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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Louise Walmsley Nery Liberdade democrática versus liberdade filosófica: um estudo dos usos do conceito de eleuthería na República de Platão São Paulo 2016

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  • 1

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Louise Walmsley Nery

    Liberdade democrtica versus liberdade filosfica: um estudo dos usos do conceito de

    eleuthera na Repblica de Plato

    So Paulo

    2016

  • 2

    Louise Walmsley Nery

    Liberdade democrtica versus liberdade filosfica: um estudo dos usos do conceito de

    eleuthera na Repblica de Plato

    Dissertao apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de

    So Paulo, para a obteno do

    ttulo em Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr.

    Roberto Bolzani Filho.

    So Paulo

    2016

  • 3

    Folha de aprovao

    WALMSLEY NERY, L. Liberdade democrtica versus liberdade

    filosfica: um estudo dos usos do conceito de eleuthera na Repblica

    de Plato. 2016. Dissertao (Ps-Graduao em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de

    Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    Banca examinadora

    Prof. Dr. ________________________________________________

    Instituio: __________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. ________________________________________________

    Instituio: __________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr. ________________________________________________

    Instituio: __________________ Assinatura: __________________

  • 4

    Agradecimentos

    Agradeo, primeiramente, ao meu orientador, prof. Dr. Roberto Bolzani Filho, pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa e pela

    pacincia e compreenso ao longo de todas as etapas.

    Agradeo aos meus pais, Rossana Walmsley e Flvio Jos Nery da Silva, pelo contnuo incentivo aos meus estudos, alm do apoio

    empreitada de mudar de estado para prosseguir com a minha

    formao.

    Agradeo ao prof. Dr. Marco Antnio de vila Zingano e ao prof.

    Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes por terem participado da minha banca

    de qualificao com comentrios, crticas e sugestes fundamentais

    para o encaminhamento deste trabalho.

    Agradeo ao prof. Dr. Anastcio Borges de Arajo Jnior e a

    todos os membros do grupo de pesquisa Dnamis.

    Agradeo aos meus professores de grego, Paula, Daniel e Jos Marcos, pois o aprendizado dessa lngua foi essencial para o

    desenvolvimento de boa parte da pesquisa.

    Agradeo aos participantes dos grupos de pesquisa dos quais tive a oportunidade de participar tambm em So Paulo, pois boa

    parte da minha formao enquanto leitora de textos clssicos foi

    adquirida nesses grupos, especialmente nos grupos do Centro de

    Estudos Helnicos Aret.

    Agradeo aos meus colegas de instituio pelos encontros,

    comentrios e discusses a respeito de nossas pesquisas,

    especialmente ao Henrique, ao Marcello e Helena.

    Agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Nvel Superior (CAPES) pela bolsa que me foi concedida durante parte

    do tempo em que desenvolvi a pesquisa.

    Agradeo, por ltimo, but not least, ao meu companheiro, Ney

    Victor de Menezes Pinto, pelo apoio incondicional em todos os

    momentos da pesquisa, desde a elaborao do projeto at a redao

    final desta dissertao.

  • 5

    Ningum mais escravo do

    que aquele que falsamente

    se acredita livre..

    Johann Wolfgang von Goethe

  • 6

    RESUMO

    WALMSLEY NERY, Louise. Liberdade democrtica versus liberdade filosfica: um estudo dos usos do conceito de eleuthera na Repblica de Plato. 2016. 116 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    O presente trabalho tem por objeto de estudo os usos do conceito de eleuthera na Repblica de Plato. Tem-se por ponto de partida uma

    gama de conceitos relativos noo de liberdade na antiguidade,

    propondo-se a analisar o dilogo segundo duas concepes

    antagnicas de eleuthera. A primeira delas a mais comum na abordagem dos dilogos platnicos, trata-se da ideia de fazer o que

    se quer e esse sentido encontrado, sobretudo, no exame da forma

    de governo democrtica e do homem que corresponde a esse regime

    poltico. Para uma compreenso adequada desse sentido, prope-se que se entenda o que est em jogo quando se tece uma crtica ao

    regime democrtico. Esse sentido tido como essencialmente

    negativo, pois traz consequncias indesejveis dentro do contexto em

    que apresentado. Supe-se que haja um outro sentido de

    eleuthera presente no dilogo, o qual no tratado sistematicamente e que apenas sugerido nas entrelinhas da mais

    bela cidade, a kallpolis. Diante da necessidade de mostrar que esse

    sentido pode integrar a economia da obra, parte-se de indcios

    textuais nos quais a liberdade no est associada forma de governo democrtica para mostrar que a caracterizao de uma liberdade

    positiva parece ser possvel. Esse sentido positivo estaria associado a

    um certo ideal de excelncia. Por fim, sugere-se que de acordo com

    esse sentido positivo a expresso fazer o que se quer possa ser interpretada de uma forma completamente diversa da encontrada no

    contexto democrtico.

    Palavras-chave: Plato, Repblica, liberdade, eleuthera

  • 7

    ABSTRACT

    WALMSLEY NERY, Louise. Democratical freedom versus philosophical

    freedom: a study of the uses of the concept of eleuthera in Platos Republic. 2016. 116 f. Thesis (Master Degree) Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    The present work has as object of study the uses of the concept of

    eleuthera in Plato's Republic. As starting point we have a wide range of concepts related to the notion of freedom in antiquity, it is

    proposed the analysis of the dialogue according to two antagonical

    concepts of eleuthera. The first is the most common in Plato's

    dialogues, it is the idea of "to do whatever one wants" and this

    meaning is found, above all, when examining the democratic government and the corresponding man to this political regimen. For

    an adequate comprehension of this meaning, it is proposed the

    understanding of what is at stake when a critique of the democratic

    state is made. This meaning is held essentially as negative because it brings undesirable consequences in the context in which it is

    presented. It is supposed that there is other meaning of eleuthera

    present in the dialogue which is not sistematically addressed and is

    only suggested between the lines of the most beautiful city, the kallpolis. Facing the necessity of showing that this meaning can

    integrate the economy of the work, starting from textual indications

    that freedom is not associated to the democratic way of government

    to show that the characterization of a positive freedom seems possible. This positive meaning could be associated to a certain ideal

    of excellency. In the end it is suggested that, according to this

    meaning the expression "to do whatever one wants" could be

    interpreted in a completely diverse way of the meaning found in the

    democratic context.

    Key Words: Plato, Republic, freedom, eleuthera

  • 8

    Sumrio

    Introduo ..............................................................................8

    I. Os sentidos de eleuthera ................................................... 17

    1. Do sentido popular do adjetivo eletheros sua apropriao

    filosfica ............................................................................... 18

    2. A ambivalncia do conceito de eleuthera na Repblica ........ 25

    II. A eleuthera em seu principal uso na Repblica ................ 31

    1. Contexto do livro VIII ..................................................... 32

    1.1. Um paradigma que fundamenta a crtica s formas de

    governo ............................................................................. 35

    1.2. Princpios que fundam e corrompem as formas de governo

    46

    2. A eleuthera democrtica ................................................. 51

    2.1. Um modo de vida doce: a liberdade e a satisfao dos

    desejos .............................................................................. 52

    2.2. A eleuthera qualificada e a runa desse conceito ........... 67

    III. H eleuthera na mais bela cidade? ................................. 77

    1. A possibilidade de uma interpretao positiva .................... 78

    2. O aneletheros como o que no digno da kallpolis........... 94

    3. O bom ordenamento interno como uma expresso possvel de

    liberdade ............................................................................ 101

    Consideraes finais ............................................................ 110

    Referncias.......................................................................... 112

  • 9

    Introduo

    O dilogo A Repblica um dos textos mais comentados da

    tradio filosfica, tendo recebido inmeras classificaes e

    interpretaes desde a antiguidade at os nossos dias. Plato j foi

    lido como ctico, dogmtico, idealista, realista, socialista e at

    mesmo nazista (VEGETTI, 2010). Sem dvida, tal obra nos oferece

    uma quantidade exorbitante de contedos: trata-se de um

    monumento filosfico que examina temas fundamentais na histria

    das ideias, tais como as qualidades da alma (psych), a educao do

    homem (paidea), a excelncia (aret), o regime poltico (politea),

    entre outros. Essa diversidade de aspectos se acumula com uma

    dificuldade que inerente ao prprio modo segundo o qual Plato

    escreveu: o dilogo. Resulta que o arco interpretativo por onde

    transitam os intrpretes por demais amplo e contraditrio. Alm,

    claro, dos chamados recortes textuais, atravs dos quais possvel

    construir toda uma nova teoria da filosofia platnica, sem levar em

    conta a complexidade do pensamento do autor.

    Tratar da liberdade na Repblica um grande desafio.

    Primeiramente porque no contexto dos totalitarismos do sculo

    passado, os quais esto prximos demais a ns para que possamos

    negligenci-los, Plato foi eleito o inimigo nmero um da sociedade

    que pe em liberdade as faculdades crticas do homem (POPPER,

    1998, p. 15). O autor dos dilogos ocupa, assim, um lugar de

    destaque, visto que foi fortemente acusado e combatido pelos

    defensores da sociedade cujo valor essencial a prpria noo de

    liberdade. Jean-Franois Pradeau explica essa atitude de pura e

    simples recusa do pensamento platnico atravs de um certo pthos

    democrtico que atingiu os autores do sculo XX (2005, p. 18) e

    certamente ainda vigora nesse incio de sculo. Robert Muller resume

    bem a frmula utilizada na maior parte desses crticos: somam-se as

  • 10

    passagens nas quais a liberdade aparece de forma essencialmente

    negativa, como o caso do oitavo livro da Repblica, aos trechos que

    aludem ao intelectualismo moral. O resultado no pode ser outro:

    Plato tido como um inimigo da prpria ideia de liberdade.

    Ao leitor que pretende examinar se essa frmula realmente

    resume de forma adequada o contedo dos dilogos platnicos cabe,

    portanto, o seguinte um desafio: preciso lidar com as evidncias

    textuais que mostram que a liberdade acaba por exercer um papel

    pernicioso que leva o homem e a cidade a males indesejveis no

    desenvolvimento argumentativo da Repblica. Nossa proposta a de

    realizar esse percurso sem os preconceitos daqueles que tentam a

    todo preo ver em Plato um inimigo da liberdade. Tambm preciso

    velar para que no se cometam os excessos opostos, de forma a

    incorrer na atitude que Pradeau e Vegetti resumem como salvar

    Plato, apesar dele. O intuito de nossa pesquisa o de fazer uma

    leitura atenta ao texto para tentar encontrar atravs de quais

    elementos Plato recusa ou integra a liberdade na sua concepo de

    filosofia.

