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Faculdade Diocesana de Mossoró

Revista Acadêmica Logos

Mossoró | RN

Março 2016

Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.

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REVISTA ACADÊMICA LOGOS

Faculdade Diocesana de Mossoró

DIRETOR GERAL

Me. Francisco Cornélio Freire Rodrigues

COORDENADOR DE EDIÇÃO:

Me. Francisco Igo Leite Soares

CONSELHO CIENTÍFICO E EDITORIAL

Dra. Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (FDM e FCF)

Dra. Ana Maria Morais Costa (UERN)

Dr. Anderson de Alencar Menezes (UFAL)

Dr. Antônio Edson Bantim Oliveira (FDM)

Me. Charles Lamartine Sousa Freitas (FDM)

Me. Francisco Aluziê Barbosa das Chagas (FDM)

Me. Francisco Cornélio Freire Rodrigues (FDM)

Me. Francisco Igo Leite Soares (FDM e UERN)

Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues (UFMT)

Dr. Luís Corrêa Lima (PUC-Rio)

Dra. Maria Conceição Maciel Filgueira (FDM)

Me. Márcia Elói Rodrigues (FDM)

Dra. Sílvia Maria Costa Barbosa (UERN)

REVISORES:

Ana Maria de Carvalho e Francisco Igo Leite Soares

Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte.

Fundação Santa Teresinha de Mossoró Biblioteca Geral Dom Mariano Manzana

Revista Acadêmica Lógos / Faculdade Diocesana de Mossoró. – Mos-

soró, v.1, n.1, jan./jun., 2016.

Semestral

ISSN 2448-038X

1. Espiritualidade. 2. Sacramento. 3. Esperança. 4. Teologia. I. Faculdade Diocesana de Mossoró. II. Título.

CDU: 248.2

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FACULDADE DIOCESANA DE MOSSORÓ

DIRETOR GERAL

Prof. Me. Pe. Charles Lamartine Sousa Freitas

VICE-DIRETOR

Prof. Me. Pe. Francisco Crisanto Borges de Araújo

DIRETOR ACADÊMICO

Prof. Me. Pe. Flávio Augusto Forte Melo

DIRETOR ADMINISTRATIVO FINANCEIRO

Pe. Demétrio de Freitas Júnior

COORDENADOR DO CURSO DE TEOLOGIA

Prof. Me. Francisco Cornélio Freire Rodrigues

COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E

EXTENSÃO

Prof. Dra. Maria da Conceição Maciel Figueira

SECRETÁRIA ACADÊMICA

Iêda Silvana Tavares Diniz

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S U M Á R I O

Apresentação .......................................................................................................... 5

Prefácio ................................................................................................................... 7

ARTIGOS

A CONTRIBUIÇÃO DA LECTIO DIVINA NA FORMAÇÃO PARA O

DISCIPULADO E A MISSÃO NA PERSPECTIVA DE APARECIDA ................... 10

Francisco Cornélio Freire de Araújo

A ESPIRITUALIDADE DO PADRE MESTRE ....................................................... 24

Francisco Crisanto Borges de Araújo

A INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS NAS

OBRAS “OS SACRAMENTOS” E “OS MISTÉRIOS”DE AMBRÓSIO DE

MILÃO ................................................................................................................... 34

Márcia Eloi Rodrigues

MARIA, VIRGEM APARECIDA: UM SINAL DE ESPERANÇA? ......................... 49

André Luiz Passos

O CONCEITO DE EXEGESE BÍBLICA NA TEOLOGIA DOS PADRES DA

IGREJA ................................................................................................................. 75

Charles Lamartine Sousa Freitas

O MINISTRO DO SACRAMENTO DA ORDEM, EXCLUSIVIDADE DO

BISPO ................................................................................................................... 92

Frederico Gurgel Câmara

PARA UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICO-TEOLÓGICA DA MORTE ...... 111

Antonio Edson Bantin Oliveira

RAZÃO, PAIXÃO E FELICIDADE ...................................................................... 126

Alison Felipe de Moura

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Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.

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APRESENTAÇÃO

Um dos grandes sonhos de todos os que fazem a Faculdade

Diocesana de Mossoró, finalmente, tornou-se realidade: o lançamento da

Revista acadêmica Logos. Há mais de quatro anos em gestação, somente agora

veio à luz, dando-nos a certeza de que as expectativas criadas durante a

gestação, estão sendo alcançadas.

Foram muitos os motivos que retardaram seu nascimento. Dentre

estes, destacamos a dificuldade para a escolha e definição do nome e a

composição do conselho editorial e científico. É altamente prazeroso informar

que, em momento algum, a falta de material foi motivo para o atraso da

publicação. Desde o primeiro momento em que refletimos sobre a necessidade

de termos um periódico científico em nossa faculdade, nosso pequeno, mas

qualificado, corpo docente prontificou-se imediatamente a contribuir com a

publicação, de modo que, dos oito artigos, somente um não foi escrito por

membro da FDM.

Durante a gestação, muitos nomes foram sugeridos para o título da

nossa revista. O primeiro deles foi ‘LUZ e VIDA’. Inicialmente, foi muito

bem acolhido, sobretudo por incorporar termos importantes do vocabulário

teológico. Mas, após muita reflexão, e percebendo os horizontes que se abriam

para o crescimento da nossa faculdade e a consequente abertura para as

demais ciências humanas, optamos por uma outra sugestão: Logos.

Ao optar por Logos como título para o nosso periódico, levamos em

consideração muitos aspectos. Primeiro, por tratar-se de um termo que se

destaca significativamente na reflexão teológica. E, embora conscientes do

crescimento e da abertura da nossa instituição para outras áreas do

conhecimento, queremos preservar, até por questão de justiça, a nossa história,

a qual tem o curso de teologia como embrião. Em segundo lugar, porque o

termo Logos possui uma variedade de sentidos que transcende qualquer área

específica do conhecimento, e pode inclusive, ser sinal do diálogo entre os

diversos saberes que ambicionamos fazer. É uma palavra aberta, como quer

ser o nosso periódico.

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Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.

6

Portanto, é com muita satisfação que apresentamos o primeiro

número da revista Logos. Este ainda está com um rosto teológico. Mas, com

os passos que a nossa faculdade está dando, com a abertura de novos cursos de

graduação e pós-graduação, certamente os próximos números virão com mais

justiça ao título.

Francisco Cornélio Freire Rodrigues,

Diretor Geral da Revista Logos

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PREFÁCIO

Não é repetitivo lembrar, neste momento, o provérbio latino que

proclama: “Verba volant, scripta manent.” As palavras voam, as escritas

permanecem.

Acrescente-se o pensamento de Santo Agostinho sobre o poder das

palavras: “Note que se penso no que vou dizer é porque as palavras já existem

em meu coração. Se falo com você é porque estou preocupado em fazer

presente no seu coração o que já está presente no meu. Assim, procurando um

caminho para permitir que a palavra que existe em mim, possa alcança-lo e

passe a morar em você, recorri à minha voz. O som transmite minhas palavras

e seus significados, esvanecendo-se depois. Porém, minha palavra está agora

em você sem, no entanto, nunca ter me abandonado.” (Sermão 293,3).

Desde a fundação da Faculdade Diocesana de Mossoró, criando o

curso de Teologia, foi sonho inicial dos que a fazem, publicar uma revista

como forma de presença em nossa comunidade. A ideia no presente momento

se torna realidade.

Dentro das perspectivas e das necessidades do ser humano em suas

várias conotações e, sobretudo, da nossa sede de construção de conhecimento,

a Revista Logos atende, assim o penso, a essas necessidades, como podemos

constatar pela riqueza dos artigos, como veremos a seguir, de modo bastante

sintético.

O primeiro artigo, de autoria do Me. Francisco Cornélio Freire

Rodrigues, intitulado A contribuição da Lectio Divina na formação para o

discipulado e missão na perspectiva de Aparecida, apresenta uma leitura do

Documento de Aparecida, considerando a necessidade da formação para o

discipulado e a missão no chamado continente da esperança, destacando a

ênfase da Palavra de Deus no processo, destacando a Lectio Divina como um

instrumento privilegiado.

O segundo artigo, intitulado A espiritualidade do Padre Mestre, de

autoria do Me. Francisco Crisanto Borges de Araújo, é um verdadeiro

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Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.

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percurso na vida do Padre José Antônio de Maria Ibiapina, destacando, como

sugere o título, a sua espiritualidade. O autor mostra como Deus falou ao

Padre Mestre de maneira muito concreta, no sofrimento dos sertanejos,

desamparados por todo tipo de poder. Pela sua ação diante dessa realidade de

desolação, percebemos o viço da sua espiritualidade, a sua maturidade no

plano humano e espiritual.

O terceiro artigo, A interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos

nas obras ‘Os Sacramentos’ e ‘Os mistérios’ de Ambrósio de Milão, de

autoria da Me. Márcia Eloi Rodrigues, é uma demonstração da riqueza da

interpretação alegórica da Sagrada Escritura como linguagem eficaz da

catequese mistagógica dos santos padres.

O quarto artigo, do Dr. André Luiz Passos, intitulado Maria, virgem

Aparecida: um sinal de esperança?, é uma reflexão sobre a esperança que os

fiéis buscam na Virgem Aparecida, a partir de dois textos do quarto

Evangelho: 2,1-12 e 19,25-27. Essa esperança está enraizada no próprio

Cristo, esperança de todo o gênero humano.

Intitulado O conceito de exegese Bíblica na teologia dos padres da

Igreja, o quarto artigo, de autoria do Me. Pe. Charles Lamartine Sousa Freitas,

ressalta a centralidade da Sagrada Escritura na teologia dos padres da Igreja e,

consequentemente, importância de se retornar à leitura dos textos patrísticos,

uma vez que pensar as Sagrada Escritura à luz da reflexão patrística é admitir

que suas reflexões se fazem luz, como fonte perene na promoção da

atualização teológica, o que não implica no conteúdo da fé, mas sim numa

releitura que ajuda ao homem de cada tempo a comunica-la de modo mais

eficaz.

No quinto artigo, intitulado O ministro do sacramento Ordem:

exclusividade do bispo, do Me. Frederico Gurgel Câmara é uma reflexão sobre

a plenitude do sacerdócio, apresentando a figura do bispo como ministro

ordinário e administrador da graça do supremo sacerdócio, à luz do magistério

da Igreja.

O sexto artigo, de autoria do Dr. Antônio Edson Bantin Oliveira, tem

como título: Para uma abordagem antropológico-teológica da morte. Trata-se

de uma reflexão sobre a morte, a partir de três aspectos principais: o seu

caráter de realidade antropológica fundamental, os desafios emergentes de

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uma má compreensão ou de uma imaturidade humana em relação a esse

fenômeno e, por fim, a sua dimensão teológica, acompanhada de elementos de

indicação moral acerca do comportamento a ser cultivado, no cuidado para

com pessoas em situação de morte iminente.

O sétimo artigo, intitulado Razão, paixão e felicidade, de autoria do

Me. Alison Felipe de Moura, apresenta uma análise da relação entre razão,

paixão e felicidade, a partir da obra: As paixões da alma de Descartes,

procurando refletir o que o autor entende acerca da felicidade e ainda em que

sentido essa felicidade é determinada somente pela razão, dado a influência do

corpo no processo de construção da mesma.

Também realçamos, pela qualificação dos articulistas, o nível do

corpo docente de nossa instituição. As diversas abordagens enfocadas e a

pertinência dos temas refletidos, garantem-nos isso.

Considero o lançamento deste órgão institucional, uma verdadeira

Pastoral para os que desejam aprofundar os alicerces existenciais de suas

vidas.

É louvável o apoio do Exmo. Rvmo. Sr. Bispo Diocesano Dom

Mariano Manzana a esse empreendimento, animando os que constituem essa

faculdade, mantenedora da Revista Logos, palavra que produz realidade.

Pe. Sátiro Cavalcanti Dantas, primeiro Diretor da FDM.

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A CONTRIBUIÇÃO DA LECTIO DIVINA NA FORMAÇÃO PARA O

DISCIPULADO E A MISSÃO NA PERSPECTIVA DE APARECIDA

Francisco Cornelio Freire Rodrigues1

RESUMO

O presente artigo apresenta uma leitura do Documento conclusivo da V Conferência

do Episcopado da América Latina e Caribe, considerando a necessidade da formação

de novos discípulos e missionários para o continente da esperança, como objetivo

principal da conferência. Nesse processo formativo, a Palavra de Deus é

indispensável, uma vez que nela, é o próprio Cristo que fala, e para seguir os seus

passos é necessário antes conhecê-Lo, criar intimidade com Ele, a ponto de tornar-se

parecido. A Sagrada Escritura proporciona tudo isso e, na diversidade de métodos

através dos quais podemos nos aproximar dela, destacamos a Lectio Divina. O

Documento de Aparecida considera este, um método privilegiado de encontro. Assim,

entendemos que a Lectio Divina pode ser um instrumento importante na formação de

novos discípulos e missionários, uma vez que proporciona um encontro verdadeiro

com o Senhor através da sua Palavra.

Palavras-chave: Aparecida. Missão. Discipulado. CELAM.

ABSTRACT

This article discribs a reading about the V Latin American Episcopal Conference and

the Caribbean, considering the necessity of formation of the new disciples and

missionaries for the continent of the hope, as the main objective of the conference. In

this formative process, the Word of God is indispensable because Christ himself who

speaks, and to follow his life is necessary before to know who is he, create intimacy

with him until to became look like Jesus. Holy Scripture provides all this, and the

diversity of methods by which we can get closer to him, we emphasize the Lectio

Divina. The Document of Aparecida considers this a privileged method of meeting.

So, we understand that the Lectio Divina can be an important toll to the formation of

new disciples and missionaries because it offers a real relationship with the Lord

through his Word.

keywords: Aparecida. Mission. Discipleship. CELAM.

1 Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino em Roma;

Coordenador do curso de Teologia da Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM; Professor de

Sagrada Escritura na FDM e no Seminário Diocesano São José (Crato-CE).

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1 - FORMAR DISCÍPULOS E MISSIONÁRIOS PARA A AMÉRICA

LATINA E O CARIBE

A V Conferência Geral do Episcopado latino-americano e caribenho,

realizada no Santuário Nacional de Aparecida, Brasil, no ano de 2007, propôs-se a ser

mais um passo importante no caminho da Igreja, em sintonia com o Concílio

Ecumênico Vaticano II e as quatro conferências anteriores: Rio de Janeiro (1955),

Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992).

O tema da V Conferência Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para

que n’Ele nossos povos tenham vida, já deixa claro um de seus objetivos principais:

formar, na America Latina e no Caribe, novos discípulos e missionários para

preservar, defender e difundir a fé cristã católica no Continente da esperança, que não

está alheio às influências das tendências secularizantes que permeiam o mundo

contemporâneo. Assim, discípulos e missionários são as duas palavras-chave, não

apenas do tema, mas, sobretudo, do Documento conclusivo.

Conforme consta em O referencial teológico do Documento de Aparecida,

Não basta ser discípulo de Jesus Cristo nesta hora do Continente, mas é

necessário ser missionário. A Igreja da América Latina e do Caribe

necessita de seguidores de Jesus Cristo que sejam verdadeiros

missionários, pois a realidade eclesial aponta para a necessidade de

evangelizadores, a fim que a fé trazida pelos primeiros missionários, não

desapareça, mas cresça e se multiplique2.

A Igreja demonstra o seu cuidado com a preservação da fé cristã e esforça-se

com ardor, para que o Continente latino-americano jamais perca suas características

principais que nasceram enraizadas no sinal da cruz e na devoção mariana, elementos

que deram o grande diferencial a este Continente: a esperança, por causa da fé viva de

seu povo. Certamente é um território autenticamente cristão. Daí surge a necessidade

de um projeto formativo consistente que proteja a fé e, ao mesmo tempo, a difunda em

todos os espaços, tarefa esta que só pode ser realmente assumida por autênticos

discípulos e missionários, que dêem um testemunho vivo e verdadeiro de Jesus Cristo,

Caminho, Verdade e Vida.

1.1 Quem são esses discípulos missionários?

O chamado ao discipulado e, consequentemente, à missão é inclusivo e

universal, portanto, dirigido a todos os batizados e batizadas. Ninguém está isento de

2 (HACKAMANN, 2007, p. 332).

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Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.

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anunciar a Boa Nova. Todos são chamados a assumir a condição de discípulo e

missionário na situação e no lugar em que se encontra, uma vez que tal condição é

selada com o batismo.

Já no discurso inaugural da V Conferência, o Papa Bento XVI afirmou:

A Igreja tem a grande tarefa de custodiar e alimentar a fé do Povo de

Deus, e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude de

seu batismo, são chamados a ser discípulos e missionários de Jesus

Cristo. Isso leva a segui-lo, viver em intimidade com Ele, seguir seu

exemplo e dar testemunho. Todo batizado recebe de Cristo, como os

apóstolos, o mandato da missão: “ide por todo o mundo e proclamai a

Boa Nova a toda a criatura. Quem crer e for batizado será salvo” (Mc

16, 15)3.

Como se vê, discípulo e missionário são termos inseparáveis e dizem respeito

a todos os batizados. Porém, cada um é chamado a viver de modo específico a sua

missão, sendo única a fonte: a pessoa de Jesus Cristo, e único também o momento

originante do discipulado e da missão: o batismo.

A condição do discípulo brota de Jesus Cristo como de sua fonte, pela fé

e pelo batismo, e cresce na Igreja, comunidade onde todos os seus

membros adquirem igual dignidade e participa de diversos ministérios e

carismas. Desse modo, realiza-se na Igreja a forma própria e específica

de viver a santidade batismal a serviço do Reino de Deus (184)4.

Sem distinção nem exclusão, todos os batizados são chamados ao discipulado

e à missionariedade na Igreja, e isso consiste exatamente no cumprimento do mandato

de Cristo aos apóstolos: “ide a todos os povos e fazei-os meus discípulos, batizando-os

em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (cf. Mt 28,19). Assim, compreendemos

que o batismo nos faz discípulos e missionários.

1.2 Caminho formativo dos discípulos missionários

Sabendo que pelo batismo todos se tornam discípulos e missionários de Jesus

Cristo, compreendemos a necessidade de um caminho formativo para que cada um,

segundo sua condição, cumpra com fidelidade a sua missão. Nesses termos, o

Documento de Aparecida responde a essa necessidade. Antes de tudo é necessário um

3 (Cf. CELAM, 2007, p. 253). 4 (CELAM, 2007, p. 93).

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encontro autêntico com o Mestre, que gere um encantamento e uma consequente

configuração com Ele.

E o convite ao encontro é feito pelo próprio Jesus Cristo que, “convida a nos

encontrar com Ele e a que nos vinculemos estreitamente a Ele, porque é a fonte da

vida e só Ele tem palavras de vida eterna”5. Mas esses são apenas os primeiros passos

de um caminho que nos leva à configuração com Ele, e configurar-se significa

identificar-se extremamente, vivendo e agindo conforme a sua vontade:

Para ficar verdadeiramente parecido com Mestre, é necessário assumir a

centralidade do Mandamento do Amor que Ele quis chamar seu e novo:

“Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12). Este

amor, com a medida de Jesus, com dom total de si, além de ser o

diferencial de cada cristão, não pode deixar de ser a característica de sua

Igreja, comunidade discípula de Cristo, cujo testemunho de caridade

fraterna será o primeiro e principal anúncio: “Nisso conhecerão todos

que sois meus discípulos” (Jo 13,35)6.

Ao configurar-se ao Mestre, ou seja, ao tornar-se parecido com Ele, a

primeira exigência é a vivência do mandamento do amor, sendo este o distintivo maior

do cristão e, portanto, do discípulo e missionário. Para amar segundo o amor de Jesus

é necessário antes aprender com Ele, ou seja, encontrar-se com Aquele que é

Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6), pois somente Ele tem palavras de vida eterna

(cf. Jo 6,68).

E o percurso formativo, que no Documento vem expresso por caminho, é

todo cheio de “encontros”, assim, como o encontro com Jesus Cristo é essencial para

formar os discípulos missionários, logo, as etapas e os lugares da formação são

“encontros”.

O primeiro aspecto da formação é a espiritualidade trinitária, que deve ser

cultivada na vida do cristão, pois “uma autêntica proposta de encontro com Jesus

Cristo deve estabelecer-se sobre o sólido fundamento da Trindade-Amor”7. Tal

proposta se concretiza já no batismo, uma vez que “a experiência batismal é o ponto

de início de toda a espiritualidade cristã que se funda na Trindade”8.

Da experiência trinitária nasce um novo sujeito, um homem novo parecido

com Cristo, quer dizer, configurado a Ele. Eis, portanto, o discípulo: o sujeito

configurado a Cristo. Partindo da experiência dos primeiros discípulos temos até hoje

5 (CELAM, 2007, p. 72). 6 (CELAM, 2007, p. 74). 7 (CELAM, 2007, p. 113). 8 (CELAM, 2007, p. 113).

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o método básico do discipulado: da curiosidade e encantamento à provocação

interrogante: “que procurais?” (cf. Jo 1,38), e sendo Ele próprio a resposta, lança o

convite: “Vinde e vede” (cf. Jo 1, 39).

Ligeiramente apresentamos a dinâmica do caminho de formação do discípulo

que propõe o Documento de Aparecida. São apresentadas cinco etapas distintas, mas

que se complementam entre si. A primeira é, como já vimos, O Encontro com Jesus

Cristo, e as demais etapas só serão cumpridas realmente se nessa primeira a

experiência for realmente autêntica e verdadeira. A segunda vem intitulada A

conversão, pois após o encontro, a pessoa vai aos poucos mudando seu jeito de ser,

procurando a cada dia parecer-se mais com o Cristo. A terceira é O Discipulado, que é

fruto da maturidade que o sujeito vai adquirindo, a partir da conversão constante e do

crescimento do amor ao Mestre. A Comunhão é a quarta etapa, e é imprescindível para

um novo discípulo que deve viver “o amor de Cristo na vida fraterna solidária” 9. E,

como conclusão do caminho formativo, temos A Missão na quinta etapa. Esta se

constitui como o momento de partilhar com os outros o aprendizado adquirido da

experiência feita com o Senhor, desde o encontro inicial. Por isso, com razão, diz o

Documento que a missão é inseparável do discipulado (cf. DA n. 278, p. 130).

Após apresentarmos sinteticamente os passos do caminho formativo dos

discípulos e missionários propostos pela Conferência de Aparecida, poderíamos, a

priori, já deduzir quais são as características de tais discípulos, considerando o nexo

entre os diversos momentos formativos e seus objetivos. Mas queremos mostrar tais

características com as palavras do próprio Documento:

Como características do discípulo, indicadas pela iniciação cristã,

destacamos: que ele tenha como centro a pessoa de Jesus Cristo, nosso

Salvador e plenitude de nossa humanidade, fonte de toda maturidade

humana e cristã; que tenha espírito de oração, seja amante da Palavra,

pratique a confissão freqüente e participe da Eucaristia; que se insira na

comunidade eclesial e social, seja solidário no amor e fervoroso

missionário10.

Interessante percebermos que, nas características apresentadas acima, está

justamente o efeito das etapas formativas vistas anteriormente. A característica

principal do discípulo missionário é ser parecido com Cristo, e isso só é possível se o

próprio Cristo for o centro de sua vida. Assim, o discípulo missionário é o batizado

que assume de verdade a sua fé e põe-se à disposição do Senhor.

9 (CELAM, 2007, p. 130). 10 (CELAM, 2007, p. 136).

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Como exemplos de “grandes” discípulos (a) e missionários (a) podemos citar:

Maria, a serva humilde e fiel, capaz de dizer “Eu sou a serva do Senhor, faça-se em

mim segundo a tua Palavra!” (cf. Lc 1,38); e o Apóstolo Paulo, incansável discípulo e

missionário, e dizer como ele: “eu vivo, mas já não sou eu que vive, é Cristo que vive

em mim” (cf. Gl 2,20). De fato, a Virgem Maria e Paulo são modelos perenes para

qualquer projeto formativo cristã, pois a disponibilidade, obediência e configuração ao

Senhor são elementos da gênese da missão e do discipulado.

2 - A LECTIO DIVINA NO DOCUMENTO DE APARECIDA

A Lectio Divina em si, ocupa muito pouco espaço no Documento Conclusivo

da Conferência de Aparecida. O termo aparece apenas uma vez, no número 249 do

texto, exatamente no capítulo sexto, intitulado O caminho de formação dos discípulos

missionários. Porém, a pouca menção da expressão no conjunto do texto não

distancia o tema do Documento, uma vez que todo ele está permeado da Palavra de

Deus.

De fato, do começo ao fim do Documento, a Palavra de Deus ocupa um

espaço privilegiado, sobretudo a partir da segunda parte, intitulada A vida de Jesus

Cristo nos discípulos missionários. Toda a redação do texto é fundamentada na

Sagrada Escritura e repleta de citações. Para ilustrar essa primeira premissa,

recordamos o número 101 do documento, no qual aparecem seis citações bíblicas em

apenas um parágrafo:

Neste momento, com incertezas no coração, perguntamos com Tomé:

“Como vamos saber o caminho?” (Jo 14, 15). Jesus nos responde com

uma proposta provocadora: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo

14,6). Ele é o verdadeiro caminho para o Pai, que tanto amou ao mundo

que lhe deu o seu Filho único, para que todo aquele que nele crer tenha a

vida eterna (cf. Jo 3,16). Esta é a vida eterna: “que te conheçam a ti, o

único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo teu enviado” (Jo 17,3). A fé em

Jesus Cristo como o Filho do Pai é a porta de entrada para a vida. Como

discípulos de Jesus, confessamos nossa fé com as palavras de Pedro:

“Tuas palavras dão vida eterna” (Jo 6,68). “Tu és o Messias, o Filho do

Deus vivo” (Mt 16,16)11.

Esse simples dado serve para indicar o “teor bíblico” de todo o texto. Como

se vê, são citações das mais importantes, com alto conteúdo vocacional, confessional e

11 (CELAM, 2007, p. 61).

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missionário, características muito importantes para a formação de um autêntico

discipulado.

É, portanto, no “oceano bíblico” do texto conclusivo de Aparecida que

encontramos a referência à Lectio Divina, e é daí que guiaremos o nosso trabalho,

sendo necessário, antes de tudo, apresentarmos pelo menos uma noção do que ela é

realmente, para em seguida a tratarmos no contexto específico do Documento do

Celam (2007).

2.1 O que é a Lectio Divina?

Não se pretende aqui fazer um detalhado estudo da Lectio Divina, mas apenas

apresentar um conceito básico, o qual dá norte ao prosseguimento de todo o restante

do presente trabalho. E, começamos com a definição da Pontifícia Comissão Bíblica:

“A Lectio Divina é uma leitura, individual ou comunitária, de uma passagem mais ou

menos longa da Escritura acolhida como Palavra de Deus e que se desenvolve sob a

moção do Espírito em meditação, oração e contemplação”12.

Portanto, não se trata de uma simples leitura, mas de uma leitura guiada sob o

impulso do Espírito Santo, de modo que o leitor “crie um amor efetivo e constante à

Sagrada Escritura, fonte de vida interior e de fecundidade apostólica”13. Dessa forma,

começamos a encontrar terreno para a nossa reflexão e nos aproximamos do objetivo

principal do trabalho e, assim, encontramos uma definição ainda mais em sintonia

com o que constatamos no Documento de Aparecida:

É um encontro por meio da Escritura. Encontro com Deus, com a

Palavra viva de Deus que é Jesus Cristo. Um encontro interpessoal do tu

do leitor com o Tu de Deus; um contato coração a coração do homem

com Deus. Um encontro no qual se adquire não tanto ciência, quanto

sabedoria, ou seja, compreensão divina do mistério de Deus, do homem

e do mundo14.

De fato, a definição de Izquierdo (2009) responde de modo mais claro e

contribui com nossa argumentação, que visa apresentar a Lectio Divina como um

instrumento importante na formação dos novos discípulos e missionários, segundo a

perspectiva do Documento conclusivo de Aparecida. Quanto ao modo em que se

desenvolve e se pratica a Lectio Divina, apenas citamos as etapas ou momentos:

12 (PCB, 1995, p. 55). 13 (PCB, 1995, p. 55). 14 (IZQUIERDO, 2009, p. 22). Para todas as citações desse autor, a tradução é nossa; o original

é em espanhol.

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leitura, meditação, oração e contemplação, pois como queremos aqui apenas extrair o

conceito, não faremos considerações a respeito dessas etapas e nem tampouco nos

deteremos à história da Lectio Divina, pois não é o objeto de nossa reflexão.

Desse modo, sendo a Lectio Divina um encontro com Deus por meio da

Escritura, ela se torna extremamente necessária para a formação dos discípulos e

missionários, pois um elemento essencial para tal formação é justamente o encontro

com a pessoa de Jesus Cristo. Só quem faz um encontro autêntico com Cristo pode

tornar-se discípulo e missionário, e a Lectio Divina, nessa perspectiva, facilita esse

encontro, logo, é importante para a formação.

2.2 A Lectio Divina no documento de Aparecida

Como já acenamos no início, a Lectio Divina não é muito citada no

Documento de Aparecida, apenas uma vez, mas sabendo que em todo o Documento

ecoa a Palavra de Deus, também não chega a ser um tema marginal. A expressão é

citada no número 249, no capitulo intitulado O caminho de formação dos discípulos

missionários. Logo, se trata de elemento formativo importante para o discipulado e a

missão:

Entre as formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma

privilegiada à qual todos somos convidados: a Lectio Divina ou

exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura orante, bem

praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do

mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho e ao

testemunho de Jesus-Senhor do universo15.

Como se vê, a Lectio Divina está presente no Documento de Aparecida e de

um modo privilegiado: como um meio eficaz para o encontro com Jesus Cristo, por

meio da Sagrada Escritura. Como sabemos, existem muitos modos para nos

aproximarmos da Sagrada Escritura, que a cada dia torna-se mais acessível, com a

multiplicidade das traduções, graças ao impulso do Concílio Vaticano II. Porém,

sabendo que existe uma forma que é privilegiada, devemos aproveitá-la e difundi-la.

E isso já vem sendo feito com entusiasmo no Continente latino-americano, sobretudo

após a recomendação da Conferência de Aparecida, as conferências episcopais estão

incentivando e propondo o uso da Lectio Divina no caminho preparativo à grande

missão continental.

15 (CELAM, 2007, p. 116).

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Citamos como exemplo do “efeito Aparecida”, o documento O Brasil na

Missão Continental, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o qual recomenda

que no caminho formativo,

A Bíblia esteja sempre presente como Palavra de Deus e como

expressão da Missão Continental entre nós, incentivando o povo à

“Lectio Divina”, ou ao exercício da leitura orante da Sagrada Escritura.

Esta prática muito salutar de abordagem da Palavra de Deus, com seus

quatro momentos (leitura, meditação, oração e contemplação), favorece

o encontro pessoal com Jesus Cristo16.

Com isso, vemos ainda mais o quanto é significativa a referência à Lectio

Divina no texto conclusivo da Conferência de Aparecida, pois dentre tantas

recomendações propostas no conjunto do Documento, o uso dessa leitura orante como

meio eficaz na formação do discipulado, tendo em vista a missão continental, tem sido

uma das mais valorizadas. A CNBB propõe, inclusive, a criação de subsídios para

estudos em torno da Lectio Divina e do Querigma para grupos de reflexão e Círculos

Bíblicos17.

Portanto, mesmo sendo citada em apenas um parágrafo do Documento, a

Lectio Divina, sendo uma forma privilegiada de encontro com a Sagrada Escritura,

está se tornando um elemento chave na pastoral do Continente no pós-conferência e,

por isso mesmo, é importante analisá-la e reconhecer bem o seu valor para o objetivo

principal da Conferência, que é formar discípulos e missionários na América Latina e

Caribe e, assim, dar continuidade ao ardor missionário e profético dos primeiros

evangelizadores do continente da esperança.

3 - A IMPORTÂNCIA DA LECTIO DIVINA NA FORMAÇÃO DOS

DISCÍPULOS E MISSIONÁRIOS

Após refletirmos um pouco sobre o processo de formação de novos discípulos e

missionários para o Continente latino-americano e caribenho e sobre a Lectio Divina, sempre

com base no Documento de Aparecida, tentaremos agora aplicar a Lectio Divina à formação dos

discípulos missionários e apresentá-la como um elemento eficaz e essencial no caminho

formativo, uma vez que ela é “uma forma privilegiada para o encontro com Cristo por meio da

Escritura”18.

16 (CNBB, 2008, p. 24). 17 (CNBB, 2008, p. 24). 18 (CELAM, 2007, p. 249).

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3.1 O valor da Sagrada Escritura no caminho formativo

Como já acenamos anteriormente, aqui recordamos que a Sagrada Escritura ocupa um

espaço privilegiado no conjunto do Documento conclusivo da Conferência de Aparecida, sendo

um dos principais referenciais que fundamenta quase todo o texto, incluindo o discurso

inaugural de Bento XVI, que não se cansa de inspirar-se na Bíblia Sagrada para instruir,

governar e santificar o povo de Deus, a ele confiado.

Porém, o nosso objetivo aqui não é coletar citações bíblicas no Documento, mas sim,

compreender a centralidade da Palavra de Deus no caminho formativo dos discípulos

missionários. Assim nos diz Bento XVI:

Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do

Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência Geral em

Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo da

Palavra de Deus. Por isso, é preciso educar o povo na leitura e

meditação da Palavra de Deus: que ela se converta em seu alimento para

que, por própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito

e vida (cf. Jo 6, 63)19.

Como se vê, é forte o apelo e o convite feito pelo Papa, para que a Palavra de Deus

ocupe realmente seu verdadeiro espaço, no processo de formação dos discípulos e missionários.

A Palavra de Deus deve ser alimento no processo formativo, e isto significa que ela é

um elemento essencial. Porém, isso não quer dizer que não se usava a Palavra de Deus antes,

mas reforça a sua centralidade, uma vez que é necessário conhecer a pessoa de Jesus Cristo e

fazer com Ele uma experiência de vida, criar uma intimidade para poder segui-lo. E, “Cristo se

dá a conhecer a nós por meio da Palavra de Deus”20, logo, “desconhecer a Escritura é

desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo”21.

Portanto, a Palavra de Deus tem uma predominância dentre os elementos formativos

porque ela facilita o encontro com a pessoa de Jesus Cristo, por isso vem elencada no

Documento como o primeiro entre os lugares de encontro.

Faz-se necessário propor aos fiéis a Palavra de Deus como dom do Pai

para o encontro com Jesus Cristo vivo [...]. Essa proposta será mediação

de encontro se for apresentada a Palavra revelada, contida na Escritura,

como fonte de evangelização. [...]. Por isso a necessidade de uma

“pastoral bíblica”, entendida como animação bíblica da pastoral, que

seja escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, de comunhão

com Jesus ou oração com a Palavra, e de evangelização inculturada ou

de proclamação da Palavra22.

19 (cf. CELAM, 2007, p. 253). 20 (CELAM, 2007, p. 255). 21 (Idem, p. 115). 22 (CELAM, 2007, p. 116).

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Entende-se, pois, que é necessário e até urgente fazer um revestimento na pastoral em

geral, da Palavra de Deus. Vale lembrar que ao propor uma “pastoral bíblica”, a Conferência

não propõe a criação de uma nova pastoral entre as demais, mas sim que todas as pastorais

sejam fundamentadas e guiadas pela Palavra de Deus, pois nela encontramos Jesus Cristo em

pessoa, vivo entre nós.

3.2 A importância da Lectio Divina

Não temos dúvidas acerca da importância da Palavra de Deus no caminho formativo

para o discipulado e a missão e sabemos que são muitas as formas que proporcionam o contato

com a Palavra de Deus, mas aqui destacamos uma que é privilegiada: a Lectio Divina.

Aqui recordamos a definição de Izquierdo (2009a, p. 22), que apresenta a Lectio

Divina como um “encontro com Deus, com a Palavra viva de Deus que é Jesus Cristo. Um

encontro interpessoal do tu do leitor com o Tu de Deus”. Ora, esta definição é central para a

nossa reflexão, pois, recordando também que o primeiro passo no caminho formativo dos

discípulos e missionários é exatamente o encontro e, uma vez que na Palavra de Deus

encontramos Jesus Cristo, logo a forma privilegiada de aproximação com a Sagrada Escritura é

de fundamental importância para a formação dos discípulos e missionários que a V Conferência

geral do CELAM nos propõe.

Uma vez que em todo o Documento há apenas um parágrafo dedicado à Lectio

Divina, o transcrevemos aqui, mesmo já tendo transcrito anteriormente a primeira parte:

Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma

privilegiada à qual todos somos convidados: a Lectio Divina ou

exercício da leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura orante, bem

praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do

mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao

testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos

(leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o

encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos

personagens do Evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo

3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1; 42), o

cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua

vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10) [...] Todos eles, graças a esse

encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência

da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida.

Não abriram o coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias,

caminho de crescimento na “maturidade” conforme a sua plenitude” (Ef

4, 13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e de

compromisso com a sociedade23.

23 (CELAM, 2007, p. 114).

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Mais uma vez, recordamos que se trata de uma entre tantas outras formas de

contato com a Sagrada Escritura, mas o fato de ser uma forma privilegiada, garante à

Lectio Divina uma atenção especial. Nesses termos, vemos a confirmação da Lectio

Divina como “encontro”, conceito este visto também em Antonio Izquierdo24, que faz

em um artigo, uma análise completa do parágrafo anteriormente transcrito, no qual

nos apoiaremos para concluirmos a nossa reflexão.

Acreditamos, pois, que o Documento de Aparecida considera a Lectio Divina

um meio privilegiado, porque mais que um método de leitura, é uma experiência de

encontro com o Senhor, capaz de dar “frutos abundantíssimos de piedade, de

santidade e de apostolado”25, e isso é fundamental para a vida de um discípulo e

missionário.

Privilegiada também, certamente, pela acessibilidade: todos são convidados a

fazer a experiência da Lectio Divina, seja a nível individual ou comunitário26.

