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JOSÉ EDUARDO BERTO GALDIANO TÉCNICA DE JULGAMENTO DE RECURSOS REPETITIVOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA MESTRADO EM DIREITO ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR ANTONIO CARLOS MARCATO FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2014

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO · RISTF – Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal ... TJMT − Tribunal de Justiça de Mato Grosso TJRJ – Tribunal de

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  • JOS EDUARDO BERTO GALDIANO

    TCNICA DE JULGAMENTO DE RECURSOS

    REPETITIVOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

    E PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

    MESTRADO EM DIREITO

    ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR

    ANTONIO CARLOS MARCATO

    FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO 2014

  • JOS EDUARDO BERTO GALDIANO

    TCNICA DE JULGAMENTO DE RECURSOS

    REPETITIVOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

    E PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de Mestre em

    Direito Processual, sob a orientao do

    Professor Doutor Antonio Carlos Marcato.

    SO PAULO

    2014

  • BANCA EXAMINADORA

    _____________________________

    _____________________________

    _____________________________

  • Thas, companheira de todas as horas, com

    todo o meu amor.

    Ao Joo, minha alegria e orgulho, presente

    enviado por Deus para me ensinar o significado

    do profundo e indescritvel sentimento de amor

    de pai.

    Aos meus amados e admirados pais, Miro e Ana,

    com toda a gratido por tudo.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, minha maior fortaleza e fonte de paz, segurana e sabedoria, que nunca

    deixou de me estender generosamente a mo.

    Thas, minha amada esposa e companheira que tanto me ajudou a chegar at

    aqui. Obrigado por sua pacincia, compreenso, amizade, incentivo e fora. Por ter se

    privado de tanta coisa nesses anos. S ns sabemos como foi difcil... E obrigado por

    sempre ter acreditado em mim, isso fez toda diferena!

    Aos meus pais, que fizeram e fazem tanto por mim. Saibam que serei eternamente

    grato e que tudo o que sou e conquistei foi por causa de vocs.

    Um agradecimento especial tambm aos meus avs, que sempre estiveram no meu

    corao: Jos (in memoriam), Emma, Amlia (in memoriam) e Eduardo (in memoriam).

    Ao meu orientador, Professor Marcato, que tanto admiro, como acadmico,

    profissional e pessoa. Obrigado pela grande oportunidade e por todos os inestimveis

    ensinamentos.

    A alguns amigos que me ajudaram de forma especial nessa conquista: William

    Callado, Bruno Vainer, William Ferreira, Joo Piza e Fbio Azevedo.

    Por fim, agradeo em geral a todos os amigos e colegas que estiveram ao meu lado

    durante esses anos, com quem dividi e continuo dividindo momentos inesquecveis e de

    grande valor.

  • RESUMO

    GALDIANO, Jos Eduardo Berto. Tcnica de julgamento de recursos repetitivos pelo

    Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justia. 2014. 396 p. Dissertao

    (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, So Paulo,

    2014.

    Esta dissertao analisa a tcnica de julgamento de recursos repetitivos pelo

    Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justia (STJ) tcnica de

    julgamento por amostragem , instituda no direito brasileiro pelas Leis federais ns.

    11.418/2006 e 11.672/2008, que respectivamente incluram no Cdigo de Processo Civil os

    artigos 543-B e 543-C. Na primeira parte do trabalho, so abordados temas correlatos,

    relativos tendncia de valorizao da jurisprudncia no direito brasileiro, bem como s

    funes, importncia e admissibilidade dos recursos extraordinrios e especiais. Na

    segunda parte, so analisadas as justificativas de criao da tcnica, relacionadas ao

    equacionamento do problema do excesso de recursos repetitivos no STF e no STJ. Alm

    disso, so traados os aspectos gerais do instituto, analisando-se a sua inspirao em

    procedimentos de julgamento por amostragem do direito estrangeiro, a sua caracterizao

    como tcnica de ampliao da eficcia persuasiva dos precedentes do STF e do STJ e suas

    diferenas e semelhanas com a repercusso geral. So tambm enfrentadas as questes

    relativas constitucionalidade do julgamento por amostragem, apresentando-se um olhar

    crtico sobre a jurisprudncia do STF e do STJ, que vm interpretando suas regras de forma

    excessivamente restritiva ao direito das partes. A terceira e ltima parte dedicada ao

    exame do funcionamento da tcnica de julgamento de recursos repetitivos, enfrentando-se

    as diversas questes relativas s vrias fases de seu procedimento, tais como os requisitos

    para instaurao, competncia, sobrestamento de recursos repetitivos, participao de

    terceiros e efeitos do julgamento. So tambm analisados os resultados prticos,

    principalmente luz das estatsticas do STF e STJ, aps a sua positivao, bem como as

    modificaes previstas na verso atual do projeto de novo CPC. Trata-se de um legtimo e

    eficiente instrumento de potencializao dos precedentes do STF e do STJ que, sem

    prejuzo de necessrios aperfeioamentos, bem como da sua adequada interpretao e

    aplicao luz dos princpios constitucionais, mostra-se teoricamente adequado para

    conciliar a atual realidade dos problemas gerados pelos recursos repetitivos com a

    verdadeira funo dos recursos excepcionais, de proteo e unificao do direito federal

    constitucional e infraconstitucional.

    Palavras-chave: Recursos excepcionais Recursos repetitivos Valorizao dos

    precedentes dos Tribunais Superiores Julgamento por amostragem.

  • ABSTRACT

    GALDIANO, Jos Eduardo Berto. Technique of judgment of repetitive appeals by

    Supreme Court (STF) and by Superior Court of Justice (STJ). 2014. 396 p. Masters

    Dissertation (Master in Law) Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, So

    Paulo, 2014.

    This Masters Dissertation analyzes the technical of judgment of recursos

    repetitivos [repetitive appeals, as a free translation] by Superior Court of Justice (STJ) and

    Federal Supreme Court (STF) technical of julgamento por amostragem [judgment by

    sampling, as a free translation] established in Brazilian legal system by the Brazilian

    Federal Laws Ns. 11.418/2006 and 11.672/2008, which respectively included in the Code

    of Civil Procedure the Articles 543-B and 543-C. In the first part of this work, correlated

    themes are addressed, related to the trend of appreciation of the jurisprudence in Brazilian

    law, as well as the functions, importance and acceptability of extraordinary and special

    appeals. In the second part, this work analyzes the reasons for the creation of the technique

    related to solution of the problem of excessive repetitive appeals on Federal Supreme

    Court (STF) and Superior Court of Justice (STJ). Furthermore, the general aspects on this

    matter are plotted by the analyze of its inspiration in trial procedures by sampling of

    foreign law, its characterization as a technique of enlargement of the persuasive

    effectiveness of precedents of Supreme Court (STF) and of Superior Court of Justice (STJ)

    and its differences and similarities with the repercusso geral [general impact, as a free

    translation]. This work also challenges the questions related to the constitutionality of the

    judgment by sampling presenting a critical vision at the jurisprudence of the Supreme

    Court (STF) and of Superior Court of Justice (STJ) that have been interpreting the rules of

    the judgment by sampling excessively restrictive to the right of the parties. The third and

    last part of this work deals with the examination of the operation of the technique of

    repetitive appeals trial, facing up of several questions relating to the various stages of its

    procedure, such as conditions of filing, jurisdiction, halting of repetitive appeals, third

    parties participation and effects of the judgment. This work also analyzes the practical

    results, particularly in light of the statistics of Supreme Court (STF) and of Superior Court

    of Justice (STJ), after the legalization of the repetitive appeals as well as the changes

    planned in the current draft version of the new CPC. It is a legitimate and efficient

    instrument of potentiation of the precedents of the STF and STJ, which, notwithstanding

    necessary improvements, as well as their adequate interpretation and application in the

    light of the constitutional principles proves to be adequate to conciliate the current reality

    of the problems caused by repetitive appeals with the true function of the of exceptional

    appeals, to protect and to unify the constitutional and infra-constitutional federal law.

    Keywords: Exceptional appeals Repetitive appeals Valorization of precedents

    of the Superior Courts Judgment by sampling.

  • SIGLAS E ABREVIATURAS

    AC Apelao cvel

    ADI Ao direta de inconstitucionalidade

    AgR Agravo regimental

    AG Agravo de instrumento

    AI Agravo de instrumento

    AREsp Agravo em recurso especial

    BDJur Biblioteca Digital Jurdica

    CDA Certido de Dvida Ativa

    CDC Cdigo de Defesa do Consumidor

    CF Constituio Federal

    CLT Consolidao das Leis do Trabalho

    CNJ Conselho Nacional de Justia

    CPC Cdigo de Processo Civil

    CPTA Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos

    DJe Dirio da Justia Eletrnico

    DJ Dirio da Justia

    DJU Dirio de Justia da Unio

    EC Emenda Constitucional

    ED Embargos de declarao

    GLO Group Litigation Order

    GRU Guia de Recolhimento da Unio

    HC Habeas corpus

    ISS Imposto sobre Servios de Qualquer Natureza

    MC Medida Cautelar

    Min. Ministro

    MP Medida Provisria

    MS Mandado de segurana

    NURER Ncleo de Repercusso Geral e Recursos Repetitivos

    PEC Projeto de Emenda Constitucional

    Pet Petio

    QO Questo de ordem

    Rcl Reclamao

  • RE Recurso extraordinrio

    Rel. Relator

    REsp Recurso especial

    RISTF Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

    RISTJ Regimento Interno do Superior Tribunal de Justia

    STF Supremo Tribunal Federal

    STJ Superior Tribunal de Justia

    TJAP Tribunal de Justia do Amap

    TJBA Tribunal de Justia da Bahia

    TJES Tribunal de Justia do Espirito Santo

    TJGO Tribunal de Justia de Gois

    TJMG Tribunal de Justia de Minas Gerais

    TJMT Tribunal de Justia de Mato Grosso

    TJRJ Tribunal de Justia do Rio de Janeiro

    TJSP Tribunal de Justia de So Paulo

    TJRS Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul

    TRE/GO Tribunal Regional Eleitoral de Gois

    TSE Tribunal Superior Eleitoral

    TSM Tribunal Superior Militar

    TST Tribunal Superior do Trabalho

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .................................................................................................................... 16

