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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO DESIGUALDADES SOCIAIS: ROUSSEAU E MARX Pablo Fabiano Barbosa Carneiro Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade de São Bento, do Mosteiro de São Bento de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Ética e Política Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni São Paulo 2013

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO

DESIGUALDADES SOCIAIS: ROUSSEAU E MARX

Pablo Fabiano Barbosa Carneiro

Dissertação apresentada ao Programa de Pós

Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade de

São Bento, do Mosteiro de São Bento de São Paulo,

como requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre em Filosofia.

Área de Concentração: Ética e Política Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni

São Paulo

2013

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AGRADECIMENTOS

A Deus, o que seria de mim sem a fé que eu tenho nele.

Ao Prof. Dr. José Carlos Bruni, pela sua atenção e dedicação na orientação.

Aos professores da Faculdade de São Bento e à Profª. Neide, que contribuíram

com aulas, mediações e sugestões para que eu pudesse construir este

trabalho.

A minha esposa Fabiana, a meu filho Luan, a minha enteada Lyrian, aos meus

pais, aos meus irmãos, e a toda a minha família, que, com muito carinho e

apoio, colaboraram na subtração das tarefas e na superação das dificuldades

enfrentadas ao longo desta dissertação.

A todos os professores, que foram tão importantes na minha vida acadêmica e

no desenvolvimento deste projeto de vida.

Ao grande amigo Mário, que compartilhou a caminhada, e comungou de ideias

e interlocuções para a elaboração deste material.

Aos amigos e colegas, pelo incentivo e apoio constantes.

Ao Centro Educacional da Fundação Salvador Arena, que motiva e alimenta a

minha alma docente.

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Sumário

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 7

CAPÍTULO I ..................................................................................................... 11

DESNATURAÇÃO HUMANA EM ROUSSEAU ................................................ 11

1. Histórico ................................................................................................. 12

1.1. A busca pelo homem natural ............................................................... 13

1.2. Estado de Natureza............................................................................. 17

1.2.1. Perfectibilidade ............................................................................. 20

1.3. Características do estado de Natureza ............................................... 21

1.4. Autoconservação ................................................................................ 23

1.5. Socialização e comparação ................................................................ 26

1.6. Desigualdades para Rousseau ........................................................... 29

CAPÍTULO II .................................................................................................... 33

ESSÊNCIA HUMANA EM MARX ..................................................................... 33

2. Histórico ..................................................................................................... 34

2.1. Homem e trabalho .................................................................................. 36

2.2. Sociabilidade humana ......................................................................... 43

2.3. Alienação humana............................................................................... 45

2.4. Propriedade privada ............................................................................ 52

2.5. Divisão do trabalho e da propriedade privada ..................................... 55

2.6. Desigualdades em Marx ...................................................................... 59

CAPÍTULO III ................................................................................................... 63

DESIGUALDADES: ROUSSEAU E MARX ...................................................... 63

3. Rousseau e Marx: Desigualdades .......................................................... 64

3.1. Constituição da propriedade privada ...................................................... 65

3.2 - Igualdade: um resgate do humano ....................................................... 70

3.3 – Liberdade: um princípio para a igualdade ............................................ 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 82

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo central analisar a questão da desigualdade

entre os homens gerada pela propriedade privada considerando duas grandes

obras filosóficas e políticas: o Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade entre os homens do filósofo Jean-Jacques Rousseau os

Manuscritos econômicos –filosóficos de Karl Marx.

No primeiro momento da proposta deste trabalho, há uma análise da obra de

Rousseau que descreve a passagem do homem hipotético em um estado de

natureza para o estado civil. No estado de natureza predomina no homem

características de igualdade e de compaixão entre si. Já no estado civil,

caracterizado pelas relações sociais institucionalizadas, o homem se vê

escravizado e injustiçado pelas desigualdades geradas pela propriedade

privada.

Em um segundo momento desse estudo, a obra de Marx apresenta um ser

humano que se realiza na história pelo trabalho. O trabalho é uma condição de

transformação do ser humano no mundo. Portanto, quando o trabalho passa a

ser de exploração, gerando um acúmulo de bens que se constitui na

propriedade privada, o homem passa a ficar sob a custódia de outros

inibindo a possibilidade humana de se expressar na sua forma integral e livre: a

sua realização enquanto ser. Essa realidade é chamada por Marx de alienação.

Portanto, as desigualdades causam certas deformidades éticas e morais que

redundam na degenerescência do homem. A busca pela liberdade e pela

igualdade pode ser um caminho a ser trilhado pela humanidade para resgatar

valores essenciais à sua compreensão e sociabilidade.

Palavras –chave:

Desigualdade, essência, estado de natureza, propriedade privada, estado civil,

degeneração, homem, alienação, trabalho, amor, liberdade, igualdade, política,

ética.

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ABSTRACT

This study aims at examining the issue of inequality between men generated by

private property considering two major philosophical works and political: the

Discourse on the origin and foundations of inequality among men the

philosopher Jean-Jacques Rousseau Manuscripts of Karl Marx.

At first the purpose of this paper is an analysis of Rousseau's work that

describes the passage of the hypothetical man in a state of nature to the civil

state. In the state of nature prevails in man characteristics of equality and

compassion to one another. In the civil state, characterized by institutionalized

social relationships, the man finds himself enslaved and wronged by the

inequalities generated by private property.

In a second phase of this study, the work of Marx presents a human story that

takes place in the work. The work is a condition of transformation of the human

being in the world. Therefore, when work becomes operational, generating an

accumulation of goods that is on private property, the man comes under the

custody of other inhibiting human possibility to express themselves in their full

and free: its realization while being. This reality is what Marx called alienation.

Therefore, inequalities cause certain ethical and moral deformities that result in

degeneration of man. The quest for freedom and equality can be a way to go to

redeem humanity values essential to their understanding and sociability.

Keywords:

Inequality, essence, state of nature, private property, marital status,

degeneration, man, alienation, work, love, freedom, equality, politics, ethics.

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RÉSUMÉ

Cette étude vise à examiner la question de l'inégalité entre les hommes

générées par la propriété privée en considérant deux œuvres philosophiques

majeures et politiques: le Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité

parmi les hommes du philosophe Jean-Jacques Rousseau manuscrits de Karl

Marx.

Au début, le but de cet article est une analyse de l'œuvre de Rousseau qui

décrit le passage de l'homme hypothétique dans l'état de nature à l'état civil.

Dans l'état de nature est majoritaire dans les caractéristiques de l'homme de

l'égalité et de la compassion pour l'autre. En l'état civil, caractérisé par des

relations sociales institutionnalisées, l'homme se trouve en esclavage et lésés

par les inégalités générées par la propriété privée.

Dans une deuxième phase de cette étude, l'œuvre de Marx présente une

histoire humaine qui se déroule dans le travail. Le travail est une condition de la

transformation de l'être humain dans le monde. Par conséquent, lorsque le

travail devient opérationnel, générant une accumulation de marchandises qui

est sur une propriété privée, l'homme est placé sous la garde d'un autre

inhibiteur possibilité humaine de s'exprimer dans leur pleine et libre: sa

réalisation tout en étant. Cette réalité est ce que Marx appelait l'aliénation.

Par conséquent, les inégalités provoquent certaines difformités morales et

éthiques qui se traduisent par une dégénérescence de l'homme. La quête de la

liberté et de l'égalité peut être un moyen d'aller à racheter des valeurs de

l'humanité essentielle à leur compréhension et de la sociabilité.

Mots-clés:

L'inégalité, l'essence, l'état de nature, la propriété privée, l'état matrimonial, la

dégénérescence, l'homme, l'aliénation, le travail, l'amour, la liberté, l'égalité, la

politique, l'éthique.

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TABELA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Formas de Alienação em Karl Marx..............................................47

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INTRODUÇÃO

O problema da desigualdade entre os homens

Essa pesquisa tem como objetivo a análise e o estudo da origem sobre a

desigualdade entre os homens em obras de dois grandes pensadores da

história da humanidade: Jean Jacques Rousseau e Karl Marx.

A origem da desigualdade social na humanidade está diretamente ligada

à degradação da essência humana e à relação de poder entre os homens,

estabelecida desde o princípio dos tempos. Compreender as causas das

desigualdades entre os seres humanos é um dos principais desafios dos

pensadores contemporâneos.

Na Grécia Antiga, berço do pensamento ocidental, acreditava-se que as

desigualdades entre os homens eram inatas. Desse modo, certos indivíduos

eram naturalmente propensos a serem escravos, outros, senhores; alguns

adaptados a trabalhos manuais e outros exclusivamente às atividades

intelectuais.

Há [...] por obra da natureza e para a conservação das

espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque

aquele que possui inteligência capaz de

previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que

nada mais possui além da força física para executar, deve,

forçosamente, obedecer e servir [...] Os bárbaros, a mulher e o

escravo se confundem na mesma classe. Isso acontece pelo

fato de não lhes ter dado a natureza o instinto do mando [...]

(ARISTÓTELES,1998, p.14)

Sabemos que as desigualdades não são naturais, mas socialmente

construídas ao longo de um processo histórico marcado pelas diferenciações

entre os seres humanos.

O homem primitivo sempre teve seu lugar de destaque, constituído pela

força e pela inteligência, e, por meio de combates e meios de ação mais

elaborados, com um uso mais bem direcionado das aptidões recentemente

descobertas, estabelecia domínio e liderança sobre os demais, gerando, assim,

as primeiras relações de desigualdade social conhecidas no mundo. Ao

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olharmos a história da humanidade, uns detinham as melhores partes da caça,

outros conquistavam as melhores companheiras sexuais, as melhores

habitações, outros dominavam os meios de produção dos bens de consumo,

enquanto que outros eram fadados a morrer de fome ou, nos próprios

enfrentamentos, com os seus semelhantes mais fortes e inteligentes.

Os aspectos mais relevantes e simples para estabelecer a diferenciação

e, logo, a desigualdade entre homens, são os físicos, econômicos, históricos e

sociais. Ao longo dos séculos, com a evolução da humanidade, essas relações

de desigualdades sociais também apresentaram um aumento dessas

mudanças.

Com o advento das relações comerciais, os tipos de desigualdades

sociais foram se tornando mais e mais complexos e crescentes, principalmente

com a consolidação do Capitalismo, com a colaboração e a expansão da

industrialização. Com a revolução industrial e a crescente relação comercial

estabelecida em todo o mundo, passa-se a se ter isso em todo o contexto

social, e em esferas mais específicas das camadas sociais, como a relação

patrão e empregado, por exemplo.

O Capitalismo tem como uma das suas principais características o

acúmulo do capital que faz girar a “roda da economia”. Nesse contexto, quem

detém a propriedade privada é quem tem as melhores condições de moradia,

acesso aos melhores recursos sociais. Enquanto isso, quem está do outro lado

como “engrenagem do sistema”, os trabalhadores, que não detêm a renda nem

o capital, estão na extremidade inferior da relação. Logo, observa-se um

contexto de desigualdade social, gerada, primordialmente, pela diferenciação

econômica entre pessoas, classes e sociedade.

A desigualdade social na concepção rousseauniana é retratada na sua

obra o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens”. Neste discurso, Rousseau descreve a desigualdade em dois tipos:

a física ou natural, que é estabelecida por fatores como força física, idade,

condições de saúde e, até mesmo, a qualidade de espírito do indivíduo; e a

desigualdade moral e política, uma espécie de senso comum entre a

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sociedade, que é uma convenção autorizada e consentida pela maioria das

pessoas.

Por outro lado, a desigualdade social, na concepção de Karl Marx, é um

fato causado pela divisão de classes e que, por haver, nessas divisões, classes

dominantes, estas utilizavam a miséria gerada pela desigualdade social como

instrumento de manter o domínio estabelecido sobre as classes dominadas,

numa espécie de ciclo vicioso.

No conceito de Marx, a desigualdade era sempre ditada por aqueles que

detinham os meios de produção sobre os que detinham apenas a sua força de

trabalho, conhecidos por proletariado.

Marx apontava, ainda, uma solução para o problema, que seria a

implantação do Socialismo como forma de luta contra as desigualdades, visto

que esse tipo de regime adotava a igualdade na distribuição de todos os

recursos.

Porém, não podemos avançar nos estudos, senão partimos, antes de

tudo, da concepção de natureza humana e de sua degeneração na história.

Rousseau e Marx contribuem para verificarmos a perda da essência enquanto

homens e sua caminhada para a alienação, caminho esse que levará o ser

humano a promover as desigualdades entre seus pares.

Diante disso, essa pesquisa tem por objetivo analisar, no

pensamento de Rousseau, os temas ligados à natureza humana, ao

aperfeiçoamento do homem e, por conseguinte, ao progresso alcançado por

meio da perfectibilidade. Para conduzir algumas análises, utilizaremos,

sobretudo, sua obra capital: Discurso sobre a origem e os fundamentos da

desigualdade entre os homens. A partir dela, buscaremos entender como foi

possível que o homem alcançasse um aperfeiçoamento tão significativo, mas,

ao mesmo tempo, que conseguisse estabelecer a sua própria degeneração

moral e, consequentemente, alterar o seu relacionamento com a natureza e

com a sociedade.

Para fecundar as ideias ressaltadas nas entrelinhas desse trabalho,

destaco a importância da escolha de alguns autores e estudiosos de Rousseau

e Marx para formarem a coluna mestra desse estudo.

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A filosofia de Karl Marx representa um protesto contra a alienação do

homem contra a perda de si mesmo e contra sua transformação em objeto:

isso é o que afirma Erich Fromm no livro “Conceito Marxista do Homem”.

No presente trabalho, utilizarei o legado filosófico de Karl Marx, contido

nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” , de 1844, também conhecidos como

Manuscritos de Paris. Obra composta por uma coletânea de três cadernos e

sob a forma de ensaios curtos. Os Manuscritos de 1844 foram escritos pelo

autor aos 26 anos e permaneceram desconhecidos por quase cinquenta anos

depois de sua morte. Com a sua publicação em 1932, inicia-se um debate

filosófico e político sobre o todo da obra marxista que se estende até hoje. Este

estudo busca a compreensão da profundidade da dimensão filosófica e político-

social presentes neste escrito de juventude de Karl Marx e sua formidável

capacidade de imbricação com a realidade das relações sociais, expressa,

principalmente, pelas categorias conceituais de alienação e estranhamento,

que vão colaborar para transformar o homem em mercadoria, gerando

mazelas, como a desigualdade entre as pessoas.

Na obra, “A teoria da Alienação em Marx”, de István Mészáros, surge a

defesa de que a alienação da humanidade, no sentido fundamental do termo,

significa perda de controle que é hostil e potencialmente destrutivo. Essa obra

será de grande importância para destacar e ampliar a noção do conceito de

alienação em Marx.

A origem e o fundamento da desigualdade social são marcados pelo

advento da propriedade privada. Rousseau, em sua obra “Discurso sobre a

origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, vai buscar quais

são os princípios que tornaram a desigualdade possível. Já Olgária C.F. Matos,

na obra “Arqueologia da desigualdade”, fundamenta a teoria da desigualdade

sobre o conceito de natureza humana. Assim, tanto o conceito de homem

natural quanto o de homem social, bem como a passagem do estado de

natureza ao de sociedade civil, encontram-se fundados em um princípio único e

sólido a partir do qual é possível narrar o drama do gênero humano.

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CAPÍTULO I

DESNATURAÇÃO

HUMANA EM ROUSSEAU

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1. HISTÓRICO

Embora não seja a pretensão deste item organizar cronologicamente e

com todo esmero os dados e as informações da biografia de Jean-Jacques

Rousseau, intenta-se, meramente, apresentar aqui alguns dados e aspectos

relevantes da vida desse filósofo suíço para compreendermos o caminho

trilhado para a elaboração de seus Discursos.

Rousseau nasceu em Genebra, em 28 de junho de 1712. É conhecido

como escritor, teórico político e também compositor musical. Rousseau é

considerado uma das figuras marcantes do Iluminismo francês e precursor do

Romantismo. Ele era filho do relojoeiro calvinista Isaac Rousseau e não

conheceu sua mãe, falecida no parto. Seu pai morreu quando ele tinha 10

anos. Seu pai era bom, mas não muito dado ao trabalho e foi esse que inculcou

em Rousseau tanto o gosto pela leitura como também o gênio errante.

Rousseau teve uma juventude agitada e morou em lugares diferentes.

Tinha um espírito itinerante, à semelhança de seu pai. Sua juventude, além de

ser agitada e até um tanto tumultuada, pode-se dizer que foi também de muita

busca e sofrimento. Rousseau não tinha condições financeiras muito

favoráveis. Morou em Paris, cidade na qual se tornou famoso, sobretudo, no

campo da música. Embora Rousseau tenha escrito uma ópera que lhe dera

sucesso, em Paris, em 1753, intitulada: O Adivinho da Vila, ou também, O

Adivinho da Aldeia, mas, na verdade, ele se tornou conhecido quando, em

1750, ele venceu o concurso na Academia de Dijon.

Rousseau ganhou o prêmio do concurso com a obra intitulada: Discurso

sobre as ciências e as artes, texto que Diderot lhe pediu que escrevesse sobre

a restauração das ciências e das artes, e que serviu para aperfeiçoar os

costumes, em uma visita que Rousseau lhe fizera, em 1749.

Embora Rousseau tenha ganhado o concurso da Academia de Dijon

com o texto Discurso sobre as ciências e as artes, porém, é com outro

discurso, de 1755, intitulado: Discurso sobre a origem da desigualdade, que ele

obtém grande êxito, ao escrever justamente sobre a bondade natural e origem

da desigualdade entre os seres humanos.

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Com sua amante, Rousseau acaba tendo cinco filhos, colocando-os

todos em um orfanato, em Paris. Não obstante ao abandono dos filhos num

orfanato, por ironia do destino, Rousseau é reconhecido como o grande

inovador da Pedagogia moderna, sobremaneira, pela maneira como ele

compreende a infância. Na obra, talvez a mais famosa obra pedagógica do

período moderno, Emílio ou Da Educação, Rousseau centraliza seu foco na

questão de como educar as crianças. Além das supracitadas, Rousseau, entre

outras obras importantes, escreve ainda: Júlia ou a Nova Heloísa, Sobre a

economia política, A profissão de fé do vigário de Savóia, Confissões,

Devaneios de um caminhante solitário e Do contrato social. Na obra, Do

contrato social, ele expõe suas ideias políticas principais. Ele procura um

estado social legítimo, próximo da vontade geral e distante da corrupção. A

soberania do poder, para ele, deve estar nas mãos do povo por meio do corpo

político dos cidadãos.