Portanto, é aberta a todos, pois mais que ciência, o discípulo adquire compreensão do

mistério de Deus27, o que reforça a sua a eficácia.

Por ser uma leitura orante da Sagrada Escritura, ela ajuda a criar e aprofundar

a intimidade do discípulo e missionário com a Pessoa de Cristo que começa no

encontro com Jesus-Mestre e vai até o testemunho de Jesus-Senhor do universo, que é

exatamente o ponto de chegada do processo formador, pois testemunhar é anunciar,

com palavras e atos, a Boa Nova de Jesus Cristo. É fazer missão.

Pelos personagens bíblicos citados, concluímos também que a Lectio

transforma, pois entre Nicodemos, a Samaritana, o cego de nascença e Zaqueu,

nenhum destes continuou do mesmo jeito depois do encontro com Jesus. Portanto,

mais uma prova do aspecto transformador da Lectio Divina, que releva ainda mais a

sua importância para a formação do discipulado missionário do Continente latino-

americano e caribenho.

CONCLUSÃO

Procuramos, portanto, no presente artigo, fazer uma observação no

Documento Conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e

Caribenho, e sentir quais seus apelos mais fortes para a ação evangelizadora da Igreja

24 Aqui fazemos referência ainda ao conceito de Izquierdo, em Lectio Divina. Introdución y

método, 2009a. 25 (IZQUIERDO, 2009b, p. 546). 26 (PCB, 1995, p. 55). 27 (IZQUIERDO, 2009a).

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no continente da esperança nos dias atuais. Vimos que as palavras que predominam no

vocabulário da ‘nova evangelização’, são ‘discípulos e missionários’, termos que não

são novos, mas que causam impacto pela forma como são aplicados.

Ser discípulo e missionário já não pode mais ser visto como característica

apenas dos pastores, mas sim de todos os batizados e batizadas. É o batismo a fonte do

discipulado e este, por sua vez, leva à missão. São palavras inseparáveis no cotidiano

eclesial da América Latina e do Caribe, segundo o que colhemos do Documento de

Aparecida.

Como a Conferência apresentou o discipulado e a missão numa perspectiva

inovadora, percebemos a necessidade de se conduzir um projeto formativo que

responda à essa nova realidade. E, o Documento dá um papel relevante à Palavra de

Deus no caminho formativo, como vimos até aqui.

E, como sugere o próprio Documento, procuramos indicar que, dentre as

diversas formas de aproximação da Palavra de Deus, é salutar, viável e prático, o uso

da Lectio Divina nesse percurso formativo, uma vez que se trata de uma forma

privilegiada de contato com a Sagrada Escritura, proporcionando um encontro

autêntico e verdadeiro entre o leitor e o Senhor que fala através do texto sagrado.

E, é exatamente nessa perscpetiva que colhemos nossas conclusões. Ora, para

ser verdadeiro discípulo e missionário de Jesus Cristo, é necessário encontrar-se com

Ele, criar intimidade e tornar-se parecido com Ele ou configurado. E, para tal, a

Palavra de Deus é essencial. Assim, na diversidade de métodos para acessar à Palavra,

priorizamos aquele que é privilegiado, a Lectio Divina. Assim nos recomenda o

Documento de Aparecida.

Constatamos, pois, que tal empreitada tem dado um ânimo novo à pastoral no

continente e, não faltam iniciativas de aproximação do povo com a Lectio Divina.

Assim, percebemos que um único parágrafo, num texto grande e complexo, pode ser

decisivo para dar um rosto novo ao jeito de ser Igreja na América Latina.

Foi nosso intuito, portanto, mostrar como a Lectio Divina pode ser útil para a

nova evangelização da América Latina e Caribe, por proporcionar um encontro com o

Senhor através da Sagrada Escritura, qualidade que a faz uma forma privilegiada de

contato com a Palavra de Deus nas diversas comunidades de nosso continente, para

que sejam formados mais ‘discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele,

nossos povos tenham vida.’

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REFERÊNCIAS

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CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO – CELAM. Documento de

Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-

Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/Paulus, 2007.

CONFERÊNCIA EPISCOPAL DOS BISPOS DO BRASIL O Brasil na Missão

Continental, Brasília: Edições CNBB, 2008.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA - (PCB), A interpretação da Bíblia na Igreja.

São Paulo: Paulinas, 1995.

HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. O referencial teológico do Documento de

Aparecida. In: Revista Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 157, p. 319-336, set.

2007.

IZQUIERDO, Antonio. Lectio Divina. Introdución y metodo. Lima-Peru: Paulinas,

2009a.

______. La Lectio Divina en el Documento Conclusivo de la Quinta Asamblea

General del CELAM. In: Ecclesia – Revista de cultura católica, APRA, Roma-Itália,

n. 4, p. 537-552, 2009.

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A ESPIRITUALIDADE DO PADRE MESTRE

Francisco Crisanto Borges de Araújo28

RESUMO

O padre José Antonio de Maria Ibiapina, comumente chamado de Pe. Ibiapina ou

Padre Mestre, foi um dos maiores evangelizadores do século XIX, nos sertões

nordestinos dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí,

num momento muito difícil do ponto de vista sócio, político e econômico e

emblemático do ponto de vista eclesial, uma vez que se vivia o processo de

romanização e a hierarquia não apoiava a religiosidade popular e a figura dos beatos e

beatas. Nesse contexto, o Padre Ibiapina decide-se colocar ao lado dos sertanejos

pobres, vítimas da seca, das doenças e de toda espécie de injustiça, utilizando o

método das missões populares e da criação das Casas de Caridade, para alívio e

socorro de todos os necessitados, sobretudo das órfãs, expostas a tantos perigos.

Palavras–chave: Espiritualidade. Missão. Compaixão. Serviço.

ABSTRACT

Father José Antonio de Maria Ibiapina, commonly called Father Ibiapina or Master

Father, was one of the most important evangelists of the nineteenth century, in the

region northeastern of the States of Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará

and Piauí. In that time, the reality of the point of view social, politic and economic

was very hard. The church's reality was not easy because it lived a romanization

process and a hierarchy did not support the popular religiosity and the figure of new

blesseds. In this context, Father Ibiapina decides to put alongside the poor people,

victims of drought and disease and all kind of injustice, using the method of the

popular missions and the creation of Charity homes for relief and rescue all needy,

especially the orphans, exposed to many dangers.

Keywords: Spirituality. Mission. Compassion. Service.

28 Mestre em Teologia Moral pelo Ateneu Pontifício Regina Apostolorum (Roma); Reitor do

Seminário Santa Teresinha de Mossoró; Vice diretor e professor de Teologia Moral e de

Espiritualidade na Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.

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INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe apresentar alguns aspectos da vida, da ação

pastoral e da espiritualidade do Pe. Ibiapina, com o objetivo de resgatar uma grande

personalidade do século XIX e perceber como a sua ação missionária pode iluminar a

nossa prática pastoral nos dias atuais, numa integração entre fé e vida, matando a fome

de Deus e a fome de pão.

Todos aqueles que tomam conhecimento da vida e obra do Padre José

Antonio de Maria Ibiapina, não hesitam em declará-lo como o maior missionário do

interior do Nordeste no século XIX. Padre Ibiapina viveu há mais de cem anos antes

da Conferência de Aparecida, mas viveu de maneira antecipada àquilo que os bispos

latino-americanos e caribenhos incentivaram: passar “de uma pastoral de mera

conservação para uma pastoral decididamente missionária”29.

A PREPARAÇÃO

O padre Ibiapina foi ordenado presbítero somente aos 47 anos. Antes tinha

frequentado o seminário de Olinda e o Convento da Madre de Deus, dirigido pelos

padres oratorianos, deixando por motivos ignorados. Nesse ínterim, morrem o pai e o

irmão que faziam parte do movimento revolucionário republicano que era contra o

Império, chamado de Confederação do Equador e ele tem que voltar ao Ceará para

cuidar da família. Logo em seguida morre a genitora, numa data ignorada30.

Em seguida, o jovem José Antonio encontra-se novamente em Recife,

juntamente com os seus irmãos e tem a oportunidade de matricular-se na primeira

faculdade de Direito do Brasil, sendo ajudado por pessoas ignoradas. O fato é que se

tornou bacharel no final de 1832. E por 18 anos, vai exercer atividades ligadas ao

direito no Ceará, no Rio de Janeiro e em Recife31.

Porém, após algumas decepções decide abandonar a carreira de advogado e

começa a viver como um monge no período de 1850 a 1853, até que um amigo que

sempre o visitava, o Dr. Américo Magalhães, à queima-roupa lhe pergunta por que

não se torna padre. Ao que ele logo respondeu que era o seu maior desejo. Contudo,

29 CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida. Texto

conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Brasília:

Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/ Paulus, n. 370. 30 Cf. COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo: Paulus, 2011. (Coleção BIOGRAFIAS), p.

19. 31 Cf. Ibid., p. 19-22.

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coloca a condição de não ter que passar pela formação no Seminário, pois àquela

altura já se sentia com bastante experiência. Tudo é combinado com o bispo de Olinda

Dom João Perdigão, que a princípio não queria aceitar, mas acabou reconhecendo o

bem que uma pessoa como ele podia fazer e aceitou a idéia. A conversa com o Dr.

Américo ocorreu no dia 12 de julho e José Antonio foi ordenado no dia 26 do mesmo

mês32.

Não se sabe muito sobre as atividades do padre Ibiapina até 1860, ano em que

começa a sua faina missionária. Apenas se tem conhecimento de que ele foi nomeado

vigário-geral e professor de eloquência sagrada, no seminário de Olinda, o que não o

agradava muito, uma vez que, após três anos, consegue a permissão do bispo para

trabalhos missionários nos sertões, como uma espécie de noviciado em preparação

para o grande trabalho missionário de 1860 a 1876. Também acerca desses três anos

não se sabe nada, apenas que foi o suficiente para tomar conhecimento da realidade de

pobreza e sofrimento em que vivia o povo sertanejo.

O NÔMADE DE DEUS

O período em que Padre Ibiapina exerceu o seu ministério presbiteral foi o

período de romanização da Igreja33. Mas ele não se preocupou em colocar em prática

este grande projeto da Igreja de então. Não que ignorasse a importância desse

processo para a época ou que simplesmente quisesse ser um subversivo, mas é que a

realidade com a qual ele se deparou, fez com que fizesse uma opção clara e decidida

pelos pobres. Ele escolheu a vida itinerante, optando pela diocese de Olinda que

compreendia as províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas,

além do Ceará e do Piauí, um território de mais ou menos 600.000 km², andando a pé

ou a cavalo34.

É nessas andanças que ele vai contemplando o rosto sofrido de tantas pessoas

flageladas pela seca, de doentes de cólera, de órfãos em consequência dessa epidemia

que ceifou tantas vidas nesse período. Sensibilizado com essa dura realidade,

32 Cf. Ibid., p. 24-25. 33 A centralização romana torna-se um poderoso instrumento na arregimentação de todas as

forças eclesiásticas, colocando-as rigorosamente em uma linha de combate aos “perversos

avanços da modernidade”. Expressão eloquente desse fenômeno é a Encíclica “Quanta Cura”

(1864), acompanhada do Sílabo, ou seja, o catálogo de 80 condenações do mundo moderno. A

declaração da “Infalibilidade Papal” no Concílio Vaticano I (1870) reforça e completa a

centralização em curso dando-lhe um respaldo dogmático. MATOS, Henrique Cristiano José.

Nossa História: 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2002

(Coleção Igreja na História), p. 73-74. 34 Cf. COMBLIM, José. Padre Ibiapina, 2011, p. 29.

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sobretudo da mulher desamparada, talvez porque ele mesmo recordou o sofrimento de

suas irmãs órfãs, é que decide fazer algo em prol das meninas nessa condição. E para

responder a essa necessidade cria várias Casas de Caridade:

Nas Casas de Caridade, era ensinado tudo o que se podia não somente

para preparar as jovens para o futuro, mas também para providenciar o

sustento da casa [...] As meninas aprendiam a cozinhar, a tecer, a fiar,

costurar, plantar sementes, fazer chapéu de palha, pintura em tecido de

algodão, pintar flores, fazer crochê, labirinto e renda.

As Casas de Caridade tornaram-se frequentemente o centro de diversas

atividades. Ao lado da casa, podia haver um hospital para acolher os

doentes pobres, casas de hóspedes, casa para as irmãs, horta, estábulo,

roçados, casas para os trabalhadores agrícolas que prestavam serviço,

inclusive casas para os beatos que assistiam o Padre Mestre35.

Para dirigir as Casas de Caridade, o Padre Ibiapina instituiu as “Beatas”,

mulheres simples do povo que não pertenciam a nenhuma congregação religiosa.

Talvez após a morte do Padre Ibiapina, se algum padre diocesano tivesse se

interessado para que essas casas de caridade se tornassem um instituto religioso, quem

sabe, teriam continuado a existir. O que é certo é que as dirigentes dessas casas eram

mulheres profundamente sensíveis ao sofrimento dos pobres e abandonados, quase

todas elas caídas no esquecimento, não se sabe o nome de muitas delas, ignora-se

quase por completo a biografia das mesmas.

De um lado, se vê a valorização que o Padre Ibiapina dava aos leigos,

sobretudo as mulheres. Torna-se patente que um trabalho desse tipo era conveniente

que fosse desenvolvido por pessoas do sexo feminino. Porém, o que se deseja destacar

é a capacidade que o Padre Mestre tinha de envolver as pessoas, de sensibilizá-las

diante do sofrimento e o espírito de abnegação e serviço dessas mulheres as quais se

esqueceram de si mesmas para se dedicarem a essa causa, chegando a ficar esquecidas

na história, vivendo uma vida escondida com Cristo em Deus (Cf. Cl 3,3), sofrendo

incompreensões e preconceitos por parte da hierarquia e, que não obstante, essas

dificuldades mantiveram as Casas de Caridade por quase cem anos36.

35 Ibid., p. 43. 36 Desde o início, Dom Luís, bispo de Fortaleza, desconfiou delas e pretendeu que cortassem

relações com Padre Ibiapina. Dom Adauto, o primeiro bispo da Paraíba, não gostou delas. Dom

Moisés, bispo de Cajazeiras e depois da Paraíba, retirou todo o apoio. Poucos foram os padres

que as apoiaram. Ibid., p. 46.

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O MÉTODO MISSIONÁRIO

O Pe. Ibiapina não desconhecia que antes dele os missionários capuchinhos

italianos já se embrenhavam pelos sertões adentro, levando a palavra de Deus e os

demais socorros da religião àquele povo tão sofrido e que muitas vezes ignorava as

principais verdades da fé, por não ter quem lhes apresentasse. O estilo de pregações

desses missionários era de caráter apocalíptico, concentrando-se na chamada de

atenção para tudo o que pudesse fazer com que se perdesse a vida eterna37.

O Pe. Ibiapina, em suas pregações, também combatia os vícios e conclamava

todos a uma mudança profunda de vida38. Porém, o seu método missionário

diferenciava-se do método dos capuchinhos porque além da pregação, da catequese e

das orações, compreendia também a construção de Igrejas, açudes e cemitérios. Coisa

incomum no estilo de missões pregadas à época, como se conta que numa missão em

Bananeiras, na Paraíba, em 1863, ele convocou o povo a se fazer uma nova igreja,

uma vez que a antiga tinha desmoronado e o povo se dispersou porque pensava que a

missão fosse somente de pregações. Foi quando o Padre Mestre, de maneira firme,

declarou que se os fiéis voltassem para suas casas, ele iria interromper a missão, e

“esta ameaça” surtiu efeito, uma vez que aquelas pessoas desejavam ouvir a Palavra

de Deus, tendo como fruto a construção de uma das Igrejas mais bonitas da Paraíba39.

É interessante a leitura que Comblin, faz do “sucesso” que o Padre Ibiapina

obteve à diferença do estilo dos missionários capuchinhos italianos:

[...] Padre Ibiapina apelava para outro aspecto da herança indígena, o

sentimento comunitário, a colaboração, o mutirão. Ele alcançou

rapidamente tal prestígio pessoal, que, ao seu apelo, milhares de pessoas se

precipitavam, caminhando muitas léguas para se colocarem à disposição

das obras da missão. Produziu-se tal identificação entre Padre Ibiapina e

esse povo mestiço, que ele podia pedir-lhes tudo, e tudo lhe davam. Sem

essa identificação quase mística, nunca teria podido realizar tais obras e

tantas construções. As missões eram verdadeiras mobilizações populares

livres e espontâneas40.

Esse estilo missionário escolhido pelo Pe. Ibiapina nem sempre foi muito

aceito por alguns membros da hierarquia, porque, conforme foi acenado

anteriormente, vivia-se o período de romanização. Por exemplo, “Dom Luís, primeiro

37 Ibid., p. 34-35. 38 Ibid., p. 37. 39 Ibid., p. 36 40 Ibid., p. 35.

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bispo do Ceará, queria que a diocese toda se estruturasse de acordo com as normas e

costumes da Itália. Queria que tudo dependesse dos vigários. Não queria nem missões,

nem missionários. Em 1863, expulsou Padre Ibiapina de Sobral e da região do Norte

do Ceará”41.

A ESPIRITUALIDADE DO PADRE IBIAPINA

Quando se fala em espiritualidade quase sempre se vem à mente o quanto

uma pessoa reza muito, quiçá até se pensa em alguém que teve revelações místicas ou

outros dons extraordinários, bem como algo reservado àquelas pessoas pertencentes

ao clero ou a alguma congregação religiosa. Não é este o caso do Padre Ibiapina –

muito embora ele fosse um presbítero - e nem tampouco o que se propõe a

espiritualidade cristã. Pois esta, segundo uma analogia muito profunda que Segundo

Galilea diz ter escutado de um operário, é como a umidade e a água que mantém a

relva molhada e que não são vistas; o que se vê é a beleza do gramado, o seu verde, o

que seria impossível sem elas duas42.

Esta imagem usada para compreender a espiritualidade cristã, aplica-se

perfeitamente à espiritualidade do Padre Mestre. O padre Ibiapina não deixou escritos

sobre ascese e mística cristãs, não deixou um manual de orações para as beatas, nem

teve arroubos místicos ou revelações especiais. Deus falou a ele de maneira muito

concreta, se revelou a ele no sofrimento dos sertanejos, desamparados por todo tipo de

poder. Pela sua ação diante dessa realidade de desolação, percebemos o viço da sua

espiritualidade, a sua maturidade no plano humano e espiritual, uma vez que:

O cristão maduro é, basicamente, a mulher ou o homem qualificado pela

maturidade psicológica. Sua fé, em lugar de se limitar a concepções e

práticas religiosas infantis ou supersticiosas, procura estar em sintonia com

seu saber, o que o qualifica para agir no mundo em que vive. Não deixa

em suspenso sua fé, mas empenha todos os seus recursos psicológicos,

intelectuais e culturais em testemunhar a esperança, como está escrito na

Primeira Carta de Pedro (cf. 3, 15).

[...] como seres humanos e como cristãos, somos chamados ao convívio

maduro com nosso próximo, compartilhando a vida e procurando vivê-la

no Espírito, pois este é o caminho para que colaboremos dignamente com

Deus, que quer salvar todos os humanos e cujo Verbo assumiu a nossa

41 Ibid., p. 30. 42 Cf. GALILEA, Segundo. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas 1983. (Coleção

Tempo de Libertação), p. 14-14.

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vida, até mesmo nas piores condições, na morte, transformando-as em

caminhos para a salvação e santificação de todos os humanos43.

A espiritualidade do Padre Ibiapina insere-se na religiosidade popular que foi

e ainda é o fulcro da espiritualidade do sertanejo, que como se sabe, não foi bem

acolhida e devidamente interpretada pelos membros da hierarquia de então, conforme

já se mencionou anteriormente. Mas que hoje, a partir de Puebla44 e, sobretudo, com

Aparecida, os Pastores da Igreja defendem-na e recomendam-na porque veem nela um

tesouro da Igreja Católica na America Latina, por ser um meio precioso de encontro

com Jesus Cristo45. Ele, que à sua época, soube entender a fé simples do seu povo,

sem rotulá-la de supersticiosa como a da mulher hemorrágica que acreditava que se

tocasse ao menos em suas vestes ficaria curada (cf. Mc 5, 25- 34).

INSPIRAÇÃO PARA OS PRESBÍTEROS DO TERCEIRO MILÊNIO

Dom Valfredo Tepe, numa de suas obras voltadas para os presbíteros, acena

que o Santo Cura d’Ars, padroeiro de todos os padres, talvez não corresponda ao

modelo de padre para a Igreja do Brasil, onde os padres - diferentemente de São João

Maria Vianney que foi pároco de uma aldeia de 200 pessoas46 - para atender as

necessidades espirituais das comunidades, devem tornar-se homens da estrada47. E

aqui, talvez o Padre Ibiapina seja um referencial maior, no que diz respeito à prática

pastoral, ao estilo itinerante do qual devem estar imbuídos todos os presbíteros, e

ainda mais aqueles diocesanos, em virtude do próprio estilo de vida que escolheram,

diferentemente daqueles que optaram pela vida religiosa, em que o acento é a vivência

comunitária em conventos; não significando, porém, que não possam vir a ter um

carisma missionário aos moldes do Padre Mestre, como a história tem demonstrado

em muitas prelazias e dioceses carentes, onde alguns religiosos desenvolveram

projetos e iniciativas semelhantes as do Padre Ibiapina, tendo até um êxito maior, no

sentido da continuidade porque após a morte destes, as congregações assumiram e não

deixaram morrer obras que custaram muito suor aos seus idealizadores, coisa que no

43 CATÃO, Francisco. Espiritualidade cristã. São Paulo: Paulinas; Valência, ESP: Siquem,

2009. (Coleção livros básicos de teologia; 14), p. 184-185. 44 Cf. COMBLIN, José. Ibid., p. 60. 45 Cf. CELAM. Documento de Aparecida, n. 258- 265. 46 Cf. TEPE, Valfredo. Presbítero hoje. Petrópolis: Vozes, 1995, n. 3. ed. 46. 47 Cf. BIBOLLET, Bruno. Padres diocesanos. Elementos de espiritualidade. São Paulo:

Paulinas, 2000 (Coleção: Sopro do Espírito), n. 14.

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caso do Padre Ibiapina, por ser diocesano, não houve quem levasse à frente as suas

obras48.

O Padre Ibiapina, inspira os presbíteros do terceiro milênio, sobretudo

naqueles aspectos ressaltados com tanta lucidez e quase como urgências pela

Conferência de Aparecida, uma vez que:

O povo de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos: que

tenham profunda experiência de Deus, configurados com o coração do

Bom Pastor, dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra

de Deus, da Eucaristia e da oração; de presbíteros-missionários: movidos

pela caridade pastoral que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e

a procurar os mais distantes, pregando a Palavra de Deus, sempre em

profunda comunhão com seu Bispo, com os presbíteros, diáconos,

religiosos, religiosas e leigos; de presbíteros-servidores da vida: que

estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na

defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da

solidariedade. Também de presbíteros cheios de misericórdia,

disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação49.

Diante de tudo isso, pode-se perceber como o Padre Ibiapina viveu

plenamente estas características, como filho do seu tempo, respondendo aos apelos e

necessidades de então, num espírito de entrega, de doação da própria vida, a exemplo

do Divino Mestre que veio para servir e não para ser servido (cf. Mc 10, 45) e que por

isso, se constitui em um referencial, como alguém quem inspira a nossa prática

pastoral. Prática essa que leva a Igreja como um todo a procurar responder às

necessidades atuais, sem copiar modelos do passado, apenas inspirando-se neles para

encontrar caminhos que respondam aos desafios atuais, numa fidelidade criativa aos

apelos do Espírito Santo.

À GUISA DE CONCLUSÃO

O Padre Ibiapina foi alguém que permitiu que os fatos, as pessoas e a

realidade que o envolviam o afetassem profundamente, percebendo a vontade de Deus

que se lhe apresentava, diante da qual ele tinha que dar uma resposta concreta. Por

isso, aventurou-se pelos adustos sertões nordestinos, levando a Palavra de Deus que é

sempre fonte de vida e de esperança, sobretudo para os deserdados da sorte e,

juntamente com ela, propostas de soluções para os graves problemas.

48 Cf. COMBLIN, José. Ibid., p. 9. 49 CELAM. Documento de Aparecida, n. 198-199.

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O Padre Ibiapina nos ensina uma ética e uma espiritualidade do cuidado,

semelhante às atitudes do bom samaritano (cf. Lc 10, 29-37), de alguém que se

aproxima daquele que está caído à margem da sociedade, que se comove, que faz os

primeiros socorros, que conduz para um lugar mais apropriado para a recuperação.

Podemos assim dizer que as Casas de Caridade, criadas pelo Padre Mestre, foram

como aquela hospedaria para a qual o Samaritano conduziu aquele pobre homem a

fim de ser cuidado.

A espiritualidade do Padre Ibiapina foi uma espiritualidade concreta, de uma

pessoa que não está preocupada com a sua própria salvação ou, apenas, com a

salvação espiritual do seu rebanho, mas de alguém que entende o ser humano de

maneira integral: corpo, alma e espírito, sem cair em reducionismos ou dualismos

platônicos e/ neoplatônicos, que tantos prejuízos causaram à teologia, à espiritualidade

e à prática pastoral ao longo da história. E que aqui no Brasil e na América Latina

podem ser traduzidos pelo divórcio entre fé e vida.

A espiritualidade do Padre Ibiapina é uma espiritualidade do nômade, do

andarilho. Ele sentiu que tinha que sair, não podia fincar raízes num determinado

lugar; ele percorreu milhares e milhares de quilômetros, como vimos anteriormente,

mas o êxodo maior que ele teve que fazer foi de sair de si mesmo, dos seus gostos, das

suas manias, de tudo aquilo que poderia trazer status e ascensão eclesial e

acomodação, para ir ao encontro do outro, sobretudo do abandonado, do excluído, de

quem é objeto de exploração pelos sistemas de poder deste mundo. É este mesmo

êxodo que nós cristãos do terceiro milênio, filhos do progresso, do bem-estar, de uma

cultura do consumismo precisamos fazer: sair de tudo que nos fecha em nós mesmos

para ir ao encontro do outro, quem quer que ele seja, porque é o doar-se ao outro que

nos leva a descobrir e a viver com alegria a nossa existência.

REFERÊNCIAS

BIBOLLET, Bruno. Padres diocesanos. Elementos de espiritualidade. São Paulo:

Paulinas, 2000 (Coleção Sopro do Espírito).

CATÃO, Francisco. Espiritualidade cristã. São Paulo: Paulinas; Valência, ESP:

Siquem, 2009. (Coleção Livros básicos de Teologia, n. 14).

CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO – CELAM. Documento de

Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-

Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/Paulus, 2007.

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COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo: Paulus, 2011. (Coleção Biografias).

GALILEA, Segundo. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1983.

(Coleção Tempo de libertação).

MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa história: 500 anos de presença da Igreja

Católica no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2002. (Coleção Igreja na História, Tomo 2).

TEPE, Valfredo. Presbítero hoje. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

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A INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS

NAS OBRAS “OS SACRAMENTOS” E “OS MISTÉRIOS”DE

AMBRÓSIO DE MILÃO

Márcia Eloi Rodrigues 50

RESUMO

O presente artigo aborda a interpretação alegórica do Cântico dos cânticos feita por

Ambrósio de Milão em sua catequese mistagógica, particularmente nas duas obras

“Os Sacramentos” e “Os Mistérios”. Primeiramente considera os trechos em

perspectiva exegético-teológica atual e, depois, na perspectiva alegórica. Com isso, se

quer evidenciar a riqueza teológica da interpretação alegórica da Sagrada Escritura

como linguagem eficaz da catequese mistagógica dos santos padres, os quais tinham

por objetivo levar o catecúmeno a uma verdadeira experiência com o mistério de

Cristo presente nos Sacramentos de Iniciação Cristã.

Palavras-chave: Ambrósio de Milão. Cântico dos Cânticos. Catequese mistagógica.

Interpretação alegórica.

ABSTRACT

This article approaches the allegorical interpretation in the St. Ambrose's

mystagogical catechesis on the book “Song of Songs”, specifically in his works “On

the Sacraments” and “On the Mysteries”. Firstly considering the texts in perspective

exegetical and theological current, and then, in the allegorical perspective. Thus, we

intend to emphasize the theological importance of allegorical interpretation of Holy

Scriptures as effective speech of the Fathers' catechesis, which had the goal to target

the catechumen to a real experience with the mystery of Christ present in the

Sacraments of Christian Initiation.

Keywords: Ambrose. Song of Songs. Mystagogical catechesis. Allegorical

interpretation.

50 Mestra e doutoranda em Teologia pela Faculdade Jesuíta e Filosofia e Teologia – FAJE, Belo

Horizonte-MG. Professora de Sagrada Escritura da Faculdade Diocesana de Mossoró.

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INTRODUÇÃO

A interpretação alegórica dos textos bíblicos realizada pelos padres da Igreja

apresenta-se como uma riqueza teológica e espiritual de imenso valor para a fé cristã.

Tal interpretação não deve ser ignorada nos dias de hoje em razão de uma leitura

crítica e científica da Bíblia que, dissociada de uma reflexão teológica, tenderia a

esvaziar-se de seu sentido para a fé. Ambrósio de Milão, em sua catequese

mistagógica, emprega os textos do Antigo e Novo Testamento de forma alegórica,

extraindo deles o sentido espiritual em função de sua mistagogia. No presente

trabalho, pretende-se fazer uma leitura dos textos do Cântico dos Cânticos que

Ambrósio cita nas obras “Os Sacramentos” e “Os Mistérios”.

Inicialmente será apresentada uma breve introdução ao livro do Cântico dos

Cânticos, apontando as possíveis interpretações, gênero literário e mensagem

atualmente enfocados pelos exegetas. Em seguida, serão comentados os textos desse

livro citados por Ambrósio na sua catequese, evidenciando o sentido que estes têm no

contexto bíblico. E, por fim, os mesmos textos serão comentados no contexto da

catequese ambrosiana, procurando evidenciar sua interpretação alegórica.

1 - INTRODUÇÃO AO CÂNTICO DOS CÂNTICOS

O Cântico dos Cânticos é um livro de apenas oito capítulos, de grande beleza

poética. A temática que percorre o livro é o amor de dois jovens no seu desabrochar,

que se buscam e se evitam, fonte para eles de alegria ilimitada e de intensa dor. O

amor cantado nos textos está carregado de um tom bastante erótico, cujo teor

apresenta-se como problema para a interpretação do livro51. Esse aspecto do livro foi

motivo de controvérsia sobre sua entrada no Cânon. Segundo alguns exegetas, o Rabbi

Aqibá52 teria retocado os textos mais sensuais, amenizando a linguagem erotizada, a

fim de que o livro fosse aceito pelos rabinos mais piedosos e inserido no Cânon53.

1.1 Interpretação

A mais antiga interpretação alegórica do Cântico é aquela atestada por muitos

exegetas, por alguns manuscritos de Qumran, pelo Talmud e pelo Targum, e pelos

judeus e cristãos através dos séculos. A exegese cristã seguiu o método interpretativo

51 Introdução da Bíblia TEB. 52 O Rabino Akibá (aproximadamente 50-135 dC) foi um dos maiores estudiosos da Misná, a

forma mais antiga de escrita da Torá Oral. 53 TILLESSE, Caetano M. Cântico. Revista Bíblica Brasileira, v. 14, n. 1-3, p. 184.

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hebraico, relendo, porém, em sentido novo, segundo as exigências e as condições do

NT. No entanto, o pensamento exegético hebraico atual não continua mais na linha

tradicional, porque interpreta o Cântico como uma coletânea de cantos de amor

natural entre um casal hebreu54.

Após o séc. XVIII surgiram várias tentativas de interpretação do Cântico,

buscando o significado literal do texto: 1) Interpretação litúrgica, cultual ou

mitológica – hinos em honra aos deuses da fecundidade; 2) Interpretação natural ou

naturalista – celebração do amor humano; 3) Interpretação típica – amor entre um

homem e uma mulher e o amor entre Yahweh e Israel; 4) Interpretação alegórica –

amor de Deus a Israel, expresso em palavras metafóricas e figurativas; 5) Releitura

profético-sapiencial – amor de Deus a Israel como fonte de consolo à comunidade e

amor humano entre um homem e uma mulher como fonte de instrução aos hebreus.

Esta última interpretação será a adotada no presente trabalho.

Esses textos que cantam o amor humano foram compilados por um autor-

redator pós-exílico, o qual impôs uma ordem literária e uma concepção teológica, que

transparece no título proposto pelo livro: “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão”.

Salomão era tido como o sábio por excelência. Assim, com este artifício literário, o

autor-redator introduziu os cantos de amor dentro de um contexto teológico sapiencial,

evidente também pelo lugar que o livro ocupa na mais antiga versão da Bíblia, a

Setenta55. Segundo esta interpretação, o Cântico será lido em dupla perspectiva:

quando o homem ou a mulher canta o seu amor de criaturas humanas, circundados

pelo esplendor da natureza, das flores, dos perfumes deste mundo, Deus sugere, por

meio do Redator, a realidade de um amor transcendente, do seu amor mesmo56.

1.2 Gênero

O gênero literário seria uma antologia de cantos de amor, destinados para uma

celebração ritual das núpcias em Israel ou somente cânticos de amor entre um jovem e

uma mulher, prescindido de sua próxima ou futura união matrimonial.

1.3 Mensagem

Imerso na corrente sapiencial pós-exílica, os antigos cânticos de amor

adquirem dois sentidos: 1) esplêndida realização das profecias de consolo de Oséias,

54 COLOMBO, Dalmazio. Cantico dei Cantici. Roma: Paoline, 1970. p. 21. 55 Ibid., p. 27. 56 Ibid., p. 28.

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Jeremias, Ezequiel e do Terceiro-Isaías a propósito de um renovado amor de Yahweh

por seu povo e de um futuro otimismo, bastante oportuno em tempos de reconstrução;

2) indicam ao jovem hebreu da nova Comunidade reconstruída uma justa experiência

de vida a respeito da questão do amor.

Partindo de uma leitura profético-sapiencial, pode-se propor algumas

mensagens: 1) O amor de Yahweh por seu povo, expresso nas metáforas: união

nupcial, Dileto, esposa, amiga, rei, pastor, vinha, jardim etc.; 2) Esperança da

restauração pós-exílica, expressa na viva expectativa da união idílica entre Deus e

Israel. Assim, as incertezas, os transtornos e as buscas incessantes do amor da esposa

pelo esposo (2,6-7; 3,5; 5,4-6 etc), demonstram que o livro pensa um ideal a alcançar

e não uma realidade já existente; 3) Valorização da vida humana, através de seus

elementos: o amor humano, a dignidade e a grandeza da mulher, a beleza do corpo

humano, o encanto da natureza, a alegria do viver, a celebração de festas e de

banquetes etc.

Essas mensagens veiculadas pelo Cântico expressam o alto valor humano e

religioso e o lugar específico que o livro ocupa na História da Salvação. E, colocados

no contexto da restauração pós-exílica, dão aos destinatários a certeza do imutável

amor de Yahweh por seu povo e a consciência de ser sempre o povo Eleito. O Redator

pretendeu apresentar no Cântico uma aliança de tipo nupcial, temática precedida por

Jeremias (31,31-34) e que será revelada por Jesus no seu discurso de adeus na última

Ceia (Jo 13-16). Essa aliança nupcial é retomada na tradição cristã através dos

Sacramentos da Iniciação.

2 - COMENTÁRIO A ALGUNS TRECHOS DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS

2.1 Cântico 1,2-5

Esses versículos constituem um prólogo ao livro no qual apresentam o tema

geral dos poemas que se seguem e o tom apaixonado que dominará toda a coleção. A

mulher apaixonada expressa seu amor de forma ardente. Compara o amor do Dileto ao

vinho, símbolo do prazer da vida. O amor do Dileto supera a doçura e a potência do

vinho. O nome do amado, que significa a própria pessoa, é perfume que inebria. O

amor extraordinário do Dileto acentuado pelo Redator significa também o

extraordinário amor de Yahweh por todos os povos, representados nas “donzelas”

amigas da mulher amada. O amor da mulher pelo amado é tão intenso que ela deseja

ser levada por ele. O rei simboliza o esposo, nomenclatura comum nos cantos nupciais

siríacos. Mas na releitura teológica desse antigo costume nupcial feita pelo Redator do

Cântico, o rei é Yahweh, verdadeiro Rei de Israel que, como tal, conduz toda a

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história do povo eleito. O aposento pode tanto significar a câmara nupcial onde a

mulher deseja consumar o amor com seu Dileto, como pode significar uma clara

referência ao Templo da reconstrução em Jerusalém, no qual a esposa – Israel – deseja

manifestar novamente seu amor ao seu Deus e consumá-lo.

Com o v. 5 inicia-se o primeiro poema, que exalta a beleza da amada. Beleza

diferente, que não se encontra nas outras mulheres da cidade, habituadas à vida

retirada em casa. O colorido da pele morena contrasta ao comum ideal de beleza.

Exalta-se a capacidade de amar e de ser amada da mulher morena por outras riquezas

que não a beleza física.

2.2 Cântico 4,1-3.7-8.10-12.16

Estes trechos do poema exaltam os encantos e os dotes da amada.

Nos vv. 1-3 a exaltação da beleza física da mulher é narrada através de

metáforas tomadas da natureza, física, animal, vegetal, que traduzem, por meio da

vista e do olfato, os sentidos de admiração, de alegria e de prazer que a presença do

ser amado desperta.

Os vv. 7-8 são o início do segundo elogio à mulher amada, que tem como tema

o fascínio que ela desperta, que emana dos seus dotes característicos mais espirituais

que físicos. A amada não tem defeito moral ou físico. O amado invoca ardentemente

sua amada, que está longe do seu amor.