    1.1 Objeto e limites desta dissertao .................................................................................. 16

    1.2 Plano do trabalho ........................................................................................................... 18

    PRIMEIRA PARTE

    Temas correlatos: valorizao da jurisprudncia recursos extraordinrios e

    especiais (funes, importncia e admissibilidade)

    2 A VALORIZAO DA JURISPRUDNCIA .................................................................. 21

    2.1 Jurisprudncia e precedente ........................................................................................... 21

    2.2 Aproximao entre civil law e common law .................................................................. 25

    2.3 Os precedentes no common law ..................................................................................... 28

    2.3.1 Stare decisis ......................................................................................................... 28

    2.3.2 Precedentes vinculantes e precedentes persuasivos ............................................. 29

    2.3.3 Ratio decidendi e obiter dictum ........................................................................... 31

    2.3.4 Eficcias vertical e horizontal dos precedentes .................................................... 33

    2.3.5 Flexibilidade na aplicao dos precedentes: overruling e distinguishing ............ 34

    2.4 A valorizao da jurisprudncia no Brasil ..................................................................... 36

    2.4.1 A necessidade de interpretao e o problema da divergncia jurisprudencial ..... 36

    2.4.2 A regra da eficcia persuasiva ............................................................................. 40

    2.4.3 Fundamentos para a valorizao da jurisprudncia ............................................. 42

    2.4.3.1 Igualdade ................................................................................................. 43

    2.4.3.2 Segurana jurdica ................................................................................... 48

    2.4.3.3 Razovel durao do processo ................................................................. 52

    2.4.4 Tendncia de ampliao da fora da jurisprudncia e as diferentes acepes

    de eficcia vinculante no direito processual civil brasileiro ............................. 57

    3 RECURSOS EXTRAORDINRIOS E ESPECIAIS: FUNES, IMPORTNCIA

    E ADMISSIBILIDADE ....................................................................................................... 65

    3.1 Recursos ordinrios e extraordinrios lato sensu ........................................................... 65

    3.2 Funes e importncia.................................................................................................... 68

  • 3.2.1 A funo pblica especial dos recursos excepcionais .......................................... 68

    3.2.2 Funes nomofilcica e de uniformizao da jurisprudncia .............................. 70

    3.2.3 A importncia da jurisprudncia dos Tribunais Superiores ................................. 73

    3.2.4 Relao entre o interesse privado das partes recorrentes e o interesse pblico

    na atuao dos Tribunais Superiores ................................................................... 74

    3.3 Admissibilidade ............................................................................................................. 81

    3.3.1 Juzos de admissibilidade e de mrito .................................................................. 81

    3.3.2 Juzo prvio de admissibilidade pelo tribunal de origem: limites ........................ 85

    3.3.3 Cabimento (arts. 102, III, e 105, III, da CF) ........................................................ 89

    3.3.4 Outros requisitos especficos de admissibilidade ................................................. 94

    SEGUNDA PARTE:

    Justificativa, aspectos gerais e constitucionalidade da tcnica de julgamento

    de recursos repetitivos

    4 AS CRISES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR

    TRIBUNAL DE JUSTIA E OS RECURSOS REPETITIVOS..................................... 97

    4.1 A crise do Supremo Tribunal Federal ............................................................................ 97

    4.2 bices de acesso como tentativa de conter a crise ....................................................... 102

    4.3 A criao do Superior Tribunal de Justia: tentativa de soluo da crise do

    Supremo e ampliao do acesso das partes aos rgos de cpula ............................... 103

    4.4 A crise do Superior Tribunal de Justia ....................................................................... 105

    4.5 Excesso na interpretao dos requisitos de admissibilidade dos recursos

    excepcionais e a jurisprudncia defensiva ................................................................... 108

    4.6 Os recursos repetitivos e a justificativa para a criao da tcnica dos artigos 543-B

    e 543-C do CPC ........................................................................................................... 113

    5 ASPECTOS GERAIS DA TCNICA DE JULGAMENTO DE

    RECURSOS REPETITIVOS ........................................................................................... 121

    5.1 Normas legais e regimentais que regulamentam a tcnica de julgamento

    de recursos repetitivos ................................................................................................. 121

    5.2 A inspirao no procedimento-modelo do direito alemo (Musterverfahren) ............ 126

    5.3 Outras tcnicas de julgamento por amostragem do direito estrangeiro ....................... 130

  • 5.4 Os artigos 543-B e 543-C do CPC como tcnica de ampliao da eficcia

    persuasiva dos precedentes do STF e STJ ................................................................... 136

    5.5 Repercusso geral e recursos repetitivos...................................................................... 142

    5.5.1 A antiga relevncia da questo federal e a atual repercusso geral ................... 142

    5.5.2 Proximidade entre repercusso geral e recursos repetitivos .............................. 150

    5.5.3 Distino entre repercusso geral (requisito de admissibilidade) e tcnica de

    julgamento de recursos repetitivos (procedimento) ........................................... 152

    5.5.4 O artigo 543-C do CPC: retorno da relevncia da questo federal? .................. 153

    6 ANLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA TCNICA DE JULGAMENTO

    DE RECURSOS REPETITIVOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

    E PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA .......................................................... 157

    6.1 Colocao do problema ................................................................................................ 157

    6.2 Princpio constitucional do acesso justia ................................................................. 158

    6.3 Ausncia de violao competncia constitucional do STF e do STJ e de criao

    por lei ordinria de novo requisito de admissibilidade para os recursos excepcionais 162

    6.4 Ausncia de efeito vinculante ...................................................................................... 174

    6.5 Necessidade de se permitir a impugnao ao STF e ao STJ das decises dos rgos

    de origem que negam seguimento aos recursos repetitivos por contrariedade ao

    acrdo paradigma. Crtica jurisprudncia ................................................................ 182

    TERCEIRA PARTE

    A tcnica de julgamento de recursos repetitivos aplicada: aspectos

    procedimentais e resultados prticos

    7 INSTAURAO DO PROCEDIMENTO PREVISTO NOS ARTIGOS 543-B

    E 543-C DO CPC: REQUISITOS, COMPETNCIA E EFEITOS SOBRE O

    DIREITO DE DESISTNCIA DO RECURSO .............................................................. 197

    7.1 Requisitos para a instaurao do procedimento ........................................................... 197

    7.1.1 Requisito quantitativo: efetiva existncia de multiplicidade de recursos ....... 197

    7.1.2 Desnecessidade de prvia jurisprudncia dominante ou sumulada sobre

    a questo controvertida ...................................................................................... 199

    7.1.3 Requisito qualitativo: idntica controvrsia ou idntica questo de direito203

  • 7.1.4 Instaurao de ofcio ou a requerimento das partes ........................................... 207

    7.2 Competncia para instaurar o procedimento ................................................................ 208

    7.3 Seleo do caso representativo da controvrsia ........................................................... 210

    7.3.1 Importncia ........................................................................................................ 210

    7.3.2 Critrios subjetivos ............................................................................................ 212

    7.3.3 Critrios objetivos .............................................................................................. 215

    7.3.4 Recorribilidade ................................................................................................... 220

    7.4 Desistncia do recurso selecionado para julgamento ................................................... 222

    8 SOBRESTAMENTO DOS RECURSOS REPETITIVOS ............................................. 230

    8.1 Definio, objeto e importncia ................................................................................... 230

    8.2 A questo da necessidade de limitao do prazo de durao do sobrestamento .......... 234

    8.3 Sobrestamento dos recursos extraordinrios e especiais em trmite nos tribunais

    de origem ..................................................................................................................... 237

    8.4 Sobrestamento dos recursos extraordinrios e especiais j enviados ao STF

    e ao STJ ........................................................................................................................ 241

    8.5 Sobrestamento dos agravos interpostos na forma do artigo 544 do CPC .................... 245

    8.6 A questo sobre a possibilidade de sobrestamento de outros recursos e processos

    nas instncias inferiores ............................................................................................... 247

    8.6.1 Panorama normativo e a jurisprudncia do STF e do STJ ................................. 248

    8.6.2 Anlise da convenincia e legitimidade das diversas hipteses de extenso

    dos efeitos do sobrestamento ............................................................................. 255

    8.6.2.1 Sobrestamento dos processos e outros recursos at a definio

    da controvrsia ....................................................................................... 255

    8.6.2.2 Sobrestamento dos processos individuais em razo da pendncia

    de processo coletivo ............................................................................... 259

    8.7 Controle da deciso que determina o sobrestamento ................................................... 261

    8.7.1 Contedo decisrio e possibilidade de impugnao da deciso

    de sobrestamento crtica jurisprudncia do STJ e do STF ........................... 261

    8.7.2 Agravo de admisso (art. 544 do CPC), pedido de reconsiderao,

    embargos de declarao ou outros meios (mandado de segurana,

    reclamao ou medida cautelar)? ....................................................................... 266

    8.7.3 Agravo interno ................................................................................................... 272

  • 9 JULGAMENTO DOS RECURSOS REPRESENTATIVOS DA

    CONTROVRSIA: PREPARAO, PARTICIPAO DE TERCEIROS

    E RGO COMPETENTE ............................................................................................. 275

    9.1 Solicitao de informaes aos Tribunais de Justia e Tribunais Regionais Federais

    e concesso de vista ao Ministrio Pblico ................................................................. 275

    9.2 Participao de terceiros .............................................................................................. 276

    9.2.1 Amicus curiae ..................................................................................................... 276

    9.2.2 Aspectos procedimentais da participao do amicus curiae .............................. 280

    9.2.3 Interveno dos que figuram como partes nos recursos sobrestados? ............... 286

    9.2.4 Como ampliar adequadamente a participao das partes que sofrero a

    influncia do julgamento? .................................................................................. 293

    9.3 Competncia do rgo mais complexo e quorum qualificado ..................................... 294

    10 EFEITOS DO JULGAMENTO DOS RECURSOS REPRESENTATIVOS

    DA CONTROVRSIA .................................................................................................... 298

    10.1 Momento de eficcia do acrdo que julga os recursos representativos

    da controvrsia ........................................................................................................... 298