Segundo suas ideias, a população tem que tomar cuidado ao

transformar seus direitos naturais em direitos civis, afinal, o ser humano nasce

bom e a sociedade o corrompe. Depois de toda uma produção intelectual, suas

fugas às perseguições, e uma vida de aventuras e de uma vida errante,

Rousseau passa a levar uma vida retirada e solitária. Por opção, ele foge dos

outros homens. Nesta época, sobretudo a partir de 1770, ele se dedica à

natureza, uma de suas paixões. Seu grande interesse por botânica o leva a

recolher espécies e montar um herbário. Seus relatos desta época estão no

livro Devaneios de Caminhante Solitário.

Rousseau termina sua vida ao falecer aos 66 anos, em que estava

hospedado no Castelo de Ermenonville, em 02 de julho de 1778. Entretanto,

até os dias de hoje, mesmo morto, Rousseau continua sendo um provocador.

Levi Strauss disse que Rousseau era o “pai das ciências sociais”, talvez o

tenha designado pela grandeza de seu pensamento e influência na época que

nos perturba e que será uma das fontes desse trabalho.

1.1. A BUSCA PELO HOMEM NATURAL

Rousseau está preocupado em compreender o ser humano. Conhecê-lo

é o ponto de partida para poder entender a realidade da sociedade. Mas, como

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entendê-lo? Conhecer o ser humano é buscar sua essência natural. Para tal,

deve-se analisar e entender o ser humano em seu desenvolvimento histórico.

Propondo-se a examinar os fundamentos da sociedade, Jean Jacques

Rousseau se reportou ao estado natural do homem. A fim de julgar de forma

correta à condição humana, Rousseau se dispôs a falar, como ele próprio

ressaltou, de um estado que não mais existe, talvez nunca tenha existido e,

provavelmente, jamais existirá. Puramente uma hipótese, mas analítica e

provocadora de imensas discussões.

A partir da concepção de um estado inexistente, no Discurso Sobre a

Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Rousseau

conseguiu alcançar a noção da alienação dos homens. O que este filósofo

mostra, a partir dessa descrição, é como se dão as transformações das

relações do homem com a natureza e com o próprio homem.

Suas ideias foram conduzidas por meio de uma hipótese, porque o

filósofo não concebia que a história da humanidade tenha ocorrido tal como

contavam os historiadores e filósofos do seu tempo. Pois, para ele, estes

descreviam o estado natural por meio de uma projeção de si mesmos, ou seja,

descreviam o homem social pensando estar descrevendo o natural,

transportando para o estado de natureza noções que tiraram da sociedade.

Contudo, eis a sua preocupação: “Evitemos, pois, confundir o homem

selvagem com os homens que temos diante dos nossos olhos” (Rousseau,

1987-88, p. 45).

Para desvendar a verdadeira natureza humana, o filósofo toma como

palco de suas reflexões a natureza física. Sua exaltação pela natureza o levou

a deleitar-se em um ambiente bucólico. Nesse ambiente, o cidadão de Genebra

parecia ter vivido no estado de natureza quando se reportou aos

comportamentos dos homens que, possivelmente, tenham vivido nessa época.

Para caracterizá-los, o filósofo volta-se a si mesmo; distanciando-se da cidade

em que morava, centrado em reescrever a história dos homens, possivelmente,

isolou-se em uma floresta.

Longe do mundo civilizado, começa, por assim dizer, a descrever esse

período, creditando aproximar-se do estado originário. É na natureza que

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Rousseau vê significado, ela representará o espelho do homem e de suas

memórias. Assim, nada melhor do que o próprio pensador para confirmar seu

passeio pela natureza física para que nela penetrasse na natureza humana:

(...) Todo o resto do dia, metido pela floresta, procurava e encontrava

as imagens dos primeiros tempos, cuja história traçava altivamente (...)

ousava desnudar a natureza deles e comparando o homem ao homem

natural, mostrava-lhe, com pretensa perfeição, a verdadeira fonte das

nossas misérias. (ROUSSEAU, 2008, p. 354)

Para Rousseau, foi preciso consultar o seu íntimo para chegar ao estado

originário, ele conta a história por senti-la em si mesmo. Portanto, é ao seu Eu

que Rousseau se reporta ao descrever o estado de natureza, ele faz um

movimento em direção à natureza dos homens e assim a descreveu, tal como

a sentia em si mesmo. Nesta passagem, Starobinski analisa essa valorização

da subjetividade de Rousseau quando afirmou que:

A natureza não é o tema objetivo colocado e explorado por um

pensamento discursivo; ela se confunde com a mais íntima

subjetividade do sujeito falante. Ela é o eu, e a tarefa que Rousseau se

atribui não é mais, doravante, de discutir com os filósofos, os juristas e

os teólogos sobre a definição da natureza, mas de narrar-se a si

mesmo. (STAROBINSKI, 1991, p. 282).

Em certo sentido, o filósofo convidou-se a visitar a fonte da autorreflexão

e do autoconhecimento. Como foi possível observar, ele concebe que é no

próprio homem que se encontra a sua verdadeira natureza. Diante disso, é

preciso lembrarmos que, quando descreveu o selvagem, em momento

nenhum, ele idealizava um retorno ao estado natural. Quando se reportou ao

estado de natureza, o cidadão de Genebra fez um movimento em direção às

origens, como se nele palpitasse uma bússola interior. O seu Eu é, por si

mesmo, a memória de sua origem. Ao voltar-se a si mesmo, o doce sentimento

da natureza renasce. Rousseau procura e encontra a essência oculta do

homem. Para Bénichou:

O que se pode dizer de Rousseau é que ele refez este percurso em

pensamento conduzindo-o para o mais longe que ele pode vislumbrar e

que para reencontrar o homem natural, despojou de toda técnica, de

toda organização social (...) em suma, na regressão conjetural em

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direção a um modo elementar de existência humana, ele foi tão longe

quanto lhe foi possível divisar nessa aurora da humanidade

(BÉNICHOU, 1984, p. 1-2).

Contudo, seria necessário sair da história para ver nascer a história do

homem. Trata-se de delimitar uma história provável, relacionada às condições

de origem e desenvolvimento da humanidade. Para Fortes, Rousseau

interpretou a humanidade desde seus primórdios até os dias de hoje, pois ele

reconstituiu estágios perdidos na evolução do homem para definir como era ele

no princípio e como teriam ocorrido as alterações.

Para tanto, o filósofo desempenhou um papel original dentre aqueles

que se dispuseram a falar da natureza humana. Para Rousseau, conhecer a

história dos homens significava conhecer o coração humano acima de qualquer

coisa. Era preciso se despojar de todo e qualquer preconceito, livrar-se das

máscaras dos homens, que estavam muito aquém de sua própria realidade.

Sua preocupação não se limitou a retratar um bucolismo exagerado,

mas enfatizou os valores humanos, que, segundo o filósofo, foram perdidos

quando se instaurou o progresso. São estes valores que permeiam o homem

natural e o permite viver em plena harmonia tanto com seu semelhante quanto

com o meio no qual vive.

Confiando em seus sentimentos, Rousseau direcionou sua preocupação

ao homem. Ele questionava sobre a condição humana, pois buscava entender

o que tinha sido o homem em seu estado natural e em que tinha se

transformado quando passou a viver em sociedade. Contudo, explicar como a

sociedade chegou a um nível tão elevado de corrupção o fez dar um passo

além, frente aos demais iluministas.

Buscar a verdadeira essência da natureza humana foi o que motivou

este filósofo a penetrar em seu próprio íntimo. E, de forma ímpar, ele revela

que cada ser possui os valores mais elementares, que se encontram velados

em cada um de nós.

Destituindo-se dos fatos, ele acreditou ter vislumbrado, da forma mais

plena e elementar, o homem natural. A lembrança de sua própria natureza

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passou a ser testemunha desse estado inexistente e, por meio desse

procedimento, ele encontra, no homem natural, o símbolo de si mesmo. Em

suas análises, o cidadão genebrino exalta o coração em detrimento da razão,

vislumbrando uma outra dimensão esquecida pela ciência de então.

1.2. ESTADO DE NATUREZA

Como afirmado anteriormente, na pesquisa de Rousseau, o objeto de

estudo é o homem. Para o pensador, é preciso ir até a essência do ser humano

para poder julgar a sua condição na sociedade atual. Aqui a essência é o

estado de natureza humana. Como seria, então, esse homem natural?

Para Rousseau, o estado natural seria aquela parte inata, isto é, aquilo

que nasce com o homem. Não é algo adquirido, construído socialmente. A

natureza civil é decorrência da natureza primitiva.

Como seria então o homem natural? Há, no homem, uma parte inata, que

nasce com ele, que pertence a seu fundo natural. Há também outra parte

adquirida, produzida no decorrer de sua evolução e em decorrência dela.

(FORTES,1996, p. 53)

Na concepção de Rousseau, o homem no estado natural, do ponto de

vista físico, é um ser espalhado pelo planeta. Eram homens que não

mantinham relações entre si e que viviam uma espécie de solidão, pois

estavam em estado de isolamento. Aqui prevalece o homem que sobrevive

daquilo que a natureza lhe proporcionará para a sobrevivência.

Rousseau destaca dois elementos importantes neste “período” da

espécie humana: a liberdade e a perfectibilidade. O que seria ser livre?

Todavia, o aspecto determinante na diferença entre o ser humano e os outros

animais é a liberdade. O ser humano executa suas ações como agente livre.

Diferentemente dos animais, cabe ao homem, enquanto agente livre, querer e

não querer, agir e não agir.

Para Aristóteles, o ser humano é um animal racional e um animal de

linguagem, ou seja, ele é capaz de raciocinar, é capaz de se comunicar, e,

portanto, capaz de sociabilidade. Para Descartes, ainda que controverso, o ser

humano é uma espécie de “máquina engenhosa” capaz e possuidor de

inteligência e dotado de afetividade, linguagem e sociabilidade. Porém, para

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Rousseau, a característica própria do ser humano e que o diferenciará dos

animais será a liberdade. Logo, se até o período moderno, ou mais

especificamente até Rousseau, válida era a definição aristotélica do ser

humano enquanto ser capaz de linguagem e eminentemente político, agora, a

definição em torno da qual gira toda a reflexão da diferença focaliza o ser

humano enquanto agente livre.

O ser humano é livre para concordar ou resistir às influências que lhe

advém. A seguir, talvez, uma das mais belas e eminentes passagens de

Rousseau a esse respeito, não obstante a referida passagem seja longa.

Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza

conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo

ponto, de tudo

quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na

máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas

operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre.

Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade, razão por

que o animal não pode desviar-se da regra que lhe fora vantajoso fazê-lo, e o

homem, em seu prejuízo, freqüentemente se afasta dela. Assim, um pombo

morreria de fome perto de um prato cheio das melhores carnes e um gato

sobre um monte de frutas ou de sementes, embora tanto um quanto outro

pudessem alimentar-se muito bem com o alimento que desdenham, se fosse

atilado para tentá-lo; assim, os homens dissolutos se entregam a excessos que

lhes causam febre e morte, porque o espírito deprava os sentidos e a vontade

ainda fala quando a natureza se cala.

Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar

suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da

besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe

maior diferença entre um homem e outro do que entre um certo homem e certa

besta. Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre

possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica

daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O

homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou

resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a

espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo

dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de

escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente

espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica.

(DISCURSO, 1973, p. 248).

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Na visão de Rousseau, a liberdade se manifesta de duas maneiras: a

liberdade natural e a civil. No estado natural, os homens nascem livres e iguais,

portanto, a liberdade é condição de possibilidade para pensar o ser humano

como tal. A liberdade lhe pertence. Renunciar a ela é renunciar uma qualidade

enquanto ser humano. Rousseau busca, por conseguinte, compreender a

liberdade em seu ato fundador. De acordo com Rousseau, no estado natural, o

ser humano é livre e desfruta da liberdade natural. Ninguém tem autoridade

sobre outrem. Mas a liberdade no estado natural apresenta riscos, os quais

precisam ser superados, sobretudo, porque o ser humano, no estado natural,

busca sua conservação. A busca pela proteção pode provocar uma

transgressão. Pois ele se basta a si mesmo. Ele é autossuficiente e tem

dificuldades de viver em sociedade. Essa liberdade é a capacidade que o

homem tem de escolha, de poder transgredir ou não as leis.

Portanto, a liberdade natural é um elemento perigoso, pois revela a

superioridade do homem e, a princípio, a capacidade do desregramento. O ser

humano, por meio de um ato de vontade, abandona a liberdade do mundo

natural e adota a liberdade do mundo das convenções. Aqui entra a liberdade

civil, pois o indivíduo foca as suas atividades no coletivo. Essa vontade,

contudo, não desaparece e tampouco fica abandonada no mundo natural. Ela

acompanha o ser humano na passagem da liberdade natural à liberdade

convencional, tomando a forma de vontade geral. Esta se constitui na

transformação da liberdade natural individual do ser humano na liberdade

social proposta pelas convenções, de modo que a vontade se faça geral ao

renunciar seus interesses particulares. Se um indivíduo sofrer ameaça, ele será

amparado pela vontade geral. Assim nasce o desejo de realizar o contrato, que

é a associação de forças para garantir a liberdade individual. Nasce, desta

forma, a figura da sociedade civil. O ser humano deixa de ser tudo para o seu

mundo individual e passa a ter uma relação com o mundo coletivo, constituído

pela sua proposição de construção social, com igualdade e liberdade.

Nesse sentido, a vontade geral traz em seu bojo o princípio da liberdade

autônoma como essência e princípio do Estado, cuja missão é a busca do

bem-comum da comunidade. Todavia, de acordo com Rousseau, o uso

incorreto da liberdade faz do ser humano presa do mal. Esse mal é, por

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conseguinte, exclusivamente obra do ser humano, especialmente quando ele a

viver em sociedade.

O resultado de um mau uso da liberdade humana deve-se, sobretudo, à

civilização, isto é, a uma situação exterior ao indivíduo, à sociedade, pois a

responsabilidade pela origem do mal deve ser atribuída à civilização e não a

forças sobrenaturais. Diferentemente dos animais, o homem vai definir-se ao

mesmo tempo por sua liberdade e por sua capacidade de se libertar do

programa do instinto natural. O ser humano é um ser livre. Ele tem condições e

capacidade para querer e não querer, desejar e temer.

1.2.1. PERFECTIBILIDADE

A capacidade da perfectibilidade é a faculdade de aperfeiçoar, adquirir

conhecimentos, de aprimorar ou sofisticar elementos básicos da sobrevivência

– como a linguagem. Essa capacidade pode gerar uma nova natureza que se

distancia da primeira. A outra qualidade específica do ser humano é a

possibilidade contínua de aperfeiçoar-se, sendo esta, na concepção de

Rousseau, uma das causas geradoras da desigualdade entre os homens.

O que leva o homem a agir para a perfectibilidade é o instinto de

autoconservação que o leva a buscar invariavelmente aquilo que lhe parece

capaz de garantir sua perpetuação entre a sua espécie: é o amor de si. Esse

amor de si vem associado ao de compaixão que irá manter os laços sociais e

vai gerar as concepções morais. O amor de si preserva o indivíduo, enquanto a

compaixão gera a vontade de compartilhar o sofrimento alheio.

A partir desse momento, a história humana volta-se e torna-se a história

da perfectibilidade do desenvolvimento da racionalidade e da liberdade

humana, pois ambas são expressões da mesma realidade, a saber, da busca

contínua pela autonomia humana. Diante disso, com Rousseau, a pergunta que

se faz é se a perfectibilidade não se constituiria numa contradição, uma vez

que, para Rousseau, a possibilidade contínua de aperfeiçoamento, possível

graças à sua liberdade, é, talvez, a causa da desigualdade entre os seres

humanos?

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1.3. CARACTERÍSTICAS DO ESTADO DE NATUREZA

Ao sustentar ser o desejo contínuo de perfeição a causa mais provável

da desigualdade entre os seres humanos, Rousseau sustenta existir dois tipos

bem distintos de desigualdade.

Uma é a desigualdade natural ou física, estabelecida pela natureza, que

consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo, e das

qualidades do espírito e alma. A outra desigualdade é a moral ou política,

dependente de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo

menos, autorizada pelo consentimento dos seres humanos, consistindo em

vários privilégios de que gozam alguns em detrimento de outros, como serem

mais ricos, mais homenageados, ou, ainda, por fazerem-se obedecer. Nesse

sentido, o ser humano pode deixar-se degenerar pelo advento da civilização.

Para Rousseau, o estado de natureza não caracteriza um período da

história humana marcado por inconveniências a serem superadas pela

constituição da sociedade civil. Aqueles para os quais o estado de natureza

constituía uma etapa que precisava ser necessariamente ultrapassada para

que a humanidade pudesse estabelecer formas de convivência mais

adequadas ao conjunto dos indivíduos, como é, por exemplo, o caso de Locke

e Hobbes, essa passagem implicava perdas em termos da limitação da

liberdade e do julgamento e execução pelos próprios indivíduos da “lei da

natureza”.

Mas o estabelecimento da sociedade civil por meio de um pacto

acordado por toda a comunidade trazia ganho suficiente – em termos de

preservação da vida, da liberdade, da propriedade, da igualdade, dos bens, e

da segurança e do respeito às leis que deveriam submeter igualmente à todos

– para ser amplamente adotado. O caminho aberto pela sociedade civil é o que

leva às conquistas mais caras, à civilização e às formas mais adequadas de

convivência entre os homens.

Rousseau atribui ao estado natural características positivas, a ponto de

ser chamado o filósofo do bom selvagem, em alusão às qualidades superiores

que, a seu ver, exibiam os indivíduos que viviam nesse estado. Uma de suas

características básicas é o ambiente natural extremamente abundante e

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acolhedor, a ponto de parecer ter sido criado na medida exata para servir ao

homem particularmente em termos de recursos alimentares, sendo, aliás, a

preservação uma das poucas preocupações, senão a única, do homem no

estado de natureza. “Suas módicas necessidades”, diz Rousseau, “encontram-

se tão facilmente ao alcance da mão e ele está tão longe do grau de

conhecimentos necessários para desejar adquirir outros maiores, que não pode

ter nem previdência, nem curiosidade. O espetáculo da natureza, à força de se

lhe tornar familiar, torna-se-lhe indiferente”.

A relação homem-natureza é, portanto, permeada por um ingrediente

idílico marcado por uma complementaridade absoluta entre aqueles elementos.

O equilíbrio dessa relação só vai se romper quando ela começa a inserir-se

num contexto dominado pela sociedade e pela civilização com as

consequências necessariamente negativas que elas trazem. A “nostalgia” do

estado de natureza é tão mais profunda quanto é para Rousseau a

impossibilidade do homem viver em sociedade de maneira tão pacífica e sadia

quanto vivia naquele estado. Afinal, a maioria de nossos males é obra nossa e

os teríamos evitado quase todos conservando a maneira de viver simples,

uniforme e solitária que nos era prescrita pela natureza.

