (sistema econômico).

Riqueza e pobreza podem ser interpretadas diversamente pelos cristãos. O italiano Francisco de Assis (1182-1226), quando aderiu mais profundamente ao cristianismo, abandonou sua posição econômica – era filho de um comerciante rico – e, durante toda a sua vida, procurou a “irmã pobreza”. Ele procurou riquezas espirituais e viveu como mendigo. Sua escolha atraiu muitos jovens, que formaram o movimento franciscano.

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A cultura também condiciona a economia e não apenas é por ela condicionada.Weber rompe com a tradição economicista ao demonstrar que os fatores culturais

podem ser determinantes na explicação dos fenômenos sociais. A cultura, antes entendida como conseqüência e não causa, passa a ocupar lugar de destaque na explicação dos problemas sociais, abandonando a posição periférica que ocupava.

Estudioso de história, economia, filosofia, direito, teologia e sociologia, Weber identifica quatro tipos de ação social, constatando que a ação racional em relação a um objetivo é a que predomina nas sociedades industriais modernas.

Os quatro tipos de ação social são:1.Ação racional em relação a um objetivo: a meta condiciona a elaboração de um

programa para a sua realização. É a ação planejada, calculada para a realização de um objetivo, mas não possui parentesco com a máxima imoral segundo a qual fins bons justificariam o emprego de meios imorais;

2.Ação racional em relação a um valor: a ação motivada pela fidelidade a um valor, a uma convicção, a um princípio. Podemos citar como exemplo a morte por rejeição da transfusão de sangue pelos seguidores do grupo religioso Testemunhas de Jeová;

3.Ação afetiva ou emocional de quem age por impulso sentimental;4.Ação tradicional de quem age por costumes e tradições.Antes da Revolução Industrial predominavam as ações emocionais e tradicionais.

As pessoas eram movidas mais por tradições do que por escolhas racionais. O desenvolvimento industrial favorecerá o desenvolvimento das ações racionais: o modo de pensar na fábrica, com seus esquemas de planejamento da produção, aos poucos será o modo de pensar típico do ser humano moderno.

A ação racional em relação a um objetivo corresponde à ação do industrial que deve planejar a produção; do engenheiro que se programa para construir uma ponte; do médico que se prepara para realizar uma cirurgia; etc.

Tal modo de pensar já existia, mas com a Revolução Industrial ocorreu o que podemos chamar de “popularização” do pensamento científico, positivista, racional. Não que todos tenham passado a pensar de forma positivista. É que o modo de pensar racional positivista passou a ser o modo padrão de pensar, substituindo o tradicional.

A ação racional em relação a um objetivo possui elementos em comum com o terceiro estado, ou estado positivo, estudado por Augusto Comte na Lei dos Três Estados.

Com a Revolução Industrial o modo de pensar tradicional e emocional acabou deixando de ser o modelo padrão de pensar a vida.

Vejamos os seguintes exemplos:1)Duas pessoas são entrevistadas após uma missa. O entrevistador pergunta sobre as razões de cada uma delas ter ido à missa. Uma diz

que nem sabe, foi por tradição, seus pais são católicos. A outra diz que não participava da missa, mas um dia se converteu e optou por ir à missa.

No primeiro caso a ação foi tradicional, no outro foi racional, em relação a um valor.

2)Se uma mãe coloca o filho de castigo porque ele a “tirou do sério”, ela agiu por emoção. Mas se ela o bota de castigo por uma escolha pensada, planejada, calculada, para obter um resultado pedagógico, ela agiu de forma racional.

Com a Revolução Industrial e a popularização do pensar positivo, racional, as ações tradicionais e emocionais passaram a ser entendidas como ações de segunda categoria. As ações racionais ganham prestígio e as tradicionais e emocionais são desqualificadas.

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As ações tradicionais e emocionais são substituídas por ações onde o agente identifica com clareza os objetivos que deseja alcançar e utiliza os meios disponíveis e eficazes para a realização desses objetivos.

Em suma, a racionalização do trabalho levou à racionalização da vida. Tudo, ou quase tudo, passa a ser calculado, planejado. A crença no planejamento como forma quase infalível de agir substituiu as ações movidas pela tradição e emoção.

O ser humano da modernidade é positivista ou tende a ser positivista. O que promove a negação das formas de pensar e agir mais comumente utilizadas nas sociedades pré-industriais.

As sociedades modernas são sociedades caracterizadas pela racionalização: identificação dos objetivos e dos meios eficazes para a sua realização.

A economia de empresa é racional; a administração burocrática do Estado é racional; e até a festinha de aniversário de um ano de sua filha é racional: deve ser planejada com antecedência e algumas tarefas serão delegadas a profissionais do entretenimento infantil (terceirização).

Na modernidade o planejamento racional é um imperativo social. A sociedade moderna tende a ser racional dos pés à cabeça, e não somente no

âmbito da administração da economia e do poder (político). Tudo pode e deve ser feito de maneira eficaz, racional. Nela tudo pode e deve ser explicado e organizado pela razão. E aqui começam a surgir problemas. Será que tudo pode mesmo ser explicado pela razão? E será que as pessoas gostam de viver numa sociedade positivista, movida por planejamentos (racionais) mais ou menos meticulosos?

O ser humano moderno é positivista. O pré-moderno agia por tradição e emoção. E como age o ser humano pós-moderno, de hoje?

Racionalismo e desencantoNum grande shopping de Florianópolis (SC), a lojinha que vende duendes e gnomos

está sempre com clientes. Várias lojas já fecharam em tal shopping, mas não a que vende bruxinhas.

Não há algo que seja mais irracional que duendes, gnomos, bruxinhas. E há muita gente que gosta de acreditar neles. A modernidade racionalista tentou colocar a matemática no lugar da religião, eliminando os mistérios, que passaram a ser concebidos como uma etapa primitiva, da fase supersticiosa da história da humanidade. Entretanto, os mistérios não desapareceram. E a incapacidade de explicá-los também.

O homem moderno explicou algumas coisas e prometeu que a explicação de tantas outras seria somente uma questão de tempo.

Nas sociedades modernas, a emoção e a tradição foram desqualificadas, substituídas pela razão, elevada à deusa da modernidade. Nas sociedades pós-modernas, a emoção e a tradição retornam de forma até violenta, irracional.

A modernidade não se equivocou quando investiu no aprimoramento do pensar científico, racional, positivo. Ela se equivocou ao tentar reduzir todo o saber ao saber científico.

A modernidade desencantou as noções tradicionais que davam sentido à vida social antes das revoluções francesa e industrial. Por meio da razão crítica tentou se libertar de tais noções e foi vitoriosa em várias batalhas.

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Na pós-modernidade emerge um outro tipo de desencanto, com os excessos da razão científica.

O “processo de desencantamento” (WEBER, 1993) do mundo tradicional e suas superstições, por meio da razão crítica acabou se voltando contra a própria razão.

Por meio da razão desencantamos o mundo tradicional e, depois, este mesmo processo de desencantamento submeteu a razão científica ao desencanto.

Desencanto e religiãoNas sociedades modernas a ação racional tomou o lugar das ações tradicionais. O

tradicional não desapareceu, mas seu lugar foi ocupado por um estilo de pensar e agir mais racionais.

A força da tradição foi substituída pela força da razão positiva.Nas sociedades racionais, modernas, tudo poderia e deveria ser explicado pela

razão.Da racionalização do trabalho passamos à racionalização como estilo de vida.Explicamos tudo. Entretanto, ao invés de gerarmos um ser humano mais feliz,

geramos um ser humano desencantado. Intelectualmente crítico, mas existencialmente desencantado, entediado e anômico.

A supremacia do saber científico levou a acreditar que todos os segredos poderiam ser revelados e todos os mistérios resolvidos.

Enquanto o mundo anterior à modernidade era cheio de magia, de mistérios, o mundo das sociedades industriais passou a ser um mundo sem fantasias, sem segredos, sem mistérios.

A religião era central nas sociedades anteriores à moderna, mas passou a ser vista como supérflua, ou periférica.

O ser humano moderno não acreditava em nada que estivesse fora do alcance imediato da sua razão. Mas, como um extremo atrai o seu oposto, o racionalismo (extremo) da modernidade gerou um novo fenômeno de massa: o retorno explosivo ao sagrado.

Se o ser humano moderno não acreditava em mais nada, rotulando as explicações religiosas de mera superstição, o pós-moderno parece acreditar em quase tudo: gnomos, duendes, fadas, bruxas e publicidades milagrosas.

O excesso de racionalismo produziu uma religiosidade pouco paciente com as observações críticas da razão.

Em algumas comunidades, a religião da teologia crítica está sendo trocada pela do sentimentalismo, o que favorece o enriquecimento de charlatões que se escondem sob o manto da liberdade religiosa.

A modernidade quis eliminar as superstições, mas acabou favorecendo a irracionalidade e o charlatanismo.

Referências

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CAPÍTULO 2O CAMPO COMO UTOPIA DA CIDADE

“E assim, através da serenidade exterior, a tormenta dos pensamentos e dos sentimentos haverá de serenar” (Anselm Grün).

1.CAMPO, CIDADE E CONTEMPLAÇÃOA cidade por muito tempo esnobou o campo, esnobou as áreas rurais.No sul do Brasil, os agricultores eram chamados pejorativamente de “colonos”,

sinônimo de gente sem cultura, de gente de segunda categoria. O campo representava o atraso geral. E a cidade representava o progresso, a modernidade. O campo representava o antigo, o tradicional que deveria ser superado. E a cidade representava o novo, o moderno que deveria ser expandido. Será que ainda é assim?

Hoje, o antigo voltou a ser de moda, o artesanal também, e mesmo o tradicional. E o moderno, industrial e urbano entraram em crise de credibilidade: prometeram a felicidade e não cumpriram várias das suas promessas.

Com a crise moral das cidades, o campo deixou de ser área culturalmente atrasada para se tornar sinônimo de esperança: no campo as pessoas estão em busca do “paraíso terrestre” que não encontraram na metrópole moderna (a utopia do sítio).

É evidente que há exageros na redescoberta do campo como lugar ideal. Quem conhece o campo sabe que ele tem suas limitações, mas em tais exageros identificamos mudanças de percepção, de valoração do campo e da cidade.

A cidade perdeu valor e o campo adquiriu valor.A cidade não é mais o espaço da liberdade. Ao menos não é mais somente isso.Nas cidades há hospitais e universidades. Mas a cidade é também o espaço da

violência; da criminalidade; da corrupção; da poluição; do desemprego; da favela; do morro pobre; da enchente; da perda do relacionamento com a natureza e com as pessoas; da perda da comunidade; espaço de multidão, mas caracterizado pela solidão humana; espaço condicionado pelo relógio, que é como se fosse uma algema presa ao pulso do trabalhador; espaço caracterizado pelo estresse; etc.

A cidade não esnoba mais o agricultor, não esnoba mais o colono. Agora ela tem até ciúmes do colono. Agora ela o idealiza, o exalta e exagera, pois o

agricultor não vive num paraíso. “O agricultor não vive num paraíso, mas vive num ambiente muito melhor do que o

meu”, disse-me um senhor de uma grande cidade do norte de Santa Catarina que procurava terreno para construir um sítio numa localidade rural do sul de Santa Catarina.

Nas pousadas rurais que freqüento, sempre há perguntas aos proprietários sobre aquisição de terrenos para a realização de sonhos de mudança radical de vida pelo abandono da cidade e transferência definitiva para o campo (utopia do sítio).

Os hóspedes gostam tanto da permanência no campo que sonham em mudar para lá, ou pensam em comprar uma segunda casa para feriados e férias.

A cidade está perdendo sua força de atração, perdendo o fascínio que antes exercia.

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Quem ainda se transfere do campo para a cidade o faz por necessidade econômica: para trabalhar, porque não encontra meios para continuar na agricultura. Mas tal problema está sendo solucionado pelo turismo rural. As pessoas deixam de abandonar o campo por meio do turismo rural.

O campo ocupa hoje o lugar idealizado de paraíso que já foi um dia ocupado pela cidade.

Claro que o campo não é o paraíso terrestre, mas ele exerce força de atração como se fosse um paraíso sonhado, imaginado.

No campo o hóspede busca experiências e valores que ele não encontra mais na cidade, ou não os encontra de forma satisfatória.

Os hóspedes do turismo rural viajam para o campo, se deslocam da cidade para o campo principalmente em busca de significados. O que é significado? Significado é o sentido das coisas, palavras, objetos, experiências.

Uma foto é um pedaço de papel. Uma certidão de casamento é um pedaço de papel. Mas a foto pode ser de sua namorada (o) e a certidão do seu casamento. Uma picanha é um pedaço de carne. Se você for carnívoro, ela é uma festa. Se você for vegetariano, ela é uma vaca assassinada brutalmente.

Hóspedes do turismo rural valorizam os serviços, as experiências e os objetos do campo principalmente por aquilo que eles representam.

Para o ser humano urbano, o leite fresco recém tirado da vaca alimenta muito mais a sua imaginação do que seu estômago.

O mesmo vale para a comida feita no fogão à lenha.O hóspede do turismo rural é um visitante em constante estado de contemplação

movido por uma espiritualidade leiga que o envolve numa rede de significados profundos.Pela contemplação criamos relação com alguma coisa que consideramos bonita,

bela (relação estética).A ética é a identificação do bom, do justo, do correto.E a estética é a identificação do belo, do bonito.Contemplar significa olhar com admiração, olhar embevecidamente, extasiado pelo

efeito da beleza que é contemplada. Olhar com admiração e criar relações com a beleza que contemplamos. Quando contemplamos, somos absorvidos e absorvemos parcialmente a beleza admirada, ou seja, criamos relações de recíproca integração com a beleza que contemplamos.

Na contemplação não esgotamos a beleza contemplada, pois não existe eliminação (pelo consumo) do que se contempla.

Claro que quando olhamos extasiados é porque estamos admirando com os olhos do coração, dos sentimentos, do espírito, da alma – escolha você a palavra que preferir. Ou seja, contemplamos com os olhos internos da nossa sensibilidade, mesmo se com o auxílio dos nossos olhos externos.

Uma pessoa cega pode contemplar a beleza de tantas experiências, e há pessoas sem problemas de visão (exterior) que correm tanto na vida, trabalhando sempre, que não sabem o que seja contemplação.

No turismo rural os olhos internos da sensibilidade estão sempre em busca de belezas a serem contempladas: a beleza de um quadro; de uma refeição bem feita; o sabor do vinho; o canto dos pássaros; uma conversa agradável; a imensidão de uma floresta; a descoberta de uma idéia.

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Contempla-se, também, o ritmo tranqüilo de vida no campo, diferente do ativismo urbano.

Conflito e integração no âmbito do turismoO turismo é uma casa antiga. Engana-se quem pensa que turismo seja experiência

de hoje. Mesmo sem usar a palavra turismo para designar viagens, deslocamentos, o turismo não é experiência nova.

As principais viagens eram feitas por motivos econômicos (comércio), de estudo (viagens exploratórias de pesquisadores) ou motivos religiosos (missionários religiosos).

A viagem por motivo de lazer, e como fenômeno coletivo, é mais recente.Turismo significa deslocamento pelo território (tour significa giro, volta,

deslocamento), movimentação pessoal e coletiva no espaço.Quem estuda o turismo estuda as atividades desenvolvidas por quem se deslocou

(turista) e por quem se relaciona com quem se deslocou.Neste sentido, o turismo é um fenômeno de comunicação entre pessoas e grupos

diferentes. Comunicação entre os que se deslocam e os que se encontram no local para onde os turistas se deslocaram.

Há muito que os seres humanos se deslocam horizontalmente pelos territórios do planeta terra. E quando grupos diferentes se encontram, pode haver integração ou conflito. E os conflitos podem gerar aprendizado ou destruição.

Se Pedro Álvares Cabral não tivesse se deslocado da Europa não teria trazido os europeus para o Brasil. “Que pena!” ou “Que bom!” diriam uns e outros dependendo da avaliação que cada um faz dos resultados gerados pela comunicação entre europeus e brasileiros (índios) a partir da chegada dos europeus ao Brasil.

No turismo há contraste entre culturas diferentes. E tal contraste pode gerar aprendizado ou destruição de quem chega ou de quem recebe.

Quem chega pode ser aniquilado por uma doença local, ou pode ser seqüestrado e morto. E quem recebe pode ser destituído do próprio modo de pensar, da própria integridade física (“turismo” sexual e prostituição infantil) ou ambiental.

Quem se desloca carrega seus valores, sua forma específica de interpretar a vida.Quem acolhe uma pessoa de fora da comunidade pode aprender com o turista, mas

pode, também, dar início à sua ruína cultural.O turista pode trazer conhecimento, simpatia, humildade, respeito, mas pode

representar também uma verdadeira ameaça ao ambiente humano (comunidade local) e natural que o acolhe.

Receber gente de fora é sempre um risco.Os índios receberam os portugueses que chegaram com Pedro Alvarez Cabral. E

isso não os favoreceu: milhões foram assassinados nos últimos cinco séculos!Vivemos num mundo que nem sempre é caracterizado pela bondade desejada. Por

isso, devemos, ao mesmo tempo, praticar o bem que desejamos e, também, defendermo-nos do mal que não desejamos.

Fuga para o campo ontem e hojeDurante vários séculos a Europa conheceu o intenso deslocamento de pessoas da

cidade - homens e mulheres - que se dirigiam para o campo para fundarem mosteiros nas

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áreas rurais ou para ingressarem como monges e monjas nos tantos mosteiros que já haviam sido criados em comunidades rurais de toda a Europa (LAWRENCE, 1995; PENCO, 2000).

O deslocamento dos monges para o campo era deslocamento definitivo. E deslocamento definitivo não é turismo. É mudança de residência. Há turismo somente quando o deslocamento é temporário, ou seja, quando há movimento de ida e volta.

Todavia, os monges recebiam pessoas que se deslocavam para os mosteiros também temporariamente.

Interessa-nos aqui entender por que os monges se deslocavam para o campo.Qual o significado do campo para a vida monástica?A expressão fuga mundis significa fugir do mundo. Mas fugir do mundo não é

geograficamente possível se entendermos o mundo como planeta terra.Somente os astronautas seriam capazes de fugir do mundo. E nenhum monge

fundou conventos em Marte.Qual seria o significado de fugir do mundo para os monges que viveram (e ainda

vivem) tal experiência?Fuga mundis significa fuga da mundanidade, da vaidade. A cidade representava o

ambiente da mundanidade e o campo o ambiente da simplicidade. Por isso, opção pela simplicidade coincidia com o deslocamento para a rusticidade do campo.

Alguns mosteiros foram criados em áreas urbanas, mas a maioria foi construída em áreas rurais.

Para os monges medievais a mundanidade vigorava menos no campo do que nas cidades. O campo não era o paraíso, mas um lugar qualitativamente superior do ponto de vista moral por ser mais favorável à simplicidade.

Os monges fugiram das cidades e se deslocaram inicialmente para o deserto, para viverem sozinhos (anacoretas). Outros (cenobitas) fundaram comunidades monásticas nas áreas rurais, experiência que se difundiu por toda a Europa e chegou também ao Brasil, onde há vários mosteiros, cristãos e budistas, antigos e novos.

As cidades eram interpretadas como espaço típico da vaidade, da banalidade, da distração, da superficialidade e, por isso, dificultavam a realização de objetivos espirituais e morais.

Dirigiam-se para o campo porque o campo era entendido como espaço típico da simplicidade, e favorecia a realização de experiências espirituais mais profundas.

O campo não era ainda o paraíso, mas antecâmera do paraíso, espaço físico mais favorável à realização dos valores do paraíso.

Alguns monges permaneciam nas cidades, com mosteiros urbanos, mas não porque as julgassem moralmente melhores que o campo. Permaneciam nas cidades por uma questão de responsabilidade (missão), para tentar torná-las melhor.

Pela identificação de semelhanças entre os valores do campo e os valores definitivos do paraíso, os monges forneceram à interpretação cultural do campo e da ruralidade um caráter de semi-sacralidade (lugar quase sagrado), que talvez persista até hoje.

O ser humano urbano que deixa hoje a cidade para se refugiar temporariamente na simplicidade do campo parece repetir – em sentido laico - experiência semelhante às realizadas pelos monges medievais.

As atuais fugas temporárias das metrópoles (feriados e férias) é certamente mais fuga do estresse (físico) que da vaidade (moral). Mas a simplicidade do campo - que atraía os monges medievais – também atrai hóspedes urbanos ao turismo rural, confirmando a

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interpretação que considera o campo como espaço físico mais qualificado do ponto de vista moral que as metrópoles modernas.

O hóspede urbano do turismo rural não é monge (anacoreta ou cenobita), mas carrega desejos semelhantes aos dos monges de ontem e de hoje quando foge temporariamente da cidade para viver dias de serenidade (exterior e interior) em áreas rurais.