    10.2 Efeitos do julgamento dos recursos extraordinrios representativos

    da controvrsia, quando o STF nega a existncia de repercusso geral..................... 301

    10.3 Efeitos do julgamento de mrito dos recursos representativos da controvrsia,

    em relao aos recursos repetitivos sobrestados ......................................................... 303

    10.3.1 Recursos repetitivos interpostos contra decises que convergem com a

    tese fixada pela instncia superior ................................................................... 303

    10.3.2 Recursos repetitivos interpostos contra decises que divergem da tese

    fixada pela instncia superior ........................................................................... 306

    10.3.2.1 Juzo positivo de retratao ................................................................. 306

    10.3.2.2 Juzo negativo de retratao (manuteno da divergncia) ................. 313

    10.4 Efeitos do julgamento de mrito dos recursos representativos da controvrsia,

    em relao aos novos recursos extraordinrios e especiais (e respectivos agravos

    de admisso ou interno) ............................................................................................. 315

    10.5 A questo da impugnao da deciso que nega seguimento aos recursos

    repetitivos contrrios ao acrdo paradigma.............................................................. 319

    10.6 Efeitos do julgamento de mrito dos recursos representativos da controvrsia,

    em relao s causas e recursos nas demais instncias .............................................. 320

  • 10.7 Possibilidade de modulao dos efeitos do julgamento de mrito dos

    recursos representativos da controvrsia .................................................................... 322

    10.8 Cabimento de ao rescisria (art. 485, inc. V, do CPC) em face de decises

    contrrias ao acrdo que define a controvrsia ......................................................... 328

    11 RESULTADOS PRTICOS ........................................................................................... 334

    11.1 Os nmeros no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justia,

    aps a aplicao da tcnica de julgamento de recursos repetitivos ........................... 334

    11.2 O problema do tempo de durao do procedimento de julgamento

    de recursos repetitivos ............................................................................................... 338

    11.3 Quadro geral em relao aos procedimentos instaurados.. ........................................ 340

    11.4 Consequncias prticas em relao ao funcionamento dos Tribunais de origem

    e a criao dos Ncleos de Repercusso Geral e Recursos Repetitivos (NURER) ... 344

    12 O PROJETO DE NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL...................................... 348

    12.1 O estgio atual do projeto .......................................................................................... 348

    12.2 Valorizao da jurisprudncia .................................................................................... 349

    12.3 Manuteno e aperfeioamento do sistema de julgamento de recursos repetitivos ... 352

    12.4 A proposta de instituio de um novo incidente de resoluo

    de demandas repetitivas ........................................................................................... 358

    13 CONCLUSO .................................................................................................................. 362

    REFERNCIAS .................................................................................................................... 376

  • 1 INTRODUO

    1.1 Objeto e limites desta dissertao

    O objeto desta dissertao o estudo da tcnica de julgamento de recursos

    extraordinrios e especiais fundados em idntica questo de direito (recursos repetitivos),

    prevista nos artigos 543-B e 543-C do Cdigo de Processo Civil (CPC), e regulamentada

    por normas regimentais do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de

    Justia (STJ).

    A mencionada tcnica surgiu no contexto de agravamento da crise de excesso de

    recursos no STF e no STJ, que vinha praticamente inviabilizando o adequado exerccio da

    sua funo constitucional de fixao do sentido nico do direito objetivo federal, por meio

    do controle e da uniformizao da jurisprudncia. Apresentou-se, assim, como uma

    tentativa de lidar com o problema, racionalizando a atuao dos rgos de cpula, diante

    de milhares de casos versando sobre a mesma questo de direito.

    Em linhas gerais, os artigos 543-B e 543-C do CPC permitem ao STF e ao STJ que,

    diante de uma multiplicidade de recursos repetitivos, julguem apenas um ou alguns

    recursos representativos da controvrsia, a fim de que a tese jurdica fixada no julgamento

    possa, ao final, ser simplesmente aplicada aos demais recursos, que devem permanecer

    sobrestados, espera da definio da controvrsia.

    Essa tcnica, como outras que atuam como filtro de acesso das partes aos rgos

    jurisdicionais, ataca as consequncias, e no as causas do problema. O desenvolvimento

    dos mtodos alternativos de solues de conflitos, a ampliao da estrutura e o

    investimento de maiores recursos financeiros no Poder Judicirio, o aperfeioamento dos

    instrumentos de tutela coletiva dos direitos e a mudana de cultura do prprio Estado

    (responsvel pelo maior nmero de processos em tramitao) so medidas, aqui citadas a

    ttulo meramente exemplificativo, que talvez pudessem evitar a chegada de centenas de

    milhares de recursos repetitivos aos Tribunais Superiores.

  • 17

    Alm disso, no se pode desconsiderar o elevado custo dessa racionalizao da

    atuao do STF e do STJ: ela acaba por resvalar em nada menos que o direito de acesso

    das partes aos rgos de cpula, constitucionalmente responsveis pela reviso de decises

    contrrias, em tese, ao direito federal constitucional e infraconstitucional.

    Este trabalho, porm, no tem por objeto analisar, no plano macro, a convenincia

    da tcnica de julgamento de recursos repetitivos luz de outros meios mais ou menos

    viveis e adequados para a soluo dos problemas do Poder Judicirio e, mais

    especificamente, do STF e do STJ.

    Na verdade, esta dissertao parte do pressuposto de que a tcnica de julgamento de

    recursos repetitivos est posta e consolidada, representando uma importante realidade do

    sistema de julgamento de recursos extraordinrios e especiais.

    De fato, alm de positivada pelos artigos 543-B e 543-C do CPC e regulamentada

    por normas regimentais, a tcnica vem sendo fortemente aplicada (e at excessivamente

    interpretada, conforme criticaremos oportunamente neste trabalho) pela jurisprudncia do

    prprio STF e STJ. Ademais, ao que tudo indica, no novo CPC (cujo projeto atualmente

    tramita na Cmara dos Deputados) ela dever ser mantida, aperfeioada e, de certa forma,

    estendida aos processos repetitivos que tramitam no primeiro grau de jurisdio (por meio

    do novo incidente de resoluo de demandas repetitivas).

    Partindo desse pressuposto, a proposta desta dissertao examinar essa nova

    forma de processamento dos recursos extraordinrios e especiais, respeitando-se as

    seguintes limitaes: anlise das justificativas que levaram sua criao, de suas

    caractersticas gerais e da sua controvertida constitucionalidade; descrio de seus aspectos

    procedimentais, luz do direito positivo, da doutrina e da jurisprudncia; e breve exame

    dos resultados prticos at aqui produzidos.

    No se trata, assim, de um trabalho sobre as diversas tcnicas de tratamento

    adequado de litgios de massa ou das causas repetitivas, nem sobre a teoria dos precedentes

    judiciais (o que inclui a discusso sobre a convenincia e a legitimidade de ampliao da

    sua fora), ou sobre os problemas gerais enfrentados pelos Tribunais Superiores e as

    respectivas solues. Sob um ngulo mais tcnico e restrito, o objeto de estudo consiste

  • 18

    especificamente na anlise do funcionamento da tcnica de julgamento de recursos

    extraordinrios e especiais repetitivos regulamentada pelos artigos 543-B e 543-C do CPC.

    De qualquer forma, claro que, no decorrer do trabalho, alguns temas que se

    relacionam com seu objeto, inclusive os mencionados acima, sero tangenciados, at para a

    fixao de premissas e conceitos necessrios ao cumprimento do escopo principal.

    Do mesmo modo, ao longo do desenvolvimento dos captulos vir inevitavelmente

    tona a nossa viso crtica a respeito do instituto, a qual pode ser, desde j, em linhas

    gerais, antecipada: trata-se de um legtimo e eficiente instrumento de potencializao dos

    precedentes do STF e do STJ, que, sem prejuzo de necessrios aperfeioamentos, mostra-

    se teoricamente adequado para conciliar a atual realidade dos problemas gerados pelos

    recursos repetitivos com a verdadeira funo dos recursos excepcionais (controle e

    uniformizao da jurisprudncia, com o fim de concretizao dos princpios da igualdade e

    da segurana jurdica).

    Para tanto, porm, no pode prevalecer, em certos aspectos, a jurisprudncia do

    STF e do STJ, que, para ampliar os efeitos da tcnica de julgamento de recursos

    repetitivos, vm interpretando os artigos 543-B e 543-C do CPC de forma excessivamente

    restritiva s garantias das partes, sobretudo no que diz respeito impossibilidade de

    impugnao da deciso que aplica o acrdo paradigma ao recurso repetitivo.

    1.2 Plano do trabalho

    Por razes didticas, os captulos que compem o desenvolvimento deste trabalho

    esto reunidos em trs partes.

    Na primeira, que abrange os Captulos 2 e 3, so abordados temas correlatos,

    relativos tendncia de valorizao da jurisprudncia no direito brasileiro, bem como s

    funes, importncia e admissibilidade dos recursos extraordinrios e especiais.

    A finalidade dessa primeira parte simplesmente traar premissas e apresentar

    conceitos que sero recuperados ao longo do trabalho, facilitando a abordagem das

    questes mais centrais.

  • 19

    Na segunda parte, composta pelos Captulos 4, 5 e 6, so analisados os motivos de

    criao, os aspectos gerais e a constitucionalidade da tcnica de julgamento de recursos

    repetitivos, oportunidade em que tero de ser adiantados alguns posicionamentos a respeito

    do seu funcionamento, aos quais se far mera referncia nos captulos seguintes, relativos

    terceira parte.

    Pretende-se, nessa segunda parte, lanar um olhar geral sobre o instituto,

    descrevendo seus aspectos normativos, a influncia do direito estrangeiro, a sua

    caracterizao como tcnica de potencializao dos precedentes do STF e STJ, bem como

    a sua relao com o instituto da repercusso geral. Alm disso, sero analisados os

    principais problemas relacionados sua constitucionalidade, apresentando crticas, no

    tcnica em si (que, para ns, pode ser considerada legtima), mas sim interpretao

    restritiva ao direito das partes que lhe vem atribuindo a jurisprudncia do STF e do STJ.