Outro ponto de destaque do estado de natureza na concepção de

Rousseau é a virtual ausência de grupamentos humanos, ou seja, da vida em

comunidade, já que esse período é marcado pelo isolamento quase completo

dos indivíduos, quebrado apenas para efeitos de reprodução.

Basicamente reagindo aos impulsos que a natureza inscrevia neles, os

selvagens tinham até menos necessidade de viver em bandos do que os

chamados “animais sociais”, isto é, aqueles que formam grupos de

convivência. Para Rousseau, os homens no estado de natureza não tinham a

menor necessidade um do outro; não tendo nem casa, nem cabanas, nem

propriedade de nenhuma espécie, cada qual se abrigava a esmo e, em geral,

por uma única noite; os machos e as fêmeas uniam-se fortuitamente conforme

o caso, a ocasião e o desejo. Logo que tinham forças para procurar seu

alimento, os filhos não tardavam em deixar a própria mãe e, como quase não

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havia outro meio de encontrar-se senão o de não se perder de vista, logo

chegavam ao ponto de nem sequer se reconhecerem uns aos outros.

Diferentemente do que sustentam outros pensadores a respeito do

estado de natureza concebido como um cenário para a existência de

grupamentos humanos, para Rousseau, naquele período, o homem era de tal

maneira autossuficiente que prescindia da convivência com seus semelhantes.

Desse ponto de vista, o selvagem levava uma vida não muito diferente da

maioria dos animais propriamente ditos. Esse isolamento propiciado pelo

estado de natureza favoreceu o exercício das qualidades positivas que

Rousseau tanto associou ao homem natural, particularmente o amor de si

mesmo e a piedade, ou, mais genericamente, a bondade.

Mas, apesar da exacerbação daquelas qualidades terem marcado de

maneira tão característica a obra de Rousseau, na realidade, elas surgem mais

como uma possibilidade do que como realidade, já que só fazem sentido, só

podem ser exercitadas, numa situação relacional, isto é, num contexto de inter-

relações sociais efetivas e não de indivíduos vivendo em isolamento. Este

aspecto, aliás, é reconhecido pelo próprio Rousseau ao observar que os

homens nesse estado de natureza, não tendo entre si nenhuma espécie de

relação moral, nem deveres conhecidos, não poderiam ser bons nem maus, e

não tinham vícios nem virtudes.

1.4. AUTOCONSERVAÇÃO

Retomemos, novamente, o fio condutor da exposição: a dupla condição

da liberdade e da perfectibilidade empurra o homem para fora de si mesmo,

brotando deste movimento o desejo de comparação com os outros e a

aspiração incessante por reconhecimento.

Há, nesta complexa dinâmica, o surgimento de um componente decisivo,

sem o qual, segundo Rousseau, não se poderia compreender o fenômeno da

sociabilidade: trata-se do surgimento do sentimento do amor-próprio. O

aparecimento progressivo do amor-próprio tira o homem selvagem de seu

isolamento e o empurra, cada vez mais, para a sociabilidade. Com isso, a

capacidade de comparação de sua relação direta com os animais passa para

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sua relação com seus próprios semelhantes, e, nesta nova situação, a

comparação assume uma dinâmica inteiramente própria.

Acostumam-se a considerar os vários objetos e a fazer comparações

(comparaison): insensivelmente adquirem-se idéias (sic) de mérito e de

beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se

verem, não pode mais deixar de novamente se verem. Insinua-se na

alma um sentimento terno e doce, e, a menor oposição, nasce um furor

impetuoso (fureur impétuese); com o amor surge o ciúme, a discórdia

triunfa e a mais doce paixão recebe sacrifícios de sangue humano.

(OBRAS COMPLETAS, 1978, p. 263).

Rousseau parte da consideração geral de que o amor de si e o amor-

próprio são duas formas do amor por si mesmo que põem em jogo o sentido

autêntico do ser humano. Ou seja, Rousseau pensou que a constituição do

humano estava profundamente vinculada com o amplo sentimento de amor que

cada indivíduo possui por si mesmo. Este sentimento de amor por si mesmo

adquire, por sua vez, uma dupla dimensão, desdobrando-se no sentimento

natural originário do amor de si (amour-de-soi) e no sentimento eminentemente

social do amor-próprio (amour-propre).

A primeira oposição nítida entre esses dois sentimentos se refere ao fato

de que um diz respeito à conservação física do homem e o outro à sua

sociabilidade. Enquanto o amor de si está diretamente relacionado com a

autoconservação humana e é representativo do homem selvagem e natural, o

amor-próprio define a dinâmica da sociabilidade humana, sendo, por isso,

constitutivo do homem civil, e de suas produções culturais e institucionais.

Como constitutivo da sociabilidade, o amor-próprio está a serviço, desde o

instante de seu surgimento, da honra e do mérito, relacionando-se com o

problema de como o indivíduo pode ser bem visto.

O amor-próprio aspira uma significação, pois ele deseja uma

determinada colocação que se relaciona diretamente com a posição de outros

sujeitos. Ou seja, o respeito que o amor-próprio do sujeito quer conquistar é um

bem posicional. Ter resultado – adquirir prestígio social como aspiração do

sujeito – significa, para tal sujeito, ter resultado sempre em comparação com

outros sujeitos. Para o amor-próprio, a satisfação de suas necessidades

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depende da relação imediata entre quantidade e qualidade da estima que os

outros vão dirigir a ele, e a qualidade. Em síntese, esta primeira perspectiva, na

qual o amor-próprio é relativo, nos permite formular a tese de que o maior bem

por ele aspirado consiste em ser reconhecido (estimado) pelo outro.

Os homens não podem existir sem o amor-próprio e o modo como tal

sentimento se manifesta no mundo depende das instituições sociais a partir

das quais ele é formado. Para se apreender este aspecto constitutivo do amor-

próprio, é preciso considerá-lo, no entanto, como algo que não é fixo e

imutável, mas sim plástico e fluido. Nesse sentido, o amor-próprio possui uma

capacidade de metamorfose. Reconhecer isso é fundamental, porque, do

contrário, lhe seria atribuído somente uma conotação negativa, ficando-se

impedido de buscar nele mesmo o antídoto contra a maldade que dele próprio

se origina. Isto é, considerar a capacidade de mudança inerente ao amor-

próprio significa igualmente considerar que, se ele é a fonte principal do mal, de

outra parte, não está determinado absoluta e irreversivelmente para o mal.

O amor-próprio consiste na aspiração humana por reconhecimento e, na

verdade, em um duplo sentido: primeiro, porque representa a necessidade

inerente à ação humana de se comparar com os outros e, segundo, porque

depende permanentemente da opinião do outro. Podemos colocar a seguinte

questão: “Em que sentido o amor próprio é algo que encaminha o homem para

o mal?”.

Por ser fonte da aspiração humana por reputação, honra e distinção, o

amor-próprio põe os homens em permanente disputa e concorrência entre si,

tornando-os inimigos declarados uns dos outros. Isso ajuda a esclarecer,

então, por um lado, por que a necessidade de autoconservação traduzida em

aspiração por reconhecimento social constitui e dinamiza a sociabilidade

humana e, por outro, por que tal sociabilidade é formada por um grau elevado

de conflitos entre seus membros. Além disso, a propriedade do amor-próprio

torna-se perigosa porque o homem inclina-se rapidamente a substituir o "bem"

pelo "melhor" em sua comparação com os outros, reduzindo, com isso, a busca

por reconhecimento à busca por querer ser incondicionalmente melhor do que

os outros.

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Ainda assim, o amor-próprio torna-se fonte de concorrência entre os

sujeitos. O problema consiste aí em que a superioridade conquistada, por estar

em permanente dependência do reconhecimento dos outros, os quais também

aspiram por superioridade, nunca pode ser uma superioridade absoluta e, por

não sê-la, transforma-se em fonte de insegurança. O amor-próprio também é

problemático porque possui a tendência de produzir vícios ou comportamentos

amorais. Despreza o sofrimento do outro, ou sente-se feliz pela sua

infelicidade. Dito de outro modo, por causa da predominância da aspiração por

posição superior, os homens tornam-se completamente insensíveis em relação

à condição e ao sofrimento dos outros: cada um torna-se inimigo do outro, e o

que menos conta é o sentimento de pertença à mesma espécie.

Há, ainda, outro perigo que surge do fato de que o amor-próprio aspira a

um bem que depende do julgamento do outro. Este perigo se deixa descrever

melhor pelo conceito de alienação ou autoalienação, o qual está vinculado

àquilo que Rousseau denomina de "existir fora de si" ou "sair fora de si". Mas

em que sentido o "sair fora de si" significa um estranhamento? No sentido de

que o sujeito só consegue obter o sentimento de sua própria existência por

meio do julgamento dos outros.

Em síntese, o que Rousseau tem em mente aqui é o fato de que, se a

estima pessoal depender muito do olhar do outro, tal dependência pode

conduzir à perda da liberdade, pois submete excessivamente o sujeito à

vontade de outros, impedindo-o de obedecer à sua própria vontade.

1.5. SOCIALIZAÇÃO E COMPARAÇÃO

No primeiro Discurso, o aspecto determinante desta longa evolução para

Rousseau é a capacidade eminentemente humana de comparar-se com os

outros, que tem seu início ainda com o próprio homem selvagem. O primeiro

ato originário de comparação dá-se não diretamente entre os próprios homens,

mas sim entre eles e os outros animais. Assim afirma Rousseau:

Mas o homem selvagem, vivendo disperso entre os animais e vendo-se

desde cedo na iminência de medir forças com eles, logo fez a

comparação (comparaison) e, verificando que mais os ultrapassa em

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habilidade do que eles o sobrepujam pela força, aprende a não mais

temê-los. (ROUSSEAU, 1978, p. 239)

De acordo com a passagem citada, o primeiro confronto decisivo que

está na origem da sociabilidade humana é marcado pela habilidade humana

rudimentar versus a força física superior de outros animais. Com isso, o contato

inicial do homem com outros animais, movido pela necessidade de

conservação, coloca-o na condição de observador natural e o conduz à

percepção detida sobre sua posição de superioridade.

Ao perceber que é superior, não em força, mas em habilidade, o homem

perde progressivamente o medo dos outros animais e enfrenta-os na luta pela

sua autoconservação. Portanto, a condição de observador, ainda que muito

rudimentar em seu início, coloca o homem na posição superior em relação

mesmo àqueles animais que, pela força física, lhe são infinitamente superiores.

No Segundo discurso, aparece, portanto, como podemos observar, o

tema da autoconservação e da sociabilidade humana como algo

transformando-se no princípio racional de organização da vida individual e

social. Esse princípio tem uma gênese quando começa a se desenvolver

efetivamente no vínculo à liberdade e à perfectibilidade. Essa dupla condição

da liberdade e da perfectibilidade empurra o homem para fora de si mesmo. Ele

passa a se comparar com os outros animais buscando um reconhecimento. Há,

nesta complexa dinâmica, o surgimento de um componente decisivo, sem o

qual, segundo Rousseau, não se poderia compreender o fenômeno da

sociabilidade: trata-se do surgimento do sentimento do amor-próprio. O

aparecimento progressivo do amor-próprio tira o homem selvagem de seu

isolamento e o empurra, cada vez mais, para a sociabilidade.

Rousseau descreve magnificamente, na segunda parte do Segundo

discurso, o momento em que os homens deixam de viver isolados nos bosques

e se aproximam lentamente, formando "uma nação particular, una de costumes

e caracteres" (ROUSSEAU, 1978, p. 263). Esta aproximação lenta conduz para

o intercâmbio social, pois, na medida em que as famílias se aproximam

territorialmente, facilitam o contato pessoal, permitindo que "jovens de sexo

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diferente habitem cabanas vizinhas" (ROUSSEAU, 1978, p. 263). Ocorre aí,

neste momento, a passagem daquela situação em que os homens primitivos

vagavam isoladamente nos bosques, buscando sua sobrevivência, para o

estado no qual eles começam a se aglutinar em famílias, fixando residência.

Ao viverem em conjuntos, as comparações entre si foram inevitáveis e o

sentimento de superioridade aparece gerando um misto de sentimento que

arrebatará definitivamente o homem civil, obrigando-o a viver ora pela

docilidade, ora pelo ímpeto agressivo. Deste modo, o amor humano encontra-

se carregado tanto pelo "sentimento terno" como pelo "furor impetuoso",

indicando-se, com isso, que a sociabilidade humana não poderia mais ser

orientada tão somente pela "voz doce" do homem selvagem.

Nesse movimento de encontros, o gênero humano foi se domesticando,

ampliando suas ligações e apertando seus laços. Neste estilo de convivência

mais intensa, aumenta também o desejo de comparação, fazendo com que

cada um olhe e observe o outro. É desta dinâmica do olhar permanente para os

outros e do querer ser também por eles olhado que nasce a estima da

socialização. Assim afirma Rousseau:

Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o

mais astuto ou o mais eloqüente, passou a ser o mais considerado [...];

dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o

desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. (ROUSSEAU, 1978, p.

263)

Parece ficar claro, com isso, que essas "primeiras preferências" já criam

sentimentos de vaidade e inveja no homem. Essa dinâmica impede que todos

sejam reconhecidos simultaneamente e na mesma proporção. Ora, isso conduz

a uma tensão que marca a busca pelo reconhecimento social e, quando se

consolida como conduta do homem civil, empurra-o para um outro mundo,

perdendo sua característica de estado de natureza.

Para organizar essa convivência, vão aparecer os primeiros deveres de

civilidade, e todo tipo de afrontamento e o desrespeito passou a ser

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considerado como ultraje, uma vez que provocava no ofendido um sentimento

de desprezo por sua própria pessoa.

É na opinião e no olhar do outro que inicia o aspecto constitutivo da

sociabilidade humana. Uma vez tocado pelo olhar do outro, o homem não

consegue mais viver em si mesmo e, com isso, precisa buscar no outro as

motivações para a constituição de si mesmo. Fica assinalado, também, com

isso, como característica central do homem sociável, que ele só consegue

adquirir o "sentimento de sua existência" com base no julgamento frequente

que recebe do outro.

Portanto, é na busca por resposta à pergunta colocada pela Academia

de Dijon – “O que gera a desigualdade entre os homens?” – que Rousseau é

levado a ver na capacidade humana de sair de si mesmo e na necessidade do

homem de se comparar permanentemente com os outros, visando a ser melhor

que o outro; a origem da dinâmica que marca o início e o aprofundamento da

sociabilidade humana.

1.6. DESIGUALDADES PARA ROUSSEAU

De acordo com os seus apontamentos, Rousseau busca determinar as

causas mediante, as quais o homem teve que sair desse estado de primitiva

felicidade e abundância para o estado de sociabilidade. Diz o filósofo:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é

meu”, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o

verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras,

mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano

aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse

gritado a seus semelhantes: Fugi às palavras desse impostor; estareis

perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a

terra não é de ninguém.” (ROUSSEAU, 1985, p. 84)

Assim, o filósofo parece creditar ao desenvolvimento da propriedade

privada o fundamento da desigualdade entre os homens. Mas, embora enuncie

deste modo sintético sua tese no início da segunda parte do Discurso,

desenvolve-a, subsequentemente, de modo a mostrar os eventos que,

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possivelmente, tiveram que se passar para que o homem abandonasse seu

estado de liberdade natural para integrar-se numa sociedade sob um governo.

A partir de eventos naturais, provavelmente uma catástrofe, e das

necessidades deles decorrentes, Rousseau postula uma primeira diferenciação

entre os homens até então iguais. As condições naturais adversas exigiram do

homem criar uma relação de trabalho e pode-se verificar, a partir disso, as

primeiras diferenciações e os primeiros impulsos para a sociabilidade. Parece

haver aqui, ao que tudo indica, um salto da condição natural do homem para

uma condição social. A figura do selvagem parece, pois, exercer essa função

mediadora entre o tipo puro do homem natural e o homem social:

Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas,

enquanto se limitaram a coser suas vestimentas de peles com

espinhos ou ossos de peixe, a se ornar com plumas e conchas, a pintar

o corpo com diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e

flechas, a talhar com pedras afiadas algumas embarcações para

pescar ou alguns grosseiros instrumentos musicais; enfim, enquanto só

se dedicaram a trabalhos que podiam ser feitos por uma só pessoa, e

artes que não exigiam o concurso de várias mãos, eles viveram livres,

sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser por sua natureza, e

continuaram a desfrutar entre si das comodidades de um comércio

independente. Mas, a partir do momento em que um homem precisou

do auxílio de outro; a partir do momento em que se aperceberam ser

útil a um só possuir provisões para dois, a igualdade desapareceu, a

propriedade introduziu-se, o trabalho se tornou necessário.

(ROUSSEAU, 1985, p. 92-93)

Em decorrência da propriedade e da divisão das funções de cada um, os

homens agora aparecem desigualmente dotados de riqueza e é esta

desigualdade de posses que está no fundamento da sociedade civil, do

governo, e de todas as prerrogativas e desigualdades posteriores, pois, para

Rousseau, o contrato que funda a sociedade e estabelece um governo é um

produto da astúcia dos ricos para conservar suas posses muito mais do que do

temor dos pobres para protegerem suas vidas. O fundamento da desigualdade

entre os homens parece estar, então, no trabalho e na propriedade privada.

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Rousseau faz uma crítica ao sistema da propriedade privada e é contra

esse sistema de dominação entre os homens, que deixa de lado os princípios,

a justiça e os valores éticos. Os valores humanos foram deturpados por uma

sociedade hipócrita e vazia que privilegia o ter, o dominar, o conquistar, o

poder conquistado por meio da propriedade privada.

Na segundo parte do livro Discurso sobre a desigualdade, Rousseau, ao

relatar os males que constituem o impulso à desigualdade, coloca a

propriedade privada como geradora desse mal ao homem. Diz que a

propriedade e os animais são os bens reais que o homem pode ter, mas vale

mais o homem e suas necessidades, como irmãos próximos, do que o

enriquecimento por meio da propriedade. Com isso, o cidadão de Genebra

aponta que a desigualdade está na má distribuição e na aquisição indevida da

propriedade. Uns perecem e outros tomam a mão inúmeras propriedade:

Os enriquecidos só pela indústria não podiam basear sua propriedade

em melhores títulos. Por mais que dissessem: “fui eu quem construiu

esse muro; ganhei este terreno com meu trabalho”, outros poderiam

responder-lhes: “Quem vos deu as demarcações, por que razão

pretendeis ser pagos a nossas expensas, de um trabalho que não vos

impusemos? Ignorais que uma multidão de vossos irmão perece e

sofre a necessidade do que tendes a mais e que vos seria necessário

um consentimento expresso e unânime do gênero humano para que,

da subsistência comum, vos apropriásseis de quanto ultrapassasse a

vossa? (ROUSSEAU, 1978, p. 268)

Com a propriedade privada, o homem passou a ser escravo do seu

trabalho, o poder passou a ser vinculado à posse de terras e bens. A sociedade

constituída pela hierarquia entre os homens fez desses sujeitos objetos de

alcance de seus interesses. Isto é, uns eram escravos que trabalhavam para

outros que se diziam patrões por possuírem propriedades. Evidencia-se, assim,

uma relação de ricos (proprietários) e pobres (não proprietários).