2.O CAMPO COMO UTOPIA DA CIDADEUtopia (do grego ou-topos) significa nenhum lugar, ou lugar que não existe.Há quem entenda a palavra utopia em sentido pejorativo, como projeto irrealizável,

vazio, fantasia; ou como sonho perigoso, porque obrigatório, projeto coletivo arbitrário.Mas ela pode ser usada também em sentido positivo, como projeto possível, ainda

não realizado.As utopias nascem de insatisfações com as experiências reais. Se o mundo real não

é bom, posso sonhar com um mundo ideal.A utopia compreende a rejeição do real não satisfatório e a criação de projetos

(ideais) para ações (concretas) que poderão transformar o real contestado no ideal sonhado.Não basta que o sonho seja sonho para que seja bom. O sonho pode ser ilusão ou

pesadelo.Há quem sonhe com indústrias e empregos, sem levar em conta os efeitos colaterais

de alguns modelos de desenvolvimento: poluição, desmatamento.Há, também, os sem-sonhos, geralmente apáticos, conformistas ou conservadores:

não sonham porque acham bom como está, mesmo que esteja bom só para eles.Nem todo sonho é bom. Nem toda esperança é boa.Há doenças da esperança. Uma delas é o exagero: esperar demais; outra é o

egoísmo: esperar só para mim e meu grupo; outra é a desesperança.Vivemos um momento de crise da esperança, crise dos grandes sonhos, dos grandes

projetos de mudanças sociais, crise das utopias.Os motivos dessa crise podem ser explicados por 1989, ano da Queda do Muro de

Berlim.Em 1989 os alemães derrubaram o muro que separava o lado comunista do lado

capitalista da cidade de Berlim. Alguns meses depois a Alemanha foi reunificada, com base nos valores econômicos do capitalismo.

O comunismo nasceu como sonho de resolução dos problemas sociais do capitalismo. Queria transformar o purgatório capitalista num céu comunista (socialismo ideal). Mas transformou o capitalismo em purgatório socialista (socialismo real).

Em 1989 morreu a credibilidade do sonho comunista, e uma utopia morre justamente quando perde credibilidade.

Sabemos que os problemas do capitalismo ainda continuam, mas o “remédio” comunista não deu certo.

O final do século passado caracterizou-se pela crise das utopias, dentre elas também a que prometia a felicidade na cidade.

O êxodo rural do início da industrialização hoje é substituído pelo (sonho do) êxodo urbano: saída das metrópoles em direção a centros urbanos menores, com contatos ainda próximos à cultura da ruralidade; ou saída da cidade em direção ao campo, de forma temporária (turismo rural) ou mesmo definitiva (mudança para o sítio).

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Êxodos de ontem e de hojeA palavra êxodo significa saída, ou seja, deslocamento (horizontal) pelo território.

Deslocamento (tour) de um lugar real para um lugar ideal (também real, mas melhor avaliado).

Conhecemos a narrativa bíblica da saída dos judeus do Egito (o êxodo clássico, tradicional).

O mundo real onde os judeus estavam não era satisfatório. Eram escravos. Não tinham liberdade. Então, surge um líder, Moisés, que os levaria para uma “terra prometida”, para uma terra melhor, diferente da real, onde não haveria a amargura da escravidão, mas a doçura da liberdade.

A insatisfação com a situação real não foi o único motivo que levou o povo judeu ao êxodo, à saída coletiva da escravidão.

A esperança num mundo melhor também foi fator importante de mobilização.Quando não estamos satisfeitos com alguma experiência (real), avaliamos tal

insatisfação a partir da possibilidade de substituí-la por uma experiência diferente (ideal).O mecanismo de rejeição (parcial ou total) do real e de substituição por uma

alternativa ideal é mecanismo por nós utilizados nos vários âmbitos de nossa vida pessoal e social.

Estamos constantemente saindo de algum problema (êxodo) e nos deslocando (por meio de viagens exteriores e interiores) em direção ao que acreditamos ser uma solução.

Na vida e no turismo os êxodos (sociais e psicológicos) são constantes!Os animais migratórios também se deslocam constantemente de territórios a

territórios. Fogem temporariamente do frio do inverno, ou da seca do verão em direção a

lugares melhores. Trocam um território por outro.Os seres humanos se movimentam por territórios exteriores e interiores movidos por

rejeições (do real) e escolhas (do ideal).Territórios interiores: psicólogos ajudam no deslocamento interior dos territórios da

tristeza (êxodo) em busca dos territórios da liberdade. São profissionais do turismo (deslocamento) interior.

E isso vale também para as espiritualidades, que propõem deslocamentos pelos territórios do mundo interior, que não têm medidas nem prazo de validade.

Rejeitamos experiências e territórios (interiores e exteriores) mobilizados por desejos e esperanças depositadas em outros territórios e experiências.

O turista é um viajante com alma de peregrino que procura a felicidade numa praia “paradisíaca”, numa cidade antiga, numa pousada rural ou num bom e belo prato de comida acompanhado por amigos e vinhos de qualidade.

Na narrativa do povo judeu que abandona a escravidão no Egito em busca de uma terra feliz (Êxodo) talvez possamos identificar as raízes histórico-culturais do desejo do turista moderno de deslocar-se para os territórios da felicidade.

Êxodo ruralO êxodo rural foi deslocamento do campo para as fábricas, nas cidades.

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Tal deslocamento coletivo ocorreu por razões econômicas: o trabalho no campo foi substituído pelo trabalho na fábrica (cidade), mas as razões econômicas sozinhas não explicam o êxodo rural. Há outras razões, culturais, dentre elas as promessas de felicidade na cidade.

As luzes e o movimento da cidade (que ainda não eram as luzes e o movimento das cidades de hoje) atraíam as pessoas do campo.

A cidade representava o progresso, a novidade, e o campo o antigo e tradicional, numa época em que o novo era sinônimo de melhor e o antigo e tradicional sinônimos de atraso.

A Revolução Francesa (1789) havia desqualificado o antigo regime monárquico e tudo o que a ele estava associado: o campo (feudos), as tradições religiosas e culturais, a produção artesanal.

O novo era a indústria e a técnica, e o novo estava na cidade.O novo era o progresso da ciência, da razão (luzes da razão), a produção de riquezas

com ritmos mais acelerados, e tais novidades estavam nas cidades.O campo passou a representar o atraso, as trevas, a escuridão; e a cidade o

progresso, a luz da razão, a luz da ciência.A cidade prometia liberdade.Com suas universidades, fábricas, bares, cafés, cabarés, teatros, hospitais, lojas,

jornais, a cidade seria capaz de oferecer ao ser humano chances infinitas de realização, de liberdade, de felicidade.

Não foram somente o trabalho e a necessidade econômica responsáveis pelo deslocamento coletivo de comunidades inteiras do campo para a cidade.

As promessas de felicidade na cidade também promoveram o êxodo rural.

Êxodo urbanoNo Brasil, a Proclamação da República (1889) e o início do processo de

industrialização do país, no estado de São Paulo, no começo de 1900, estão com mais de um século de vida.

Após décadas e décadas de industrialização e urbanização - que transformaram rapidamente aldeias em vilas, vilas em cidades, cidades em metrópoles e metrópoles em megalópoles - o mito urbano parece enviar sinais cada vez mais fortes de cansaço ou até de exaustão física e moral.

Não usamos aqui a palavra mito como narrativa de significado simbólico, como a mitologia grega.

Usamos a palavra mito para designar falsificação ou exagero na atribuição de valor a alguma coisa.

O mito surge porque alguém exagerou na valorização das qualidades de alguém ou de alguma coisa ou porque falsificou a realidade.

O mito é uma idéia falsa, ou incompleta, porque inventada ou exagerada em relação a alguém ou alguma coisa.

A cidade tinha (e tem) as suas qualidades, mas elas foram exageradas ou falsificadas. As cidades reais continuam existindo normalmente, com seus defeitos e qualidades, mas as cidades prometidas, idealizadas (mito urbano) estão passando por séria crise de credibilidade.

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A crise física da cidade pode ser vista nas formas externas desta crise, como a poluição do ar; o excesso de barulho dos motores das várias máquinas que dominam as cidades (poluição sonora); as favelas; trânsito congestionado; prédios e casas que surgem sem controle por todos os lados; drástica e contínua destruição das áreas verdes e dos rios; violência urbana; poluição visual; etc.

A crise moral da cidade pode ser vista no consumo de drogas, sobretudo pelos jovens, que representam o futuro da cidade; perda de valores comunitários que pode ser percebida também no confinamento doméstico, na perda de abertura à comunidade; drástico e contínuo incremento da criminalidade urbana com freqüentes casos de assassinatos entre as paredes domésticas, pelos próprios familiares; substituição do sentido comunitário e gratuito da vida pelo sentido comercial, promovida até por religiões (sobretudo as televisivas); ritmo de trabalho e de vida cada vez mais acelerado, tornando o estresse obrigatório, ou seja, uma condição do ser humano que vive na cidade; etc.

As luzes morais da cidade estão cada vez mais fracas.A cidade não encanta mais, ou ao menos não encanta como antes. Há quem apenas a

suporte, sem amá-la, desejando fugir dela, mas sem conseguir, tendo que nela permanecer apenas por razões de sobrevivência econômica.

Após décadas de atividade intensa, o show urbano acabou.As cortinas foram fechadas, mas o público não vai embora porque não sabe para

onde ir.Antes admiradas e amadas, as cidades agora são temidas! Ao menos é o que

acontece nas grandes cidades do Brasil.O mito urbano morreu, e a cidade precisa ser revitalizada, com injeções de ânimo

que - ironia da história - podem vir do antes rejeitado e desqualificado campo.O êxodo urbano é expressão da crise moral e física das cidades e da redescoberta

cultural do campo.Busca-se no campo aquilo que não se encontra mais na cidade.O campo é redescoberto a partir de suas virtudes físicas (qualidade dos alimentos,

do ar, da água) e de suas (supostas ou reais) virtudes morais (simplicidade, cordialidade, pessoalidade).

A cidade sobrevive, mas o mito urbano morreu.A cidade reivindica a reinvenção cultural de uma urbanidade humanista (feita para o

ser humano todo, e todos os seres humanos) que pode vir também do campo, da cultura da ruralidade e sua exportação (com adaptações) aos territórios da urbanidade.

O campo é hoje utopia da cidade, mas não no sentido literal da palavra, porque o campo não é um lugar que não existe.

O campo existe. Pode-se fazer topografia rural (descrição de um lugar em áreas rurais).

O campo é utopia da cidade enquanto lugar ideal, sonhado, imaginado, esperado.O campo imaginário, que vive nos sonhos dos cidadãos urbanos estressados que se

deslocam para as áreas rurais em busca de serenidade, é certamente até maior que o campo real no qual se encontram temporariamente por alguns dias (turismo rural).

O campo imaginário é o campo reinventado culturalmente a partir do campo real e da crise moral das cidades.

O campo dos nossos sonhos é muito maior e mais bonito que os campos reais que visitamos, por mais que os campos reais também sejam grandes e bonitos.

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O campo imaginário é uma utopia a posteriori e não a priori, onde utopia a posteriori está para idealização (reinvenção) a partir de experiências (reais) satisfatórias, e utopia a priori para idealização fictícia.

Tomemos o exemplo do contador de causos para explicar tal distinção.O mentiroso inventa uma mentira, e os contadores de causos apenas aumentam o

tamanho da verdade: o tamanho do peixe, por exemplo, numa pescaria. O peixe existe, é real, mas saiu pequeno da água e chegou grande no “causo”.

É o sentido de campo imaginário como utopia a posteriori: não é ficção, mas uma verdade aumentada, idealizada, reinventada.

A música Casa no Campo, de Zé Rodrix e Tavito, pode ser citada como exemplo de reinvenção cultural do campo como lugar ideal a partir de suas virtudes reais (utopia a posteriori):

Eu quero uma casa no campoOnde eu possa compor muitos rocks ruraisE tenha somente a certezaDos amigos do peito e nada maisEu quero uma casa no campoOnde eu possa ficar no tamanho da pazE tenha somente a certezaDos limites do corpo e nada maisEu quero carneiros e cabras pastando solenesNo meu jardimEu quero o silêncio das línguas cansadasEu quero a esperança de óculosE um filho de cuca legalEu quero plantar e colher com a mão A pimenta e o salEu quero uma casa no campoDo tamanho ideal, pau-a-pique e sapéOnde eu possa plantar meus amigosMeus discos e livrosE nada mais

Na música Casa no Campo, o campo é um lugar ideal, bem diferente da situação descrita pelo cantor e compositor Teixeirinha na música O Colono:

Eu vi um moço bonito, numa rua principalPor ele passou um colono, que trajava muito malO moço pegou a rir, faz ali um carnavalResolvi fazer uns versos, pra este fulano de tal.Não ri seu moço daquele colonoAgricultor que ali vai passandoAdmirado com o movimentoDesconfiado lá vai tropicandoEle não veio aqui te pedir nadaSão ferramentas que ele anda comprando

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Ele é digno do nosso respeitoDe sol a sol vive trabalhandoNão toque flauta, não chame de grossoPra ti alimentar, na roça esta lutando.Se o terno dele não esta na modaNão é motivo pra dar gargalhadaEste colono que ali vai passandoÉ o brasileiro da mão calejadaSe o seu chapéu é da aba compridaEle comprou e não te deve nadaÉ um roceiro que orgulha a pátriaQue colhe o fruto da terra lavradaE se não fosse este colono forteTu ias ter que pegar na enxada.E se tivesse de pegar na enxadaQueria ver que mocinho modernoPegar na foice de um arado noveE um machado pra cortar o cerneE enfrentar doze horas de solUm verão forte tu suava o ternoTirar o leite arrancar mandiocaEm mês de julho no forte do invernoTuas manzinhas finas delicadaCriava calo virava um inferno.Este colono enfrenta tudo istoE muito mais eu não disse a metadePlanta e colhe com suor do rostoPra sustentar nos aqui na cidadeNão ri seu moço mais deste colonoVai estudar numa faculdadeTire um dr chege lá na roçaRepare lá quanta dificuldadeFaça algo por nossos colonosQue deus lhe pague por tanta bondade.

Do campo esnobado pelo “moço da cidade”, da música do Teixeirinha, passamos ao campo como utopia a posteriori, da música Casa no Campo.

Já em A Fazendinha, também de Teixeirinha, o progresso urbano é interpretado como regresso:

Eu outro dia num carro vermelhoSaí a fim de matar a saudadeE fui rever a velha fazendinhaOnde passei a minha mocidadeFui pelo bairro dos navegantesJá cheguei nela sem dificuldadeNão tinha mais a porteira grande

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Tudo mudou parece uma cidade.Vi muitos canos saindo fumaça Na fazendinha o progresso chegouCasas e casas dos operáriosRua, calçada ali tudo mudouLembrei do gado, plantação de arrozDa peonada que ali trabalhouNão tinha mais o sobrado velhoChegou o progresso e com tudo acabou.Meu coração é muito progressistaMas eu fiquei sentindo com o progressoApagou todas as recordaçõesAonde eu fiz o meu primeiro versoAonde eu tive meu primeiro amorA linda Isaura que perdão lhe peçoAdeus banhados e figueiras grandesCortaram tudo hoje é um insucesso.Só ficou mesmo o rio GravataíOnde eu nadava e fiz pescariaSentei na beira olhando ao redorMeu coração sentiu uma agonia.Meus olhos tristes sonhando acordadoCom o passado cheio de alegriasAté o velho Teixeira eu lembreiMeu tio carnal que morreu certo dia.Fui recordando dos fins-de-semanaJogos de cartas e carreiramentosBailes e danças e domingueirasMoços e moças nos seus juramentosMuitas peleias de bala e facãoTudo pra nós era divertimentoPassava os dias e fazia as pazesTudo de ruim era só no momento.Caiu meu pranto, subi no meu carroFiz as mudanças e saí correndoCheguei no asfalto onde era faixinhaOlhei pra trás com o coração doendoFui pra casa e escrevi estes versosCanto agora parece que estou vendoA fazendinha das recordaçõesCom as saudades também vou morrendo

O campo ocupa hoje lugar cultural de destaque.Não é mais símbolo de atraso, mas sonho de consumo: férias no campo, casa de

campo, sítio, condomínio no campo para aposentados, chácaras, fazendas, estâncias, etc.No turismo rural, enquanto se emociona com cheiros, gostos, visões e lembranças, o

hóspede descansa.

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O campo vale por aquilo que é, mas vale muito mais por aquilo que representa.No campo, o tempo e as distâncias parecem adquirir ritmo e medidas diferentes, até

porque o sol ainda é o seu “relógio” principal, que sugere a interpretação da passagem lenta do tempo.

O campo funciona como se fosse uma pista de decolagem: ao campo chegamos e nele permanecemos com nossos pés, mas dele partimos em viagens imaginárias em direção a universos desconhecidos, transportados por cheiros, visões e lembranças que encontramos em ângulos comuns e que agem sobre nós em poucos segundos, quando menos esperamos.

O campo (e o turismo rural) pode ter uma dupla função, terapêutica e pedagógica, em relação ao hóspede urbano.

Função terapêutica: ajuda a regenerar, revigorar, revitalizar o hóspede urbano fragilizado pelo estresse geral típico das cidades modernas. Regeneração profunda pela revitalização das suas relações com a comunidade, com a natureza e consigo mesmo.

Função pedagógica: favorece a incorporação de hábitos rurais no estilo de vida urbano, promovendo diretamente mudanças no estilo de vida do hóspede urbano e, indiretamente, mudanças no estilo de vida das próprias cidades.

Pode vir também do campo a reformulação qualitativa da vida urbana.Além de verduras e legumes, no campo há também valores humanos que o ser

humano urbano nem sempre consegue encontrar nas cidades. Do campo o hóspede do turismo rural não traz somente bolachas, salame e vinho, mas experiências que o ajudam a melhorar sua qualidade pessoal de vida nas cidades e a vida coletiva das próprias cidades.

3.QUALIDADE DE VIDA, TRABALHO E TEMPO LIVREDitadura do trabalhoQualidade de vida significa bem-estar geral (saúde), ou seja, bem-estar pessoal e

coletivo, exterior e interior.Bem-estar exterior: habitação, educação, trabalho, transporte, etc.Bem-estar interior: psicológico, espiritual, ético (relação com o bom), estético

(relação com o belo).Qualidade de vida significa bem-estar, e chegamos ao bem-estar por uma sincera e

eficaz revisão de prioridades, submetendo nossas atividades de trabalho, nossas ocupações de tempo livre (lazer) e as relações entre trabalho e lazer à análise crítica.

Um dos problemas mais cruéis da cidade talvez seja a centralidade do trabalho, ou a ditadura das assim chamadas atividades “produtivas”.

Há quem trabalhe sempre, inclusive aos domingos, não por necessidade econômica, mas por necessidade psicológica.

Para os viciados em trabalho as únicas atividades produtivas seriam as que se referem ao trabalho. Todas as outras valeriam menos, muito pouco ou nada.

Quem optou pela revisão cultural de prioridades sugerida pela busca de qualidade de vida aprendeu que o trabalho é importante, faz parte da vida, mas não é a vida.

Quando o trabalho faz parte da vida, trabalhamos para viver; mas quando o trabalho é a vida, vivemos para trabalhar.

A vida contém o trabalho, mas é mais que o trabalho. Para os que vivem para trabalhar, tempo é dinheiro; para os que trabalham para viver, tempo é precioso.

Atividades produtivas são todas as atividades que servem à vida (inclusive o trabalho), e não apenas o trabalho.

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Dentre as atividades que servem à vida está, também, o lazer, desenvolvido durante o tempo livre.

Os viciados em trabalho fogem do tempo livre ou o concebem de forma meramente instrumental: descansar hoje para trabalhar mais amanhã.

Já para os que trabalham para viver, o lazer não existe em função do trabalho, mas em função da vida, ao lado do trabalho.

O viciado em trabalho se orgulha de não tirar férias, se orgulha de trabalhar no domingo, porque acredita que tem valor somente o que se relaciona com o trabalho.

A cultura do “trabalhismo” concebe o trabalho e a produção de riquezas como valores centrais e reduz a convivência familiar, as férias e o lazer a atividades de segunda categoria, como se fossem meramente instrumentais em relação ao trabalho e à produção de riquezas econômicas.

Na cultura do trabalhismo, predomina a valorização da vida em função do trabalho e não do trabalho em função da vida.

Para a lógica da cultura do trabalhismo a prioridade atribuída ao uso do tempo é o trabalho, e o lazer é concebido como experiência dependente em relação ao trabalho.

Dentro desta lógica, o sentido do tempo e, portanto, da vida, é o trabalho: nascemos para trabalhar, trabalhar, trabalhar. E o lazer existiria somente em função do trabalho: descansamos, folgamos, temos tempo disponível somente em função do trabalho.

Esta lógica leva o trabalho para o núcleo central da nossa vida. Tudo giraria ao redor do trabalho: aprendemos a pintar no jardim de infância como

preparação ao trabalho; ingressamos no ensino fundamental como preparação ao trabalho; terminamos o ensino médio como preparação ao trabalho; ingressamos numa universidade para nos preparar melhor para o trabalho; tiramos férias para trabalhar melhor; cuidamos da aparência pelo melhor êxito no trabalho; buscamos a felicidade, e somos incentivados a isso pela própria empresa, não em função da felicidade em si mesma, mas porque quem é feliz produz mais e melhor. Em suma, trabalho, logo sou.

Ao invés de o trabalho ser valorizado como ingrediente do incremento da qualidade de vida, ocorre o contrário: a qualidade de vida é valorizada em função do trabalho.

Quando o valor dos valores, a prioridade das prioridades de uma determinada sociedade é o trabalho, a formação humana se reduz à formação profissional.

Quando o trabalho é a prioridade cultural absoluta de uma determinada sociedade, não existe nenhum tempo que não seja destinado a ele. No tempo de trabalho, trabalhamos; no tempo livre, folgamos para nos preparar melhor para voltar ao trabalho; estudamos para nos aperfeiçoar no trabalho; cuidamos de nós mesmos, de nossas relações, para que possamos ser mais serenos e, por conseguinte, trabalhar melhor. As nossas sociedades modernas são trabalhocráticas, governadas pela centralidade do trabalho, e o tempo disponível é uma concessão do trabalho – pois ninguém é de ferro – em função do retorno ao trabalho. O círculo cultural das nossas sociedades nos leva da preparação para o trabalho ao trabalho efetivo, e do trabalho ao trabalho, passando pela folga, pelo tempo livre que, dentro desta lógica, tem um valor meramente instrumental.