    Antes de prosseguirmos, cabe uma breve observao sobre

    a metodologia que adotaremos para a leitura do dilogo.

    Sabemos que Plato no escreveu tratados filosficos, mas

    dilogos. possvel supor que, diante de uma tradio que escrevia

    sobretudo poemas picos e peas literrias, ambos destinados

    apresentao oral, o dilogo teria sido um tipo de intermedirio entre

    a tradio oral e a escrita. Contudo, como bem indica Scolnicov

    (2003, p. 49-50), na poca que Plato escreveu seus dilogos a prosa

    j era comum. o caso das Histrias de Herdoto, escritas em prosa,

    ainda que pudessem ser objeto de recitao oral1. Ou mesmo antes,

    por exemplo, Anaximandro, cujo texto, em prosa, j veiculava

    1 Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012, p. xxxv-xxxvi), tal obra teria sido recitada em

    Atenas e em Olmpia perante um grande auditrio.

  • 11

    contedo filosfico desde o sculo VI a.c. Tal suposio no parece,

    portanto, plausvel. Assim, a forma dialgica parece ser uma escolha

    deliberada de Plato para apresentar suas anlises filosficas, mais

    ou menos desenvolvidas, ao longo dos dilogos.

    H, ao menos, trs estilos consagrados de metodologia para

    a abordagem dos dilogos platnicos. Christopher Gill (2006, p. 55-

    60) os descreve nos seguintes termos: o primeiro estilo, que de to

    difundido parece ser o mais natural, o mtodo analtico. Nessa

    perspectiva, Scrates seria o porta-voz das teses platnicas e caberia

    ao intrprete fazer a anlise dos argumentos, sem que a forma

    dialgica, a escolha das personagens e a mise-en-scne fossem de

    grande relevncia para a apreenso do cerne da filosofia platnica. O

    segundo estilo aquele que faz a distino entre as doutrinas

    exotricas e esotricas da Academia, sendo as primeiras de carter

    propedutico e as ltimas destinadas aos estudantes mais avanados.

    Caberia aos verdadeiros filsofos encontrar nos dilogos as doutrinas

    no escritas e discuti-las. O terceiro e, a nosso ver, mais interessante

    dos estilos aquele que atribui maior importncia ao fato de Plato

    escrever dilogos (...), que so escritos de modo a estimular o leitor,

    a fim de faz-lo refletir sobre as ideias discutidas. Os dilogos

    apresentam um autntico exerccio de filosofia (p. 57).

    Com efeito, esse terceiro mtodo de abordar os dilogos

    platnicos tem sido cada vez mais bem acolhido entre os helenistas.

    Da mesma maneira que ns, indivduos, leitores, temos vises de

    mundo particulares, as personagens dos dilogos podem representar

    modos de ser e de pensar muito diversos, os quais podem e devem

    passar pelo crivo da filosofia, de onde a importncia dos

    questionamentos ao longo das obras. Uma exortao da vida com

    exame, para retomar a expresso da Apologia (38a), seria, segundo

    essa perspectiva, o verdadeiro sentido da filosofia platnica. Essa

  • 12

    abordagem, na qual o Plato dramaturgo e o filsofo se encontram,

    foi bem resumida nas palavras de Bolzani:

    Essa habilidade (literria), est a servio de uma

    filosofia que no se reduz a teses bem formuladas e

    argumentos refinados, e que pretende alcanar um certo tipo de leitor, com o pretensioso projeto de faz-

    lo aderir a essa nova mentalidade. (...) Por isso, os

    recursos da escrita fazem parte dessa disputa, que , afinal, de natureza pedaggica. (2012, p. 5)

    nisto que consiste o carter pedaggico da obra platnica:

    a incitao da reflexo filosfica por parte das personagens, e, em

    ltima instncia, do leitor. O expediente literrio est a servio da

    filosofia na medida em que apresentar teses ou, para usar uma

    expresso mais forte, fazer asseres com pretenso de verdade, no

    seria uma estratgia suficiente para iniciar uma ao transformadora

    dentro da perspectiva platnica. Do ponto de vista literrio, seria

    muito mais fcil pr na boca de Scrates afirmaes categricas em

    defesa do modo de vida que Plato pretende exortar. Mais fcil,

    contudo muito menos profcuo. Se o estmulo para tal ao no partir

    do prprio indivduo, dificilmente o resultado alcanado ser

    satisfatrio. No basta expor determinadas teses, preciso que elas

    sejam examinadas, confrontadas, preciso levantar hipteses,

    recorrer a analogias, cair em aporia e tentar propor solues aos

    impasses a fim de, talvez, persuadir o interlocutor a repensar suas

    posies e o seu prprio modo de vida. na problematizao das

    teses levantadas ao longo do texto que reside o interesse da forma

    dialgica. Nos dilogos platnicos isso se traduz nos questionamentos

    das personagens, o que parece ser um modo eficiente de despertar a

    reflexo filosfica.

    Pois bem, essa postura metodolgica a que nos parece a

    mais adequada para a abordagem da Repblica. Isso relevante

    porque, entre outras coisas, sabemos que as personagens com as

    quais Scrates dialoga ao longo da obra ganham maior ou menor

  • 13

    destaque, chegando a desaparecer completamente (como o caso de

    Clitofonte) ou ganhar maior destaque (Glucon e Adimanto a partir

    do segundo livro, por exemplo). De modo que a escolha do

    interlocutor para cada passo argumentativo no parece ser fortuita.

    Ao contrrio, as personagens parecem representar os possveis

    modos de ser na cidade. Alguns dos grandes leitores de Plato

    analisaram com bastante pertinncia personagens da Repblica e de

    outras obras segundo essa perspectiva pedaggica2, o que levaremos

    em considerao durante o desenvolvimento deste projeto. Para fins

    do nosso estudo, quanto ao mtodo de leitura, por ora, no

    avanaremos mais que isso.

    Quanto periodizao do corpus platnico, sabemos que

    esta questo est longe de ser ponto pacfico entre os especialistas.

    Aristteles j teria feito a distino entre temas socrticos (como a

    akrasa no Protgoras) e temas propriamente platnicos (as idea na

    Repblica)3. Haveria, portanto, fases no pensamento platnico. A

    princpio uma fase socrtica e uma propriamente platnica. Mas a

    discusso no se resume a isso, tendo em vista que em algumas

    obras Plato teria revisitado algumas de suas hipteses4. Haveria,

    ento, um Plato da juventude, socrtico, um Plato da maturidade,

    platnico, e um Plato da velhice, que teria modificado alguns

    aspectos de sua filosofia. Essa separao, mais ou menos ntida

    segundo os comentadores, ganhou destaque a partir dos anos 50 e

    sua fora reside na tentativa de conciliar posies aparentemente

    contraditrias em diferentes dilogos, tratando-as como abandono ou

    refinamento de suas principais teses5.

    2 Para uma anlise em um quadro mais geral das personagens platnicas, cf. Scolnicov (2003,

    p. 49-59). Para uma anlise muito apurada do papel de Glucon na Repblica segundo essa abordagem, cf. Bolzani (2012, p. 98-116). 3 Sobre a distino aristotlica, cf. Vlastos (1991, p. 91-98)

    4 A mais famosa sendo a questo das Formas, que tem um formato na Repblica e revisitada

    em dilogos como Parmnides e Sofista. 5 Rowe chama essa abordagem de desenvolvimentista e faz trs crticas a essa postura: se

    Plato tivesse abandonado a filosofia socrtica ele deveria abandonar tambm a personagem

  • 14

    Que h algum grau de diferena entre teses apresentadas

    em diferentes dilogos, de diferentes perodos, parece bvio.

    Contudo, afirmar que a expresso tpos noets desaparece nos

    dilogos tardios de Plato para dar lugar a realidades que so o

    antdoto da esclerose prpria ao isolamento (das formas), como faz

    Cordero (1993, p. 25), parece-nos um exagero. Para assumir que h

    uma esclerose no sistema filosfico do Plato da maturidade,

    preciso antes aceitar que h um sistema, uma doutrina acabada, o

    que no parece ser o caso. Encontramos na Repblica uma srie de

    ponderaes quanto s dificuldades do mtodo empregado e aos

    limites inerentes prpria condio humana, de forma que

    acreditamos haver nos dilogos proposies, hipteses, no

    necessariamente um sistema fechado que, de to isolado da

    realidade, esclerosou e precisou de um antdoto.

    Alm disso, a prpria forma dialgica das obras nos permite

    questionar essa interpretao. Ao pr na boca de diferentes

    personagens suas teses, Plato teria se comprometido com todas

    elas? impossvel que seja assim. Ento quais seriam as teses

    propriamente platnicas? Como podemos notar, estamos transitando

    em um terreno rido e espinhoso, que vai muito alm do escopo do

    nosso trabalho. No assumiremos esse desenvolvimentismo radical,

    no qual as fases esto perfeitamente delineadas e h uma ruptura

    brusca entre as teses e o prprio modo de fazer filosofia. H na

    Repblica, como veremos, aspectos dos dilogos que com algum

    consenso so classificados de juventude e da maturidade platnica.

    nessa obra que reside boa parte da filosofia propositiva de Plato,

    que vai alm do questionamento de conceitos e aporias e apresenta

    mtodos de investigao e hipteses para solucionar os problemas

    que surgem ao longo do dilogo.

    Scrates; a separao entre os grupos assume as diferenas de forma muito acentuada; o prprio critrio evolutivo incerto (2011, p. 30-31). Concordamos, especialmente, com a segunda crtica e a isso que vamos nos ater na nossa exposio.

  • 15

    A Repblica uma das obras mais extensas do corpus

    platnico e a sua argumentao extremamente bem articulada.

    Com efeito, a apresentao de determinadas propostas no se d

    sem que algumas de suas teses sejam questionadas ao longo do

    dilogo, o que faz com que a leitura no possa ser reduzida a uma

    mera sequncia de proposies. Trata-se, antes, de um exerccio

    filosfico, que exige a retomada de alguns temas a fim de preencher

    lacunas que eventualmente possam ter sido deixadas em aberto.

    Nesse dilogo isso se d por meio de interrupes das personagens,

    as quais exigem esclarecimentos acerca de determinados pontos6.