Rousseau define como sendo a propriedade privada a responsável pela

desigualdade social pelo fato de colocar sobre o homem uma hierarquia de

poder, que provém da aquisição de bens e da propriedade. Cria-se, então, uma

concepção de sociedade desigual e de injustiça social, contribuindo para uma

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dominação entre os homens, em que os privilégios pertencem aos mais

poderosos.

Rousseau não tenta eliminar a concepção de propriedade privada, mas

sim acabar com a excessiva desigualdade de patrimônio e dar direito a todos

os cidadãos como garantia de seu direito natural.

Com a desigualdade em curso, vieram as consequências como: as

moradias precárias, salários mal remunerados, jornadas de trabalho

excessivas, exploração de mão de obra infantil e a má divisão de terras.

Ressalta-se, no Discurso sobre a origem da desigualdade, a hipótese segundo

a qual os indivíduos viviam sadios, bons e felizes em estado de natureza,

cuidando de sua própria sobrevivência, até o momento em que surge a

propriedade e uns passaram a trabalhar para outros gerando escravidão e

miséria, ocasionando, então, um desequilíbrio social a partir da distribuição de

terras, de bens e de propriedades.

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CAPÍTULO II

ESSÊNCIA HUMANA EM MARX

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2. HISTÓRICO

Karl Marx nasceu em 1818 em uma família judia (religião que

abandonou anos mais tarde). Na época, existia uma Berlim que estava muito

longe de ser, como atualmente, uma sociedade totalmente presente e inserida

nos avanços europeus. Era dominada por uma sociedade burguesa que não

tinha interesse em alterar a situação do país, a qual era uma classe subjugada

incapaz de reverter sua situação:

Berlim não era, naquela época, mais do que uma corte e vila militar,

cuja população pequeno-burguesa se vingava com múrmuros

maldosos e mesquinhos do servilismo covarde que testemunhava em

público às carruagens e cortejos palacianos. (MEHRING, 1957: 34)

A sociedade a que se refere Mehring é a que viveu Marx ainda criança,

em meados dos anos de 1830, sendo que esta sociedade estava fortemente

influenciada pelo pensamento Hegeliano. Era uma Alemanha dominada pelas

Dietas (parlamentos) provinciais, controlada, principalmente, pelos grandes

proprietários de terras. Em 1835, depois de brilhantes sucessos na escola,

Marx foi estudar nas Universidades de Bona e Berlim, começando pelo Direito,

até que os encantos de filosofia arruinaram todo o seu interesse pela carreira

de advogado.

Marx mudou-se, anos mais tarde, para a capital com o intuito de estudar

direito na Universidade de Berlim. Foi durante estes estudos que ele teve o

maior contato com a obra de Hegel. Analisou aquela sociedade em que estava

inserido, diante de seus problemas e possíveis progressos. Em seus estudos

em Berlim, Marx teve não só contato com Hegel, mas também com um grande

seguidor deste estudioso, Bruno Bauer, professor de Teologia da Universidade

de Berlim.

Com o fechamento do jornal e sua mudança para a França, aumenta

muito sua relação com Engels. Passam a trabalhar no livro A sagrada Família.

Em 1845, Marx é expulso de Paris e vai para Bruxelas, é neste momento que,

junto com Engels, tem início a redação da obra A ideologia alemã.

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Quando apareceu para Marx a hipótese de uma carreira acadêmica na

universidade devido à sua origem, à sua personalidade e às suas ideias

radicais, ele virou-se para o jornalismo, tornando-se redator-chefe da “Gazeta

Renana”. Com o fechamento do jornal pelos censores do governo prussiano,

em 1843, Marx exila-se em Paris, Bruxelas e, por fim, Londres. Nesse mesmo

ano, casa-se Jenny von Westphalen, a sua namorada de infância e aristocrata.

Deste casamento, Marx teve cinco filhos: Franziska, Edgar, Eleanor, Laura, e

Guido.

Durante a maior parte de sua vida adulta, sustentou-se com artigos que

publicava ocasionalmente em jornais alemães e americanos, e o fato de a vida

deste intelectual radical não ter sido ainda mais difícil deve-se unicamente a

Friedrich Engels, seu grande colaborador e amigo que o acompanhou ao longo

de toda a sua vida.

Marx foi expulso da maior parte dos países europeus devido ao seu

radicalismo. O seu envolvimento com radicais franceses e alemães, no agitado

período de 1840, fez com que ele levantasse a bandeira do comunismo e

atacasse o sistema capitalista. Segundo este economista, o Capitalismo era o

principal responsável pela desorientação humana. Defendia a ideia de que a

classe trabalhadora deveria unir-se com o propósito de se contrapor aos

capitalistas e tentar aniquilar de vez a característica abusiva deste sistema que,

segundo ele, era o maior responsável pelas crises que se viam cada vez mais

intensificadas pelas grandes diferenças sociais e suas desigualdades.

Este notável personagem histórico faleceu em Londres, a 14 de março

de 1883, deixando muitos seguidores de suas ideias. Seu grande amigo

Friedrich Engels declama estas palavras quando da sua morte:

Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Sua verdadeira missão na vida era

contribuir, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista

e das instituições estatais por estas suscitadas, contribuir para a libertação do

proletariado moderno, que ele foi o primeiro a tornar consciente de sua posição

e de suas necessidades, consciente das condições de sua emancipação. A luta

era seu elemento. E ele lutou com uma tenacidade e um sucesso com quem

poucos puderam rivalizar.

(...)

Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo. Governos,

tanto absolutos como republicanos, deportaram-no de seus territórios.

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Burgueses, quer conservadores ou ultrademocráticos, porfiavam entre si ao

lançar difamações contra ele. Tudo isso ele punha de lado, como se fossem

teias de aranha, não tomando conhecimento, só respondendo quando

necessidade extrema o compelia a tal. E morreu amado, reverenciado e

pranteado por milhões de colegas trabalhadores revolucionários – das minas

da Sibéria até a Califórnia, de todas as partes da Europa e da América – e

atrevo-me a dizer que, embora, muito embora, possa ter tido muitos

adversários, não teve nenhum inimigo pessoal.”1

Para Marx, os trabalhadores estariam dominados pela ideologia da

classe dominante, ou seja, as ideias que eles têm do mundo e da sociedade

seriam as mesmas ideias que a burguesia espalha. O Capitalismo seria

atingido por crises econômicas porque ele se tornou o impedimento para o

desenvolvimento das forças produtivas. Seria um absurdo que a humanidade

inteira se dedicasse a trabalhar e a produzir subordinada a um punhado de

grandes empresários. A economia do futuro, que associaria todos os homens e

povos do planeta, só poderia ser uma produção controlada por todos os

homens e povos.

Os Manuscritos econômico-filosóficos, ou Manuscritos de Paris,

apresentam a planta fundamental do pensamento de Marx: a concentração de

sua filosofia na crítica da economia. Na obra, Marx expõe a contradição entre

moral e economia, denunciando a radicalidade da exploração do homem pela

empresa capitalista. Enquanto a reprodução do capital é o único objetivo da

produção, o trabalhador ganha apenas para sustentar suas necessidades mais

vitais, ou seja, para não morrer, colaborando para um processo de alienação,

perda da essência humana e contribuindo para o surgimento das

desigualdades sociais do mundo moderno.

2.1. HOMEM E TRABALHO

A meta de Marx, na sua filosofia, era a libertação do homem. A

emancipação das prisões econômicas e sua reintegração com a sua natureza e

harmonia com seus semelhantes. Ele visava à plena realização do indivíduo.

1 Citação disponível em http://www.nilsonmoraes.pro.br/soc/karlmarx.pdf - acesso em 26/02/2013.

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Buscava a superação do homem da alienação, na restauração das

capacidades dele para relacionar-se inteiramente consigo e com os outros.

Qual é a essência do ser humano na perspectiva do jovem Marx? Ou

ainda antes disso: o jovem Marx concebe o homem como possuindo uma

essência? Qual seria esta essência? Em verdade, o objeto marxiano é o

homem vivo, portanto um homem necessariamente histórico, um homem de

sua época: um homem vinculado à sociedade burguesa. Este objeto – a

sociedade capitalista ou o homem na sociedade capitalista – possui uma

“existência objetiva”.

Acerca da essência do homem, em Marx, importa referir dois estudos

relativos ao tema. O primeiro deles é o de Nicola Abbagnano, que assim

resume os pontos principais da antropologia marxiana:

Não existe uma essência ou natureza humana em geral. O ser do

homem é sempre historicamente condicionado pelas relações em que o

homem entra com os outros homens e com a natureza, pelas exigências do

trabalho produtivo. Portanto, estas relações condicionam o indivíduo, a pessoa

humana existente; mas os indivíduos por sua vez condicionam-se promovendo

a sua transformação ou o seu desenvolvimento. O indivíduo é um ser social e

se realiza nesse contexto. (ABBAGNANO, 1970, p. 53 – destaque)

O homem é um ser social. Além de produzir e reproduzir a sua

existência, além de autoproduzir-se, o homem o faz social e historicamente. O

homem encontra-se umbilicalmente ligado à natureza, seu corpo inorgânico.

Não há homem sem outros homens e sem a natureza. A consciência do

homem é o reflexo das relações de produção, da sua atividade produtiva, social

e historicamente determinada. O conjunto das relações produtivas materiais do

homem consubstancia uma estrutura econômica, base sobre a qual se erige

uma superestrutura jurídica, política, pedagógica, enfim, ideológica. Portanto,

não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao invés disto, é

o ser social, produtor, autoprodutor e histórico – ou seja, o homem vivo, um

indivíduo determinado, que antes de tudo precisa comer, beber, vestir-se e

morar –, com suas relações de produção, que determina a sua própria

consciência.

É muito importante entender a ideia fundamental de Marx sobre o

homem em si: o homem faz a sua própria história. Ele é o seu próprio criador.

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O homem dá a luz à si próprio no decurso de sua vida. Com essa visão ele

começa a analisar a natureza e a essência humana.

No livro o Conceito marxista do Homem, de Erich Fromm o autor

destaca a seguinte ideia sobre a natureza do homem para Marx:

Marx não acreditava, como o fazem muitos sociólogos e psicólogos

contemporâneos, que houvesse algo assim como uma natureza do homem,

que este ao nascer seja como uma folha de papel em branco na qual a cultura

escreve seu texto. Bem ao contrário desse relativismo sociológico, Marx partiu

da ideia de que o homem como homem é uma entidade identificável e

verificável, podendo ser definido como homem não apenas biológica,

anatômica e fisiologicamente, mas também psicologicamente. (FROMM, 1967,

p.34).

Fica evidente que para Marx a natureza humana deve ser vista a partir

de sua integridade, isto é, de todos os aspectos que constituem o homem.

Assim Marx difere de seus antecessores que partiram de uma hipótese: o

homem é um ser bom ou mal por natureza. Marx disse:

Para saber o que é útil para um cão, precisa-se estudar a natureza canina. Essa

natureza, em si mesma, não deve ser deduzida do principio de utilidade. Ao aplicar isso

ao homem, quem criticar todos os atos, movimentos, relações, etc., humanos, pelo

principio de utilidade terá primeiro de lidar com a natureza humana em geral, e depois

com a natureza humana modificada de cada época histórica. (MARX, 1906, p. 668)

Em A ideologia alemã, Marx apresenta as premissas de sua concepção

sobre a essência humana:

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases

reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, ação e

suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram

prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são,

pois verificáveis por via puramente empírica. A primeira condição de toda

história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A

primeira situação a constatar é, portanto, as relações que ele gera entre eles e

o restante da natureza. (MARX E ENGELS, 1998, p. 10)

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Para Marx o homem é um ser natural, como vida natural que se

desenvolve nesse domínio imposto e único que é a natureza. Isso significa

aceitar o homem como um ser que pertence à natureza e que, por isso,

encontra-se submetido ao estatuto da dependência, tal como qualquer animal

ou planta. O corpo do homem é regido por leis naturais. Essa dependência do

homem em relação à natureza é um aspecto essencial da vida humana.

Marx reconhece no homem dois tipos de impulsos e apetites humanos:

os constantes ou fixos, como a fome e o desejo sexual, que são a parte

integrante da natureza humana e só podem variar na forma cultural e os

relativos, que não fazem parte integrante da natureza humana, mas devem sua

origem a certas estruturas sociais, econômicas e de comunicação, por

exemplos, a necessidade do dinheiro. Essa necessidade foi “criada pela

economia moderna”, como escreve ele nos Manuscritos Econômicos e

Filosóficos.

Portanto, para o homem a sua matéria prima é humana. Ela só é

alterada, modificada no decurso da história, pois o homem se desenvolve, se

transforma, é um produto histórico. Assim como ele faz a história, ele é seu

próprio produto. Para Marx a História é a auto realização do homem, pois é

nela que o homem cria a sua natureza e essência por intermédio de seu

próprio trabalho e produção:

...o conjunto daquilo a que se denomina história do mundo não passa de

criação do homem pelo trabalho humano e o aparecimento da natureza para o

homem; por conseguinte, ele tem a prova evidente e irrefutável de sua

autocriação, de suas próprias origens. (FROMM, 1967, p. 36).

Para Marx no processo da existência a essência se realiza. Para ele o

homem se caracteriza pelo “movimento”, isto é, por uma produtividade, uma

vitalidade criadora, uma energia como objeto de sua realização e existência.

Um ser que não tem sua natureza fora de si não é um ser natural, não participa

da natureza. Um ser que não tem nenhum objeto fora de si mesmo não é um

ser objetivo. Um ser que não é ele mesmo objeto para um outro é um ser que

não tem nenhum ser como objeto; ou seja, é um ser que não se encontra em

relações objetivas e, portanto, seu ser não é objetivo. Um ser não-objetivo é um

não-ser. (MARX, 1996, p. 171)

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É importante esclarecer que a definição do homem como um ser natural

não significa de modo algum promover uma redução da existência humana a

qualquer ordem fisiológica substancial da qual o seu comportamento seria

apenas a manifestação.

Nos Manuscritos de 1844, Marx explica que, na medida em que o

homem se revela como um ser que padece e que sofre ele é impulsionado a

agir. Essa ação tem se manifestado ao longo da história sobretudo através de

uma atividade que lhe é muito peculiar: o trabalho. O trabalho é a forma

humana de o homem agir sobre a natureza.

Toda a concepção de realização humana só pode ser plenamente

compreendida em ligação com sua a ideia de trabalho. Antes de qualquer

coisa, o trabalho e o capital não eram, para Marx, meras categorias

econômicas; eram categorias antropológicas, impregnadas de um valor

humanista. “O capital, aquilo que é acumulado, representa o passado; o

trabalho, por outro lado, é ou devia ser quando livre a expressão da vida.”

(FROMM, 1967, p. 46). Assim, Marx entendia como Hegel, que o trabalho era

a “autocriação do homem”. O trabalho é atividade criadora, o movimento

criador e não uma mercadoria. Marx explica:

O trabalho é, em primeiro lugar, um processo de que participam

igualmente o homem e a natureza, e no qual o homem

espontaneamente inicia, regula e controla as reações materiais entre si

próprio e a natureza. Ele se opõe à natureza como uma de suas forças,

pondo em movimento braços e pernas, as forças naturais de seu corpo,

a fim de apropriar-se das produções da natureza de forma ajustada a

suas próprias necessidades. Pois, atuando assim sobre o mundo

exterior e modificando-o, ao mesmo tempo ele modifica sua própria

natureza. Ele desenvolve seus poderes inativos e compele-os a agir

em obediência à sua própria autoridade. Não estamos lidando agora

com aquelas formas primitivas de trabalho que nos recordam apenas o

mero animal. Um intervalo de tempo emensurável separa o estado de

coisas em que um homem leva a força de seu trabalho á venda no

mercado, como uma mercadoria, daquele em que o trabalho humano

ainda se encontrava em sua etapa instintiva inicial. Pressupomos o

trabalho em uma forma que o caracteriza como exclusivamente

humano. Uma aranha leva a cabo operações que lembram as de um

tecelão, e uma abelha deixa envergonhados muitos arquitetos na

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construção de suas colmeias. Mas o que distingue o pior arquiteto da

melhor das abelhas é que o arquiteto ergue a construção em sua

mente antes de a erguer na realidade. Na extremidade de todo

processo de trabalho, chegamos a um resultado já existente antes na

imaginação do trabalhador ao começa-lo. Ele não apenas efetua uma

mudança de forma no material com que trabalha, mas também

concretiza uma finalidade dele próprio que fixa a lei de seu modus

operandi, e à qual tem de subordinar sua própria vontade. E esta

subordinação não é um ato simplesmente momentâneo. Além do

esforço de seus órgãos corporais, o processo exige que, durante toda a

operação, a vontade do trabalhador permaneça em consonância com

sua finalidade. Isso significa cuidadosa atenção. Quanto menos ele se

sentir atraído pela natureza de seu trabalho e pela maneira por que é

executado, e, por conseguinte, quanto menos gostar disso como algo

em que emprega suas capacidades físicas e mentais, tanto maior

atenção é obrigado a prestar. (MARX, 1906, p. 197 – 198).

Foi através do trabalho que o homem produziu a sua humanização. O

trabalho permitiu ao homem distanciar-se de sua animalidade, desenvolvendo

uma série de novas capacidades. Ele não deixou de ser natureza. Mas tornou-

se humano. Por meio do trabalho, o homem se diferencia da natureza, mas não

rompe com ela. Portanto, o homem produz a sua “perfeição” através do

trabalho.

O trabalho é a expressão própria do homem, uma expressão de suas

capacidades físicas e mentais. Nesse processo o homem desenvolve a si

mesmo, torna-se ele próprio. O trabalho não é só um meio para um fim, mas

um fim em si mesmo.

O homem é o único ser que se relaciona com a natureza através de uma

mediação: o trabalho. O trabalho é a atividade que medeia a relação material

do homem com a natureza. Constitui um elemento essencial da existência

humana. É, além disso, absoluto porque é impossível pensar a existência

humana sem a atividade produtiva. Trata-se de uma “necessidade natural” e

“eterna” da vida humana. Uma necessidade da qual ele jamais pode prescindir

e que deve, portanto, acompanhá-lo ao longo de toda a sua história.