Nas sociedades trabalhocráticas (governadas pelo trabalho) valem mesmo somente o trabalho, o lucro, o mercado e a produção de riquezas (atividades produtivas).

Numa visão diferente, focada na qualidade de vida, trabalho, lucro, mercado e produção de riquezas também valem, e muito, mas de forma instrumental: valem para a vida. Não valem em si, pelo que são, mas de forma instrumental, pelo que podem fazer ou não pela vida.

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Qualidade de vida significa, hoje, principalmente, revisão de prioridades e equilíbrio.

Equilíbrio entre trabalho e tempo livre; empresa e família; trabalho e esporte; alimentação e bem-estar físico; etc. A noção que se difunde é que quando uma das várias exigências não é atendida, perde-se em termos de qualidade de vida, e deve-se retornar à trajetória difícil, mas prazerosa do equilíbrio.

A expressão qualidade de vida engloba várias exigências, sem deixar de fora nenhuma delas, sem deixar de dar menos valor a nenhuma delas: saúde, habitação, família, educação, trabalho, lazer, relacionamento com a natureza, preservação do ambiente, alimentação, uso criativo da razão, paz interior e exterior.

O ser humano é complexo, e suas exigências não são somente econômicas, mas políticas, culturais, espirituais, éticas e estéticas.

Há lugares onde as pessoas não são felizes, realizadas, mesmo com bons salários.O consumo de drogas e os suicídios demonstram que nem só de bom salário vive o

ser humano.O trabalho é uma dimensão da vida humana, um dos instrumentos de incremento da

qualidade da vida humana.O ser humano não foi feito para o trabalho: o trabalho é que foi feito para o ser

humano.O mercado, o lucro, o trabalho, a produção de riquezas são instrumentos para o

incremento da qualidade de vida do ser humano. São meios e não metas.

Educação à qualidade de vidaAssim como nos preparamos para o trabalho, poderíamos pensar numa preparação

cultural para vivermos de forma qualitativa também o tempo livre.Se não nos dispomos a pensar o tempo livre, a planejá-lo, ele passa a ser gerido por

organizações externas, como as televisivas, de consumo e entretenimento, ou melhor, de entretenimento para o consumo.

Segundo o sociólogo Domenico De Masi, “hoje a maioria dos trabalhadores investe na carreira todas as próprias energias, transcorre no escritório grande parte da jornada, perde o gosto pela vida familiar e pelo divertimento, durante os feriados e fins de semana sofre de enxaqueca se não leva para casa alguma tarefa do trabalho para finalizar, que consiga mantê-lo imerso na mesma tensão dos dias de trabalho” (DE MASI, 1999, p. 15).

Vitimados pela obsessão pelo trabalho, não conseguimos descobrir significado em coisas simples do nosso cotidiano. “Há empresários, políticos, profissionais liberais que saem de casa quando os filhos ainda dormem e voltam para casa quando os filhos já saíram com os amigos. Estranhos a si mesmos e aos próprios familiares, eles flutuam numa realidade fictícia, feita de pequenas lutas pelo poder, de conchavos interesseiros, de medos agressivos, de satisfações transitórias” (Ibidem, p. 45).

Há os que renunciam excepcionalmente ao lazer e à família, pelo trabalho. Mas há os que fazem desta renúncia uma regra. Para esta segunda categoria vale lembrar, como afirmou De Masi, que “quanto menos se sai da empresa, quanto mais se permanece trancafiado lá dentro, como num aquário, da manhã à noite, menos se recebe estímulos criativos” (Ibidem, p. 162).

Projetamos continuamente nossa vida no trabalho, mas deixamos o tempo livre no vazio. O âmbito do tempo livre é deixado ao mais largo amadorismo.

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“A humanidade – constatou De Masi – precisou de milênios antes de entender que o trabalho não era coisa para autodidatas, mas que devia ser ensinado e aprendido, durante anos de paciente dedicação. De quanto tempo ainda precisa para compreender que o tempo livre também precisa de uma longa formação ad hoc?” (Ibidem, p. 269).

Volta e meia a mídia divulga fatos de crônica policial, no Brasil e no mundo, envolvendo jovens pobres, de classe média ou ricos.

Há jovens que usam o tempo livre para queimar índios, como já foi registrado no Brasil, ou para jogar pedras em carros que passam sob viadutos, como foi registrado na Itália. São fatos que geram indignação, mas, infelizmente, não apontam soluções voltadas para a formação ao ócio criativo, responsável e solidário. Ora, “do mesmo jeito que se aprende a ser técnico de informática, torneiro-mecânico, engenheiro ou farmacêutico, também se aprende a ser pai, telespectador, cidadão e turista” (Ibidem, p. 305).

Nossas escolas poderiam reservar espaço também para a formação dos jovens ao uso criativo, solidário e responsável do tempo livre, geralmente vivido de forma improvisada, sem um planejamento satisfatório. Vários são os “‘mestres’ no campo do trabalho, mas pouquíssimos dignos de serem considerados ‘mestres’ de vida e de tempo livre” (DE MASI, 2000, p. 315).

Preparamo-nos de forma obsessiva para o trabalho, reduzindo a nossa formação à formação profissional, e negligenciamos a formação ao lazer criativo, responsável e solidário. O tempo livre precisa ser “resgatado da banalidade, do consumismo e da violência” (Ibidem, p. 310). E a escola poderia ajudar as famílias nessa tarefa.

Tempo livre autodirigido e heterodirigidoNo livro Sociologia do Turismo, Asterio Savelli afirma que o turismo pode ser

heterodirigido ou autodirigido (1998, p.111-127).Heterodirigido: organizado de fora, por uma agência.Autodirigido: organizado pelo próprio turista.O turismo autodirigido é turismo personalizado, artesanal; e o heterodirigido é

industrial, em série, padronizado como numa linha de montagem.Sobre a heterodireção, Savelli constatou que pelo sistema da “delegação da

planificação do tempo livre se renuncia a qualquer possibilidade de intervenção ativa e criativa” (SAVELLI, 1998, p.117). As interpretações individuais são percebidas como distúrbios que devem ser evitados em função do bom andamento do programa preestabelecido, pré-confeccionado pela empresa organizadora de uma determinada atividade de lazer.

“Não sobra nenhum componente criativo no tempo vivido pelos heterodirigidos”, que devem “adaptar o próprio estado de ânimo aos programas predispostos pelas instituições” (Ibidem, p.117). Não há lugar, portanto, para a aventura e a descoberta. Tudo já foi previamente descoberto, interpretado e disposto pela agência organizadora. Basta seguir o programa estabelecido por ela, sem disturbar com inovações imprevistas, com sentimentos criativos e personalizantes. Em suma, “enquanto o turista autodirigido quer demonstrar a si mesmo que a própria esfera de ação vai além e se diversifica em relação às normas (definidas) pela sociedade, o heterodirigido não se pode permitir de ser diferente dos outros para além do limite de uma diferenciação marginal” (Ibidem, p.118).

O uso heterodirigido do tempo livre é um fenômeno que tem como características “a expropriação intencional das motivações, a degradação dos percursos individuais na relação

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com o mundo e a substituição deles pelas propostas e os percursos coletivos, predispostos e fornecidos pelas empresas que intervêm no mercado turístico” (Ibidem, p.120).

Pelos meios de comunicação de massa, o indivíduo heterodirigido da sociedade industrial é submetido a um processo de homogeneização de gostos e comportamentos: educado a gostar das mesmas coisas e assumir comportamentos semelhantes.

Popularização do tempo livrePodemos identificar três modelos diferentes na história do turismo: turismo popular,

de massa, e alternativo ao de massa.Popularização significa tornar algo acessível ao povo, ou à maioria.A popularização do tempo livre e do turismo foi uma conquista social dos

movimentos operários.Sabemos que o sistema econômico capitalista nasceu “selvagem” e aos poucos, com

muito trabalho, foi sendo socialmente “amansado”, “domesticado”.Claro que você poderá dizer que o capitalismo de hoje ainda é selvagem, mas ele já

foi pior.Com a Revolução Francesa (1789) a burguesia (comerciantes) conquistou poder

político. Ela já estava mais rica por causa da Revolução Industrial, mas não havia ainda conquistado poder político.

A Revolução Francesa prometeu “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” para todos os cidadãos, mas, na prática, os pobres de antes – camponeses – continuaram pobres, e mudaram somente de nome e endereço: trocaram o campo pela fábrica na cidade, onde passaram a ser chamados de operários da indústria (trabalhadores assalariados).

Assim, com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial o poder político e o poder econômico passaram da aristocracia de sangue à burguesia. Os pobres continuaram pobres, mas com uma vantagem: consideravam-se cidadãos (a Revolução Francesa ensinou que todos são cidadãos) e foram aprendendo a lutar pelos seus direitos.

Os operários da indústria se organizaram em movimentos sociais, em sindicatos de trabalhadores assalariados e, aos poucos, com muita luta, conquistaram melhores salários, redução da jornada de trabalho, dia de descanso semanal, férias anuais remuneradas, décimo terceiro salário, aposentadoria.

Tempo livre e turismo também foram conquistas sociais dos movimentos operários.Vejamos porque algumas conquistas dos movimentos operários foram importantes

para o turismo:1.Redução (gradual) da jornada de trabalho: de 14 horas por dia a 12 horas; de 12 a

10; e de 10 a 08 horas por dia de trabalho. Claro que estamos generalizando, pois ainda há tantas situações de excesso de

trabalho (por imposição da empresa, necessidade econômica, ou necessidade psicológica), mas com a redução da jornada de trabalho aumenta o tempo livre diário e aumentam as possibilidades de lazer.

2.Jornada de descanso semanal: dia de oração, descanso, lazer.3.Férias anuais remuneradas: também graças a elas o turismo se popularizou. Se

trabalhássemos durante os 365 dias do ano, não haveria turismo como fenômeno coletivo. O turismo continuaria sendo um privilégio (de poucos) e não um direito da maioria (popularização). O turismo estaria reduzido a pouquíssimas empresas de serviços para uma demanda muito escassa, pois seria artigo de luxo para minorias privilegiadas.

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4.Aposentadoria: o direito à aposentadoria realizou uma necessidade dos trabalhadores anciãos e abriu novos negócios também no âmbito do turismo.

5.Melhores salários: o turismo precisa de dinheiro e, também, de tempo livre. Se não fossem conquistados melhores salários, férias remuneradas e décimo terceiro salário, o turismo não teria se popularizado.

O turismo precisa de tempo livre e dinheiro. E ele se popularizou porque os operários conquistaram tempo livre e dinheiro.

O turismo se difundiu porque os operários pobres se tornaram - por meio de lutas sociais - operários de classe média. Sem a transformação dos pobres em classe média não existiria turismo na forma como conhecemos hoje (popularizado), mas somente turismo como privilégio de pouquíssimos ricos.

Foi o sindicalismo social-democrata, ou reformista (o sindicalismo que não queria revoluções, mas reformas sociais, salariais) que promoveu o turismo pela conquista do tempo livre e melhores salários.

Quais foram, em síntese, os ingredientes que popularizaram o turismo?1.Conquista de tempo livre (liberado do trabalho) diário, semanal e anual;2.Conquista de melhores salários, remuneração nas férias, décimo terceiro salário e

aposentadoria;3.Cultura do tempo livre e do turismo: criação e difusão de uma mentalidade

favorável ao lazer.Comentários negativos sobre tempo livre e férias não era incomuns no passado, mas

a cultura do sacrifício (trabalhar sempre) cedeu lugar à cultura do lazer.Cultura do lazer é a que valoriza as realizações humanas e as atividades

contemplativas e não apenas as atividades ligadas ao trabalho. Para ela, todas as atividades humanas eticamente motivadas são produtivas, e não somente o trabalho.

Na cultura do tempo livre, as atividades de lazer (também os jogos, as brincadeiras) são reconhecidas como atividades produtivas: produção de felicidade, de solidariedade, de bem-estar, de convívio familiar, de participação cívica.

As atividades do espírito (olhar com admiração) passam a ocupar lugar de destaque numa vida que queira ser vivida com qualidade. Pelo olhar interior, que admira a beleza de coisas simples, passamos a compreender a vida como possibilidade de saborear relações caracterizadas pela pureza da gratuidade.

Atividades interiores da alma, ou atividades contemplativas não são atividades exclusivas de pessoas religiosas. Há pessoas religiosas que não saboreiam a vida com os sentidos da alma (apenas cumprem preceitos religiosos exteriores), assim como há pessoas não-religiosas que são contemplativas.

O episódio da acolhida de Jesus por Marta e Maria é bem significativo e pedagógico também na compreensão do valor das atividades contemplativas.

Marta corria de lá para cá, trabalhando, mas sem qualificar seu trabalho com os valores mais profundos da acolhida. Maria, aos olhos de Marta, não fazia nada. Mas, na verdade, ela “saboreou” a presença de Cristo, e foi elogiada por ele:

“Estando em viagem, entrou num povoado, e certa mulher, chamada Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, ficou sentada aos pés do Senhor, escutando-lhe a palavra. Marta estava ocupada pelo muito serviço. Parando, por fim, disse: ‘Senhor, a ti não importa que minha irmã me deixe sozinha a fazer o serviço? Dize-lhe, pois, que me ajude’. O Senhor, porém, respondeu: ‘Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas

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por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lucas 10, 38-42).

Foram criticadas a agitação e a inquietação de Marta, e não a sua atividade. O estilo da sua ação, e não a ação.

A cultura do lazer é resultado e causa da popularização do turismo.Estamos passando gradualmente da cultura do sacrifício (trabalhar sempre) à cultura

do lazer, e vários fatores estão contribuindo. Dentre eles o reconhecimento dos danos físicos e psicológicos causados pelo excesso de trabalho, pela falta de lazer e pela falta de lazer de qualidade à saúde das pessoas, das comunidades e das próprias empresas.

Assim como fumar deixou de ser charmoso e passou a ser considerado pelo que é: vício difícil de abandonar, o lazer e as produções “não-produtivas” do tempo livre deixaram de ser vistos pelo que não são (vício) e passaram a ser considerados pelo que são: virtudes indispensáveis à qualidade de vida pessoal e social.

O “gosto” pelo tempo livre promoveu a sua popularização.

Preguiça pode ser virtudeO ativismo (vício da modernidade) é um problema prático, perigoso, porque destrói

a vida do ativista, de sua família e do planeta.Para todo vício há uma virtude apta a corrigi-lo, e a virtude a ser recomendada como

remédio para o vício do ativismo é justamente a da boa preguiça.A preguiça não seria vício, um dos sete pecados capitais?Sim e não. É preciso que saibamos identificar o que se queria rejeitar como pecado

capital e saber que a palavra usada para expressar tal atitude negativa foi a palavra acídia.Um dos sete pecados capitais - ao lado da soberba, ira, inveja, avareza, luxúria, gula

- é a acídia, que foi também chamada de preguiça. Há uma preguiça ruim (acídia) e há, também, a rejeição do ativismo capitalista (vício moderno) por meio da preguiça virtuosa (boa preguiça), que valoriza atividades não valorizadas pelos ativistas capitalistas.

Acídia significa indolência espiritual, tédio, desânimo (LAWRENCE, 1995, p.367). Vício que nos impede de viver intensamente todas as atividades, até a faxina da casa. Como sugeriu o monge beneditino Anselm Grün, “saborear o não fazer nada” (2000, p.77) não é vício, mas virtude.

A noção capitalista de preguiça é diferente do seu significado cristão (tédio, desânimo, tristeza). O que para o capitalismo é virtude (ativismo) para o cristianismo é vício; e o que para o cristianismo é virtude (atividade espiritual, contemplação), para o capitalismo é vício (“preguiça”), atividade “não-produtiva”.

O capitalismo serviu-se de uma interpretação instrumental da palavra preguiça para responsabilizar moralmente os pobres pela própria situação de pobreza, isentando o sistema capitalista conservador de suas próprias responsabilidades. Preguiçosos seriam os que sofreriam de “aversão ao trabalho” e, por isso, seriam pobres, mesmo trabalhando.

Ora, no Brasil real, que você e eu conhecemos, as pessoas fazem longas filas em busca de emprego para sobreviverem neste nosso mundo socialmente injusto. E submetem-se a injustiças para não serem substituídas no emprego. Além disso, há estilos diferentes de se trabalhar. Para o capitalismo arcaico, o índio seria preguiçoso. Na verdade, ele emprega um estilo diferente de trabalhar.

O mito do “trabalhador preguiçoso” é uma falsificação criada pelo capitalismo para evitar reformas sociais.

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Não existem pessoas “preguiçosas”, mas desanimadas, desmotivadas (acídia).Lembro de um estudante de medicina que tirava notas ruins. Certo professor disse que ele era “preguiçoso”, não gostava de estudar. Na verdade - soube depois - tal estudante cursava medicina porque seu pai o

obrigara. Estava, logicamente, desanimado: vítima da acídia. Depois, tomou coragem e mudou de curso. Foi estudar o que queria. Passou a estudar com gosto, obtendo bons resultados.

A preguiça é virtuosa quando praticada como antídoto contra o veneno do vício do ativismo; quando rejeita a pressa e valoriza a vida saboreada, degustada, lenta, tranqüila.

Seus símbolos podem ser o chimarrão, a rede, o cafezinho, a conversa cordial, inteligente, descontraída, e, também, o nosso querido Bicho-Preguiça (a Preguiça).

A Preguiça é um animal fascinante. Parece estar sempre sorrindo, em estado constante de contemplação.

O comportamento típico de alguns animais já foi citado com objetivos pedagógicos por grandes personagens como Jesus (serpentes, ovelhas, pombas, pássaros), Maquiavel (leão, raposa), Hobbes (lobo), etc.

A Preguiça é modelo de vida saboreada. Símbolo por excelência da cultura slow.O sorriso da Preguiça é imagem da delicadeza que podemos aprender a praticar para

rompermos com o círculo vicioso desenvolvimentista que, após dois séculos de corrida ativista, está nos conduzindo direto para o abismo da destruição ambiental.

Ninguém saboreia a vida correndo.Então, porque o fast (rápido, veloz, apressado) como estilo de vida?Fast food significa refeição rápida, comer rapidamente para voltar logo ao trabalho.

Comer rapidamente, sem relações com os outros, sem preparar os próprios alimentos, sem transmitir às novas gerações a ciência e a arte da preparação dos alimentos.

Slow food significa o contrário: refeição lenta, em companhia, preparando os próprios alimentos.

Slow food é revolução cultural: novo (que, na verdade, é antigo) modo de viver, degustando a vida.

A cultura do lazer e da boa preguiça, com o estilo slow de viver, não exclui, obviamente, o trabalho. Exclui o ativismo e a ditadura do trabalho. Para a cultura do lazer são produtivas todas as atividades humanas eticamente motivadas, as que geram dinheiro e, também, as atividades gratuitas, sem sentido econômico, que geram “apenas” felicidade.

Sociedade de massa e turismo de massaOs operários precisaram de décadas de trabalho sindical reformista para conquistar

o direito ao tempo livre (TAROZZI, 1999). O tempo livre foi popularizado, mas será que hoje tal conquista é valorizada pelo

uso personalizado, responsável e solidário do tempo livre?Popularização do turismo significa democratização do tempo livre e do acesso ao

turismo. Pelos motivos que já citamos - melhores salários, férias remuneradas, cultura do lazer -, o tempo livre e o turismo se tornaram experiências acessíveis à maioria.

Popularização significa democratização, e é diferente de massificação.Popularização equivale a uma conquista (democratização) e massificação a uma

perda: perda de qualidade e de liberdade.

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Massificação remete nosso pensamento a experiências que indicam degeneração, degradação de alguma coisa. A massificação do turismo equivale à sua degeneração, desqualificação do turismo (perda de qualidade).

Turismo de massa não significa excesso de turistas, mas perda de qualidade.No turismo de massa, o turista não é o viajante aventureiro, criativo, artesanal,

pesquisador, integrado ao ambiente humano e natural onde ele momentaneamente se encontra.

No turismo de massa, há o turista consumista, predador do ambiente humano e natural onde se encontra não para se integrar, mas para retirar de tal ambiente o que conseguir (consumismo turístico).

No turismo de massa, não há integração com o ambiente, mas irresponsabilidade pelo ambiente humano e natural.

Turismo de massa não significa aumento no número de turistas, mas turismo caracterizado pela irresponsabilidade social e consumismo.

Turistas “predadores” provocam estragos na comunidade; e turistas cidadãos deixam melhores as comunidades que os acolheram.

A qualidade da experiência de turismo é avaliada pelos efeitos, resultados produzidos na comunidade.

O turismo de massa deixa marcas de destruição e boletins de ocorrência.O turismo cidadão, ao contrário, deixa saudades na comunidade.A percepção negativa da palavra “turista”, que soa ameaçadora em alguns

ambientes, deriva do perfil típico do turista-massa.Turista-massa é turista descompromissado com o ambiente, sem responsabilidade

social. É o “passeador descompromissado”, ou “passeador alienado”.O turista-massa está envolvido com os seus desejos imediatos de consumo.Por onde passa deixa seu rastro de pequenas ou grandes destruições: embalagens de

salgadinho e garrafas de plástico; arranca plantas no campo ou corais no mar; leva “de lembrança” a pureza de uma menina (turismo sexual associado à pedofilia); leva o cheiro da fumaça da maconha a comunidades que desconheciam até então tal droga; substitui o som delicado do silêncio e da “orquestra sinfônica” da natureza pela imposição de rumores arbitrários.