    Resulta disso que ao leitor que aceita o desafio de interpretar essa

    obra, faz-se necessria a insero dos temas abordados em

    determinados contextos. Assim, como um verdadeiro quebra-cabea,

    preciso encontrar as articulaes de cada pea com as demais para

    que se possa ter uma viso adequada sobre o todo.

    Para a anlise dos usos de eleuthera na Repblica, parece-

    nos, portanto, imperativo que analisemos o que est em jogo na

    discusso. Afinal, Plato no escreveu uma obra chamada Sobre a

    liberdade, mas uma Politea que rege uma cidade excelente, na qual,

    entre muitas outras coisas, a forma de governo democrtica, cujo

    fundamento uma certa liberdade, considerada um vcio. No h,

    portanto, uma discusso isolada a respeito do conceito de eleuthera.

    Tal reflexo est inserida dentro de um contexto argumentativo que

    relevante para uma compreenso dos usos de liberdade no dilogo.

    Pelos motivos acima expostos o nosso plano de trabalho

    leva em considerao toda a estrutura argumentativa da Repblica.

    Mas, antes disso, no primeiro captulo, iniciaremos com uma breve

    anlise dos sentidos de eleuthera na plis ateniense, em seguida,

    tentaremos mostrar que esses sentidos podem ser interpretados

    6 Por exemplo: 449 b c retoma o que fora apresentado em 423 e 424 a; 543 c 544 b

    retoma 445 c e.

  • 16

    segundo dois eixos de leitura, que representam dois valores rivais no

    interior do dilogo.

    No segundo captulo, trataremos do principal uso da

    liberdade no dilogo, qual seja: a liberdade democrtica. Iniciaremos

    com um mapeamento da discusso que norteia a Repblica, a fim de

    entendermos os pressupostos da crtica ao regime cujo princpio a

    eleuthera. Em seguida, trataremos da liberdade enquanto

    fundamento da forma de governo democrtica, para que, a partir

    desse sentido, possamos analisar as consequncias da liberdade

    democrtica. Procuraremos mostrar que a liberdade nesse contexto

    associada licenciosidade e quase sempre qualificada de forma a

    amplificar o seu sentido. Esse excesso culmina na destruio desse

    regime poltico, por isso a liberdade no contexto do livro VIII e incio

    do livro IX da Repblica tem um sentido essencialmente negativo.

    No terceiro e ltimo captulo, baseados em algumas

    evidncias textuais, procuraremos sugerir que a liberdade, talvez,

    no seja unicamente negativa na Repblica. Por um lado, h uma

    certa liberdade que aparece como uma sorte de ideal no processo

    educativo ao qual os guardies da kallpolis devem se submeter. Por

    outro lado, h uma condenao do que contrrio liberdade ou

    indigno de um homem livre em algumas passagens que se referem

    cidade fundada no lgos. Por fim, procuraremos sugerir que, se todas

    as exigncias da cidade paradigmtica forem respeitadas, pode ser

    que haja um sentido segundo o qual possvel ser livre na kallpolis e

    que, talvez, esse seja o nico sentido autntico de liberdade para

    Plato.

  • 17

    I. Os sentidos de eleuthera

    Pensar a principal cidade-estado da Hlade Clssica como

    uma democracia, na qual todos os cidados eram homens livres,

    hoje um lugar comum. Com efeito, os conceitos de isonoma, isegora

    e isokrata so hoje bem conhecidos por caracterizarem o regime de

    igualdade no qual viviam os atenienses em seu apogeu. Esses termos

    caracterizam a igualdade perante as leis (do sufixo grego iso, que

    significa igual, e do substantivo nmos, aqui entendido como lei),

    igualdade de direito de manifestao em assembleias pblicas (do

    verbo agore, falar em pblico) e igualdade de acesso ao poder (do

    verbo krate, que significa ter poder), respectivamente.

    O prprio conceito de liberdade, eleuthera, no recebe

    assim tanto destaque, apesar de caracterizarmos constantemente

    como cidados apenas os homens livres das pleis gregas. Isso se d

    porque o substantivo eleuthera teria surgido a partir do prprio

    adjetivo eletheros. Com efeito, Pierre Chantraine no seu Dictionnaire

    Etymologique de la Langue Grecque (1970, tome II, p. 336) nos

    esclarece que o substantivo eleuthera derivado do adjetivo

    eletheros, o qual, por sua vez, se contrape ao adjetivo dolos. No

    por acaso a primeira acepo do adjetivo eletheros no dicionrio

    Bailly (2000, p. 644) tambm : livre, em oposio a dolos.

    Assim, h um modo de ser na cidade, o ser livre, que

    caracteriza os cidados atenienses. Vejamos, primeiramente, qual o

    valor desse adjetivo em seus empregos na cidade. Em seguida,

    veremos quais outros termos so ligados liberdade do ponto de

    vista semntico. Para terminarmos o captulo, examinaremos a

    ambiguidade semntica do que o prprio termo eleuthera comporta.

  • 18

    1. Do sentido popular do adjetivo eletheros sua apropriao

    filosfica

    Qualquer manual de introduo Filosofia Clssica no pode

    prescindir da caracterizao dos cidados da plis ateniense como

    livres. So livres aqueles que nascem de famlias que j integram a

    plis como livres e que tm um lugar na participao poltica nas

    assembleias, incluindo a possibilidade de se expressar e de votar nos

    momentos de tomada de deciso em um governo democrtico. bem

    sabido que o predicado livre (eletheros) era uma condio sine qua

    non para que os indivduos que viviam na Atenas Clssica pudessem

    gozar do estatuto de cidado e, por conseguinte, para que pudessem

    exercer a sua plena cidadania na plis. Como resume bem Robert

    Muller, esse sentido poltico do adjetivo livre permite que seja

    caracterizado de tal forma o homem que possui um certo nmero de

    prerrogativas, especialmente no que diz respeito ao direito ao

    exerccio da soberania (1997, p. 47).

    Essa caracterizao poltica ope, por exemplo, os prprios

    cidados com direito participao nas assembleias, os ditos homens

    livres, a alguns estrangeiros (ksnos), que, apesar de possurem o

    status de livres7, no possuam os mesmos direitos polticos dos

    cidados. A caracterizao poltica do homem livre atravs do uso do

    adjetivo eletheros , contudo, mais frequente no sentido que Muller

    chama de seu uso vulgar (p. 69): trata-se da oposio livre/escravo

    (eletheros/dolos), a qual aparece como a primeira acepo da

    entrada eletheros em todos os dicionrios consultados8. Com efeito,

    7 Essa oposio pode ser atestada em vrias passagens de textos antigos. HANSEN (2010, p.

    2, n. 11) elencou vrias passagens nas quais os estrangeiros so tidos como livres. 8 Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, consultamos, alm do importante Vocabulaire

    des institutions indo-europennes, de mile Benveniste (1993), os seguintes dicionrios: i. BAILLY, Anatole. Le Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Franais (2000) ; ii. CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire Etymologique de La Langue Grecque (1970) ; iii. LIDDELL, Henry; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon (2012), doravante

    citado como LSJ.

  • 19

    trata-se do mais antigo sentido de eletheros, sendo, inclusive,

    atestado nos poemas homricos (HANSEN, 2010, p. 2). Essa oposio

    se faz importante por diversos motivos, sendo os principais a

    possibilidade de se deslocar sem dificuldades para os que so livres e

    a exposio a castigos corporais, que era limitada aos escravos.

    As suas acepes, so, de fato, numerosas9, e por isso no

    parece desprovido de sentido verificar a origem do termo. Claude

    Romano (2002, p. 341) esclarece que o durante muito tempo a

    origem do termo eleuthera estaria ligada ideia de ir aonde se

    deseja, uma vez que o radical eleuth- prximo do radical do futuro

    do verbo ir (rkhomai), elth-. Assim, o significado poltico, que

    contrape o homem livre ao escravo, teria esse sentido porque o

    homem considerado livre era aquele que podia se deslocar como bem

    entendesse.

    Essa interpretao da origem do eletheros, apesar de

    explicar muito bem um dos sentidos desse vocbulo, , contudo,

    considerada ultrapassada10. No seu Vocabulaire des institutions indo-

    europennes, Benveniste (p. 322-323) associa o eletheros a uma

    forma antiga, o *(e)leudheros, cuja raiz, *leudh-, que significa

    crescer, se desenvolver, faria com que o eletheros representasse o

    homem que conseguiu se desenvolver de forma completa, ampla11.

    Essa raiz tambm permitiria que o livre fosse entendido num sentido

    social, o qual designaria o pertencimento a uma cepa, o equivalente

    de ser nascido em uma determinada comunidade. A contribuio de

    Benveniste apresenta um grande ganho para essa noo, visto que

    aqui h um ideal de homem que pode se desenvolver e se tornar

    pleno, graas ao da educao (paidea).

    9 Hansen identifica ao menos nove sentidos em seu artigo Democratic Freedom and the

    Concept of Freedom in Plato and Aristotle (2010). 10

    O prprio Claude Romano (2002) e Robert Muller (1997) consideram que essa forma foi, primeiramente, superada pela explicao de Benveniste. Contudo, como veremos, h outras interpretaes que parecem mais pertinentes questo. 11

    Para explicar esse sentido, Benveniste recorre a uma metfora vegetal: crescer e se desenvolver como uma planta, que desabrocha.

  • 20

    Contudo, como ressalta Muller (p. 50), mesmo esse

    significado parece no fazer jus diversidade dos usos encontrados

    na literatura grega. Com efeito, a cada vez que o termo livre

    seguido por um determinante, geralmente no genitivo, o seu uso

    parece designar o fato de estar livre de alguma coisa: livre do medo,

    ou, ainda, livre da ameaa de um inimigo12. Mais do que isso: o

    sentido do desenvolvimento pleno implica que no haja impedimentos

    para que esse crescimento possa chegar ao seu ponto final. Como

    uma planta que poderia crescer e vir a desabrochar dentro de

    determinadas condies, o homem tambm precisaria cumprir

    determinadas etapas dentro de certas condies para que pudesse

    desabrochar e atingir o seu pleno desenvolvimento para que fosse

    considerado livre. Se essas condies no forem cumpridas por

    qualquer tipo de impedimento, esse ideal de plenitude no poder ser

    alcanado, o que significa que esse sentido, por mais tentador que

    seja, traz, junto possibilidade de sucesso e de pleno

    desenvolvimento, a possibilidade do fracasso.