Nos vv. 11-12 continua o elogio à mulher amada, expressa na beleza do amor,

na superioridade ao vinho e no aroma do seu perfume. O amado sente-se arrebatado

pelo gosto dos seus beijos, pelo perfume de suas vestes. Também Oséias 14,7 emprega

a imagem do perfume para expressar o amor de Yahweh a Israel. Outra manifestação

dos encantos da amada está na imagem do jardim que, fechado, simboliza que a

amada vai ainda abri-lo ao amado depois das bodas e revelará todos os seus encantos.

No v. 16 o elogio à mulher amada é encerrado com um convite do amado aos

ventos mais fortes da Palestina, para que irrompam no seu jardim e no seu destino

todos os perfumes, para que ele se delicie neles. O fechamento final (5,1a) é da

mulher, que convida o seu Dileto a entrar no seu jardim e a colher os frutos mais

excelentes que simbolizam a posse definitiva do amor.

2.3 Cântico 5,1

Final do terceiro poema, este trecho do canto de amor, no qual o esposo,

provavelmente no mesmo dia das núpcias, aceita solenemente o convite da sua mulher

para entrar no seu jardim e saborear todos os aromas e todas as doçuras. Leite e

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mel simbolizam tudo o que há de mais doce e excelente. À luz de Is 55,1, pode

também simbolizar, segundo a meditação sapiencial, a sabedoria necessária para uma

vida moral. O trecho termina com um convite do esposo aos amigos para festejarem as

alegrias das suas núpcias.

2.4 Cântico 7,7-8

Faz parte do quinto poema. Neste trecho, o esposo louva a beleza da esposa, da

qual aspira à posse com o suavíssimo beijo, supremo desejo dos amantes. Beleza que

alegra os olhos, como uma bela paisagem ou uma pessoa de aspecto grandioso e

fascinante. A palmeira é graciosa imagem que sublinha a figura ardorosa e elegante da

mulher. Os cachos (de uva) fazem referência ao vinho, símbolo do amor ardente e

apaixonado. Essa imagem quer ressaltar a beleza da mulher e o encanto do amor que

ela suscita no amante.

2.5 Cântico 8,1-2.5-6

Os vv. 1-2 exibem o canto de uma jovem mulher, que deseja ardentemente

conduzir à sua casa seu amado e fazê-lo seu esposo legítimo, para revelar-lhe

totalmente o amor que lhe incendeia o coração. Ela gostaria que ele fosse seu irmão,

para poder expressar seu amor em público.

Os vv. 5-6 são trechos constituídos essencialmente por doces palavras de amor

de uma jovem mulher e do seu Dileto, por ocasião do retorno de um encontro de amor.

Esse encanto admirável é expresso pelo estupor e êxtase diante da aparição da amada.

Esse deserto poderia significar o lugar onde o casal poderia ficar a sós. A amada

aguardou na casa da mãe por seu amado. Agora sua espera chegou ao fim com a

chegada do seu amado.

O selo é substituto da pessoa e sinal de sua autoridade. A comparação com o

selo tem dois aspectos: ela repousa sobre ele, sobre seu coração; assim sendo, ela lhe

pertence como o que ele tem de mais pessoal e leva sempre consigo; mas também a

imagem do selo quer indicar que ela põe nele a sua marca. Agora que a mulher

pertence ao Dileto, seu amor deve superar a morte e a separação, porque se faz eterno.

3 - O CÂNTICO DOS CÂNTICOS NA CATEQUESE DE AMBRÓSIO

Os textos bíblicos comentados acima foram citados por Ambrósio nas suas

obras “Os Sacramentos” e “Os Mistérios”, para fundamentar sua catequese com a

riqueza simbólica que esses textos trazem.

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3.1 Os Sacramentos

Ambrósio cita Ct 1,1-4 no 5º livro, distribuindo-os em parágrafos diferentes,

nos números 2,5-11, onde versa sobre a Eucaristia, realçando a união do fiel com

Cristo neste sacramento.

a) Sacr. 5-7

Chegaste ao altar. O Senhor Jesus te chama, ou chama tua alma ou ainda a Igreja e diz: Que me beije com os beijos de sua boca. Queres aplicar

isto a Cristo? Nada de mais grato. Queres aplicá-lo à tua alma? Nada de

mais agradável. 6 Que me beije. Vê Ele que estás puro de todo o pecado, porque as faltas foram lavadas. Por isso te julga digno dos sacramentos

celestes e te convida ao banquete celeste: Que me beije com beijos de

sua boca. 7 No entanto, por causa do que segue, tua alma ou a humanidade, ou a Igreja, vendo-se purificada de todos os pecados e

digna de aproximar-se do altar de Cristo — pois o que é o altar de

Cristo, senão a imagem do corpo de Cristo? — descobre os sacramentos admiráveis e acrescenta: Que me beije com beijos de sua boca, quer

dizer, que o Cristo me penetre com seu ósculo.

Ambrósio cita Ct 1,2 para significar o acesso do fiel ao altar, ou seja, ao

banquete celeste, permitido então pelo batismo, que o lavou do pecado. Expressa

também a resposta do fiel mediante a dignidade de aproximar-se do altar de Cristo

neste sacramento tão admirável.

b) Sacr. 8 Por quê? Porque os teus seios valem mais que o vinho, quer dizer, teus

pensamentos, teus sacramentos valem mais que o vinho. Mais do que o vinho: embora este contenha suavidade, alegria, sabor, no entanto, nele a

alegria é mundana, enquanto em ti o agrado é também espiritual. Já

então, pois, Salomão representa as núpcias ou de Cristo e da Igreja, ou do espírito e da carne, ou do espírito e da alma.

“Teus seios”57 significam os pensamentos, os sacramentos de Cristo. Esse

trecho expressa o porquê de o fiel desejar ser penetrado pelo ósculo de Cristo: a

superioridade dos seus sacramentos. O vinho simboliza a alegria mundana, que não se

compara à alegria de Cristo, porque é espiritual.

c) Sacr. 9

57 A maioria das traduções brasileiras da Bíblia traz a expressão “teus amores”, “tuas carícias”,

e não, “teus seios”. Contudo, o texto hebraico traz o termo “Pîhû” (= seio), o grego emprega o

termo “mastós” (= seio) e o latim usa “uber” (= seio). Na versão latina da catequese de

Ambrósio, a expressão usada é “ubera” (= seios). Provavelmente Ambrósio leu o texto grego e

o citou na sua catequese. Por isso, a opção por conservar a tradução utilizada por ele aqui no

artigo.

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E acrescentou: Teu nome é um perfume derramado e é por isso que as

jovens te amaram. Quem são essas jovens, senão as almas todas que

depuseram a velhice deste corpo, rejuvenescidas que foram pelo Espírito

Santo?

O inebriar-se do perfume do esposo expressa o inebriar-se do fiel no odor de

Cristo. A designação “jovens” é interpretada por Ambrósio no sentido de “eterna

juventude” de quem foi renovado pelo Espírito Santo.

d) Sacr. 10

Atrai-nos, para que corramos atrás do odor de teus perfumes. Vê o que

se diz: Não podes seguir a Cristo, a não ser que Ele próprio te atraia.

Para que, afinal, te convenças, diz Ele, quando eu for elevado, atrairei

tudo a mim.

O texto expressa aqui o desejo de seguir o amado. E esse desejo é manifestação

da graça de Cristo, que impele o fiel a segui-lo. Manifesta-se assim a prioridade da

graça, relacionando esse trecho do Cântico com Jo 12,32: “Quando eu for elevado,

atrairei tudo a mim”.

e) Sacr. 11

O rei me introduziu em seu aposento. O texto grego diz em sua adega ou

em seu celeiro. Lá onde existem boas bebidas, bons perfumes, mel doce,

frutas à escolha, iguarias variadas, para que tua comida seja

condimentada com os mais numerosos pratos.

O rei é Jesus, que introduziu o fiel na sua “adega”, lugar onde encontrará todo

tipo de iguaria. Ambrósio aponta para o sentido do Sacramento da Eucaristia, alimento

sem igual que sacia a fome daquele que o recebe.

3.2 Os Mistérios

Em “Mistérios”, Ambrósio utiliza outros textos do Cântico dos Cânticos. Cita-

os em diversas ocasiões durante sua catequese mistagógica. Veremos cada uma delas

separadamente.

3.2.1 Mistério, n. 29

Ambrósio insere um trecho do livro do Cântico no discurso sobre a Unção.

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Após isto, como estás lembrado, subiste para junto do Bispo. Reflete no

que então aconteceu. Não foi aquilo que descreveu Davi: Como perfume

na cabeça, que desce por sobre a barba que é barba de Aarão? É este o

perfume de que também fala Salomão: Teu nome é perfume

esparramado, por isso as adolescentes te amaram e por ti sentiram

enleio. Quantas almas, hoje renovadas, não te amaram, Senhor Jesus,

dizendo: Atrai-nos após ti, corremos atrás do odor de tuas vestes, para

sentirem o odor da Ressurreição!

Ambrósio emprega Ct 1,2-3 no contexto da unção, cujo sentido difere daquele

empregado em “Os Sacramentos”. O nome, que é perfume derramado, simboliza a

graça de Cristo que, na unção pós-batismal do catecúmeno, é derramado na cabeça. Os

odores pelos quais as almas correm é o odor da Ressurreição. É o próprio Cristo quem

atrai essas almas para si.

3.2.2 Mistérios, n. 35-41

Nestes números a Igreja é vista como esposa de Cristo. Ambrósio

discursa sobre o recebimento das vestes brancas após o batismo, sinal da purificação

recebida pelo Sacramento (n. 35). A Igreja regenerada pelo batismo é exaltada por sua

beleza (n. 37-39).

a) Mist. 35

Após assumir estas vestes pelo banho da regeneração a Igreja diz no

Cântico dos Cânticos: Sou negra e bela, filhas de Jerusalém. Negra, pela

fragilidade da natureza humana; bela, pela graça; negra, porque

composta de pecadores; bela, pelo sacramento da fé. Vendo tais

vestimentas, as filhas de Jerusalém exclamam estupefatas: Quem é

aquela que sobe toda branca? Ela era negra; como acontece que agora,

de repente, seja branca?

Em Ct 1,5 é exaltada a beleza da mulher amada que, embora diferente das

outras moças, não é menos digna de amor. No texto de Ambrósio, a comparação

contrasta a fragilidade humana (negra) e a graça divina (bela) operada pelo

sacramento da fé. A exclamação das filhas de Jerusalém (Ct 8,5) expressa o

acontecimento admirável da regeneração batismal, na qual a Igreja foi despida do

pecado e revestida da graça de Cristo.

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b) Mist. 37

Cristo, porém, vendo sua Igreja revestida de branco — em favor da qual

Ele próprio, como podes ler no livro do Profeta Zacarias, se revestira de

trajes sórdidos — ou vendo a alma pura e lavada pelo banho da

regeneração, exclama: Como és formosa, minha amiga, como és

formosa. Teus olhos são como os da pomba, sob a aparência da qual o

Espírito Santo desceu do céu. São belos os teus olhos, como dissemos

acima, porque desceu em forma de pomba.

Ambrósio combina um trecho do profeta Zacarias (3,3-4) com Ct 4,1 para

expressar os benefícios que a Igreja recebeu mediante Sacramento do Batismo. Ele

mostra que o próprio Cristo se emprenhou para purificá-la, pois o mesmo vestiu-se de

vestes da iniquidade para revestir sua Igreja com vestes novas. Despida das vestes do

pecado e revestida das vestes da regeneração, a Igreja aparece em toda a sua

formosura, purificada pelo Espírito Santo que nela desceu, como descera em forma de

pomba no batismo de Jesus.

c) Mist. 38

E mais além: Teus dentes são como os rebanhos das ovelhas tosquiadas,

ao subir do lavatório, todas com dois cordeirinhos gêmeos, e nenhuma

há estéril entre elas. Os teus lábios são como uma fita de escarlate. Não

é pequeno este louvor. Primeiro, por causa da graciosa comparação das

ovelhas tosquiadas. Sabemos, efetivamente, que as ovelhas pastam sem

temor nas altas montanhas e que buscam tranqüilamente o alimento por

entre os rochedos escarpados. Mais. Ao serem tosquiadas, se

desembaraçam do supérfluo. É ao rebanho delas que se compara a

Igreja, que possui em seu seio muitas virtudes das almas que depõem os

pecados supérfluos pelo banho e que oferecem ao Cristo o mistério da fé

e a graça da conduta, e que ainda falam da Cruz do Senhor Jesus.

Ambrósio ressalta a metáfora das ovelhas tosquiadas para significar a Igreja,

qual um rebanho que se desembaraçou do supérfluo, é possuidora de muitas almas

virtuosas, uma vez que eliminou os pecados (= o supérfluo) pelo banho da

regeneração. Agora essas almas vivem para Cristo, por sua fé e conduta de vida.

d) Mist. 39

Nelas é que a Igreja se apresenta formosa. É por isso que o Verbo de

Deus lhe fala: Tu és toda formosa, minha amiga, e não existe defeito em

ti, porque a culpa desapareceu. Vens do Líbano, esposa minha, vens do

Líbano, passarás e tornarás a passar desde o princípio da fé.

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De fato, renunciando ao mundo, atravessou ela o século e chegou até

Cristo. Novamente o Verbo de Deus lhe diz: Quão formosa e

encantadora és, ó caríssima entre as delícias! Tua estatura é semelhante

à da palmeira e os teus seios a de dois cachos de uvas.

A formosura da Igreja encontra-se nas virtudes. Ela não tem defeito porque

foi lavada pela água do batismo, desaparecendo sua culpa. A Igreja, pela fé e renúncia

ao mundo, atravessa o século até chegar ao Cristo. Parece aludir à renúncia às paixões

mundanas para se conservar virtuosa. Nesse intento, a fé torna-se o motor dessa busca.

Por essa fidelidade da Igreja, o Cristo se encanta novamente com a beleza de sua

Igreja. Com este trecho do Cântico (Ct 7,6-7), Ambrósio reforça o que foi dito antes a

respeito das virtudes da Igreja.

e) Mist. 40

A Igreja lhe responde: Quem me dera fosses meu irmão, amamentado

aos seios de minha mãe? Encontrando-te fora, eu poderia beijar-te e

não me desprezariam. Tomar-te-ia e te levaria à casa de minha mãe, e

no aposento daquela que me concebeu tu me instruirias. Vês como,

encantada pelo dom das graças, deseja penetrar até os mistérios secretos

e consagrar ao Cristo todos os seus sentimentos? Ela ainda insiste, ainda

suscita amor, e exige que seja despertada pelas filhas de Jerusalém, com

o auxílio das quais, isto é, das almas dos fiéis, deseja que o Esposo seja

atraído para um amor maior a ela.

Ambrósio introduz esse poema (Ct 8,1-2) como resposta da Igreja diante da

exclamação do seu Esposo. Expressa seu desejo de que Cristo seja atraído para um

amor maior a ela. A Igreja quer consagrar-lhe todos os seus sentimentos, penetrando

nos mistérios do Cristo. Para isso, conta com o auxílio dos seus fiéis para despertá-la

para esse amor.

f) Mist. 41

A partir disso, o Senhor Jesus, também Ele convidado pelo desejo de tão

grande amor, pela beleza de seu enfeite e de sua graça, uma vez que não

existem faltas que manchem os que já foram lavados, diz à Igreja: Põe-

me como um selo sobre o teu coração, como um selo sobre o teu braço.

Isto significa: Tu es bela, minha amiga, tu és toda formosa, nada te

falta. Coloca-me como um selo sobre o teu coração, para que tua fé

resplandeça na plenitude do sacramento. Que tuas obras também brilhem

e apresentem a imagem de Deus, à imagem do qual foste feita. Que teu

amor não diminua por nenhuma perseguição, teu amor que as grandes

águas não podem extinguir, nem os rios terão forças para submergir.

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A imagem do “selo” no livro do Cântico denota a pertença mútua dos amantes,

marca do amor devotado que sentem um pelo outro. Em Ambrósio significa que a

Igreja deve pôr Cristo como um selo, sinal de sua pertença a ele. Dessa pertença é que

resplandecerá a fé na plenitude do sacramento, as obras brilharão, refletindo a imagem

de Deus na qual a Igreja foi feita. O amor que nasce dessa pertença não deve ser

diminuído por nenhuma perseguição.

3.2.3 Mistérios, n. 55-58

Os números 55-58 versam sobre a eficácia do Sacramento do Corpo e do

Sangue de Cristo.

a) Mist. 55

Por estes sacramentos é que o Cristo nutre sua Igreja; por eles, sustenta-

se a substância da alma, e, vendo o seu progresso efetivo na graça, lhe

diz: Como os teus seios são belos, minha irmã, minha esposa! Como

encantam mais que o vinho e como o perfume de tuas vestes ultrapassa

todos os aromas! Os teus lábios, ó esposa, são como um favo que destila

o mel; o mel e o leite estão debaixo de tua língua, e o perfume dos teus

vestidos é como o odor do Líbano. Jardim fechado és, irmã, minha

esposa, jardim fechado, fonte selada. Por estas palavras, quer ele

indicar-te que o mistério deve permanecer selado em ti, a fim de que não

seja violado pelas obras de uma vida má, nem pela perda da castidade, a

fim de que não seja divulgado junto àqueles a quem isso não convém, a

fim de que não seja espalhado por entre os incréus, através de uma

loquacidade tola. Deves guardar bem a tua fé, para que se conservem

íntegros a tua vida e o teu silêncio.

Ambrósio ensina que a Igreja é nutrida pelos sacramentos que recebe,

proporcionando às almas progredir na graça de Cristo. Por esse motivo, Cristo exalta a

beleza e o perfume das vestes de sua Igreja, ou seja, a vida regenerada dos fiéis é

como um perfume que ultrapassa todos os aromas do mundo.

Também é ressaltada que tão imenso mistério sacramental deve permanecer

selado e inviolado por condutas más, para que não seja divulgado junto àqueles que

não podem entendê-lo, porque não participam do Mistério (Disciplina do Arcano)58.

58 A palavra “arcano” significa sigilo, segredo. Na Igreja Antiga, a Disciplina do Arcano era

indispensável para a sobrevivência do cristianismo, pois a Eucaristia era vista como Mistério

Pascal central, que não deveria ser exposto aos olhos dos estanhos (dos não batizados). Daí a

importância das catequeses mistagógicas que introduziam o catecúmeno no Mistério.

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b) Mist. 56

É por isso também que a Igreja, guardando a profundeza dos mistérios

celestes, repele para longe de si as mais violentas tempestades de vento e

atrai a doçura da graça primaveril. Sabendo que seu horto não pode

desagradar ao Cristo, chama pelo mesmo Esposo, dizendo: Levanta-te,

Aquilão, e vem, vento do meio dia, assopra de todos os lados no meu

jardim e espalhem-se os meus aromas. Vem, ó meu irmão, para o teu

jardim e come o fruto de suas macieiras. De fato, possui ele boas

árvores frutíferas, que mergulharam suas raízes na corrente da sagrada

fonte e que desabrocharam violentamente, com uma fecundidade nunca

vista, produzindo bons frutos, para não serem cortadas pelo machado

profético, mas para se desenvolverem em fecundidade evangélica.

Continua o discurso anterior, indicando os frutos colhidos dessa postura de

guardar os mistérios celestes. A Igreja, simbolizada pelo jardim, pede que Cristo sopre

sobre ela para que seus aromas se espalhem. Seus frutos não podem desagradar,

porque suas raízes estão mergulhadas no batismo, pois as sagradas fontes tornaram a

Igreja fecunda. Por essa fecundidade evangélica ela não sofrerá o juízo divino

simbolizado pelo machado profética.

c) Mist. 57

Afinal, o Senhor, agradando-se de sua fertilidade, também responde: Eu

vim para o meu jardim, irmã, minha esposa; colhi a minha mirra com os

meus perfumes, comi o alimento com meu mel, bebi minha porção junto

com meu leite. Por que tenho eu falado de comida e bebida?

Compreende-o tu, que tens fé. Não há, porém, dúvida que é em nós que

ele come e bebe, assim como tu leste que ele se diz também prisioneiro

em nós.

Essa fertilidade evangélica agrada muito ao Senhor, que faz da Igreja lugar de

seu alimento, pois aqueles que são alimentados por ela representam o próprio Cristo

(cf. Mt 25,35), que também se fez pão na Eucaristia, tornando-se prisioneiro em nós.

d) Mist. 58

É por isso também que a Igreja, presenciando tamanha graça, exorta os

seus filhos, exorta os seus amigos a correrem juntos aos sacramentos,

dizendo ela: Comei, meus amigos, bebei e inebriai-vos, meus irmãos. O

que tenhamos a comer, o que tenhamos a beber, exprimiu-o o Espírito

Santo para ti em outra passagem profética, dizendo: Saboreai e vede

quão suave é o Senhor. Feliz o homem que nele confia. [...]

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Ambrósio cita Ct 5,1 na perspectiva de exortar aos fiéis a buscar tão sublime

sacramento. De fato, Cristo está presente neste sacramento, seu corpo e seu sangue,

alimento espiritual que dá estabilidade e alegria ao coração humano.

CONCLUSÃO

A leitura alegórica do Cântico dos Cânticos não é uma novidade trazida pela

exegese patrística. A mesma apresenta-se como uma tradição bem antiga que remonta

aos judeus pós-exílicos. Estes leram os poemas numa perspectiva alegórica, buscando

apreender o sentido espiritual desses textos como forma de expressão de sua fé e

esperança para a comunidade em momento de crise.

A mesma concepção tiveram os cristãos, que buscaram ler esse livro sagrado

na perspectiva da Nova Aliança selada por Jesus Cristo. Aliança que é descrita em

linguagem metafórica porque o extraordinário amor que Deus dedica à humanidade

escapa à linguagem humana, embora se saiba que não pode ser compreensível fora

dela. Esse amor adquire linguagem simbólica no discurso da Igreja ao longo de sua

história, principalmente no âmbito da catequese mistagógica. Como iniciação ao

mistério, o discurso de Ambrósio aos neófitos vem carregado de tipologias e

alegorismos bíblicos, que tendem a evocar o caráter simbólico em toda a sua riqueza

de sentido.

Na alegoria, busca-se o sentido espiritual, fruto da interpretação da Escritura

que leva em consideração uma passagem do primeiro Testamento ao segundo, como

interiorização da Escritura.

Ambrósio tem muita liberdade na maneira de citar os textos do Cântico dos

Cânticos nos diversos parágrafos que compõem sua obra catequética. Essa liberdade é

fruto de uma vida espiritual que busca na Escritura seu alimento. Por isso, Ambrósio

parece não se preocupar com o sentido literal do texto bíblico que usa, mas busca

apresentar sua catequese intimamente fundada na Palavra de Deus, norma última da fé

cristã.

Ignorar o método exegético alegórico dos Padres e, especialmente de

Ambrósio, seria negar todo o esforço que os mesmos tiveram em refletir sua fé nas

Escrituras, baseado nos instrumentos que tinham em suas mãos. Valer-se hoje da

exegese histórico-crítica para desacreditar a exegese patrística, no mínimo seria um

desrespeito aos pais da fé que no seu tempo alimentaram a fé de muitos. Apontar os

erros da exegese alegórica não significa alterar sua beleza, nem tampouco a riqueza de

sentido que os mesmos buscaram extrair das Escrituras a fim de alimentar a fé dos

cristãos. Daí se percebe que a fé cristã será sempre um caminho a percorrer e não algo

pronto, já dado. E, nesse caminho, corre sempre o risco de enveredar-se por

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estradas desconhecidas. A teologia dos Padres nos aponta caminhos para uma

interiorização das Escrituras, como alimento e não como fonte de análise.

A catequese atual ganharia muito se buscasse no seu discurso uma reflexão

mais alegorizante das Escrituras, que busca nelas seu sentido espiritual, fruto da

interpretação da Escritura que leva em consideração a unidade dos dois Testamentos.

O sentido espiritual da Escritura é fruto de uma vida espiritual e tende a alimentá-la.

Essa é, em última análise, a proposta da Sagrada Escritura na vida da Igreja. Nesse

sentido, uma abordagem puramente científica da Escritura esvazia o seu sentido mais

primigênio: alimento para a vida do povo de Deus a caminho. Esse alimento é

oferecido por Ambrósio de Milão aos catecúmenos durante sua entrada no mistério.

REFERÊNCIAS

AMBRÓSIO, Santo. Os sacramentos e os mistérios. Petrópolis: Vozes, 1972.

BÍBLIA - Tradução ecumênica. Versão integral.

COLOMBO, Dalmazio. Cantico dei Cantici. Roma: Paoline, 1970.

LUBAC, Henri de. A Escritura na Tradição. São Paulo: Paulinas, 1970.

ORIGENE. Omelie sul Cantico dei Cantici. 2. ed. Roma: Città Nuova Editrice, 1995.

TILLESSE, Caetano M. de. Cântico. Revista Bíblica Brasileira, Fortaleza, v. 14, n. 1-

3, p. 183-188, 1997.

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MARIA, VIRGEM APARECIDA: UM SINAL DE ESPERANÇA?

André Luiz Passos59

RESUMO

O texto apresenta uma reflexão sobre a esperança que cada cristão encontra na pessoa

da Virgem Maria. Esperança que encontra suas raízes em Cristo, esperança de todo

gênero humano. A partir do texto bíblico da solenidade de Nossa Senhora Aparecida,

João 2, 1-12, ligado ao texto de João 19, 25-27, em chave mariológica, desenvolve-se

uma reflexão positiva sobre a esperança que os fiéis buscam na Virgem Aparecida.

Palavras-chave: Aparecida. Esperança. Mãe.

ABSTRACT

This article presents an analyze about the hope that every christian person finds in the

Virgin Mary. Hope is rooted in Christ, hope of the christ humanity. From the biblical

text of the Solemnity of Our Lady of Aparecida, John 2,1-12, together with John

19,25-27, in mariology key, develops a positive reflection on the hope that the faithful

seek the Virgin Aparecida.

Keywords: Aparecida. Hope. Mather.

59 Doutor em Mariologia pela Universidade Antonianum (Roma).

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INTRODUÇÃO

Diante de um mundo que passa por enormes transformações, por perdas de

valores inestimáveis, por um período desorientado, o homem de fé é chamado a

“esperar contra toda esperança”60, porque a sua esperança vem do Senhor. Sendo

assim, ele tem direito de esperar, especialmente se está no momento de provação61.

A história da salvação testemunha abundantemente quanto é gratificante e

santo esperar, sabendo que não seremos desiludidos62. Uma esperança plena que brota

e se consolida para o advento, na “plenitude dos tempos”63, daquele que proclama a

esperança em um futuro absoluto que coincide com Deus. Um Deus que,

manifestando o seu interesse por nós, mostra-o num paradoxo carregado de kenosis e

de pena do Filho Jesus, no Domingo da esperança eterna64.

O futuro que a promessa do Deus da Ressurreição abre diante da fé é um

dado da criação junto com a fé, e da fé junto à criação. A criação é um

caminho, e o homo viator65 está empenhado junto com a realidade em

uma história aberta rumo ao futuro. Ele não permanece no ar entre Deus

e o mundo, mas entra junto com o mundo no processo que é aberto à

promessa escatológica de Cristo66.

A Igreja é intrinsecamente um povo a caminho, uma comunidade de

esperança, povo que cumpre, na esperança, uma peregrinação em direção à

escatológica Terra Prometida, isto é, em direção à comunhão total com Deus: um só

corpo e um só espírito, como uma só é a esperança à qual fomos chamados67.

A Igreja dos nossos dias, renovada e motivada pelo ensinamento do

Evangelho e do Concílio Vaticano II, anunciando Cristo, luz, alegria e esperança das

60 Rm 4,18. 61 Jó 19,25-26. Cf. IOANNES PAULUS PP.II, Epistula apostolica Salvifici doloris ad totius

catholicae Ecclesiae episcopos, sacerdotes, religiosas familias et fideles de christiana doloris

humani significatione, 11 februarii 1984: AAS 76 (1984), p. 201-250. 62 Cf. Gn 17,23; 1Sm 30,6; Jó 6,9-10; Sal 42,6; 1Ts 1,3; Hb 3,1-6; 1Pd 3,15; 2Pd 3,1-7. 63 Gl 4,4. 64 Cf. Perrella (2007, p. 356). 65 Não podemos deixar de indicar o maravilhoso trabalho de Frei Freyer que contempla o

homem à luz da história da salvação, na sua integridade antropológica e espiritual. Cf.

J.B.FREYER, Homo Viator, L’uomo alla luce della storia della salvezza. Un’antropologia

teológica. In.: Prospettiva francescana. Bologna: EDB, 2008. 66 J. MOLTMANN, Teologia della speranza. Ricerche sui fondamenti e sulle implicazioni di

una escatologia cristiana. Brescia: Queriniana, 1970. 67 Cf. Ef 4,4.

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nações68, sempre mais se empenha em fazer suas as alegrias e esperanças antigas e

novas do homem69.

Essa opção que marca uma mudança e indica uma metodologia evangélico-

pastoral evita o inútil e precário equilíbrio entre uma linha encarnacionista, que coloca

a esperança no presente da história, e uma linha marcantemente escatológica, que a

projeta num futuro que deve ser esperado como providência e como fuga mundi70.

1 - CRISTO, NOSSA ESPERANÇA

Jesus de Nazaré, homem-Deus, é a chave hermenêutica necessária para uma

compreensão plena, na fé, das razões de Deus e do homem71. No evento da

Encarnação, na Cruz e na Ressurreição, são recapitulados sejam as dores do homem e

o gemido da criação72, seja a esperança para cada homem e mulher que, sobre esta

terra, participa do mistério da alegria e, assim, da esperança. E o Filho de Deus e da

Virgem Maria, “esperança da glória”73, certamente não decepciona. No presente e na

dor, Cristo ressuscitado é a certeza do futuro de glória eterna. O fiel, viajante de um

futuro que não decepciona, nem se corrompe, pois sabe que o caminho escatológico é

paradoxal: a sua meta está no seu ponto de partida, Jesus ressuscitado; e o seu futuro,

num evento passado; nós nos projetamos em direção àquilo que deve ainda acontecer

para retornarmos às fontes74.

O Papa João Paulo II, mesmo diante da crua realidade dos primeiros anos do

terceiro Milênio, quase um “tempo infiel”, incentivou os fiéis, os homens e as

mulheres de boa vontade a se libertarem de uma iníqua e improdutiva ética de

resignação75 tão difundida em nossos tempos, para confiarem no Deus de Jesus Cristo.

A esperança é dom e virtude provenientes do mistério trinitário de Deus: e é realmente

fundada em Deus e em Cristo, o qual é a nossa esperança76. Cristo é, ao mesmo tempo,

68 Cf. Lumem gentium 1. 69 Cf. Gaudium et spes, 1. 70 Fuga do Mundo, cf. C. MOLARI, Modelli di speranza cristiana. In: Credere Oggi 6 (1984),

p. 24. Cf. O.F.PIAZZA, La speranza. Logica dell’impossibile, Milano, Paoline, 1998, p. 20. 71 Cf. M. BORDONI – N.CIOLA, Gesù nostra speranza. Saggio di escatologia, EDB, Bologna,

1988; cf. B.FORTE, Confessio theologi, Cronopio, Napoli, 1995; cfr. E.MAZZARELLA,

Filosofia e teologia di fronte a Cristo, Cronopio, Napoli, 1996. 72 Rm 8,22-23. 73 Col 1,27. 74 F.X.DURRWELL, La résurrection de Jésus. Mystère de salut, Cerf, Paris, 1976, p. 205. 75 Cf. BENEDETTO XVI, Spes Salvi, LEV, Città del Vaticano, 2007, nº. 16, p. 35. 76 Tm 1,1; Cfr.BENEDETTO XVI, Spes Salvi, nº. 24, p. 48.

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fundamento e objetivo da nossa esperança: ontem, hoje e sempre77. Em Cristo o futuro

já tem um rosto pessoal, e o reino de Deus, um nome78.

A mensagem cristã foi compreendida desde o início como uma oferta de

salvação que dá uma resposta ao desejo e à esperança de felicidade do homem79. No

anúncio cristão, os dois termos, esperança e salvação, se envolvem reciprocamente: o

homem encontra a verdadeira felicidade na medida em que, acolhendo Cristo e a sua

palavra, aceita ser salvo. E tal esperança se realiza somente e plenamente em um

futuro escatológico, quando Deus será tudo em todos. Entretanto, a existência cristã

permite ao homem experimentar já, agora, antecipadamente, a realidade de uma vida

feliz, na medida em que se torna disponível à ação transformadora do Espírito Santo.

2 - MARIA, ESPERANÇA DO GÊNERO HUMANO

O fio de ouro da “esperança que não decepciona80”, do qual a Mãe do Senhor

Crucificado e Ressuscitado é sinal radioso, está ancorado na fidelidade de Deus

segundo as suas promessas – aquelas doadas pela graça aos progenitores caídos no

pecado e atuadas em Cristo, que tem na sua Mãe a solícita e humilde colaboradora – e

é um fio que percorre a história das gerações, dos séculos, das culturas e dos milênios.

Um fio de luz e de vida, nunca quebrado por nenhuma ação nociva das criaturas, que

infunde coragem e ousadia em construir, com sempre maior empenho, a cidade

terrena, sabendo caminhar na direção de uma cidade, não construída por mãos de

homens, no céu.

2.1 Uma esperança enraizada em Cristo

Maria, em toda a sua existência, deixou-se guiar pelo Espírito. Sendo

indicada, contemplada e imitada como mulher dócil à voz do Espírito, mulher do

silêncio e da escuta, mulher da esperança, soube acolher, como Abraão, a vontade de

Deus, esperando contra toda esperança81.

77 Sobre o tema: Cristo nossa esperança, cf.. G.HELEWA, Cristo in voi, speranza della gloria

(Col 1,27), Teresianum, Roma, 1994, p. 33-48. 78 Cf. M. BORDONI – N.CIOLA, Gesù nostra speranza, p. 20. 79 L.ÉVELY, Il Vangelo della gioia, Cittadella, Assisi, 1972. 80 Rm 5,5. 81 Cf. IOANNES PAULUS PP. II, Epistula apostolica Tertio milennio adveniente, Episopis,

clero, fidelibus anni MM Iubilaeum ad parandum, 10 novembris 1994, AAS 87 (1995), p. 5-41,

nº. 1802.

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Em mérito a essas incisivas considerações de João Paulo II, fundadas nas

interpretações teológicas feitas pelos evangelistas, queremos revelar a congruência da

expressão “Maria, Mãe da Esperança”. Essa expressão que, segundo aquilo que vemos

em Aparecida, corresponde claramente à manifestação da Mãe do Senhor, invocada

com o título de Aparecida. Atraídos pela Mãe do Senhor, o povo simples e oprimido

recorre à Senhora da Conceição Aparecida, desejoso de esperança e conforto para a

caminhada. Esperança que se realiza concretamente na vida de cada fiel peregrino que

espera na sua intercessão materna e amorosa.

A congruência teológica de Maria, mulher da esperança, vem acolhida da

designação eclesial do Catecismo da Igreja Católica:

A esperança é a virtude teologal com a qual desejamos o Reino de Deus

e a vida eterna como nossa felicidade, colocando a nossa confiança nas

promessas de Cristo e apoiando-nos não sobre nossas forças, mas sobre

a ajuda da graça do Espírito Santo82.

Voltando um pouco na narração evangélica, encontramos os testemunhos

mais verdadeiros e convincentes de como a Mãe de Jesus foi, na fé, na caridade e no

serviço à pessoa de Cristo, uma mulher forte e cheia de esperança83.

De fato, Maria, penetrada constantemente pelo Espírito Santo, demonstra,

desde o início da sua vida, saber acolher Deus no seu explicar-se dialógico e salvífico,

graças à sua profunda e genuína espiritualidade teologal, própria dos anawin do

Reino84, pronunciando o seu livre e consciente sim85, o seu Magnificat86, valorizado

pela sua tenaz vontade de reforçar a sua diaconia ao Deus Salvador87.

Evangelizada pelas palavras, pessoas e eventos, que servem de corolário no

momento do mistério da encarnação do Filho de Deus, a fé permeia a esperança,

inflama a caridade, incita a inteligência e reforça a vontade de seguir em frente nos

momentos difíceis88 da vida da “cheia de graça”.

Dos Evangelhos aflora a mulher hebreia que é Maria, quando se concentra,

total e plenamente, com a mente e o coração, no perscrutar e servir o Mistério89.

82 Catecismo da Igreja Católica, nº. 1802. 83 Lumen Gentium, 61. 84 Lumen gentium 55. 85 Lc 1,38. 86 Lc 1,46-55. 87 Lc 1,38-48. 88 Mc 3,31; Lc 2,50. 89 Lc 2,19.51.

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Uma parenta, também essa cheia do Espírito Santo90, reconhece e elogia

Maria pela sua fé e obediência91 atuada no abandono à verdade e à potência da

Palavra, à imperscrutabilidade e à inacessibilidade do desígnio de Deus92.

A dimensão teologal na pessoa da Mãe de Cristo não é uma mera e estática

aquisição garantida pelo dom da “cheia de graça”, mas é uma dinâmica no Espírito

Santo e é força na vontade de discipulado que forja têmpera, nutre e encontra sentido

no mistério da contradição de Cristo93.

Seguir o Mestre supõe, também e sobretudo para a Mãe, assumir um

itinerário de purificação da esperança: essa esperança, de justa inspiração humana,

deve tornar-se, mediante a assunção do modelo cristológico da humilhação, virtude

teologal ordenada ao Reino94.

O ponto alto de tal purificação, de profunda e real enculturação cristológica

ou caminho de conformação a Cristo95, Maria experimenta no drama da Cruz onde,

não sem um desígnio divino, permaneceu em pé96. Sofreu profundamente com o seu

Filho unigênito e se associou com ânimo materno ao seu sacrifício, amorosamente

consciente da imolação da vítima gerada por ela97.