O turista-cidadão volta aos locais que o acolheram como hóspede; e o turista-massa não regressa, pois “o criminoso não volta ao local do crime” e a comunidade não o suportaria uma segunda vez.

O turismo de massa é expressão da sociedade de massa. O turista-massa é somente um dos tantos uniformes usados pela pessoa-massa, que é massa em qualquer ambiente, e não somente no turismo. A pessoa é transformada em massa-consumista principalmente por meio do sistema de comunicação de massa. Tal sistema, aliás, que já foi de comunicação, hoje é muito mais sistema de consumo do que de comunicação.

Na televisão comercial, inicialmente havia telepublicidade entre um programa e outro. Hoje, ao contrário, há um programa televisivo entre uma publicidade e outra.

A publicidade, e não a programação, em algumas situações parece ocupar o lugar central na televisão comercial. Entre uma publicidade e outra é inserido algum programa, durante o qual há também publicidade (oculta).

Por meio da comunicação de massa (telecomunicação), a telepublicidade de massa uniformiza idéias, gostos, preferências. Padroniza, com objetividade científica, a subjetividade dos teleconsumidores (ex-telespectadores).

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Se formos críticos, não compraremos tudo o que querem nos televender. Filtraremos as mensagens e veremos que não precisamos de uma nova camisa, e que não seremos melhores somente porque mudamos de carro. Mas filtrar racionalmente uma mensagem publicitária é tudo o que o sistema telepublicitário de telecomunicação de massa não quer de nós. Tal sistema precisa de massa, ou seja, de gente que siga acriticamente o mesmo padrão geral de consumo imposto de forma heterodirigida pelas agências de telepublicidade.

A publicidade entendida como direito-dever de informar sobre determinado produto não é a que mais se pratica no Brasil (publicidade informativa).

A publicidade que mais se pratica no Brasil é a do convencimento forçado por meio de técnicas de indução psicológica ao consumo (publicidade persuasiva).

No livro “Televisão e Pós-Pensamento”, o cientista político Giovanni Sartori explicou que “foram suficientes poucos decênios para criar o pensamento lavagem, um clima cultural de melaço mental com crescentes armadas de anulados mentais” (1999, p. 113).

Massa significa pensamento lavagem, anulação mental. E massa é massa em qualquer ambiente.

A cultura televisiva de massa segue um roteiro bem definido: padronizar, uniformizar, eliminar as diferenças individuais para poder dispor de uma massa dócil de teleconsumidores educados ao consumo heterodirigido, obedientes aos comandos impostos pelo sistema telepublicitário de consumo de massa.

Imposição de produtos e padrões de consumo da manhã à noite, com sorrisos profissionais de apresentadores de programas de auditório que se movem na telinha seguindo técnicas de indução ao consumo.

É verdade que a televisão precisa de publicidade para viver. É verdade que o jornalismo precisa de publicidade para viver. É verdade que a democracia pode ser ajudada pela publicidade, desde que a publicidade siga a ética da democracia.

“Para se obter a venda de produtos feitos em série – descreve De Masi com ironia -, deve-se, naturalmente, padronizar também o gosto dos consumidores, fazendo-os desenvolver um gosto standard” (DE MASI, 2000, p.55).

O tempo livre nasceu como tempo liberado do trabalho, mas degenerou em tempo de consumo. Alberto Bondolfi, professor de Ética Social, constatou que o nosso tempo livre há muito que já não é mais tão livre assim. Não se trata de um tempo isento de “imposições sociais e livremente disponível para cada pessoa” (1990, p. 1366). Trata-se de um tempo “já predeterminado, não somente nos significados, mas mesmo nos conteúdos” (Ibidem, p. 1366). Para Bondolfi, “se no trabalho a alienação se concentra na dependência às leis da atividade produtiva, no tempo livre ela se configura como involuntária dependência às leis do consumo” (Ibidem, p. 1367).

No tempo livre, a maioria das pessoas-massa ou está comprando ou está sentada em frente à televisão comercial, sendo docilmente preparada para o consumo.

O tempo livre nasceu sob a bandeira da luta pela liberdade. Foi conquistado pelos movimentos sociais operários, mas o estamos perdendo para os profissionais do consumo de massa.

O que fazer? Praticar a ética da divergência e da resistência.E uma das expressões da resistência à cultura de massa é, também, o turismo rural.O turismo rural é experiência alternativa para os hóspedes urbanos que cansaram da

cultura consumista e conformista do turismo de massa (e da sociedade massa).

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Tranqüilidade não é monotoniaTuristas buscam, entre outras coisas, descanso e divertimento.Os hóspedes do turismo rural buscam descanso e divertimento, só que não apenas

do trabalho (descanso conjuntural), mas, também, de um estilo de vida estressante e consumista que o turismo de massa também reproduz (descanso estrutural).

Turismo rural é turismo tranqüilo, do ritmo tranqüilo, mesmo nas caminhadas aventurosas. Não é o turismo da agitação.

O hóspede do turismo rural que se integra ao ambiente humano e natural onde foi acolhido é um aventureiro sereno que aventura-se não somente quando se lança em longas caminhadas pela mata, contemplando a beleza das novas descobertas. É aventureiro também quando está parado, aventurando-se pelos territórios interiores da contemplação das belezas do campo e da cultura da ruralidade.

A contemplação típica do turismo rural é sempre aventura: quando o hóspede descobre novos lugares com caminhadas e cavalgadas, ou quando se aventura entre novas sensações, mesmo estando deitado numa rede. A aventura é uma atividade arriscada, e há riscos também nas aventuras da alma, pois elas sugerem mudanças de vida.

Ao contrário do que possa parecer, a monotonia não é um problema de lugares (campo ou qualquer outro lugar), mas de pessoas.

A monotonia não é um problema exterior, topográfico, geográfico, mas um problema interior (psicológico, espiritual) de pessoas (tédio, desânimo, acídia).

O que o campo pode fazer é revelar a monotonia que eventualmente já resida em alguém.

Numa pousada rural, presenciei a chegada e a quase imediata partida de uma pessoa que havia sido trazida por uma amiga ao turismo rural.

A tranqüilidade da pousada rural a deixou em pânico. Sentiu medo do silêncio, da possibilidade de recolhimento, e fugiu assustada, quase correndo, provavelmente para os braços dos rumores da cultura de massa.

Ela não fugiu do campo. Fugiu de si mesma, de uma parte dela que o campo apenas ajudou a revelar, e que ela não teve coragem de enfrentar. Fugiu dos riscos da aventura interior que o campo queria lhe propiciar.

Hoje, há muitos meios de comunicação, mas a comunicação de cada um consigo mesmo, favorecida pela serenidade exterior, não cresceu na mesma proporção em que são inventados novos e sofisticados meios técnicos de comunicação.

O campo não é monótono. No campo há variedade de tons.O campo é um lugar tranqüilo, mas a sua é uma tranqüilidade perturbadora porque

sugere mudanças no modo de viver de pessoas e comunidades.

Desenvolvimento sustentávelPerguntaram-me se o turismo ecológico seria uma modalidade do turismo rural.Turismo rural é turismo ecológico, ou ao menos deveria ser turismo ecológico.Se o turismo rural não for turismo ecológico ele é turismo suicida.E para que o turismo rural não deixe de ser turismo ecológico é preciso que ele

escolha e promova a escolha de modelos sustentáveis de desenvolvimento econômico.

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Há modelos de desenvolvimento econômico que se assemelham às pragas de gafanhotos: chegam, destroem tudo e, quando não há mais vida, se retiram para outros lugares. E tais modelos são praticados até por proprietários de pousadas rurais, que trocam mata nativa por plantações de eucalipto.

Fins bons não justificam o emprego de meios imorais.No caso do desenvolvimento econômico vale o mesmo raciocínio.Queremos que todos tenham renda, emprego, salário.Abrir uma fábrica daquelas bem grandes, com várias chaminés, perto de uma

pousada rural significa o fim da pousada. O proprietário da fábrica dirá que, com ela, surgirão mais empregos na região. Ele poderá até convencer a comunidade sobre as vantagens da fábrica, gritando aos quatro ventos as palavras emprego e renda, como se fossem mágicas.

Alguém mostrará à comunidade os efeitos colaterais que tal fábrica produzirá: poluição das águas, destruição das árvores, poluição visual.

Fins bons - emprego e renda - não justificam o uso de meios imorais - destruição do ambiente.

Desenvolvimento sustentável significa afirmar que não basta ser desenvolvimento econômico para ser bom desenvolvimento.

Em nome do emprego a qualquer custo, ambientes humanos e naturais são destruídos rapidamente.

A expressão desenvolvimento sustentável ensina que não basta a produção de emprego e renda para que o desenvolvimento seja bom. É preciso que sejam previstos e evitados os efeitos colaterais das iniciativas econômicas voltadas para a geração de empregos.

Desenvolvimento sustentável significa necessidade de harmonizar objetivos econômicos com necessidades ambientais e culturais da comunidade.

Não basta que uma iniciativa econômica seja capaz de gerar emprego e renda. Ela deve proteger o ambiente natural e humano, ou seja, proteger as plantas, os animais e os valores humanos da comunidade onde os projetos de desenvolvimento serão praticados.

Uma fábrica gera emprego, mas, também, efeitos colaterais graves; derrubar mata nativa para plantar eucalipto gera renda, mas, também, efeitos colaterais graves.

Na cidade de Florianópolis, uma bela praia foi tomada por prédios riquíssimos em pouco tempo. Nada sustentável foi o modelo de “desenvolvimento edilício” praticado naquela ex-bela praia. O número de habitantes já superou em muito o número que o sistema de tratamento de água seria capaz de suportar.

É uma praia com apartamentos de ricos. Ricos-massa!Quase todos os terrenos foram ocupados por prédios. Sobraram poucas árvores. Vê-

se de longe aquela faixa de concreto socada entre um morro e o mar.A comunidade local protestou no início. Mas perdeu. Os construtores tinham mais

poder econômico e político. Hoje, nem existe mais comunidade local por lá.A busca frenética por mais emprego, casas, renda funciona como um rolo

compressor que massacra a vida (animal, vegetal e humana).Em nome de mais emprego e renda, fábricas colocam em movimento o círculo

vicioso do falso desenvolvimento, que não desenvolve de forma sustentável. Em nome de mais casas e mais apartamentos, construtoras sem ética ambiental

derrubam tudo o que encontram pela frente.

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Pelas mesmas razões, plantações de soja e pasto para pecuária em grande escala vão derrubando árvores, poluindo rios (com agrotóxicos) e destruindo reservas ambientais, comunidades indígenas, comunidades rurais e o futuro do país.

O turismo é sustentável quando alicerçado em modelos sustentáveis de desenvolvimento econômico no âmbito dos empreendimentos turísticos.

Derrubar mata nativa para plantar eucalipto e pinus é atividade incompatível com turismo rural, mas praticada até por proprietários de pousadas rurais que procuram “conciliar” as duas atividades, fazendo malabarismos para evitar que seus hóspedes circulem pelas proximidades de seus “cemitérios particulares” de Mata Atlântica.

Tal contradição demonstra que falta muito estudo no âmbito dos operadores do turismo rural. Foram abençoados pelas circunstâncias (crise do mito urbano e redescoberta da ruralidade), mas investem mais em construções de novos quartos, na pousada do que em educação própria, dos filhos e funcionários. Investem em quantidade (quartos) e não em qualidade (educação). Não investem nem em receitas novas, coerentes com a tradição gastronômica da sua região e cultura de pertença. Aliás, nem estudam gastronomia. Esperam pelo crescimento dos eucaliptos que acabaram com uma bela trilha que, caso fosse valorizada, poderia render mais que os eucaliptos.

O turismo rural deveria ser turismo de oposição aos modelos não-sustentáveis de desenvolvimento econômico nas áreas rurais. Mas nem sempre é assim.

Após décadas de desenvolvimento predador, destruidor, ainda há quem insista em praticar, nas cidades e no campo, modelos eticamente insustentáveis de desenvolvimento econômico.

Desenvolvimento sustentável significa afirmar que uma iniciativa econômica não se justifica apenas pelo aumento da produção (de soja, de gado, de eucalipto, de pinus, de emprego, de renda, de moradias, etc.).

Desenvolvimento sustentável significa rejeição radical do princípio imoral segundo o qual os fins econômicos justificariam o emprego de meios imorais para o ambiente humano e natural.

A palavra-chave na compreensão do significado do desenvolvimento sustentável é a palavra geração.

É sustentável o modelo de desenvolvimento econômico que inclui, no prazo de validade de seus benefícios, as gerações futuras: filhos, netos, bisnetos, etc.

Desenvolvimento sustentável significa desenvolvimento responsável e solidário, com os vivos de hoje e com os vivos de amanhã. É modelo inteligente de desenvolvimento porque capaz de prever as conseqüências para as gerações futuras.

A cultura do lazer, da qualidade de vida, do desenvolvimento sustentável e da ruralidade está promovendo a revisão do ativismo predador do capitalismo tradicional e a difusão de um novo estilo de desenvolvimento, mais humano, comunitário, ecológico.

Referências

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CAPÍTULO 3REALISMO, PESSIMISMO E REFORMISMO

1.ETOLOGIA HUMANAÉtica é palavra grega e moral o seu correspondente em latim.Ética significa bom comportamento em grego.Moral é bom comportamento em latim.Há quem goste mais da palavra ética do que da palavra moral, já que a palavra

moral, no passado, foi associada ao pecado e, sobretudo, aos pecados sexuais.A palavra moral foi usada como sinônimo de comportamento proibido: o que não

devo fazer de ruim. E a palavra ética sugere comportamento escolhido livremente, em todos os campos do agir humano: o que posso e devo fazer de bom.

Ética está mais na moda do que moral, mas a diferença entre elas é, basicamente, idiomática: uma é grega e a outra é latina.

Quando afirmamos que alguém não teve ética , estamos reprovando um dado comportamento de tal pessoa.

Se dissermos que ela não tem ética , estamos dizendo que tal comportamento ruim é praticado sempre por tal pessoa, de forma sistemática. Mas é evidente que se trata de um exagero, pois se não temos ética em algumas coisas, podemos ter em outras.

E o que nos permite dizer que um dado comportamento é ruim ou bom?A capacidade, ou poder, que nós seres humanos temos de JULGAR a qualidade dos

comportamentos.Somente os seres humanos têm capacidade de julgar comportamentos.Julgar (no sentido de avaliar), todos julgamos. Mas como julgamos os

comportamentos? Que procedimentos utilizamos para avaliar? Como é a qualidade dos nossos julgamentos?

Procedimentos avaliativos.Quando pensamos em ética emerge imediatamente nossa capacidade humana de

julgar comportamentos: isso é bom, aquilo ruim; isso presta, e aquilo não presta.Em geral julgamos com o mesmo imediatismo e velocidade dos disparos de uma

metralhadora: disparamos para todos os lados condicionados pela força dos nossos sentimentos de aprovação ou de rejeição.

A palavra etologia, pelo tipo de compreensão metodológica nela contida, pode nos ajudar a superar tal imediatismo que, como sabemos por experiência, é capaz de disparar contra comportamentos inocentes, que foram julgados precipitadamente.

A axiologia estuda valores, e a etologia estuda comportamentos.Etologia é a ciência que estuda o comportamento dos animais em cativeiro ou no

seu ambiente natural. Etologia humana a ciência que estuda o comportamento humano.A palavra etologia, aplicada ao estudo dos comportamentos humanos, muda a

pergunta que geralmente utilizamos quando pensamos em ética.A pergunta que geralmente utilizamos é: o que é ética?Mas a pergunta sugerida pela metodologia da etologia humana é outra, diferente:

como é o comportamento x ou y?

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A etologia (humana) troca a busca da definição (o que é) pela busca da descrição (como é) e, ao descrever, se abstém temporariamente dos juízos de valor, ou seja, serve-se antes da capacidade de observar e descrever para depois acionar a capacidade de avaliar.

Digamos que um etologista da vida animal esteja estudando o comportamento dos jacarés num dado país africano. O jacaré espera pela passagem das zebras pelo rio e ataca filhotes de zebra ou zebras doentes e anciãs.

O etologista não dirá que o tal jacaré não tem ética profissional, já que ataca filhotes de zebras ou zebras doentes. O etologista não organizará nenhum movimento em defesa das jovens zebras e contra os jacarés. Não sairá gritando por aí que “A zebra, unida, jamais será vencida!”.

O etologista observa, descreve, analisa, interpreta o comportamento dos jacarés e das zebras, mas NÃO JULGA. Não afirma que a zebra é uma pobre coitada (vítima do jacaré) nem que o jacaré é um agressor impiedoso (culpado).

Claro que o não-julgar que vale para a etologia animal não vale para a etologia humana, que deve julgar. Todavia, a etologia pode sugerir duas perguntas à etologia humana: quando e como julgar?

Na etologia humana cabe a cessação temporária do juízo qualitativo (julgamento) por razões cognitivas, para que os julgamentos a priori (pré-juízos) não atrapalhem a compreensão racional (cognição) dos fenômenos.

Somente depois do exame crítico, investigativo dos comportamentos, pelo qual obtemos maior compreensão racional deles, é que podemos julgar (avaliar) com mais qualidade (julgamento a posteriori), e não antes (julgamento a priori) da análise descritiva dos comportamentos.

Aplicar a metodologia da etologia ao exame dos comportamentos humanos significa impor ao etologista a regra segundo a qual podemos julgar (fase 5) somente após observar (fase 1), descrever (fase 2), analisar (fase 3) e interpretar (fase 4) os comportamentos humanos.

Regras metodológicas da etologia humana: a.identificação do fato (comportamento que queremos examinar); b.cessação temporária do julgamento; c.julgamento (avaliação).

A etologia humana não renuncia aos julgamentos, mas aos julgamentos precipitados, apressados, imediatos.

Valores coletivos e julgamentos específicos.O etologista estuda o comportamento real de seres humanos específicos, situados no

tempo e no espaço, sem julgá-los de antemão, desapegando-se das próprias pré-noções, pré-conceitos e pré-julgamentos.

Nesta primeira fase de sua pesquisa, o etologista “apenas” observa, descreve e interpreta os comportamentos reais estudados (procedimentos descritivos).

Numa fase sucessiva, o etologista avalia os comportamentos reais que antes descreveu (procedimentos avaliativos), fundamentando-se em referências de valor (depósitos de valores).

No caso das sociedades democráticas, as Constituições Republicanas expressam as opções de valor da maioria da população.

Nas sociedades democráticas não há ausência de valores, mas pluralismo ético. Grupos diferentes debatem os próprios valores (diferentes) e escolhem os valores coletivos da comunidade (pluralista) por meio de procedimentos democráticos (cf. BENTO, 2005).

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As Constituições Republicanas são complexos sistemas morais e jurídicos. Nelas estão definidos os comportamentos que a sociedade espera de seus membros. As Constituições são sistemas morais, culturais (criados pelos grupos humanos) que indicam os comportamentos desejados e os comportamentos rejeitados.

Pressuposto importante na etologia humana é o reconhecimento da existência do bem e do mal por meio da linguagem que utilizamos para identificar o bem e o mal.

As sociedades pluralistas definem o que seja bem e mal por meio da metodologia da democracia.

Antes dos processos modernos de democratização, quem governava não eram as leis (as Constituições Democráticas), mas alguns monarcas que se consideravam detentores absolutos da verdade.

Deus era usado como “cabo-eleitoral” por príncipes, clérigos, monarcas que justificavam o próprio domínio em nome da “vontade de deus”. Nas democracias, quem governa é o povo, por meio das Constituições Democráticas. E não foi Deus quem perdeu poder com a democracia, mas quem se servia de Deus para justificar os próprios interesses e idéias.

Do abandono da superficialidade ao reconhecimento da complexidade.Os procedimentos avaliativos da etologia humana são complexos e conflitantes.a)Complexos: estudar comportamentos humanos exige conhecimento de muitas

disciplinas. Como fazer etologia do comportamento médico, da pesquisa médica (ou bioética), por exemplo, sem conhecer medicina, genética, biologia?

Pessoas responsáveis não saem julgando por aí como se a própria consciência pudesse prescindir da coleta e análise de informações complexas.

b)Conflitantes: o estudo dos comportamentos humanos é um processo complexo e, também, conflitante. Definimos valores por meio de debates entre grupos com idéias diferentes, já que vivemos numa sociedade caracterizada pelo pluralismo ético.

Procedimentos prescritivos.Na etologia humana, além dos procedimentos descritivos e avaliativos há, também,

procedimentos prescritivos (normativos).Quando vamos ao médico, com tosse, ele solicita exames para verificar do que se

trata (procedimento descritivo). Após interpretar o exame, ele prescreve (receita) um determinado remédio adequado para tratar o problema que ele identificou (procedimento prescritivo).

O etologista adota procedimentos semelhantes: descreve o comportamento real e indica possíveis tratamentos aptos à correção dos problemas.

A prescrição de medidas a serem adotadas supõe a descrição dos fatos (reais) e a sua avaliação.

A indicação de procedimentos prescritivos corresponde à fase final da metodologia (descritiva, avaliativa e prescritiva) da etologia humana.

A etologia humana não se reduz à descrição e avaliação. Ela é também normativa (prescritiva): recomenda ou indica um tratamento (prescrição) a ser aplicado ao problema real que quer tratar (norma moral).