Como atividade que visa, de uma forma ou de outra, à apropriação do que é

natural, o trabalho é a condição natural da existência humana, uma condição

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do metabolismo entre homem e natureza, independentemente de qualquer

forma social. (MARX, 1978, p. 143).

Por mais desenvolvida que seja a forma social, mesmo numa sociedade

comunista, o homem não poderá prescindir do trabalho2 para produzir a sua

existência material. A característica que distingue o trabalho da produção

realizada pelo animal consiste em seu caráter consciente e livre. A produção

animal é guiada pelos instintos. O homem, ao contrário, produz de forma

deliberada. Marx assinala,

Certamente, o animal também produz. Ele constrói um ninho,

habitações, como a abelha, o castor, a formiga etc. Mas ele produz

apenas o que é imediatamente necessário para si e sua cria; ele

produz de uma maneira unilateral, enquanto o homem produz de um

modo universal; ele produz apenas sob o império da necessidade física

imediata, enquanto o homem produz mesmo quando livre de toda

necessidade física e só produz verdadeiramente quando está

verdadeiramente livre. (MARX, 1998, p. 115 – 116).

O homem é um ser capaz de prever suas necessidades. Foi por meio

dessa atividade que o homem se afirmou no mundo como sujeito e imprimiu na

natureza as marcas indeléveis de seu poder.

Ao produzir algum objeto, o homem cria novas necessidades. Uma vez

satisfeita essas necessidades, a ação de satisfazê-las e o instrumento já

adquirido com elas traz satisfação que geram novas necessidades. Eis o que

Marx considera ser o primeiro ato histórico. O trabalho cria novas necessidades

e estas levam a novas criações. Esse processo também foi abordado por

Rousseau o qual ele denominou de perfectibilidade. O homem aperfeiçoa o

ambiente ao seu redor para viver.

A necessidade, por sua vez, age sobre a produção humana: ela fornece

a finalidade e o motivo do trabalho humano.

2 Segundo Marx, “o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o

ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeças e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando, assim, sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo, modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais”. O capital, livro I, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 211.

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É importante ressaltar que, ao produzir o seu mundo humanizado, o

homem produz-se a si mesmo como homem. A transformação da natureza é

acompanhada da simultânea transformação da natureza humana. O trabalho

está também na base do desenvolvimento da própria intelectualidade humana.

Essas necessidades exigiram do homem um aperfeiçoamento do intelecto.

Novas capacidades intelectuais do homem são acompanhadas por outras

necessidades inteiramente novas: a “curiosidade” científica, e as aspirações

estéticas, religiosas, políticas e morais.

A crítica feita por Marx ao Capitalismo não está no fato injusto da

distribuição da riqueza; está na forma pervertida do trabalho, convertendo-o em

trabalho forçado, exploratório, alienado, sem sentido ao homem.

2.2. SOCIABILIDADE HUMANA

Surge, então, uma pergunta: “Como o homem criou as relações

sociais?”.

Marx interpreta o fato social em seu sentido mais profundo: como

relação material dos indivíduos submetidos à necessidade, que, como tais,

colaboram no processo de apropriação e transformação da natureza ou se

opõem na posse dos bens de consumo. A sociabilidade humana se manifesta

mesmo nas atividades em que é preciso realizá-la. De fato, nenhum indivíduo é

todo o homem. O indivíduo só é um homem em sociedade, em suas relações

com outros indivíduos. Um indivíduo determinado nada mais é do que um

indivíduo considerado em seu ser social. O homem nada é, fora do indivíduo,

além de um simples conceito, e o indivíduo só se determina como homem em

sociedade. Assim, o ser social é a determinação da existência concreta do

indivíduo humano.

Marx não vê o homem como um ser isolado e independente do gênero

humano ou da sociedade determinada no âmbito da qual se dá sua existência

empírica. Ao contrário, o homem é um ser social e é na sociabilidade, na

interatividade social (forma própria de existência do homem), mediante

processo de apropriação do acúmulo histórico e socialmente produzido pelo

gênero, que ele se forja verdadeiramente como humano.

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Na introdução da obra Contribuição à Crítica da Economia Política,

Marx faz uma abordagem histórica do processo produtivo. O autor retoma

Rousseau e Smith para mostrar que a forma de produção descrita por estes

autores como ponto de partida – o caçador ou pescador particular – é uma

simplificação muito grande, já que o indivíduo não é capaz de viver senão se

relacionando com o grupo social em que está inserido. Tais simplificações

podem somente ser entendidas se forem um ponto de partida, uma abstração,

para se entender o desenvolvimento histórico:

Quanto mais remontamos na história, melhor aparece o indivíduo, e, portanto,

também o indivíduo produtor, como dependente e fazendo parte de um todo

mais amplo; em primeiro lugar de uma forma ainda muito mais natural, de uma

família e de uma tribo, que é a família desenvolvida; depois de uma

comunidade sob suas diferentes formas, resultado do antagonismo e da fusão

da tribo. E somente ao chegar ao século 18 e na “sociedade burguesa” é que

as diferentes formas das relações sociais se erguem diante do indivíduo como

um simples meio para seus fins privados, como uma necessidade exterior.

(MARX, 2008, p. 238-239).

A atividade social dos homens, com sua base material, é que cria o meio

onde o indivíduo vive e é apenas nesse meio, no “médium” criado pela

interatividade social, que ele pode se constituir. É ela que cria as condições e

os meios objetivos e subjetivos para a realização da forma própria de ser de

cada singular, da individualidade entendida como a vida privada ou espiritual

de cada um.

Evidentemente não se trata aqui de uma constatação empírica, de uma

análise fatual.

Mas mesmo se minha atividade for de ordem científica etc., e ainda que eu

raramente possa realizar em comunidade direta com os outros, eu sou um ser

social porque atuo enquanto homem. Não apenas o material de minha

atividade – por exemplo, a língua graças ao qual o pensador faz seu trabalho –

me é dado como um produto social, mas minha própria existência é atividade

social. Em consequência, o que eu faço de mim, eu o faço para a sociedade,

consciente de ser eu mesmo um ser social. (MARX, 1996, p.146-147).

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Portanto, para Marx, o homem revela-se como um ser essencialmente

histórico, um ser em eterno aperfeiçoamento. No entanto, é inteiramente

histórica a forma por meio da qual o homem realiza a sua atividade produtiva e

sua sociabilidade. Assim, para Marx, as três principais dimensões do homem

são: a necessidade, o trabalho e a sociabilidade.

2.3. ALIENAÇÃO HUMANA

O conceito de homem ativo e produtivo não pode ser plenamente

entendido sem o conceito de negação da produtividade: a alienação. Para

Marx, a história humana é feita do desenvolvimento humano e, por

consequência, da crescente alienação. Marx usava, além do termo alienação, a

palavra “alheamento” como significado de que o homem não vivia como um ser

ativo sobre o mundo, mas o mundo, a natureza, é que permanece alheio a ele.

Erich Fromm, em Conceito marxista do Homem, ressalta o que seria o conceito

primordial da alienação para Marx:

Para Marx, tal como para Hegel, o conceito de alienação baseia-se na

distinção entre existência e essência, no fato de a existência do homem

ficar alheada de sua essência, de na realidade êle (sic) não ser o que

deveria ser, e êle (sic) dever ser aquilo que poderia ser. (FROMM, 1967,

p. 53).

O jovem Marx encantara-se, desde cedo, com a percepção de que o

homem, este ser concreto e natural, transformara e continuava transformando

o mundo com seu trabalho, e que em um mesmo movimento transformara e

continuava a transformar a si mesmo. A natureza, transformada pelo homem,

“humanizara-se”, incorporara a sua face humana. O homem mudara

literalmente a face da Terra, e, para onde quer que olhemos, pode-se dizer,

não há mais como deixar de enxergar a marca humana. Mas, ao mesmo

tempo, ao lado deste comovente encantamento diante da capacidade humana

de “transformar o mundo e de transformar a si mesmo”, Marx também

encontrara a sua terrível sombra: a percepção de que este mesmo homem,

neste ponto de sua análise multiplicado pela infinidade de indivíduos, também

se perdera na história, se “desumanizara”; em uma palavra, “se alienara” (da

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natureza, de si mesmo e de suas próprias criações). A “alienação” (que tem em

Marx o duplo sentido de “estranhamento” e perda de consciência) logo se

tornaria o primeiro tema importante do jovem Marx. Assim, o processo de

alienação manifesta-se no trabalho. O trabalho é, para ele, a forma do homem

se relacionar com a natureza, criar um “mundo” e a si mesmo. Erich Fromm

expõe a compreensão da ideia acima:

Com a expansão da propriedade privada e da divisão do trabalho, todavia, o

trabalho perde sua característica de expressão do poder do homem; o trabalho

e seus produtos assumem uma existência à parte do homem, de sua vontade e

de seu planejamento. (FROMM, 1967, p. 53)

O trabalho é alienante quando “objetifica” o homem. O produto final de

sua atividade criadora passa a ser estranho ao homem, como uma força

independente do produtor. Esse trabalho humano é alienado porque trabalhar

deixou de fazer parte da natureza do trabalhador e, por consequência, ele não

se realiza pelo seu trabalho, mas nega-se a si mesmo e, portanto, a sua

natureza. O trabalho passa a ser sinal de sofrimento em vez de bem-estar.

Assim, o trabalhador tem uma relação com sua criação como algo que ele não

vivencia “como algo alheio e não pertencente a êle (sic), a atividade como

sofrimento (passividade), o vigor como impotência, a criação como

emasculação”. (FROMM,1967, p. 94)

Enquanto o homem está alienado de si mesmo, o produto de sua criação

torna-se um objeto estranho que o domina. Nos Manuscritos econômicos

filosóficos, Marx distingue dois pontos relevantes sobre alienação: 1) no

processo do trabalho capitalista, o homem se afasta de sua criação, e 2) os

objetos de seu trabalho tornam-se objetos estranhos.

Tudo aquilo que fragmentava o ser humano, que o apartava do mundo,

de si mesmo, das coisas que ele criara, da sua natureza; tudo aquilo que o

separava da consciência que deveria ter, que o transformava em um “animal

sem essência”; tudo aquilo que o mergulhava em uma espécie de sono do qual

não parecia ser possível despertar, remetia em Marx ao âmbito da alienação.

Seguem, abaixo, as formas de alienação estudadas por Marx:

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Fonte: http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/o-conceito-de-aliena-o-no-jovem-marx-2-aliena-o-m-ltiplos?xg_source=activity –

04/01/13

Diante desse quadro e dos itens analisados pelo próprio Marx, conclui-

se que o capital, o dinheiro, o Estado, o mercado, a religião, as instituições

burocráticas, bem como todas as representações abstratas ideológicas

correspondentes, exigem o sacrifício e a submissão humana. Impõe-se o

estilhaçamento da personalidade pela fragmentação e decomposição da

essência humana e da comunidade social. A “coisificação das pessoas”

causam a desnaturação do homem. A este fenômeno social, chama-se

alienação.

Exemplificando, a espécie humana se aliena, a partir da fragmentação

social em interesses conflitantes, entre produtores destituídos de posses e

proprietários não produtores, trabalho intelectual oposto ao trabalho manual,

fragmentação do trabalho, crescente diferenciação das funções sociais, e o

necessário desenvolvimento das instituições repressivas. Assim, consolida-se

no homem a perda do sentido de si, predomina a percepção de objeto, como

se ele fosse um joguete, cuja ação só tem sentido quando está à serviço de

uma lógica impessoal e externa.

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A teoria da alienação na obra de Marx sofre um processo de

aprofundamento, passando de uma visão filosófica para um estudo social,

político e econômico. Vê-se que, em um primeiro momento, Marx não busca a

abordagem econômica, mas sociológica desta questão, mas sim em entender o

homem, inclusive historicamente, como um ser que busca sua essência, sendo

que esta está relacionada ao trabalho não alienado. Algo ressaltado por

Vásquez:

Daí resulta que, se a essência humana se concebe como trabalho, mas

como trabalho oposto do alienado, ou seja, como trabalho criador que

importa em que o homem se reconheça em seus produtos, em sua

própria atividade e nas relações que estabelece com os demais, essa

essência humana que se nega real e efetivamente nunca se

manifestou na existência do homem, razão pela qual aparece, ao longo

da história, divorciada da sua existência. A essência que só se dará

efetivamente quando se superar – com o comunismo – esse divórcio;

então, a existência não será sua negação, mas sim sua realização.

(VÁZQUEZ, 1968: 417).

Assim, o homem real para Marx distanciou-se de sua essência. Era um

homem que, ao invés de ter uma relação positiva com aquilo que produz,

acabou se opondo de tal maneira que a produção tornou-se fruto da sua

destruição e da sociedade que o acolhe. Como citado abaixo:

O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,

quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O

trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior

número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas,

aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.

O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si

mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na

mesma proporção com que produz bens. (...) A alienação do

trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se

transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe

independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder

autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna

uma força hostil e antagônica (MARX, 2006, p. 111-112).

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Marx critica fortemente como se davam as relações de produção à

época, quando o trabalho se torna um objeto passível de aquisição. Quando

existe tal precedente, ou seja, quando é possível vender o trabalho em si e não

o fruto do trabalho, e, por consequência, a exploração torna-se um caminho

rentável para aqueles que possuem os meios de produção. Sendo assim, o

trabalhador tem que trabalhar cada vez mais para possuir o que, originalmente,

nada mais seria que produto do seu próprio esforço produtivo, e, logo, sua

propriedade.

O trabalho se torna dono do homem e este deixa de enxergar em si para

se ver naquilo que produz. Porém, se aquilo que é por ele produzido não mais

lhe pertence, o homem passa a se ver em algo que é de outrem, assim o

homem deixa de ser proprietário de si para se tornar uma ferramenta daquele

que o explora e, portanto, o possui. Quanto mais o homem trabalha

alienadamente, mais distante fica de sua essência e mais materialmente pobre

se torna. Pelo trabalho e pelo que consome da sua produção, o homem isola-

se de si, como é ressaltado por Marx:

Em parte, esta alienação descobre-se pelo motivo de o refinamento

das necessidades e dos meios para as satisfazer causar, como

recompensa, uma aversão rude; ou melhor, no fato de apenas se

reproduzir a si mesma em sentido oposto. Para o trabalhador até

mesmo a necessidade de ar puro deixa de ser necessidade. O homem

regressa à moradia nas cavernas, mas agora se encontra intoxicada

pela exalação maléfica da civilização. O trabalhador tem apenas o

direito precário a nela morar, porque se tornou um poder estranho, que

se lhe diminui todos os dias, do qual pode ser desalojado, se não pagar

renda. Tem de pagar este cemitério. (MARX, 2006, p. 150)

O trabalho, neste contexto, não é mais um meio de suprir necessidades,

mas uma forma de ganhar dinheiro para consumir o trabalho de outro (também

já apropriado pelo capitalista). O homem é, então, estranho àquilo que produz.

Falamos anteriormente que o homem regressa à moradia nas

cavernas, mas de modo alienado o danoso. O selvagem na sua

caverna – elemento natural que lhe é oferecido livremente para uso e

proteção – não se sente como estranho; pelo contrário, sente-se tão

bem nela como o peixe na água. Mas a habitação em caves dos

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pobres é uma habitação hostil, “um poder estranho, constringente, que

só lhes rende em troca de sangue e suor”. Não a podem considerar

como sua casa (...). Sentem-se antes na casa de outra pessoa, na

casa de um estranho, que todos os dias se encontra à espreita e o

expulsa, se não pagar a renda. São igualmente conscientes do

contraste que existe entre sua habitação e uma habitação humana, sita

no outro mundo, no céu da riqueza.

A alienação não se revela apenas no fato de que meus meios de vida

pertencem a outro, de que meus desejos são a posse inatingível de

outro, mas de que tudo é algo diferente de si mesmo, de que a minha

atividade é qualquer outra coisa e que, por fim – e também o caso para

o capitalista – um poder inumano impera sobre tudo. (MARX, 2006,

p.157)

O trabalho não é mais algo natural do trabalhador. O homem é um ser

naturalmente social e também um ser ativo por natureza. No entanto, em um

contexto que sua atividade é fonte de desgosto, ela se torna objeto de aversão.

Enquanto, em sua essência, o trabalho deveria ser fonte de prazer, ele passa a

ser uma obrigação quando é alienado, “portanto ele não se afirma no trabalho,

mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas, infeliz, não desenvolve

livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o

espírito” (MARX, 2006, p. 114).

O trabalho passa a ser uma imposição daquele que domina. O trabalho

se apropria do homem na medida em que este não é capaz de se apropriar

daquilo que produz. Assim, o homem luta contra sua própria natureza e, desta

forma, ocorre a autoalienação. Não é a “alienação da coisa”, mas a alienação

da natureza humana.

Marx estava interessado na libertação do gênero humano, pois, com o

trabalho, este se torna escravo, coisa. Na obra Conceito marxista do Homem,

Erich Fromm diz:

Assim como Kierkgaard estava interessado na salvação do indivíduo,

também Marx estava, e sua crítica da sociedade capitalista não é

dirigida contra seu processo de distribuição da renda, mas contra seu

modo de produção, sua destruição da individualidade e sua

escravização do homem, não pelo capitalista, mas a escravização do

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homem – trabalhador e capitalista – por coisas e circunstâncias feitas

por êle (sic) próprio. (FROMM, 1967, p. 54)

O trabalho alienado afasta a vida do homem da sua espécie, de modo

que a vida como espécie torna-se para ele apenas um meio. Marx vê que a

alienação existiu por toda a História, mas alcançou seu ponto culminante na

sociedade capitalista, e a classe de trabalhadores é a mais alienada de todas.

Assim, os operários, não participando da direção do trabalho, passam a ser

governado pelas máquinas e submissos ao capital.

É importante ressaltar que a meta de Marx não se limita à emancipação

do operário, mas visa à libertação de todo ser humano por meio do retorno à

atividade não alienante, uma sociedade em que o homem, e não a produção de

coisas, seja o objetivo. Em o Capital Marx ressalta:

Nos ofícios manuais e na manufatura, o trabalhador utiliza-se de uma

ferramenta; na fábrica, a máquina utiliza-se dêle (sic). Lá, os

movimentos do instrumento de trabalho procediam dêle (sic); aqui, é o

movimento das máquinas que êle (sic) tem de acompanhar. Na

manufatura, os trabalhadores são partes de um mecanismo vivo; na

fábrica, temos um maquinismo vivo, independente do operário, que se

torna mero apêndice vivo. (MARX, 1906, p. 461-462).

Portanto, o homem alienado, que julga ter dominado a natureza, tornou-

se escravo das coisas e das circunstâncias. Esta alienação está ligada à

alienação de si próprio, de seus semelhantes e da natureza.