    A terceira e ltima parte, composta dos Captulos 7 a 12, dedicada ao exame do

    funcionamento da tcnica de julgamento de recursos repetitivos, organizado conforme as

    vrias fases de seu procedimento (instaurao, sobrestamento, preparao para julgamento

    e efeitos do julgamento), bem como, por fim, de seus resultados prticos e das

    modificaes previstas na verso atual do projeto do novo CPC.

    Por fim, concluiremos com uma sntese das principais questes abordadas durante o

    trabalho e com a exposio de uma posio crtica a respeito do funcionamento do

    instituto.

  • PRIMEIRA PARTE

    Temas correlatos: valorizao da jurisprudncia recursos extraordinrios

    e especiais (funes, importncia e admissibilidade)

  • 21

    2 A VALORIZAO DA JURISPRUDNCIA

    2.1 Jurisprudncia e precedente

    Diante da evoluo do termo jurisprudncia ao longo do tempo1 e do espao

    2, o seu

    sentido no unvoco, podendo ter trs significaes diferentes: a) a cincia do direito

    (tambm denominada dogmtica jurdica ou jurisprudncia); b) o conjunto de decises

    dos tribunais, em sentido amplo, abrangendo tanto a jurisprudncia uniforme como a

    contraditria; e, c) em sentido estrito e tcnico-jurdico, o conjunto de decises uniformes.

    Na atualidade, mais relevante e usual a concepo de jurisprudncia naquele

    sentido estrito, qual seja, o de conjunto de decises uniformes dos tribunais3, pois nesse

    1 Pode-se dizer que a origem do que hoje conhecemos como a jurisprudncia dos tribunais est em Roma,

    onde a atividade jurisdicional era exercida tanto pelos editos dos pretores, como pelas respostas dos

    prudentes. Ou seja, o termo jurisprudncia guardava identidade tanto com a atividade de aplicao concreta

    do direito (ditos dos magistrados), como tambm com a prpria cincia do direito (colees de responsa

    dos jurisconsultos). (PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudncia: da divergncia

    uniformizao. So Paulo: Atlas, 2006. p. 4).

    2 Aps as migraes dos povos no continente europeu, em razo das guerras de conquista, o direito romano

    sofreu influncias diversas, e a partir da a jurisprudncia passou a apresentar caractersticas e finalidades

    tambm diversas, marcando maior ou menor presena em cada sistema. Os sistemas do continente europeu

    continuaram a se inspirar nas fontes romanas, formando os direitos codicsticos, com prevalncia da

    norma escrita. Por sua vez, os sistemas da vertente anglo-sax basearam-se no precedente judicirio. Assim,

    o termo jurisprudncia passou a apresentar significados diversos nos sistemas anglo-saxo, de common law

    (onde a principal fonte do direito so os precedentes judicirios), e continental-europeu, ou romano-

    germnico, de civil law (onde, diferentemente, o direito decorre da lei escrita). (MANCUSO, Rodolfo de

    Camargo. Divergncia jurisprudencial e smula vinculante. 4. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Revista

    dos Tribunais, 2010. p. 25). O sistema brasileiro, que teve sua origem nas Ordenaes lusitanas, filia-se a

    esse ltimo sistema. Sobre a filiao de Portugal, e consequentemente do Brasil, ao sistema de civil law,

    ver: MARCATO, Antonio Carlos. Crise da justia e influncia dos precedentes judiciais no direito

    processual civil brasileiro. Tese (Professor Titular Direito Processual Civil) Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, 2008. p. 159.

    3 Nesse sentido, a jurisprudncia envolve apenas decises emanadas de rgos do Estado dotados de poder

    jurisdicional, embora tambm se fale em jurisprudncia de rgos administrativos, dos Tribunais de

    Contas, etc. Alm disso, ela abarca apenas acrdos, e no as decises monocrticas e as sentenas de

    primeiro grau, pois o conjunto harmnico de decises sobre determinada matria pressupe certa

    estabilidade, incompatvel com as decises sujeitas ordinariamente a reviso. Conforme Carlos Aurlio

    Mota de Souza: As sentenas de 1 instncia podem tornar-se caso julgado quando as partes no recorrem,

    mas tais decises no fazem jurisprudncia e apresentam menor grau de certeza jurdica. Somente decises

    mltiplas, sobre temas jurdicos semelhantes, levam formao de Jurisprudncia; e por serem colegiadas

    as decises de 2 instncia oferecem maior grau de certeza jurdica. (SOUZA, Carlos Aurlio Mota de.

    Direito judicial, jurisprudencial e sumular. Revista de Processo, So Paulo, v. 20, n. 80, p. 208, out./dez.

    1995). Observe-se, porm, que o art. 285-A do CPC, includo pela Lei n. 11.277/2006, atribui eficcia

    panprocessual tambm s sentenas de primeiro grau sobre matria repetitiva, permitindo a improcedncia

    prima fcie da demanda fundada em tese j reiteradamente rejeitada pelo Juzo. Ocorre que, nesse caso, no

    se poder falar em jurisprudncia no seu sentido tcnico-jurdico, bastando lembrar que referidas sentenas

    podero ser objeto de apelao ou, nos casos do art. 475 do CPC, de reexame necessrio. Alis, o

    dispositivo tem sido criticado justamente por no exigir que as sentenas repetitivas estejam em

    consonncia, pelo menos, com a jurisprudncia do tribunal de segundo grau a que o respectivo Juzo est

    sujeito.

  • 22

    caso ela indica a toda a sociedade qual o sentido das normas jurdicas, luz de

    determinadas situaes fticas, alm de exercer influncia sobre outras decises judiciais

    nos casos sucessivos. Como bem destacado por Rodolfo de Camargo Mancuso, a tese

    fixada se destaca, projetando efeitos em face de outras demandas, virtuais ou pendentes,

    assim projetando eficcia panprocessual.4

    Alm disso, a jurisprudncia, naquele sentido mais estrito, pode ser qualificada pela

    circunstncia de ser dominante (o que ocorre quando o conjunto de decises em

    determinado sentido predomina quantitativamente sobre outro conjunto) ou sumulada

    (quando o Tribunal edita um enunciado sinttico sobre a sua jurisprudncia dominante a

    respeito de determinado tema).

    Nesses casos, em razo de tcnicas previstas na legislao, permite-se que a

    jurisprudncia exera influncia direta sobre o julgamento de outros casos que tratam das

    mesmas questes jurdicas, por exemplo vinculando a interpretao da norma luz de

    determinada situao concreta, como ocorre com as smulas vinculantes; ou, ainda a ttulo

    de exemplo, permitindo o julgamento monocrtico de recursos nos tribunais, como ocorre

    com a tcnica prevista nos artigos 544, 4, e 557 do CPC.

    O tema da jurisprudncia relaciona-se intimamente ao dos precedentes, a ponto de

    serem muitas vezes tratados como sinnimos, pois ambos esto ligados anlise dos

    efeitos externos das decises judiciais, no sentido da sua capacidade de influenciar, em

    maior ou menor grau, a soluo de casos semelhantes sucessivos.5

    Nesse sentido, precedentes so espcies de decises judiciais que, em virtude de

    determinadas qualidades, ao julgar o caso concreto, fixam ou consolidam uma tese

    jurdica, projetando, a respeito da matria de direito por ela solucionada, efeitos externos,

    4 MANCUSO, Rodolfo de Camargo, Divergncia jurisprudencial e smula vinculante, cit., p. 148.

    5 Analisando a dimenso estrutural dos precedentes, Michele Taruffo afirma que o precedente pode ser

    nico, como ocorre comumente nos sistemas de common law, em face do nmero limitado de decises

    pronunciadas por suas cortes e pelo sistema de reporting, que permitem aos tribunais elegerem os casos que

    pretendem estabelecer como precedentes. E pode tambm ocorrer de se fazer referncia a vrias decises

    uniformes sobre a mesma questo, o que ocorre com maior frequncia nos sistemas de civil law, em que os

    precedentes decorrem da jurisprudncia dominante (TARUFFO, Michele. Dimensiones del precedente

    judicial. In: ___. Pginas sobre justicia civil. Traduccin de Maximiliano Aramburo Calle. Madrid:

    Marcial Pons, 2009. p. 552). Note-se que, para o autor, precedente e jurisprudncia fariam parte da mesma

    realidade, diferenciando-se apenas em relao sua estrutura.

  • 23

    relativos a outros casos que tratam das mesmas questes. Essas qualidades esto ligadas,

    dentre outras circunstncias, ao ineditismo da interpretao da lei em determinado caso

    concreto, quantidade dos argumentos analisados, consolidao dos argumentos j

    enfrentados em casos anteriores e autoridade do rgo judicial que prolata a deciso.6

    Note-se a diferena entre precedente e deciso. Nem toda deciso precedente,

    embora todo precedente seja deciso. Uma deciso s ser precedente se, ao fixar ou

    consolidar uma tese jurdica a respeito de determinada questo, for apta a exercer

    legitimamente efeitos externos, relativos a casos sucessivos.

    Da mesma forma, apesar da sua ntima relao, podem-se identificar diferenas

    entre precedente e jurisprudncia7. A primeira distino bvia, e pauta-se pelo critrio

    quantitativo: a jurisprudncia envolve um conjunto de acrdos consonantes, enquanto

    precedente refere-se a apenas um julgado sobre determinado tema.8

    Outra distino refere-se ao grau de influncia exercida pela jurisprudncia e pelo

    precedente, que varia conforme o sistema em que os mesmos so analisados.

    Nos sistemas de common law, embora a aplicao reiterada de um precedente possa

    levar ampliao do seu grau de influncia9, isso no necessrio para que ele projete

    6 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatrios. 2. ed. rev. e atual. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 2011. p. 215.