À luz seja da tradição eclesial, doutrinal e litúrgica, seja do ensinamento de

João Paulo II, podemos dizer que não existe um aspecto da pessoa de Maria e da sua

missão que não suscite no coração dos discípulos um sentimento de grande esperança:

a concepção imaculada, a maternidade messiânica, a presença em Caná da Galileia,

junto à cruz, no Cenáculo com os Apóstolos esperando o Espírito Santo, a assunção

gloriosa ao céu e a mediação materna no céu, onde exerce o seu papel de Mãe dos

viventes98.

Contemplando os mistérios salvíficos de Cristo e observando a sua

repercussão sobre Maria, os cristãos entenderam que Deus colocou à disposição do

homo viator, além da absoluta realidade de “Cristo esperança”, o dom relativo e a ele

subordinado de “Maria, nossa esperança99”.

90 Lc 1,41. 91 Lc 1,42.45. 92 Rm 11,33. 93 A.SERRA, Maria de Nazaret. Una fede in cammino, Paoline,Milano, 1993, p. 31-48. 94 Catecismo da Igreja Católica, nº. 1818. 95 Gl 2,20. 96 Jo 19,25. 97 Lumen gentium 58. 98 Cf. I.M.CALABUIG, Maria, nostra sicura speranza nell’atuale liturgia romana, Centro di

Cultura Mariana “Madre della Chiesa”, Roma, 2001, p. 240-260. 99 A.M.TRIACCA, Maria, spes nostra salve! Considerazioni teologico-liturgiche in margine ad

un’antologia medioevale di preghiera mariane. In: Rivista Liturgica n. 81, 1994, p. 363.

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2.2 A contribuição de João Paulo II

Na sua Encíclica sobre a Eucaristia, o Papa João Paulo II diz:

[...] Maria fez sua, com toda a sua vida junto a Cristo e não somente

junto ao Calvário, a dimensão sacrifical da Eucaristia. Quando levou

o pequeno menino Jesus ao templo de Jerusalém para oferecê-lo ao

Senhor100, escutou o anúncio da boca de Simeão que o menino seria

sinal de contradição e que uma espada de dor iria transpassar

também o seu coração de mãe101. Foi preanunciado assim o drama

do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o “stabat Mater”

da Virgem ao pé da Cruz102.

A trágica sorte do Filho e o grito lancinante de angústia dirigido ao Pai103 não destroem

na Mãe a esperança, a esse ponto plenamente purificada e dedicada à edificação do

Reino: aquilo que a maldade e incrédula mundana esperança do homem matou104,

aquilo que, pela crônica, miseravelmente faliu, na noite da Páscoa se transformará em

história de salvação, alegria e esperança para a Mãe do Ressuscitado105.

Por isso, João Paulo II observa o exemplo da Mãe de Jesus para a Igreja, na

Carta Apostólica sobre o Rosário:

O fiel deve ir além da escuridão da Paixão, para fixar o olhar sobre a

glória de Cristo na Ressurreição e na Ascensão. Contemplando o

Ressuscitado, o cristão redescobre a razão da própria fé106, e revive a

alegria não somente daqueles aos quais Cristo se manifestou – aos

Apóstolos, a Madalena, aos discípulos de Emaús – mas também a alegria

100 Lc 2,22. 101 Lc 2,34-35. 102 IOANNES PAULUS P. P. II, Litterae Encyclicae Ecclesia de Eucharistia, 17 aprilis 2003:

AAS 95 (2003), 433-475, nº. 310-311. A espada, observa A. Serra, é figura do papel que

associa Maria ao Filho; faz certamente parte de tal economia salvífica também a dor que Maria

deverá experimentar no caso da sua vocação e missão junto ao seu Filho e Senhor. Seria,

entretanto, indevido restringir somente a essa dimensão o vasto horizonte aberto pelo santo

profeta do templo. O mesmo Evangelho de Lucas coloca à luz os efeitos que a palavra de Deus

produz na pessoa de Maria: alegria, louvor, perturbação, maravilha, dor, escuridão, memória,

escura, fé perseverante. Cf. A.SERRA, Una spada trafiggerà la tua vita. Quale spada? Bibbia e

tradizione giudaico-cristiana a confronto, Servitium-Marianum, Bergamo-Roma, 2003, p. 306. 103 Cf. Mt 27,46; Sl 22,2. 104 Cf. Mt 9, 2-3; Mc 2,7; Jo 10,33. 105 Cf. S.M.PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 365. 106 Cf. 1Cor 15,14.

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de Maria, que devia fazer uma intensa experiência da nova existência do

Filho glorificado107.

Nos dias da Páscoa oblativa e gloriosa de Cristo, a sua comunidade, dispersa

e cheia de medo pela aridez e fragilidade da esperança messiânica e pelo equívoco

existente entre a dureza da caridade e a passageira afetividade na fé – comunidade de

apóstolos e discípulos, não totalmente exemplar, mas verdadeiro ícone de tantas

contradições humanas – será reunida, reconciliada e confortada pelo Ressuscitado,

pelo seu Espírito, pela Mulher que soube “esperar contra toda esperança”108 pela

Mulher, Mãe e Serva do Messias, que soube, no Espírito do Pai e do Filho, crer que o

Senhor é fiel e esperar nas suas promessas109.

Por esse exemplo de sabedoria e de fortaleza teologal, Maria é justamente

considerada “mãe de muitos povos”110, ícone da esperança cristã. Maria, a “bendita

entre todas as mulheres”111, é a Mãe daquele que é a “bênção espiritual” de Deus112.

Tendo como base e referência a fé de Abraão, que constitui o início da antiga

aliança, a fé de Maria, Serva do Senhor, marca o início da nova aliança no fiat do

Verbo113: os dois são cheios das promessas de Deus. A obediência da fé atravessa toda

a existência de Maria que se torna Mãe dos fiéis em paralelo a Abraão, que não

vacilou na fé e, acreditando contra toda evidência, torna-se “pai da nossa fé”, “pai de

todos os não circuncisos”, “pai de todos os cristãos”114.

A atenção a essa singular e materna função universal de Maria se torna ainda

mais substancial no episódio do Calvário115, fato que pode ser ligado ao sacrifício de

Isaac116sobre o Monte Moriá.

Sobre o Monte Calvário, o monte da epifania do mistério da contradição, que

é a estrada escolhida pelo soberano pensamento e pela ação do Deus-Cristo, a fé e a

esperança da Mulher-Mãe de todos os viventes117 atingem o seu ápice de escuridão e

107 IOANNES PAULUS PP. II, Litterae Apostolicae Rosarium Virginis Mariae, 16 octobris

2002: AAS 95 (2003), 5-36, nº. 1209. 108 Cf. Rm 4,18. 109 Cf. Is 40,8; Sl 33,4; Sl 119,90; Nm 23,19 e Hb 10,23. 110 Cf. Jo 19,27; Rm 4,18. 111 Cf. Lc 1,42. 112 Cf. Ef 1,3. Cf. S.M.PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 367. 113 Cf. Redemptoris mater 14. 114 Cf. Rm 4,11-18. Cf. A.BOUD, Abramo. In: e. A. Dizionario Enciclopedico della Biblia,

Borla-Città Nuova, Roma, 1995, p. 58. 115 Cf. Jo 19,25-27. 116 Cf. Gn 22,1-18. 117 Cf. Gn 3,20.

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de luz. Daquela “noite de fé”118, semelhante àquela de Abraão sobre o Monte Moriá,

nasce e brilha a glória de Maria, peregrina na fé119. Essa glória descreve, para todas as

gerações cristãs, Maria como mulher da esperança que não termina jamais120.

De um ponto de vista histórico-teológico-litúrgico, escreve Calabuig sobre a

doutrina eclesial, referindo-se a Maria como nossa Esperança. A expressão Maria

nossa Esperança

[...] appare esplicitata nella seconda metà del secolo V. Sorge in ambito

liturgico e si sviluppa nei generi letterari dell’iconografia, dell’eucologia

e dell’omiletica. In Occidente il vescovo poeta Venanzio Fortunato121

sembra il primo a stabilire una doppia connessione tra Maria e la

speranza: la Vergine è portatrice di speranza (Cristo) ed è speranza di

perdono. Non esiste aspetto della persona di Maria e della sua missione

che non susciti nel cuore dei discepoli di Cristo un sentimento di

genuina speranza. In particolare, il mistero dell’assunzione, nella

complessità del suo contenuto – icona della nostra condizione gloriosa,

promessa e luogo dell’esercizio della mediazione materna di Maria – è

per i cristiani un segno manifesto di speranza. In virtù dell’associazione

di Maria a Cristo Redentore, Mediatore e Fonte di Vita – e quindi

“nostra speranza” – la Vergine diviene pure lei, in Cristo e per Cristo,

“nostra speranza”. Capiamo ora il cammino percorso dalla Chiesa per

giungere a invocare la Madre di Gesù con tale titolo. Contemplando i

misteri salvifici di Cristo e vedendo la loro ripercussione su Maria, la

Chiesa ha compreso che Dio ha disposto a favore dell’uomo viator, oltre

all’assoluta realtà di “Cristo speranza”, il dono relativo e subordinato di

“Maria speranza”122.

Como sempre afirmou João Paulo II, temos que retornar sempre a Cristo,

fundamento e fonte de toda esperança. E um caminho seguro para chegar a ele é sua

Mãe, que também é nossa Mãe.

Com Maria temos que retornar às fontes, à origem, descobrir que o

Evangelho não está contra nós, mas a nosso favor. E Jesus é a esperança sólida e

duradoura a que devemos aspirar. O Evangelho da esperança não decepciona123.

Mas seguindo ainda a linha de participação de Maria no mistério messiânico

de Cristo, devemos contemplar um não banal epsódio mariano, que é a contemplação

118 Cf. Redemptoris mater 17. 119 Cf. Lumen gentium 57. 120 Cf. I.M.CALABUIG, Maria e la speranza cristiana. Prospettiva liturgica, Monfortane,

Roma, 1998, p. 293. 121 Morto, aproximadamente, no ano 601 d.C. 122 I.M.CALABUIG, Maria e la speranza cristiana. p. 327. 123 Cf. B.CROCE, Perché non possiamo non dirci “cristiani”, La Locusta, Vicenza, 1986, p. 5.

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e a consagração à Mulher vestida de sol que, junto ao Cordeiro, nos ajuda a vencer o

mal124, e que o mesmo Vencedor messiânico e escatológico doou à Igreja e aos seus

discípulos125. Devemos continuamente contemplar a Mulher do céu presente na Igreja

e na história de cada fiel, como testemunham os muitos santuários em todas as nações

e a devoção viva e difundida126.

Nessa contemplação, animada por um genuíno amor, Maria nos aparece

como figura da Igreja que, nutrida de esperança, reconhece a ação salvífica e

misericordiosa de Deus. É Maria que nos ajuda a interpretar, também hoje, as nossas

vivências em referência ao seu Filho.

Com Maria, os fiéis aprendem a ser operadores de esperança cristã e

empenham-se a ser agentes responsáveis da maturação das “sementes do Verbo” na

nossa história127.

A Mãe do Senhor é um sinal de esperança, esperança que constitui uma

eminente virtude da condição humana. A esperança é a expressão da

situação existente na Igreja a caminho, é uma situação de risco, de

instabilidade, de passagem. Essa postura de quem é chamado a viver na

esperança deveria ser o “próprio” do cristão que não vive como aqueles

que não têm esperança128.

Sendo assim, Maria é a Mãe da Esperança porque, em cada situação de

desespero e provação, apresenta-nos seu Filho, fundamento de toda esperança, como

meta de superação e crescimento humano e espiritual. Ele é o único que não nos

decepciona; é o único que torna possível, na nossa vida de peregrinos na fé, uma real e

potente transformação operada pelo Espírito Santo.

Mãe da Esperança, porque em sua vida terrena, como mulher e Mãe, livre e

responsável nas suas escolhas, dócil e silenciosa, capaz de escutar, vivendo as mesmas

coisas que vivemos nós, as dores e as angústias da vida presente, sempre se manteve

fiel às promessas do Senhor, sempre acreditou, sempre obedeceu. E agora vive,

assunta e gloriosa, ao lado do seu Filho Primogênito. Se ela viveu como nós, se, como

nós, também percorreu o itinerário de fé e completou a sua peregrinação terrena,

vencendo na força do Espírito todo tipo de obstáculo, também nós, seguindo seu

124 Cf. Ap 1,1-11. 125 Cf. Jo 19,25-26. 126 Cf. S.M.PERRELA, Ecco tua Madre, p. 373. 127 Cf. GIOVANNI PAOLO II, in Insegnamenti di Giovanni Paolo II , vol XXIII/2, p. 564. 128 G.CARDAROPOLI, Maria, segno di speranza. Testimonianze neotestamentarie,

Antonianum, Roma, 1884, p. 235.

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exemplo e suplicando a sua intercessão, conseguiremos chegar ao mesmo lugar e

abraçar o mesmo prêmio: a vida eterna.

Maria é uma garantia para nós. Seu coração humano e sensível pulsa no céu,

ao lado do trono da graça, de onde observa e socorre imediatamente seus filhos. Ela

divide conosco a sua fé permeada de contínua e inflamada esperança e caridade.

Incita-nos a continuar nossa caminhada, ajuda-nos a desejar seguir em frente nos

momentos difíceis e dolorosos – momentos que purificam a nossa esperança, como

purificaram a sua – fortalecendo nossa vontade com o seu exemplo. Mesmo diante da

Cruz, Maria não perdeu a sua esperança. E no seu silêncio, diante das nossas cruzes,

espera e acompanha-nos para que vivamos a mesma coisa.

3 - MULHER, EIS OS TEUS FILHOS

Colocando toda a nossa confiança na misericórdia e na graça de Deus,

caminhamos vigilantes também rumo ao dia da vinda do Senhor. Sendo assim, é justo

que coloquemos toda a nossa vida nas mãos da Mãe do Senhor, para vivermos, a

exemplo de João Paulo II, nossa total consagração a essa Mulher, Virgem Imaculada,

que nos foi dada como Mãe, e possamos dizer juntos: Totus tuus, Maria!129

Acompanhados por ela, devemos tomar consciência da utilidade teológica e

escatológica do dom pascal de Jesus, que, para esse fim, doou Maria, sua Mãe, a cada

discípulo, considerando-a “Mãe dos seus”130. Vontade que foi deixada como

testamento pelo Senhor e inúmeras vezes mediada e apresentada pelo Papa João Paulo

II no seu Totus Tuus.

3.1 O Evangelho de João: a Mulher das Bodas de Caná

Sabemos que no Evangelho de João, duas vezes o evangelista fala de Maria

denominando-a “Mãe de Jesus”, o que é muito compreensível. É menos

compreensível quando o próprio Filho a chama de “mulher”131. E isso merece um certo

esclarecimento.

Os dois textos de João que falam de Maria, e que queremos analisar, falam

das Bodas de Caná132 e de Maria ao pé da Cruz133.

129 Cf. GIOVANNI PAOLO II, Testamento spirituale, LEV, Città del Vaticano, 2005, p. 9. 130 Cf. Jo 19,25-27. 131 Cf. Jo 2,4;19,26. 132 Cf. Jo 2,1-12. 133 Cf. Jo 19, 25-27; Cfr. A. SERRA, Maria a Cana e presso la Croce, p. 277.

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O termo “mulher” tem em si uma certa nobreza enquanto deriva do latim

domina, ou seja, senhora, que vive junto ao dominus, o senhor, na domus, ou seja, na

casa. Mas esse apelativo nos lábios de Jesus soa, num primeiro momento, como um

querer manter a distância, quase sublinhando uma estranheza que não deveria existir

entre Maria e Jesus. No texto bíblico de João, temos a palavra grega gyné, que

significa tanto “fêmea da espécie humana” como “esposa”, mulher. João não usa o

termo “mulher” superficialmente, mas com uma precisa intenção teológica134.

Quando se comenta o texto das Bodas de Caná, não se pode deixar de notar a

dificuldade de interpretar o quarto versículo : “E Jesus respondeu: que queres de mim,

mulher? Minha hora ainda não chegou135.”

Alguns estudiosos dizem que é necessário fazer uma pequena digressão para

esclarecer que a tradução deveria ser corrigida.

Começando pela primeira frase: “que queres de mim, mulher?”, devemos

reconhecer que essa expressão, na literatura antiga, era muito usada, seja com

significado hostil136, como para exprimir um mal-entendido137.

A situação entre Jesus e Maria seria certamente entendida como um mal-

entendido e não uma expressão de hostilidade, que nasce da constatação expressa pela

Mãe de Jesus: “Eles não têm mais vinho”138. Por isso o versículo quatro deveria ser

entendido como: “O que significa o vinho para mim e para ti?” De fato, é típico de

João criar esses mal-entendidos entre os seus personagens: Jesus fala de “nascer de

novo”, fala de “água viva”, e no episódio da Samaritana, ela entende “água material”;

Jesus fala de vinho como sinal da sua missão messiânica, e Maria parece entender o

vinho material139.

Também a segunda frase, “minha hora ainda não chegou”140, pode não ser

entendida no seu real significado, porque, logo em seguida, realiza o sinal. E no

versículo onze do segundo capítulo, João diz: “Esse princípio dos sinais Jesus o fez

em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele”141.

134 Cf. I. DE LA POTTERIE, Maria nel mistero dell’alleanza, Marietti, Genova, 1988, p. 202 . 135 Jo 2,4. 136 Com o significado de: “o que existe entre nós dois?”, como na resposta dos demônios a

Jesus, em Lucas 4,34. 137 Cf. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore. Maria nei vangeli di Luca e Giovanni,

Cittadella, Assisi, 1994, p. 276. 138 Jo 2,3. 139 Cf. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore, p. 278. 140 Jo 2,4. 141 Jo 2,11.

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Na realidade, a segunda frase é uma outra interrogação. Por isso Jesus afirma que a

hora de começar a manifestar-se como Esposo messiânico finalmente chegou142.

Nesse contexto, no qual Jesus pensa no vinho de modo simbólico e em si

mesmo como o Revelador, também a Mãe não pode ser por ele entendida de maneira

simbólica. De fato, ela permanece sempre sua Mãe. Mas Jesus descobre nela uma

nova identidade que ele deverá assumir em relação à sua própria identidade.

Jesus realiza o primeiro dos sinais do Reino durante uma festa de casamento,

mas dos esposos não se diz nada. Eles desaparecem, e surge Jesus como Esposo que

oferece o “vinho novo”, dando aos convidados o melhor, isto é, o seu Evangelho, a

nova Aliança, no lugar do vinho menos bom, que era a Lei. Já o Antigo Testamento

nos habituou a considerar a Aliança entre Deus e o seu povo como um verdadeiro e

real matrimônio143, e Jesus-Esposo se confronta, em Caná, com o seu povo-Esposa,

simbolizado em Maria e nos seus discípulos144.

Assim, já que delineamos a nova identidade de Maria, no seu novo nome de

“Mulher”, ela é a Esposa de Cristo-Esposo e se prepara para tornar-se a Mãe dos

discípulos, como mais explicitamente se dirá ao pé da Cruz, epifania da kenosis e do

amor do Filho do Pai misericordioso.

3.1.1 A misericórdia de Maria

É nosso dever também observar, no texto das Bodas de Caná, a presença de

Maria como mediadora e misericordiosa.

A Mãe de Jesus percebe que o sucesso da festa está em perigo. Faltou vinho!

Imediatamente recorre ao filho, intercede, suplica, indica aquilo que deve ser feito145.

Sabemos que, mesmo parecendo rejeitar o pedido de Maria, Jesus vem ao

encontro da sua preocupação de forma inesperada e surpresa. Maria, a cheia de graça,

a Imaculada, cheia do Espírito Santo, indica ao seu filho que é hora de manifestar-se.

Por ser a cheia de graça, tem autoridade suficiente para dizer: “É esta a sua hora.”

Mas Jesus reivindica uma soberana autoridade no ato de realizar o milagre,

mesmo reconhecendo, certamente, válida e pertinente a indicação de Maria. É ele que

escolhe o tempo e o modo para que cresça a fé dos que o invocam. Com isso quer

educar, purificar a fé dos orantes. Não se deixa condicionar por nenhum cálculo

humano. Também ao realizar os sinais, somente ao Pai obedece. Como no sinal

142 Cf. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore, p. 278. 143 Podemos conferir esse tema em Os 2,16-25, e também em Ez 16. 144 Cf. S.M.PERRELtLA, Ecco tua Madre, p. 481. 145 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana. Incidenze cristologico-mariane del primo “segno” di Gesù,

Messaggero di Sant’Antonio, Padova, 2009, p. 221.

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“arquétipo” de Caná, a função prioritária do seu agir é “a manifestação da sua glória”

que gera a fé dos discípulos146.

Mas não podemos negligenciar um fato surpreendente. Também com Maria,

sua Mãe, Jesus usa essa metodologia de aprofundamento da fé. No Evangelho de João,

Maria é a primeira pessoa a qual Jesus comunica a sua pedagogia em forma de oração.

E Maria se coloca inteiramente à sua vontade, e transmite aos servos do banquete o

seu abandono confiante: “Fazei tudo o que ele vos disser”147. De Mãe se transforma

em discípula. Jesus educa a sua fé, e ela se deixa educar pelo Filho148.

Nesse sentido, não podemos deixar de citar o vigésimo parágrafo da

Encíclica Redemptoris Mater. Escreve o Papa João Paulo II:

Se Maria, mediante a fé, se tornou a genetriz do Filho que lhe foi dado

pelo Pai com o poder do Espírito Santo, conservando íntegra a sua

virgindade, com a mesma fé ela descobriu e acolheu a outra dimensão da

maternidade, revelada por Jesus no decorrer da sua missão messiânica.

Pode-se dizer que esta dimensão da maternidade era possuída por Maria

desde o início, isto é, desde o momento da concepção e do nascimento

do Filho. Desde então ela foi "aquela que acreditou". Mas, à medida que

se ia esclarecendo aos seus olhos e no seu espírito a missão do Filho, ela

própria, como Mãe, ia-se abrindo cada vez mais para aquela "novidade"

da maternidade, que devia constituir a sua "parte" ao lado do Filho. Não

declarara ela, desde o princípio: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em

mim segundo a tua palavra"?149 Maria continuava, pois, mediante a fé, a

ouvir e a meditar aquela palavra, na qual se tornava cada vez mais

transparente, de um modo "que excede todo conhecimento"150, a auto-

revelação de Deus vivo. E assim, Maria Mãe tornava-se, em certo

sentido, a primeira "discípula" do seu Filho, a primeira a quem ele

parecia dizer: "Segue-me", mesmo antes de dirigir este chamamento aos

Apóstolos ou a quaisquer outros151.

A voz de Maria em Caná, “Eles não têm mais vinho”152, também é uma

epifania do seu amor misericordioso que percebe a situação de quem se encontra em

necessidade153.

146 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 223. 147 Jo 2,5. 148 Cf. A.VALENTINI, Maria secondo le Scriture, p. 280. 149 Lc 1,38. 150 Ef 3,19. 151 Cf. Jo 1,43. Redemptoris mater nº. 20. 152 Jo 2,3. 153 Cf. I. MANICARDI, Maria icona di misericordia e il vino della nuova alleanza a Cana. In:

A. G. BIAGGI - G. FRANCILIA, La misericordia di Dio Trinità nello Sguardo materno di

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Recordemos que o oitavo capítulo da Lumen gentium154 observa que a Mãe de

Jesus, nas Bodas de Caná, movida pela sua compaixão e misericórdia, consegue, com

a sua intercessão, que Jesus desse início aos seus milagres155.

Desse modo, Maria revela-se filha de Israel, seu povo, o povo que Deus

educou incessantemente para a misericórdia. Maria herdou da sua gente não somente a

carne e o sangue, mas, sobretudo, um estilo de fé. Aqui vale o princípio: a carne de

Jesus é a carne de Maria, e a carne de Maria é a carne de Israel. Assim temos: Israel-

Maria-Cristo, Cristo-Maria-Israel156.

Do ensinamento das Escrituras, aprendemos ainda que a “misericórdia” é

declinada no feminino. De fato, tem sede nas “entranhas”; sobe das regiões mais

íntimas dos sentimentos de uma pessoa. E é uma virtude com nuances femininas,

maternas, cheia de ternura, bondade, paciência e compreensão. Na verdade, une dois

vocábulos hebraicos do Antigo Testamento que servem para definir a misericórdia de

Deus e que, juntos, significam “seio materno”157.

Em Caná, como a festa poderia tornar-se uma sutil vergonha para os esposos,

a Mãe de Jesus, em espírito de “serviço”158, torna-se atenta à situação desagradável em

que estavam. Dizendo a Jesus, “Eles não têm mais vinho”159, e aos servos, “Fazei tudo

o que ele vos disser”160: ela mesma indica o caminho para se encontrar, em plenitude, a

alegria de viver161.

Maria, Atti del VI Colloquio internazionale di mariologia, Rimini 5-7 Maggio 2000, Biblioteca

di Theotokos, nº. 6, Edizioni Monfortane, Roma, 2002, p. 29-53. 154 Lumen gentium 58. 155 Cf. E.M. TONIOLO, La Beata Maria Vergine nel Concilio Vaticano II. Cronistoria del

Capitolo VIII della Costituzione dogmatica «Lumen gentium» e sinossi di tutte le redazioni,

Centro di Cultura Mariana “Madre della Chiesa”, Roma, 2004; cf. G.M. BESUTTI, Note di

cronaca sul Concilio Vaticano II e lo Schema De B.Maria Virgine, In: Marianum n. 26, 1964, p.

1-42. 156 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 263; cf. A. SERRA, Maria a Cana e presso la Croce, p.

82-118; cf. A SERRA, Dimensioni mariane del mistero pasquale, Milano: Paoline, 1995, p. 16-

37. 157 Cf. L.BOFF, Il volto materno di Dio. Saggio interdisciplinare sul femminile e le sue forme

religiose, Brescia: Queriniana, 1981, p. 92; cf. R.LAURENTIN, Tutte le genti me diranno

beata. Due millenni di riflessioni cristiane. Bologna: EDB, 1986, p. 299. 158 Nas Bodas de Caná, a Mãe de Jesus é figura da dedicação desinteressada e atenta

ao serviço dos outros, imitando o serviço humilde de Jesus num outro banquete, o

último, quando ele lava os pés dos seus discípulos. Cf. G.SEGALA, La Madre degli

inizi nel Vangelo di Giovanni, in: Teotokos 8, 2000, p. 769-785. 159 Jo 2,3. 160 Jo 2,5. 161 A Mãe do Senhor tem o olhar fixo sobre a situação e compreende o que de

essencial está sucedendo e o que de essencial está faltando. Esse é o espírito

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Vemos aqui as duas faces da única misericórdia da Santa Virgem Maria. É

sensível à carência dos bens materiais e espirituais – falta de fé, de saúde, trabalho,

moradia, liberdade, honestidade etc. – e convida a colocar em prática a Palavra de

Cristo. Oração e ação em estreita simbiose. Melhor ainda, oração entendida como a

primeira e mais eficaz ação162. Da descrição do evento de Caná, delineia-se que

concretamente se manifesta não somente uma nova maternidade, segundo o Espírito.

Que entendimento profundo terá ocorrido entre Jesus e a sua Mãe?

Como se poderá explorar o mistério da sua íntima união espiritual? De

qualquer modo, o fato é eloquente. Naquele evento é bem certo que já se

delineia bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da

maternidade de Maria. Esta tem um significado que não está encerrado

exclusivamente nas palavras de Jesus e nos diversos episódios referidos

pelos Sinópticos163. Nestes textos Jesus tem o intuito, sobretudo, de

contrapor a maternidade que resulta do próprio fato do nascimento,

àquilo que esta "maternidade" (assim como a "fraternidade") deve ser na

dimensão do Reino de Deus, na irradiação salvífica da paternidade do

mesmo Deus. No texto de São João, ao contrário, a partir da descrição

dos fatos de Caná, esboça-se aquilo em que se manifesta concretamente

esta maternidade nova, segundo o espírito e não somente segundo a

carne, ou seja, a solicitude de Maria pelos homens, o seu ir ao encontro

deles, na vasta gama das suas carências e necessidades. Em Caná da

Galileia torna-se patente só um aspecto concreto da indigência humana,

pequeno aparentemente e de pouca importância ("Não têm mais vinho").

Mas é algo que tem um valor simbólico: aquele ir ao encontro das

necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no

âmbito da missão messiânica e do poder salvífico de Cristo. Dá-se,

portanto, uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu Filho e os

homens na realidade das suas privações, das suas indigências e dos seus

sofrimentos. Põe-se de "permeio", isto é, faz-se de mediadora, não como

uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal

pode - ou antes, "tem o direito de" - fazer presente ao Filho as

necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um caráter de

intercessão: Maria "intercede" pelos homens. E não é tudo: como Mãe

deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o

seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a

libertar o homem do mal que, sob diversas formas e em diversas

proporções, faz sentir o peso na sua vida. Precisamente como o profeta

Isaías tinha predito acerca do Messias, no famoso texto a que Jesus se

contemplativo de Maria, o seu dom de síntese, a capacidade de esperar as coisas

particulares. Cf. M. MARTINI, La donna nel suo popolo, Ancona, 1984, p. 32; cf. S.

M. PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 499. 162 Cf. MANICARDI, Maria icona di misericordia, p. 53. 163 Lc 11,27-28 e Lc 8,19-21; Mt 12,46-50; Mc 3,31-35.

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refere na presença dos seus conterrâneos de Nazaré: “Para anunciar aos

pobres a boa-nova me enviou, para proclamar aos prisioneiros a

libertação e aos cegos a vista”164.

3.1.2 A mediação de Maria

Do modo como João apresenta o comportamento de Maria em Caná, é lícito

deduzir, com razões fundadas no texto, que Maria exercite realmente o papel de

“mediadora”. De fato, escreve João: “Então a mãe de Jesus lhe disse”; e depois: “Sua

mãe disse aos serventes”165.

Se temos presente que a cristofania de Caná evoca a teofania do Sinai, é

possível vislumbrar uma relação significativa entre Maria e Moisés. No Sinai, na

verdade, Moisés estava entre o Senhor e a assembléia dos seus irmãos166; em Caná,

Maria se coloca entre Jesus e os servos. Ela aparece em vestes de mediadora167.

Entretanto, não em posição neutra. Sabemos que o mediador no Antigo Testamento

não é um personagem neutro. Ele, antes de mais nada e antes dos outros, adere à

vontade de Deus. Igualmente, é presumível que, nas Bodas de Caná, Maria, antes de

todos, dispusesse o seu ânimo a aceitar a vontade do Filho e comunicasse aos servos o

seu abandono total em Jesus168. A frase “Fazei tudo o que ele vos disser”169 significa,

então: “Façamos tudo o que ele nos disser”.

Além disso, parece um dever não deixar em silêncio uma tradição consistente

do pensamento judaico antigo. Segundo vozes significativas nesta área literária, o

poço de Beer170 foi doado aos Israelitas pelo marido de Miryam, irmã de Moisés.

Também em Caná, as seis ânforas cheias de água até à borda são como uma síntese do

poço ou de todos os poços que acompanhavam o itinerário do povo de Deus. A água,

símbolo da Lei do Senhor que sempre nutria o povo de Israel, transforma-se agora no

vinho novo do Evangelho de Cristo. E ainda em Caná, uma outra Miryam é presente e

ativa na divina metamorfose que ali ocorreu no terceiro dia. Em mérito da antiga

164 Cf. Lc 4, 18. Redemptoris mater nº. 21. 165 Jo 2,3b.5a. 166 Cf. Dt 5,5. 167 Maria é aquela que faz a mediação da revelação e a correspondente fé dos discípulos em

Jesus, cf. G.SEGALA, La Madre degli inizi nel Vangelo di Giovanni, p. 778. 168 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 223. 169 Jo 2,5b. 170 O poço de Beer é o núcleo agregante de todos os outros poços e fontes de água do Antigo

Testamento, cf. Nm 21,16-20.

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Miryam, irmã do primeiro libertador, Moisés, reflete-se agora o mérito da nova

Miryam, a Mãe de Jesus, Messias Filho de Deus171.

A função mediadora de Maria em Caná é reafirmada por João Paulo II com

as seguintes palavras:

Dá-se, portanto, uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu

Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências

e dos seus sofrimentos. Põe-se de "permeio", isto é, faz-se de mediadora,

não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que

como tal pode - ou antes, "tem o direito de" - fazer presente ao Filho as

necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um caráter de

intercessão: Maria "intercede" pelos homens172.

E, mais à frente, confirma:

Podemos dizer, por conseguinte, que nesta página do Evangelho de São

João encontramos como que um primeiro assomo da verdade acerca da

solicitude maternal de Maria. Esta verdade teve a sua expressão também

no magistério do recente Concílio. É importante notar que a função

maternal de Maria é por ele ilustrada na sua relação com a mediação de

Cristo. Com efeito, podemos aí ler: "A função maternal de Maria para

com os homens, de modo algum obscurece ou diminui esta única

mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia", porque "um só é o

mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus"173. Esta

função maternal de Maria promana, segundo o beneplácito de Deus, "da

superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação e dela

depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia". É precisamente

neste sentido que o evento de Caná da Galileia nos oferece como que um

preanúncio da mediação de Maria, toda ela orientada para Cristo e

propendente para a revelação do seu poder salvífico. Do texto joanino

transparece que se trata de uma mediação materna. Como proclama o

Concílio: Maria "foi para nós mãe na ordem da graça". Esta maternidade

na ordem da graça resultou da sua própria maternidade divina: porque

sendo ela, por disposição da divina Providência, mãe-nutriz do

Redentor, foi associada à sua obra, de maneira única, como "amiga

generosa" e humilde "serva do Senhor", que "cooperou ... na obra do

Salvador com a obediência e com a sua fé, esperança e caridade ardente,

para restaurar nas almas a vida sobrenatural". "E esta maternidade de

Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à

consumação perpétua de todos os eleitos"174.

171 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 224; cf. Jo 20,31. 172 Redemptoris mater nº. 21. 173 1 Tm 2,5. 174 Redemptoris mater nº. 22.

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No Santuário de Aparecida, diante da pequenina Imagem, o povo brasileiro

sente forte e intui a presença de Maria, Virgem Imaculada, mulher e Senhora, que diz

ao seu Filho: “Eles não têm mais pão; falta-lhes fé, liberdade, moradia, saúde,

honestidade, governo, amor e esperança”. Com sua autoridade de “cheia de graça”, de

Virgem Mãe Imaculada, Assunta e glorificada, pede ao Filho pelo povo que passa

incansavelmente diante de sua Imagem Miraculosa.

Ali os filhos se apresentam, choram, sussurram, muitos não dizem nada,

apenas olham; para muitos é a última chance, a última oportunidade, a última e única

esperança, pois ninguém mais pode fazer nada por eles. Mas o povo acredita que ela

intercede, intui através do sensus fidelium que ela é a Mãe da Misericórdia,

mediadora. Sabe que ela é sensível, atenta às necessidades dos seus devotos. E ela

intercede, suplica, insiste junto ao seu Filho. Ele, na sua soberana autoridade de

Senhor e Deus, segundo a sua vontade, atende à Senhora Aparecida.

Não podemos também deixar de notar que, em Caná, Maria entra no

movimento pedagógico de Jesus, aprende com o seu filho a ser discípula, amadurece

sua fé e sua esperança. Com sua presença deseja, fazendo-se presente na vida dos fiéis

como dom, ensinar aos seus filhos que devem servir e obedecer inteiramente ao seu

Filho. É ela que no Santuário, depois da acolhida, depois de servir à mesa, de saciar os

famintos de amor, de trocar as vestes rasgadas e sujas por vestes de dignidade, diz:

“Façamos tudo aquilo que ele nos disser”.

3.2 A Mãe e o discípulo ao pé da cruz175

O versículo vinte e cinco do capítulo dezenove do quarto Evangelho nos

informa que, ao pé da cruz de Jesus, encontram-se somente três, ou quem sabe quatro

mulheres, entre as quais a Mãe, e um dos discípulos, aquele definido como “o

predileto”. Esta cena segue àquela em que os soldados176, segundo o uso, haviam

dividido as suas vestes e sorteado a túnica sem costura, tecida como um único pedaço

de cima a baixo177.

Depois disso, Jesus, sabendo que tudo estava terminado, entregou ao mundo,

à humanidade, o grande dom pascal do seu Pneuma, do seu Espírito178.

Estamos, porém, num momento no qual Cristo, evidentemente sofrendo,

recolhe as suas últimas forças para revelar à Mãe e ao discípulo, que se encontra junto

dela, alguma coisa que diz respeito aos dois, que os inclui. Estamos diante de um

175 Jo 19,25-27. 176 Jo 19,23-24. 177 Jo 19,23. 178 Jo 19,28-30.

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esquema de revelação. E, segundo esse esquema de revelação, Jesus vê as duas

pessoas de quem quer revelar a identidade. Depois se dirige à primeira, isto é, a Maria,

iniciando a frase com a palavra grega Idoú179. O sentido dessa cena aparece, então,

claro: Jesus revela à Mãe, que ela, enquanto “mulher”, com significado messiânico e

escatológico180, é também Mãe do discípulo, o qual, por sua vez, representa todos os

discípulos presentes e futuros de Jesus.

Maria personifica, ao pé da cruz do Messias, a Mãe de Sião, junto a qual se

reúnem os filhos do Novo Israel, como anunciava Isaías181.

Não podemos deixar passar despercebido que as palavras de Jesus à Mãe e ao

discípulo estão no coração da cena da cruz, onde tudo está concentrado na figura de

Jesus e sobre as suas palavras. Antes que ele fale, o evangelista se preocupa em

enquadrar ainda mais a cena. No fundo permanecem as mulheres182, entre elas estava

presente, na primeira fila, Maria, a Mãe de Jesus, e depois os outros personagens

principais da perícope: em primeiro lugar, em posição dominante, Jesus, colocado

enfaticamente no início da frase como sujeito dos verbos ver e dizer. Antes ainda de

falar, o olhar de Jesus, fixo sobre a Mãe e sobre o discípulo que estava perto dela,

associa as duas figuras. Duas pessoas concretas e, ao mesmo tempo, simbólicas. É

pela Mãe que Jesus dirige, em primeiro lugar, o seu interesse183.