Uma consequência direta da alienação do homem do produto de seu

trabalho, da atividade de sua vida e da vida de sua espécie é que o

homem é alienado dos outros homens. Quando o homem se enfrenta a

si mesmo, também enfrenta os outros homens. O que é verdade

quanto à relação entre o homem e seu trabalho, o produto de seu

trabalho e êle (sic) próprio, também é verdade quanto à sua relação

com outros homens, e com o trabalho e os objetos do trabalho dêles

(sic). De maneira geral, a afirmação de o homem estar alienado da vida

da espécie significa cada homem estar alienado dos outros e cada um

destes estar alienado, analogamente, na vida humana. (FROMM, 1967,

p. 58)

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O homem alienado está alienado da essência humana, de seu ente, em

todos os sentidos. Essa alienação da essência humana leva a um egoísmo,

pois o homem isola-se de sua natureza externa, de seu próprio corpo. A

alienação produz a perversão de todos os valores, descaracterizando o ser

humano e fazendo-o perder sua naturalidade por meio de produtos criados por

si mesmo.

2.4. PROPRIEDADE PRIVADA

De acordo com as descobertas de Marx, pode-se afirmar que o homem

atual, que vive e se reproduz nas circunstâncias impostas pelo domínio da

propriedade privada, é um ser abstrato, um ser que perdeu sua referência

enquanto humano. Pois, o que faz dele ser concreto, objetivo (o objeto que ele

produz que é o seu trabalho – que é o seu caráter genérico de homem – e,

acima de tudo, sua relação com os demais homens) se tornou exterior e,

portanto, pelo menos aparentemente, inessencial para sua existência enquanto

ser humano.

Mas, em realidade, o homem só é humano porque, objetivamente, cria e

reproduz sua existência concreta. Esta criação, no entanto, aparece, no interior

deste desenvolvimento, como perda de si mesmo. Sendo assim, sua própria

concretude se tornou exterior e ele só existe enquanto abstração.

O fenômeno no qual o homem se estranha a si (perda da essência) tem

seu ponto derradeiro com a propriedade privada, mas ela é apenas o resultado

de um longo processo que se inicia quando a natureza é uma força estranha

que domina o homem. As primeiras formações sociais mostram claramente

este problema.

A propriedade privada foi vista como função alienadora pelo jovem Marx:

A propriedade privada é, por conseguinte, o produto, o resultado

necessário, do trabalho alienado, da relação eterna do operário com a

natureza e consigo mesmo. A propriedade privada, pois, deriva-se da

análise do conceito de trabalho alienado; isto é, homem alienado, vida

alienada, e homem separado. (FROMM, 1967, p. 57)

A propriedade privada de Marx é a propriedade dos capitalistas e não de

um acúmulo de bens de uso (como uma mesa, casa, entre outros). Esses

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capitalistas tem meios, poder de contratar um indivíduo para trabalhar para

eles. A propriedade privada se refere a um grupo que tem possibilidades, bens

para dominar o outro.

Por outro lado, Marx assevera:

De modo semelhante, os trabalhadores da propriedade fundiária não

se encontram na condição de diaristas assalariados, mas são em parte

a propriedade do senhor, como no caso dos servos, e em parte estão

perante ele numa relação de respeito, de subordinação e obrigação.

Por conseguinte, a sua relação a eles é diretamente política e possui

até um lado sentimental. (MARX, 1974, p. 506).

Segundo Marx, por detrás desta relação, todavia, já está presente

a relação econômica explorador/explorado. Portanto, para Marx,

... é inevitável (...) que a propriedade fundiária, a raiz da propriedade

privada, seja arrastada para o movimento da propriedade privada e se

transforme em mercadoria, que o domínio do proprietário surja como

um regime nu e cru da propriedade privada, do capital, dissociado de

toda coloração política; que a relação entre o proprietário e o

trabalhador se reduza à relação econômica de explorador e explorado;

que toda relação pessoal entre proprietário e sua propriedade se

extinga, transformando-se em simples riqueza material concreta; que

em lugar do honroso casamento com a terra se instale o casamento do

interesse e a terra, juntamente com o homem, se rebaixe a objeto de

especulação. É inevitável que a raiz da propriedade fundiária, a sórdida

ambição, transpareça também na sua forma cínica. É inevitável que o

monopólio imutável se transforme em monopólio móvel e agitado – em

concorrência; que a fruição ociosa do suor e do sangue alheios se

transforme em comércio febril com a mesma mercadoria. Finalmente, é

inevitável que nesta concorrência a propriedade fundiária, sob a forma

do capital, manifeste o seu domínio tanto sobre a classe trabalhadora

como sobre os próprios proprietários, na medida em que as leis do

movimento os arruínem ou promovam. Assim, o adágio medieval 'nulle

terre sans seigneur' é substituído pelo provérbio moderno 'l'argent n'a

pas de maítre', que exprime a completa dominação dos homens pela

matéria morta. (MARX, 2004, p. 75)

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A atividade vital humana que se exerce, não como fim em si, mas como

meio, é uma atividade estranha ao homem, na qual ele se estranha a si

mesmo, não se reconhecendo enquanto ser humano. Assim, Marx admite:

A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um

objeto só é nosso quando o temos, quando ele existe para nós como

capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado,

etc., em suma, utilizado de qualquer maneira. Apesar de a propriedade

privada em si mesma só conceber essa várias formas de posse como

meios de vida, a vida para a qual eles servem como meios é a vida da

propriedade privada – o trabalho e a criação de capital. Assim, todos

os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples

alienação de todos esses sentidos: o sentido de ter. O ser humano

tinha de ser reduzido a essa pobreza absoluta a fim de ficar apto a

deixar nascer toda a sua riqueza interior. (FROMM, 1967, p. 132)

A produção e reprodução da riqueza material pressupõem, portanto, a

produção e reprodução da miséria e da escravidão, na medida em que a

miséria relativa aumenta em proporção direta ao aumento da produção

material. O trabalho inverte a verdadeira relação entre meios e fins, e, neste

contexto, a atividade humana transforma-se em meio de subsistência e a

subsistência física imediata – comer, beber, procriar – converte-se em fim

último da vida humana: o bestial passa a ser humano e o humano bestial.

A essência humana torna-se inferior à de um animal:

O lixo, esta corrupção e podridão do homem, a cloaca da civilização

torna-se para ele um elemento de vida. Nenhum dos seus sentidos

existem mais, nem em seu modo humano, nem de modo desumano e

nem sequer de modo animal. (MARX, 1974, p. 548)

O operário, portanto, não é mais “homem”, pois foi excluído da

comunidade humana, na medida em que não apenas lhe é vedado o acesso ao

produto humano construído pelo seu próprio trabalho, mas, sobretudo, porque

satisfaz suas próprias necessidades de subsistência fora dos padrões de

humanidade ou desumanidade. O trabalhador se aliena de sua própria

humanidade para ganhar uma existência bestial. No interior do domínio da

propriedade privada, esta é a melhor situação que ele pode perspectivar:

alienar-se ainda mais em troca de cada vez menos.

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Conclui-se que homem e trabalhador se excluem mutuamente, pois o

sistema econômico reduz, ao mesmo tempo, o preço e a remuneração do

trabalho, aperfeiçoa o trabalhador e degrada o homem. Enquanto trabalhador,

o homem existe para o capital e não para si. É, portanto, uma abstração de

homem – o trabalhador é ser abstrato, o homem não é mais que trabalhador e

suas qualidades de homem existem somente para o capital que lhe é estranho.

Trabalhador e capital são expressões subjetiva e objetiva do homem

alienado, pois, no interior do capital, o trabalho se realiza como essência

exterior ao homem. Ou seja, ao realizar o trabalho como não essencial, o

trabalhador também se converte em capital.

2.5. DIVISÃO DO TRABALHO E DA PROPRIEDADE PRIVADA

A quarta e última parte dos Manuscritos leva o título “O Trabalho

Alienado”. Marx passa, assim, de um trabalho mais interpretativo de textos a

uma perspectiva formuladora, com o objetivo de superar uma “absurda mística

da propriedade privada” que impediria a humanidade de usufruir

apropriadamente as riquezas socialmente produzidas.

A aquisição da propriedade carrega consigo o pressuposto que torna

possível a legitimidade social da apropriação privada do trabalho alheio, sem

que, para tanto, sejam necessárias ameaças e coações físicas, como era o

caso no escravismo; ou mesmo sem precisar recorrer a uma suposta ordem

teológica, como era o caso no período feudal.

Interessante é notar que, nessa época, algo que hoje é aceito com uma

naturalidade ainda estava em vias de constituição de sua legitimidade social:

busca de propriedade privada enquanto motor e fim do agir humano. Ou seja,

aquisição da propriedade gera, de antemão, a privação do outro usufruir. A

propriedade dá forma e existência à sociedade capitalista. Daí seu caráter

privado, identificador de sua especificidade em relação a outras formas, como a

propriedade comunitária, social ou mesmo da simples posse.

Por esta especificidade de a propriedade na sociedade capitalista ser a

posse de alguém ou de um grupo, qualquer afrontamento a essa pode muito

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facilmente ser convertida em ameaça a toda e qualquer forma de propriedade.

Até mesmo aqueles que não a possuem, ou que são regularmente impedidos

de usufruir os frutos de seu próprio trabalho (por sua condição específica de

trabalhadores), mesmo estes se sentem em risco com tal suposta ameaça. O

que é, sem dúvida, uma artimanha ideológica muito eficiente contra o

questionamento da propriedade privada, uma vez que qualquer

questionamento é logo convertido em ameaça às próprias condições de

existência material das pessoas e mesmo contra sua liberdade.

À época de Marx, esta forma de propriedade ainda não gozava da

legitimidade ideológica que tem nos dias atuais. A existência dessa era, muitas

vezes e facilmente, associada a todo tipo de mazelas humanas e sociais. A

causa da miséria decorrente desses processos de cercamento ocorridos no

período moderno, processos exercidos a fim de viabilizar a criação de ovelhas,

com o objetivo de abastecer as nascentes indústrias têxteis com matéria-prima,

era identificada claramente com a apropriação privada das terras. Não foram

poucos os teóricos que identificaram todo tipo de miséria da época com a

existência da propriedade privada. Propostas do socialista utópico, como

Proudhon, foi um tentativa de se contrapor a essa, tida como a geradora de

uma sociedade e de indivíduos cada vez mais alienados de suas autênticas

propriedades humanas e sociais.

Para poder questionar algo a partir de sua gênese constituidora, é

preciso entender suas condições de possibilidade, ou, em outras palavras, a

processualidade social e humana pressuposta. Um dos méritos da reflexão de

Marx em relação ao tema é que ele afirma que o trabalho alienado é uma das

causas (condição de possibilidade) da propriedade privada que desencadeia a

desigualdade, pois colabora para o processo de estranhamento do indivíduo

(alienação).

Marx realiza seu intento teórico à medida que vai desvendando e

aprofundando os pressupostos humanos e sociais desta forma específica de

propriedade a partir de níveis diferenciados de alienação. Busca, assim,

apreender a conexão essencial entre todo este sistema de alienação e o

sistema do dinheiro, termo utilizado na época para designar o que, mais tarde,

passaria a se chamar, consensualmente, de sociedade capitalista.

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Para tanto, Marx assume um fato que os próprios economistas haviam

descoberto, qual seja, o de que o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto

mais riqueza produz, já que ocorre que as riquezas produzidas pelo trabalhador

são apropriadas por outros. Marx busca, no entanto, investigar os pressupostos

ocultos neste fato, ou seja, como é possível que, quanto mais o trabalhador

produz, mais ele valoriza o mundo das coisas e o poder daqueles que o

dominam?

Segundo alguns economistas, este parece ser um “destino humano”, ou

seja, o trabalhador exterioriza-se em coisas físicas, objetivando-se e

aumentando, desta forma, o poder das coisas sobre o poder humano. Dessa

forma, a apropriação do objeto no processo de trabalho, uma vez que trabalho

é sempre um processo de exteriorização, aparece sempre como sendo

alienação de si mesmo. A economia política não ultrapassa este estágio do

pensamento simplesmente identificando objetificação/exteriorização com

alienação, e apresentando, assim, a alienação do produto do trabalho como

algo naturalizado e necessário. Marx não se satisfaz com esta explicação e

procura deduzir outras implicações deste fato. Reflete, por isto, que o

trabalhador é duplamente dependente do objeto, ou seja, não apenas porque

ele não pode produzir sem ter um mundo sensível com o qual interage, mas

também porque precisa deste mundo exterior para se manter como ser vivo,

comendo, respirando, vestindo-se. Conclui, portanto, que a humanidade

concreta e viva do homem só pode se realizar à medida que este se relaciona

com o mundo exterior.

Neste fato, Marx evidencia que o próprio processo produtivo já deve ser

um processo ativo de alienação, ou seja, não basta distribuir os produtos do

trabalho alienado, pois é o próprio processo de trabalho enquanto processo

ativo de alienação que precisa ser superado.

Esta realidade, segundo Marx, é constatável pelo fato de que, no

processo de produção capitalista, o trabalhador se sente infeliz e oprimido,

chegando ao extremo de que o trabalhador só se sente em si fora do trabalho,

enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é

voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. O trabalhador, neste caso, sente

que está se arruinando espiritual e fisicamente. O trabalho não traz satisfação

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em si, serve apenas como meio para atingir outros fins. O fruto do seu trabalho

não lhe pertence, pois o trabalhador não usufrui da finalidade desse. É apenas

um sacrifício necessário.

Como a ação que o trabalhador realiza neste processo é expressão de

sua própria vida, portanto, é sua própria vida enquanto atividade produtiva que

se aliena. Esta reflexão permite que Marx possa perceber um nível ainda mais

profundo de alienação implícito ao trabalho alienado, ou seja, a autoalienação.

Esta, no entanto, não é um simples processo de objetificação de um indivíduo,

pois a própria atividade do trabalho só é possível à medida que os homens são

capazes de uma atividade vital consciente, ou seja, à medida que eles fazem

uso de qualidades humanas universais, enquanto seres genéricos, ou, nas

palavras de Marx: “como um ser universal, e, portanto, livre”.

Em consequência disso, pode-se afirmar que, quando o homem se

aliena de si mesmo, entra igualmente em oposição com os outros homens, ou

seja, pelo fato de o homem ter se alienado de seu corpo, de sua natureza

externa e de sua capacidade de ser livre, ele acaba se alienando também de

seu semelhante, uma vez que a própria espécie humana passou a ser algo

estranho para ele. No dizer de Marx:

O que se verifica com a relação do homem ao seu trabalho, ao produto

do seu trabalho e a si mesmo, verifica-se também com a relação do

homem aos outros homens, bem como ao trabalho e ao objeto do

trabalho dos outros homens. De modo geral, a afirmação de que o

homem se encontra alienado da sua vida genérica significa que um

homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se

encontra igualmente alienado da vida humana. (MARX, apud.

SCHÜTZ, 1975, p. 166).

Marx conclui: a alienação do homem em relação a seu produto, ao

processo de produção e a si mesmo experimenta-se, primeiramente, na

relação do homem com os outros homens. O estranhamento e a indiferença

dos homens na relação uns com os outros se mostra, portanto, como sendo o

fundamento social mais profundo da alienação.

A possibilidade de que um ser humano se aproprie do produto do

trabalho de outro ser humano só é possível à medida que os seres humanos se

relacionam entre si na qualidade de seres estranhos. Dizer que o homem se

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relaciona de forma alienada com seu trabalho significa dizer que outro homem

usurpou este poder dele enquanto senhor que o determina e coage.

“Por conseguinte, o homem, através do trabalho alienado, não só produz

a sua relação ao objeto e ao ato de produção como a homens estranhos e

hostis, mas produz ainda a relação dos outros homens à sua produção e ao

seu produto e a relação entre ele mesmo e os outros homens” (MEF. 2004, p.

168), ou seja, nesta relação, se efetiva a dominação de quem não produz sobre

o produtor, a produção e o produto.

Os tipos de alienação expostos são, portanto, pressupostos sociais e

humanos para que alguém possa se apropriar de forma aparentemente

legítima do trabalho alheio. A alienação gera a possibilidade de apropriação

privada dos produtos do trabalho humano socialmente produzido. A

propriedade privada é, pois, fundamentalmente, produto e consequência do

trabalho alienado, ou, nas palavras de Marx, “a propriedade privada deriva-se

assim da análise do conceito de trabalho alienado, ou seja, do homem

alienado, do trabalho alienado, da vida alienada do homem estranho a si

próprio” (MARX, apud. SCHÜTZ, 1975, p. 166).

2.6. DESIGUALDADES EM MARX

Como tantos outros filósofos, Karl Marx foi um pensador dos problemas

de seu tempo. Revelando-se ótimo observador das linhas históricas mundiais,

Marx dedicou os seus escritos à crítica da exploração proletária na época da

Revolução Industrial, gerada pelo Capitalismo e pela desigualdade de classes,

cuja manutenção era explicada pela existência da propriedade privada.

No Capitalismo, o trabalho era exterior ao operário, não pertencia à sua

essência. Como foi analisado anteriormente no trabalho, o operário não se

afirmava, mas se negava. Não se sentia bem, mas infeliz. Não desenvolvia

nenhuma energia física e espiritual, mas mortifica o corpo e arruinava o

espírito. Portanto, o operário só se sentia consigo mesmo fora do trabalho.

O trabalho era imposto de fora. Não era a satisfação de uma

necessidade do trabalhador. O trabalho não se tornou uma necessidade, mas

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apenas um meio de receber um salário, um simples meio de atender outra

necessidade. Todo trabalho operário voltava-se contra ele, como uma força

estranha e hostil. O operário, ao produzir mercadorias, produzia a sua própria

alienação e não alcançava nem a propriedade privada.

Segundo Marx, a propriedade burguesa, é a última e mais perfeita

expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos

de classes, na exploração de uns pelos outros. Assim, a propriedade privada

estava relacionada ao monopólio de bens, e, principalmente, de terras, que só

os burgueses detinham naquela época, como classe exploradora dos

proletários fabris e agrários. A propriedade privada consistia num fator social

negativo, porque foi erigida como direito natural pela classe dominante, e, por

isso, deveria ser eliminada como mantenedora de privilégios, mais do que pela

sua característica de direito natural.

Além disso, o direito, a cultura, a educação e a família, segundo Marx,

também eram todos igualmente monopolizados pela classe dominante

burguesa, que assim manuseava um sistema que lhes privilegiava e não

deixava escolha de mudança àqueles trabalhadores, mesmo que alcançassem

para a sociedade algum desenvolvimento, pois “Todo o movimento histórico

está, desse modo, concentrado nas mãos da burguesia e qualquer vitória

alcançada nessas condições é uma vitória burguesa”. (MARX, 2008)

Olhando por esse lado, Marx entendeu que o proletariado era uma

classe que se via impossibilitada de modificar a situação opressora em que se

encontrava, a não ser que eliminasse o isolamento entre seus membros.