    Alm disso, o sentido que Arajo Jr. (2012, p. 33) chama de

    popular tambm um sentido muito diverso daquele que fora

    estabelecido por Benveniste, o que mostra que o termo j

    apresentada uma grande pluralidade semntica ainda na antiguidade,

    alm de indicar que no devemos nos guiar apenas pelo seu sentido

    originrio. Trata-se do sentido que permite que cada homem livre

    viva da maneira que ele quiser: dzn hs boleta tis. Esse sentido

    aparece em fontes muito diversas13, o que corrobora a ideia de que

    essa seja, de fato, a acepo mais popular do eletheros. Hansen

    (2010, p. 6) ressalta, contudo, que esse tambm o sentido mais

    controverso do termo, pois em algumas passagens o seu uso parece

    12

    O prprio Muller traz esses exemplos da obra de Eurpedes (cf. p. 50, n. 4). 13

    Hansen (2010, p. 6, n.19) elenca vrias passagens em Herdoto, Tucdides, Plato, Iscrates e Aristteles. Muller (1997, p. 70, n. 3) tambm apresenta uma lista de passagens. Alm das j citadas, Muller traz ainda Xenofonte, Demstenes, Sfocles e vrias outras passagens em Plato.

  • 21

    estar restrito ao modo de se viver publicamente no regime

    democrtico, em outras esse princpio parece ser usado apenas na

    esfera privada e no na pblica. De toda forma, dado o elevado

    nmero de fontes que se valem desse sentido do termo, essa

    acepo parece ter um valor importante ao menos na plis ateniense.

    No temos a inteno aqui de examinar todos os sentidos

    possveis do adjetivo eletheros na antiguidade, uma vez que nossa

    pesquisa visa, sobretudo, a anlise de alguns usos precisos do

    substantivo que derivado desse adjetivo: a eleuthera. Tendo em

    vista o nosso objetivo, parece-nos importante ressaltar que o

    eletheros era uma noo que integrava a vida comum na plis e,

    assim como acontece com boa parte dos termos que acabam

    ocupando um lugar central no exame filosfico, a apropriao

    filosfica s acontece em uma etapa subsequente, a qual pode

    aprofundar um determinado significado, especificar o sentido de uma

    determinada palavra ou de um determinado uso, ou ainda subverter

    completamente o seu significado mais comum. O que nos parece

    importante ter em mente o que Muller nos adverte: Plato utiliza

    uma palavra e uma noo que j existiam antes dele e que fazem

    parte das vrias outras noes que ele herda (p. 46-47). Ou seja,

    ainda que a filosofia tenha como tarefa o exame de determinados

    conceitos, h um valor inerente a esses termos que precedem o

    exame filosfico e esse valor no pode ser negligenciado.

    O que peculiar no tratamento platnico da noo de

    eleuthera que, como se trata de um substantivo derivado de um

    adjetivo cujo uso era frequente e entendido por todos os que

    estavam em contato com a obra platnica, nas suas aparies no h

    uma preocupao maior em definir esse conceito, tudo acontece

    como se o essencial j tivesse sido dito e como se houvesse um

    consenso implcito sobre o significado desse termo. Ou seja,

    pressupe-se que o leitor ou ouvinte dos dilogos j tivesse em

  • 22

    mente o contedo semntico do adjetivo eletheros. Isso

    problemtico porque, como dissemos, a palavra provm da

    linguagem comum, ordinria, e a apropriao filosfica do termo no

    pode ser dissociada de uma nova elaborao. Muller (p. 64) lembra

    ainda que essa apropriao que o discurso filosfico faz do termo

    eleuthera impe ao seu uso uma significao e uma determinao

    especficas dentro de um sistema considerado.

    No caso de Plato, o que se segue desse uso sem um

    tratamento elaborado, sem o cuidado de definir o termo e de

    desenvolver a discusso sobre os seus significados que, apesar da

    introduo de determinados usos de eletheros e eleuthera ser

    discreta, o significado que dado a esses termos so essenciais para

    que se possa compreender o sentido de determinadas crticas que so

    tecidas ao longo dos dilogos. No caso da Repblica, o caso mais

    evidente o da crtica democracia, a qual se vale do conceito de

    liberdade em muitos trechos, sem que se discuta, de fato, o que

    significa essa liberdade e o que significa dizer do homem que habita

    uma cidade democrtica que ele livre.

    Acreditamos que, embora o contedo semntico

    pressuposto desses termos no seja explicitado, o autor dos dilogos

    sabia exatamente o que estava em jogo quando fez a opo de

    empreg-los em determinados contextos da Repblica, uma vez que,

    como veremos, em algumas passagens o sentido de eleuthera e

    mesmo de eletheros muito diverso do sentido popular. Por isso

    concordamos com Muller quando ele afirma que Plato percebeu

    lucidamente as implicaes da noo, da qual ele faz questo de

    expor os riscos do uso desmedido, e que ele consegue, alm disso,

    atravs de uma anlise que decorre desse uso, traar os contornos

    essenciais de um uso contrrio ao desmedido, o que talvez seja o

    nico autntico (p. 68).

  • 23

    Parece-nos, portanto, haver um significado de eleuthera

    que integra a economia da Repblica, o qual decorre do sentido

    popular como um desdobramento filosfico. Com efeito, Hansen

    (2010, p. 1) tambm ressalta que, em contraste a um sentido

    popular de liberdade poltica, h um sentido filosfico alternativo da

    concepo de eleuthera que aparece nos textos de Plato e

    Aristteles14. Para Hansen, esse seria o nico tratamento que poderia

    identificar do que realmente se trata quando se fala da eleuthera15.

    Esse pretenso significado autntico da liberdade filosfica,

    no entanto, ocupa um lugar de pouco destaque nos estudos

    platnicos. Com efeito, ao analisar a situao da literatura quanto

    noo de eleuthera nas principais obras que se dedicam ao autor dos

    dilogos, Muller nota que a situao est longe de ser considerada

    favorvel:

    Sem ter a inteno de tecer uma lista exaustiva [da falta de ateno que a noo de liberdade

    recebe nesses estudos], preciso notar que as

    obras de referncia mais utilizadas16 no contm

    mais do que algumas breves pginas sobre a liberdade, isso quando no se restringem a simples

    aluses, alm do fato de que se trata apenas, na

    maior parte dos casos, do sentido poltico da

    liberdade (1997, p. 21).

    Quase vinte anos se passaram desde a publicao da obra

    de Muller e o quadro hoje no muito diferente. Alguns artigos

    isolados tm sido publicados, mas a questo da liberdade enquanto

    conceito filosoficamente relevante ainda est longe de ser

    considerada essencial nas pesquisas que se dedicam ao corpus

    platnico. Como o tema de nossa pesquisa justamente os usos do

    14

    Apesar de reconhecermos o quo rica seria uma abordagem que pudesse expor tambm como Aristteles se apropria dessa noo popular de eleuthera, no mbito de nossa pesquisa nossa dedicao ser exclusiva ao tratamento do conceito de liberdade em Plato, mais especificamente na Repblica. 15

    In particular Platos and Aristotles understanding of what freedom is really about (Hansen, 2010, p.1. Destaque nosso). 16

    Cf. p. 21, n.3 para algumas dessas referncias.

  • 24

    conceito de eleuthera na Repblica, faremos a seguir uma breve

    introduo dos usos desse termo no dilogo, a fim de fixarmos a

    termologia que utilizaremos ao longo de nosso trabalho.

  • 25

    2. A ambivalncia do conceito de eleuthera na Repblica

    Depois de verificarmos que uma ampla gama de sentidos

    faz parte do significado de eletheros na cidade antiga, de se

    esperar que boa parte dos diversos sentidos evocados na seo

    anterior tambm integre a construo dialgica da Repblica. De fato,

    nesse dilogo encontram-se quase 70 passagens nas quais o conceito

    de eleuthera se faz presente. Verifiquemos, ainda que de forma

    breve, como eles se apresentam nessa obra.

    O sentido que chamamos de vulgar de eletheros, que se

    contrape ao escravo, dolos, est presente, por exemplo, no oitavo

    livro da Repblica, no qual as formas de governo corrompidas so

    analisadas. Depois de caracterizar o regime timocrtico, baseado na

    honra, trata-se do homem correspondente a essa forma de governo.

    Em 549a dito que com os escravos (dolois) o homem que vive em

    uma timocracia rude (grios), ao passo que com os homens livres

    (eleuthrois), ele civilizado, pois foi educado de maneira adequada

    (hsper ho hikans pepaideumnos). Aqui fica clara a oposio entre,

    por um lado, o homem que integra a classe dos livres e possui alguns

    privilgios, e, por outro lado, o escravo, que, por sua vez, no

    merece receber o mesmo tratamento dispensado aos homens livres.

    Tambm no oitavo livro da Repblica, depois de explicar o

    surgimento do regime democrtico, quando a cidade oligrquica

    adoece e passa a lutar contra ela mesma, essa forma de governo

    caracterizada da seguinte forma:

    Em primeiro lugar, os homens no so livres (eletheroi) nessa cidade? No vigora em toda a

    cidade a liberdade (eleutheras) e a garantia do

    direito de livre expresso e tambm a licena de

    nela se fazer o que se queira (ka eksousa en auti poien hoti tis boletai)? (557b4).

  • 26

    Assim, possvel notar que o sentido popular da eleuthera, segundo

    o qual cada um tem a liberdade para agir da forma que desejar,

    tambm faz parte da economia do dilogo.

    Ainda no oitavo livro, aps o exame da forma de governo

    democrtica, cujo fundamento, como vimos, a prpria eleuthera,

    as personagens do dilogo passam a analisar de que maneira a pior

    das formas de governo, a tirania, vem a ser. Nessa passagem dito

    que at os animais em uma tal situao so livres, por esse motivo

    at os cavalos (hppoi) e os burros (noi) tm o costume de andar

    com toda a liberdade (pny eleuthrs) e altivez pelas estradas

    (563c-d). Aqui, apesar de se tratar de uma passagem que um misto

    de comicidade e ironia, sobre a qual nos deteremos mais adiante,

    parece que podemos encontrar o sentido que liga o radical eleuth- ao

    radical futuro do verbo rkhomai: elth-. Com efeito, aqui o sentido do

    adjetivo eletheros que representa aquele que pode ir e vir sem

    restries encontrado.