Maria foi predestinada, preparada e acompanhada pelo Deus Uno e Trino a

fim de que a sua vocação de Mulher-Mãe do Libertador pascal e do novo povo, ao pé

da Cruz, viesse confirmada e reforçada. A “Mãe de Jesus”, enquanto pessoa

individualmente entendida é ainda “Mãe” de Jesus. Mas essa sua maternidade corporal

vem estendida espiritualmente a nós todos e, consequentemente, à Igreja dos

discípulos184.

179 Esta palavra, literalmente, quer dizer: “olha”. Assim temos em Jo 19,26b: “Mulher, olha teu

filho”. E depois em Jo 19,27, diz ao discípulo: “Olha tua Mãe”. 180 Relativo à Igreja, comunidade dos crentes e dos discípulos. 181 Os profetas caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente. Ergue os olhos e

vê: todos eles se reúnem e vêm a ti. Teus filhos vêm de longe, tuas filhas são carregadas sobre

as ancas. 182 Jo 19,25. 183 A atenção de João à figura da Mulher não se inicia nesta cena, mas vem de longe: é presente,

como já vimos, no início da narrativa de João, numa cena programática para todo o Evangelho.

Nas bodas inaugurais do quarto Evangelho, Maria havia recebido de Jesus o título de “mulher” na perspectiva da “hora”. Ao pé da cruz, no cumprimento da hora, ela recebe de Jesus o mesmo

título de mulher e de mãe do discípulo. A figura de Maria, junto ao crucificado, adquire a

máxima expansão e revela todo o seu peso simbólico. Cf. A.VALENTINI, Maria secondo le

Scritture, p. 318-321. 184 Cf.. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore, p. 272.

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João Paulo II, na encíclica Veritatis splendor, insiste que Maria é a Mãe da

misericórdia porque Jesus confiou a ela a sua Igreja e toda a humanidade.

Maria é Mãe de misericórdia também, porque a ela Jesus confia a sua

Igreja e a humanidade inteira. Aos pés da Cruz, quando aceita João

como filho, quando pede ao Pai, juntamente com Cristo, o perdão para

aqueles que não sabem o que fazem185, Maria, em perfeita docilidade ao

Espírito, experimenta a riqueza e a universalidade do amor de Deus, que

lhe dilata o coração e a torna capaz de abraçar todo o gênero humano.

Deste modo, é feita Mãe de todos e cada um de nós, Mãe que nos

alcança a misericórdia divina186.

Maria e o discípulo personificam a Igreja, se bem que em modalidades

diferentes: Maria, que é a Mãe de Jesus, é imagem, ícone da Igreja no seu serviço

materno; o discípulo, que acolhe, na sua vida de fé e na sua experiência espiritual, a

Mãe do Senhor, simboliza todos os crentes que desejam ser autenticamente filhos de

Deus mediante o seguimento do Filho187.

3.3 E o discípulo a acolheu em sua casa

Recentes estudos sobre o versículo de João, “E a partir dessa hora, o

discípulo a recebeu em sua casa”188, ajudam-nos a observar que o texto original grego

do quarto Evangelho não diz que o discípulo acolheu Maria “na sua casa”, mas “nas

suas coisas pessoais”189. Agora, “as coisas pessoais”, entre as quais o discípulo acolheu

a Mãe de Jesus, têm um duplo significado: um material e outro espiritual.

a) Significado material: esse se percebe evidentemente. Naquelas “coisas

pessoais” devemos ver, antes de mais nada, a casa verdadeira e própria onde vivia o

discípulo João. Entre as paredes de uma habitação, mesmo que modesta, ele introduz a

Mãe do Senhor, já viúva de José de Nazaré e, agora, também sem o único filho. João,

segundo o desejo de Jesus, ofereceu a Maria asilo, amor e conforto filial190.

185 Cf. Lc 23, 34. 186 IOANNES PAULUS II, Litterae encyclicae Veritatis splendor, 120, de quibusdam

quaestionibus fundamentalibus doctrinae moralis Ecclesiae, 6 augusti 1993: AAS 85, 1993, p.

1133-1228, n. 2827. 187 E.M.TONIOLO, La “Madre della misericordia” nell’enciclica del papa – Dio, ricco di

misericordia. Commenti originali, Logos, Roma, 1980, p. 53-69. 188 Jo 19,27. 189 O palavra grega usa é “eis tà ídia”. Sobre esse argumento cf. A.VALENTINI, Maria

secondo le Scritture, p. 320-324; cfr. A. SERRA, Maria a Cana e presso la Croce, p. 85-91. 190 Como base para essa posição material, encontramos a opinião de outros autores no quarto

parágrafo de cf. A.VALENTINI, Maria secondo le Scritture, p. 321.

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b) Significado espiritual: esse é o mais profundo. As “coisas pessoais” do

discípulo seriam “os dons” inúmeros que ele recebeu do amor do Senhor Jesus, e que

se tornam, portanto, “suas coisas pessoais”, isto é, “sua propriedade espiritual”. Entre

esses “dons” está também Maria de Nazaré, Mãe, testemunha e serva do Senhor191.

Sendo assim, também Maria é um “dom” que nasce do amor de Cristo pelos

“seus”. Prestes a morrer, de passar deste mundo ao Pai, Jesus quer demonstrar a

medida plena do seu amor, despojando-se de tudo e doando o único bem que ainda lhe

restava, sua Mãe192.

A acolhida da mãe é uma das notas que caracterizam, agora e para

sempre, o verdadeiro discípulo de Cristo. A hora de tal acolhida – que

não é tanto uma indicação cronológica, mas momento teológico –

coincide com o cumprimento da hora de Jesus. A expressão “depois”,

com a qual inicia o versículo seguinte193, não parece uma simples

fórmula de transição, mas pretende sublinhar uma estreita ligação entre

aquilo que antecede e aquilo que segue: somente então “tudo estava

consumado”194. Estamos em um contexto extremamente solene e

decisivo, João 19, 25-27 se encontra no ápice da hora estabelecida pelo

Pai e como selo da missão salvífica de Jesus. Com o dom-revelação de

Maria, como mãe do discípulo amado, e com a sua acolhida se cumpre a

obra de Cristo195.

Quando um fiel passa diante da Imagem da Senhora Aparecida exposta no

Santuário, mesmo muitas vezes não tendo consciência, assume em sua vida o olhar do

Senhor. O olhar de Jesus, que estava na Cruz, recai fixo sobre Maria, que ao seu lado

tinha João, que simboliza cada um de nós. Se no Santuário, diante da sua Imagem,

temos a certeza de estar junto da Mãe, sabemos que o olhar de Jesus também recai

sobre nós. Junto da Mãe ele nos observa, contempla-nos, ama-nos. Somos os

discípulos predestinados, escolhidos, convidados, como João, a participar do projeto

salvífico da humanidade.

Sem dúvida alguma, voltando para casa, saindo do Santuário, DOMUS

MARIAE, cada fiel brasileiro leva consigo Maria no coração. Mas a leva também,

materialmente falando, representada na sua Imagem, que encontramos praticamente

191 Existem outros autores que defendem essa posição como R.SCHNACKENBURG, Il

Vangelo di Giovanni, Queriniana, Brescia, 1981 p. 452; cf. A.VALENTINI, Maria secondo le

Scritture, p. 321. 192 Cf. S.M.PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 486. 193 Cf. Jo 19,28. 194 Jo 19,28. 195 A.VALENTINI, Maria secondo le Scritture, p. 323-324.

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em quase todos os lares católicos brasileiros. Através de sua Imagem, literalmente, o

fiel acolhe Maria, como fez João, entre os seus pertences pessoais.

Dessa forma, o culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que no início

se desenvolveu na casa dos pescadores, e que cresceu a ponto de ser necessária a

construção de um imenso Santuário, propaga-se e retorna às casas dos milhares de

devotos em meio ao povo brasileiro.

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O CONCEITO DE EXEGESE BÍBLICA NA TEOLOGIA

DOS PADRES DA IGREJA

Charles Lamartine Sousa Freitas 196

RESUMO

Inegavelmente, as Sagradas Escrituras constituem o fundamento da vida cristã e, por

isso, foram a base primeira da teologia dos Padres da Igreja. Esta centralidade bíblica,

todavia, não é uma novidade do cristianismo, na verdade é uma herança do

monoteísmo judaico, que já buscava uniformizar a doutrina bíblica com disciplina da

vida e com a liturgia. O que distingue o cristianismo do judaísmo é o modo de

interpretar a Escritura. Para os Santos Padres, a Escritura é sempre palavra de Deus e

essa deve ser compreendida na unidade, pois um único é o seu autor. O Antigo é

protótipo, preparação para o Novo, que em Cristo encontra o seu pleno cumprimento.

Sendo assim, em meio à apresentação da atual linha de estudo que divide o Cristo da

fé e o Cristo da história, faz-se necessário promover uma renovação na exegese,

através de uma leitura não só histórico-crítica, mas também canônico-espiritual da

Bíblia. Daí a importância de se retornar à leitura dos escritos patrísticos, uma vez que,

sem dúvida, seus autores souberam interpretar autenticamente o depósito da fé,

fecundando e fomentando uma reflexão sempre viva, capaz de nutrir a Igreja em todos

os tempos, no pensar a Cristo e a si mesma. Pensar as Sagradas Escrituras à luz da

reflexão patrística é admitir que as suas reflexões se fazem luz, como fonte perene na

promoção da atualização teológica, o que não implica no conteúdo da fé, mas sim

numa releitura, que ajuda ao homem de cada tempo a comunicá-la de modo mais

eficaz.

Palavras-chave: Sagradas Escrituras. Patrística. Exegese. Atualização Teológica.

ABSTRACT

The Holy Scriptures are, undeniably, the foundation of christian life, and so it was the

first basis of the theology of the Church Fathers. This biblical centrality, however, is

not a newness of christianity, it is actually a legacy of Jewish monotheism, which has

196 Mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma); Professor

de Cristologia e Diretor Geral da Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.

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sought to unify the biblical doctrine with discipline of life and the liturgy. What

differentiates Christianity from Judaism is the way to interpret Scripture. For the Holy

Fathers, Scripture is always word of God and this must be understood in the unit as a

unique is its author. The Antigo is prototype, preparation for the new, that in Christ

finds its completion. Thus, through the presentation of the current line of study that

divides the Christ of faith and Christ of history, it is necessary to promote a renewal in

exegesis through a reading not only historical-critical, but also canonical-Spiritual

Bible. Hence the importance of returning the reading of the patristic writings, as

undoubtedly, its authors knew authentically interpreting the deposit of faith, fertilizing

and fomenting an ever living reflection, able to nourish the Church in every time. To

think Holy Scripture in light of the reflection patristic is to admit that their reflections

are made light, as perennial source in promoting theological upgrade, which does not

imply the content of faith, but instead a reinterpretation, which helps the man of every

time to communicate it more effectively.

Keywords: Holy Scriptures. Patristic. Exegesis. Theological update.

INTRODUÇÃO

É fundamentalmente sobre as bases da Sagrada Escritura que o cristianismo

recebe forma e corpo. Essa assume, portanto, uma verdadeira centralidade na

orientação e constituição do depósito da fé. A Bíblia é concebida pelo cristão em sua

unidade, na qual os livros antigo-testamentários constituem uma profecia que já

encontrou o seu pleno cumprimento na Pessoa de Jesus Cristo, o Verbo de Deus, que

consolidou a religião da Palavra, expressa não somente em escritos fixos, mas pela

Verdade sempre viva, que dEle mesmo emana.

De tal modo, sendo a Palavra o fundamento da vida cristã, é sobre o

procedimento da interpretação escriturística que se desenvolve a reflexão da sagrada

teologia, nos primeiros séculos do cristianismo. Os antigos autores cristãos, também

chamados Padres da Igreja, desempenharam um papel importantíssimo para que a

religião cristã chegasse a sua plena maturidade, sem deixar de lado as suas raízes.

Esses escritores patrísticos vendo em Cristo o Verbo encarnado, o ápice de toda

história, foram os maiores responsáveis por uma justa propagação da fé na sua

Pessoa197.

197 DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia:Morcelliana, 1989, p.

13-15.

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Hoje, em meio à apresentação da atual linha de estudo entre o Cristo da fé e o

Cristo da história, o Papa Bento XVI retoma a centralidade da Sagrada Escritura, como

fundamentação a todo referimento dos eventos históricos concretos, nos quais se narra

o ingresso de Deus na história real por meio de Jesus. Ele, seguindo o espírito do

Vaticano II, aponta, com base na Dei Verbum 12, a necessidade de uma renovação na

exegese, através de uma leitura não só histórico-crítica, mas também canônico-

espiritual da Bíblia. Viu, portanto, nos Santos Padres, uma grande autoridade neste

campo, os quais souberam de um modo exemplar “ler os textos sagrados com o

mesmo Espírito com os quais foram escritos”, desenvolvendo uma verdadeira e

própria teologia198.

Neste estudo, que agora desenvolvemos, buscaremos seguir esta inspiração,

que nos conduz a um retornar às fontes patrísticas, como meio de fomentar uma

hermenêutica não só literal, mas também alegórica da Escritura. Ajudaram-nos de

guia, alguns autores contemporâneos que se dedicaram ao estudo da Sagrada Escritura

na Patrologia, mas de modo particular, nos serviremos de escritos dos próprios Padres

da Igreja199, buscando responder, a partir deles, em que consiste a Exegese Patrística.

Após delimitarmos o conceito, buscaremos aplicá-lo a uma perícope do ÊXODO 11:

1-10; 12: 21-34, evidenciando, assim, de modo preciso, aquilo que foi constatado.

1 - A EXEGESE PATRÍSTICA E O SEU CONCEITO

Como já acenamos sucintamente na introdução deste trabalho, o conceito de

exegese bíblica não apresenta uma distinção objetiva daquele de teologia na literatura

dos Padres da Igreja; ao contrário, estão intimamente relacionados, uma vez que estes

realizavam a sua teologia, fundamentalmente, a partir da leitura interpretativa da

Sagrada Escritura, sendo esta, portanto, o centro de toda sua argumentação teológica.

Para Henri de Lubac, a exegese dos Santos Padres correspondia a uma

necessidade própria do cristianismo nascente, em que a interpretação mística da

Escritura constitui um dos fenômenos mais notáveis da Igreja Primitiva. Importante,

não só para a formação do Dogma Cristão, mas para fixação permanente das bases do

seu pensamento. A exegese espiritual patrística não assume um nível suplementar, é

ela que ajuda a fundar a fé, ou ao menos traduzi-la, em modo não de adicionar um

198 RATZINGER, J. BENTO XVI.“Premessa” In: Gesù di Nazaret. Milano: Rizzoli, 2007, p.

14. 199As citações que utilizamos a partir de escritos (obras em italiano) dos próprios Padres da

Igreja foram traduzidas de forma livre, ou seja, de nossa responsabilidade.

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“mais” a esse depósito, mas de contribuir fundamentalmente na sua plena

constituição200.

É importante, nesse sentido, salientar que os primeiros Padres ou autores

cristãos se ocuparam da interpretação escriturística por finalidades polêmicas e

catequéticas e não exegéticas em sentido estreito, realizando a sua leitura da Bíblia na

própria ação pastoral e litúrgica. As controvérsias interpretativas da Escritura, nos

primeiros séculos, caracterizaram-se, sobretudo, no combate às fontes gnósticas,

judaicas e mitológicas. Somente a partir da segunda metade do século II e início do III

que começou uma tratativa exegética de modo mais concreto, com a ilustração

sistemática de várias partes dos textos sagrados. Sobretudo com a polêmica gnóstica, a

exegese cristã da Bíblia expande a sua ação e começa a definir normas mais

precisas201.

1.1 A Escola de Alexandria e Antioquia

O estudo bíblico patrístico não é caracterizado por um único procedimento

hermenêutico. A leitura escriturística dos Padres permite a observação de diferentes

tipos de interpretação, o que posteriormente será chamado de diversos métodos

exegéticos, que se identificarão, especificamente, com dois grandes centros teológicos

da antiguidade, conhecidos como escola de Alexandria e escola de Antioquia.

O método exegético alexandrino é assinalado essencialmente pelo apelo à

alegoria, à inteligência espiritual, ao valor simbólico dos números, animais e plantas,

por uma leitura espiritual e pelo influxo da filosofia platônica. Não podemos falar

dessa escola sem destacar a importância de Orígenes, o qual lhe deu uma maior

riqueza de interesse e o rendeu um método de estudo mais rigoroso. Apreçando,

sobretudo, uma hermenêutica alegórico-espiritual, mas não desprezando também a

literal, distingue três níveis de interpretação para cada passo da Escritura: literal,

espiritual (tipológico) e moral (psicológico). Vê-se aqui, o Antigo Testamento como

typos do Novo Testamento e este, por sua vez, como typos do Evangelho eterno.

Já o método antioqueno é marcado por uma leitura literal, histórica,

gramática, filológica e teórica da Escritura. Destacam-se aqui as figuras de Teodoro

Mopsuestia e Diodoro, os quais nutriam os interesses históricos e, declaradamente,

polêmicos no confronto com o alegorismo alexandrino e seus princípios

200DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989, p. 14. 201SIMONETTI, M.“Esegesi Patristica”. In: Dizionario Patristico e d’Antichità Cristiana. vol.

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hermenêuticos. Enquanto a primeira escola via o Antigo e Novo Testamento em

coligamento, Teodoro vê nas duas muito mais uma ruptura que uma continuidade202.

1.2 A relação entre o Antigo e Novo Testamento

Para a maioria dos Padres da Igreja, os dois Testamentos são irmãos,

existindo entre eles uma contínua conexão e relação. Estes constituem dois ícones, que

dão origem a dois povos estabelecidos por Deus. O Antigo Testamento é uma

“preparatio evangelica” ao Novo, o qual recebe esse nome, não só por ser o segundo

na ordem do tempo, mas porque ele jamais pode envelhecer. É o último, é a Nova

Aliança que não se repete e foi concluída para sempre.

Na encarnação de Cristo, a Escritura encontra a sua plena unidade. Assim,

quando o judeu renega a fé em Jesus, ele permanece limitado à Lei que se desfaz,

enquanto o cristão possui toda a unidade no seu princípio. Na tradição patrística, o

Verbo feito carne é o “Verbum abreviatum”, o qual contém todas as maravilhas

anunciadas pelos profetas. A palavra do Novo Testamento (Evangélica) é a Palavra

abreviada e perfeita, a qual tudo contém, pois se identifica com o próprio Jesus203.

Na leitura dos escritos patrísticos, é possível observar que é

predominantemente nítida essa visão entre os Padres. Como por exemplo, São Justino,

que em seu Diálogo com Trifão, destaca a profunda ligação entre as duas Alianças,

fazendo uma verdadeira releitura da Antiga à luz de Cristo. Santo Irineu, seguindo a

mesma direção, interpreta o Antigo Testamento em uma visão cristológica e trinitária,

afirmando que o verdadeiro Anúncio Apostólico é aquele que se fundamenta na

Verdade, que é o próprio Cristo, o qual cumpre em si tudo aquilo que anunciaram os

profetas204.

1.3 O sentido histórico-literal e alegórico-espiritual da Escritura

Os antigos autores cristãos desenvolvem a sua interpretação da Sagrada

Escritura, compreendendo-a em dois sentidos, literal e espiritual, correspondendo

estes, respectivamente, ao Antigo e Novo Testamento, os quais vivem entre si uma

contínua relação. Para se chegar à inteligência espiritual (sentido teológico-

dogmático) da Palavra de Deus, é necessário partir da letra, porém se deve ir além

dela, realizando uma verdadeira “expositio spiritualis”, chegando, portanto, a um

202Ibidem., 2006, p. 1213-1222. 203DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989, p. 178-179. 204IRENEO. Esposizione della Predicazione Apostolica. Com.1.

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sentido mais profundo e nobre de uma inteligência interior, jamais compreendido

plenamente.

Para alguns Padres, tais como Orígenes, uma das grandes dificuldades

interpretativas da Escritura, seja dos judeus, seja dos heréticos, se dá pelo limite de

não conseguir fazer uma leitura espiritual da Bíblia, a qual vem escutada somente em

um sentido literal. Para ele, existem alguns passos da Bíblia que é impossível

compreender em um sentido exclusivamente literal. Como por exemplo, a narração da

criação, da qual ninguém pode duvidar de que apresenta símbolos que indicam um

mistério por meios de fatos aparentes, mas que em realidade não aconteceram. Por

isso, os judeus não acreditam que a Escritura não declara algo mais do que o sentido

literal, observam a lei pela lei e não a lei pelo espírito205.

Também em seu comentário ao Cântico dos Cânticos, Orígenes expõe de

modo intenso a leitura em sentido alegórico e literal dos textos sagrados. Ele entende

que a interpretação literal adere à realidade material do texto sagrado. Já o método

alegórico busca descobrir o significado mais verdadeiro da Escritura: o sentido

pontualmente espiritual, daquele que o significado literal é imagem e símbolo. Quem

se limita ao sentido literal não pode jamais progredir no entendimento inteiro do texto.

Por outro lado, fica claro que somente partindo da letra se pode chegar ao espírito da

Escritura206.

É interessante o fato de que os Padres, mesmo utilizando muito o método

alegórico, não negam o sentido literal do texto Bíblico, ao contrário, valorizam-no.

Santo Agostinho, mestre da alegoria, nos mostra, por exemplo, em sua Homilia 49207(a

qual nos fala sobre a ressurreição de Lázaro, morto há quatro dias), que é possível

fazer uma interpretação alegórica sem negar o sentido histórico-literal do texto. Para

ele, esta quantidade de dias tem um sentido em si mesmo, mas pode também significar

tantas outras coisas. Esta ideia ele também apresenta em A Doutrina Cristã, quando

nos diz:

Cada disciplina tem por objeto ou coisas ou sinais, mas é através dos

sinais que se apreende as coisas. Estreitamente falando, eu dei o nome

de coisa a tudo aquilo que não vem usado para significar algo diverso de

si [...]. Por sinal, entendemos todas as coisas que se usam para significar

uma outra. Quanto aos sinais, existem alguns que não servem outra

coisa, se não para significarem: tais são as palavras. Portanto, todo sinal

é também alguma coisa, pois aquilo que não é uma coisa é nada. Não,

205Cf. ORIGENE. I Principi. Livro IV.§2, 9. 206 ORIGENE.“Prologo” in: Commento al Cantico dei Cantico. Roma: Città Nuova Editrice,

1976, p. 26. 207 Cf. AGOSTINO. Omelia 49 In: Commento al Vangelo di San Giovanni.§ 49, 12.

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porém, todas as coisas são sinais. Ninguém usa, de fato as palavras, se

não para significar alguma coisa208.

Percebemos que é característico da exegese escriturística patrística essa

relação entre letra e espírito, história e alegoria. O espírito não vem separado da

história literal, mas parte dela, vê o que nela está escondido. Esta age como serva, para

que a inteligência espiritual tire o seu véu. Na Escritura, tudo é espiritual e inteligível,

devendo, portanto, ser interpretada, contemplada analogamente. Tudo que nos fala a

Bíblia, realmente aconteceu, mas não é o fim em si mesmo, precisamos ver mediante

o uso das alegorias o que ainda está por acontecer209.

1.4 A Exegese Canônica e a Tipologia

Os Padres da Igreja reconhecem que na própria Escritura existe já uma

releitura de si mesma, na qual, por exemplo, Orígenes210 diz que no Deuteronômio

vem promulgado uma legislação mais clara dos textos precedentes e esta, por sua vez,

anuncia a promulgação do Evangelho, a segunda lei, autêntica e definitiva. Este ler a

escritura com a própria Escritura é o que é considerada a Exegese Canônica, tão

apreciada pelos antigos autores.

Esse método não é uma novidade patrística. Certamente, foram esses autores

que o difundiram amplamente. Mas o próprio Jesus utiliza passagens do Antigo

Testamento para o seu anúncio. Também Paulo e os seus seguidores reinterpretam

muitas passagens da Escritura em chave cristológica, onde em uma análise espiritual,

vê os episódios do antigo-testamentários como typos, modelo de antecipação de Cristo

e da sua Igreja.

Os escritores patrísticos conseguem ver uma profunda ligação entre os dois

Testamentos, não se limitando somente ao Evangelho, mas destacando a função

primária do Antigo Testamento na reflexão do cristianismo sobre si mesmo. Essa é

uma visão unitária, uma continuidade que faz possível a Exegese Canônica. A Palavra

de Deus é sempre viva e eficaz, obtendo o seu real cumprimento e pleno significado,

somente mediante a transformação que opera em quem a recebe.

Irineu de Lião, em sua Exposição da Pregação Apostólica, faz uma análise

claramente tipológica. Seguindo a cristologia paulina, o Santo vê em Cristo o novo

Adão e em Maria a nova Eva. Ele entende que Jesus é aquele que vem redimir o

mundo destruído pelo pecado de Adão. É o novo Adão. E se por meio do antigo, o

208 Cf. AGOSTINO. A Doutrina Cristã. Livro I. §1, 2. 209 DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989, p. 97. 210 Cf. ORIGENE.I Principi. Livro I. §1, 4.

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mundo conheceu a morte, por meio do Verbo Eterno, conhece a plena vida em Deus

(cristológia paulina), assim como Maria, que sendo da estirpe de Davi e Abraão, é a

nova Eva, na qual vem dissolvida e destruída a desobediência virginal pela obra da

virginal obediência211.

1.5 O caráter divino das escrituras e o princípio de não contradição

Outra preocupação dos Padres consistia em defender o princípio da

inspiração divina da Sagrada Escritura. Orígenes, em sua obra Os Princípios, tem

como primeira preocupação defender essa verdade. Já no primeiro livro do escrito, ele

nos coloca os motivos que nos impulsionam a dizer que a Escritura é toda inspirada

por Deus, sendo Ele o único autor. Na sua compreensão, são nas próprias palavras

bíblicas que encontramos a exposição de tais argumentos. Segundo ele, Jesus é a

maior certeza e garantia da autoridade divina da Bíblia, pois as palavras ali contidas

anunciam a sua vinda com potência e majestade.

Demonstrando brevemente a divindade de Cristo e acenando as

profecias sobre Ele, nós juntamente demonstramos que são inspiradas

por Deus as Escrituras que profetizam Ele. As palavras que anunciam a

sua vinda e o seu ensinamento, pronunciadas com potência e autoridade

e que por isto, conquistaram a flor das flores dos povos. É necessário,

porém, reconhecer que o caráter divino dos escritos proféticos e o

significado espiritual da lei de Moisés são revelados com a vinda de

Cristo. De fato, antes dessa, não era possível ter argumentos evidentes

sobre a inspiração do velho testamento. Com a vinda de Cristo, se

excluem as dúvidas do caráter divino da lei e dos profetas como escritos

da graça celeste [...] A luz contida na lei de Moisés, coberta com um

véu, resplandece em Cristo, pois se tira o véu, e se pode súbito ter

consciência dos bens de qual a expressão literal a mantinha sobre e com

a vinda do Verbo chega a sua perfeição212.

Também Santo Irineu, em Contra as heresias, atesta que a Sagrada Escritura,

de modo particular as parábolas de Cristo, demonstram que um só Deus é o autor dos

dois Testamentos. Ele interpreta a parábola dos “vinhateiros homicidas” (Mt 21, 33-

43), mostrando que existe um só patrão de casa, ou seja, um só Deus, que fez todas as

coisas, mas existem diversos tipos de colonos, alguns bons, outros arrogantes e

homicidas. Deus plantou a vinha da humanidade, primeiro por meio da plasmação de

Adão e da eleição dos padres, depois a entregou aos colonos por meio da legislação

211Cf. IRENEO. Esposizione della Predicazione Apostolica. Com. 38. 212Cf. ORIGENE.I Principi. Livro IV. §1, 6.

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mosaica para ser cultivada, vos construiu uma torre, ou seja, escolheu Jerusalém.

Constituiu os profetas como anunciadores do reino da justiça. Mas, mesmo assim,

existiam aqueles que não acreditaram e, por isso, mandou o seu Filho Jesus Cristo,

que os maus colonos mataram, mas Ele venceu a morte e por ação do Espírito Santo

impulsionou a Igreja que é esplendente sobre a antiga torre213.

Sendo, pois, a Escritura obra de Deus, não pode existir nela contradições. Ele

é perfeito e perfeitas também são as suas obras. Aprendemos da Escritura que Deus

tem o primado sobre todas as coisas, não podemos, portanto, limitá-lo às nossas

próprias opiniões, mas devemos em obediência de fé acolher aquilo que nos foi

comunicado. A nossa inteligência mesmo sendo espiritual é limitada e é somente pela

graça de Deus, a nós dada, que podemos conhecer a sua revelação.

1.6 O limite humano na compreensão da Escritura

Em Contra as heresias, Irineu nos coloca, ainda, que o homem, mesmo

havendo a capacidade inteligível, não pode compreender todos os mistérios de Deus

que é transcendente, divino, assim como não pode compreender e nem exprimir tudo,

pois a língua sendo algo material, apresenta as suas dificuldades e limites. Alguns

soberbos de modo irracional, dizem de conhecer o mistério infalível de Deus, quando

o Senhor, o Filho mesmo de Deus, admitiu que somente o Pai conhece o dia e a hora

do seu juízo. Se nem mesmo o Filho se envergonhou em afirmar que somente o Pai

conhece aquele dia, nem mesmo nós devemos nos envergonhar de reservar a Deus as

questões que estão acima da nossa capacidade214.

Para Santo Agostinho, muitos dos que leem os textos sagrados, encontram

muitas vezes obscuridade e ambiguidade em muitas passagens, e tomam às vezes uma

coisa pela outra. Talvez tudo isso acontece por disposição divina, para que fosse

domada a soberba humana. Aqueles que querem se dedicar ao estudo da Bíblia,

devem passar por um processo de dupla conversão: primeiro, mediante o temor a

Deus, conhecendo a sua vontade; depois, devem se tornar humildes e respeitosos e

jamais contradizer a divina Escritura, seja que compreendamos ou não, devemos ter

em consideração que tudo que ali está escrito é superior e mais verdadeiro, mesmo

que escondido. Para compreensão da Escritura é fundamental o auxílio do Espírito

Santo, que após nos ajudar a superar o apego às forças humanas, nos doa os seus dons

213Cf. IRENEO.Contro Le eresie. Livro III, §36, 1-3. 214Cf. IRENEO.Contro Le eresie. Livro II. §28, 1-6.

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e nos faz aderir ao gosto pelas coisas eternas, aproximando-nos da compreensão da

Palavra em uma inteligente simplicidade215.

1.7 A Escritura e a Edificação da Caridade

Santo Agostinho entende que a finalidade da Sagrada Escritura é a edificação

da caridade. Segundo ele, para uma justa exposição da Palavra, é necessário fé,

esperança e caridade, sendo que o preceito é a caridade originada do coração bom, da

consciência boa e da fé segura. É necessário colocar-se com espírito humilde, para

buscar compreender a essência do amor cristão presente em cada parte da Escritura,

que se revela na experiência do amor a Deus e pelo Próximo. Eis, portanto, o coração

da Santa Bíblia. Amando a Deus, devemos ser capazes de amar o nosso próximo e

amando aos nossos semelhantes, estaremos em grau de amar verdadeiramente a nós

mesmos216.

1.8 Os livros canônicos

Para Agostinho, aquele que lê a Bíblia na qualidade de investigador, deve

estar atento a quais são as escrituras canônicas, que se elencam de modo particular

sobre as seguintes condições de autoridade: primeiro, deve-se preferir os livros aceitos

por todas as Igrejas Católicas, àqueles que não são; entre aqueles que não são aceitos

por todos, deve-se preferir os das Igrejas mais numerosas e de maior autoridade em

relação às menores. Agostinho escreve o cânone bíblico completo aceito por ele217.

1.9 A importância do grego e do hebraico no estudo da Bíblia

Possuidor de um espírito filológico de sensibilidade elevada, Agostinho

ressalta que o bom entendimento pode levar em um espírito de humildade a uma boa

comunicação da verdade bíblica. Um ponto importante para o exegeta é o

conhecimento de outras línguas além do latim (língua comum àquele tempo),

particularmente, o grego e o hebraico. Assim, pode-se recorrer aos textos anteriores,

caso a qualidade da tradução latina, rica em variantes, apresente dúvidas, rompendo os

erros no confronto entre o grego-latim. Muitas expressões e até mesmo frases inteiras,

podem perder o seu sentido real, caso não seja bem traduzida. Reforça-se, portanto, a

215Cf. AGOSTINO. A Doutrina Cristã. Livro II. §6, 7. 216 Ibidem. Livro I.§30, 33. 217 Ibidem. Livro II.§8,12-13.

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necessidade de conhecer as línguas originais. Entre as antigas traduções, o Bispo de

Hipona destaca a Septuaginta como uma grande autoridade. Para ele, aqueles

tradutores, das Igrejas mais competentes, traduziram a Escritura, em virtude tal e tanta

presença do Espírito Santo que uma foi a voz daqueles homens, mesmo sendo

numerosos218.

1.10 Cristo e a Igreja na Escritura

Para a maioria dos autores patrísticos é, sobretudo, Cristo e a Igreja que vêm

significados em tantas passagens da Sagrada Escritura. De um modo particular, eles

veem, no Antigo Testamento, muitas figuras, imagens, typos, que representam ou

prefiguram estes. Segundo Agostinho, numerosos são os textos obscuros que se

encontram na Bíblia e falam da pessoa do Verbo, o Filho encarnado de Deus.

Por quanto temos podido recavar as sagradas páginas, Cristo é

designado segundo três modalidades quando se fala dele na Lei e nos

Profetas, nas cartas dos Apóstolos e nas narrações históricas que

conhecemos dos Evangelhos. Em um primeiro modo quando se fala dele

como Deus, ou seja, segundo a divindade co-eterna e igual a do Pai

antes da encarnação. Em um segundo modo, se fala dele como Verbo

encarnado, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, mediador e capo da

Igreja. E em terceiro jeito, o designa como o Christus Totus in

plenitudine Ecclesiae, ou seja, Cabeça e Corpo em profunda unidade,

configurado sobre o modelo de um homem perfeito, de qual homem

perfeito, nos somos os membros219.

Agostinho apresenta, particularmente, o terceiro modo como Cristo vem

referido nos livros sagrados, quando se fala do Cristo Total considerado também a

Igreja, ou seja, quando se fala da Cabeça e Corpo. Estes, de fato, formam um único

Cristo – o que não quer dizer que Cristo sem o Corpo seja uma pessoa incompleta,

mas que Ele se designou em ser uma realidade completa também junto conosco; Ele

que mesmo sem nós é completo desde a eternidade. É importante, porém, salientar que

quando a Bíblia faz referimento aos sofrimentos faz em relação ao seu Corpo e não a

Ele que está no céu. Tantas passagens da Escritura nos ensinam essa doutrina do

Cristo Total, como quando Paulo expõe lucidamente as palavras do Gênesis, em

relação ao marido e à mulher: os dois serão uma só carne220, e entende isto como um

Grande Mistério, fazendo referimento a Cristo e à Igreja. Assim, a ideia de Cabeça e

218 Ibidem., Livro II. §11, 16. 219Cf. AGOSTINO.Discorsi Nuovi 22. Livro II. §1. 220 1 Cor 6,16.

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Corpo pode ser entendida em uma relação de íntima união da qual Cristo é o Esposo e

a Igreja é a sua Esposa. Devemos, portanto, ser um Corpo digno dEle, uma esposa

digna dEle221.

2 APLICAÇÃO DA EXEGESE PATRÍSTICA AO TEXTO ÊXODO 11: 1-10;

12: 21-34

Tomando como fundamentação os pontos que caracterizam a exegese

patrística, os quais elencamos no capítulo anterior, buscaremos neste segundo

momento aplicá-los a uma perícope do livro do Êxodo. Esta faz referimento,

particularmente, à décima praga que Javé faz cair sobre o povo do Egito, por causa da

dureza do coração do faraó, que insistia em manter o povo hebraico prisioneiro na

escravidão. Para facilitar a nossa leitura, vejamos o que diz o próprio texto bíblico:

1 E o Senhor disse a Moisés: Ainda uma praga trarei sobre Faraó e sobre

o Egito; depois vos deixará ir daqui; e, quando vos deixar ir totalmente,

a toda a pressa vos lançará daqui.2 Fala agora aos ouvidos do povo, que

cada homem peça ao seu vizinho, e cada mulher à sua vizinha, jóias de

prata e jóias de ouro.3 E o Senhor deu ao povo graça aos olhos dos

egípcios; também o homem Moisés era mui grande na terra do Egito,

aos olhos dos servos de Faraó e aos olhos do povo.4 Disse mais Moisés:

Assim o Senhor tem dito: Å meia noite eu sairei pelo meio do Egito;5 E

todo o primogênito na terra do Egito morrerá, desde o primogênito de

Faraó, que haveria de assentar-se sobre o seu trono, até ao primogênito

da serva que está detrás da mó, e todo o primogênito dos animais.6 E

haverá grande clamor em toda a terra do Egito, como nunca houve

semelhante e nunca haverá;7 Mas entre todos os filhos de Israel nem

mesmo um cão moverá a sua língua, desde os homens até aos animais,

para que saibais que o Senhor fez diferença entre os egípcios e os

israelitas.8 Então todos estes teus servos descerão a mim, e se inclinarão

diante de mim, dizendo: Sai tu e todo o povo que te segue as pisadas; e

depois eu sairei. E saiu da presença de Faraó ardendo em ira.9 O Senhor

dissera a Moisés: Faraó não vos ouvirá, para que as minhas maravilhas

se multipliquem na terra do Egito.10 E Moisés e Arão fizeram todas estas

maravilhas diante de Faraó; mas o Senhor endureceu o coração de Faraó,

que não deixou ir os filhos de Israel da sua terra [...]21 Chamou pois

Moisés a todos os anciãos de Israel e disse-lhes: Escolhei e tomai vós

cordeiros para vossas famílias e sacrificai a páscoa.22 Então tomai um

molho de hissopo e molhai-o no sangue que estiver na bacia, e passai-o

na verga da porta e em ambas as ombreiras, do sangue que estiver na

bacia; porém nenhum de vós saia da porta da sua casa até à manhã.23

221Cf. AGOSTINO. Discorsi Nuovi 22. Livro XX. §12.