    7 Jos Rogrio Cruz e Tucci, ao abordar o tema dos precedentes como fonte do direito, embora reconhecendo

    que o termo jurisprudncia de uso muito mais comum em nossa linguagem jurdica, opta por precedente,

    em face da falta de univocidade do termo jurisprudncia, que serve tanto para designar o conjunto de

    decises dos tribunais, como tambm a cincia do direito e a prpria atividade profissional (jurisprudncia

    forense ou prtica contraposta terica) (TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Precedente judicial como fonte do

    direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 9).

    8 Conforme Sidnei Agostinho Beneti: O linguajar jurdico nacional vem solapando o conceito de

    jurisprudncia, que a interpretao consistente dos tribunais a respeito das lides, igualando-a pela de

    precedente, que cada julgamento individual. Para o autor: Um julgado no jurisprudncia, mas um

    precedente, que interagir com outros casos idnticos ou anlogos, no sentido da formao, ou no, de

    jurisprudncia. (BENETI, Sidnei Agostinho, Doutrina de precedentes e organizao judiciria. BDJur,

    Braslia, DF, 8 maio 2008, p. 1. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 nov. 2013). Nesse caso, porm, o autor menciona o termo precedente

    como sinnimo de deciso judicial. E, como vimos, nem toda deciso precedente, embora todo

    precedente seja deciso.

    9 O princpio aplicvel verificou-se num nico caso ou ter tido seu valor e adequao social reafirmados? A

    toda evidncia a autoridade dos precedentes varia consideravelmente. Num extremo esto os precedentes

    tidos como vinculativos; noutro, aqueles que se consideram de todo inaplicveis ao caso em exame. (RE,

    Edward D. Stare decisis. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 83, n. 702, p. 10, abr. 1994, p. 10).

  • 24

    efeitos externos, inclusive vinculando a interpretao das questes jurdicas nos casos

    sucessivos. Assim, muito mais do que a quantidade, importa a qualidade do precedente, em

    termos de aprofundamento da fundamentao e novidade ou singularidade do caso, bem

    como de hierarquia da corte que o proferiu.10

    J nos sistemas de civil law, os precedentes geralmente produzem efeitos externos,

    em maior ou menor grau, apenas quando formam jurisprudncia (ou seja, apenas quando

    reiterados), sobretudo dominante ou sumulada, trabalhando-se mais com jurisprudncia do

    que com precedentes11

    . Nesse caso, portanto, tem grande importncia o aspecto repetitivo,

    pois em regra ele que determina o maior grau de influncia a ser exercida nos casos

    sucessivos.

    No Brasil, excepcionalmente, o precedente (independentemente da sua converso

    em jurisprudncia) tambm pode exercer maior influncia, como ocorre com as decises

    emanadas do STF em sede de controle direito de constitucionalidade (que inclusive so

    dotadas de eficcia vinculante) e, aps a tcnica de julgamento de recursos repetitivos,

    tambm com os acrdos do STF e do STJ que julgam os recursos extraordinrios e

    especiais representativos da controvrsia.12

    10

    No regime da common law a palavra jurisprudncia no est, necessariamente, jungida ao sentido de

    reiterao de julgados, podendo ocorrer que um s precedente, por sua convincente fundamentao e/ou

    singularidade de objeto, seja difundido e faa escola, assim projetando extraautos a fora vinculativa de sua

    ratio decidendi (os chamados biding ou leading precedents). Diferentemente, pode suceder que sobre um

    mesmo tema haja vrios precedentes que, todavia, no se notabilizam por alguma singularidade da matria

    de fato ou pela fundamentao jurdica, de sorte que projetaro apenas uma fora persuasiva (persuasive

    prcedentes) em face dos juzes encarregados de decidir casos anlogos. (MANCUSO, Rodolfo de

    Camargo, Divergncia jurisprudencial e smula vinculante, cit., p. 207).

    11 Nos sistemas de civil law, de regra, precedentes comeam a gozar de respeito quando formam

    jurisprudncia predominante. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como

    objetivos do direito: civil law e common law. Revista de Processo, So Paulo, v. 34, n. 172, p. 144, jun.

    2009).

    12 Muito excepcionalmente, um precedente vincula, no sistema brasileiro. Ocorrem, espontaneamente, os

    tais leading cases. Por outro lado, h o mtodo de julgamento criado pelos arts. 543-B e 543-C, em que o

    caso piloto deve (sob pena de se frustrarem as finalidades dos dispositivos) determinar o teor dos

    julgamentos dos recursos, cujo procedimento ter ficado sobrestado. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.

    Interpretao da lei e de precedentes: civil law e common law. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 99, n.

    893, p. 33, mar. 2010). Sobre o conceito de leading case no sistema de common law, Guido Fernando Silva

    Soares leciona: Uma deciso que se tenha constitudo em regra importante, em torno do qual outras

    decises gravitam, se denomina um leading case, que passa a ser determinante para o estudante e o

    advogado, como primeiro approach na soluo de uma questo prtica. (SOARES, Guido Fernando Silva.

    O que a Common Law, em particular, a dos EUA. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2012).

  • 25

    2.2 Aproximao entre civil law e common law

    A diferena mais marcante entre os sistemas de civil law e de common law que,

    no primeiro, a principal fonte formal do direito a norma escrita, enquanto que o segundo

    baseia-se no direito costumeiro, aplicado pela jurisprudncia.13

    Porm, uma crise geral de legitimidade do poder jurisdicional, decorrente da perda

    de credibilidade da sociedade na Justia e nos juzes, tem sido invocada como uma das

    causas do movimento de constante aproximao entre os sistemas. Essa crise, decorrente

    da elevao da conscincia jurdica da populao e do grau de exigncia em relao ao

    desempenho do judicirio, faz com que os pases de civil law voltem os olhos para os da

    common law, procurando l encontrar solues para problemas comuns atravs de

    institutos que no existem na civil law e, por sua vez, com que os pases da common law

    tambm busquem solues para seus problemas no nosso sistema.14

    No campo do direito processual, pode-se citar, a ttulo de exemplo desse

    movimento de convergncia entre os sistemas, a crescente ampliao, nos Estados Unidos

    e na Inglaterra, dos poderes instrutrios do juiz, o que faz parte do sistema inquisitorial

    tpico dos pases de civil law.15

    De outro lado, observa-se a influncia, no Brasil (pas filiado ao civil law), de

    institutos do direito norte-americano, como os juizados especiais (inspirados nas small

    claims courts), a previso das aes civis pblicas (originadas das class actions) e a

    repercusso geral (semelhante ao sistema de certiorari).

    13

    Segundo Mauro Cappelletti, representa diferena fundamental entre os dois sistemas o fato de que: Nos

    pases de Civil Law, tende-se a identificar o direito com a lei, com a consequncia de que, tambm em

    face da lacuna legislativa, entende-se, ou se pretende entender, que de qualquer modo o juiz no faz seno

    aplicar a lei [...]. Nos pases de Common Law, pelo contrrio, o direito legislativo visto em certo sentido

    como fonte excepcional do direito. Em face da lacuna, o juiz daqueles pases sabe que sempre h, para

    alm da lei, o common law, ou seja, o direito desenvolvido pelos prprios juzes, que disciplinar as

    relaes jurdicas das partes (no disciplinadas pela lei). (CAPPELLETTI, Mauro. Juzes legisladores?

    Traduo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. p. 122).

    14 GRECO, Leonardo. Instituies de processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 1, p. 3.

    15 MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Correntes e contracorrentes no processo civil contemporneo. In: ____.

    Temas de direito Processual: nona srie, So Paulo: Saraiva: 2007. p. 55-67; TARUFFO, Michele.

    Observaes sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Revista de Processo, So Paulo,

    v. 28, n. 110, p. 145, abr./jun. 2003.

  • 26

    Desse modo, tem razo Jos Carlos Barbosa Moreira ao afirmar a possibilidade de

    um dia existirem entre os sistemas de civil law e common law mais semelhanas que

    divergncias.16

    Mas a demonstrao mais marcante dessa convergncia, que tambm a que

    interessa a este trabalho, diz respeito ao fato de que, no civil law, a importncia e o grau de

    influncia da jurisprudncia e dos precedentes judiciais tm sido cada vez mais ampliados,

    enquanto que, no common law, observa-se um movimento de crescente valorizao da

    norma escrita.17

    Nesse sentido, o civil law aproxima-se constantemente do common law, na medida

    em que a cada dia aumentam as tcnicas de valorizao da jurisprudncia e dos

    precedentes, sobretudo dos Tribunais Superiores, com o fim de acelerar a tornar mais

    eficiente a prestao jurisdicional, bem como de viabilizar julgamentos efetivamente

    uniformes de questes iguais, prestigiando-se os princpios da igualdade e da segurana

    jurdica.

    A tcnica de julgamento de recursos repetitivos pelo STF e STJ, objeto de estudo

    da presente dissertao, uma clara demonstrao disso, posto que, como veremos ao

    16

    Talvez no seja arbitrrio, em todo caso, divisar no que est acontecendo mais um sintoma de certa

    propenso convergncia das duas famlias tradicionais no universo processual do ocidente: bem pode

    suceder que um dia o processo de civil law e o processo de common law venham a caracterizar-se mais por

    aquilo em que se assemelham do que por aquilo em que contrastam. (MOREIRA, Jos Carlos Barbosa,

    Correntes e contracorrentes no processo civil contemporneo, in Temas de direito Processual: nona srie,

    cit., p. 67).

    17 Segundo Neil Andrews: O direito ingls, hoje em dia, est fortemente influenciado por leis escritas. Estas

    incluem o direito derivado (sobretudo normas codificadas veja 2.9). Os regulamentos europeus tm

    fora igual legislao primria. Apesar disso, o autor ressalta que o sistema de precedentes continua

    sendo a base do direito ingls (ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e

    alternativas de resoluo dos conflitos na Inglaterra. Orientao e reviso da traduo de Teresa Arruda

    Alvim Wambier. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 39). Michele Taruffo chega a afirmar que a

    referncia ao precedente no h tempos uma caracterstica peculiar dos ordenamentos do common law,

    estando agora presente em quase todos os sistemas, mesmo os de civil law. Por isso, a distino tradicional

    segundo a qual os primeiros seriam fundados sobre os precedentes, enquanto os segundos seriam fundados

    sobre a lei escrita, no tem mais admitindo-se que realmente tenha tido no passado qualquer valor

    descritivo. De um lado, na verdade, nos sistemas de civil law se faz amplo uso da referncia

    jurisprudncia, enquanto nos sistemas de common law se faz amplo uso da lei escrita e inteiras reas desses

    ordenamentos do direito comercial ao direito processual so, na realidade, codificadas (TARUFFO,

    Michele. Precedente e jurisprudncia. Revista de Processo, So Paulo, v. 36, n. 199, p. 139, set. 2011).