    No terceiro livro da Repblica, Scrates e seus

    interlocutores esto preocupados com a educao que deve ser

    dispensada ao guardio da cidade que eles esto a fundar no

    discurso. Uma das qualidades que deve integrar o carter dos

    guardies a coragem e por isso alguns versos homricos utilizados

    na educao precisam ser eliminados. Como esses homens corajosos

    no devem temer a morte, preciso que esses homens sejam livres

    (hos de eleuthrous 387b5). Nessa passagem, atravs de um

    aperfeioamento que pode ser alcanado graas a um determinado

    procedimento paidutico, encontramos o sentido de eletheros que,

    de acordo com Benveniste, seria derivado de uma forma antiga, cujo

    radical seria *leudh. Nesse caso o livre tem por significado aquele

    que pode crescer e se desenvolver para atingir um certo ideal de

    homem.

  • 27

    Pois bem, constatamos assim que o uso desse conceito na

    Repblica contempla ao menos uma boa parte da gama de

    significados que o eletheros pode assumir. Porm, mais do que

    elencar as passagens nas quais a liberdade est em jogo, o que nos

    interessa , antes, dar um sentido a essa pluralidade de significados

    no interior da obra.

    Embora esse conceito seja mencionado apenas

    esporadicamente e sem um desenvolvimento argumentativo na maior

    parte do texto, encontramos, de fato, tanto o sentido vulgar, que

    ope o homem livre (eletheros) ao escravo (dolos), quanto o uso

    cujo sentido atribui ao homem livre um certo ideal de

    aperfeioamento, o qual permite que o indivduo se desenvolva

    dentro de determinadas condies, entre elas a paidea. Acreditamos

    que esse ideal de pleno desenvolvimento, que est associado ao seu

    sentido etimolgico segundo Benveniste, possa ser identificado, na

    maior parte do seu emprego nesse dilogo, com o sentido vulgar da

    eleuthera.

    Com efeito, na maior parte dos casos em que se ope o

    eletheros ao dolos na Repblica, Plato no est simplesmente

    atentando para o fato de que certos homens possuem direitos

    polticos e outros so excludos da tomada de deciso na plis. H

    uma sorte de valor que est por trs do uso do adjetivo eletheros

    nesse caso. Esse valor nos parece ser fortemente positivo, uma vez

    que ele aparece em contextos nos quais o que est em jogo o tipo

    de homem que se espera formar na mais bela cidade, cujo objetivo

    fazer com que ele seja, como a cidade, a kallpolis, to excelente

    quanto possvel.

    Assim, ao que nos parece, possvel reunir esses dois

    significados distintos de eleuthera em torno do valor que est por

    trs do seu emprego na economia do dilogo. Como observa Muller

  • 28

    (1997, p. 45), a liberdade no uma noo como as outras, pois ao

    falarmos de liberdade j pressupomos que o que est em jogo um

    valor17. De fato, ningum, ainda em nossos dias, assumiria uma

    posio contrria liberdade. Seja qual for o significado que

    dispensamos ao termo, a liberdade aparece sempre como um valor

    essencial a ser resguardado. Na Repblica, a liberdade como um ideal

    de desenvolvimento parece encontrar o seu lugar, embora a

    explorao desse significado ainda seja discreta nos estudos

    platnicos. Essa liberdade a que chamaremos de liberdade positiva

    no desenvolvimento de nossa pesquisa, pois ela visa a alcanar um

    ideal de aperfeioamento humano, limitado, verdade, dadas as

    condies que envolvem a nossa prpria existncia material, mas,

    ainda assim, supomos que esse sentido se faz presente em

    determinadas passagens do dilogo e um dos objetivos de nossa

    pesquisa determinar em que consiste essa liberdade, se que

    possvel caracteriz-la.

    Se falamos, em um certo sentido, de uma liberdade

    positiva, porque supomos que tambm exista no interior da obra

    um sentido antagnico, o qual chamaremos de liberdade negativa.

    Esse tipo de liberdade, ao que nos parece, pode ser identificado com

    o seu sentido popular, segundo o qual o homem livre pode fazer

    aquilo que deseja (poien hti tis boletai). Como veremos, em parte

    significante das passagens que se referem a esse sentido de

    eleuthera, especialmente no oitavo e no incio do nono livro da

    Repblica, a liberdade aparece associada a excessos e prpria

    noo de licena (eksousa), a qual permite que o indivduo aja de

    acordo com a sua organizao interna e se dirija para aquilo que lhe

    apraz. Esse sentido de eleuthera parece-nos ser essencialmente

    negativo, pois as aes regidas por esse tipo de liberdade geram

    17

    Muller supe ainda que a liberdade o valor supremo, mas no vamos entrar nesse aspecto da discusso.

  • 29

    consequncias que no so desejveis para o prprio homem e nem

    para a cidade que ele habita.

    Segundo o que expusemos, parece haver, ento, dois

    valores antagnicos associados eleuthera no dilogo que nos

    propusemos a estudar, por isso que passamos de uma pluralidade

    de significados a uma ambivalncia do conceito de liberdade. Esses

    sentidos so chamados por Arajo Jr. de rivais (2012, p. 28).

    Acreditamos que essa caracterizao muito feliz, pois quando se

    examina a eleuthera na Repblica exatamente isto o que se

    encontra: h, por um lado, um sentido de liberdade que permite que

    o indivduo se aprimore e se desenvolva, sendo essa liberdade,

    portanto, benfica e essencialmente positiva; ao passo que h, por

    outro lado, uma liberdade que permite que o indivduo dirija a sua

    ao da forma como ele queira e, dentro das circunstncias nas quais

    essa liberdade aparece de forma mais importante no dilogo, esse

    sentido essencialmente negativo e rivaliza, portanto, com o

    primeiro.

    Parece-nos, entretanto, importantssimo ressaltarmos que

    no a prpria formulao fazer o que se queira (poien hti tis

    boletai), quando utilizada para caracterizar a liberdade, que a torna

    essencialmente negativa. Seria apressado adiantarmos que essa

    formulao pode, dentro de uma srie de condies, representar a

    ao do homem que , de fato, autenticamente livre, pois essa

    suposio depende de uma srie de argumentos que sero

    desenvolvidos ao longo de nossa pesquisa. Mas preciso, desde j,

    que se entenda que no o fato de fazer o que se deseja que

    determina essa liberdade como sendo necessariamente negativa.

    dentro do contexto dialogado da obra que veremos que so as

    condies dentro das quais se faz o que se quer que essa liberdade

    poder ser caracterizada como negativa, e isso o que acontece na

    maior parte do tratamento da liberdade na Repblica.

  • 30

    Antes de passarmos anlise do texto, gostaramos de

    ressaltar que a dupla caracterizao da eleuthera que apresentamos

    nesta seo no uma inveno nossa. Com efeito, Robert Muller

    (1997) publicou o resultado de uma longa pesquisa no corpus

    platnico na qual o seu objetivo precpuo parece ser a caracterizao

    do sentido positivo da liberdade. Esse sentido positivo muito

    prximo do que trataremos em nossa pesquisa. O escopo do seu

    trabalho , no entanto, muito diferente do nosso, uma vez que ele

    visa a encontrar uma doutrina platnica da liberdade e para isso

    percorre diversos dilogos a fim de dar um sentido geral

    compreenso de liberdade na totalidade da obra platnica. Tambm

    Arajo Jr. (2012), como j citamos, prope essa organizao dos

    vrios sentidos de liberdade em torno de dois eixos rivais. Embora os

    objetivos de nossa pesquisa sejam similares, a metodologia de nossa

    pesquisa parece ser, no entanto, muito diferente. Ainda Hansen

    (2010) distingue a liberdade positiva da relativa dentro do estudo dos

    dilogos platnicos. O seu intuito, contudo, a compreenso da

    liberdade democrtica, por isso tambm julgamos que o nosso

    trabalho fundamentalmente diferente.

    Dito isso, passemos, finalmente, anlise do texto da

    Repblica, a fim de vermos se possvel distinguir os dois valores do

    conceito de eleuthera e, se for o caso, qual o ganho dessa

    interpretao para a compreenso da noo de liberdade.

  • 31

    II. A eleuthera em seu principal uso na Repblica

    Para entendermos em que sentido o termo eleuthera

    empregado na Repblica, iniciaremos pela anlise da parte da obra

    na qual esse conceito mais abundante. Das 67 passagens de

    eleuthera e seus derivados18, mais da metade do seu uso se faz na

    anlise das formas de governo corrompidas que se encontra no livro

    VIII e no incio do livro IX. O fato de 34 ocorrncias desse vocbulo

    estarem presentes na descrio do processo degenerativo das

    possveis politeai no fortuito. Com efeito, a liberdade o princpio

    constitutivo da forma de governo democrtica e tambm a causa de

    sua prpria corrupo.

    Como sabemos, o livro VIII da Repblica retoma uma

    discusso que havia sido interrompida no final do livro IV. Trataremos

    de situar a discusso do livro VIII dentro da estrutura da obra, para

    em seguida procurarmos entender qual o sentido da eleuthera

    democrtica no dilogo.

    18

    Inclumos nesta contagem as ocorrncias e derivados do substantivo eleuthera, do adjetivo eletheros e de todas as formas verbais do verbo eleuther.

  • 32

    1. Contexto do livro VIII

    As principais ocorrncias de eleuthera e seus derivados na

    Repblica, como dissemos, encontram-se no livro VIII da Repblica, o

    qual examina as formas viciosas de governo segundo uma forma de

    governo paradigmtica estabelecida nos livros centrais da obra.

    Tratemos, portanto, de situar primeiramente o contexto no qual se d

    a discusso sobre as formas de governo, a fim de que possamos, por

    um lado, examinar de forma mais profcua o sentido da liberdade

    apresentada na forma de governo democrtica e, por outro lado,

    entender com base em quais argumentos as formas de governo

    viciosas so sistematicamente desqualificadas.

    A primeira vez em que feita uma aluso s formas de

    governar uma cidade se encontra no livro I, quando a personagem

    Trasmaco defende que ser justo significa agir de acordo com o que

    vantajoso para o que mais forte (338c), o qual, na passagem

    seguinte, identificado com aquele que est no poder (338e 339a).