Marx arquitetou, então, com Engels, a famosa filosofia comunista,

segundo a qual os trabalhadores de todas as nações deveriam juntar-se em

grupos organizados para realizar a revolução de classes, consistindo na

destruição de toda organização voltada para a manutenção da classe

dominante, incluindo aí o próprio Estado. Como um de seus principais objetivos

estava a desconstituição de toda propriedade privada para formar uma única

propriedade comum a todos aqueles que trabalhavam, ficando ela na mão do

Estado, este formado pelos próprios trabalhadores, o qual estabeleceria, ao

final de tudo, a justiça social.

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Todas as classes que no passado conquistaram o Poder, trataram de

consolidar a situação adquirida submetendo a sociedade às suas

condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das

forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação que

era próprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriação em

vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua

missão é destruir todas as garantias e segurança da propriedade

privada até aqui existentes. (MARX, 2008)

Apesar de concordar que a história do homem é marcada pela sua

economia, a propriedade privada é vista por ele apenas como artifício

econômico resultante da desigualdade social para manutenção das forças

produtivas do capital.

A propriedade privada, segundo Marx, tornou os homens estúpidos a

ponto de um objeto só ser considerado dele quando é diretamente comido,

bebido, vestido, habitado, isto é, quando utilizado de alguma forma em que

todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pelo sentido do ter.

A sociedade capitalista tem no dinheiro uma forma particular de

alienação humana em geral, que inverte o sentido da realidade, a propriedade

do dinheiro passa a ser também de quem o possui. Assim, sou feio, mas posso

comprar a mais bela mulher, pois o dinheiro é o verdadeiro cérebro de todas as

coisas. Essa sensação que o dinheiro proporciona, para Marx, converte o amor

em ódio, o servo em senhor, a estupidez em inteligência.

Contrapondo ao mundo do dinheiro, Marx pregava uma nova sociedade

em que o homem fosse homem e que a relação com o mundo fosse mais

humana. Mas, para realizar tal mundo é preciso, antes de qualquer coisa, deve-

se abolir a propriedade privada, esquecer o ganho de capital, as rendas da

terra, eliminá-los definitivamente de nossas concepções. Este seria o primeiro

passo para a apropriação da verdade humana, a substituição positiva de toda a

alienação, o retorno do homem da religião, do Estado, para a vida realmente

social.

O comunismo seria, para Marx, a abolição da propriedade privada e o

fim da alienação humana. Ele seria a verdadeira apropriação da natureza

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humana por meio do homem. O retorno do homem a si mesmo como ser um

social.

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CAPÍTULO III

DESIGUALDADES:

ROUSSEAU E MARX

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3. ROUSSEAU E MARX: DESIGUALDADES

Sobre as origens das desigualdades, apontam-se diversas causas

histórico-sociais que vão desde as teorias da apropriação privada do trabalho e

da noção mesma de propriedade, passando pela divisão do trabalho (manual-

intectual, masculino-feminino), até as teorias da coerção ou violência, e, ainda,

até às explicações de tipo valorativo-normativo.

Os conceitos trabalhados pelos pensadores em questão possuem algo

em comum, apesar de sua nuances e especificidades. O que mais intriga na

pesquisa está no fato de a origem das desigualdades passar pelo processo de

desconstrução – perda da essência ou do entendimento como humano – do

homem, como relatado nos capítulos anteriores nos dois pensadores. Essa

“descaracterização” humana produz outro homem que não consegue se

perceber no meio em que vive. Por esse motivo, desrespeita os princípios

básicos de convivência consigo e com o outro. Uma das consequências desse

desrespeito é a produção das desigualdades sociais.

A análise do Segundo Discurso confirma, em pontos essenciais da

reflexão de Rousseau, um precursor das ideias de Marx. Pode-se constatar

que a articulação dialética entre propriedade privada, divisão do trabalho e

alienação não foi feita pela primeira vez em A ideologia alemã, escrita em

1845-1846: quase cem anos antes, essa articulação – embora de modo menos

sistemático – já havia sido utilizada por Rousseau como o principal instrumento

conceitual da análise crítica da sociedade burguesa de seu tempo.

É fácil observar no Discurso, a antecipação de outros conceitos do

materialismo histórico, como, por exemplo, o vínculo entre o desenvolvimento

das forças produtivas e a gestação de diferentes modos de produção e de

formações sociais. É a partir do desenvolvimento das técnicas produtivas

(pastoreio, agricultura, metalurgia) – conceito de perfectibilidade de Rousseau

– do progresso e das faculdades humanas (linguagem, razão, especialização

no trabalho, etc.) – que formam o que Marx chamou de “forças produtivas”.

Todos esses conceitos de Marx são destacados nos escritos de Rousseau.

Jean-Jacques Rousseau estabelece com firmeza o momento em que se

cristaliza a desigualdade social: na instituição do direito de propriedade.

Segundo Rousseau: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a

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dizer: “isso é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele,

foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. (ROUSSEAU, 1985, p. 84).

Assim a obra de Rousseau apresenta que a apropriação parcelada das

coisas implicam laços de dependência recíproca entre os homens, favorecendo

a sociabilidade e os seus males.

Marx sofistica a análise do direito de propriedade e da divisão social do

trabalho, ao colocá-los no centro do conceito de modo de produção. A

propriedade privada seria o resultado da apropriação do produto do trabalho

pelo não-operário (proprietário dos meios de produção), enquanto, a divisão do

trabalho seria o exercício do poder que a classe detentora dos meios de

produção tem para com a classe operária. Dessa forma o homem trabalhador

seria uma propriedade a ser adquirida. Propriedade e divisão do trabalho se

confundem: “são expressões idênticas”. Isso porque o núcleo da definição

de propriedade está no “poder de dispor da força de trabalho de outros”

(Marx e Engels, 1998, p. 46).

A propriedade, no entanto, pode organizar-se de distintas maneiras

e cada forma específica de se “dispor da força de trabalho de outros”

comporta específicos mecanismos de inibição da possibilidade humana de se

expressar na sua forma integral.

Assim, a relação entre trabalho assalariado – uma forma de organização

para dominar o trabalho de outro – e capital pode levar às últimas

consequências as potencialidades da noção de propriedade como poder de

disposição da força de trabalho alheia.

3.1. CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA

Trata-se, agora, de ver quais são as causas, ou, nos termos do próprio

Rousseau, qual é “a origem e o fundamento da desigualdade entre os

homens”. A principal delas consiste no nascimento da propriedade privada: “O

verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um

terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente

simplórias para acreditar nele”. (DISCURSO, 2005, p. 203)

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Ao mesmo tempo, temos o surgimento e a crescente intensificação da

divisão do trabalho, que se tornou cada vez mais necessária em função da

desmesurada ampliação dos carecimentos humanos, em falta no estado de

natureza. Quebrando a independência do homem natural e ampliando a

dependência recíproca entre os indivíduos socializados, no quadro de um

regime baseado na propriedade privada, a divisão do trabalho criou conflitos e

rivalidades entre os seres humanos, tornando o egoísmo desenfreado (o amour

propré) a motivação básica da vida social.

Além disso, Rousseau registra a presença, na "sociedade civil", de

fenômenos que, mais tarde, Marx irá designar com o nome de "alienação": as

objetivações criadas pelos homens sociais reciprocamente dependentes não

mais são apropriadas de modo autônomo pelos seus criadores, produzindo-se,

assim, um antagonismo entre a essência social-objetiva da humanidade e a

existência singular de cada indivíduo. É esse antagonismo entre a

independência (do homem natural) e a dependência (do homem da "sociedade

civil") – questão central no pensamento de Jean-Jacques – que o aproxima da

problemática marxiana da alienação. Na verdade, o que Rousseau critica não é

tanto o fato de que os homens dependam uns dos outros para satisfazer suas

necessidades, mas sim o modo peculiar pelo qual se dá essa dependência, ou

seja, nos quadros da propriedade privada e da divisão do trabalho. Isso,

segundo ele, leva à perda da autonomia e, por conseguinte, da independência

e da liberdade dos indivíduos.

Assim, Rousseau denuncia a corrupção, a desumanização e a alienação

envolvidas no culto do dinheiro e da riqueza, mas percebe apenas um lado

mais frágil desse problema. Essa riqueza, para o filósofo, é aparente e ilusória.

Aqui ele não está preocupado com o poder alienante do dinheiro, mas o modo

particular do poder de exercer a concentração da riqueza e a tudo aquilo que

decorre da mobilidade social produzida pela expansão e concentração

(propriedade privada).

O Segundo Discurso apresenta o processo de socialização, no qual os

homens fazem um contrato com o objetivo de instituir um corpo político. Esse

contrato rousseauniano é descrito como um pacto que se legitima – ou

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pretende se legitimar – em nome da garantia da segurança e da propriedade. A

condição anterior ao contrato (que não é mais natural) é descrita como um

horror de uma situação que armava uns contra os outros e que tornava suas

posses tão onerosas quanto as necessidades. Isto gerava insegurança a todos.

O contrato que Rousseau nos descreve no Discurso beneficia apenas uma

parcela da sociedade, precisamente os ricos, os detentores de propriedade. Na

medida em que a propriedade, no estado anterior ao contrato, resultava apenas

de “uma conquista pela força”, interessava aos proprietários fundá-la e garanti-

la não por meio de um "direito precário", mas por meio de uma legalidade

positiva reconhecida e aceita por todos, inclusive pelos não-proprietários.

Tendo convencido os pobres das supostas vantagens de criar uma

ordem legal mediante um contrato – valendo-se, para isso, de um discurso que

os marxistas não hesitariam em definir como "ideologia" – os ricos tornaram-se

os únicos beneficiários da nova situação. Rousseau se expressa com toda

clareza:

Todos correram ao encontro dos seus grilhões, acreditando garantir

sua liberdade [...]. Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das

leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico,

destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre

a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação

sagaz um direito irrevogável e, para vantagem de alguns ambiciosos,

passaram doravante a submeter todo o gênero humano ao trabalho, à

servidão e à miséria. (DISCURSO,1973, p. 275-276).

Segundo Rousseau, o contrato realizado entre os cidadãos e a ordem

política legaliza a desigualdade e sua principal causa, a propriedade privada.

Isso levará a um processo gerador de opressão, ao arbítrio de muitos e ao

despotismo. Com base numa sociedade injusta e num contrato mistificador,

diz-nos Jean-Jacques, a ordem política não pode permanecer legítima.

Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes

revoluções, verificaremos que seu primeiro termo foi constituído pelo

estabelecimento da lei e do direito de propriedade; o segundo, pelo

estabelecimento da magistratura [ou seja, pela instituição de uma

camada politicamente dominante]; o terceiro e último foi a

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transformação do poder legítimo [já que fundado num contrato] em

poder arbitrário. (DISCURSO, 1973, p. 283).

Já em Marx, a constituição da propriedade ocorre da seguinte forma: a

propriedade privada é a causa da forma degradante de trabalho. Contudo, ela

é, simultaneamente, seu produto. Não há dúvidas de que a exteriorização do

trabalho produz propriedade; quando a propriedade torna-se privada, ela gera o

estranhamento, a alienação.

Para Marx, o processo de alienação manifesta-se no trabalho e na

divisão do trabalho. O trabalho é, para ele, o relacionamento ativo do

homem com a natureza, a criação do próprio homem (...). Com a

expansão da propriedade privada e da divisão do trabalho, todavia, o

trabalho perde sua característica de expressão do poder do homem; o

trabalho e seus produtos assumem uma existência à parte do homem,

de sua vontade e de seu planejamento (FROMM, 1983, p. 53).

Portanto, a propriedade privada, que, para a economia política, surge

como a razão e resultado do trabalho, para Marx, ela é, simultaneamente, a

causa e a consequência do estranhamento deste. Ela é o princípio orgânico

que determina não apenas a produção, mas a distribuição, o consumo, enfim,

toda a vida social. Nesse sentido, a propriedade privada, que exclui de si a

participação coletiva na riqueza social produzida, é, essencialmente, um

elemento de dominação que permeia a sociedade e, desse modo, toda

sociabilidade fundada no princípio dessa propriedade gera relações

econômicas, políticas e culturais desiguais.

A emancipação humana dos ditames da propriedade privada, da miséria,

do estranhamento, só será possível pela ação real dos indivíduos, mediante um

engajamento político dos sujeitos sociais que sofrem diretamente com a

dominação do capital, visto que tal dominação é um ato histórico, portanto, não

é uma obra do pensamento; a miséria humana assenta-se em bases reais, no

trabalho estranhado. Assim, ao falarmos de emancipação humana, isto é, do

fim da exploração do homem pelo homem e da efetivação da liberdade,

devemos ter em mente que esta é ocasionada por condições históricas, reais; e

somente a organização política dos trabalhadores poderá emancipar a

sociedade da propriedade privada.

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Isso não quer dizer que tal emancipação diga respeito somente aos

trabalhadores, mas, como essa classe é a que sofre diretamente as

contradições do capitalismo, e tendo em vista que o estranhamento do trabalho

acarreta as diversas outras formas de estranhamento social, então a

emancipação do trabalho exploratório implica na emancipação humana.

A emancipação da propriedade privada, entretanto, não implica a

abolição de toda e qualquer forma de propriedade. Toda propriedade é

resultado do trabalho humano, mesmo se este estiver em sua forma capitalista.

Mesmo aí, o trabalho produz riqueza social útil, ou seja, mesmo no

Capitalismo, o trabalho possui seu momento de positividade. A propriedade,

em sua acepção universal, é uma propriedade verdadeiramente humana.

Contudo, o ser humano torna-se uma propriedade privada, ou, em outros

termos, o homem estranha o seu trabalho quando perde o domínio dos meios

de produção e torna-se uma mercadoria que se vende como força de trabalho

a um outro que passa a deter um poder sobre sua atividade. Assim assimilando

a essência do trabalho estranhado e compreende-se a essência da

propriedade privada. O homem, mediante seu trabalho, enquanto causa da

propriedade, é, ao mesmo tempo, seu termo; ou seja, sendo causa, o homem

também é resultado da propriedade privada.

A solução apresentada por Marx a essa oposição é a abolição da

propriedade privada, compreendida em seu aspecto objetivo, ou seja, como

estranha, independente e hostil ao homem. Aqui está a ideia revolucionária do

comunismo de Marx. Embora seja a expressão efetiva da objetivação das

potencialidades humanas, a propriedade privada é, simultaneamente, a

negação do próprio homem, sua efetividade estranhada. Marx apresenta uma

proposta para o afrontamento a esse processo de expropriação humana: o

comunismo de natureza política, seja ele democrático ou despótico, é a

abolição do Estado como instituição política que serve aos interesses da classe

detentora do poder, mas que deixa imperar na sociedade a relação da

propriedade privada, o que significa dizer que o estranhamento humano não foi

abolido. Por isso, Marx afirma que essa forma de comunismo é ainda

incompleta.

Nesse sentido, enquanto o comunismo estiver afetado pela propriedade

privada e, portanto incompleto, o estranhamento do ser humano continuará a

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existir no seio da sociedade. Somente com base em uma compreensão da

essência positiva da propriedade privada e da natureza humana das carências,

será possível se pensar um autêntico comunismo que permita ao homem

efetivar-se em sua totalidade.

3.2 - IGUALDADE: UM RESGATE DO HUMANO

A instituição da propriedade foi o divisor de águas que marcou

definitivamente a formação da sociedade civil, cujas características básicas

eram a dominação e a desigualdade. Isso ocorre porque os mais fortes

exploravam o trabalho dos outros em suas terras, não mais para suprir as

próprias necessidades, mas para lucrar e ter mais poder de troca e de

comando. Assim, com a ambição humana, tem-se a origem das desigualdades

sociais e de inúmeros conflitos entre os homens. É nesse contexto que,

segundo Rousseau, foram estabelecidas as leis e os governos, supostamente

para proteger os mais fracos, mas, na realidade, as leis são feitas pelos mais

fortes para proteger suas propriedades.

Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram

novos entraves ao fraco e novas forças aos ricos, destruíram

irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da

propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um

direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante

sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.

(ROUSSEAU APUD CARDOSO, 1978, p. 269).

Para Rousseau, é o contrato social que fornece a solução para o

problema da desigualdade, pois, por ele, cada membro transfere toda a sua

força e direitos para a comunidade, e põe em comum sua pessoa e todo o seu

poder sob a direção suprema da vontade geral, e com esse ato de

transferência, cria-se um corpo moral coletivo que se pode chamar de cidade

ou de república. Na república, cada membro se torna um cidadão e participa da

autoridade soberana, tornando-se também um súdito enquanto se submete às

leis do Estado.

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Caracterizada a origem da desigualdade e dos conflitos, Rousseau

apresenta no Contrato Social uma nova fórmula de administração legítima,

capaz de restabelecer a ordem e assegurar a igualdade e a liberdade, e, por

consequência, restaurar, no convívio social, a dignidade humana. Trata-se de

um pacto social e político, buscando garantir a todos, de modo articulado, a

liberdade e a igualdade na convivência social. Os indivíduos livremente limitam

sua liberdade natural e passam a obedecer à vontade geral da sociedade a fim

de proteger sua pessoa e os bens que possui. “O que o indivíduo perde pelo

contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto

aventura e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade

de tudo o que possui” (ROUSSEAU, 1978, p. 36). E direito à propriedade é um

direito de todos.

Assim, quando Rousseau fala de liberdade civil e igualdade de direitos,

na vida social, ele está opondo-se ao estado de dominação que surge com a

instituição da propriedade como riqueza e poder. Portanto, o Contrato Social

contém novas leis para a propriedade. Não se trata de eliminá-la, pois ela tem

importância no contrato social concebido no Liberalismo, porém, de resgatar

sua única função: suprir as necessidades humanas básicas. A propriedade, no

novo pacto, não mais será determinada pela força ou pelas leis dos poderosos,

mas pelo direito enquanto expressão da vontade geral. Desse modo, o

Contrato Social propõe restabelecer a liberdade e a igualdade na nova ordem

social, estabelecendo um novo direito de propriedade.

Rousseau não propõe uma sociedade socialista, todavia a vinculação

que faz entre a propriedade, dominação e desigualdade social será o principal

fundamento em que Marx, no século XIX, se apoiará para construir seu

conceito de igualdade e, em decorrência, o sentido socialista de liberdade.

Contrariamente ao Liberalismo, em que a liberdade individual constitui-se no

fundamento principal dos valores, o pensamento socialista entra pela porta da

igualdade social para pensar a liberdade e os direitos humanos em geral.