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Porque o Senhor passará para ferir aos egípcios, porém quando vir o

sangue na verga da porta, e em ambas as ombreiras, o Senhor passará

aquela porta e não deixará o destruidor entrar em vossas casas, para vos

ferir.24 Portanto guardai isto por estatuto para vós e para vossos filhos

para sempre.25 E acontecerá que, quando entrardes na terra que o

SENHOR vos dará, como tem dito, guardareis este culto.26 E acontecerá

que, quando vossos filhos vos disserem: Que culto é este?27 Então direis:

Este é o sacrifício da páscoa ao Senhor, que passou as casas dos filhos

de Israel no Egito, quando feriu aos egípcios, e livrou as nossas casas.

Então o povo inclinou-se, e adorou.28 E foram os filhos de Israel, e

fizeram isso como o Senhor ordenara a Moisés e a Arão, assim

fizeram.29 E aconteceu, à meia noite, que o Senhor feriu a todos os

primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se

sentava em seu trono, até ao primogênito do cativo que estava no cárcere

e todos os primogênitos dos animais.30 E Faraó levantou-se de noite, ele

e todos os seus servos e todos os egípcios; e havia grande clamor no

Egito, porque não havia casa em que não houvesse um morto.31 Então

chamou a Moisés e a Arão de noite, e disse: Levantai-vos, saí do meio

do meu povo, tanto vós como os filhos de Israel; e ide, servi ao Senhor,

como tendes dito.32 Levai também convosco vossas ovelhas e vossas

vacas, como tendes dito; e ide, e abençoai-me também a mim.33 E os

egípcios apertavam ao povo, apressando-se para lançá-los da terra;

porque diziam: Todos seremos mortos.34 E o povo tomou a sua massa,

antes que levedasse, e as suas amassadeiras atadas em suas roupas sobre

seus ombros222.

Dentre os Padres da Igreja que fazem uma leitura interpretativa desse texto,

Santo Agostinho é aquele que apresenta o mais amplo comentário. No Discurso 8, o

hiponense faz uma comparação entre os dez mandamentos e as dez pragas do Egito. Já

ao início de seu sermão, ele parte do sentido literal do texto, dizendo que as pragas

materialmente aconteceram, foram reais como lemos. Porém, segundo seu

entendimento, deve-se ir além da letra, para se chegar ao sentido espiritual destes

acontecimentos, pois estas coisas são sombras daquelas que deveriam acontecer. Igual

pensamento, o Santo tem em relação aos dez mandamentos, que para ele, aqueles que

os despreza e não os observa, sofrem espiritualmente aquilo que os egipicianos

sofreram fisicamente. É nítido aqui, um dos princípios da exegese patrística, a

valorização do sentido literal do texto, ao mesmo tempo em que chama a atenção para

a busca do sentido alegórico-espiritual do mesmo. Percebe-se também, que em sua

didática interpretativa, o autor usa a Escritura para explicar a própria Escritura, vemos,

portanto, fortes sinais de uma exegese canônica223.

222 ÊXODO 11: 1-10; 12: 21-34. 223Cf. AGOSTINO. Discorso 8. §1, 2.

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Em Locuções do Êxodo224, Agostinho busca evitar errôneas compreensões do

texto, quando, por exemplo, pensa a ordem que dá Deus ao povo de espoliar o povo

egípcio, pedindo prata, ouro e vestidos. Segundo o Santo, ninguém deve tomar isto

como exemplo para espoliar o próximo desta maneira. Os israelitas não cometeram

um furto, mas prestaram um serviço a Deus, obedecendo ao seu designo. O ouro são

os seus sábios, a prata os seus oradores, as vestes a variedades de suas línguas

(interpretação alegórica). Gregório Nacianzo vê neste versículo um sentido mais

espiritual. Para ele, ao cumprir a ordem de Deus, os israelitas estavam abandonando os

falsos deuses, para observar o que dizia Moises como enviado de Deus. O ouro e as

outras coisas representavam as coisas boas, os tesouros espirituais e os bons

conselhos.

Orígenes, em seu Comentário ao Evangelho de Mateus, relaciona o versículo

3 (que fala da grandeza de Moisés) com o contexto evangélico, onde os discípulos

queriam saber de Jesus, quem era o maior no reino dos céus e o mestre busca explicar.

Para o comentador, muitos foram grandes na Escritura, mas ninguém seguramente é

maior do que Cristo Salvador. Dentre as figuras do Antigo Testamento, Moisés é um

dos mais invocados como prefiguração de Cristo. Vemos no comentário de Orígenes,

além da alegoria, a relação entre Antigo e Novo Testamento, assim como, a leitura da

Bíblia com a Bíblia, o Êxodo à luz do Evangelho de Mateus225.

No versículo 5 (que fala da morte de todos os primogênitos), muitos

erroneamente veem a maldade de Deus. Para Agostinho, o primogênito tem em nós a

imagem da graça de Deus: o novo nascido é o primeiro nascido. Entre todos os

nascidos do nosso coração, a primogenidade é da fé. Todas as obras boas são filhos

espirituais, mas por primeiro nasce a fé226. Isidoro de Servilha vê, na morte dos

primogênitos, a destruição da tirania e do erro, como também dos fundadores das

falsas religiões. Cristo é aquele que revela a verdade única e definitiva, apagando

todos os erros.

João Crisóstomo vê em Ex 12, 21-22, uma prefiguração explícita do

sacrifício do Cristo. Ele é o cordeiro imolado e é o seu sangue que nos salva. No

versículo 22, quando fala de molhar o hissopo no sangue, Ambrósio interpreta como a

prefiguração do batismo, que purifica e nos unge com o Espírito Santo. Aquele que se

batiza, resta limpo segundo a Lei e o Evangelho. A lei porque Moisés sinalava o

sangue do cordeiro com hissopo e segundo o Evangelho, porque os vestidos de Cristo

eram límpidos como a neve quando se mostrou na glória da ressurreição. Para

224Cf. AGOSTINO. Locuzione e questione sull’ ettateuco.§14, 1. 225Cf. ORIGENE.Commento al Vangelo di Matteo/2.Livro. XIII. §15, 16. 226Cf. AGOSTINO.Discorso 8.§13.

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Agostinho, a erva de hissopo usada na celebração daquele tempo é imagem em sobra.

Esta erva é suave e penetrante, pois é raiz da profundidade revelada na cruz de nosso

Senhor Jesus. O Batismo é o sacramento que nos faz filhos no Filho, é a nossa porta

de entrada para Igreja. Para muitos padres é de Cristo e da Igreja que falam em muitas

passagens da Bíblia, às vezes, de modo escondido.

CONCLUSÃO

A leitura dos escritos patrísticos representa, sem dúvida, um retorno aos

arcanos da doutrina cristã. Seus autores souberam interpretar autenticamente o

depósito da fé, fecundando e fomentando uma reflexão sempre viva, capaz de nutrir a

Igreja em todos os tempos, no pensar a Cristo e a si mesma. Como vimos em todo este

trabalho, a teologia dos Santos Padres é essencialmente escriturística; eles foram

capazes de ler os textos Sagrados com o mesmo Espírito que foram inspirados,

expondo uma doutrina cristã que se confunde caracteristicamente com a hermenêutica

Bíblica.

Esta centralidade Bíblica, na vida religiosa, não se constitui em uma novidade

do cristianismo, na verdade é uma herança do monoteísmo judaico, que já buscava

uniformizar a doutrina bíblica com disciplina da vida e com a liturgia. O que

distingue, porém, o cristianismo do judaísmo é o modo de interpretar a Escritura,

particularmente, no que diz respeito ao Antigo Testamento. O judeu vê nele a espera,

o messias. Já o cristão, encontra na encarnação de Cristo o seu pleno cumprimento.

Surgem, assim, as primeiras polêmicas interpretativas, praticamente, desde o início do

cristianismo. Já em São Paulo e seus seguidores encontramos essa reinterpretação dos

textos sagrados em chave cristológica, que, em uma análise espiritual, vê os episódios

antigo-testamentários como uma antecipação e símbolo de Cristo e da Igreja227.

Para os Santos Padres, a Escritura é sempre palavra de Deus e essa deve ser

compreendida na unidade, pois um único é o seu autor. Os dois testamentos

constituem dois ícones, que fundam e orientam dois povos, regulamento a relação de

Deus com os homens. Estes se apresentam em uma profunda conexão, tendo o

segundo origem no primeiro, sem renegá-lo, nem contradizê-lo. O Antigo é modelo,

protótipo, preparação para o Novo, que em Cristo encontra o seu pleno cumprimento,

o que representa para os Padres o Kaíros228 único e definitivo. Nessa mesma direção se

dá a compreensão da Bíblia em dois sentidos, literal (o sentido real do texto) e o

227SIMONETTI, M.“Esegesi Patristica” In: Dizionario Patristico e d’Antichità Cristiana.Vol.

I.Milano: Marietti, 2006, p. 1214. 228Kaíros = Tempo de graça.

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espiritual (sentido mais profundo e nobre da inteligência interior do texto), os quais

correspondem, respectivamente, ao Antigo e Novo Testamento.

Diante de tudo que vimos, percebemos que o contato com os textos

patrísticos, em uma época, na qual a busca do conhecimento se fundamenta cada vez

em métodos humanos e técnicas científicas na verificação dos dados, nos conduz, sem

dúvida, a um novo olhar sobre a Sagrada Escritura. Os Santos Padres, seguramente,

não dispunham dos artifícios metodológicos que temos hoje, mas deixaram-se mover,

sem dúvida, pelo Espírito vivificador, tornando-se reais intérpretes do conteúdo

verdadeiro da fé, ajudando o cristianismo a chegar a sua plena maturidade.

As suas reflexões se fazem luz, como fonte perene na promoção da

atualização teológica, o que não implica no conteúdo da fé, mas sim numa releitura,

que ajuda ao homem de cada tempo a comunicá-la de modo mais eficaz. O retorno aos

Padres significa abraçá-los, conhecê-los, entendê-los, mas não exagerar

excessivamente, esquecendo as ricas reflexões posteriores, que certamente também os

tiveram por base. A eternidade se desenvolve no tempo, no qual a revelação vai

sempre enriquecendo cada cultura, sem jamais necessitar de ser enriquecida.

REFERÊNCIAS

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______. Discorso Dolbeau 22 in Discorsi Nuovi XXXV/2. Roma:Città Nuova Editrice,

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O MINISTRO DO SACRAMENTO DA ORDEM, EXCLUSIVIDADE

DO BISPO

Frederico Gurgel Câmara229

RESUMO

É objetivo principal deste trabalho a exposição de fatos, conceitos chaves e definições

magisteriais que possam afiançar a resposta eclesiástica às nossas perguntas iniciais: porque

apenas o bispo pode ordenar presbíteros e diáconos? Pode o presbítero ser um ministro

extraordinário do sacramento da Ordem? Fixar-no-ei, todavia, na busca de argumentos para

responder a primeira questão. Desenvolverei este a partir de três âmbitos: primeiro, uma breve

exposição do que constitui o sacerdócio no grau do episcopado e, em especial, a temática do

sacerdócio pleno. Posteriormente, apresento alguns aspectos dos documentos do magistério que

rezam sobre a plenitude do sacerdócio e, por fim, delinearei a figura do bispo como

administrador da graça do supremo sacerdócio e ministro ordinário do sacramento da Ordem.

Através desses três pontos, busco, de maneira breve, expor as ideias e respostas do magistério

católico sobre a pergunta anteriormente exposta.

Palavras-chave: Sacramento. Ordem. Episcopado. Sacerdócio.

ABSTRACT

As the objective of this study, the exposure of facts, key concepts and magisterial definitions

that may secure the ecclesiastical answer to our initial questions: why only the bishop can

ordain priests and deacons? The priest can be an extraordinary minister of the sacrament of

Orders? He will focus, however, in finding arguments to answer the first question. He will

develop this from three areas: first, a brief exposure of what constitutes the priesthood in the

degree of episcopate and, in the theme of full-priesthood. Later, we will present some aspects of

the documents of the magisterium, which pray about the fullness of the priesthood and finally

delineate the image of the bishop as steward of the grace of supreme priesthood and ordinary

minister of the sacrament of holy Orders. Through these three points, he will seek to briefly,

expose the ideas and answers of catholic teaching of the questions previously exposed.

Keywords: Sacrament. Order. Episcopate. Priesthood.

229 Mestre em Teologia Dogmática pelo Ateneo Pontifício Regina Apostolorum.

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INTRODUÇÃO

Ao nos oferecer uma descrição do que é a Igreja particular, o decreto do

Concílio Vaticano II Christus Dominus a apresenta como comunidade de fiéis

confiada ao cuidado pastoral do bispo “cum cooperatione presbyterii”230. É verdadeiro

o fato de que há entre o bispo e os presbíteros uma communio sacramentalis, em

virtude do sacerdócio ministerial ou hierárquico, que é participação do único

sacerdócio de Cristo, embora em grau diverso, e em virtude do único ministério

eclesial ordenado e da única missão apostólica. Segundo a Pastores Greges231:

Durante a solene Oração de Ordenação, o Bispo ordenante principal,

depois de ter invocado a efusão do Espírito que rege e guia, diz estas

palavras referidas jáno antigo texto da Tradição Apostólica: «Pai santo,

que conheceis os corações, dai a este vosso servo, por Vós eleito para o

Episcopado, que apascente o vosso povo santo, exerça de modo

irrepreensível diante de Vós o sumo sacerdócio»232. Deste modo,

continua a ter cumprimento a vontade do Senhor Jesus, o Pastor eterno

que enviou os Apóstolos, como Ele mesmo tinha sido enviado pelo Pai

(Cf. Jo 20, 21), e quis que os sucessores deles, os Bispos, fossem

pastores na sua Igreja até ao fim dos tempos.

Nos primórdios da cristandade, ou seja, no tempo em que foi redigido o Novo

Testamento, apenas os Apóstolos conferiam o poder da Ordem àqueles que eram

eleitos para a ordem dos diáconos (Cf. At 6,6), ordem dos presbíteros (Cf. At 14,22;

13,3) ou para a ordem episcopal (Cf. 1Tm 4,14; 2Tm 1,6).

Já no início do terceiro século, Santo Hipólito declara que um simples

sacerdote não pode constituir a outrem, como pertencentes ao estado clerical (Cf.

Traditio Apostolica –versão latina, DS 10). No mesmo período, o documento litúrgico

Didascalia Siriaca, proveniente do oriente, declarava que “um bispo deve ser

ordenado por três bispos, o presbítero e o diácono por um bispo assistido pelo clero;

porém nem o presbítero nem o diácono podem elevar um leigo ao estado clerical”233.

Santo Epifânio, no século IV, refutou os erros de Ário de Sebaste que sugeria que o

sacerdote gozasse da mesma dignidade do bispo. Usou como argumentação principal

o fato de que o bispo, apenas ele, possui o poder de conferir as ordens.

230 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 11. 231 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 1 232 Cf. Pontifical Romano, Rito da Ordenação do Bispo: Oração de Ordenação. 233 Cf. Didascalia et Costitutiones Apostolorum Siriaca III. In: TREVIJANO R. Patrologia: serie

Manuales de Teología. 2004, p. 149.

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Na Idade Média, o Papa Bonifácio IX, através das Bulas Sacrae religiones234

(1400) e Apostolicae Sedis235 (1403) concedeu ao Abade do mosteiro de Saint Osyth

no Essex, que não era bispo, o privilégio de conferir, sejam as ordens menores ou

maiores, aos membros da sua comunidade monástica. Como vemos, são duas bulas. A

primeira outorga ao abade o privilégio, até então desconhecido, de conferir as ordens

maiores, inclusive o presbiterato. A segunda, três anos depois, por solicitação do bispo

londrinho Roberto Braybrook, revoga este privilégio.

Em 1427, o Papa Martinho V, através da Bula Gerentes ad vos236, concede

privilégios iguais aos concedidos ao Abade de Saint Osyth, ao abade do mosteiro

cisterciense de Altzelle, na Saxônia, por cinco anos.

Papa Inocêncio VIII, pela Bula Exposcit tuae devotionis237, de 9 de abril de

1489, concede ao abade do mosteiro cisterciense de Citeaux, João de Cirey, e aos

quatro mais importantes mosteiros afiliados (La Ferté, Pontigny, Clairvaux e

Marimond) o privilégio de administrar o sacramento da Ordem quanto ao

subdiaconato e ao diaconato. Os cistercienses usufruíram desses privilégios até o fim

do século XVIII.

Em consequência dessas bulas de Bonifácio IX, põe-se a questão se o

presbítero pode ser o ministro extraordinário da ordenação presbiteral, assim como

comumente se aceita em relação ao sacramento do Crisma. A praxe romana parece

confirmar essa possibilidade através das apresentadas bulas.

Convém lembrar que durante muito tempo foi discutida a sacramentalidade

da consagração episcopal. O Concílio Vaticano II ensina que a consagração episcopal

dá a plenitude do sacramento da Ordem238; porém não enfrentou, todavia, o problema

que aqui colocamos. É de relevância o anatematismo tridentino da sessão 23, cânone

7. A autenticidade das bulas apresentadas dificilmente podem ser colocadas em

questão, já que subsiste o seu registro no Arquivo Vaticano.

Diante dos aspectos acima citados, apresentamos como objetivo principal

deste trabalho a exposição de fatos, conceitos chaves e definições magisteriais que

possam afiançar a resposta eclesiástica às nossas perguntas iniciais: porque apenas o

bispo pode ordenar presbíteros e diáconos? Pode o presbítero ser um ministro

extraordinário do sacramento da Ordem? Fixar-nos-emos, todavia, na busca de

argumentos para responder a primeira questão.

234 Cf. BONIFACIO IX, Bula Sacrae religiones, DS 1145. 235 Cf. BONIFACIO IX, Bula Apostolicae Sedis, DS 1146. 236 Cf. MARTINHO V, BulaGerentes ad vos, DS 1290. 237 Cf. INOCÊNCIO VIII, Bula Exposcit tuae devotionis, DS 1435. 238 Cf.CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 21.

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Desenvolveremos este a partir de três âmbitos: primeiro, uma breve

exposição do que constitui o sacerdócio no grau do episcopado e, em especial, a

temática do sacerdócio pleno. Posteriormente, apresentaremos alguns aspectos dos

documentos do magistério que rezam sobre a plenitude do sacerdócio e, por fim,

delinearemos a figura do bispo como administrador da graça do supremo sacerdócio e

ministro ordinário do sacramento da Ordem.

Através desses três pontos buscaremos, de maneira breve, expor as idéias e

respostas do magistério católico sobre a pergunta anteriormente exposta.

1 - DO SACERDÓCIO MINISTERIAL

1.1 Antigo Testamento: prefiguração do Supremo Sacerdócio de Cristo no

sacerdócio Levítico e no sacerdócio de Melquisedec

Segundo Ex 19,6 e Is 61,6 o povo de Israel foi eleito para ser um “reino de

sacerdotes e uma nação santa”. Esta eleição é marcada com a Aliança entre Deus e o

povo, que resulta em uma comunhão com Deus. Dentre este povo Eleito existiam,

como sabemos, doze tribos. A Tribo dos Levitas foi a escolhida por Deus para exercer

o serviço litúrgico, fato este que, segundo a Oração Consecratória do Rito de

ordenação dos Diáconos, é tido pela Igreja como um sinal prefigurativo do ministério

diaconal.

Em Gn 14,18 “Melquisedec, Rei de Salém, trouxe pão e vinho, ele era

sacerdote do Altíssimo”. Os sinais prefigurativos do perfeito sacerdócio, ou seja, do

Sacerdócio de Cristo, são encontrados a partir da convocação de alguns homens a

exercitarem de um modo especial o sacerdócio. Na opinião de Haffner239, “o ofício

sacerdotal compreendia a oferta dos sacrifícios e o governo do povo de Deus. Os

sumos sacerdotes da antiga aliança prefiguram os bispos da nova Lei, como vem

significativamente expresso na oração consecratória da ordenação episcopal”.

Observamos na Carta aos Hebreus 7,11-14 que:

Se a perfeição fora atingida pelo sacerdócio levítico – pois é nele que se

apóia a Lei dada ao Povo – que necessidade haveria de outro sacerdote,

segundo a ordem de Melquisedec, e não “segundo a ordem de Aarão”?

Mudado o sacerdócio, necessariamente muda também a Lei. Ora, aquele

a quem o texto se refere pertencia a outra tribo, da qual membro algum

se ocupou com o serviço do altar. É bem conhecido, de fato, que Nosso

239 Cf. HAFFNER, P. El Misterio Sacramental. 2005, p. 216-217.

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Senhor surgiu de Judá, tribo a respeito da qual Moisés nada diz quando

se trata dos sacerdotes.

Diante dos aspectos apresentados, compreendemos que no Antigo

Testamento as glórias do sacerdócio de Cristo foram, entre tantos outros sinais,

prefiguradas com um penhor especial nas ofertas de Melquisedec, particularmente

pelo ato da apresentação das espécies do pão e vinho, os quais, na Nova Aliança, são

matérias principais para a celebração Eucarística. Consequentemente, encontramos a

figura do bispo (então prefigurada em Melquisedec) como ministro do sacramento da

Eucaristia, função derivante do seu munus sanctificandi.

1.2 Novo Testamento: escolha dos 12 e instituição do sacerdócio na última ceia

Em Marcos 3,14 há a seguinte afirmação: “constituiu os doze para andarem

com Ele”. Jesus chama os doze a compartilhar a sua própria vida que é, antes de tudo,

comunhão de sentimentos e desejos e a participação na própria missão. Não se pode

reduzir as funções do bispo a uma tarefa meramente organizacional. Precisamente

para evitar este risco, tanto nos documentos preparatórios do Sínodo de 2001, quanto

nas intervenções nas assembleias dos padres sinodais, foram tratados diversos

aspectos sobre a realidade do episcopado como plenitude do sacramento da Ordem

nos seus fundamentos, especialmente os teológicos e cristológicos.

É relevante mencionar o feito de que Jesus, ao convocar os doze, conferiu-

lhes tanto a plenitude do sacramento da Ordem como os poderes espirituais anexos,

porém nos deteremos apenas a explicar a concepção da potestade de conferir a outros

discípulos o poder da Ordem. Na ótica de Galot240:

Se pode perceber que os Apóstolos haviam consciência de poder, eles

mesmos, comunicaram a outros a missão que era a eles confiada. O

interesse no episódio da instituição dos “sete” mencionado em At 6,1-6,

é precisamente o fator para demonstrar como, desde o início, os

Apóstolos transmitiram aos outros uma parte do seu poder, com o rito da

imposição das mãos.

Seguindo esta mesma ótica, Haffner241 afirma:

Durante o seu ministério na terra, Jesus Cristo escolheu os doze

apóstolos, que estavam prefigurados nas doze tribos do povo da Antiga

240 Cf. GALOT J. Sacerdozio Ministeriale, 1990, p. 46. 241 Cf. HAFFNER. El Misterio Sacramental, 2005, p. 222.

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Aliança (Mc 3,13-19, Lc 6,12-16). Cristo confiou-lhes a sua mesma

missão e, de modo que o ministério apostólico fosse continuado

permanentemente na Igreja (Mt 10,1-16). Após a ressurreição, Cristo

instruiu os apóstolos para pregarem a Boa Nova da salvação a todo o

mundo (Mt 28,16-20; Mc 16, 14-18). [...] Tudo faz indicar que os

Apóstolos receberam a consagração como Sumos Sacerdotes da Nova

Aliança, por Cristo, durante a última ceia. Na sua oração sacerdotal,

ordenou seus Apóstolos com estas palavras: «Santifica-os na verdade;

tua palavra é verdade. Como tu me enviaste ao mundo, também eu vos

enviei ao mundo. E, por eles, a mim mesmo me santifico para que sejam

santificados na verdade. Não rogo somente por eles, mas pelos que, por

meio de sua palavra, crerão em mim» (Jo 17, 17-20).

Como podemos perceber, na tradição da Igreja, o sacerdócio está

constantemente compreendido como sacerdócio de Cristo comunicado aos Apóstolos

e, a partir destes, transmitido aos sacerdotes. Segundo a fé católica, o sacerdócio dos

ministros é uma especial participação no sacerdócio de Cristo, distinta por essência e

não apenas por graus de participação a tal sacerdócio que é comum a todos os

batizados. Nós, porém, nos deteremos ao ponto da origem do sacerdócio ministerial,

em especial da plenitude do sacerdócio originário diretamente do sacerdócio de Cristo,

já que, antes de tudo, o ministério é considerado como um poder que se exercita em

nome de Cristo e tem sua origem na transmissão desta potestade aos Apóstolos.

1.3 Os três graus do Sacerdócio Ministerial

A Igreja Católica Romana possui, no âmbito ministerial eclesiástico, três

ordens que são conhecidas como episcopal, presbiteral e diaconal. É reconhecido pelo

magistério e na prática constante da Igreja o fato de que dois destes graus, o

episcopado e o presbiterato, participam diretamente do supremo sacerdócio de Cristo;

estes são designados na prática atual pelo termo “sacerdos” e constituídos pelo ato

sacramental da Ordenação. A ordem dos diáconos está inserida no âmbito do serviço

eclesial e também é adjudicada pelo sacramento da Ordem.

1.3.1 O Grau do Episcopado

Entre aqueles vários ministérios, que desde os primeiros tempos são

exercidos na Igreja, conforme atesta a Tradição, o lugar principal é

ocupado pelo múnus daqueles que, constituídos no episcopado,

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conservam a semente apostólica por uma sucessão que vem ininterrupta

desde o começo242.

A doutrina do Concílio Vaticano II diz que no ato da ordenação episcopal,

para desempenhar sua missão, “os Apóstolos foram enriquecidos por Cristo com

especial efusão do Espírito Santo, que desceu sobre eles. E eles mesmos transmitiram

a seus colaboradores, mediante a imposição das mãos, este dom espiritual que chegou

até nós pela consagração episcopal”243. E o Catecismo da Igreja Católica nos leva a

conclusão da definição de Episcopado ao afirmar que: “Tudo o que acabamos de dizer

explica por que a Eucaristia celebrada pelo Bispo tem um significado todo especial

como expressão da Igreja reunida em torno do altar sob a presidência daquele que

representa visivelmente Cristo, Bom Pastor e Cabeça de sua Igreja”244.

1.3.2 O Grau do Presbiterato

O ofício dos presbíteros, por estar ligado à ordem episcopal, participa da

autoridade com que o próprio Cristo constrói, santifica e rege seu corpo.

Por isso, o sacerdócio dos presbíteros, supondo os sacramentos da

iniciação cristã, é conferido por meio daquele sacramento peculiar

mediante o qual os presbíteros, pela unção do Espírito Santo, são

assinalados com um caráter especial e assim configurados com Cristo

sacerdote, de forma a poderem agir em nome de Cristo cabeça em

pessoa245.

A ordem dos Presbíteros não possui a plenitude, ou seja, o ápice do

pontificado e, para exercitar o seu poder, dependem dos bispos, contudo estão unidos

a eles na dignidade sacerdotal. Na Constituição Dogmática Lumen gentium246, reza que

os presbíteros: “são consagrados para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e

celebrar o culto divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento”. Quanto às

funções que competem ao presbítero, encontramos no Catecismo da Igreja Católica,

conforme parágrafo 1567, os seguintes termos:

Solícitos cooperadores da ordem episcopal, seu auxílio e instrumento,

chamados para servir ao povo de Deus, os sacerdotes formam com seu

Bispo um único presbitério, empenhados, porém, em diversos ofícios.

Em cada comunidade local de fiéis, torna presente de certo modo o

242 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 20. 243Cf. Idem, 21. 244 Cf. Catecismo da Igreja Católica, §1561. 245 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Presbyterorum ordinis, 2. 246 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 28.

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Bispo, ao qual se associam com coração confiante e generoso. Assumem

como próprias, as funções e as solicitudes do Bispo e as exercem em seu

empenho cotidiano pelos fiéis. Os presbíteros só podem exercer seu

ministério na dependência do Bispo e em comunhão com ele. A

promessa de obediência que fazem ao Bispo no momento da ordenação

e o ósculo da paz do Bispo no fim da liturgia da ordenação significam

que o Bispo os considera como seus colaboradores, filhos, irmãos e

amigos, e em troca eles lhe devem amor e obediência.

1.3.3 O Grau do Diaconato

Em um grau inferior na hierarquia do sacramento da Ordem, encontram-se os

diáconos os quais recebem a imposição das mãos para o serviço à Igreja, não para as

funções sacerdotais. Segundo Santo Hipólito247, “Para a ordenação ao diaconato, só o

Bispo impõe as mãos, significando assim que o diácono está especialmente ligado ao

Bispo nas tarefas de sua diaconia”.

Conforme atesta o Catecismo da Igreja,

Cabe aos diáconos, entre outros serviços, assistir o Bispo e os

padres na celebração dos divinos mistérios, sobretudo a

Eucaristia, distribuir a Comunhão, assistir ao Matrimônio e

abençoá-lo, proclamar o Evangelho e pregar, presidir os funerais

e consagrar-se aos diversos serviços da caridade248.

1.3.4 Em busca de uma melhor compreensão do que significa a “plenitude do

sacerdócio” do Episcopado

Ao iniciar estas breves indagações, em especial sobre a plenitude do

sacerdócio, partiremos explorando o pensamento de alguns Padres da Igreja e,

posteriormente, analisaremos, sempre de maneira breve, alguns pensamentos sobre

esta temática surgidos na Idade Média, na Modernidade e, por fim, na

contemporaneidade. Devemos, antes de tudo, ocupar-nos inicialmente do episcopado e

presbiterato em um modo conjunto, já que na visão dos primeiros autores eclesiásticos

por ambos coincidirem com a ideia de “sacerdócio”, a maioria dos documentos da

época não fazem um discernimento entre eles. São Clemente Romano, em sua

primeira carta aos Romanos, invoca a ordenação (instituição) de “epíscopos” (e

247 Cf. TREVIJANO, R. Patrologia: serie de Manuales de Teologia, 2004, p. 151. 248 Cf. Catecismo da Igreja Católica, §1570.

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diáconos) por efeito da sucessão apostólica e se refere a Jesus Cristo como origem

destes Ofícios249.

Por razão da origem deste ministério, que não vem do povo250, o ministério

apostólico compreendia uma investidura que consistia na imposição das mãos e uma

oração, como no caso de Paulo e Barnabé (cf. At 13,3). Aqueles que eram eleitos

apóstolos não faziam parte do grupo dos doze, mas partilhavam com estes um poder

episcopal e também pelo privilégio de terem visto o Cristo Ressuscitado, eram

participantes das primeiras experiências da primitiva Igreja. Como deixamos perceber

através da visão de Galot, no ponto em que tratamos sobre a escolha dos 12 e a

instituição do sacerdócio na última ceia, é tido como evidente o fato que os Apóstolos

partilhavam com os demais o sacramento da Ordem que estes possuíam na sua

plenitude. Haffner possui semelhante visão e acrescenta que:

O que não é muito claro é o modo concreto como estes transmitiram seu

poder de ordem na Igreja primitiva. Nem todos os estudiosos estão de

acordo a respeito da designação dos mesmos com o título de epíscopos,

durante a era apostólica, porém estavam verdadeiramente dotados da

plenitude do sacerdócio. Se crê comumente que ao menos Tito e

Timóteo, que São Paulo destinou às Igrejas de Éfeso e Creta, gozaram

das ordens episcopais251.

Um dos primeiros padres a desenvolver a temática do sacramento da Ordem

em uma especial visão sobre o a figura do Bispo monárquico, fonte de unidade e

responsável pela Igreja Local, ou seja, da Plenitude do Sacerdócio, aparece fortemente

delineada nas cartas de Santo Inácio de Antioquia, por volta do ano 100 d.C., quando

escreve a obra Triplo sacramento da ordem. Nesta encontramos nitidamente os três

graus hierárquicos em pleno sentido e que posteriormente foram reconhecidos como

tais pela história. Ele afirma: “Todos devem respeitar os diáconos como respeitam a

Jesus Cristo, respeitar o bispo como imagem do Pai e aos presbíteros como o senado

de Deus e como colégio apostólico. Sem estes não se tem Igreja”252. A presença de um

“Sucessor dos Apóstolos” que governa a comunidade cristã local e também o seu

presbitério, isto é, a figura do chamado “bispo monárquico” é como um centro e

garantia da unidade eclesial em torno à reta doutrina, à conservação do depósito

(depositum fidei) e à conservação da paz e concórdia fraterna. Esta figura do bispo não

é outra do que a que em nossos dias se foi construindo nas Igrejas, em especial nas

249 Cf. TREVIJANO, R. Patrología: serie de Manuales de Teologia, 2004, p. 16. 250 Porém, na época da Igreja nascente o povo elegia os ministros. 251 Cf. HAFFNER, El Misterio Sacramental, 2005, p. 226. 252 Cf. TREVIJANO, R. Patrología: Serie de Manuales de Teología, 2004, p. 39.

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missões, passando de uma visão simples do ato de governar presbíteros, até chegar ao

fator que define atualmente o ministério episcopal: a configuração plena no sacerdócio

de Cristo e a potestade própria deste fato.

Na Idade Média e durante muito tempo, como apresentamos na introdução

deste trabalho, foi discutida a sacramentalidade da consagração episcopal, porém

muitos teólogos da época entendiam que as ordens (sejam menores ou maiores253)

imprimiam caráter. O Sacerdócio era tido como uma ordem hierarquicamente

superior, e foi apresentado por Hugo de São Vitor e Pedro Lombardi como única,

dividida em duas dignidades, a presbiteral e a episcopal. Ambos não consideravam o

episcopado como ordem separada do presbiterato porque esta não conferia nenhum

poder superior no que resguarda ao sacramento da Eucaristia. Porém, São Tomás de

Aquino254 apresentou o episcopado como, em um certo sentido, fosse uma ordem

superior, pois há no bispo um poder maior no âmbito do Corpo Místico de Cristo, mas

não no que diz respeito ao Corpo Eucarístico, como pensavam Hugo e Pedro

Lombardi. Foi, então, o Beato Duns Escoto255 a ensinar claramente que o episcopado

era uma ordem distinta, já que o bispo conferia todas as ordens e, sendo assim, possuía

um valor supremo.

No século XVI, os reformadores insistiram sobre uma interpretação e

apresentação de um Cristo apenas mediador, por isso rejeitaram a existência de um

sacerdócio ministerial eclesiástico, acatando apenas o sacerdócio universal dos fiéis.

Em um contexto mais recente, teólogos do século XIX de tendências

modernistas, conduziram suas afirmações a uma tentativa de fragilizar a doutrina

sobre a instituição divina do sacramento da Ordem, propondo que os graus do

episcopado e do presbiterato fossem desenvolvidos de acordo com fatores puramente

humanos e sociais, negando o fato de que o bispo fosse o perpetuador do ministério e

missão dos Apóstolos. Tais erros foram condenados em 1907, pelo Papa Pio X. O

Concílio Ecumênico Vaticano II reabriu uma antiga discussão sobre as relações entre

o sacerdócio ministerial hierárquico e o sacerdócio dos fiéis256. Vale ressaltar que estes

dois se diferem por essência e não apenas em grau e são, todavia, um ordenado para

servir ao outro. Ambos, no entanto, em seu próprio modo, “participam ao único

sacerdócio de Cristo”257. A Igreja reafirma também, através das definições conciliares,

253 Vale lembrar que nesta época as ordens menores eram várias: acólito, exorcista, leitor e

porteiro. 254 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Perfección de la vida espiritual, 1971, p. 167. 255 Cf. NICOLAU, M. Ministros de Cristo: Sacerdócio y sacramento del Orden, 1971, p.169. 256 Durante nossas apresentações anteriores não nos detivemos sobre este aspecto do sacerdócio

para evitar qualquer permutação do tema central. 257 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 10.

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que o ministério sacerdotal é originado na sucessão apostólica, reiterando que apenas

o sacerdote pode consagrar a eucaristia e este sacerdócio é conferido com a sagrada

ordenação258.

2 - MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO SOBRE O SACERDÓCIO PLENO

2.1 Constituição Apostólica “Sacramentum ordinis” de Pio XII

Pio XII reforçou, através do documento Sacramentum ordinis, seus

ensinamentos sobre o sacramento da Ordem e um desenvolvimento teológico do tema.

Nesse documento, o Santo Padre apresenta o sacerdócio como uma “ordem instituída

pelo Cristo Senhor, pelo qual se transmite o poder espiritual e se confere a graça para

exercer devidamente os múnus eclesiásticos”259. Pio XII faz ainda nesse documento

algumas afirmações, estabelecendo a matéria e forma do sacramento da Ordem,

sempre apresentando o bispo como ministro exclusivo do sacramento e a imposição

das mãos como matéria.

2.2 Sacramento da Ordem na visão do Concílio de Trento

O Concílio de Trento ensinou que os bispos são superiores aos sacerdotes,

porém não afrontou o problema se a natureza desta superioridade fosse apenas jurídica

ou também sacramental. Esse fator suscitou a abertura de questionamentos sobre o

tema, fazendo com que a maioria dos teólogos pós-tridentinos afirmassem a

sacramentalidade do episcopado, ou seja, a superioridade sacramental do bispo. A

vigésima terceira sessão do Concílio, iniciada em 15 de julho de 1563, estabelece

doutrinas e cânones sobre o sacramento da Ordem, particularmente para condenar os

erros das proposições heréticas da reforma protestante. Quanto ao Ministro do

sacramento da Ordem, os padres conciliares não fazem definições precisas, porém o

cânone sétimo260, afirma:

Se alguém disser que os bispos não são superiores aos presbíteros, ou

que não têm poder de confirmar e ordenar, ou que o que eles têm lhes é

comum com os presbíteros, ou que as ordens conferidas por eles sem o

consenso ou chamado do povo ou do poder secular são nulas, ou que os

que nem são devidamente ordenados pelo poder eclesiástico e canônico

258 Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração Mysterium Ecclesiae, 1973, 6. 259 Cf.PIO XII, “Sacramentum ordinis”, DS 3857. 260 Cf. CONCÍLIO DE TRENTO, Doutrina e cânones sobre o sacramento da Ordem, DS 1777.