    O que se segue no discurso de Trasmaco visa a enfrentar as

    objees da personagem Scrates. A bibliografia especializada h

    muito discute sobre a interveno enrgica de Trasmaco no primeiro

    livro da Repblica. Para ns, no interessa discutir se Trasmaco

    sustenta uma ou duas teses ao longo de sua exposio19, mas cabe

    notar que a defesa de sua tese, a saber, que a justia aquilo que

    vantajoso apenas para quem est no poder, problemtica porque

    vai de encontro ao que Scrates e seus interlocutores acreditam ser o

    melhor para a cidade e para o indivduo ao longo do dilogo20. Essa

    passagem nos interessa porque, alm de ser nela que aparece a

    primeira aluso s formas de governar uma cidade (338d6-7), ela

    aponta para uma questo central que ser discutida ao longo do

    19

    Cf. Trabattoni (2011). 20

    Para eles o governo em uma cidade excelente no deve ser estabelecido apenas em vista de uma ou mais classes, mas da cidade como um todo (Cf. 420b).

  • 33

    dilogo. Nessa passagem, Trasmaco pretende explicar que por mais

    forte (krettn21) ele entende os que esto no poder, os governantes

    (rkn22). Para ele, a justia em uma cidade no depende de sua

    forma de governo: seja em uma tirania, seja em uma democracia,

    seja em uma aristocracia, o que importa no seu discurso que o

    vantajoso para quem est no governo o que justo. A segunda

    parte de seu argumento ou o que seria o seu segundo argumento23,

    mostra que, ao menos na viso de Trasmaco, os governantes no

    agiro em funo de um bem alheio a eles, por isso eles sero

    necessariamente injustos (344 a-c). Na fala da personagem

    Trasmaco, embora o modo de agir tirnico se sobressaia nas aes

    individuais (344a6), no h a defesa de um modo de governar a

    cidade em detrimento dos demais. H, ao contrrio, o

    estabelecimento de uma ligao necessria entre estar no governo e

    ser injusto. Nas palavras de Trabattoni: cada um deseja o prprio

    til, enquanto a justia s e sempre a virtude dos fracos que

    realizam o til do mais forte; quem detm o poder ser

    naturalmente, automaticamente e necessariamente injusto (2011, p.

    96). Essa uma das razes pelas quais a tese trasimaqueana no

    pode ser aceita por Scrates e demais interlocutores. Para rejeit-la,

    no apenas ser necessrio encontrar o que a justia nela mesma e

    demonstrar que a vida justa mais feliz que a injusta, mas, talvez,

    tambm seja preciso mostrar que h uma forma de governo na qual

    h maior probabilidade de se obter justia para a cidade como um

    todo e, assim, fazer a cidade ser feliz. Essa forma de governo a

    aristocracia, o governo dos melhores, e ela est exemplificada na

    kallpolis, a mais bela cidade, fundada no discurso, na qual o poder

    no est necessariamente contaminado pela injustia. Assim, a

    primeira apario dos modos de governar a cidade no parece ter um

    21

    . (338c1-2) 22

    , (338e6 338a2) 23

    Se levarmos em conta que Trasmaco sustenta duas teses, como defende Vegetti (apud Trabattoni, 2011).

  • 34

    peso relevante na argumentao de Trasmaco, mas serve para

    desencadear uma discusso que vai muito alm daquela das formas

    de governo, embora no prescinda dela.

    No que tange discusso sobre as politeai, no final do livro

    IV, as outras formas de governo, diferentes da excelente, so

    enumeradas para que sejam comparadas com o que havia sido

    desenvolvido at ento. Aqui h, claramente, a primazia de um

    modelo de cidade em detrimento dos demais. Nessa passagem,

    Scrates afirma que h apenas uma excelncia, enquanto o vcio

    pode assumir inmeras formas, dentre as quais, quatro merecem

    destaque (445c). A partir disso, a forma de governo excelente

    descrita at ento no dilogo elogiada e em seguida h a pretenso

    de mostrar que as outras formas de governo correspondem

    necessariamente a quatro tipos de vcio:

    Boa e reta como chamo tal cidade e tal forma de governo, e o mesmo digo de tal homem. E, se essa

    forma boa e reta, as outras so ms e falhas em

    relao administrao das cidades e formao da alma dos indivduos, sendo quatro as espcies de vcio

    que as atingem. (449a)

    Nesse momento Scrates pretendia enumerar os regimes

    polticos viciosos, como foi pedido pelo interlocutor Glucon. No

    entanto, essa discusso interrompida para tratar do que comum

    aos amigos (koin t phln) e s retomada no livro VIII.

    Trataremos de ressaltar as caractersticas da cidade

    paradigmtica que so relevantes para o nosso estudo, para que

    possamos, em seguida, entender de que forma as formas de governo

    surgem e se corrompem. Dentre tais formas est a democracia, cujo

    fundamento a liberdade.

  • 35

    1.1. Um paradigma que fundamenta a crtica s formas de governo

    Como vimos, Scrates e seus interlocutores se propem a

    fundar uma cidade no lgos, a fim de saber em que consiste a justia

    na cidade. A primeira constatao de Scrates que os homens no

    so autossuficientes (autarkh24 - 369b8), mas carentes de muitas

    coisas e, por isso mesmo, se estabelecem em cidades. Para fundar a

    cidade, preciso que as necessidades bsicas dos homens sejam

    supridas. Para tal, dois critrios so estabelecidos: o primeiro que

    cada indivduo dever dispor o seu trabalho para toda a cidade

    (369e) e o segundo que de cada indivduo dever cumprir apenas

    uma funo para que isso seja feito de maneira excelente (370c). Em

    seguida, so delineados os contornos da kallpolis. Destacaremos a

    seguir alguns pontos dessa cidade que so relevantes para a nossa

    pesquisa.

    Na elaborao da mais bela cidade, Scrates enumera as

    qualidades que tal cidade deve ter. So elas: a sabedoria, a coragem,

    a temperana e a justia. Esses atributos so tidos como

    fundamentais para a excelncia da cidade. A anlise das duas

    primeiras qualidades no apresenta maiores dificuldades. A sabedoria

    (sopha) a cincia (epistm) dos guardies, que faz com que esses

    homens tomem decises judiciosas. A coragem (andrea) a fora e

    preservao constante da opinio reta e legtima sobre o que

    constitui um perigo. No passo 430e, a temperana (sphrosn)

    definida como ordem e domnio de certos prazeres e desejos25. O

    domnio aqui a enkrteia, termo que caracteriza o homem que

    capaz de exercer o poder sobre si mesmo, ter controle sobre si

    mesmo. A caracterizao da temperana mais elaborada, como

    veremos a seguir, pois supe que h partes distintas na cidade. Por

    24

    Gigon (2003) destaca a importncia desse conceito, associado, de certa forma, liberdade, uma vez que a autarkh indica a independncia com relao aos outros. 25

    , ' ,

  • 36

    ora, limitemo-nos a dizer que definida como cidade temperante

    aquela que submete a pior parte de si mesma melhor. A quarta

    qualidade estava presente desde que as personagens decidiram

    iniciar a fundao da cidade, quando eles estabeleceram que cada

    indivduo deveria cumprir apenas uma funo na cidade, assim essa

    funo poderia ser cumprida da melhor maneira possvel. Scrates d

    ento, a sua definio do que lhe parece ser a justia (dikaiosn):

    Eis, meu amigo, o que, de certa maneira, pode ser o que a justia:

    cada um cumprir a tarefa que a sua (433b). Assim, essas quatro

    qualidades devero estar presentes na cidade para que ela possa ser

    excelente.

    A cidade e a alma temperantes, como dissemos, so

    compostas por partes. Para tratar da temperana, Scrates examina

    a expresso segundo a qual um homem ser dito temperante se for

    mais forte do que ele mesmo (krett d hauto)26. Acontece de tal

    expresso ser digna de riso, pois quem mais forte que si mesmo

    tambm mais fraco que si mesmo27. Em outras palavras, aquele que

    detm poder sobre si mesmo tambm aquele que se submete a si

    mesmo. preciso dar um sentido a essa expresso para que ela

    deixe de ser ridcula. Dizer que algum mais forte que si mesmo,

    de acordo com a sequncia do dilogo, significa que h uma

    hierarquia natural que diz respeito aos elementos constitutivos da

    alma e essa hierarquia deve ser observada para que o indivduo

    venha a ser temperante. Essa expresso significa que dentro do

    prprio homem (ni), em sua alma, h algo (ti) que melhor e algo

    26

    Optamos por traduzir krett em seu sentido mais literal: o que mais forte. Para htt, optamos por: o que mais fraco. Acreditamos que essa escolha denota melhor o sentido do vocabulrio que est em jogo do que a traduo da Anna Lia Amaral de Almeida Prado, que sugere traduzir a expresso krett d hauto como senhor de si mesmo. No se trata de uma simples relao de subservincia, o que est em jogo antes uma verdadeira guerra (krat) que travada no interior do prprio homem, assim como da cidade que habitada por esse tipo de homem. Sobre o uso deste termo na Repblica, ver ARAJO JNIOR (2011, p. 197-207). 27

  • 37

    que pior28. Para ser mais forte que si mesmo, preciso que o que

    melhor por natureza exera o seu poder sobre o que pior29 (431a).

    Assim, essa passagem parece indicar que h, dentro do prprio

    homem, ao menos duas partes: uma melhor e uma pior.

    Para saber se h os mesmos modos de ser no indivduo e na

    cidade, se indaga sobre trs faculdades humanas (432a-b): uma que

    nos torna capaz de aprender (manthn), outra que permite que nos

    irritemos (thym) e uma terceira, responsvel pelos nossos desejos

    (epithym). Cada uma dessas atividades realizada graas a uma

    mesma faculdade ou h trs faculdades diferentes? Realizamos cada

    uma dessas atividades com a alma inteira ou com uma parte dela?

    O primeiro passo que dado na inteno de responder a

    essas indagaes a enunciao do princpio da no contradio: o

    mesmo30 no pode realizar eventos contrrios (enanton) ao mesmo

    tempo (hma) em relao mesma coisa. Sendo assim, ser tomado

    em direo a algo e recusar esse algo so contrrios (437b).