  • 27

    longo do trabalho, atua justamente no sentido da ampliao da autoridade dos precedentes

    do STF e do STJ.18

    Na verdade, essa tendncia de fortalecimento dos precedentes e da jurisprudncia

    no fenmeno exclusivo do sistema brasileiro, pois em diversos outros pases que adotam

    o sistema de civil law, como Frana, Itlia, Espanha e Alemanha, tem ocorrido movimento

    semelhante.19

    Conforme demonstrado por Katja Funken, a Espanha e a Alemanha vm

    positivando tcnicas no sentido da vinculao expressa dos precedentes de seus tribunais

    constitucionais, alm da grande importncia da eficcia persuasiva dos precedentes dos

    demais Tribunais Superiores para a uniformizao da jurisprudncia. O mesmo se observa

    na Frana e em outros pases, nos quais, embora no se possa falar em efeito vinculante, h

    uma grande tendncia de observncia dos precedentes dos Tribunais Superiores.20

    Da o interesse em analisar um pouco mais de perto o funcionamento do sistema de

    precedentes no common law.

    18

    O instituto do recurso especial repetitivo que, embora recm-introduzido no Cdigo de Processo Civil

    (art. 543-C do CPC), j faz parte da prtica do STJ prova bastante de que se comea a trilhar caminho

    rumo ao precedente com fora obrigatria. (MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximao crtica entre as

    jurisdies de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista de

    Processo, So Paulo, v. 34, n. 172, p. 229, jun. 2009). No mesmo sentido, vejamos trechos de acrdo do

    STJ em que, ao serem apreciadas questes submetidas ao julgamento pelo procedimento do art. 543-C do

    CPC, menciona-se a relao entre o nosso sistema de potencializao dos precedentes dos Tribunais

    Superiores e o sistema de julgamento com base nos precedentes vigentes na common law: A fora da

    jurisprudncia dos Tribunais Superiores informa o hodierno sistema, unindo as famlias do civil Law e da

    common Law, de sorte que, no perpassa pelo princpio da razoabilidade poder a Corte local decidir

    diversamente do que assentou a Corte Superior. (STJ QO AI n. 1.154.599/SP, Corte Especial, rel. para

    voto Min. Cesar Asfor Rocha, DJe, de 12.05.2011). Deveras, a estratgia poltico-jurisdicional do

    precedente, merc de timbrar a interpenetrao dos sistemas do civil law e do common law, consubstancia

    tcnica de aprimoramento da aplicao isonmica do Direito, por isso que para "casos iguais", solues

    iguais (STJ REsp n. 1.111.743/DF, Corte Especial, rel. para acrdo Min. Luiz Fux, j. 25.02.2010, DJe,

    de 21.06.2010).

    19 Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier, A influncia da jurisprudncia tem sido cada vez mais sentida

    nos pases de civil law, embora, isto no seja sempre confessado expressamente, como ocorre na Frana. Na

    Itlia, os precedentes tambm tm sido observados, desde que se trate de uma linha jurisprudencial firme e

    iterativa. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito:

    civil law e common law, cit., p. 138).

    20 FUNKEN, Katja. The best of both worlds: the trend towards convergence of the civil law and the

    common law system. Disponvel em:

    . Acesso em: 08 jun. 2012.

    http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/relationships/document?stid=st-rql&marg=LGL-1973-5&ds=BR_LEGIS_CS;BR_JURIS_CS;BR_DOUTRINA_CS;BR_SUMULAS_CS&startChunk=1&endChunk=1http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/relationships/document?stid=st-rql&marg=LGL-1973-5&ds=BR_LEGIS_CS;BR_JURIS_CS;BR_DOUTRINA_CS;BR_SUMULAS_CS&startChunk=1&endChunk=1http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/relationships/document?stid=st-rql&marg=LGL-1973-5&ds=BR_LEGIS_CS;BR_JURIS_CS;BR_DOUTRINA_CS;BR_SUMULAS_CS&startChunk=1&endChunk=1

  • 28

    2.3 Os precedentes no common law

    O tema da valorizao da jurisprudncia convida anlise, ainda que breve, de

    alguns conceitos relacionados teoria dos precedentes vigente nos sistemas de common

    law. Esclarea-se que tomamos por base os modelos norte-americano e ingls, eis que, em

    embora no sejam os nicos21

    , so os mais importantes e os que mais influenciaram os

    demais pases filiados ao common law.22

    2.3.1 Stare decisis

    No sistema de common law h tambm normas escritas (statue law), que se referem

    s normas criadas pelo legislador, mas inegvel que a principal fonte do direito o case

    law, isto , o precedente judicirio (judge-made law).23

    Isso porque os modelos ingls e norte-americano de common law adotam a doutrina

    do stare decisis, originada da formulao stare decisis et non quieta movere (ou seja,

    mantenha-se a deciso e no se disturbe o que foi decidido), segundo a qual os casos

    sucessivos, baseados nas mesmas circunstncias fticas, devem receber a mesma deciso

    proferida no caso anterior. Assim, com a soluo do caso, destaca-se uma regra, ou um

    princpio, o qual necessariamente dever ser aplicado aos casos semelhantes posteriores.24

    21

    Principais pases que pertencem famlia da Common Law: Austrlia, Nova Zelndia, Canad

    (Provncia de Quebec), ndia, Paquisto, Bangladesh, Qunia, Nigria, Hong Kong, Guiana, Trinidad

    Tobago e Barbados, dentre outros. Os EUA, salvo o Estado da Luisiana, so considerados um sistema

    misto, conquanto pertencente Common Law [...]. (SOARES, Guido Fernando Silva, O que a

    Common Law, em particular, a dos EUA, cit.).

    22 Conforme Sidnei Agostinho Beneti, o Reino Unido e os Estados Unidos so a terra do common law, do

    stare decisis e dos precedentes (BENETI, Sidnei Agostinho, Doutrina de precedentes e organizao

    judiciria, cit., p. 4). Pode-se afirmar, porm, que no direito norte-americano o sistema de vinculao

    menos rgido e significativa a presena de normas escritas (statue law).

    23 Guido Fernando Silva Soares descreve da seguinte forma a mentalidade dominante nos sistemas de

    common law: O case law constitui a regra e o statute o direito de exceo, portanto integrativo.

    (SOARES, Guido Fernando Silva, O que a Common Law, em particular, a dos EUA, cit.). No mesmo

    sentido, conforme Antonio Carlos Marcato, enquanto em nosso sistema os operadores do Direito apoiam-

    se na lei e, subsidiariamente, na jurisprudncia, no sistema da common law o caminho inverso: primeira

    fonte o case e, havendo lacuna, a lei escrita; o case law a regra e o statue a exceo de direito, atuando,

    portanto, de forma integrativa (MARCATO, Antonio Carlos, Crise da justia e influncia dos precedentes

    judiciais no direito processual civil brasileiro, cit., p. 46).

    24 Procurando apresentar um conceito para a doutrina do stare decisis, Edward Re explica que ela tem razes

    na orientao do common law segundo a qual um princpio de direito deduzido atravs de uma deciso

    judicial ser considerado e aplicado na soluo de um caso semelhante no futuro. Na essncia, esta

    orientao indica a probabilidade de que uma causa idntica ou assemelhada que venha a surgir no futuro

    seja decidida da mesma maneira (RE, Edward D., Stare decisis, cit., p. 8).

  • 29

    Dessa forma, as decises no sistema de common law tm dupla funo: resolver a

    controvrsia entre as partes e adquirir valor de precedente para nortear o julgamento futuro

    de caso semelhante. Essa segunda funo desempenhada porque, na doutrina do stare

    decisis, vige o princpio da presuno a favor do precedente, consubstanciada na

    circunstncia de que a deciso contrria ao precedente poder levar sua impugnao e

    reviso pelo rgo superior.

    Segundo Antonio Carlos Marcato, a doutrina do stare decisis pode ser sintetizada a

    partir de algumas regras, tais como: o efeito vinculante dos precedentes dos tribunais

    superiores; a fora de toda deciso relevante pronunciada por qualquer tribunal; a restrio

    da obrigatoriedade do precedente sua ratio decidendi, isto , ao princpio geral de direito

    estabelecido como seu fundamento; e a manuteno da vigncia do precedente ao longo do

    tempo, sem prejuzo da possibilidade de sua no aplicao, diante de circunstncias

    modernas.25

    Ademais, o precedente um princpio, ou seja, um ponto de partida para a soluo

    do novo caso, de forma que nesse processo de aplicao do precedente, poder ocorrer uma

    expanso ou restrio do princpio, contribuindo-se para o desenvolvimento e evoluo do

    direito.26

    Com isso, o stare decisis estabelece como regra a fora vinculante dos precedentes

    em relao aos casos sucessivos semelhantes, de forma que o caso julgado representa a

    principal fonte normativa do sistema.

    2.3.2 Precedentes vinculantes e precedentes persuasivos

    Conforme o grau de influncia em relao soluo dos casos sucessivos, os

    precedentes podem ser vinculantes ou persuasivos. No primeiro caso, so obrigatrios e

    devem necessariamente ser observados, sob pena de se considerar que a deciso violou o

    prprio direito. No segundo, ainda que altamente relevantes e at determinantes para a

    25

    MARCATO, Antonio Carlos, Crise da justia e influncia dos precedentes judiciais no direito processual

    civil brasileiro, cit., p. 152.