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nem mandatos, mas vêm de outra parte, são legítimos ministros da

palavra e dos sacramentos: seja anátema.

2.3 Sacramento da Ordem na visão do Concílio Vaticano II

Convocado por João XXIII, não para condenar heresias, e sim, para fazer

uma atualização da doutrina católica, o Concílio Vaticano II levou a término entre

tantos amadurecimentos, o especificar que o episcopado é, de fato, um grau superior

sacramentalmente mais alto que o presbiterato.

Nossa busca sobre a definição do porquê o bispo é o ministro do sacramento

da Ordem, encontramos dois documentos que guiam o nosso estudo: o Decreto

Christus Dominis e a Constituição Lumen gentium, porém é no número 26 da Lumen

gentium, que encontramos um verdadeiro compendium de todas as definições que já

apresentamos. A constituição dogmática, riquíssima em detalhes, apresenta a

magnitude da colegialidade episcopal no ato de governar o rebanho de Cristo. Quanto

por que cabe ao bispo a função de ordenar outros ministros, nos são circunscritas pelo

sacro Concílio as seguintes afirmações:

Os bispos, orando e trabalhando pelo povo, são, de modo multiforme e

abundante, dispensadores da plenitude da santidade de Cristo. Pelo

ministério da palavra, comunicam a força de Deus para a salvação dos

que crêem (Cf. Rm 1,16) e, por meio dos sacramentos, cuja

administração regular e frutuosa ordenam com a sua autoridade,

santificam os fiéis. São eles que regulam a administração do batismo,

pelo qual é concedida a participação no sacerdócio régio de Cristo. São

eles os ministros originários da confirmação, dispensadores das sagradas

ordens e reguladores da disciplina penitencial, e com solicitude exortam

e instruem o seu povo para que participe com fé e reverência na Liturgia,

principalmente no santo sacrifício da Missa. Finalmente, devem ajudar

aqueles aos quais presidem com o exemplo do seu próprio proceder,

purificando os seus costumes de todo o mal e mudando-os para o bem,

quanto lhes for possível, com o auxílio do Senhor, para que, com o povo

que lhe é confiado, alcancem a vida eterna.

2.4 O que diz o Catecismo da Igreja Católica

Oferece-nos também o Catecismo uma ampla e preciosa explicação sobre o

que na realidade constitui a chave principal para a resposta a nossas perguntas iniciais

apresentadas na introdução deste trabalho: o sacerdócio pleno do Bispo, por ocasião

da sucessão apostólica e consequente configuração ao supremo sacerdócio de Cristo.

Optamos por apresentar na íntegra os artigos do Catecismo, por possuírem uma

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rica importância e ser uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica,

testemunhados ou iluminados pela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo

Magistério da Igreja. Limitamo-nos a fazer breves comentários já que diante da

complexidade doutrinal, estes não são necessários. Na sequência, expomos os artigos

1557-1560 do Catecismo, que dizem respeito à temática que abordamos:

O Concílio Vaticano II “ensina, pois, que pela sagração episcopal se

confere a plenitude do sacramento da Ordem, que, tanto pelo costume

litúrgico da Igreja como pela voz dos Santos Padres, é chamada o sumo

sacerdócio, a realidade total (“summa”) do ministério sagrado”(LG

21). A sagração episcopal, juntamente com o múnus de santificar,

confere também os de ensinar e de reger [...] De fato, mediante a

imposição das mãos e as palavras da sagração, é concedida a graça do

Espírito Santo e impresso o caráter sagrado, de tal modo que os Bispos,

de maneira eminente e visível, fazem as vezes do próprio Cristo, Mestre,

Pastor e Pontífice, e agem em seu nome (“in eius persona agant”). “Os

Bispos, portanto, pelo Espírito Santo que lhes foi dado, foram

constituídos como verdadeiros e autênticos mestres da fé, pontífices e

pastores”(CD 2). “Alguém é constituído membro do corpo episcopal

pela sagração sacramental e pela hierárquica comunhão com o chefe e

os membros do Colégio” (LG 22). O caráter e a natureza colegial da

ordem episcopal se manifestam, entre outras, na antiga prática da Igreja,

que requer para a consagração de um novo Bispo a participação de

vários Bispos. Para a legítima ordenação de um Bispo, é hoje exigida

uma especial intervenção do Bispo de Roma, em razão de sua qualidade

de vínculo visível supremo da comunhão das Igrejas particulares na

única Igreja e garantia de sua liberdade. Cada Bispo, como vigário de

Cristo, tem o encargo pastoral da Igreja particular que lhe foi confiada,

mas ao mesmo tempo ele, colegialmente, com todos os seus irmãos no

episcopado, deve ter solicitude por todas as Igrejas: “Se cada Bispo só é

pastor propriamente dito da porção do rebanho que lhe foi confiada,

sua qualidade de legítimo sucessor dos apóstolos por instituição divina

o torna solidariamente responsável pela missão apostólica da Igreja”

(Pio XII, Fidei donum)261.

2.5 Exortação Pós-sinodal “Pastores gregis” de João Paulo II

Introduz o capítulo quarto que trata sobre o munus sanctificandi do ministério

episcopal a exortativa frase de São Paulo: “Santificados em Jesus Cristo, chamados à

santidade” (1Cor 1,2). O documento, elaborado após o sínodo de 2001, convoca aos

Bispos a viverem coerentemente o seu ministério em especial pelo fato de que

261 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1557-1560.

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no exercício do ministério de guia da comunidade cristã, o Bispo,

inspirado pela imitação da caridade do Bom Pastor, é chamado a

santificar-se e a santificar. A sua espiritualidade de receber orientações e

estímulos dos sacramentos da iniciação cristã, e, em especial, da própria

Ordenação episcopal que: “o empenha a viver, na fé, na esperança e na

caridade, o seu ministério de evangelizador, liturgista e guia da

comunidade262.

No que diz respeito as nossas perguntas, encontramos neste documento uma

ampla fundamentação do exercício ministerial do Bispo como sucessor dos apóstolos

o que os constitui ministro do sacerdócio pleno do redentor. Nesse sentido,

observamos que o bispo “pelo sacramento da Ordem recebe no seu coração a caridade

pastoral de Cristo. Esta caridade pastoral tem como finalidade criar a comunhão”263.

Enxergamos então um elo de ligação entre os colaboradores (presbíteros) e o bispo, já

que para criar a comunhão com estes, o bispo deve ser a figura paterna e irmã,

acolhendo-os, corrigindo-os e confortando-os, mantendo a cada dia mais frutífero este

approach e, consequentemente, a sucessão apostólica em perfeita ordem e a ação

ministerial da Igreja de Cristo que conduz o rebanho ao pastor supremo que é luz para

os povos. É notável o fato de que “entre os primeiros deveres de cada Bispo

diocesano, está o cuidado espiritual do seu presbitério”264, dever este que se inicia no

gesto do sacerdote, que põe as suas próprias mãos nas mãos do Bispo, no dia da

ordenação presbiteral prometendo-lhe “respeito e obediência”. Percebemos por este, a

bem definida hierarquia e a obediência que deve um colaborador ao sucessor dos

Apóstolos.

3 - O BISPO, MINISTRO ORDINÁRIO DO SACRAMENTO DA ORDEM

3.1 Administradores da graça do Supremo Sacerdócio: um ministério semelhante

ao de Cristo

Como temos visto no desenvolver deste trabalho e nas afirmações tanto da

Sagrada Escritura quanto da patrística, o Sacerdócio de Cristo baseia-se no ministério

da encarnação. Na sua mesma pessoa, Cristo une Deus e o Homem, fato este que é a

essência do ofício sacerdotal. O poder de salvar vem da sua essência divina e a

262 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 32. 263 Cf. JOÃO PAULO II, Motu proprio Apostolos suos (21 de Maio de 1998), 12 in AAS 90 (1998),

p. 649-650. 264 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 32.

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possibilidade de salvar o gênero humano em particular deriva da sua natureza humana.

A ação sacerdotal central de Cristo foi obtida por meio do seu único sacrifício sobre a

cruz, onde Ele “com esta única oferenda, levou à perfeição, e para sempre, os que Ele

santifica” (Hb 10,14). O propósito da ação sacerdotal de Cristo, Sacerdote, Profeta e

Rei, consiste na realização do projeto do Pai para a plenitude dos tempos.

“O ministro desta santificação, que se propaga na vida da Igreja, é o Bispo,

sobretudo por meio da Liturgia sagrada. Desta, em especial da celebração eucarística,

afirma-se que é meta e fonte da vida da Igreja”265. De certo modo, pode-se dizer o

mesmo do ministério litúrgico do Bispo, pois este apresenta-se como o momento

central na sua atividade a favor da santificação do Povo de Deus. O Bispo exerce o

ministério da santificação por meio da celebração da Eucaristia e demais sacramentos.

Naturalmente, dentre todas as cerimônias presididas pelo Bispo, assumem relevo

particular as celebrações em que ressalta a peculiaridade do ministério episcopal como

plenitude do sacerdócio. Trata-se, especialmente, da administração do sacramento da

Confirmação, das Ordens Sacras, da solene celebração da Eucaristia em que o Bispo

está rodeado pelo seu presbitério e demais ministros. Nessas celebrações, o Bispo

apresenta-se à vista de todos como o pai e o pastor dos fiéis, “o ‘grande sacerdote’ do

seu povo (Cf. Hb 10, 21), o orante e o mestre da oração, que intercede pelos seus

irmãos e, junto com o próprio povo, implora e dá graças ao Senhor, pondo em

evidência o primado de Deus e da sua glória”266.

Sobre este assunto, continua a Pastores greges ao número 33:

Como se duma fonte se tratasse, brota a graça divina que permeia toda a

vida dos filhos de Deus ao longo da sua caminhada terrena, orientando-a

para a sua meta e plenitude na pátria beatífica. Por isso, o ministério da

santificação é um momento fundamental na promoção da esperança

cristã. O Bispo não se limita apenas a anunciar, com a pregação da

palavra, as promessas de Deus e a traçar as sendas do futuro, mas anima

o Povo de Deus na sua peregrinação terrena e, através da celebração dos

sacramentos que são o penhor da glória futura, faz-lhe saborear

antecipadamente o seu destino final em comunhão com a Virgem Maria

e os Santos, na certeza inabalável da vitória definitiva de Cristo sobre o

pecado e a morte e da sua vinda gloriosa.

265 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 32. 266 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 33.

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3.2 A Ordenação Episcopal: Plenitude do Sacramento da Ordem

Na ótica de McNamara267: “O rito de ordenação do Bispo põe em evidência a

relação direta que existe entre a missão de Cristo, a missão dos Apóstolos e a dos

bispos seus sucessores, e suas funções de pastor e sumo sacerdote”.

É a continuidade ministerial de Cristo Sumo Sacerdote, que através da

consagração episcopal de um novo bispo, perpetua-se na Igreja, dando a oportunidade

da existência de uma sequência ininterrupta de sucessores dos apóstolos. A imposição

das mãos do consagrante principal e, ao mesmo tempo, a imposição do Livro dos

Evangelhos sobre a cabeça do ordenando, confere a este, a mesma missão apostólica

dada por Cristo a seus Apóstolos.

Pode-se deduzir, segundo o já apresentado e a afirmação da Lumen gentium

21: “o Santo Sínodo ensina, pois, que pela consagração episcopal se confere a

plenitude do sacramento da Ordem, que, tanto pelo costume litúrgico da Igreja como

pela voz dos Santos Padres, é chamada o sumo sacerdócio, o ápice do ministério

sagrado”. Isto mostra a intenção do Concílio de afirmar, com toda a sua autoridade

pastoral, esta verdade de modo infalível, justamente para encerrar o debate no que

concerne ao valor sacramental do episcopado como ordem distinta do presbiterato. E

continua a Lumen gentium 21:

Juntamente com o múnus de santificar, a consagração episcopal confere

ainda os ofícios de ensinar e de governar, que, por sua natureza, não

podem exercer-se senão em comunhão hierárquica com a cabeça e os

membros do colégio. Na verdade, da tradição, qual aparece sobretudo

nos ritos litúrgicos e no uso da Igreja, quer oriental, quer ocidental,

consta claramente que, pela imposição das mãos e pelas palavras

consacratórias, se confere a graça do Espírito Santo e se imprime o

caráter sagrado, de tal modo que os bispos, de maneira eminente e

visível, fazem as vezes do próprio Cristo, Mestre, Pastor e Pontífice, e

agem em seu nome. Compete aos bispos admitir, no corpo episcopal,

novos eleitos, pelo sacramento da ordem.

Para concluir a demonstração das especificidades das funções episcopais, o

Concílio Vaticano II menciona o poder de consagração dos Bispos. Porem, como

vemos, não quis afirmar que apenas os Bispos possuem este poder; limita-se a dizer

que este poder pertence a eles.

267 Cf. MCNAMARA E., Jesucristo vivo y presente en la liturgia–Introdución al estudio de la

liturgia, 2004, p. 298.

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CONCLUSÃO

“Prometes respeito e obediência a mim e aos meus sucessores?”268A

pergunta que o Bispo faz em ambas ordenações é um dos grandes simbolismos da

hierarquia presente no ministério ordenado da Igreja Católica, pois através da

promessa de respeito e obediência, o neo-ordenando, tanto presbítero como diácono,

atrela-se ao Bispo assumindo, através dele, um compromisso firme com a Igreja

diocesana (no caso se for secular) ou com o Superior de congregação (caso seja

religioso).

Os presbíteros são ordenados para cumprir a missão sacerdotal como

colaboradores diretos da ordem do episcopado. Ao impor as mãos, o Bispo torna-o

participante do seu próprio sacerdócio herdado de Cristo através dos apóstolos, aos

quais são sucessores. No ato sacramental da ordenação presbiteral, o neo-presbítero

recebe das mãos do Bispo as espécies para o sacrifício da missa com a seguinte

admoestação: “Recebes a oferenda do povo cristão para apresentá-las ao Pai. Tomas

consciência do que vais fazer e pões em prática o que vais celebrar, configuras a tua

vida com o mistério da cruz do Senhor”269. O bispo transfere, com tais palavras, a sua

própria missão sacerdotal recebida através de sua ordenação episcopal, pela qual se

configurou a “Cristo, mediador único, que constituiu e sustenta indefectivelmente

sobre a terra, como organismo visível, a sua Igreja santa, comunidade de fé”270.

Quanto a Ordenação dos diáconos e o caráter de serviço que ela impõe,

tomando como pauta o Concílio Vaticano II, o Santo Padre João Paulo II desenvolveu

várias catequeses durante o seu pontificado sobre a figura do diácono e o seu

ministério na Igreja. Resumindo as razões em que fundamentos de acordo com as

proposições de teólogos, as decisões conciliares e os ensinamentos de seus

predecessores, o Papa apresenta duas grandes razões. A primeira, propõe a

conveniência de que determinados serviços de caridade, que eram levados a

cumprimento de maneira permanente por leigos desejosos de servir à missão caritativa

da Igreja, se concentraram em uma forma reconhecida por uma consagração

ministerial. A segunda, admite a possibilidade de suprir a escassez de presbíteros e de

aliviá-los de muitas tarefas que não estão ligadas diretamente ao seu ministério

sacerdotal271. Ao expormos estas razões que apresenta João Paulo II, vemos como ele

dar um passo adiante e analisa o modo como o Concílio Vaticano II compreendeu o

diaconato, e ao perceber o modo como ele compreende a Ordenação dos diáconos,

268 Cf. Pontifical Romano, Rito da Ordenação do Presbítero. 269 Cf. Pontifical Romano, Rito da Ordenação do Presbítero. 270Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 10. 271 Cf. JOÃO PAULO II, Catequese de 6 de outubro de 1993.

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compreendemos também nós que o diácono não foi ordenado para o sacerdócio, mas

sim para o ministério do serviço ao Bispo, sucessor dos Apóstolos, fazendo-nos

deduzir cada vez mais a prioridade que possui o Bispo como ministro exclusivo do

sacramento da Ordem, e a impossibilidade dos graus inferiores ao episcopado de

conferirem as ordens, pois, como vemos, estas não possuem, de fato, a plenitude do

ministério sacerdotal de Cristo.

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PARA UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICO-TEOLÓGICA DA

MORTE

Antonio Edson Bantin Oliveira 272

RESUMO

O intento de uma reflexão sobre a morte emerge da incidência de tal fenômeno sobre as

decisões morais individuais e coletivas, bem como da sua presença como realidade

interpeladora da consciência individual e da vida social hodierna. Nosso artigo se debruça, de

forma sintética, sobre três aspectos principais do fenômeno: o seu caráter de realidade

antropológica fundamental, os desafios emergentes de uma má compreensão ou de uma

imaturidade humana em relação ao fenômeno da morte e, por fim, a sua dimensão teológica,

acompanhada de elementos de indicação moral acerca do comportamento a ser cultivado, no

cuidado para com pessoas em situação de morte iminente.

Palavras-chave: Morte. Fé. Antropologia. Teologia.

ABSTRACT

The intent of a reflection about the death emerges in the incidence of this phenomenon on the

individual and collective moral decisions, as well as of its presence inside of the individual

conscience of the today's social life. Our article focuses, a synthetic way, on three main aspects

of the phenomenon: its character of fundamental anthropological reality, the emerging

challenges of a poor grasp or of a human immaturity in relation to the phenomenon of death and

finally his theological dimension, accompanied by moral indication elements about the behavior

to be cultivated in care toward people in imminent death situation.

Keywords: Death. Faith. Anthropology. Theology.

272 Doutor em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana de Teologia Moral, da Pontifícia

Universidade Lateranense (Roma); Reitor e professor do Seminário Diocesano São José (Crato-

CE); Professor de Teologia Moral da Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.

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INTRODUÇÃO

É no mínimo insólito que alguém dedique tempo e energia para refletir sobre

algo, cuja realidade a mente procura armazenar em um ambiente o mais abscôndito

possível. Numa sociedade de luz, de cores, de muitos e intensos rumores, onde o mito

do sucesso, do bem-estar e a filosofia da imagem se tornaram hegemônicos, não existe

espaço para a reflexão sobre a morte. Esta é apenas um fato inevitável sim, mas

desesperadamente inaceitável. Mesmo quando é exigida como um direito – como é o

caso das lutas pelo direito à eutanásia - se observamos atentamente, o é por temor da

mesma, de sua imprevisibilidade. Teme-se o descontrole, a impotência diante da

morte e se pede não a morte, mas a capacidade de decidir sobre ela e libertar-se da

angústia de sua certeza e da imprecisa ciência de sua chegada.

A nossa reflexão pretende concentrar-se, sobretudo, sobre os aspectos que

tocam a bioética e o comportamento cristão diante da morte; seja em relação a quem

vive a sua iminência, seja no que concerne ao acompanhamento dos doentes terminais.

Compreendemos o fenômeno da morte como uma realidade profundamente

complexa273 e que requer, portanto, um tratamento igualmente complexo,

compreendendo uma visão transdisciplinar dos diversos aspectos que a envolvem,

desde aqueles antropológicos e existenciais àqueles práticos e relacionais.

Nessa perspectiva, o nosso contributo sobre o fenômeno da morte pretende

inserir-se na teia de outras tantas reflexões, teológicas ou não, como uma via de acesso

à mesma realidade existencial do ser humano, consciente de seu caráter complexo e

das múltiplas abordagens, às quais pode ser submetida esta questão, que toca de modo

radical os diversos âmbitos da existência humana.

1 - A MORTE COMO FENÔMENO ANTROPOLÓGICO FUNDAMENTAL

Quando, nos anos posteriores à Segunda Grande Guerra, o francês Edgar

Morin desenvolvia sua pesquisa sobre o fenômeno da morte, o mesmo percebeu que

este toca profundamente as nossas raízes identitária, talvez, tanto quanto tenha

marcado a descoberta do utensílio o processo de hominização. De fato, percebe

Morin, as cerimônias fúnebres e o culto aos mortos estão presentes nas sociedades

mais diversas e marcam as civilizações mais antigas, afirmando-se como realidade

humana, talvez até antes mesmo da descoberta do utensílio.

273 O termo complexidade não deve aqui ser confundido com o termo complicabilidade, trata-se,

sobretudo de uma realidade cuja compreensão só é possível a partir da consideração de

múltiplas realidades, excluindo quaisquer tentativas de reducionismos ou de unilateralismos.

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As ciências humanas, contudo, quase sempre transcuram o fenômeno da

morte. Ao longo da história da antropologia, por exemplo, recorreu-se, para a

caracterização da identidade humana, ao utensílio (homo faber), ao desenvolvimento

do cérebro (homo sapiens) e à aquisição e complexificação da linguagem (homo

loquens). Porém, adverte Morin, somente a espécie humana percebe a presença da

morte no curso de sua vida274. Os sepultamentos, o costume de embalsamar os corpos

dos mortos, os rituais fúnebres, os mitos e as crenças que se construíram em torno da

morte são uma prova de que, para o ser humano, o fenômeno da morte é muito mais

que o desfalecer das forças físicas ou o advento da extinção da vida física.

Desse modo, também a morte distancia os humanos dos animais porque é

vivida com um significado diverso e este é determinante para a sua autocompreensão

como humanos. É esta capacidade de dar sentido a uma realidade aparentemente

nascida no não senso, que conduz o homem a encontrar em si mesmo e na sua sede de

vida a possibilidade de inserção do fenômeno da morte em sua história. Assim, o

morrer e o viver são reconciliados no mesmo ser a partir de uma submissão da morte à

vida ou pela compreensão da morte como porta para a supremacia da vida.

Nos confins da terra de ninguém, onde se cumpriu a passagem do estado

de ‘natureza’ ao estado de total hominização, o passaporte capaz de

testemunhar o advento de uma humanidade plenamente entendida – um

documento científico, racional inexpugnável – é o utensílio: o

‘verdadeiro’ homem é o homo faber. As determinações e as idades da

humanidade são aquelas dos utensílios que esta construiu. Existe, porém,

um outro passaporte, desta vez sentimental, que não foi submetido a

nenhuma metodologia, a nenhuma classificação, a nenhuma explicação;

um passaporte, por assim dizer, sem visto, que contém, todavia, uma

comovente revelação: se trata da sepultura, testemunho da preocupação

para com os mortos e, portanto, para com a morte. [...]. Os homens de

Neanderthal não eram os selvagens que se pensava, eles davam

sepultura aos seus mortos275.

Seguindo o curso natural de sua existência, o ser humano se defronta com a

morte, primeiramente, com a partida das pessoas com as quais possui uma ligação

afetiva: seus avós, seus tios, seus pais, seus irmãos, etc. Em uma experiência

originária, sua percepção da morte se dá pela compreensão da ausência do objeto de

afeto, admiração ou mesmo da fonte de proteção e de vida. Torna-se insuportável a

perda desta força originária, a tal ponto que em algumas culturas desenvolve-se a

experiência do canibalismo como forma de retenção da vida do outro naqueles que

274 MORIN Edgar, L’Uomo e la morte, Meltemi: Roma, 2002, p. 21. 275 Idem, p. 33.

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permanecem; seja a vida dos membros das tribos como preservação da sabedoria

necessária ao clã, seja a vida dos inimigos – sobretudo dos guerreiros mais fortes –

como forma de conquista de sua força e sua bravura.

Assim, o processo de hominização se dá também pelo desenvolvimento da

capacidade de lidar com a morte. A sepultura denuncia uma compreensão espiritual da

morte. Uma visão que se estende para além da existência física, denunciando uma

esperança seja numa vida para além da existência puramente natural (sobrenatural),

bem como na possibilidade de retorno daqueles que morreram.

Do mesmo modo, os ritos fúnebres e o luto apresentam uma atitude reverente

diante da morte, seja por medo, seja por reconhecimento da grandeza deste mistério

humano. Assim, por exemplo, os sete dias de luto profundo compreende ao tempo

necessário para que o cadáver inicie o processo de decomposição. Ainda em nossos

dias, têm-se o hábito de visitar o túmulo no sétimo dia, como última despedida da

existência material daqueles que morreram. Também o luto denota o pudor diante da

morte: ao mesmo tempo em que indica o sofrimento dos parentes, as vestes escuras os

separam como se os mesmos ainda estivessem “contaminados” pela morte, devendo

conservar uma espécie de quarentena até que seja como que exorcizado o contato que

os mesmos tiveram com o morto e a dor que este contato provocou por ocasião da

morte.

Podemos, portanto, considerar que o fenômeno humano da morte é um dado

antropológico decisivo na compreensão da humanização e esta última se torna sempre

mais evidente à medida em que o ser humano é capaz de lidar de modo maduro e

respeitoso com o seu caráter de ser morrente. Ou seja, tão real quanto à identidade de

seres vivos é a condição humana de seres destinados à morte, e a capacidade de inserir

a realidade mortal no conjunto de sua história humana torna mais pleno e evidente o

seu caminho em direção à humanização.

2 - A MORTE COMO DESAFIO À EXPERIÊNCIA DE FÉ NO DEUS VIVO276

A morte se apresenta à nossa práxis de crentes como um desafio crucial. Ela

põe à prova as nossas capacidades humanas e desafia a nossa fé n’Aquele que se

apresenta para nós como o Deus da Vida, razão de toda esperança em uma existência

eterna. A nossa consciência se debate diante de sua adesão ao conteúdo da revelação e

276 Aqui não se pretende, propriamente, desenvolver uma teologia da morte, mas o nosso intento

consiste, sobretudo, em refletir sobre a forma ideal de lidar com o fenômeno da morte a partir

da condição de crentes no Deus Vivo de Jesus Cristo. A “experiência de fé” deve ser entendida

mais como práxis, ou seja, como atitude concreta de homens e mulheres de fé e não como o

conteúdo simplesmente intelectual/doutrinal da fé.

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ao indicativo moral do cuidado para com o ser humano morrente, conservando a sua

dignidade e a repulsa diante da realidade da morte que nos revela a nossa própria

impotência, anulando em nós qualquer pretensão de controle e de domínio absoluto

sobre nós mesmo.

Quando as forças escorrem pelas fendas de nosso corpo, a existência se

aproxima tristemente do declínio e a sombra da morte se estende

inexoravelmente sobre as últimas chamas de uma vida que se apaga, o

nosso comportamento em relação à pessoa é submetido à dura prova.

Enquanto o não senso parece tomar posse da nossa consciência acerca

do valor da vida, a nossa mente se debate entre o respeito quase

fetichista e vitalício da vida biológica então tênue e decadente e a

tentação de abandonar ou, até mesmo, suprimir aquele que se encontra

marcado por um destino fatal277.

O indivíduo se põe diante de uma crise de consciência: ou ele acolhe a morte

e se entende a partir do horizonte desta realidade conatural à sua existência ou a

repulsa isolando-se preventivamente da dor provocada pela ciência de sua realidade

finita. Resta, porém, o fato de que entre obstinação irracional e abandono cruel dos

nossos semelhantes em sua realidade final, emerge a nossa responsabilidade para com

a vida e o respeito para com o ser humano, e estas devem auxiliar-nos a encontrar o

modo correto de acompanhar com cuidado e reverência a pessoa no último evento de

sua aventura terrena.

A sociedade que se descortina nos últimos séculos se revela portadora de uma

cultura tragicamente tanatocratica, uma cultura de morte que justifica e legitima a

opressão dos mais fracos pelos mais fortes, a marginalização dos últimos da

sociedade, o aborto, a eutanásia, a desigualdade radical e escandalosa no tratamento

da pessoa morrente; que se empenha na legitimação do uso de drogas, da prostituição,

do amor irresponsável e da efemeridade da existência e das escolhas que conferem

sentido à vida humana. Tais realidades se revelam como um culto à morte em sua

forma mais cruel, ou seja, a destruição da perspectiva de existência viva e até mesmo

a destruição do amor à condição vivente, ao ponto de suscitar o desejo de abandono da

vida, chegando aos inúmeros casos de suicídio, sobretudo nos países onde o

desenvolvimento econômico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano

igualmente qualificado.

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, a cultura ocidental secularizada e

materialista, marcadamente hedonista e auto-referencial, tende a remover o

277 FAGGIONI, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani – Manuale di Bioética teológica. 2.

ed., Torino: Edizioni Camilliane, 2009, p. 333.

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pensamento sobre a morte, transformando-o em um verdadeiro tabu, ao pondo de não

se considerar correto nem mesmo falar sobre a mesma, como em outro tempo se

considerava de mau gosto falar sobre sexo. A morte se apresenta na sociedade

ocidental como uma acusação de falência de seu discurso de sucesso absoluto, de uma

autonomia ou controle sobre si mesmo. De fato, como já dissemos anteriormente, a

morte destitui o ser humano de qualquer pretensão de poder e o iguala, rebaixando-o a

uma condição, literalmente, subterrânea.

Evitar a morte se torna uma obsessão moderna. O homem contemporâneo é o

homem do espetáculo, do show, da vida vivida em todo o seu esplendor. Sua intenção

primeira é aquela de consolidar o seu “espírito livre”, a hegemonia de sua

autodeterminação. Nossa cultura dispensa qualquer atitude de realismo cru, de

admissão e interiorização da dor. A miséria e a feiúra do mundo é melhor esquecê-la

no mundo dos centros comerciais, nos shoppings que se edificam como verdadeiras

cidades protegidas das condições degradantes do mundo real. Nesse sentido, tudo

aquilo que aponta para a realidade da morte é radicalmente rejeitado, excluído. Torna-

se inadmissível a consideração da morte como realidade natural que interpela o

homem acerca de seu projeto de vida. Como aponta Faggioni,

A dor e a certeza desconcertantes da morte põem em crise a pretensão

narcisista do homem moderno que deseja manter o controle sobre toda a

sua vida através da ciência e da tecnologia. A morte, de fato, extingue a

existência terrena e revela a radical fragilidade que constitui a existência

humana, colocando-nos diante de uma trágica e inelutável experiência

de falimento. O enigma e a tragicidade da morte para o homem moderno

se manifesta na paralisia relacional que se desenvolve em relação ao

morrente e aos seus familiares – uma verdadeira e própria antecipação

da morte física278.

Ao mesmo tempo, nas nossas sociedades se intensifica a reivindicação do

chamado “Direito de Morrer”, exigindo dos Estados a facilitação do chamado

“suicídio assistido”. Essas reivindicações emergem devido, sobretudo, aos inúmeros

avanços no campo da biotecnologia e da medicina, que desenvolveu a capacidade de

preservação do estado vegetativo, prologando, às vezes, de modo indeterminado.

Grande parte das mortes, especialmente nos países de grande desenvolvimento

econômico, ocorre no interior dos hospitais e, quase sempre, depois de uma

prolongada tentativa de manutenção do estado vivente. As mortes se tornam, cada vez

mais, fruto da decisão dos parentes de interromper, depois de exaustivos períodos de

sofrimento físico (para o enfermo) e emotivo (para os parentes), o tratamento de

278 Faggioni (2009, p. 334).

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manutenção da vida através de aparelhos médicos. A morte, portanto, se torna cada

vez mais uma decisão médica e é neste sentido que se discute e se exige o “direito de

morrer”.

Entendido literalmente, o direito de morrer parece denotar simplesmente

um direito ao inevitável: a certeza da morte de tudo aquilo que vive é de

fato a pedra de comparação da inelutabilidade do destino. Por que

reivindicar um direito a algo que não é só inevitável, mas em geral é tido

como um mal? A morte está, por ventura, se tornando menos inevitável?

Corremos o risco de nos tornarmos imortais? A morte está se tornando

para nós um bem a ser reivindicado e não um mal a ser evitado e

vencido?279

A morte neste contexto, não a compreendemos como o motivo da

reivindicação. Na verdade, não se deseja a morte, mas a busca por uma antecipação

desta é fruto justamente do medo do morrer. O prolongamento da vida não exclui na

mente do homem a certeza de que este se encaminha na direção do final trágico de sua

existência e, portanto, quanto mais se estende esta finalização, mais a morte se torna

uma realidade esmagadora em sua mente. O indivíduo não suporta a ideia de que a

chama de sua existência vivente se extingue e quer libertar-se da opressividade dessa

ideia. Assim como tomamos de um só gole os remédios amargos a fim de evitar o

prolongar-se de seu amargor, o morrente quer antecipar a morte para evitar a angústia

do morrer.

Tal tentativa de evitar o morrer se estende igualmente aos acompanhantes das

pessoas em situação terminal. Também elas devem se defrontar com a realidade da

morte e a impotência em relação à mesma. Nesses casos, a remoção da ideia de morte

faz com que os familiares, os amigos e até mesmo os agentes sanitários se

demonstrem sempre mais incapazes de acompanhar a pessoa convalescente para

ajudá-la a viver com dignidade o último ato de sua existência. No passado se morria

em casa, circundados das pessoas queridas, suportados pela simbologia e o conforto

da própria fé, enquanto hoje se morre no hospital, assistidos sim, mas isolados e, por

vezes, abandonados. À natural repulsão em relação à realidade da morte se acrescenta,

porém, uma particular dificuldade de aceitar a ideia da própria morte e a integrar no

próprio projeto de vida a experiência do morrer, prelúdio ao momento da morte.

Como posicionar-se a partir da experiência cristã, diante da morte? Diante da

trágica situação da morte, a fé cristã se põe como uma fonte de serenidade e de paz e,

aquilo que é humanamente sem significado e absurdo, pode adquirir sentido e valor.

279 KASS, Leon R. La sfida della bioetica – la vita, la libertà e la difesa della dignità umana.

Torino: Lindau, 2007, p. 289.

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Para aqueles que morrem na esperança pascal do Cristo morto e ressuscitado, a morte

pode se tornar a resposta à extrema vocação dada por Deus, o cumprimento e a

realização do chamado à vida plena, a última passagem, através da dor e do

sofrimento, que marcam a nossa existência terrena, em direção ao horizonte de uma

alegria sem fim. A morte se torna, numa perspectiva cristã, o fim enquanto

cumprimento e não enquanto término ou extinção da vida. Em Deus a vida ganha a

sua realidade original e originária, realizando sua vocação final, alcançando o seu

esplendor maior.

Uma abordagem teológica do fenômeno da morte requer, portanto, uma

compreensão profunda do significado da vida em referência ao mistério da revelação

de Deus em seu Filho Jesus Cristo. É nele, Evangelho da Vida, que toda realidade

humana encontra sentido, não existindo nada de verdadeiramente humano que não

encontre no Filho de Deus feito Homem, sentido e perfeita realização, como bem nos

recorda Gaudium et spes280. A realidade humana da morte é também esta assumida

pelo Filho de Deus feito homem e na sua morte toda morte encontra o seu significado.

O morrer, a partir do horizonte cristão, portanto, é uma inserção do ser humano no

Humano que é Cristo, sendo, portanto, o horizonte supremo de humanização.

O cenário ao qual somos chamados a dirigir o nosso olhar é aquele da

absoluta proximidade manifestada por Deus aos homens em Cristo, proximidade na

qual também a experiência do sofrimento e da doença encontra significado e é

resgatada das contradições e negatividade que predominantemente a caracterizam. A

este respeito, a carta encíclica de João Paulo II, Evangelium vitae, dedica especial

atenção, (sobretudo nos números 64-67), sublinhando o significado cristão do viver e

do morrer, concentrando no primeiro o horizonte de compreensão do segundo. De

fato, recorda o venerando papa: a vida do homem não se reduz a um simples bíos,

como se fosse um mero fato biológico.

Desde o seu alvorecer a vida se apresenta como experiência de dom gratuito e

vocação sublime; um acontecimento extraordinário e surpreendente que interpela a

liberdade humana individual e coletiva e suscita um espontâneo consenso. Para o

homem de fé, portanto, a vida é florescência de Deus, desabrochar de existência

gratuita, perfeita comunhão entre o Criador e sua obra, estando ancorada

definitivamente n’Aquele que a origina e que a seduz irresistivelmente. É por isso que

da vida terrena se pode dizer, contemporaneamente, que há um caráter relativo de uma

realidade que não é última, mas penúltima e que constitui uma realidade sagrada que

nos é confiada para que dela cuidemos com responsabilidade conforme o seu profundo

280 GS, 1.

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significado, levando-a à perfeição no amor e no dom de nós mesmos a Deus e aos

irmãos281.

Do respeito e responsabilidade para com a vida, Dom de Deus e vocação

sublime do homem, a Igreja haure a sua responsabilidade para com o ser humano

morrente. A morte não possui sentido em si mesma, senão em relação à Vida que

escorre do coração de Deus e se deposita no coração do ser humano, fecundando-o

para Deus. De fato, nos recorda o Senhor, “Deus é o Deus dos vivos e não dos

mortos”282.

A experiência da morte insere o ser humano no horizonte de significado da

morte do próprio Senhor. Torna-se experiência de redenção e reconciliação, quando

vivida em união profunda com a paixão e morte de Jesus Cristo. A semântica da

teologia cristã católica sobre o morrer está repleta da experiência da vida nova na qual

o Cristo de Deus insere a humanidade redimida que se faz dócil ao seu convite. Não se

pode, portanto, isolar a compreensão da morte do significado do viver cristão. Os

discípulos de Cristo vivem para Ele e n’Ele morrem para alcançar com Ele a Vida da

qual somente Ele é origem e fim.

A bioética católica, portanto, não convida a acompanhar alguém cuja vida se

apaga, mas uma pessoa humana cuja chama de vida se prepara para alcançar a

plenitude de seu resplendor. À luz perpétua da ressurreição se une a luz efêmera da

existência terrena, inserindo o ser humano naquele repouso prometido pelo Senhor aos

que lhe permanecerem fiéis, conforme nos recorda a carta aos Hebreus (4,1-7).