    Dado o princpio da no contradio, como explicar o fato de

    algumas pessoas por vezes estarem sedentas, mas ainda assim no

    quererem (ethl) beber? (439c) A isso, Scrates responde com as

    seguintes palavras:

    Na alma deles h um elemento que lhes ordena que

    bebam e um outro que os retm, j que no o mesmo e tem domnio sobre o que lhes d ordens?31 (439c)

    28

    , 29

    , 30

    Aqui nos parece importante ressaltar que se trata efetivamente do mesmo (tautn) e no do mesmo sujeito, segundo a traduo de Prado (2006). Tambm Guinsburg (2012) e Pereira (2012) fazem essa opo. Isso porque o mesmo sujeito, o mesmo indivduo, poder sim, de acordo com a sequncia do dilogo, dirigir-se a algo e ao mesmo tempo recus-lo. A mesma parte do indivduo que no poder realizar aes contrrias simultaneamente, portanto manteremos apenas o mesmo no lugar de o mesmo sujeito. Pabn e Fernndez-Galiano (2006) traduzem tautn por mesmo e Leroux (2004) introduz o mesmo princpio, o que evita o problema do mesmo sujeito, mas, de certa forma, j antecipa o que est por vir. 31

    , , ;

  • 38

    Ou seja, aquilo que havia sido indicado agora

    demonstrado: h pelo menos dois elementos na alma. O que retm

    os apetites o que procede da razo (k logismo) e o que busca a

    saciedade dos apetites causado pelas afeces e doenas (di

    pathmthon te ka nosmtn). Nota-se que aqui, o uso de um

    vocabulrio essencialmente negativo em relao ao elemento

    apetitivo da alma j prepara o terreno para o que vir a seguir.

    Segundo o princpio da no contrariedade, preciso que esses

    elementos sejam distintos, pois exercem aes contrrias ao mesmo

    tempo, ento necessrio que tais foras se exeram em partes

    diferentes de nossa alma. Trata-se de dois elementos distintos: um

    racional (logistikn) e um outro que gira em torno dos apetites

    (epithymai) tais quais a sede, fome e de relaes sexuais, o qual

    desprovido de razo e apetitivo (alogistn te ka epithymtikn

    439d).

    At ento foram analisadas as faculdades responsveis pelo

    aprendizado e pelos apetites. A fim de dar conta da natureza humana

    como um todo, resta tratar de uma terceira faculdade, aquela

    segundo a qual nos irritamos. A histria de Lencio parece mostrar

    que h algo no homem que o impulsiona a fazer uma determinada

    ao, nesse momento a sua razo tenta fre-lo, ao passo que o seu

    desejo levar adiante o seu impulso. H ento um terceiro elemento

    na alma, que o mpeto (thyms 439e). Se a razo o melhor

    elemento de nossa alma, ao mpeto cabe ser aliado dessa primeira,

    de forma a auxili-la a combater o pior elemento, o apetitivo.

    Se o que expusemos do livro IV estiver correto, a cidade e a

    alma dependem de qualidades e de um certo ordenamento de suas

    partes para que sejam excelentes. H uma parte racional, que a

    melhor, uma apetitiva, que a pior, e uma terceira, impetuosa, que,

    no caso do bom ordenamento, estar em funo da primeira para

    auxili-la. As qualidades da alma e da cidade excelentes parecem

  • 39

    cumprir uma funo importante para garantir a observncia dessa

    hierarquia fundamental das suas partes. precisamente por cada

    uma de suas partes cumprir a funo que lhe prpria, que a alma e

    a cidade sero consideradas justas. Assim, a excelncia nelas

    depende do respeito a essa hierarquia fundamental, que em ltima

    instncia garantida pela justia.

    Quanto cidade paradigmtica, a temtica da saciedade dos

    apetites, que est relacionada com a liberdade, tratada sobretudo

    no incio do livro IV. Por isso, parece-nos importante ressaltar at que

    ponto a saciedade de determinados apetites lcita no contexto da

    cidade excelente.

    No incio do livro IV, Adimanto pergunta a Scrates se os

    guardies dessa bela cidade, que est sendo plasmada no discurso,

    sero felizes ainda que renunciem a bens, riquezas e mesmo ao ato

    de receber um salrio. Para responder a tal indagao, a personagem

    Scrates precisa recorrer a um dos pilares fundamentais da cidade, a

    saber, a sua unidade. A unidade da cidade excelente fundamental,

    por isso eles devem cuidar para que a cidade cresa somente at o

    ponto que, mesmo crescendo, possa ser uma s (423b).

    Com efeito, a tarefa que cabe a eles a guarda da cidade e

    de suas leis (421a), por isso eles devem privilegiar essa tarefa em

    detrimento do usufruto de bens ou riquezas. Eles devem fazer isso

    porque a meta que foi estabelecida quando a cidade foi fundada a

    felicidade da cidade como um todo e no apenas de uma das classes

    que a compem (420b). Fazer com que apenas uma classe seja feliz

    seria desrespeitar a unidade fundamental da cidade. Para que a

    cidade inteira seja feliz preciso respeitar aquilo que ser definido

    posteriormente como a justia: que cada um cumpra a tarefa que a

    sua. Dessa forma, os guardies e as demais classes participaro da

    felicidade o tanto quanto for possvel segundo a natureza (421c).

  • 40

    De acordo com essa passagem, podemos verificar que

    desde o ponto de partida do livro IV o tema do controle dos apetites

    j est, de alguma forma, sugerido nas linhas da Repblica: ao

    renunciar ao salrio, os guardies esto tambm abrindo mo daquilo

    que poderia ser objeto de desejo. No receber salrio significa no ter

    a licena de dedicar parte do seu esforo satisfao de apetites

    pessoais. Para eles a felicidade no plano individual garantida pela

    felicidade de toda a cidade e por isso se faz necessrio que o trabalho

    de cada um seja posto disposio da cidade. Essa perspectiva

    confirmada nas pginas seguintes do texto, quando se afirma que os

    guardies cheios de ouro e se entregando aos prazeres se tornariam

    camponeses felizes (421b) ou qualquer outra coisa que no guardies

    (420d).

    O rigor com o qual esses apetites devem ser repreendidos

    ainda maior porque, no que diz respeito cidade, os guardies so

    os nicos que tm a oportunidade de bem administr-la e faz-la

    feliz (421a). Se os guardies se dedicassem s tarefas que no so

    as suas, isso corresponderia perda de unidade na cidade, o que de

    forma alguma seria considerado uma vantagem.

    A educao dos guardies recebe um grande destaque no

    interior da obra, especialmente nos livros II e III. O que consta no

    livro IV no como deve ser essa educao, mas a importncia da

    mesma para que uma cidade possa ser considerada excelente. Com

    efeito, nele dito que a educao a nica ordem que os guardies

    devero respeitar, pois ela suficiente (hkanos) para que os homens

    venham a ser moderados (metros 423e-424a). Acreditamos que a

    escolha do termo moderado no foi feita de forma fortuita. Ao

    contrrio, em tal cidade preciso velar para que tais homens no

    cometam excessos, pois cedendo aos apetites, os guardies estariam

    fazendo qualquer coisa que no sua funo precpua, a de guardar a

    unidade da cidade acima de todas as coisas. De onde vemos mais

  • 41

    uma vez a importncia do controle dos apetites. Tal controle deve ser

    feito desde cedo atravs da educao, pois ela o impulso (horm)

    que determina a direo que os homens seguiro posteriormente

    (425b-c).

    Gostaramos de pontuar ainda, que ao longo da fundao da

    cidade algumas normas so propostas. H como que um esqueleto,

    um esquema bsico de regras destinadas organizao da cidade

    atravs da harmonia das classes que a compem (426d). Para

    garantir a ordem na cidade, essas leis devem ser conservadas.

    Parece-nos que essas normas tm o propsito de impedir a

    transgresso de determinados tipos de apetite, uma vez que elas

    devem ajudar os que habitam a bela cidade a manter intacto o que

    foi fornecido na educao.

    O exemplo utilizado pela personagem Scrates para

    caracterizar tal situao bastante significativo. Ele fala de homens

    que esto doentes e por no controlarem o que fazem, por falta de

    regras e por no quererem abandonar um mau regime de vida,

    acabam sendo medicados por todos os tipos de remdios e at

    mesmo encantamentos sem, no entanto, conseguir resultado algum

    (425e-426b). Esses doentes precisam abandonar a embriaguez, o

    excesso de comida e os prazeres do amor para encontrar a cura. O

    controle dos excessos por meio da educao e das normas o

    verdadeiro remdio para esse tipo de doena. Da mesma forma,

    por meio do regramento e do controle dos apetites que uma cidade

    poder estabelecer uma harmonia capaz de garantir a ordem e a

    felicidade no interior da mesma.

    Conforme o que expusemos at ento, o tratamento da

    questo dos apetites, apesar de no ser feito de maneira explcita,

    determinante para a direo que a cidade deve tomar se quiser se

    aproximar o tanto quanto possvel da cidade feliz. Vejamos agora, a

  • 42

    relevncia da problemtica dos apetites, considerando as qualidades

    da cidade e do homem excelente.

    Como vimos, a temperana ordem (ksmos) e domnio

    (enkrteia) no controle de determinados prazeres (hdona) e

    apetites (epithymai). S que acontece de no serem todos os

    prazeres e apetites que devem ser controlados, mas apenas alguns

    (tines). evidente que controlar alguns prazeres fundamental para

    que a cidade possa ser temperante e, por conseguinte, excelente.

    Mas quais so esses prazeres? A resposta para tal questo no nos

    ser dada de imediato32. Em ltima instncia, s a partir do livro VIII

    encontraremos a distino dos apetites necessrios e no

    necessrios, e essa discusso s ser encerrada no livro IX, aps a

    comparao dos modos de vida do filsofo e do tirano. Contudo,

    acreditamos encontrar indicaes claras de quais apetites so lcitos

    na kallpolis j no livro IV.

    Das trs partes que compem tanto o homem quanto a

    cidade, h uma delas que ligada diretamente aos apetites: o

    epithymtikn. Parece-nos importante ressaltar que, de antemo, a

    faculdade apetitiva descrita em 436a-b como sendo aquela,

    segundo a qual desejamos os prazeres da comida e da gerao de

    filhos e tambm outros similares33. Essa lista reiterada em 439d34.

    Um sinal deque essa lista j aponta para o que ser desenvolvido

    posteriormente na obra que ela reaparece aps toda a

    argumentao que visa a mostrar que a vida mais justa e mais feliz

    a do homem que reina (basile), no livro IX, no contexto da

    tripartio da alma, em 580e dito que a parte apetitiva assim

    32

    KAHN (1987, p. 88) chega a afirmar que Plato no poderia apresentar a tese do governo da razo de forma mais forte no livro IV antes de desenvolver sua concepo de filosofia, o que s ocorrer nos livros centrais do dilogo. Contudo, para condenar os regimes polticos no livro VIII, faz-se necessrio que a obra apresente antes desse livro argumentos que tornem essa desaprovao legtima. isso que procuramos evidenciar agora. 33

    34

  • 43

    chamada por seu forte apetite no que diz respeito comida, bebida,

    relaes sexuais e outros derivados destes35.