    26 RE, Edward D., Stare decisis, cit., p. 8.

  • 30

    deciso, os precedentes exercem fora meramente argumentativa, de modo que o sistema

    no considera obrigatria a sua observncia.

    Apesar do stare decisis, a autoridade do precedente no sempre a mesma no

    common law, podendo ser vinculativa (binding authority), hiptese em que definir o

    julgamento do caso sucessivo semelhante, ou persuasiva (persuasive authority), caso em

    que o precedente, aqui tambm chamado precedente de fato ou revestido de valor moral,

    pode at no ser aplicado ou, em o sendo, pode haver variao no grau e extenso da

    aplicao.

    Em linhas gerais, para que o precedente seja vinculativo, as questes a ele

    referentes devem ter sido suscitadas, consideradas e decididas. Por sua vez, os fatos do

    caso so extremamente importantes, porque deles que surgem as questes a serem

    decididas.27

    Assim, diz-se que a autoridade do precedente depende e limitada aos fatos e

    condies particulares do caso que o processo anterior pretendeu adjudicar, da

    decorrendo que os precedentes no devem ser aplicados de forma automtica. Pelo

    contrrio, conforme Re, o precedente deve ser analisado cuidadosamente para determinar

    se existem similaridades de fato e de direito e para determinar a posio atual da Corte com

    relao ao caso anterior.28

    Alm disso, a fora obrigatria ou persuasiva do precedente varia conforme a

    estrutura da deciso que o originou, bem como da relao hierrquica entre o rgo que o

    criou e o rgo que o ir aplicar.

    27

    Conforme Guido Fernando Silva Soares, o precedente na common law est intimamente ligado aos fatos,

    no se referindo a uma regra abstrata: O precedente no uma regra abstrata, mas uma regra intimamente

    ligada aos fatos que lhe deram origem. Por tal motivo, o conhecimento das razes da deciso e seu ntimo

    relacionamento com os fatos discutidos, torna-se imprescindvel. A exemplo, as regras contidas num case

    que envolveu uma anulao de casamento, no tem qualquer serventia para resolver questes relativas a

    divrcio, ou a questes sobre contratos entre esposos ou obrigaes alimentcias, embora possam ser

    bastante semelhantes. (SOARES, Guido Fernando Silva, O que a Common Law, em particular, a dos

    EUA, cit.).

    28 RE, Edward D., Stare decisis, cit., p. 9.

  • 31

    De qualquer modo, conforme Michele Taruffo, o mais adequado maioria dos

    sistemas, inclusive os de common law, seria considerar que os precedentes no se reduzem

    aos vinculantes ou no vinculantes. A hiptese da eficcia puramente vinculante existe

    apenas em fenmenos como, por exemplo, os efeitos da coisa julgada, que no tm a ver

    com precedente em sentido estrito. No outro extremo, tem-se a hiptese de eficcia

    puramente persuasiva, em que o juiz tem total discricionariedade quanto a seguir ou no o

    precedente, conforme se sinta ou no convencido quanto aos seus fundamentos, sem existir

    sequer a necessidade de sua meno na fundamentao.29

    Assim, o mais importante analisar os precedentes conforme o seu maior ou menor

    grau de eficcia ou de influncia. O grau mais alto seria aquele vigente no sistema ingls,

    em que o precedente binding, isto , ele precisa ser seguido, exceto nas hipteses

    (expressamente admitidas pelo sistema) em que ele no precisa ser observado. Em seguida,

    tem-se o precedente que defeasibly binding, ou seja, ele deve ser seguido, desde que no

    haja boas razes para seu abandono. Embora deva, o juiz tem liberdade para no seguir o

    precedente, desde que exponha fundamentadamente as respectivas razes.30

    O ltimo grau, existente em muitos sistemas de civil law, o do precedente weakly

    binding, que ocorre quando se considera conveniente que se observe o precedente,

    existindo at mesmo uma expectativa de que isso ocorra, mas no h qualquer

    consequncia para o caso do juiz abandonar o precedente sem apresentar qualquer razo

    para tanto. Seria o caso dos precedentes persuasivos geralmente previstos nos sistemas de

    civil law.31

    2.3.3 Ratio decidendi e obiter dictum

    No so todas as questes discutidas no precedente que vinculam. Analisando a

    dimenso objetiva dos precedentes, Michele Taruffo destaca os elementos da deciso que

    29

    TARUFFO, Michele, Dimensiones del precedente judicial, in Pginas sobre justicia civil, cit., p. 552.

    30 Ibidem, p. 552.

    31 No Brasil, embora se considere que os precedentes, em geral, no tm fora vinculante, mas apenas

    persuasiva, pode-se dizer que, a partir da previso de julgamento de recursos repetitivos pelo STF e STJ

    (arts. 543-B e 543-C do CPC), inseriu-se no sistema a necessidade de que os juzes e tribunais

    fundamentem expressamente as decises em caso de no aplicao do precedente do STF e STJ, pelo que,

    ainda que no sejam obrigatrios, no se pode afirmar que possam ser simplesmente abandonados.

  • 32

    tm maior ou menor poder de influncia, determinando o precedente. Fala-se, assim, na

    ratio decidendi e no obiter dictum, para se referir, respectivamente, parte do precedente

    que pode vincular e que assume funo meramente persuasiva.32

    A noo de ratio decidendi ambgua na doutrina do prprio common law. Ela

    pode significar a regra de direito emanada do caso (nfase na questo jurdica) ou a

    qualificao dos fatos relevantes da controvrsia (nfase na referncia aos fatos). Isso sem

    contar que a determinao da ratio decidendi depende em alguma medida da interpretao

    do precedente, a ser realizada pelo juiz do caso posterior.

    De qualquer modo, pode-se afirmar com certa segurana que a ratio decidendi

    representa a razo jurdica que determina a deciso, ou seja, constitui a essncia da tese

    jurdica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law).33

    Por excluso, tem-se como obiter dictum tudo o que no constitui a ratio decidendi,

    incluindo-se princpios jurdicos mencionados na deciso, mas que no a determinam,

    observaes relativas aos fatos da causa e valorao das provas, invocao de fatos

    alheios hiptese de fato objeto da controvrsia e at argumentos ad abundantiam. Os

    dicta apresentam fora meramente persuasiva, conforme diversos fatores, como, por

    exemplo, seu grau de influncia no contexto da deciso que os contm, a autoridade

    intelectual da corte ou juiz que o proferiu, a sua razoabilidade.34

    Desse modo, verifica-se que apenas o ncleo da fundamentao necessria e

    suficiente para a deciso a ratio decidendi (na Inglaterra) ou holdin (nos Estados Unidos)

    32

    TARUFFO, Michele, Dimensiones del precedente judicial, in Pginas sobre justicia civil, cit., p. 547.

    33 TUCCI, Jos Rogrio Cruz e, Precedente judicial como fonte do direito, cit., p. 175.

    34 Estuda-se o precedente para determinar se o princpio nele deduzido constitui a fundamentao da deciso

    ou to somente um dictum. Apenas os fundamentos da deciso merecem reconhecimento e acatamento com

    fora vinculativa. Um dictum apenas uma observao ou opinio e, como tal, goza to somente de fora

    persuasiva. Os fatores que afetam ou determinam o grau de persuaso que podem alcanar os dicta so

    muitos e de diversa natureza. Que grau de pertinncia ou relevncia tem o dictum no contexto da deciso de

    que integrante? A Corte ou o Juiz que o proferiu goza de especial respeito por sua sabedoria ou cultura

    jurdica? O dictum razovel? (RE, Edward D., Stare decisis, cit., p. 9). Conforme Teresa Arruda Alvim

    Wambier, obiter dicta ou gratis dicta significam literalmente: o que dito para morrer, o que dito por

    nada, inutilmente. Tudo o que dito numa deciso e que no integra a ratio decidendi obiter dicta, e o

    que dito obiter dicta tem um peso meramente persuasivo (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim,

    Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law, cit., p. 131).

  • 33

    que pode apresentar fora vinculante. As demais ponderaes, ainda que relevantes, so

    dotadas de fora meramente persuasiva.

    Por sua vez, vale ressaltar que, nos sistemas de civil law, mesmo a ratio decidendi

    tem, em regra, eficcia meramente persuasiva, salvo se o prprio sistema jurdico, em

    virtude de alguma previso expressa, excepcionalmente determinar a fora obrigatria do

    precedente.35

    2.3.4 Eficcias vertical e horizontal dos precedentes

    A fora vinculativa do precedente no common law tambm depende da sua direo.

    Isso significa que ela se altera conforme a relao (vertical ou horizontal) existente entre o

    rgo prolator do precedente e o rgo que julga o caso sucessivo. o que Michele

    Taruffo chama de dimenso institucional do precedente.36

    Quanto ao critrio vertical, que se baseia na autoridade e no respeito do rgo que

    proferiu a deciso, se o juiz do caso sucessivo encontra-se sob um grau hierarquicamente

    inferior, o precedente ser vinculante.37

    Por sua vez, quanto ao critrio horizontal, o precedente originado de rgo da

    mesma hierarquia do juiz do caso sucessivo exerce fora meramente persuasiva, a qual

    depender muito mais da qualidade intrnseca da deciso38

    . No entanto, recomendvel

    que, tratando-se de precedente originado das Cortes Superiores, ele seja, ao menos em

    regra, observado tambm pelo prprio rgo, sob pena de perda da sua autoridade. Nesse

    35

    De fato, no Brasil, pas filiado ao civil law, a ratio decidendi dos precedentes exerce, em regra, fora

    persuasiva e no vinculante (exceo feita smula vinculante e s decises do STF em sede de controle

    abstrato de constitucionalidade, tal como expressamente ressalvado pela Constituio Federal).

    36 TARUFFO, Michele, Dimensiones del precedente judicial, in Pginas sobre justicia civil, cit., p. 544.

    37 Sobre o sistema ingls, Neil Andrews leciona: Existe uma hierarquia de precedentes nessa pirmide de

    tribunais. Assim, as decises da House of Lords so vinculantes para todos os tribunais inferiores, incluindo

    a Court of Appeal. As decises da Court of Appeal no so vinculantes para a House of Lords, que

    superior na hierarquia. As decises da Court of Appeal so vinculantes no s para tribunais inferiores

    (como a High Court ou as county courts), mas tambm para a prpria Court of Appeal. (ANDREWS, Neil,

    O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resoluo dos conflitos na Inglaterra, cit., p.