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Podemos tirar benefícios dos procedimentos metodológicos da etologia humana para a vida pessoal e da comunidade, enfrentando e resolvendo melhor os problemas morais que cotidianamente se nos apresentam. Todos nós geralmente julgamos, mas podemos tentar melhorar a qualidade de nossos julgamentos.

Tomemos o exemplo de uma mãe que encontra um cigarro de maconha no armário do filho.

O choque será grande, mas ela tentará manter objetividade.Poderá adotar procedimentos descritivos para compreender o que está ocorrendo:

“O cigarro será mesmo dele? Para consumo ou tráfico? E se for da amiga que ele está tentando tirar das drogas?”.

Descreve e interpreta antes de julgar. E avalia somente após a coleta, análise e interpretação das informações coletadas.

É muito mais fácil não julgar o jacaré que se alimenta de filhotes de zebras do que o comportamento de pessoas que amamos. Adotar postura objetiva com os jacarés da selva é mais fácil que adotar postura objetiva com as pessoas com as quais estamos envolvidos no amor ou na inimizade.

A etologia humana quer estudar com objetividade os comportamentos humanos, adotando procedimentos descritivos antes de procedimentos avaliativos e prescritivos para evitar julgamentos precipitados e tratamentos equivocados.

2.OTIMISMO E DESENCANTO COLETIVOSModernidade e otimismoOndas de otimismo coletivo já tomaram conta de várias sociedades, em lugares

diferentes e em momentos diferentes da história.Impérios políticos e econômicos que pareciam eternos há muito jazem nos

cemitérios da história: dos faraós do Egito sobraram os túmulos; do Império Romano sobraram, para a alegria de gatos e turistas, as suas ruínas.

Claro que ficaram bons resultados dessas experiências, mas elas passaram, perderam a importância que já tiveram um dia.

O mesmo está acontecendo com algumas experiências recentes vividas pelas sociedades modernas.

A cultura típica das sociedades modernas é caracterizada por algumas crenças.Dentre elas, a crença no progresso pelo emprego da razão científica.

Otimismo científico e industrialA modernidade prometeu que a luz da razão nos libertaria das trevas da superstição,

representadas pelo antigo regime monárquico-clerical.O modo de pensar científico substituiria o modo de pensar supersticioso e a

humanidade caminharia inevitavelmente para um mundo novo.O otimismo científico caracterizou a modernidade, e tal otimismo não consistiu

apenas na valorização do pensamento científico, mas no anúncio dos seus efeitos inevitavelmente benéficos para a sociedade.

No futuro, estaria o progresso. No passado, o atraso humano a ser superado pela razão científica o mais rapidamente possível.

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O otimismo científico era também otimismo industrial: a indústria seria o espaço onde a razão colocaria em prática as suas capacidades libertadoras e por meio da qual seriam produzidas riquezas, empregos, desenvolvimento, bem-estar, progresso. As indústrias criaram cidades e metrópoles. E com o otimismo industrial surgiu também o otimismo urbano.

Na modernidade as cidades representavam o espaço típico do progresso e da liberdade. E o campo o espaço do atraso, do regresso, da religião (superstição).

O progresso científico e tecnológico nos levaria necessariamente e inevitavelmente em direção a um mundo novo e tal mundo novo seria urbano, e não rural.

O deslocamento em massa do campo para a cidade (êxodo rural) ocorreu não apenas por razões econômicas, mas, também, por razões culturais: as cidades prometiam diversão, felicidade, liberdade, luzes de todos os tipos, e não somente emprego.

Otimismo comunistaKarl Marx (1818-1883) inventou o que chamou de socialismo científico, que seria a

busca da igualdade social baseada não na boa vontade dos socialistas (socialistas utópicos), mas na ciência socialista.

Pelo otimismo científico, complementado pelo otimismo socialista científico de Karl Marx, a sociedade caminharia, agora sim, para um mundo novo, igualitário.

O otimismo comunista de Karl Marx também é otimismo moderno, filho do otimismo científico da modernidade.

O otimismo comunista de Marx promoveu a crença na revolução (científica): solução definitiva que resolveria de uma vez por todas os problemas sociais da humanidade.

Otimismo antropocêntricoO otimismo da modernidade é otimismo antropocêntrico.As capacidades racionais e o poder da vontade humana foram considerados meios

revolucionários aptos a mudar o mundo, enviando a humanidade para um futuro que seria necessariamente melhor.

O pessimismo medieval (DELUMEAU, 2006) foi substituído pelo otimismo da modernidade em relação ao ser humano, agora considerado naturalmente bom, ou até ótimo.

Os problemas sociais deixaram de ser explicados como problemas morais, resultado de escolhas morais equivocadas, mas como problema técnico: ausência de desenvolvimento científico.

Em suma, a modernidade prometeu um mundo novo, que seria realizado pelo poder da razão científica.

Pós-modernidade e desencantoA modernidade foi otimista e até triunfalista com suas crenças. Todavia, com o

passar do tempo, o acúmulo de fracassos produziu movimentos revisionistas.O revisionismo pós-moderno não é anti-moderno. Não deseja o fim da modernidade

nem o retorno à pré-modernidade. Deseja correções na modernidade pela revisão de algumas crenças que a modernidade apresentou como se fossem verdades absolutas.

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Primeira Guerra MundialNo início de 1900 já havia certo “cansaço de espera”: as promessas de progresso da

modernidade tardavam a se realizar.Logo a paciência se transformou em decepção: na Primeira Guerra Mundial (1914-

1918) morreram 08 milhões de soldados e 09 milhões de civis!A modernidade gostava de números, e os números da Primeira Guerra revelaram o

tamanho da decepção.O pensamento científico e o poder da vontade humana foram usados para planejar e

organizar a matança, com o uso militar de navios e aviões sofisticados.A ciência e a técnica prometeram o progresso social, mas realizaram a barbárie.O mineiro Alberto Santos Dumont (1873-1932), que inventou o avião, sofreu

quando aviões foram usados como instrumentos de morte (armas de guerra) na Primeira Guerra Mundial. Seu sonho foi transformado em pesadelo. Ele lutou contra o uso militar dos aviões, mas sua luta não produziu os resultados desejados. Decepcionado, suicidou-se em 1932. A ciência, sem a ética, não é capaz de realizar o progresso desejado.

Segunda Guerra MundialCom a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a sofisticação científica da matança

evoluiu bastante: “progrediu” para 55 milhões de mortos!Bombas atômicas foram jogadas no Japão. Em Hiroshima, no dia 06 agosto de

1945, e em Nagasaki três dias depois. Milhares de pessoas morreram na hora, ou depois, pelos efeitos da radiação.

Durante a Segunda Guerra Mundial a humanidade conheceu também a versão racista do otimismo científico.

O otimismo de Adolf Hitler contratou cientistas para sistematizar racionalmente a matança de milhões de pessoas, principalmente de judeus: 06 milhões de judeus foram assassinados!

A matança foi planejada e executada de forma extremamente metódica, com rigor científico e interdisciplinar: médicos, químicos, profissionais de logística que administraram com “competência técnica” o transporte e armazenamento de “mercadorias” humanas.

A crença moderna no progresso humano pelo pensamento científico estava abalada.O bem-estar geral prometido não foi realizado. A matança, sim. Planejada e

realizada com rigor científico.Ao término da Segunda Guerra, o otimismo de direita (otimismo racista) foi

condenado no Tribunal de Nuremberg (1945-1948), cidade da Alemanha onde foram julgados e condenados vários médicos e militares nazistas acusados de genocídio (destruição total ou parcial de um grupo racial, étnico, regional, religioso).

Permanecia ainda inconteste o otimismo comunista. Mas por pouco tempo.

Decepções que abalaram o otimismo comunistaEm 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o

secretário-geral do partido, Nikita Kruschev, denunciou os crimes praticados por Joseph Stalin, que governou a União Soviética de 1924 a 1953.

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Campos de concentração (Gulag) foram criados pelo ditador russo e para lá foram enviados os dissidentes do regime de Stalin.

O dissidente soviético Alexander Soljenitsin, no livro Arquipélago Gulag, descreveu como era a vida dos prisioneiros de Stalin nos campos de concentração do regime comunista (SOLJENITSIN, 1975).

Campos de concentração criados também pelos comunistas?! A prometida “ditadura do proletariado” revelou-se como ditadura do partido

comunista contra o proletariado (ARON, 1989, p.199).Na China Comunista, durante a Revolução Cultural (1966-1976), Mao Zedong

serviu-se das Guardas Vermelhas (jovens fanáticos e violentos) para se livrar dos focos de resistência política. A oposição foi torturada até à morte ou enviada aos campos de concentração para ser submetida ao que os maoístas chamavam de “reeducação comunista”.

As notícias sobre crimes contra a população nos países comunistas se espalhavam e os movimentos de fuga do comunismo se intensificavam.

Um muro foi construído na cidade de Berlim para impedir a fuga dos dissidentes do lado comunista de Berlim.

Os movimentos de êxodo do comunismo cresciam sempre mais até que, em novembro de 1989, o muro que separava a cidade de Berlim foi derrubado.

No ano seguinte (outubro de 1990), a Alemanha foi reunificada, mas não a partir da economia comunista. Na Alemanha unificada o comunismo foi abandonado.

A partir da experiência alemã, o comunismo se desintegrou pelo leste europeu como um castelo de areia tocado pelas ondas do mar da dissidência.

O desejo de liberdade chega à União Soviética.A Perestroika (política de abertura às reformas), introduzida por Michael

Gorbatchov, ao invés de reformar o comunismo acabou com ele (1991).Na China, em Pequim, na Praça da Paz Celestial (Tien An Men), os jovens chineses

fazem greve de fome, reivindicam reformas, querem mais liberdade. E no dia 04 de junho de 1989 chega a resposta do Partido Comunista Chinês: envio de tanques de guerra para acabar com as manifestações dos jovens. Milhares de chineses foram mortos.

A ditadura política comunista continua na China, mesmo com a abertura econômica, mas quem ainda acredita no otimismo comunista?

O comunismo real ainda existe aqui e acolá, mas não atrai mais, ou ao menos não atrai mais como atraía antes, quando o comunismo era apresentado como sistema revolucionário alternativo ao capitalismo effrenus (sem freios).

Depois de 1989, ex-partidos comunistas foram transformados em partidos social-democratas, que querem reformas sociais no capitalismo e não mais o fim do capitalismo.

Do êxodo rural aos êxodos urbanosAté mesmo o otimismo urbano da modernidade entrou em declínio.As cidades, que antes representavam o espaço típico do progresso, da liberdade, da

felicidade, são hoje suportadas por muitos apenas por razões de sobrevivência econômica.E ao êxodo rural - saída do campo para a cidade em busca de emprego e felicidade -,

foi acrescentado o êxodo urbano, que se repete em cada feriadão: saída temporária das cidades.

O campo deixou de ser visto como lugar de segunda categoria. Tornou-se representação geográfica do desejo de um lugar melhor. Tornou-se utopia da cidade.

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A cidade, símbolo da liberdade, em tantos lugares é hoje espaço caracterizado pela poluição sonora, do ar, visual, das águas; pela violência urbana (trânsito, estresse, criminalidade).

A cidade, símbolo da liberdade é, hoje, também, símbolo da perda da liberdade.

A subida da sociedade ao sótãoO otimismo industrial prometeu desenvolvimento, emprego, progresso, mas a

destruição sistemática da natureza é preço alto demais exigido por ele.A produção industrial, em série, produziu também alienação, pela eliminação da

personalização. Por isso, na pós-modernidade, a produção artesanal, tradicional, volta a ser de moda.

A tecnologia facilitou a vida, sobretudo nas comunicações e medicina, mas ela também está associada ao estresse tecnológico: problemas que vão do aparelho que estragou aos vários telefonemas à empresa que nos vendeu, mas agora já não nos trata mais com a mesma cortesia empregada na hora da venda.

O que deveria servir para facilitar a vida, tantas vezes atrapalha, gerando saudades da simplicidade do passado.

Hoje, é como se a sociedade (pós-moderna) tivesse subido ao sótão, e descobrisse valor prático em coisas antigas, tradicionais, às quais era atribuído somente valor sentimental.

Tal subida ao sótão caracteriza a pós-modernidade, que não é contra a modernidade, mas contra o seu otimismo ingênuo e presunçoso.

3.REALISMO, PESSIMISMO E REFORMISMONiccolò MachiavelliQuando lemos sobre realismo certamente pensamos no italiano Nicolau Maquiavel

(1469-1527) e no seu célebre livro O Príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1531).Maquiavel nunca escreveu que “os fins justificam os meios”. Nos seus livros não

existe essa frase. Foram alguns intérpretes de Maquiavel que atribuíram a ele tal frase, criada com o objetivo de tentar justificar racionalmente comportamentos imorais.

Uma coisa é Maquiavel, e outra, diferente, o maquiavelismo.Maquiavel não foi um “professor do mal”, mas um “pensador do mal” (MARQUES,

2006, p.41).Admiramos Maquiavel, o seu pensamento, mas rejeitamos o maquiavelismo.Maquiavel foi um dos principais teóricos do realismo descritivo e do realismo

antropológico, mas não foi o criador do maquiavelismo.O maquiavelismo não foi criação de Maquiavel, mas dos seus críticos que,

escandalizados com a forma direta de Maquiavel escrever sobre as maldades praticadas na política, no exercício do poder, afirmaram que ele teria recomendado a prática da maldade (oportunismo, traição, corrupção) no exercício do poder.

Entretanto, Maquiavel não recomendou maldades. Ele descreveu as maldades reais praticadas na política (realismo descritivo, ou realismo metodológico).

Crueldades “maquiavélicas” foram recomendadas por pessoas sem piedade (tiranos) e não por Maquiavel, para o qual, dentre os deveres do príncipe, estava o de “non si fare odiare dal populo” - não fazer-se odiar pelo povo (1988, p.97).

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Se Maquiavel prescreveu (receitou) alguma coisa não foi a maldade como meio para se permanecer no poder, mas a rejeição da ingenuidade e do otimismo dos que não querem admitir que a maldade humana é real, mesmo sendo indesejada, desagradável.

Maquiavel reconhece, admite a existência da maldade humana, afirma que ela é relevante no âmbito da gestão do poder e a descreve com precisão cirúrgica.

Quando um médico oncologista identifica e apresenta esta grave doença que é o câncer, ele não a está recomendando, mas descrevendo (realismo descritivo).

Descrever de forma realista o câncer não significa recomendá-lo.Maquiavel agiu de forma semelhante, usou método semelhante: descreveu o câncer

político (maldades humanas praticadas no exercício do poder), mas não o recomendou.O livro O Príncipe não é um receituário com prescrições de maldades a serem

adotadas na política. O Príncipe é um livro de descrições diretas das maldades indesejadas, e de prescrições indiretas que recomendam o abandono da ingenuidade.

Em O Príncipe, Maquiavel descreveu a política realmente praticada, de fato praticada (daqui a palavra realismo), ao contrário dos pensadores que o antecederam, que escreviam sobre as políticas ideais (idealismo) prescindindo do que de fato ocorria no mundo real.

A prescrição de maldades na política como meio para permanecer no poder (por muito tempo e a qualquer custo) consiste no maquiavelismo que, repetindo, não foi criado por Maquiavel, mas por seus críticos e intérpretes oportunistas, para justificar a própria tirania com a manipulação do pensamento do secretário florentino.

O realismo de Maquiavel é realismo descritivo.O realismo do maquiavelismo é o realismo imoral dos que afirmam que fins bons

justificariam o emprego de meios imorais.Hoje, tal recomendação imoral é sempre menos aceita (ao menos em teoria).Maquiavel não foi maquiavélico. Foi um dos principais teóricos do realismo

metodológico (descritivo) e do realismo antropológico.

Realismo antropológico e pessimismo virtuosoRealismo antropológico significa reconhecer, admitir que o ser humano é capaz de

realizar não somente as bondades desejadas, mas, também, as maldades indesejadas.Maquiavel não afirmava que as ações humanas eram sempre más. Ele afirmava que

nem sempre as ações humanas eram as ações boas desejadas, mas as ações maldosas indesejadas. E rejeitava a posição dos que confiavam de forma ingênua nas pessoas (príncipes ou povo): “chi fonda in sul populo, fonda in sul fango” - quem se apóia no povo, apóia-se na lama (Ibidem, p.64).

Se todos os seres humanos fossem sempre bons, não haveria necessidade de precaução, de cautela. Mas como os seres humanos não são sempre bons, não convém ser sempre bom entre tantos que não são bons (Ibidem, p.92).

Maquiavel foi um realista pessimista. E o que isso significa?Significa que ele não amava o péssimo, mas o previa (pessimismo preventivo).

Reconhecia que o péssimo indesejado era tão provável quanto o bem desejado. E isso pela ambigüidade moral que ele identificava no ser humano.

Maquiavel não recomendava a maldade como solução para o problema da ausência da bondade desejada, mas a prudência, a precaução, a cautela, a rejeição da ingenuidade, o pessimismo preventivo.

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Realista é a postura metodológica dos que buscam a identificação e compreensão da verdade prática a partir da observação dos fatos (reais).

Pessimista é a postura preventiva, cautelosa, prudente dos que admitem que a maldade indesejada (péssimo) infelizmente é tão provável quanto a bondade desejada.

A postura pessimista decorre de uma constatação realista: o ser humano é moralmente ambíguo, capaz de respostas bondosas e justas, mas, também, de respostas maldosas e injustas, indesejadas.

No ser humano reside também uma fera, que a qualquer momento pode despertar. E o reconhecimento de tal natureza ferina explica as recomendações realistas de prudência, cautela, pessimismo preventivo.

Admitir o mal não significa desejá-lo, mas reconhecer que ele é tão provável quanto o bem desejado.

Pessimista não é quem gosta do péssimo. Quem gosta do péssimo é o agourento (o que anuncia desgraças).

O pessimista (pessimismo preventivo) odeia o péssimo, mas admite realisticamente que o péssimo indesejado é tão provável quanto o bem desejado.

A visão cautelosa do pessimista previdente sustenta suas ações cautelosas (agir prudente).

Pessimismo, em tal sentido, não é vício, mas virtude.É uma virtude auxiliar - ou virtude dependente - da prudência: cautela prática que

decorre do reconhecimento (teórico) que o mal, mesmo sendo indesejado, é relativamente provável.

A prudência e o pessimismo trabalham juntos.A prudência contém sempre certa dose de pessimismo relativo, e não de pessimismo

absoluto, pois o bem também é tão provável quanto o mal.Não existe prudência realmente “prudente” sem certa dose de pessimismo relativo,

para o qual o péssimo é uma possibilidade, mas não a única possibilidade.Todavia, há quem confunda pessimismo com tristeza ou com desânimo.Os pessimistas seriam pessoas tristes, desanimadas. Mas trata-se de um equívoco.Os ingênuos (otimismo absoluto) é que tendem a ser mais tristes, pois sofrem mais

que os pessimistas (pessimismo relativo), já que esperam pelo bem desejado e não se preparam para o encontro com o mal indesejado.

O pessimista tende a ser mais alegre que o otimista ingênuo, porque mais cauteloso. Quem ama o péssimo é insano. O pessimista previdente, ou pessimista realista, não ama o péssimo. Odeia o péssimo, mas admite, reconhece - a contragosto - que o péssimo é provável, mesmo sendo indesejado.

O pessimista previdente reconhece que o péssimo é provável para evitá-lo, para não tornar-se vítima dele. E, quando se encontra com o péssimo, sofre menos que o otimista ingênuo, pois tal encontro já havia sido previsto como possibilidade (mesmo se indesejada) em seus cálculos de probabilidade. Por isso, ao contrário do que possa parecer, os pessimistas tendem a ser mais alegres que os otimistas. De outro lado, os otimistas tendem mais ao desânimo e tristeza que os realistas pessimistas (pessimismo preventivo).

O pessimista previdente faz de tudo para que a bondade desejada sempre desponte. Mas a probabilidade do contrário faz parte de seus cálculos, mesmo não fazendo parte de sua vontade.

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Cristianismo e realismoPara a antropologia cristã a natureza humana é boa, mas foi condicionada pelo

pecado.No Gênesis, lemos que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus:

“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. (...) Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher” (Gênesis 1, 26-27).

Note que o verbo fazer é usado no plural - “Façamos...” - coerente com a compreensão cristã de Deus: Trindade.

Afirmar que Deus é Trindade significa afirmar que Deus é relacionamento, comunhão, unidade e distinção (Deus é Uno e Trino).

E daqui deriva uma primeira compreensão antropológica: o ser humano é um ser social, comunitário que se relaciona com outros porque relacionar-se é algo que faz parte do seu ser (realidade ôntica) e não apenas do seu fazer.

Criado à imagem e semelhança da Trindade, o ser humano é comunhão. E a principal característica desta comunhão foi explicada por João: “Deus é amor” (1 João 4, 16). O Deus que criou o ser humano à sua imagem e semelhança é comunhão de amor.

A fôrma, o molde do ser humano é o amor-comunhão.Portanto, originalmente o ser humano é bom, e tal bondade consiste no amor-

comunhão. No ser humano, a bondade original precede o pecado original.A natureza humana é boa, mas foi condicionada pelo pecado original.Pecado significa ruptura da aliança entre Deus e os seres humanos.Pecado não significa tanto fazer coisas erradas, mas fazer a coisa errada por

excelência que é separar-se da aliança com Deus.A teoria do pecado original é uma resposta complexa da fé (revelada) que interpreta

a maldade real (histórica) e explica sua origem. As maldades do presente têm uma origem, no passado, e se repetem, no presente, porque as gerações precedentes condicionaram moralmente as gerações atuais que, por sua vez, condicionarão as do futuro.