    Voltando ao livro IV, em seguida, busca-se saber qual o

    objeto desses apetites primordiais36. A sede o apetite analisado no

    dilogo, mas supomos que o mesmo vale para a fome e os apetites

    sexuais. Sabemos que a sede o desejo de beber algo e a bebida ,

    portanto, o seu objeto natural. Contudo, Glucon traz para a

    discusso o fato de algumas pessoas quererem beber algo frio,

    quente ou bom, em suma, algo que venha como um acrscimo,

    tornando um apetite simples, como a sede, em um apetite especfico,

    como o desejo de beber algo quente. A resposta de Scrates a essa

    colocao simples: todos desejam o que bom (438a). Simples e,

    no entanto, enigmtica. Ou, como bem nota Lorenz (2006, p. 29-30),

    o Scrates dessa passagem no suficientemente cuidadoso com o

    significado do predicado bom: h uma falta de preciso atpica

    sobre um tema que bastante caro a essa personagem. Por outro

    lado, entre as vrias qualidades atribudas bebida por Glucon

    (quente, fria, boa, em maior ou menor quantidade), justamente o

    fato de desejar beber algo bom que interessa a Scrates.

    Ao afirmar que todos desejam o que bom, Scrates no

    est simplesmente concordando com Glucon, mas est antes

    delimitando a esfera do que bom: bom aquilo que naturalmente

    pertinente a algo, pois cada objeto de desejo s pode ser pertinente a

    uma coisa (438b). Assim, ter apetite por algo especfico, como algo

    quente ou frio, um acrscimo ao apetite, algo que extrapola aquilo

    que natural para a saciedade da sede. De forma que os objetos de

    35

    36

    Ao falar de desejos primordiais aqui estamos nos referindo aos que visam satisfao dos prazeres da comida e da gerao de filhos. O que est em jogo aqui a anlise da faculdade desiderativa, ento importante no anteciparmos outros possveis tipos de desejo, como o do mpeto e o da razo, que, como bem viu ROBINSON (2007, p. 96), s no livro IX sero enunciados de forma clara: cada parte da alma tem seus prprios prazeres, desejos princpios especficos.

  • 44

    apetite que devem ser buscados so aqueles pertinentes satisfao

    dos apetites primordiais, ou seja, aqueles que so ligados nutrio

    ou gerao de filhos. Os demais apetites, inclusive aqueles que vm

    como um acrscimo, por consequncia, no so necessariamente

    bons e devem ser evitados.

    Se a razo o melhor elemento de nossa alma, ao mpeto

    cabe ser aliado dessa primeira, de forma a auxili-la a combater o

    pior elemento, o apetitivo. Ocorre de este ltimo representar a maior

    parte da alma, cuja natureza insacivel (442a). Assim, retomando o

    mesmo procedimento adotado na cidade, no interior do homem

    preciso que a razo, que a menor das partes e a mais sbia, se una

    ao mpeto para de um lado combater (propolem) e de outro

    deliberar (boule) sobre quais so os apetites que podem ser

    saciados, ou, nas palavras do dilogo, quais so os inimigos externos

    (tos ksthen polemous 442b) que devem ser combatidos.

    Parece-nos que os verdadeiros inimigos so os apetites que

    no so naturalmente pertinentes a cada um dos apetites

    primordiais, que por sua vez, so aqueles cuja satisfao

    responsvel pela manuteno da vida (prazeres da nutrio em geral)

    e da espcie humana (prazeres da reproduo). Esses inimigos que

    devem ser combatidos so justamente aqueles que vm como um

    acrscimo ao objeto natural do apetite. Sendo assim, a saciedade dos

    apetites caracterizados como bons pela personagem Scrates parece

    ser lcita, ainda que deva antes passar pelo crivo da razo, a nica

    capaz de deliberar a respeito dessa importante questo.

    Assim, o que nos parece importante para o desenvolvimento

    de nossa pesquisa que h uma cidade paradigmtica fundada no

    discurso por Scrates e seus interlocutores, para que se encontre o

    que a justia e que torne possvel mostrar que a vida justa mais

    feliz que a injusta. Essa cidade deve integrar as quatro qualidades

  • 45

    fundamentais, a saber: a sabedoria, a coragem, a temperana e a

    prpria justia. Uma tal cidade deve ainda ser composta por trs

    partes, as quais devem estar dispostas segundo uma hierarquia

    fundamental a ser observada para que a mais bela cidade seja

    excelente: a parte racional deve governar, a parte impetuosa deve

    auxiliar a parte racional e a parte apetitiva deve se submeter s duas

    primeiras. O homem que vive nessa cidade, dada a analogia

    estrutural entre homem e cidade, deve tambm organizar-se

    internamente de acordo com a hierarquia fundamental. Ele pode

    saciar alguns apetites, mas somente os apetites primordiais, a saber:

    o apetite por alimentos, bebidas e relaes sexuais, para que no

    venha a cometer excessos e desequilibrar a hierarquia fundamental,

    imprescindvel para a manuteno da excelncia dentro da sua

    prpria alma.

  • 46

    1.2. Princpios que fundam e corrompem as formas de governo

    No incio do livro VIII Scrates descreve, enfim, quais

    seriam os vcios responsveis pelas doenas na cidade. Este livro

    repleto de metforas37 e trata das outras formas de governo como

    uma espiral descendente: cada uma delas regida por um princpio

    que as conduz a uma inexorvel degenerao em uma forma de

    governo ainda pior. Mas no s isso: as formas de governo aqui

    descritas se afastam paulatinamente do regime excelente, fazendo

    com que os pilares que garantiam a excelncia da kallpolis entrem

    em eroso e, assim, a felicidade em tais cidades seja uma meta cada

    vez mais difcil de ser alcanada.

    Este , pois, o sentido da investigao das formas viciosas

    de governo: tendo visualizado a justia na mais bela cidade, conhecer

    a injustia na sua forma mais extrema, de forma a saber em qual das

    cidades o modo de vida dos que a habitam ser mais feliz. Assim,

    ser possvel comparar a cidade mais justa com a mais injusta e

    decidir se a felicidade na cidade estar de acordo com a afirmao de

    Trasmaco ou de acordo com o que construram no lgos (545b).

    O homem que semelhante aristocracia, que o melhor,

    j foi analisado ao longo dos livros anteriores do dilogo e expusemos

    os seus traos relevantes para o nosso estudo na seo anterior. Com

    efeito, a alma desse homem corresponde constituio excelente,

    que, se regida pela justia, ordenar as suas partes de acordo com

    uma hierarquia fundamental.

    Para justificar a passagem de um regime descrito como

    perfeito para um que no o , Scrates recorre s Musas, que narram

    num tom jocoso o processo degenerativo. Trata-se de um regime que

    no inabalvel como o seu paradigma, mas que foi criado apenas 37

    Como a do desenvolvimento dos filhos em relao aos pais e a dos zanges, a qual exploraremos a seguir.

  • 47

    na semelhana deste e como tudo o que nasce, sofrer corrupo. A

    dissoluo do regime aristocrtico acontecer quando os guardies da

    cidade no se derem conta que existem ciclos aos quais todos os

    seres vivos esto sujeitos e, assim, as crianas nascidas em perodos

    no propcios no tero uma natureza homognea segundo as raas

    de Hesodo38, mas sero impuras. Dessa forma, mesmo os melhores

    dessa gerao tero uma natureza ambgua, j que os seus

    elementos constitutivos esto misturados, e a partir disso todo o

    equilbrio da cidade, que era mantido na aristocracia devido ao

    respeito da funo que cada um deve cumprir na cidade, estar

    comprometido.

    A primeira forma de governo a ser analisada a cretense e

    laconiana, conhecida por privilegiar as honras. Chamado de

    timocrtico, tal regime aparece como uma degenerao do

    aristocrtico. Dada a mistura das raas, os guardies de uma tal

    cidade estaro mais propensos guerra e ao dio (547a) e se

    voltaro para prioridades diferentes. Naqueles em que predomina o

    ferro (sdros) e bronze (khalks), o lucro, a posse de riquezas e

    terras sero visados. J naqueles cuja constituio

    majoritariamente de ouro (khrseos) e prata (argreos), a riqueza

    inerente s suas almas tentar conter os excessos dos demais.

    Apesar da violncia e oposio presentes em uma tal cidade, os

    guardies conseguem chegar a um acordo atravs da diviso de

    terras e casas, de forma que a excelncia da antiga constituio pode

    ser mantida. De fato, alguns elementos da aristocracia sero

    mantidos, mas devido ao desequilbrio interno dos indivduos, a

    educao deles privilegiar a ginstica em detrimento da msica, o

    que acarretar em graves problemas, como veremos a seguir.

    Principalmente, nos homens que vivem na timocracia faltar o

    comando da razo e, por isso, eles sero governados no pelo

    38

    Lembremos que a histria fencia j havia sido aludida em 414c-415d.

  • 48

    princpio racional das suas almas, mas pelo mpeto, e assim se

    tornaro amante das honras.

    O governo oligrquico se forma a partir do momento em que

    os homens da timocracia, que j no eram perfeitos, passam a

    esconder tesouros e prestar-lhes honras s escondidas. A partir da a

    riqueza passa a ser apreciada e a excelncia vai perdendo o seu

    valor, pois cuida-se sempre do que apreciado, mas descuida-se do

    que desprezado (551a). A constituio oligrquica ento definida

    atravs de uma lei censitria que determina que preciso ter fortuna

    para participar do governo. Uma cidade sob tal regime deixa de ser

    uma, pois os governantes, ricos, e aqueles que no possuem riqueza

    suficiente para exercer o poder passam a dividir o mesmo espao

    sem ter em vista o bem comum, mas apenas o da classe qual

    pertencem. H aqui, portanto, o rompimento do carter unitrio que

    era essencial na cidade excelente.

    Apesar de buscarem saciar o desejo de enriquecimento, os

    homens que vivem sob esse governo so capazes de reprimir os

    apetites no necessrios para alcanar a riqueza (554a), que o

    princpio valorizado nesse governo, de forma que ainda haja algum

    grau de coero do elemento apetitivo nesse governo, mas, ainda

    assim, esse elemento que governa a cidade e a alma oligrquicas.

    A degenerao da oligarquia inerente ao seu prprio

    princpio constituinte: no possvel saciar o desejo de riquezas. Os

    governantes, vidos pelo acmulo de fortuna, no impem limites ao

    des