Para Marx, em sintonia com Rousseau, a causa das desigualdades

sociais está na instituição da propriedade como acumulação e poder. A

propriedade, entretanto, não se refere apenas à posse de terras como se

pensava nos séculos anteriores, mas à posse dos meios de produção e à

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exploração da força de trabalho. Portanto, é no interior das relações de poder

social, que se estabelecem as desigualdades entre os homens pelo processo

de exploração do trabalho alheio e, por consequência, os conflitos entre

dominadores e dominados.

Marx e Engels abrem o Manifesto do partido comunista afirmando de

modo categórico:

A história de toda a sociedade até hoje é a história de luta de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da

corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em

constante antagonismo entre si... [...]. A nossa época, a época da

burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado os

antagonismos de classe. Toda a sociedade está a cindir-se, cada vez

mais, em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes em

confronto direto: a burguesia e o proletariado. (MARX-ENGELS, 1987,

p. 35)

Em particular em O Capital, Marx demonstra, pela teoria da mais-valia, o

mecanismo da exploração do trabalho na sociedade moderna burguesa, que

gera e aprofunda as desigualdades. Marx não segue apenas a trilha

rousseauniana, que vincula a desigualdade à propriedade, mas coloca-a como

ponto central de explicação e de solução das lutas de classe. Não é necessário

apresentar aqui os vários aspectos da teoria da mais-valia como prova da

exploração que gera a desigualdade. O que importa nesta linha de reflexão é

registrar que o pensamento marxista desloca o eixo axiológico da produção de

significados éticos e políticos. Em outras palavras, o valor igualdade – e não

mais o valor liberdade – passa a ser o elemento referencial e a base semântica

de todos os outros valores.

Obviamente, Marx refere-se à igualdade no sentido de que todos têm o

mesmo direito a condições humanas e dignas na vida social (trabalho,

educação, saúde, moradia, etc.). A conquista desses direitos sociais pelo

proletariado passa por um processo revolucionário com etapas bem definidas,

segundo o Marxismo. O Socialismo, primeira fase da revolução,

(...) não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas

envolve um respeito por suas diferenças específicas, e permite pela

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primeira vez que tais diferenças se realizem. É desta maneira que

Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o

último termo significa não algum estado de ser supra-individual, mas

simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no

processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais.

Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser

recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades

inevitavelmente persistirão. (EAGLETON, 1999, p. 49-50)

Igualdade significa, portanto, que todos têm igualmente o direito de

desenvolver suas potencialidades e receber algo digno para suprir todas as

suas necessidades básicas. Para o pensamento marxista, a igualdade social,

na fase socialista, articula-se, necessariamente, com a ideia de liberdade.

Sendo a igualdade nos direitos sociais decorrente de um processo de

transformação do modo de produção e das relações de produção da sociedade

capitalista, a ideia de liberdade aparecerá, também, na fase socialista, como

um processo de libertação. Estamos falando de um mesmo processo: a

supressão da propriedade privada burguesa é o próprio movimento de

emancipação do homem dessa estrutura de exploração e, por consequência,

de todas as outras formas de dominação e alienação que ocorrem no plano da

cultura simbólica, a superestrutura. Marx leva às últimas instâncias sua

posição em A questão judaica:

Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos. A

forma mais rígida da antítese entre o judeu e o cristão é a antítese

religiosa. Como se resolve uma antítese? Tornando-a impossível. E

como se torna impossível uma antítese religiosa? Abolindo a religião.

(MARX, 1969, p. 15)

Assim, liberdade é emancipação no processo revolucionário, e não um

estado absoluto do existir humano no originário mundo da natureza como

imaginado pelo Liberalismo. Enquanto, no liberalismo, liberdade é um direito

natural e individual de consciência, de expressão, de propriedade, no

socialismo, a liberdade insere-se num processo de emancipação política,

sendo, portanto, coletiva. Ela implica suprimir todas as formas de alienação e

dominação, enfim, transformar as estruturas de toda a sociedade burguesa.

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Em síntese, a emancipação constitui-se no processo de afirmação do homem

como sujeito e na superação das situações que o tornam objeto. Daí o sentido

antagônico entre as duas visões de liberdade, como mostra Marx, ao criticar os

direitos humanos concebidos nas revoluções burguesas: “Por conseguinte, o

homem não se libertou da religião, obteve isto sim, liberdade religiosa. Não se

libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do

egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial” (MARX, 1969, p. 50).

Por fim, na sociedade comunista, na meta final da revolução, desaparece

o binômio desigualdade versus igualdade. Com a emancipação política da

sociedade, o homem atinge a emancipação humana quando o outro não é

mais a limitação de sua liberdade individual, mas a realização de sua

liberdade.

Numa sociedade sem estruturas opressivas (portanto, sem classes

sociais), com grande desenvolvimento, abundância material e com pessoas

moralmente evoluídas para além do egoísmo, o trabalho de cada um não será

determinado pela necessidade. Dessa forma, o homem terá superado a

alienação de si mesmo e encontrado sua real natureza, que o distingue dos

outros animais.

Somos livres então, quando como artistas, produzimos sem o

aguilhão da necessidade física; e esta natureza é para Marx a

essência de todos os indivíduos. Ao desenvolver minha

personalidade individual dando forma ao mundo, estou também

realizando o que tenho de mais profundo em comum com os outros,

de tal maneira que o ser individual e o genérico são em última análise

o mesmo. Meu produto é minha existência para o outro, e pressupõe

a existência do outro para mim. (EAGLETON, 1999, p. 29-30).

Em resumo, no Marxismo, igualdade e liberdade são valores processuais

que se constroem coletivamente, com a emancipação econômica, política e

moral do ser humano. O que move o processo emancipatório é a busca de

superação de todas as estruturas opressivas que, partindo do mundo do

trabalho, causam as desigualdades e a miséria na vida social. Eis porque o

referencial dos valores éticos e políticos, no pensamento socialista, é a

igualdade social, enquanto no Liberalismo, como foi visto, é a liberdade

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individual que fundamenta a ideia de igualdade e outros valores dela

decorrentes.

Essa distinção tem implicações decisivas na compreensão dos valores

liberdade e igualdade, pois oferece leituras diferentes do conjunto dos direitos

humanos e aponta caminhos diferentes para a educação ética e política.

3.3 – LIBERDADE: UM PRINCÍPIO PARA A IGUALDADE

O conceito de liberdade sempre foi um tema muito debatido na História

da Filosofia. Qual é a influência da liberdade sobre a igualdade? A liberdade é

um meio para alcançar a igualdade e vencer os desafios impostos pelas

desigualdades sociais?

Rousseau observa que a liberdade comum, condição no estado natural,

é uma consequência da natureza humana, é intrínseca a todos os homens.

Temos por liberdade comum a primeira lei, em que todo indivíduo protege a

própria vida, sendo o único juiz dos meios para zelar pela sua conservação.

Segundo Rousseau, os homens viram que não era possível

conservarem-se a si mesmos e aos seus bens no estado natural no qual se

encontravam. Observaram, também, que não poderiam surgir novas forças em

si mesmos para manter-se, vislumbrando, assim, uma única solução: a união

de suas forças.

Essa união promoveria a conservação, a perpetuação, a sobrevivência e

a segurança de que necessitavam os indivíduos. A agregação das forças

permite-os agir de comum acordo, colocando-os em um único movimento.

Assim, a solução apontada por Rousseau foi o contrato.

Na distinção entre liberdade natural e civil, o autor aponta que a primeira

tem por limite a força individual. Na segunda, a liberdade passa a ser limitada

pela Vontade Geral e a posse. Na vontade geral, o filósofo sustenta a

existência de um Estado para que um certo número de pessoas estejam

submetidas a um conjunto comum de regras que gerenciam seu

comportamento, sob algumas penalidades.

O que os homens perdem com o contrato social é sua liberdade natural

e seu direito ilimitado do que possam adquirir. Como podemos notar, todo

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contrato termina com base em limitações, pois, se todos tivessem o direito de

fazer o que bem interessa, ninguém mais teria liberdade.

É justamente no tocante à legitimidade das regras comuns que

Rousseau elabora a teoria da vontade geral. É no papel de cidadãos que os

seres humanos adquirem sua capacidade plena. Ao tornarem-se cidadãos,

tornam-se, também, portadores de direitos e títulos, e isso é agir a partir da

compreensão moral do significado do eu e de sua própria necessidade de bem.

A liberdade civil dos cidadãos e a propriedade de tudo o que possuem

somente podem ser garantidas desse modo, o que demonstra praticamente o

movimento conceitual que explicamos nos parágrafos acima. Estamos diante

de uma liberdade conquistada pela cidadania. Só tenho liberdade individual por

intermédio da minha liberdade como cidadão. Por causa da minha liberdade

como cidadão, é que não posso e não devo ferir o Contrato. Podemos concluir

que a liberdade individual é dirigida pela liberdade civil. A liberdade reina na

dimensão da Vontade Geral realizada em plenitude por uma associação civil

que se revela, na obra do autor, como o ato voluntário em prol do bem-comum.

Segundo Rousseau, a vontade geral é o mecanismo que, com base no contrato

social, coloca os diferentes interesses do povo em termos de igualdade, por

meio das leis, visando sempre ao bem-comum.

Ora, a base da teoria rousseauniana é o Contrato Social, e tem como

objetivo primordial o bem-estar geral. Trata-se do direito e do dever de todos

para com todos. Rousseau é partidário do contrato social, ou seja, da igualdade

entre os homens perante a lei.

Por outro lado, Marx ressalta que a dimensão política não é o

componente essencial, ou um princípio de inteligibilidade e de estruturação da

sociedade. O Estado não funda a sociedade enquanto sociedade, ele não é

essencial. Ele não é, para Marx, um instrumento necessário e fundamental

para a eliminação das desigualdades sociais. Nesse sentido, Marx não seria

nem contra nem a favor da democracia, pois não estaria em busca de uma

forma possível de Estado.

Pois bem, o ser social de Marx possui seu fundamento ontológico no

trabalho, o que também submete todas as demais formas de sociabilidade,

uma vez que o trabalho é o fator de transformação da natureza para a criação

de bens necessários à subsistência dos homens.

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No mundo moderno, a forma específica de trabalho que funda o

capitalismo é a relação capital-trabalho que, por sua vez requer,

necessariamente, uma forma política que garanta sua reprodução social, ou

seja, que mantenha o trabalhador como trabalhador assalariado e o capitalista

como detentor dos meios de produção, essa forma política, para Marx, é a

democracia e o meio é o Estado.

Um contrato de trabalho carrega em si o momento da desigualdade real

e a igualdade formal. Um contrato assim exige, para sua efetivação, que ambas

as partes sejam livres, iguais e proprietárias. A democracia seria para Marx a

expressão formal do conteúdo da desigualdade gerada pela relação capital-

trabalho, sendo essa a forma de perpetuação das desigualdades sociais e sua

reprodução.

A democracia no sentido que estamos vendo aqui é uma forma de

liberdade moderna necessariamente limitada, isso se deve à propriedade

privada, raiz da desigualdade. A existência da propriedade privada,

necessariamente, nos remete à existência da exploração do homem pelo

homem, e a consequência necessária disso é a impossibilidade enfrentada

pelos homens de serem efetivamente livres, ainda que se pense no domínio da

maioria sobre a minoria, a democracia sempre será uma forma limitada de

liberdade, que pode ser ampliada, mas nunca integralizada em sua totalidade.

A liberdade plena estaria no domínio livre e consciente, coletivo e

universal do processo de produção. O objetivo é a eliminação da exploração do

homem pelo homem. Essa é uma proposta comunista para amenizar os

impactos das desigualdades.

Por isso, o estabelecimento da igualdade entre indivíduos é superado

teoricamente. O que se procura eliminar na sociedade é a divisão em classes,

a qual, na verdade, sufoca a libertação do potencial individual da maioria da

sociedade que trabalha e deve se "limitar ao seu papel". Mas, eliminada a

exploração de classe, as diferenças entre os homens não só se mantêm como

até se ampliam na medida em que todos ficam livres para desenvolver suas

aptidões e capacidades individuais, e a sociedade se volta para oferecer a

todos as condições concretas para que isso possa ocorrer.

Os homens são diferentes, seja pela diferença de atributos físicos e

mentais, seja pela diferença de necessidades que enfrentam, em função de

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distintas condições de vida. O que se procura eliminar são as desigualdades

provocadas pela divisão da sociedade em classes, isto é, que apenas

floresçam as diferenças provocadas pela plena afirmação da individualidade

humana.

Na concepção marxista, é por meio da coletividade que o indivíduo se

forma e se desenvolve. Na coletividade, o desenvolvimento livre de cada um é

a condição para o desenvolvimento livre de todos. A Marx interessa pensar

uma forma de sociabilidade em que os homens possam ser plenamente livres e

não apenas mais livres. O que ocorre, no pensamento de Rousseau, é

justamente a impossibilidade de se ser completamente livre, só há a

possibilidade de ser mais livre, mas, jamais, completamente livre.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A desigualdade ainda é a condição necessária para que o direito exista,

o Estado exista, o Capital exista. A divisão do trabalho e a apropriação

parcelada das coisas implicam em laços de dependência recíproca entre os

homens, favorecendo as mazelas sociais.

Podemos assumir duas posições com relação às desigualdades:

tentarmos descrever as desigualdades, suas escalas e registros, seu

crescimento e sua redução, o que supõe não ficarmos em generalidades,

escolhermos uma dimensão particular, como o consumo, a educação, o

trabalho; ou também analisarmos as desigualdades como conjunto de

processos sociais, de mecanismos e experiências coletivas e individuais. Foi a

segunda opção que escolhi para mostrar que a desigualdade é uma

consequência dessas relações sociais.

Para Marx, as desigualdades de classes são um elemento fundamental,

estrutural, das sociedades modernas e capitalistas. À medida que o capitalismo

repousa sobre um mecanismo de extração contínua da mais-valia a partir do

trabalho e, sobretudo, em que implica o investimento de uma parte crescente

das riquezas produzidas, a oposição entre os trabalhadores e os donos do

investimento, entre o trabalho e o capital, faz das desigualdades sociais um

elemento funcional do sistema das sociedades contemporâneas.

Nunca a contradição entre as faces da igualdade (ou das desigualdades)

foi tão aguda. Nunca o confronto entre a afirmação da igualdade dos indivíduos

e as múltiplas desigualdades que fracionam as situações e as relações sociais

foi tão violento e tão ameaçador para o sujeito. A obrigação de ser livre, de ser

sujeito, de ser o autor de sua vida, que caracteriza o próprio projeto da

modernidade, e da essência humana, é indissociável da afirmação da

igualdade de todos.

Nas sociedades democráticas, os indivíduos só podem aspirar à

igualdade se são livres; se, como diz Rousseau, “todo homem nasce livre e

dono de si mesmo”. Esse domínio de si mesmo, essa capacidade de ser

soberano, não é a garantia de igualdade real, mas a condição de igualdade de

oportunidades e, pois, de desigualdades justas, por decorrerem de uma

competição entre iguais. É neste sentido que a liberdade e a igualdade, que

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podem estar frequentemente em oposição, podem estar também em harmonia.

A igualdade engendra a obrigação de ser livre e de ser para si mesmo sua

própria medida.

A principal causa da desigualdade entre os homens, na visão de

Rousseau, é o nascimento da propriedade privada. E ao mesmo tempo temos

a crescente intensificação da divisão de trabalho. Isso quebra uma

independência do homem tornando-o e ampliando a dependência uns dos

outros.

Essa sociedade civil que surge nutre ainda mais, o que Marx irá designar

com o nome de “alienação”: uma contradição entre essência social e existência

singular do homem.

Rousseau vai criticar em sua obra a dependência humana gerada pelos

quadros de propriedade privada e divisão do trabalho, pois isso gerou a perda

da autonomia e liberdade dos indivíduos. No Contrato Social, a proposta

apresentada será precisamente a de construir uma sociedade na qual os

indivíduos reconquistem a condição de humano livre.

É interessante observar que a analise do Discurso confirma que

Rousseau, em pontos essenciais de sua reflexão, é um precursor de Marx. A

articulação entre propriedade privada, divisão de trabalho e alienação aparece

nos dois autores.

Rousseau propõe uma sociedade que elimine os principais

inconvenientes da propriedade privada e desse modo evite os conflitos da

sociedade civil. Na sua proposta podemos dizer que o homem deve possuir o

amor de si temperado com o amor próprio e orientado pela vontade geral.

Assim pode haver uma política mais legítima voltada para o interesse de todos.

Pode-se concluir também que as denúncias de Marx, como a de que o

trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz e que o

trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias

cria, extrapolam aqueles escritos de 1844 e se mantém vivas e perturbadoras

na atualidade do século XXI, até mesmo para muitos que acreditam nas

virtudes do capitalismo. As denúncias quanto à apropriação do homem como

objeto se constituem em categorias de expressão da atualidade.

Marx considerou as desigualdades sociais como produto de um conjunto

de relações pautadas na propriedade privada como um fato jurídico e político.

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O poder de dominação é que dá origem a essas desigualdades. As

desigualdades se originam dessa relação contraditória, que se refletem na

apropriação e dominação, dando origem a um sistema social cruel. Neste

sistema uma classe produz e a outra domina, dando-se origem as classes

operárias e burguesas.

Pode-se argumentar que a realidade atual é diferente daquela pensada

e vivenciada por Marx, o que nos permitiria recorrer à História e à práxis para

demonstrar que as diferenças são apenas fenomênicas, que o progressivo

aumento da riqueza, ocorrido durante o século XX e começo do XXI, constituiu

a ampliação da pobreza e que as modalidades de exploração do capital sobre

o trabalho, apesar do enorme avanço tecnológico, são intensificadas pela

articulação da exploração e acúmulo da propriedade privada. Sobre tais bases,

acumulação e desigualdade são indissociáveis do desenvolvimento capitalista

atual.

Com a riqueza das obras de Rousseau e Marx e na estreiteza desse

trabalho, torna-se imperativo que nos limitemos ao essencial e certamente,

uma leitura fragmentada dessas obras, não nos autoriza uma conclusão

definitiva sobre esses escritos e assuntos.

Percebe-se que, quanto maior a análise da sociedade, mais a

desigualdade social nos incomoda. Portanto, são esses autores que, através

dos seus escritos nos causam incômodos importantes para buscarmos uma

reflexão e uma ação social visando assim à construção de um ser humano

mais livre e igual.

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Alienado: desvendando imbricações ocultas. Disponível em

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34. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos

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ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978, in por Cardoso, Meneguello

Clodoaldo, em Liberdade e igualdade nos direitos humanos: fundamento

filosóficos e ideológicos – disponível na coletânea Direitos humanos na

formação universitária: textos para seminários, pela Cultura Acadêmica

Editora (Unesp) – dezembro de 2009.