Tomemos como exemplo o círculo vicioso da vingança.Uma geração se sente no dever de vingar a geração precedente.A vingança passa - como herança - de pai para filho.O mecanismo perverso da vingança sustenta vários conflitos no mundo, mas ele

pode ser rompido.A teoria do pecado original é uma teoria explicativa das maldades presentes pela

busca das origens da maldade. Não é uma teoria fatalista, determinista: a maldade do passado condiciona o presente, mas não determina necessariamente a prática de maldades no presente (o ser humano pode romper com o círculo vicioso da maldade).

Podemos concordar ou não com a teoria cristã da transmissibilidade do mal de geração em geração (pecado original), mas não podemos deixar de reconhecer realisticamente que as maldades humanas, mesmo sendo indesejadas, são reais, existem hoje, existiram ontem, e nada nos autoriza a dizer que não continuarão existindo amanhã.

A maldade humana não foi inventada pelos cristãos por meio da teoria do pecado original. A maldade humana do presente foi por eles apenas explicada por meio da teoria do pecado original. Reconhece a existência do mal, no presente, e confere-lhe um sentido histórico-cronológico, afirmando que, num dado momento, o mal ingressou na história da humanidade e passou a ser transmitido de geração em geração.

A bondade original foi condicionada pelo pecado, mas não foi anulada por ele.

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A maldade e a bondade são duas possibilidades da liberdade, com as quais podemos romper relações ou criar relações mais ou menos duradouras.

Cristianismo e pessimismoA antropologia cristã é relativamente otimista (a bondade desejada é provável) e

relativamente pessimista (o mal indesejado também é provável).Jesus não foi um otimista ingênuo: “Pedro, eu te digo: o galo não cantará hoje sem

que por três vezes tenhas negado conhecer-me” (Lucas 22, 34); “Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu...” (Lucas 11, 13); “Eis que eu vos envio como ovelhas entre lobos. Por isso, sede prudentes como as serpentes e sem malícia como as pombas” (Mateus 10, 16).

Afirmar que o ser humano é bom, mas condicionado pelo mal, significa reconhecer o dever moral de se preservar do mal indesejado (virtude da prudência) e reconhecer a corrigibilidade do ser humano e de suas experiências.

O ser humano pode se reformar e reformar suas experiências, mas isso não é fácil.O teólogo Paulo, responsável pela difusão da cultura cristã fora do espaço cultural

judaico, foi muito franco: “... não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero” (Romanos 7, 19).

Tomemos o exemplo de um fumante: sabe que o cigarro faz mal, mas ao invés de praticar o bem que quer (não fumar), pratica o mal que não quer (continua fumando).

A coerência pressupõe a consciência, mas a consciência não assegura automaticamente a coerência.

Para os cristãos, a transformação da consciência em coerência exige esforço e oração. A Graça de Deus, associada ao empenho humano, é a força capaz de realizar as mudanças necessárias.

Paraíso e inferno antes da morteCertamente não gostamos de viver em meio a maldades. Gostaríamos que um dia

elas acabassem em nós e fora de nós. Um mundo sem maldades, totalmente feliz, definitivamente feliz poderia ser chamado de paraíso. E tal paraíso existiria ou seria apenas obra da imaginação? Do ponto de vista sociológico paraísos terrestres não existem.

Paraísos reais, históricos, não existem. Desejo de paraíso existe. Mas paraíso de fato, com a eliminação definitiva do mal no tempo e no espaço, não existe.

Não há registro histórico de uma sociedade sem dor, sem sofrimento, apenas com as bondades desejadas, e sem as maldades indesejadas.

Se paraíso for espaço (físico e/ou moral) total e definitivamente ocupado pela felicidade, pela bondade, o inferno seria espaço total e definitivamente ocupado pela maldade.

Inferno seria o estado constante (total e definitivo) de sofrimento, de ausência de alegria e bondade.

Assim como não há registros (sociológicos) de paraísos terrestres, não há, também, registros de infernos terrestres.

Não vivemos no paraíso, mas também não vivemos num inferno terrestre.A vida humana não é - realisticamente falando – nem paraíso nem inferno.A maldade e a bondade concorrem no tempo e no espaço.

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Nos campos nazistas de concentração, a maldade foi “quase” total, mas a bondade resistiu entre os prisioneiros.

O italiano Roberto Benigni, no filme A Vida é Bela (1997), mostrou que o amor continuou no coração de um pai mesmo em meio ao “quase” inferno do nazismo.

Atos heróicos de amor foram praticados: como o do prisioneiro Maximiliano Kolbe (1894-1941), que se ofereceu para morrer no lugar de um pai de família.

No filme A Lista de Schindler (1993), o diretor Steven Spielberg também nos explicou que, em meio à tragédia, o amor sobreviveu.

A flor viveu numa pequena brecha na rigidez do muro da insensatez.A bondade é tão presente na sociedade quanto a maldade.Quem diz que o planeta terra é paraíso, mente. E quem diz que é inferno, mente

também.Enquanto um criminoso assalta, um “bom samaritano” (Lucas 10, 30-36) encaminha

a vítima para o hospital sem pedir nada em troca.No Manifesto do Partido Comunista (1848), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich

Engels (1820-1895) afirmaram que a história da humanidade é a história da luta de classes: opressores e oprimidos em conflito no tempo e no espaço (materialismo histórico).

E eles têm razão, pois a história da humanidade é também isso.Aliás, num ponto há certa semelhança entre o materialismo histórico e a teoria cristã

do pecado original: transmissibilidade do mal no tempo e no espaço.Mas a história da humanidade não é somente luta de classes (materialismo

histórico).Para o sociólogo russo-americano Pitirim Sorokin (1889-1968), “a cooperação entre

as classes sociais é um fenômeno ainda mais universal do que o antagonismo entre elas” (1974, p.526).

E ele também tem razão, pois a história da humanidade é caracterizada também pela cooperação.

Cooperação e antagonismo; tristeza e alegria; maldade e bondade concorrem entre si no tempo e no espaço, de geração em geração.

Até hoje nenhum grupo político ou religioso edificou paraísos terrestres, definitivos, totais, no tempo e no espaço. E os que tiveram tal presunção, ao invés de transformarem o purgatório em paraíso, o tornaram mais semelhante ao inferno.

O cristianismo rejeita o perfeitismoPerfeitista é quem acredita em soluções definitivas que resolveriam de uma vez por

todas nossos problemas morais.Em 1891, quando o perfeitismo comunista se espalhava pela Europa, arrastando

corações com suas promessas de mundo novo, o papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, denunciando a exploração dos trabalhadores assalariados pelo capitalismo effrenus (sem freios éticos), e rejeitando, também, as promessas perfeitistas do comunismo.

Neste documento, Leão XIII afirmou realisticamente que “a dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para os banir; mas não o conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem e por maiores forças que para isso desenvolvam” (1965, n.11).

Leão XIII não defendeu o conformismo. Se fosse assim, ele não teria publicado a Rerum Novarum, que é um documento a favor de reformas sociais.

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Leão XIII condenou a exploração capitalista e, também, as promessas perfeitistas, que ele chamou de “esperanças exageradas” (Ibidem, n.12).

Valorizou as ações políticas sustentadas numa esperança realista, que têm como objetivo a construção de um mundo melhor (Ibidem, n.11).

Anos depois, em 1961, o papa João XXIII, na sua encíclica Mater et Magistra, recomendou: “Não nos percamos em discussões intermináveis; e, sob o pretexto de conseguirmos o ótimo, não deixemos de realizar o bom que é possível e, portanto, obrigatório” (n.234).

A rejeição do otimismo perfeitista e a preferência pelo realismo melhorista são recomendações ético-sociais coerentes com a teologia cristã, para a qual o paraíso é depois, mas deve ser parcialmente antecipado já no momento presente.

João Paulo II, em 1991, na encíclica Centesimus Annus, explicou os motivos da rejeição do otimismo perfeitista pelos cristãos: “Somente no fim da história é que o Senhor voltará glorioso para o juízo final (Mateus 25, 31), com a instauração dos novos céus e da nova terra (2 Pedro 3, 13; Apocalipse 21, 1), mas, enquanto perdura o tempo, a luta entre o bem e o mal continua, mesmo no coração dos homens” (1991, n.25).

Mas a rejeição do perfeitismo não deriva somente da fé no Juízo Final. Sustenta-se, também, na observação sócio-histórica: não há registros de comunidades perfeitas.

Os cristãos acreditam que Jesus Cristo é a solução final, definitiva do enigma moral da história. Solução que já está em andamento, mas que se completará no dia do Juízo Final, quando Cristo “de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim”, como afirma o Credo Niceno-Constantinopolitano.

Durante o processo que o condenou à morte, Jesus surpreendeu Pilatos com uma afirmação que ainda é desconcertante: “Meu reino não é deste mundo” (João 18, 36).

Jesus não desqualifica as pessoas nem o planeta terra. O que ele despreza é a maldade, que não faz parte do seu mundo.

Ao homem que foi crucificado ao seu lado, prometeu: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23, 43).

A maldade que existe no mundo está excluída do mundo de Jesus (Reino de Deus), do paraíso, da Civitas Dei (Cidade de Deus). E a bondade que existe no mundo está contida na bondade da Cidade de Deus, e tem nela sua origem.

Todas as vezes que a bondade cristã é praticada, experimenta-se, parcialmente, antecipadamente, o estilo de vida típico da Cidade de Deus.

Acreditar que a solução final do enigma moral da história será completada por Cristo não permite ilusões perfeitistas nem a adoção de posições conformistas, uma vez que a vitória futura, que já começou, se realiza também por meio da colaboração dos cristãos.

Se Cristo pretendesse fazer tudo sozinho, não teria chamado discípulos (colaboradores) nem formado comunidades.

Melhorismo e reformismoO cristianismo rejeita o perfeitismo e o conformismo. Sobra o quê? O melhorismo e

o reformismo. Quem já fez (e faz) faxinas sabe que limpar a casa com capricho é coisa boa e justa,

diferente da pretensão de querer eliminar a poeira, como se fosse possível acabar com ela de uma vez por todas.

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Limpamos o quarto, depois a sala, o banheiro, e no quarto já entrou novamente uma poeirinha. Uma semana após a faxina, outra precisa ser feita novamente. As coisas se sujam sempre, e nós novamente as limpamos. Com a higiene do nosso corpo ocorre o mesmo. Tomamos banho hoje, e amanhã precisamos tomar banho novamente. Escovamos os dentes pela manhã, depois do almoço e após o jantar precisamos escovar novamente. Nós nos sujamos e nos limpamos sempre. Se a casa ficar fechada por uma semana, ela se suja mesmo assim. E não ficamos pensando na origem da poeira, mas na necessidade da faxina semanal.

O mesmo poderia valer para a ética pessoal e social: refletimos sobre a origem das nossas “poeiras” pessoais e coletivas, mas o mais importante é não deixarmos de agir para melhorar nossa vida pessoal e social. Afinal, pessoas perfeitas não existem. Pessoas melhores, sim. Sociedades perfeitas também não existem. Sociedades melhores, sim. E como podemos tornar melhores as pessoas e sociedades? Por meio de reformas.

Assim como o pó retorna sempre e a casa deve ser submetida novamente a sucessivas faxinas semanais, também na vida humana o pó da precariedade retorna sempre e as pessoas e comunidades devem ser renovadas constantemente.

Gostemos ou não, depois de 1989 sobrou o melhorismo-reformista.Em 1989, com o muro de Berlim caiu também a credibilidade do socialismo

revolucionário, que propunha mudança de sistema: substituição do capitalismo pelo socialismo.

Se o socialismo (real) foi abandonado pelos que nele viveram, como continuar propondo, nos países capitalistas, alternativas socialistas (socialismo ideal) mais ou menos próximas ao sistema que ruiu na Alemanha, no leste europeu e na ex-União Soviética?

Os movimentos reformistas não foram afetados negativamente pela queda do muro de Berlim. Ao contrário, cresceram. Na Itália, o ex-Partido Comunista dará origem a um forte partido de esquerda reformista: Democratas de Esquerda. No Brasil, o ex-Partido Comunista Brasileiro tornou-se partido de esquerda reformista: o PPS (Partido Popular Socialista).

No catolicismo social, os fatos de 1989 produzirão fenômenos semelhantes (cf. BENTO, 1999). O teólogo chileno Pablo Richard, que havia sido um dos principais teóricos do movimento “Cristãos para o Socialismo” - movimento que indicava a revolução como solução para os problemas sociais na América Latina -, reviu sua posição anti-reformista dos anos da década de 1970, e afirmou que “buscar hoje reformas e desenvolvimento em função da vida de todos (...) é profundamente revolucionário e libertador” (1991, p.653-654).

O historiador francês François Furet, no seu estudo sobre a história do comunismo, afirmou que para a esquerda revolucionária a burguesia foi “o bode expiatório de todas as desventuras do mundo” (1995, p.12).

Para o reformista católico Alcide De Gasperi (1881-1954), que foi Primeiro-ministro da Itália de 1945 a 1953, “é preciso ter um pessimismo sadio, que deriva da consciência de que o mal pode ser encontrado em todos os homens e em todas as classes sociais” (apud BARBERIS, 1953, p.08).

O pessimismo sadio do católico De Gasperi não permitiu que ele se tornasse vítima daquela ingenuidade perigosa que reduziu algumas categorias de pessoas (os ricos, a burguesia) à representação do mal (demonização do rico), e outras (os pobres, o proletariado) à representação do bem (idealização do pobre).

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A burguesia foi desqualificada e perseguida porque concebida como classe intrinsecamente imoral, e os pobres - sem que isso fosse por eles solicitado - foram exaltados como se tivessem nascido sem pecado original.

O “ódio pela burguesia” e por tudo aquilo que fosse considerado burguês sustentou a esperança e animou a ação política da esquerda revolucionária marxista (FURET, 1995, p.12).

Reformismo cristãoQuando participava, como colaborador, numa Comunidade Eclesial de Base (CEB)

na periferia pobre da cidade de Pelotas (RS), na primeira metade da década de 1980, certa vez uma senhora, do centro da cidade, tentou me convencer a desistir citando uma frase do evangelho: “Na verdade, sempre tereis os pobres convosco” (Mateus 26, 10-11).

Sua recomendação não me convenceu. E encontrei argumentos para rejeitar tal interpretação conservadora do evangelho também numa observação do cientista político Giovanni Sartori: “Os rendimentos individuais são desiguais no mundo inteiro, mas muito menos desiguais na Suécia ou nos Estados Unidos, do que na Arábia Saudita ou no Brasil” (1993, p.99).

A pobreza econômica - exemplo de pobreza moral - é uma das conseqüências sociais do pecado original. Uma dentre as várias manifestações visíveis da situação de precariedade moral que caracteriza a vida humana.

Desigualdades sociais (pobres) existem no mundo todo, mas em que proporção? Elas sempre existiram e provavelmente continuarão existindo, mas lutar pela diminuição do número de pobres no mundo faz parte do mandamento cristão do amor.

As desigualdades sociais podem e devem ser reduzidas a marcas menos elevadas, e tal redução é um objetivo cristão que pode e deve ser realizado por meio de reformas sociais nacionais e internacionais: acesso à educação; reformas salariais; reorganização do comércio internacional; globalização da solidariedade.

Quem ama de verdade, luta pela diminuição das desigualdades sociais no seu país e no mundo.

Situações de precariedade moral devem ser combatidas, mesmo se serão eliminadas definitivamente somente no Juízo Final (Mt 13, 37-43).

A fé no Juízo Final rejeita o perfeitismo e o conformismo: o cristão que não fizer a sua parte no presente não será agraciado com a cidadania definitiva na Cidade Celeste (Mateus 25, 31-46). Ele não deve ser omisso, nem tampouco perfeitista. Sendo assim, lhe resta, do ponto de vista das mudanças morais (pessoais e sociais), a opção pelas reformas como expressão concreta do seu amor por si mesmo e pelos pobres.

Durante os anos das décadas de 1970 e 1980 se falou bastante em Opção Preferencial pelos Pobres, no Brasil, na América Latina e em tantos outros lugares (PUEBLA, 1979).

Infelizmente, hoje tal opção é pouco lembrada (COMBLIN, 2005, p.11-16). Até por ter sido associada, em algumas situações, ao ódio pelo burguês.

Ora, se alguns cristãos da esquerda revolucionária associaram a Opção Preferencial pelos Pobres ao ódio pelo burguês (cf. BENTO, 1999, p.172-181), o que deve ser abandonado é o ódio pelo burguês, e não a Opção Preferencial pelos Pobres, que é uma opção evangélica (mandamento do amor) ainda urgente do ponto de vista das reformas estruturais (diminuição das desigualdades socioeconômicas).

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Reformas na pessoaUma das peculiaridades do reformismo cristão é o primado antropológico na ordem

das mudanças: reformas sociais precisam ser precedidas, acompanhadas e seguidas por reformas profundas no coração (centro moral) e mente do ser humano.

No reformismo cristão as mudanças sociais (exteriores) não podem ser dissociadas das mudanças na forma de sentir, pensar e agir de cada ser humano.

O primado antropológico foi recomendado pelo próprio Jesus: “Que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mateus 16, 26).

Ao primado antropológico na ordem das mudanças está associado também o primado da graça: a força capaz de realizar as mudanças (antropológicas e sociais) é o poder de Cristo, que atua por meio de seus colaboradores. Por isso, para os cristãos, as mudanças sociais são produzidas, principalmente, no laboratório da oração.

No reformismo cristão, o genuflexório ocupa lugar de destaque.De acordo com o papa Paulo VI, “... as melhores estruturas, ou os sistemas melhor

idealizados depressa se tornam desumanos, se as tendências inumanas do coração do homem não se acharem purificadas, se não houver uma conversão do coração e do modo de encarar as coisas naqueles que vivem em tais estruturas ou as comandam” (1981, n.36).

Todavia, o primado antropológico na ordem das mudanças não pode ser interpretado de forma conservadora, como afirmou o papa Bento XVI, quando ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé: “... a prioridade reconhecida à liberdade e à conversão do coração não elimina, de forma alguma, a necessidade de uma mudança das estruturas injustas. É, portanto, plenamente legítimo que aqueles que sofrem opressão por parte dos detentores da riqueza ou do poder político ajam, por meios moralmente lícitos, a fim de obter estruturas e instituições nas quais seus direitos sejam verdadeiramente respeitados” (1986, n.75).

O progresso técnico-científico não gera, por si só, progresso ético: as bombas representam, ao mesmo tempo, progresso técnico-científico e retrocesso moral.

As reformas sociais não sustentam os benefícios conquistados se não forem acompanhadas por mudanças profundas nas pessoas e seus grupos de pertença, transformando os círculos viciosos da maldade em círculos virtuosos do amor verdadeiro (que contém a justiça).

Exemplos de círculos viciosos são todas as formas de criminalidade organizada (máfias); o capitalismus effrenus, sem regras ético-sociais nem freios ecológicos, ambientais; a substituição do pluralismo pela intolerância; a rejeição da fraternidade nas relações internacionais; etc.

Exemplos de círculos virtuosos são as várias associações de voluntariado; os grupos de cidadãos que lutam com as armas do direito e da democracia contra a corrupção; as experiências econômicas (produção) socialmente éticas (justa distribuição) e ecologicamente responsáveis (desenvolvimento sustentável); o reconhecimento teórico e prático do pluralismo e da fraternidade nas relações sociais e internacionais; etc.

As reformas morais (nas pessoas e suas comunidades) são possíveis porque a bondade original não foi cancelada, mas condicionada pelo pecado original.

No primado antropológico na ordem das mudanças está contida a convicção de que, não obstante as maldades praticadas no decorrer da história da humanidade, a bondade original resta sempre como possibilidade da liberdade.

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O cristianismo acredita no ser humano, na corrigibilidade dele e de suas experiências, mas não de forma ingênua.

Trata-se, como já afirmamos, da confiança realista de quem espera respostas positivas, mas se prepara também para possíveis respostas negativas que, mesmo sendo indesejadas são, infelizmente, tão prováveis quantos as respostas bondosas desejadas.

Os reformistas cristãos são relativamente otimistas em relação aos seres humanos, pela bondade original, decorrente da “imagem e semelhança”, que não foi anulada, mas condicionada pelo pecado original; absolutamente otimistas em relação ao poder da Graça de Deus; e relativamente pessimistas em relação aos seres humanos, devido ao condicionamento ao mal (inclinação ao mal) provocado pelo pecado original.

Na sua longa trajetória de político e escritor, o católico italiano Igino Giordani (1894-1980) pode constatar que o “pessimismo realista sustenta a esperança” (1986, p.50). Não é contra a esperança, mas a sustenta.

Como bem explicou o Catecismo da Igreja Católica, “ignorar que o ser humano tem uma natureza ferida, inclinada ao mal, é causa de graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes” (n.407).

Vale para a ingenuidade o que vale para outras palavras: ela pode ser vício ou virtude. É virtude quando indica conquista (geralmente temporária e, por isso, necessariamente renovável) da pureza interior (ser sem malícia); e é vício quando indica o não reconhecimento da existência do mal dentro e fora de si.

A ingenuidade que alimenta a imprudência (vício) é “grave erro” descartado pelo catolicismo social crítico.