    40).

    38 No sistema ingls, excepcionalmente precedentes de longa data, em qualquer nvel, dentro desta

    hierarquia, podem adquirir fora considervel na medida em que se consagram como um princpio

    fundamental (ANDREWS, Neil, op. cit., p. 41).

  • 34

    caso, fala-se no autoprecedente, que ocorre quando um mesmo rgo aplica seus prprios

    precedentes.

    Isso no exclui, e no deve excluir, uma certa dose de elasticidade, para que a Corte

    Superior altere seus prprios precedentes, sempre que eles se mostrarem obsoletos em face

    de mudanas das condies econmicas, sociais e culturais, ou at mesmo em face da

    peculiaridade dos casos, apenas aparentemente idnticos.

    Nesse sentido, Michele Taruffo menciona o Practise Statement de 1966, por meio

    do qual a House of Lords inglesa passou a no se considerar mais vinculada aos prprios

    precedentes (embora nas dcadas seguintes a referida Corte tenha continuado, na prtica, a

    seguir os prprios precedentes na maior parte dos casos). Menciona-se tambm a prtica da

    Suprema Corte dos Estados Unidos de geralmente selecionar para julgamento apenas casos

    que possam dar origem a precedentes novos ou que possam superar precedentes antigos

    que se tornaram obsoletos.39

    2.3.5 Flexibilidade na aplicao dos precedentes: overruling e

    distinguishing

    Basta observar a possibilidade de a prpria House of Lords revogar seus

    precedentes e a prtica da Suprema Corte dos Estados Unidos de superar precedentes

    antigos que se tornaram obsoletos para se constatar o quo equivocada a ideia de que a

    doutrina do stare decisis funda-se na fora vinculante irrestrita e absoluta dos precedentes.

    Como j exposto, o princpio deduzido do precedente pode ser aplicvel ou no e,

    em o sendo, essa aplicao poder se dar em diferentes graus. Com isso, embora o sistema

    privilegie a igualdade e a previsibilidade (por viabilizar solues estveis e uniformes), ele

    tambm se mostra flexvel, diante da necessidade de mudana e progresso.

    39

    TARUFFO, Michele, Precedente e jurisprudncia, cit., p. 150. Cappelletti tambm afirma ser necessrio

    reconhecer que a doutrina do stare decisis pode ser aplicada de maneira muito flexvel, o que realmente

    ocorre especialmente nos Estados Unidos, enquanto que na Gr-Bretanha a rigidez de sua aplicao

    tambm tem sido atenuada ultimamente, entre outros motivos, pela famosa declarao do Lord Chanceler

    que, em 1966, falando pela unanimidade da House of Lords, afirmou o poder daquela Corte de alterar a

    prpria jurisprudncia (CAPPELLETTI, Mauro, Juzes legisladores?, cit., p. 122).

  • 35

    Da dizer-se que, segundo o stare decisis, no se altera o j decidido, sem motivos

    extremamente relevantes, como a mudana da lei, ou a forte alterao das condies

    jurdico-sociais subjacentes, que imponha reviso de alterao.40

    Ou seja, havendo

    motivos relevantes, ou sendo alteradas as condies jurdico-sociais inerentes ao caso,

    perfeitamente possvel a reviso do precedente.

    A respeito dessa flexibilizao, destacam-se no common law dois institutos

    voltados a justificar a no incidncia do precedente ao caso sucessivo: o distinguishing e o

    overruling.41

    O distinguishing uma forma de se demonstrar que o caso, embora semelhante ao

    precedente, apresenta peculiaridades que impedem a sua aplicao, exigindo-se a

    apreciao do caso luz das novas questes fticas ou jurdicas no discutidas no

    precedente. Note-se que, na verdade, no se trata de excepcionar a eficcia vinculante do

    precedente, mas sim de demonstrar que o caso diverso, merecendo nova e diversa

    soluo.

    J o overruling refere-se superao do precedente em face da alterao das

    circunstncias fticas e jurdicas que lhe deram origem42

    . Aqui, o caso de superao e de

    revogao do precedente por no ser mais conveniente a sua aplicao aos casos

    sucessivos, dando-se origem a uma nova orientao.43

    40

    BENETI, Sidnei Agostinho, Doutrina de precedentes e organizao judiciria, cit., p. 4.

    41 Conforme Michele Taruffo, mesmo no sistema ingls, que parece ser aquele no qual o precedente

    dotado de maior eficcia, os juzes usam numerosas e sofisticadas tcnicas argumentativas, dentre as quais

    o distinguishing e o overruling, a fim de no se considerarem vinculados ao precedente que no pretendem

    seguir. [...] No sistema americano, a fora do precedente existe, mas em um grau menor: os juzes

    americanos aplicam os precedentes com grande discricionariedade, ou seja por assim dizer quando no

    encontram razes suficientes para no o fazer. O stare decisis continua a existir, portanto, e por isso os

    juzes normalmente explicam porque no pretendem seguir o precedente: parece, todavia, claro que o

    precedente tem eficcia s quando o segundo juiz dele compartilha. No caso contrrio, o precedente vem

    overruled (TARUFFO, Michele, op. cit., p. 147).

    42 THEODORO JNIOR, Humberto; NUNES, Dierle Jos Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo

    Franco. Breves consideraes sobre a politizao do Judicirio e sobre o panorama de aplicao no direito

    brasileiro: anlise de convergncia entre o civil law e o common law e dos problemas da padronizao

    decisria. Revista de Processo, So Paulo, v. 35, n. 189, p. 42, nov. 2010.

    43 Quando se detecta a necessidade de mudana, ou porque (a) se considera agora, a norma errada; ou porque (b) se considera agora a norma errada, embora ela no estivesse errada, quando foi criada, ocorre o

    overruling. Esta uma das principais tcnicas, usadas no sistema de common law, para

    adaptar/corrigir/flexibilizar o direito. [...] Overruling o afastamento do precedente e a declarao de que

    este precedente foi superado. O overruling, porm, tambm pode ser implcito. Quando ocorre o

    overruling, uma nova regra criada para os casos subsequentes. (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim,

    Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law, cit., p. 135-136).

  • 36

    Conforme Antonio Carlos Marcato, existe tambm a possibilidade do retrospective

    overruling (caso em que a revogao do precedente ter eficcia retroativa, impedindo-se

    que a deciso anterior seja invocada como paradigma para casos pendentes de julgamento),

    do prospective overruling (caso em que a Suprema Corte dos Estados Unidos da Amrica

    revoga o precedente com eficcia ex nunc, de forma que sua revogao produza efeitos

    apenas para casos futuros) e do antecipatory overruling (quando os tribunais inferiores

    norte-americanos revogam preventivamente um precedente, sob o fundamento de que ele

    foi repudiado, ainda que implicitamente, por precedente da Corte Superior).44

    Ao seu turno, o distinguishing diferencia-se do overruling pelo fato de que,

    naquela, a regra do precedente permanece, e at incide no caso sucessivo, embora com

    adaptaes. Nesse sentido, a regra do precedente no abandonada, mas reformulada,

    levando em considerao caractersticas especficas do caso.45

    2.4 A valorizao da jurisprudncia no Brasil

    Apresentados os principais conceitos relacionados teoria dos precedentes vigente

    nos sistemas de common law, passamos a analisar a questo da tendncia de valorizao da

    jurisprudncia no Brasil.

    2.4.1 A necessidade de interpretao e o problema da divergncia

    jurisprudencial

    No exerccio da funo jurisdicional, o Estado, por meio do Poder Judicirio, julga

    as controvrsias que lhes so submetidas, o que envolve a realizao de um silogismo:

    valendo-se da premissa maior (direito objetivo) e da premissa menor (fatos da causa),

    chega-se concluso a respeito da incidncia da norma ao caso concreto, com a aplicao

    dos efeitos jurdicos que ela prev para aquela situao.

    44

    MARCATO, Antonio Carlos, Crise da justia e influncia dos precedentes judiciais no direito processual

    civil brasileiro, cit., p. 154.

    45 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e

    common law, cit., p. 136.

  • 37

    Ocorre que a aplicao da lei aos fatos do caso concreto exige no s o trabalho

    investigativo em relao apurao dos fatos da causa, mas tambm a atividade de

    investigao do sentido das normas abstratas (premissa maior), nem sempre claros e

    precisos46

    . Assim, na sua atividade de julgador, o juiz tem que se valer da interpretao

    para descortinar o sentido da lei (aqui considerada em seu sentido amplo) a ser aplicada ao

    caso concreto.

    Porm, ao realizar essa atividade interpretativa, embora o juiz exponha o raciocnio

    que fez para aferir o sentido da norma abstrata aplicvel ao caso, certo que o faz tanto

    quanto qualquer doutrinador ou cidado quando raciocina sobre o sentido do direito

    objetivo, pelo simples fato de que esse entendimento s serve para justificar a deciso. O

    seu valor est apenas na fora persuasiva que decorre da sua qualidade tcnica.47

    Diferentemente dos motivos (onde se encontra exposto aquele raciocnio relativo

    atividade interpretativa), a deciso do juiz, ou mais precisamente a sua parte dispositiva ou

    decisum, tem peso oficial porque representa a norma jurdica concreta aplicada na soluo

    do litgio. Tanto assim que s a parte dispositiva fica imunizada pela coisa julgada e, de

    qualquer modo, essa imunizao restrita s partes do caso concreto, no alcanando

    aqueles que no participaram do processo.48

    No entanto, algo diferente ocorre na prtica, em que o peso da fundamentao das

    decises muito significativo. Pela especial circunstncia de emanar dos rgos pblicos

    incumbidos de declarar o direito subjetivo das partes, essa interpretao jurisdicional

    realizada em determinado caso transmite a todos, no plano ftico, a convico de

    corresponder ao sentido oficial da lei, inclusive para os casos