Segundo Igino Giordani, um dos principais artífices de tal catolicismo,“Esta é a vida: comédia breve que ocupa o espaço onde deveria acontecer o

colóquio com Deus. Fixar-se nos homens, ao seu humor, às suas iras, ameaças, traições, espantar-se porque os beneficiados te desprezam, e os que nutriste, te retribuem com cuspidas, é como se apoiássemos a escada que vai ao Paraíso no lodo que se desfaz ou na superfície de folhas podres com que um pântano encobre a água estagnada. O que os homens devem fazer? O mundo inteiro está permeado pelo Maligno. E este pessimismo realista sustenta a esperança; dá a medida do incomensurável; e a traição das pessoas suscita o amor de Deus e a fidelidade a Ele. Com que te surpreendes? O homem causa mais mal que bem; e, freqüentemente o bem é tomado pelo mal; faz sofrer por amor, desencadeia guerras, fome e destruição por um ideal ou com intenção de fazer o bem... Domina toda essa insensatez e fraqueza rindo sabiamente da situação. Irar-se é como cair sob essa fraqueza; igualar-se a essa miséria; precipitar-se na insensatez” (1986, p.49-50).

Há quem diga que deveríamos ter “pele de rinoceronte” para conseguirmos agir com mais objetividade em situações de conflito.

Para Chiara Lubich, Jesus torna a nossa “alma de aço contra as intempéries do mundo” e a “liquefaz em amor para com todos aqueles que nos circundam” (1978, p.48).

Chiara Lubich e Igino Giordani, dois discípulos grandes do Grande Amor, que amam a fortaleza e a prudência realista, do pessimismo que sustenta a esperança, e da alma de aço contra as intempéries do mundo.

Libertação e libertaçõesNa América Latina o tema da libertação foi amplamente debatido pelos cristãos nas

décadas de 1960 a 1980.

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Como bem sintetizou o teólogo brasileiro Clodovis Boff, “uma coisa é certa: a libertação plena só vai se dar mesmo ‘no céu’, para além da história” (1986, p.242).

Enquanto vivemos no tempo e no espaço, podemos (e devemos) trabalhar por libertações (no plural), desconfiando de quem promete a libertação (no singular).

Libertação, no singular, é somente a libertação escatológica (final da história), essa sim plena, definitiva.

A palavra libertação é problemática quando usada no singular, em sentido sociopolítico, pelo quê de definitivo nela contida.

No tempo e no espaço não há libertação definitiva, mas libertações que devem ser constantemente renovadas.

Do ponto de vista da libertação pessoal, a recomendação católica da confissão freqüente favorece a realização dos objetivos práticos do primado antropológico na ordem das mudanças. Em relação à libertação social, se, por exemplo, uma determinada experiência libertadora fosse feita numa câmara de vereadores ou numa empresa, tal experiência precisaria ser renovada para ser mantida, para que a corrupção ontem expulsa pela porta, não entrasse amanhã pela janela.

Para os cristãos realistas e reformistas, uma teologia da libertação tem sentido somente se entendida como teologia de libertações (pessoais e sociais), a serem feitas e refeitas constantemente.

Reformismo e sofrimentoOs círculos viciosos da maldade não toleram quem se rebela contra eles. Quem opta

pelo caminho das reformas pode até morrer por isso.Em 1937, o reformista italiano (esquerda reformista) Carlo Rosselli (1899-1937) foi

assassinado na França por pessoas ligadas ao fascismo. Ele tinha somente 38 anos de idade, e nos deixou seu exemplo de luta antifascista e seu belíssimo livro Socialismo Liberale (escrito no cárcere entre 1928-29).

No dia 24 de março de 1980, Dom Oscar Romero (1917-1980), arcebispo de San Salvador, capital de El Salvador (América Central), foi assassinado com um tiro enquanto celebrava missa. Morreu lutando pelos direitos humanos.

Em 19 de agosto de 2003 o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello (1948-2003) foi morto no Iraque num atentado terrorista contra a sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Bagdá. Dedicou-se aos direitos humanos nas relações internacionais, e não escolhia os lugares mais tranqüilos para atuar como diplomata.

A irmã Dorothy Stang (1931-2005), norte-americana naturalizada brasileira, foi assassinada a tiros no município de Anapu (PA) no dia 12 de fevereiro de 2005. Os fazendeiros da região ficaram enfurecidos com seus projetos sociais de desenvolvimento sustentável: emprego e renda para os pobres, com respeito pelo ambiente. Quatro homens (entre mandantes e executores) combinaram e executaram o assassinato da irmã Dorothy. Quatro homens e vários tiros contra uma senhora de 73 anos de idade! Ameaçada de morte várias vezes antes de ser assassinada, ela não abandonou seu trabalho: “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Dorothy_Stang).

O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) foi condenado a 20 anos de prisão pelo fascismo de Benito Mussolini. Preso em 1926, morreu, com tuberculose, em 1937. Durante

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os vários anos nas duras prisões do fascismo, a solução encontrada por Gramsci foi comunicar-se: do cárcere escreveu várias cartas a familiares e amigos, publicadas em 1947 sob o título Lettere dal carcere (Cartas do cárcere).

Sofrimento e RedençãoJesus Cristo foi vítima (inocente) de um processo injusto, instaurado por autoridades

que injustamente o condenaram e executaram.Há quem pense que Jesus morreu na cruz para “fazer a vontade de Deus”, como se a

morte de Jesus tivesse sido desejada e planejada por Deus Pai. Mas Deus Pai não foi o responsável pela morte de Jesus. Ela não foi provocada por aquele que Jesus chamava carinhosamente de Abbá (Marcos 14, 36), termo aramaico que significa “paizinho”, e indica a relação de intimidade, de familiaridade entre Jesus (Deus Filho) e Deus Pai.

Jesus e seu Pai sabiam da morte violenta de Jesus, mas não são responsáveis por ela. O que Jesus quis – e seu Pai também – foi a Redenção: amor que libera a humanidade do peso do sofrimento.

A paixão de Cristo foi o contexto (pano de fundo) da Redenção.E a Redenção o texto da paixão.A Redenção foi obra de Deus, e o contexto dela (paixão) foi obra da humanidade.Quando o sofrimento se fez intenso, Jesus revelou o que se passava em sua alma:

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus 27, 46).A confiança de Jesus no paizinho (Abbá) foi total: “Pai, em tuas mãos entrego o

meu espírito” (Lucas 23, 46).Em Jesus crucificado, sofrimento não significa resignação, fatalidade, passividade,

mas trabalho interior, intensa atividade interior: “Está consumado!” (João 19, 30).O trabalho mais importante realizado por Jesus foi trabalho interior, soteriológico,

feito com a alma, fixado numa cruz, sem poder mover braços e pernas.Jesus mudou o mundo pelo lado de dentro da história. Do alto da imobilidade

corporal, pregado numa cruz como se fosse uma lâmpada fixada violentamente num poste, Jesus levantou com a alma o peso incalculável da humanidade decaída pelo pecado. Seu coração trabalhou como usina espiritual potentíssima que recebe problemas morais (da humanidade) liberando energia vital (para a humanidade).

A partir da Redenção, o sofrimento torna-se, se permitirmos, trampolim para saltos decisivos de qualidade na vida moral de pessoas e suas comunidades. O crucifixo, ao contrário do que possa parecer, não é símbolo de morte, de derrota, mas de vitória (Redenção). E é por isso que ele continua sendo o símbolo por excelência dos cristãos após mais de dois mil anos de história.

A Redenção foi uma ação interior, feita com o coração, no coração de Cristo, pelo coração da humanidade. Foi o ato de amor mais “produtivo” de Jesus.

Como bem sintetizou Chiara Lubich, “Jesus converteu o mundo com a palavra, com o exemplo, com a pregação, mas o transformou com a prova do amor: a cruz” (LUBICH, 1984, p.60).

“Cristo, mediante o seu próprio sofrimento salvífico – explicou-nos João Paulo II - encontra-se bem dentro de cada sofrimento humano, e pode assim atuar a partir do interior do mesmo, pelo poder do seu Espírito de Verdade, do seu Espírito Consolador” (JOÃO PAULO II, 1984, n.26).

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O encontro pessoal, íntimo, existencial com Cristo “escondido” nos sofrimentos humanos é libertador, consolador e santificador (das pessoas e do mundo).

Cristo crucificado nos ensina preciosas lições de ética social: as mudanças realizadas na cidade terrestre a partir da metodologia da Redenção não têm prazo de validade definido, pois valem para sempre. As atividades interiores, da alma, são as que sustentam a qualidade das ações exteriores, pessoais e coletivas.

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CAPÍTULO 4A QUESTÃO SOCIAL E A

CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

Questão socialA expressão “questão social” designa um fato social bem específico: relações de

trabalho entre assalariados e empresários. Podemos usar também outras expressões para designar os sujeitos da questão social: burguesia e proletariado; opressores e oprimidos; operários da indústria e industriais; dominados e dominadores; explorados e exploradores.

Note que em algumas expressões usadas para designar os sujeitos principais da questão social estão contidos juízos de valor, ou seja, julgamentos condenatórios.

Tomando como exemplo a palavra burguesia, podemos entendê-la a partir do seu sentido técnico-descritivo: profissionais do burgo, ou seja, comerciantes (cidades brasileiras como Novo Hamburgo ou Nova Friburgo remetem nosso pensamento ao sentido descritivo da palavra burgo e burguês); ou entendê-la a partir de julgamentos condenatórios: classe opressora, ou exploradora dos trabalhadores assalariados. Um compositor brasileiro disse até que a “burguesia fede”.

Na questão social estão contidos dois sujeitos: trabalhadores assalariados e empresários; um ambiente específico de trabalho: a indústria; e seu contexto cronológico: Revolução Industrial (idade contemporânea).

Relações sociais de trabalho sempre existiram, mas relações sociais de trabalho designadas pela expressão “questão social” são as relações sociais de trabalho típicas da idade contemporânea.

Como nasceu a questão social? A questão social surge como conseqüência da Revolução Industrial: mudança radical na forma de produção de mercadorias. Com o uso de novas tecnologias no trabalho, a burguesia revolucionou os ritmos de trabalho e de produção. A fábrica burguesa aumentou a produção por meio do emprego de novas tecnologias (o novo sempre é novo no seu contexto histórico, em relação ao antigo que o precedeu) e pelo uso do trabalho dos operários da indústria. Assim, ela favoreceu o êxodo rural e o aumento progressivo da densidade populacional urbana.

Como se caracteriza a questão social na sua fase inicial? As relações sociais de trabalho entre burgueses e proletários (assim chamados pelo elevado número de filhos - prole, exigência da vida no campo, onde os filhos trabalhavam na lavoura) se caracterizavam originalmente pela extrema desigualdade e conflitos agudos entre operários e empresários. Devemos imaginar uma sociedade sem legislação trabalhista, e com o Estado compreendido como prolongamento político da classe burguesa. Os operários, nas primeiras fases da Revolução Industrial, viviam em condições econômicas certamente piores que a dos escravos e dos antigos servos da gleba (súditos do rei). De fato, os trabalhadores assalariados eram oprimidos pela burguesia nas primeiras fases da Revolução Industrial.

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Questão social brasileiraA Revolução Industrial não tem uma data de nascimento tão precisa quanto a data

de nascimento de uma pessoa. Dizer que a Revolução Industrial aconteceu em 1763 com a invenção da máquina a vapor por James Watt é uma afirmação equivocada, pois a Revolução Industrial é um processo social revolucionário que está em movimento até hoje. Tal data é indicativa, e não possui um sentido matemático. O mesmo vale para a Revolução Francesa. O dia 14 de julho de 1789 – queda da Bastilha – é data-símbolo de um processo revolucionário em movimento até hoje.

A Revolução Industrial é um fenômeno urbano contemporâneo (século XVIII) caracterizado como revolução, mesmo não tendo sido disparado nenhum tiro de pistola para a sua realização. Ora, por que a Revolução Industrial é considerada revolução se não houve uso de pistolas e carabinas para sua realização? Porque para a sociologia revolução social significa mudança radical na estrutura social e não simplesmente luta armada.

E foram os inventores (cientistas) os principais sujeitos da Revolução Industrial? Não. Os principais sujeitos da Revolução Industrial foram os burgueses, que usaram os inventos dos cientistas nas suas fábricas, com a intenção de aumentar a produção de mercadorias por meio de tais invenções.

A Revolução Industrial foi uma revolução burguesa, iniciada na Inglaterra (século XVIII) e que, depois, expandiu-se em várias partes do mundo. Porém, até hoje há lugares que não são industrializados (e não necessariamente devem ser). E foi tal revolução burguesa que produziu a questão social.

No Brasil, a Revolução Industrial desenvolveu-se no início de 1900, no estado de São Paulo, com as indústrias da família Matarazzo (imigrantes italianos). Juntamente com as indústrias, tem origem a questão social no Brasil. Claro que antes da industrialização já havia conflitos nas relações de trabalho: conflitos entre escravos e senhores de escravos; entre brancos e negros; entre colonizadores e índios. Mas os conflitos designados com a expressão “questão social” são aqueles típicos das relações de trabalho nas nascentes indústrias burguesas.

Pelas suas peculiaridades históricas, a questão social brasileira tem tons raciais específicos, ou seja, dentre os operários que forneciam força-trabalho aos burgueses brasileiros em troca de salário havia muitos negros, ex-escravos. Por isso, no Brasil, na questão social está contida uma questão racial. Todavia, não havia somente ex-escravos negros entre os operários brasileiros. Entre os operários paulistas estavam também imigrantes europeus, sobretudo italianos. Da Itália vieram os primeiros industriais burgueses brasileiros e, também, os primeiros operários. Na bagagem dos imigrantes italianos que foram trabalhar como operários nas indústrias nascentes paulistas, estavam também livros com idéias de liberdade na indústria: idéias socialistas, sindicalistas e, sobretudo, anarquistas. Ao contrário do que possa parecer, anarquia não significa caos, ausência de governo, mas governo de uma assembléia que seja representativa da comunidade. Os anarquistas não queriam o caos, mas uma nova ordem social mais justa para todos.

De São Paulo, a nova ordem industrial foi sendo exportada para os demais estados do Brasil e, com ela, a questão social: conflitos agudos entre a burguesia brasileira e a classe trabalhadora.

Em suma, a expressão questão social remete nosso pensamento ao problema social das desigualdades políticas e econômicas entre ricos e pobres que, na idade da indústria, são classificados como classe burguesa e classe operária.

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Construção democrática no contexto da questão socialO primeiro sujeito da questão social é a burguesia, classe revolucionária que

transformou o antigo regime monárquico numa sociedade urbana, industrial. Como afirmou o próprio Karl Marx, “a burguesia criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (MARX, p.79). A identidade revolucionária da burguesia foi constatada por aquele que seria também o seu principal crítico: segundo Marx o proletariado cumpriria o papel de “coveiro” da burguesia (Idem, p.88).

O segundo sujeito da questão social é o proletariado (classe trabalhadora).As péssimas condições de trabalho e de vida impostas aos trabalhadores

assalariados da indústria foram gerando movimentos operários voltados para as mudanças sociais. Mas nenhum movimento social vive somente de problemas. Ele precisa de idéias para produzir as mudanças desejadas. Assim como os burgueses usaram as idéias dos filósofos iluministas para promover suas conquistas liberais, os operários também contaram com a ajuda de muitos pensadores para identificar metas e meios necessários às mudanças sociais desejadas.

Importante contribuição foi dada pela Igreja Católica por meio da encíclica social Rerum Novarum, do papa Leão XIII, publicada em 1981. Nela, Leão XIII apresenta uma importante distinção entre desigualdades naturais e desigualdades sociais. As diferenças entre as pessoas são naturais quando são diferenças de aptidões, vocações, profissões. Já as desigualdades sociais não são obras da natureza, nem de Deus, mas conseqüência do pecado original, ou seja, são desigualdades injustas. Para Leão XIII, a questão social é, sobretudo, questão operária. Não é justo que os operários sejam explorados pela burguesia nas relações de trabalho. A Rerum Novarum é uma encíclica profética, por anunciar como vontade de Deus o ideal de uma vida digna para os operários e por criticar a desigual distribuição dos frutos econômicos obtidos por meio do trabalho dos burgueses e dos operários.

Na questão social, a Igreja Católica colocou-se prioritariamente ao lado dos operários, porque eram eles que sofriam mais, mas sem excluir o reconhecimento dos direitos dos burgueses. A Igreja Católica, mesmo sendo a favor dos operários, nunca foi anti-burguesa nem a favor de um ideal de igualdade social extremo (igualitarismo).

Além da Doutrina Social da Igreja (pensamento social iniciado em 1891 e que continua até nossos dias), várias outras escolas de pensamento produziram idéias voltadas para as mudanças sociais: socialistas, anarquistas, sindicalistas, comunistas, marxistas, leninistas, trotskistas, reformistas, social-democratas, socialistas liberais, etc.

Para fins de simplificação analítica, podemos classificar em duas as várias orientações políticas voltadas para as mudanças sociais: maximalistas e reformistas.

Maximalistas eram aqueles setores políticos do movimento operário que queriam o máximo (a revolução) e não apenas o que eles consideravam o mínimo (as reformas sociais). Os maximalistas não acreditavam na possibilidade de relações justas entre burguesia e proletariado. Queriam o fim da burguesia (pelo exílio ou eliminação física) e a tomada do poder por meio de partidos que eles classificavam como partidos proletários (partidos comunistas). Maximalistas foram as experiências comunistas, ou de socialismo real. Algumas chegaram ao fim a partir da queda do Muro de Berlim (1989), e outras ainda continuam existindo, com variações entre elas (Cuba, Coréia do Norte, China).

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Os reformistas, ao contrário dos maximalistas, não queriam a revolução, mas as reformas sociais. Os reformistas acreditavam na possibilidade de uma justa conciliação entre burguesia e proletariado. E tal convicção derivava da experiência. Por meio de experiências sindicais reformistas bem-sucedidas a situação econômica e política dos operários fora mudada para melhor. Salários melhores e mais poder político foram conquistados pelos operários por meio das lutas sindicais reformistas e dos partidos reformistas dos trabalhadores. Houve o que podemos chamar de processo de aburguesamento da classe operária por meio de lutas sindicais melhoristas.

Os movimentos operários reformistas ensinaram que a democracia não deveria ser compreendida apenas como instrumento político para a escolha de representantes (democracia representativa), mas, também, como instrumento econômico para a diminuição das desigualdades entre burguesia e proletariado.

Foram os movimentos operários reformistas os verdadeiros pais-fundadores do que conhecemos hoje por democracia social, ou social-democracia. Claro que pensadores como Eduardo Bernstein (Socialismo Evolucionário) e Carlo Rosselli (Socialismo Liberal) conseguiram colocar no papel as principais idéias-força do pensamento reformista social-democrata, mas a social-democracia foi gerada pelos movimentos sindicalistas reformistas.

Portanto, a resposta predominante da classe trabalhadora à questão social foi a construção de uma concepção alargada de democracia: que não seja somente direito de votar, mas, também, direito de comprar, por meio de um salário digno, capaz de competir com os preços reais das economias liberais de mercado.

Os reformistas, mais do que socialistas foram, na verdade, defensores do que podemos chamar de teoria e prática do salarismo.

Os exemplos mais bem-sucedidos de democracia social estão no norte da Europa: Noruega, Dinamarca, Suécia, Islândia e Finlândia.

Construção democrática no contexto da questão social brasileiraA construção da democracia no Brasil já passou por várias etapas.No nosso país há fatores regionais e raciais que não podem ficar de fora de nenhuma

compreensão que queira ser profunda da construção da democracia.A unidade nacional, forjada na derrota de alguns movimentos regionais, como a

Revolução Farroupilha (1835-1845), contém uma compreensão federalista da democracia brasileira. Somos todos brasileiros, do norte e do sul, responsáveis por um território que vai da grandiosa Amazônia aos magníficos pampas do sul. Tal diversidade precisa ser administrada de forma federalista para que a unidade seja qualitativa.

O antropólogo Darcy Ribeiro nos explicou muito bem que o Brasil é um novo produto racial, resultado de várias misturas. Num certo sentido, no Brasil não existem nem negros, nem índios, nem brancos, mas brasileiros predominantemente negros, índios ou brancos que contêm em si todas as outras raças. Não obstante o racismo seja uma posição esdrúxula num país miscigenado como o nosso, a construção da democracia no Brasil depende muito da superação das nossas desigualdades raciais.

Em relação à construção democrática no contexto específico da questão social brasileira, infelizmente o justo desejo de mudanças foi várias vezes derrotado por posições conservadoras, principais responsáveis pela nossa ainda atual condição social de país desigual. Basta um breve passeio pela periferia de nossas cidades para constatarmos que

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ainda não construímos a fraternidade social no Brasil. Todavia, algumas etapas importantes já foram percorridas.

No período trabalhista da nossa história política obtivemos vitórias importantíssimas. A legislação trabalhista (Consolidação das Leis do Trabalho) não foi um mero presente assistencial concedido pelo ex-presidente Getúlio Vargas para acomodar os trabalhadores. Segundo os críticos maximalistas, Getúlio teria sido “pai dos pobres e mãe dos ricos”. Na verdade, a legislação trabalhista foi conquista que custou o sangue de muitos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. Hoje, a manutenção de tais conquistas trabalhistas é ainda um dos desafios principais dos movimentos pela democracia social. Salário mínimo, férias remuneradas, fundo de garantia, licença maternidade, décimo terceiro salário, etc. não são meros ajustes paliativos concedidos pela burguesia (como afirmavam os maximalistas), mas conquistas vitais da classe trabalhadora.

Porém, a grande ferida de nossa história, do ponto de vista da construção da democracia social, ainda é a tragédia política de 01 de abril de 1964, quando o presidente João Goulart foi deposto pelos conservadores por ter anunciado, dias antes, na Central do Brasil, a realização de reformas sociais de base. Com a desculpa de uma suposta ameaça comunista, militares e civis conservadores abortaram um processo até então crescente de justas reivindicações sociais reformistas para o Brasil. O golpe de 1964 foi um golpe contra as reformas sociais. Um golpe contra a democracia social que assassinou esperanças e lideranças. Caso tal golpe não tivesse ocorrido, penso que o Brasil não seria transformado num país comunista, mas num país social-democrata, que poderia ser hoje mais semelhante aos países da Europa social-democrata. Dentre os grupos favoráveis às mudanças sociais, a tradição política que prevalecia no Brasil, antes de 1964, não era a tradição comunista, de Carlos Prestes, mas a cultura política reformista dos trabalhistas e dos movimentos sociais reformistas.

Infelizmente, as reformas sociais foram abortadas, e a reconstrução da democracia social foi retomada de forma mais veemente no Brasil somente em 1994, com o Plano Real de estabilização econômica. Afinal, a democracia social precisa de estabilidade econômica, pois a inflação é uma das principais inimigas do poder de compra da classe trabalhadora.

Após o término do segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil escolheu um ex-operário para presidir o país. Temores foram espalhados pelo mundo. Estaria o Brasil novamente sendo ameaçado pelo comunismo com a vitória de Luís Ignácio Lula da Silva? Em 2002, na Carta ao Povo Brasileiro, o grupo político de Lula explicara aos eleitores que o governo Lula, caso eleito, faria um governo social-democrata. O maximalismo havia sido abandonado oficialmente por Lula, mas penso que, na prática, Lula sempre foi um líder popular negociador, politicamente social-democrata. Vários casos de corrupção envolvendo o partido do presidente operário ainda estão sendo investigados, mas os méritos social-democratas do atual governo são reconhecidos até pelos seus adversários políticos do PSDB.

A corrupção precisa ser combatida veementemente, mas o Brasil está hoje no rumo certo na construção da democracia social. Tal rumo foi retomado pelo ex-presidente Fernando Henrique, trinta anos após a deposição de Jango, e está sendo continuado pelo presidente Lula.

No Brasil, a democracia social ainda é muito mais um sonho do que realidade, mas não devemos deixar de preservar o que já conquistamos enquanto lutamos por aquilo que ainda não temos.

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CAPÍTULO 5 TELEVISÃO, PUBLICIDADE E LIBERDADE

Negócio desigualDe acordo com o sociólogo brasileiro Herbert de Souza, “a TV oferece uma espécie

de curso intensivo, para adultos e crianças, sem nenhum controle social” (SOUZA, 1994, p. 15).

Para Betinho, como ficou conhecido o sociólogo Herbert de Souza, “a família exerce seu próprio controle, a escola possui regras, mas a televisão não tem nada disso” (Ibidem, p. 15). E os que propõem controle de qualidade da programação televisiva pela sociedade civil são apresentados como se fossem obscuros defensores da “censura”. Trata-se, porém, de acusação demagógica, porque a censura que justamente deve ser condenada, a que foi praticada por governos ditatoriais no Brasil, correspondeu à censura da liberdade de divergência dos opositores dos regimes ditatoriais.

Hoje, os que são impropriamente acusados de “censores”, são aqueles que lutam pelo direito de divergir das manipulações do regime televisivo. Os censurados de hoje são os que propõem a liberdade de divergir do regime televisivo, são os que propõem controle democrático de qualidade do sistema televisivo. Os censores estão no lado de dentro da televisão. Os censurados são os seus críticos externos. Portanto, a palavra censura é utilizada totalmente fora do seu contexto, para desqualificar politicamente os que estão do lado da defesa do direito democrático de divergir.

Aos que afirmam que bastaria desligar a televisão ou mudar de canal, Betinho explica que “essa idéia de liberdade diante da TV é ilusória” (SOUZA, 1994, p.15). Não basta que eu mude de canal, mesmo porque, no caso das televisões comerciais, de sinal aberto, em geral saímos da frigideira direto para o fogo. Posso e devo manifestar publicamente minhas divergências, além de divergir em privado, mudando de canal. Posso e devo propor programas diferentes. Censura é, na verdade, tentar reduzir a divergência dos descontentes a um ato privado, desqualificando a manifestação pública desta divergência privada.

A sociedade civil aprovou a proibição da publicidade de cigarros, superando a lengalenga dos fabricantes de cigarro, segundo a qual bastaria que o indivíduo deixasse de fumar. Aprovou também o uso obrigatório do cinto de segurança, o uso obrigatório do capacete para condutores de motocicletas, mas o sistema televisivo ainda mantém o Estado e a sociedade civil reféns de soluções meramente individuais (“Não gostou, muda de canal ou desliga!”), porque são as mais convenientes para ele. Como constatou Betinho, “a televisão exerce um efeito muito grande sobre a sociedade, e a sociedade não exerce qualquer controle sobre a televisão. É unilateral esse negócio” (Ibidem, p. 15).

Famílias, escolas e universidades estão empenhadas na construção de um ser humano crítico, criativo, autodirigido, concorrendo com o sistema televisivo de entretenimento para o consumo de massa, que trabalha na direção oposta. O homo sapiens corre o risco de ser substituído por uma massa de consumidores compulsivos, heterodirigidos, de escassa capacidade analítica e, o que é pior para a democracia, com pouca propensão à divergência.

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Citação: SOUZA, Herbert de; RODRIGUES, Carla. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna, 1994.

Não basta ver a imagem. É preciso interpretá-laNão basta a imagem para que exista o conhecimento. Ela pode até criar a ilusão do

conhecimento. Ver e pensar são experiências diferentes. Um cego pode ser um grande pensador, sem ver imagens, assim como um consumidor de até 10 horas diárias de imagem televisiva pode ser alguém com a capacidade de pensar atrofiada.

Ver a queda do Muro de Berlim não significa compreender a crise da utopia socialista, assim como ver a imagem de um pobre não significa compreender os motivos que geram desemprego ou baixos salários, ou as políticas que poderiam levar à diminuição das desigualdades sociais.

Homo sapiens é aquele que vê através de interpretações. É aquele que observa sistematicamente a vida, através de conceitos, paradigmas, interpretações, relacionando os fatos, identificando significados.

Por isso, em relação à televisão brasileira, um título que bem poderia definir a nossa atual situação tele-“educativa” é o seguinte: “A hegemonia das maiorias superficiais”.

A baboseira encontra-se, como dizem os italianos, dappertutto, mas é sobretudo nas televisões comerciais que ela reina.

Claro que poderia surgir uma dúvida pertinente, do tipo “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”: a televisão baboseira é expressão de um povo que ama cada vez mais as baboseiras e que é cada vez mais babosento, ou o povo é expressão de uma televisão que reduz, ao invés de estimular, a malhação mental? A baboseira televisiva é opção da maioria ou condição imposta à maioria por hábeis estrategistas da heterodireção, interessados nas vantagens comerciais da “cultura da incultura”?

A nossa sociedade é vítima da flacidez, da flacidez física, pois vivemos como animais confinados para o engorde. Mas é a flacidez mental a que mais nos vitima.

O cérebro dos consumidores de baboseira televisiva se exercita cada vez menos.Parece que quanto mais permanecemos diante de certos programas aparentemente

lúdicos, mas vazios de conteúdo, mais perdemos o que aprendemos com fadiga mental através de fontes realmente educativas.

O brasileiro é um povo de compromissos sérios, mas que, infelizmente, assumiu, também, alguns compromissos inúteis: compromisso diário com várias novelas ou com as tantas latas de cerveja que ele tem de tomar todo final de semana, para provar que é macho, pois, no Brasil da baboseira, homem que é homem tem de enfileirar muitas latas de cerveja vazias, como se fossem troféus de caça, onde o caçado, coitado, é ele mesmo, vítima da guerra publicitária das cervejarias.

A competição publicitária impõe a ditadura da bobagem, forçando a televisão a ser, pela força avassaladora do IBOPE (onde o que vale é a audiência, a quantidade e não a qualidade), um instrumento cada vez mais superficial e, por sua vez, este tipo de TV acaba pressionando as minorias descontentes (e justamente descontentes) a aderirem à mentalidade do telespectador esponja, pressionando para a criação de uma unanimidade da baboseira.

A ignorância, antes combatida, passa a ser sinônimo de virtude: líderes de audiência proclamam a ignorância como modelo “cultural” de vida. O “não saber”, seguido do mero “aparecer”, passa a ser proclamado como alternativo ao saber. O cartesiano: “Penso, logo

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existo”, é substituído pelo ilusório “apareço na televisão, logo existo”. Tudo o que não aparece, dentro desta lógica, não existe. Se uma televisão não cita, no seu noticiário, certo fato internacional - porque não quer gastar com enviados especiais ou porque esta dada notícia, mesmo sendo importante, não dá IBOPE - isto não significa que tal fato não aconteceu.

Para os telespectadores esponja, que absorvem tudo, sem analisar, só existe aquilo que aparece na televisão.

Para a compreensão de um problema, a mera visualização da imagem é insuficiente. Para entender uma guerra ou a pobreza, e para entender o que poderia levar à superação da primeira e à diminuição da segunda, são necessários exercícios mentais de entendimento, mediante leituras, pesquisas. Permanecer somente com a imagem televisiva significa não fazer um passo sucessivo em direção à busca da compreensão, significa optar por permanecer na superfície.

Só quem vê através de conceitos compreende o que vê. E a TV, em geral, não oferece conceitos, mas sensações.

O simples ato de ver uma imagem não nos leva à compreensão daquilo que vemos, da mesma forma que o simples ato de ver um animal não leva a nenhuma zoologia. O zoólogo pode ser assim chamado porque vê o comportamento animal por meio de conceitos, ligações cognitivas, interpretações da vida animal. Ver a vida animal não faz de ninguém um zoólogo: pensar a vida animal, sim! Da mesma forma, ver uma imagem na televisão é nada, se o fato representado por esta imagem não for pensado, interpretado, palavras que, absolutamente, não fazem parte do vocabulário do telespectador esponja.

Temos hoje um elenco excelente de meios de comunicação, da televisão à Internet, mas para comunicar o quê? Muitas vezes para difundir o vazio, a exaltação da ignorância, a apologia da burrice.

A compreensão de um problema exige concentração, leitura, pesquisa, talvez silêncio, exterior, mas, sobretudo, interior.

O homo sapiens encontra na leitura e compreensão de um livro alegria talvez semelhante àquela do alpinista que chega ao topo de uma montanha. Já o telespectador esponja tem cada vez menos noção do que possa significar a leitura e compreensão de um livro, ou melhor, do que possa significar a compreensão de qualquer coisa que seja.

O que fazer diante deste quadro?Resistir à ditadura da baboseira, sem medo de ser acusado de “censor”, ou de

“radical”.

Abuso telepublicitário de criançasPróximo ao Dia das Crianças fui comprar brinquedos para minhas filhas e fiquei

impressionado com a quantidade de brinquedos com o sorriso de apresentadores de programas televisivos impressos nas embalagens.

É difícil comprar um brinquedo sem a imagem associada a ele deste ou daquele ícone do teleconsumismo, e mais difícil ainda é encontrar uma sandália para menina sem a imagem de “celebridades” televisivas. No Brasil do televendidismo sem ética não existe mais sandália-sandália. Há somente a sandália da fulana, a sandália da fulaninha, da fulaneta, da fulanosa. Há em curso uma verdadeira “caça ao dinheiro” dos pais por meio do condicionamento telepublicitário de crianças pelo uso de “celebridades” televisivas criadas para a captura comercial do público infantil.

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Fui avisado que há mais qualidade na TV por assinatura que na TV comercial. Assinei, mas qual não foi minha surpresa ao ver que a publicidade infantil também invadiu vários canais de programação para crianças da televisão paga pelos assinantes.

Nossas casas são invadidas por personagens televisivos que tentam extrair parte dos nossos salários pela conquista comercial dos nossos filhos.

Se a televisão por assinatura já está bombardeando nossos filhos com o televendidismo selvagem, o que podemos esperar da terra-(quase)-sem-lei que é a televisão comercial brasileira?

Conquistar a simpatia das crianças para manipulá-las comercialmente é o objetivo que move o agir de muitos fabricantes, anunciantes e personagens televisivos cuja imagem é montada para a conquista do público infantil. Trata-se de uma ação sistemática, moralmente abominável, mas que faz parte do cotidiano televisivo brasileiro.

A publicidade para crianças adota a política da captura comercial pela dominação psicológica dos nossos brasileiros mirins. Por meio desta ou daquela apresentadora (ou predadora), as presas (ou crianças) são adestradas na doutrina do consumismo teleconformista de massa, aumentando os valores da conta bancária destas apresentadoras com o dinheiro arrecadado com o consumo de crianças. Entram no imaginário delas para as conquistarem comercialmente. Apresentam-se como personagens de fábulas, mas se trata da fábula do televendidismo. São fábulas voltadas para arrecadar dinheiro pela conquista comercial telepublicitária do assim chamado “público infantil”, já que na nossa República dos Bananas, criança é sinônimo de público-alvo infantil. Alvo onde são jogadas as flechas do teleconsumismo conformista.

As crianças são as vítimas mais frágeis da manipulação telepublicitária, pois seus mecanismos de defesa ainda são muito débeis. Elas tendem a crer na autoridade dos adultos. Mesmo quando tal autoridade é usada para obscenidades sexuais (como fazem os pedófilos), ou obscenidades comerciais (como fazem algumas televisões). Por isso, uma sociedade de adultos responsáveis deve prevenir as crianças, ensinando-as a não confiar incondicionalmente nos adultos e seus ensinamentos, como faziam os autores das fábulas pedagógicas tradicionais, que ensinavam, por exemplo, a não confiar numa casa de doce, colorida, atraente, porque ali poderia estar escondida uma mulher perversa.

Ao menos as crianças deveriam ser preservadas legalmente do teleconsumismo conformista. Mas o que esperar de uma televisão que até pouco tempo usava bichinhos e gravuras infantis para publicizar bebidas alcoólicas (cerveja), imprimindo na imaginação das crianças a associação entre tal marca de cerveja e os simpáticos bichinhos coloridos? Assim, quando, no futuro, fossem consumir cerveja, a tal marca já estaria povoando as dobras das suas cabeças.

A telepublicidade pratica a lógica do vender a qualquer custo. E desqualifica como censor todos aqueles que, a partir do mero bom-senso, fazem oposição a esta lógica perversa. A política do “rolo compressor” ficou bem evidente numa outra publicidade de cerveja, em que pessoas que mais pareciam membros de uma seita satânica repetiam em coro o mesmo slogan conformista: “Experimenta!”, tentando trazer para a seita novos seguidores.

Em suma, os ícones da publicidade televisiva para crianças foram criados para conquistar (capturar) comercialmente o “público infantil” mediante mecanismos de condicionamento psicológico. Conquistam a simpatia e a amizade das crianças para conquistar o bolso delas e dos seus pais. São personagens que se servem da inocência e da

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ingenuidade das crianças para explorá-las comercialmente e, não obstante tal jogo sujo, tais apresentadores são chamados aqui e acolá de “celebridade”.

A manipulação psicológica das crianças para fins de consumo a qualquer custo, além de ser ruim para as crianças, é péssima também para a democracia. A criança de hoje é a opinião pública de amanhã. Se ela for induzida hoje ao conformismo e à “cultura da incultura”, para usar a expressão de Giovanni Sartori, ela provavelmente continuará sendo súdita deste mesmo sistema amanhã.

Há televendedores de bugigangas para crianças que até ajudam financeiramente crianças pobres em campanhas anuais de redes nacionais. Mas quanto eles arrecadam com o teleconsumismo infantil? Fazem obras sociais com uma mão (o que, aliás, ajuda na promoção da própria imagem), depois de terem arrecadado com a outra por meio da exploração telecomercial das crianças. Tais campanhas certamente podem ser feitas, mas a credibilidade delas fica comprometida quando são publicizadas por profissionais da tele-indução ao consumismo infantil. Repetindo, com uma mão devolvem parte daquilo que com a outra arrecadaram.

A Suécia é um país democrático. É um país “normal”. Não é um país “radical” (antes de propor algo é preciso sempre avisar, para que alguns profissionais da publicidade e da televisão não se ofendam). Ora, na Suécia, a publicidade de produtos para crianças pode ser transmitida, mas somente no horário da programação voltada para os adultos. É o que propõe o Projeto de Lei 1600/2003:

Art. 35 A programação televisiva brasileira será dividida em dois horários básicos: o horário familiar, no intervalo entre as 5 horas da manhã e as 21 horas e o horário adulto, compreendido entre as 21 horas e as 5 horas da manhã. (...)

Art. 37 Não serão admitidas na TV brasileira mensagens publicitárias para a venda de produtos infantis dirigidas ao público infantil.

Parágrafo único. A publicidade de produtos infantis somente poderá ser veiculada na televisão em horário adulto.

Se alguém preferir medidas mais drásticas, há também o Projeto de Lei 5921/01, do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que proíbe tout court a propaganda de produtos infantis (www.camara.gov.br/internet/agencia).

No Brasil, o problema não é nem ao menos discutido no assim chamado horário nobre. Ao contrário, é tratado como se fosse tabu.

Será que já foi apresentado algum documentário sobre o impacto psicológico e político da telepublicidade e do teleconsumismo na formação das crianças? No horário nobre nenhuma rede de televisão debate tais problemas. O assunto é relevante, mas a censura (interna) não permite que seja nem mesmo citado o problema.

Pelo fim da “showblicidade” de cervejaEm junho de 1990 pude visitar algumas cidades do Leste europeu que estavam

saindo da ditadura socialista e entrando na economia de mercado. Permaneci um mês entre Praga, Bratislava e Budapeste. Em Praga e Bratislava não havia publicidade de coisa nenhuma. Tudo era estatal e de escassa qualidade. Senti saudades do trabalho dos publicitários, das informações e dos atrativos de nossos produtos. Digo isso para deixar bem claro que não sou contra a publicidade comercial.

Porém, há muito que no Brasil a publicidade – sobretudo a telepublicidade – deixou de ser informativa para se tornar persuasiva e voraz. Perdeu aquela certa ingenuidade de

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ovelha que a tornava até simpática. Adotou estilo lobo voraz, mesmo com roupa de carneiro.

A publicidade não trabalha mais apenas com o desejo de informar e de competir mostrando a qualidade do produto. Ela quer vender a qualquer custo, servindo-se de mecanismos psicológicos de indução ao consumo. Apoderou-se de várias festas populares como o Dia da Criança e o Dia das Mães, impondo a elas apenas sentido comercial. Cria e descria diariamente VIPs (very important person), cuja finalidade é vender qualquer coisa – de revistas de fofocas a CDs de duvidoso valor cultural – aos NIPs (no important person).

A publicidade comercial televisiva está criando até um ser humano diferente, cada dia menos homo sapiens e mais homo bobo consumista, mostrando um mundo sempre bonitinho, onde nada dá errado. E é com tal mecanismo maquiador da realidade que ela faz também publicidade de cerveja, ou melhor, “showblicidade” de cerveja: criou uma “cultura da obrigatoriedade do álcool” em festas de qualquer tipo, como se fosse ingrediente capaz de promover a felicidade. Todas as publicidades de cerveja que existem no Brasil mostram pessoas felizes, realizadas porque bebem esta ou aquela marca. Mas a verdade é outra: de cerveja se morre.

Uma marca “ensinava” que cerveja “refresca pensamento”. Refresca ou altera o pensamento? Outra “ensinava” que “sexta-feira é dia de tomar cerveja”, e poderia ensinar também que “segunda-feira é o dia de recolher os mortos e feridos”. Após verificar que na quarta-feira o consumo diminuía, criaram uma campanha para ensinar a consumir cerveja já a partir da quarta-feira! Com a ajuda professoral de um renomado cantor de pagode (um VIP). Lição infelizmente seguida por tantos jovens. O “público infantil” também foi vitimado pelo faroeste da latinha, por meio de tartaruguinhas e tatuagens vivas associadas ao consumo de cerveja. Publicidade de cerveja é até mais nociva que a de cigarro, felizmente extinta. Mas ai de você se criticar tal lambança. Será acusado de censor. Os publicitários sem ética (profissionais do disfarce, da maquiagem) que promovem a farra do álcool não defendem a democracia (liberdade de expressão), mas a ditadura do lucro sem ética disfarçada de “ideal libertário”. Afirmam que a publicidade não condiciona o consumo, que dependeria da escolha de cada um. Argumento tão brilhante quanto seria o cérebro de um coliforme fecal, caso tivesse. Ora, se a publicidade não condiciona o consumo, então porque gastam milhões em publicidade de cerveja nas televisões comerciais? O mensalão já nos ensinou que publicitários sem ética são tão dissimuladores quanto os políticos do baixo clero.

Enquanto a polícia está combatendo o álcool ao volante, as televisões comerciais publicizam cerveja até em eventos esportivos, seguidos por milhões de jovens e crianças.

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SOBRE O AUTOR

Fábio Régio BentoBacharel em Ciências Sociais; Mestre em Ciências Sociais; Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade San Tommaso (Roma, 1996).Bacharel em Teologia; Mestre em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana da Pontifícia Universidade Lateranense (Roma, 1992).Professor de Sociologia na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).Membro do Conselho Superior da Cátedra Participação e Solidariedade da Unisul.Lecionou Teologia Moral Social por oito anos (1997-2004), como professor convidado, no Studium Theologicum, em Curitiba (faculdade agregada à PUCPR).Dentre os sete livros publicados, estão A Igreja Católica e a Social Democracia (São Paulo: AM edições, 1999) e Cristianismo, Humanismo e Democracia (São Paulo: Paulus, 2005).E-mail: [email protected]

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