A realidade aparentemente fatal da morte, contudo, desafia a nossa fé e atenta

contra a nossa esperança no Deus Vivo. De fato, sobretudo diante da morte de quem

amamos emergem a incompreensão, a revolta, a dúvida, a mágoa. Talvez tais

sentimentos não sejam nem mesmo provenientes da piedade pela morte do outro,

senão por aquilo que esta provocou em nós mesmos. Sofremos muito mais pela falta,

pelo vazio que a morte do outro nos provocou do que pela cessação de sua vida, ou

seja, a dor pela morte de quem amamos é, em suma, fruto do desejo egoísta de que o

outro esteja sempre presente conosco.

3 - A REFLEXÃO DA IGREJA ACERCA DO ACOMPANHAMENTO DO

DOENTE TERMINAL

Diante da pouca compreensão deste significado profundo do morrer, a Igreja

estabeleceu, sobretudo, a partir da segunda metade do séc. XX, indicações acerca do

281 Cf. Evangelium vitae, n. 02. 282 Cf. Lc 20,38-39.

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comportamento cristão diante da pessoa humana morrente. Estas indicações

concernem à tentativa de formar uma postura concreta diante da realidade da morte,

legitimamente arraigada na revelação cristã e na esperança da Ressurreição como

realidade humana final.

Antes, contudo, de dedicarmo-nos às questões morais que emergem diante do

doente terminal, convém compreender a diferença entre doente incurável e doente

terminal. O primeiro trata-se de alguém portador de uma enfermidade cuja cura ainda

não é possível; alguém portador de uma doença crônica de qualquer gênero. O

segundo, contudo, é uma pessoa cuja doença o colocou diante da realidade da morte

iminente. É principalmente em relação a este último que o nosso comportamento deve

amadurecer no sentido de exprimir o mais possível os sinais de nossa adesão a Cristo

morto e ressuscitado.

O doente terminal deve ser ajudado a viver o último seguimento de sua

existência com dignidade. Deve ser auxiliado no processo de acolhida da realidade do

morrer. De fato, a pessoa com doença em estado terminal se encontra em condição de

inteira dependência daqueles que o assistem, ampliando ao máximo, portanto, a

responsabilidade destes últimos. Esta responsabilidade não se reduz à simples

assistência profissional do doente. Mais que de um profissional, o enfermo em estado

terminal necessita de um ser humano, de alguém que o acompanhe nos seus últimos

passos em direção à Vida à qual ele, como cada pessoa humana, é vocacionado por

causa da morte e ressurreição do Filho de Deus.

Já em 1985 o jesuíta espanhol Manuel Cuyas estabeleceu alguns direitos

considerados pelo mesmo como fundamentais para a pessoa humana em estado

terminal. São eles:

- direito a não sofrer quando a dor pode ser atenuada;

- direito às terapias ordinárias e sintomáticas;

- direito à verdade;

- direito à liberdade de consciência;

- direito à autonomia;

- direito ao diálogo confidencial;

- direito a não ser abandonado;

- direito à compreensão283.

A doutrina da Igreja, sobretudo no magistério de João Paulo II, estabeleceu

que os cuidados ordinários (hidratação, alimentação, desinfecção das feridas...), bem

283 CUYAS, Manuel. L’eutanasia dal punto di vista deontológico, In: AA. VV., Nuovi saggi di

medicina e scienze umane, Milano, 1985, p. 444-447.

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como aqueles paliativos ou sintomáticos (alívio da dor, hidratação da pele,

higienização etc.) são direitos do paciente, não podendo o médico ou qualquer agente

sanitário negar os mesmos a qualquer que seja a pessoa enferma. No que concerne a

curas paliativas, convém recordar que a Igreja compreende a dor não somente como

uma reação local do organismo a uma situação de enfermidade, o Magistério tutela

também o direito ao alívio da dor psíquica, ou seja, aquela que pode levar a pessoa

enferma a desejar a morte apenas como fuga desesperada do sofrimento, como é o

caso do apelo à Eutanásia284.

Os cuidados para com a pessoa humana em enfermidade terminal não podem

compreender a aplicação dos chamados “tratamentos agressivos” ou terapias através

de meios desproporcionais, ou seja, intervenções cirúrgicas ou aplicações de

medicamentos que não funcionam como paliativos, mas ao contrário, constituem

intervenções danosas ao doente e desrespeitosas do seu direito à morte digna. É

constituído um meio desproporcional e, portanto, tratamento agressivo, aquelas

intervenções que não modificam de modo significativo o decoroso e irreversível

desenvolvimento natural da doença, não melhorando a condição da pessoa enferma,

mas até mesmo piorando sua qualidade de vida e prolongando, sem esperança de

melhora, a existência penosa. Portanto, os elementos constitutivos de um tratamento

agressivo são: insistência irracional, a inutilidade, o agravamento. Nesse sentido, a

rejeição ao tratamento agressivo não constitui uma escolha pela eutanásia, nem

mesmo um abandono da pessoa em estado terminal, mas significa a renúncia ao

prolongamento inútil da agonia e a atos médicos que não incidem significativamente

sobre a qualidade de vida285.

A realidade que se descortina no limite entre tratamento proporcional e

desproporcional é aquela da Eutanásia. Esta constitui um fenômeno complexo e

variado, que envolve questões de caráter clínico, cultural, religioso e civil. Cresce

consideravelmente a procura pelo direito à Eutanásia como forma de supressão da dor,

justificando-a como sendo um direito do sujeito, ligado a sua liberdade e autonomia,

ao seu direito de dispor sobre a própria vida e de decidir de maneira vinculante o que

concerne à sua saúde e ao tratamento clínico que lhe seja aplicado.

Nos últimos anos, sobretudo na Europa, desenvolveu- se a prática da

Declaração antecipada de tratamento. Trata-se de uma forma de testamento em que

se decide a que forma de tratamento se deseja ser submetido em caso de doença grave

com perda da consciência. Em linha de princípio, tal documento não é ilícito, pois

284 Cf. JOÃO PAULO II, Discorso ai partecipanti al congresso Internazionale dell’Associazione

“Omnia Hominis”, 25-8-1990, In: Insegnamenti, v. 13/2, 328. 285 FAGGIONI, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani – manuale di bioética teologica,

Torino, Camilliane 2009, p. 341.

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cada pessoa humana tem o direito a ser protagonista das escolhas clínicas que lhe

interessam. Há o direito a evitar a aplicação do tratamento agressivo ou de terapias

desproporcionadas que venham a prolongar inutilmente a própria vida sem esperança

de recuperação. Torna-se, contudo, um ato ilícito, quando o teor do documento

contém a autorização para privar o paciente daqueles cuidados essenciais tais como a

alimentação e a hidratação, o que constituiria em uma forma de eutanásia passiva.

A Igreja compreende, mais do que ninguém, sendo ela perita em humanidade,

o drama da dor e da doença e recomenda o respeito e o zelo revestido de profunda

compaixão para com as pessoas enfermas; porém, afirma veementemente que este

dado dramático da existência humana não pode transformar a morte em um direito ou

em uma expressão da liberdade.

Vale elencar alguns dos documentos que manifestam a preocupação do

Magistério da Igreja acerca da crescente adesão a práticas de Eutanásia, inclusive

reconhecidas pelo Estado como direito do indivíduo, como é o caso da Holanda, onde

a declaração antecipada de tratamento é já autorizada incluindo o direito de recusa dos

cuidados vitais. Tais declarações não colhe o princípio cristão do cuidado para com a

vida, desde a mais frágil à mais forte. Menosprezar a vida simplesmente porque esta

se encontra debilitada, denota uma incompreensão e um distanciamento da atitude de

Jesus Cristo que doa a sua vida para resgatar as vidas de todos, desde os mais vívidos

aos mais débeis.

Um dos primeiros documentos a tratar de modo específico sobre o tema é a

Declaração sobre a eutanásia (1980) da Congregação para a Doutrina da Fé, seguido

do documento do Pontifício Conselho “Cor unum” sobre as “questões éticas relativas

aos doentes graves e terminais” (1981). O conteúdo destes documentos são retomados

pela Encíclica Evangelium vitae de João Paulo II (1995) n. 64-67. Nesses documentos,

a Igreja não se limita a definir a Eutanásia como moralmente inaceitável, mas oferece

ao mesmo tempo um itinerário de assistência à pessoa enferma que esteja, seja sob o

aspecto espiritual e pastoral seja sob o aspecto da ética médica, inspirado na dignidade

da pessoa, no respeito pela vida e pelos valores da fraternidade e da solidariedade,

conclamando pessoas e instituições a responder com testemunhos concretos aos

desafios de uma alarmante cultura da morte.

Outro aspecto doloroso da Eutanásia é aquele que se refere à eugenia ou

eutanásia neonatal. Nestes casos se aplica tratamentos com injeções letais em neonatos

que possuem doenças graves ou deficiências estruturais que impedem uma expectativa

de vida longa. Um caso clássico é o da menina americana Baby Doe. “Baby Doe foi

um bebê que nasceu em 1982, em Bloomington, no estado de Indiana/EEUU, com

más-formações múltiplas (trissomia do 21 e fístula traqueoesofágica). Os seus pais se

negaram a assinar um termo autorizando a realização de uma cirurgia corretiva

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da fístula, que tinha 50% de chances de lhe salvar a vida. Os pais, que tinham outros

dois filhos sadios, alegaram que a criança era muito comprometida. Solicitaram,

ainda, que fosse suspendida a alimentação e os demais tratamentos. A equipe médica

solicitou à Justiça autorização para realizar a cirurgia, suspendendo, temporariamente

o pátrio poder. A Justiça negou em primeira instância. A promotoria apelou e a

Suprema Corte do Estado de Indiana se negou a apreciar o caso. Foi feita a tentativa

de apelar para a Suprema Corte dos Estados Unidos. O bebê, aos seis dias de vida

morreu, não dando tempo para que fossem feitas outras tentativas. O advogado da

família alegou que a mãe esteve sempre ao lado do bebê. Afirmou que "não foi um

caso de abandono, mas sim de amor”.

O debate que se seguiu induziu a Administração presidencial a estabelecer

regras de comportamento para situações similares. As diretrizes que seguiram desse

debate receberam o nome de Baby Doe rules, e afirmavam que as intervenções

médico-cirúrgicas que são eficazes em aliviar uma invalidez física são eticamente

obrigatórias.

Dentro do horizonte cristão, portanto, a morte ganha significado a partir do

significado da vida doada por Cristo e renascida em sua vitória definitiva sobre o

pecado. A morte física, neste sentido, é constitutiva da experiência humana, da qual o

próprio Deus quis fazer parte para nos dar um modelo de superação da dor e do

esvaziamento total de nós mesmos para deixarmo-nos preencher por Aquele de quem

haurimos cada centelha de vida. O medo e a recusa da morte situam-se no medo de

perder-se, de extinguir-se, de deixar escapar o controle sobre si mesmo; o poder de

decisão definitiva sobre a própria existência, neste sentido a morte, do ponto de vista

teológico, constitui aquela experiência humana na qual o indivíduo se encontra

completamente descentrado, destituído de qualquer poder decisivo, faz-se húmus para

tornar-se vida nova em Deus, sua origem e seu fim.

CONCLUSÃO

A situação atual que põe o homem diante do desejo inatural de morrer revela

as sequelas de uma cultura de morte, bem como uma compreensão da morte natural

como uma anulação da própria existência, já que esta última haure seu significado das

formas exteriores de seu existir e não tanto de sua realidade mais profunda. A

pergunta sobre o significado do viver ou mesmo sobre o fim de cada existência,

individual e social, se torna cada vez mais irrelevante, numa sociedade do imediato e

da imagem. Às interrogações acerca do significado da vida se substituem aquelas

referentes ao que fazer agora para se tornar visível, para desfrutar ao máximo o prazer

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que os bens de consumo oferecem, tornando pessoas em utilitários e personificando

objetos e estados de ânimo.

O desafio de compreender a morte como realidade humana que lhe dá

significado se torna cada vez mais urgente de ser enfrentado. Nunca, na história da

humanidade, a reflexão sobre os opostos morte/vida foi tão pertinente ao ponto de se

tornar decisiva inclusive para a determinação daquilo que verdadeiramente nos

identifica e nos realiza como seres racionais e criaturas de Deus, feitos à sua Imagem e

Semelhança. Interpela-nos dia a dia, as realidades que encontramos do outro lado da

nossa rua ou dentro mesmo de nossas casas e no interior de nossas famílias. Como um

vírus que corrói as consciências, a cultura hodierna vai aos poucos se infiltrando nos

ambientes mais improváveis e fazendo do agir cristão um dever quase improponível.

Permanece, contudo, no coração dos discípulos de Cristo a certeza expressa

pelo apóstolo Paulo de que nem a morte nem qualquer outra coisa poderá separar-nos

do amor de Deus por nós e que, portanto, ainda que submetidos à tragédia do fim

temporal de nossas existências, por causa da Ressurreição do Senhor, permanecemos

ligados à Vida como o Ramo à Videira, posto que n’Ele, por Ele e para Ele existimos

e somos. Tal certeza nos impele ao cuidado pelas vidas que calcam os umbrais de seu

cumprimento e faz emergir o dever sagrado de fazer-se companhia e sustentáculo dos

irmãos que se encaminham à definitiva realização de suas vidas. Em Jesus Cristo,

cada homem se faz amigo e companheiro nos cumes últimos da caminhada terrena de

seus irmãos suportando-lhes a fadiga, aliviando-lhes a dor e o medo, nutrindo-lhes o

coração com a esperança vívida que transborda do Coração traspassado do Cristo

Morto por nós.

REFERÊNCIAS

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“Omnia Hominis”, 25-8-1990. In: Insegnamenti, v. 13/2, 328.

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RAZÃO, PAIXÃO E FELICIDADE

Alison Felipe de Moura286

RESUMO

O presente artigo trata de analisar a relação entre razão, paixão e felicidade a partir da obra: As

paixões da alma de Descartes, procurando refletir o que o autor entende acerca da felicidade e

ainda em que sentido essa felicidade é determinada somente pela razão, dado a influência do

corpo no processo de construção da mesma. Para tal reflexão, pensamos ser conveniente

destacar num primeiro momento as linhas gerais do pensamento do filósofo, em seguida,

apresentamos, a partir de uma reflexão crítica, os argumentos que o tratado das paixões da alma

apresentam sobre o tema a ser refletido e, por fim, tendo em vista a relevância do tema,

apresentamos uma reflexão da relação entre razão, paixão e felicidade, visando uma maior

clareza da questão no que toca ao pensamento da atualidade.

Palavras-chave: Recta Ratio. Sentimento. Vida feliz. Antropologia. Descartes.

ABSTRACT

This article is to analyze the relationship between reason and passion and happiness from the

work: the passions of the soul of Descartes trying to contemplate what the author thinks about

the happiness and even in that sense that happiness is determined only by reason, given the

influence of the body in the construction of the same process. For such reflection should be

thought at first highlight the general lines of thought of the philosopher. Then we present, from

a critical review of the arguments that the treaty of the passions of the soul present on the topic

to be reflected. Finally, in view of the relevance of the topic, present a reflection of the

relationship between reason and passion and happiness towards greater clarity of the question

when it comes to thinking of today.

Keywords: Recta Ratio. Feeling. Happy life. Anthropology. Descartes.

286 Mestre em Filosofia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). Graduando em

Teologia pela Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.

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INTRODUÇÃO

Podemos sem sombra de dúvidas concordar com Aristóteles287que a felicidade

é o fim ao qual todas as coisas tendem. Mas essa felicidade, na interpretação de São

Tomás de Aquino, em Questiones Disputatae de Veritatae, q.1 a.1, é entendida como

sendo o bem ou o bom quando relacionado com o ente. Em outras palavras, essa

felicidade deve ser ordenada por meio de uma reta razão, visto que, tanto o bem como

o bom querem nos indicar a verdade. Para São Tomás o bem e o bom equivalem ao

que se entende como os dois apetites do ser humano, o apetito concupiscível e o

irascível, sendo o primeiro como apetites da alma e o segundo como apetites do

corpo288. Sendo assim, a felicidade se realiza quando ordenamos os apetites ao seu fim

último, isto é, Deus como Sumo bem.

Com os avanços no modo de ser e de pensar do homem devido à influência

da técnica e das novas descobertas, quem instigaram a razão a se auto-afirmar, vão

surgir nesse período outros critérios que serão parâmetros para o que nós chamamos

de felicidade, como podemos ver na filosofia de Descartes que apresenta a razão como

critério último da e para a felicidade. Com isso, nos perguntamos: existe algum

critério que determine a felicidade? Até que ponto é possível ser feliz considerando

somente a dimensão racional da vida?

Partindo desses questionamentos, que consideramos como problema

norteador da nossa reflexão, o presente texto tem como objetivo analisar o que

Descartes entende por felicidade e ainda em que sentido essa felicidade é determinada

somente pela razão, dado a influência do corpo no processo de construção da mesma.

Apesar de ser um filósofo conhecido, pensamos ser conveniente para uma

melhor compreensão daquilo que queremos tratar neste artigo, apresentar num

primeiro momento, ainda que de modo sucinto, as linhas principais da filosofia de

Descartes, dando destaque ao que o próprio filósofo considera como primeiro

fundamento do seu sistema de pensamento – o cogito. Partindo dessa primeira certeza,

entendemos também ser conveniente apresentar a dimensão antropológica, através do

dualismo alma/corpo que surge como consequência da verdade do cogito visto que,

esse dualismo vai ser o que consideramos a pedra angular de todo o tratado das

paixões.

Num segundo momento, de modo reflexivo, trataremos propriamente do

tema ao qual nos dispomos a discutir, a partir do tratado das paixões, dando destaque

aos argumentos que tocam mais precisamente ao nosso objeto de análise, isto é, a

287 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, p. 55. 288 São Tomás de AQUINO, suma teológica, Ia II q. 23.

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felicidade, procurando, acima de tudo, entender o pensamento do filósofo e como ele

justifica os seus argumentos.

Embasados pelo pensamento do filósofo, pensamos num terceiro e último

momento, apresentar em certo sentido a relevância do tema tratado, a partir do

confronto das ideias de Descartes com a de outros filósofos, procurando, assim, um

aprofundamento da questão com vista a uma melhor compreensão do mundo que nos

cerca.

1 - A FILOSOFIA DE DESCARTES

A filosofia de Descartes (1596 - 1650) se apresenta como sendo a filosofia de

transição, dado que seu modo de pensar se deu num período que poderíamos chamar

de conturbado289 da história, tendo em vista as muitas transformações sociais e

culturais do seu tempo. Essas transformações foram, como dirá Silva290, um campo

fértil para o desenvolvimento do pensamento do filósofo, que em certo sentido, se

apresenta como uma tentativa de ruptura com o modo de pensar tradicional. O modo

de pensar da tradição era centrado numa causa externa ao homem. Tal causa externa

era, na verdade, a crença num Deus transcendente, onipotente e onisciente, princípio e

fim de tudo e de todos.

Partindo do pressuposto que Deus é o fundamento de tudo, todo o

conhecimento era justificado no que podemos chamar de argumento de autoridade,

devido à extrema valorização da cultura antiga e dos dogmas, limitando, assim, o

saber a apenas “um conjunto de resultados, sem grande preocupação com o método e

com o fundamento”291, ou seja, com certeza de que tudo isso que está sendo ensinado

era de fato a verdade e não um aglomerado de erros que se consolidaram ao logo dos

anos como verdade.

Para Descartes, a realidade seja ela transcendente ou imanente deve ser

entendida a partir do pensamento enquanto pensado, isto é, toda a existência estava

fundamentada no cogito ergo sum292. Partindo desse fundamento racional, o filósofo

justifica as suas ideias a partir da razão, já que para ele toda a verdade que existe no

289 Período conturbado, devido às muitas transformações fruto das descobertas científicas, que

colocavam em xeque verdades tidas como inquestionáveis, como por exemplo, a verdade

presente nas sagradas escrituras. 290 Cf. SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes e a metafísica da modernidade, 2001, p. 12. 291 SILVA: 2001, p. 15. 292 DESCARTES, Discurso do método. 1983a, p. 46.

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mundo e nas coisas deve existir primeiro na mente que pensa, ainda que esse

pensamento seja duvidoso, como argumenta nas meditações metafísicas.

[...] não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele [Deus] me engana; e,

por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja,

enquanto eu pensar ser alguma coisa [...] cumpre em fim concluir e ter

por constante que essa proposição eu sou eu existo, é necessariamente

verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu

espírito293.

Em outras palavras, nosso filósofo parte de uma causa eficiente, isto é, do

sujeito que pensa, tentando compreender assim a causa primeira e última das coisas.

Ao eleger a causa eficiente como causa primeira e última, Cartesius, como era

chamado em latim, contrariando a doutrina da unidualidade entre alma e corpo,

apresentada por São Tomais de Aquino294, defende a ideia de uma distinção real entre

a alma e o corpo, em que alma e corpo apesar de unidas substancialmente eram duas

realidades heterogêneas em que a primeira era entendida como res cogitans, (a coisa

pensante), isto é, a dimensão puramente racional, ou ainda espiritual; e a segunda

como res extensa (a coisa extensa), ou seja, entendida na dimensão da materialidade.

Dessas duas dimensões, a mais importante para Descartes é a res cogitans, por ser a

única capaz de lhe dá a certeza de um conhecimento indubitável.

E, portanto, pelo fato que conheço com certeza que existo, e que, no

entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à

minha natureza, ou a minha essência, a não ser que sou uma coisa que

pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em

que sou uma coisa que pensa ou uma substância da qual toda a essência

ou natureza consiste apenas em pensar295.

Partindo desta certeza indubitável do cogito, Descartes fundamenta todo o

seu sistema de pensamento, já que, seu objetivo é alcançar um conhecimento certo e

seguro que garantisse a verdade das coisas em si mesma, pois o método vigente não

293 DESCARTES, Meditações metafísicas, 1983b, p. 92. 294 Assim como Aristóteles, São Tomás entende o homem como constituído de alma e corpo,

sendo o corpo a matéria e a alma a forma, ou ainda, em linguagem tomista, alma= essência,

corpo= ente. Na summatheologiae I qq. 75-78, ele apresenta o homem como um composto de

alma e corpo, em que a alma é entendida como subsistente, pois é ela que dá forma ao corpo.

Apresenta ainda a união da alma e o corpo, refutando assim a teoria dualista de Platão. S. tomas

entende a natureza humana como um composto de corpus et anima unus. 295 DESCARTES, 1983, p. 134.

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possibilitava essa garantia. Como consequência dessa garantia, tinha-se a verdadeira

felicidade que nada mais era que viver a vida segundo a recta ratio296.

Portanto, toda a filosofia de Descartes tem como princípio e fim a razão.

Sendo assim, é a razão quem vai ordenar toda a vida do homem, até mesmo no campo

dos sentimentos e paixões, tal como argumenta no tratado das paixões da alma, como

veremos.

2 - A ARTE DE BEM VIVER CARTESIANA: A VIDA SOB A GUIA DA

RAZÃO

No tratado Lespassions de l’ame297, Descartes apresenta o que podemos

chamar de diretrizes para bem viver, ou seja, para ser feliz, como ele mesmo

argumenta no último artigo do tratado.

Como vimos inicialmente, motivado pelos novos ideais da época, e agora

mais ainda pelo seu próprio sistema de pensamento, Descartes tenta apresentar um

modo de pensar radicalmente novo como se ninguém antes tivesse feito ou pensado.

Por isso, tenta se desfazer das opiniões dos antigos concernentes a muitas questões,

dentre elas, a questão das paixões, pelo fato de considerá-los não muito acreditáveis298.

Na verdade, esse desejo de trilhar um caminho em que ninguém antes tivesse

tocado, tinha como objetivo, o que podemos chamar de uma clara distinção com a

tradição, mais precisamente com a tradição Aristotélico-Tomista, como vemos no

artigo 68, onde Descartes reconhece que, com a ordem que ele propõe, se afasta da

opinião de todos aqueles que até o momento escreveram sobre tal questão, visto que,

para o nosso filósofo, não há nada que distinga “na parte sensitiva da alma dois

apetites que chamam um concupiscível e o outro irascível”299. Ainda sobre esse ponto,

296 Do latim, significa reta razão. 297 Escrito em francês e publicado em novembro de 1649. O tratado está estruturado em três

partes. Na primeira parte, o filósofo apresenta as paixões em geral, ou ainda como são entendas

a partir da máquina do corpo. Na segunda parte, ele apresenta o número e a ordem das paixões e

a explicação das seis primitivas, a saber: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza. E, na

terceira parte da obra, trata das paixões particulares, como elas se aplicam na vida prática e em

que sentido proporcionam a felicidade. Segundo alguns estudiosos, o tratado das paixões surge

como resposta às dúvidas da princesa Isabel, com quem Descartes durante muitos anos trocou

correspondências. Há ainda quem defenda que esse tratado seria um esboço das concepções

éticas do filósofo, dado que, toma como principio uma moral provisória, como apresenta no

discurso do método. (cf. DESCARTES, 1983a, p. 41 – 46). 298 O motivo pelo qual fazia Descartes desacreditar dos antigos, era pelo fato de que estes

entendiam as paixões a partir da dimensão do corpo, ou seja, do apetito sensitivo, e ainda pelo

modo de apresentar tais paixões como aparece na Suma de teologia Ia – IIaqq. 22 – 48. 299 (DESCARTES, 1983c, p. 244).

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R. Parellada destaca que: “frente à filosofia escolástica contemporânea, Descartes

nega as potências vegetativas e sensitivas da alma e sustenta que o calor corporal, a

nutrição, e a locomoção são atividades da máquina do nosso corpo”300.

Para Descartes as paixões são entendidas como ações, ou seja, as paixões que

se realizam na alma através das ações do corpo quando afetado pelas ideias

adventícias, quer dizer, das ideias que surgem devido ao contato com o meio externo.

Na primeira parte do tratado, nosso filósofo apresenta como se realizam essas

paixões através das ações do corpo, fazendo referência ao Tratado do homem, onde o

mesmo explica de modo detalhado a máquina do corpo. Contudo, no artigo 7 (da obra

que está sendo analisada) ele faz uma breve explicação de como esta máquina é

composta, como sabemos, de coração, cérebro, estômago, nervos e coisas semelhantes

e, ainda, de como funciona, isto é, dos movimentos desses membros301.

Na realidade, Descartes apresenta nesta primeira parte o que pode ser

chamado de fundamento físico das paixões, ou ainda, o que se pode chamar de a

natureza das paixões, em que o filósofo admite que o produto final resultante da ação

do mecanismo do corpo constitui a verdadeira origem das paixões.

As paixões acontecem propriamente na alma. No corpo acontecem as ações,

ou reações, em que, influenciados pelos objetos dos sentidos, produzem o que

poderíamos chamar de “paixões corporais”, como é o caso, por exemplo, da dor no pé.

O fato de sentir a dor no pé incita os espíritos animais a mover-se com intensidade

para o pé por meio dos nervos presentes no pé, possibilitando a movimentação dos

músculos do pé, devido à dor. Contudo, essa sensação da dor, como dirá Descartes, é

na verdade não no pé, mas na mente. A sensação ou percepção da dor é nada mais que

pensamentos presentes na alma, como virá especificado no artigo 27, onde o filósofo

define propriamente as paixões:

Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de

todos os seus outros pensamentos, parece-me podemos em geral defini-

las por percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma que referimos

particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortalecidas por

algum movimento dos espíritos302.

Tal conceito nos apresenta o cerne do que estamos tratando, visto que nos

apresenta com precisão os elementos que contribuem para o que pode ser constituído

300 “Frente a la filosofia escolástica contemporânea, Descartes niegalas potencias vegetativas y

sensitiva del alma y sostiene que el calor corporal, lanutrición y lalocomociónson atividades de

la maquina del nuestro corpo”(PARELLADA, 2000, p. 236) [tradução nossa]. 301 (Cf. DESCARTES, 1983c, p. 218-219). 302 (DESCARTES, 1983c, p. 227).

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como o bem viver cartesiano. Em que sentido? Seja na primeira, como na segunda

parte da explicação dessa definição, Descartes associa as paixões à dimensão

cogitativa, ou seja, apesar de não falar diretamente do cogito303, mas dá a entender que

é ele quem orienta todas as ações e reações do modo de ser do homem, seja

propriamente na alma, ou no corpo.

Se prestarmos bem atenção, podemos perceber que Descartes nessa definição

das paixões, apesar de não negar a distinção real da alma e do corpo, aponta para a

união substancial dos mesmos tentando justificá-la, quando diz:

Para compreender mais perfeitamente todas as coisas, é necessário saber

que a alma esta verdadeiramente única ao corpo todo [...]. Mas

examinando o caso com cuidado, parece-me ter reconhecido com

evidência que a parte do corpo em que a alma exerce imediatamente

suas funções, não é de modo algum o coração, nem o cérebro todo, mas

somente a mais interior de suas partes, que é certa glândula muito

pequena, situada no meio de sua substância304.

Essa glândula no centro do cérebro seria, na verdade, o ponto de encontro de

todas as ações e paixões. Sendo assim, todas as paixões tanto do corpo como da alma

seriam, na verdade, fruto da ação dessa pequena glândula, que une em si as

impressões dos objetos frutos dos sentidos. Tal glândula seria responsável, segundo

Descartes, por todas as paixões, pelo fato de mover tanto o corpo como a alma. Como

no caso, quando se estar com medo, a glândula moveria os espíritos animais às partes

do corpo que movem as pernas, incitando o indivíduo a correr, e/ou ainda, quando

queremos nos recordar de algo, essa glândula se move de tal modo a buscar nos

recôncavos do cérebro a coisa a qual buscamos305.

A movimentação da glândula tinha como objetivo favorecer o emprego das

paixões em dispor a alma a buscar as coisas que, segundo a natureza, seriam úteis, a

partir de uma certa ordem306. Essa ordem consistia em seis paixões consideradas como

primitivas, apresentada da seguinte maneira: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e

tristeza307.

303 Ou seja, a reta razão como via para a felicidade, como vimos nas discussões com Elisabete. 304 (DESCARTES, 1983c, p. 228). 305 (Cf. DESCARTES, 1983c, p. 231). 306 (Cf. DESCARTES, 1983c, p. 241). 307 Essa ordem apresentada por Descartes, Segundo G. Lbrun é superior às demais, ou seja, as

apresentadas pela tradição, por permitir distinguir as paixões primitivas, contudo, Descartes não diz qual o critério para tal distinção. Cf. nota 73. In: R. DESCARTES. As paixões da alma, art.

68, p. 244.

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É, portanto, a partir dessas seis paixões ditas primitivas, que Descartes vai

desenvolver o que chamamos de a arte de bem viver cartesiana.

Segundo nosso filósofo, todas as nossas ações, escolhas, desejos etc., tem

como ponto de partida essas paixões. Em outras palavras, tudo o que acontece na vida

do homem, tanto de bom como de mau, é fruto da ação dessas paixões primitivas na

máquina do corpo, como é o caso, por exemplo, do amor e do ódio:

O amor é um a emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos

que a incitam a unir-se voluntariamente aos objetos que lhes parecem

convenientes. (Já) o ódio é uma emoção causada pelo movimento dos

espíritos que incita a alma a querer está separada dos objetos que se lhes

apresentam como nocivos308

O amor e o ódio, somado e/ou subtraído a alegria e a tristeza, tem como

consequência as várias espécies de ódio e de amor, como é o caso do agrado e do

horror, em que um implica amor pelas coisas boas e belas, já o outro, ódio pelas coisas

más e feias.

Como vimos inicialmente, as paixões nascem da relação do corpo com a

alma, sendo assim, todas essas paixões de amor e ódio, alegria e tristeza se realizam a

partir da admiração e do desejo. Como assim? Apesar de serem consideradas por

Descartes como paixões, a admiração e o desejo podem ser entendidos como vias de

acesso, visto que, possibilitam, no caso da admiração, a considerar com atenção os

objetos que são tidos como raros e extraordinários, gerando, portanto, uma grande

força no cérebro a fim de conservar tal impressão, de tal modo a passar para os

músculos, ou seja, a mover os músculos em vista do objeto admirado309. No caso do

desejo, este dispõe a alma a querer para o futuro o que lhe parece conveniente. Em

outras palavras, abrem caminho para as quatro paixões de modo primário, antes

mesmo do nosso nascimento310.

Na realidade, Descartes tenta decifrar como acontecem as diversas reações do

corpo diante das paixões primitivas, ou ainda, como essas paixões primitivas

contribuem para as reações do corpo, como é o caso do movimento do sangue e dos

espíritos que causam as mais variadas paixões311. Prova disso são os sinais exteriores

dessas paixões, como por exemplo, das ações dos olhos, da mudança de cor312 etc. Se

observarmos bem, Descartes tenta justificar um modo de ser do homem, levando em

308 (DESCARTES, 1983c, p. 247). 309 Cf. Ibid, art, 70, 245. 310 Cf. R. DESCARTES.Tutte le lettere (DESCARTES, a Chanut, 1647), 2009, p. 2387. 311 Cf. R. DESCARTES.As paixões da alma, art. 96, p. 254. 312 Cf. R. DESCARTES.As paixões da alma, art. 112 a 114, p. 258 – 259.

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consideração somente a dimensão horizontal, por meio de uma total dependência

exclusivamente corporal, isto é, como vimos na primeira parte do tratado das paixões,

de modo eminentemente físico. Em outras palavras, para Descartes, o modo de ser do

homem é orientado pelo que poderíamos chamar de vontade de potência radicada no

cogito.

3 - RAZÃO, PAIXÃO E FELICIDADE: UMA REFLEXÃO

Como vimos, para Descartes o que importa para ser feliz é centrar a vida no

que ele chama de recta ratio, ou seja, uma felicidade menos passional e mais voltada

para a razão, que, por meio do domínio das coisas na ideia, o filósofo acreditava ter

também, neste campo, a garantia de uma felicidade certa e segura, uma felicidade

isenta dos erros dos sentidos.

Se observarmos bem, essa repressão excessiva dos sentidos, seja por não dar

muito crédito aos mesmos, seja pelo seu egocentrismo exagerado, quer indicar um

entendimento limitado acerca da vida. Contrariando tal limitação, Damásio argumenta

que é impossível pensar a vida a partir de uma só dimensão, pois,

Parece que a natureza criou o instrumento da racionalidade não apenas

por cima do instrumento de regulação biológica, mas também a partir

dele e com ele. Os comportamentos que se encontram para além dos

impulsos e dos instintos utilizam, em meu entender, tanto o andar

superior como o inferior: o neocórtex é recrutado juntamente com o

mais antigo cerne cerebral, e a racionalidade resulta de suas atividades

combinadas313.

Em outras palavras, admitir a distinção entre o andar superior e o inferior,

isto é, entre mente e corpo, é reconhecer uma incompletude na e da dimensão humana,

pois, apesar de divergentes quanto a sua função no que constitui o todo que é o ser

humano, ambas se completam.

Considerando o nosso segundo elemento de reflexão, a saber – a paixão –

esta se apresenta para o nosso filósofo como uma equação matemática, ou seja, como

a soma e/ou a subtração de determinadas ações que em certo sentido determinam o

ritmo da vida humana, tal como argumentamos acima ao referirmo-nos a segunda

parte do tratado. Partindo desse entendimento, a paixão deixa de ser um sentimento e

passa a ser um mero instrumento dos mecanismos da razão.

313 (DAMASIO, 1998, p. 157).

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Na visão de Scheler314, essa instrumentalização da paixão tirou do homem

moderno a capacidade de discernir de modo crítico tudo aquilo que o sentimento e a

vontade presentes no corpo têm de autêntico e inautêntico. Em outras palavras, essa

instrumentalização privou o homem de sair de si mesmo, dos seus esquemas de

pseudo felicidade, ou seja, das ilusões geradas pelo excesso de tanta racionalidade que

tende a tirar do homem a sua própria humanidade.

A felicidade não se limita nem se determina somente pela razão, nem tão

pouco, somente pelos sentimentos, mas pela união desses dois elementos quando se

colocam em relação de reciprocidade, visto que, como dirá Buber315 é essa

reciprocidade o ato vital da existência humana e fora dela não há vida, visto que, fora

dessa relação o homem perde a sua dignidade de ser pessoa, quer dizer, perde a sua

autonomia. Sendo assim, a felicidade tão desejada pelo homem, só será realmente reta

quando for entendida a partir da dualidade como reciprocidade, ou seja, como abrir-se

ao mundo do outro tanto em sentido horizontal, como vertical, visto que, só é possível

entender o eu a partir do tu. Em outras palavras, é impossível ser alguma coisa sem o

reconhecimento do outro como parte constitutiva do meu eu. Sendo assim, a felicidade

se realiza plenamente na relação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de não ser nossa pretensão esgotar as discussões acerca da questão

tratada, mas antes, contribuir para uma reflexão em vista de uma melhor compreensão

do sentido da vida hoje, apresentamos como conclusão o que consideramos como os

seguintes resultados da nossa pesquisa.

Considerando a vida em sua amplitude e complexidade e ainda as

contribuições deixadas por Descartes no que diz respeito à compreensão do ser

humano como sujeito, como indivíduo que tem uma subjetividade que o constitui

como ser único, podemos, portanto, concluir que a felicidade que o ser humano tanto

anseia, não se limita a simples critérios humanos, mas vai além das capacidades

cognitivas e sensitivas, visto que o ser humano como horizonte vertical é chamado a

transcender as categorias do espaço e do tempo, chamado pela sua própria essência, a

responder ao seu criador316. Ao pensar assim, entendemos que não existe um

entendimento acerca das questões existenciais no que toca à felicidade, sem uma

abertura ao transcendente, pelo fato de que, sem essa abertura, corre-se o sério risco

314 (SCHELER, 2008, p. 90). 315 (BUBER, 2003, p. 04). 316 (Cf. L. LUCAS, 2007, p. 260).

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de se cair no que consideramos como as esquizofrenias da razão que faz do homem

escravo de si mesmo.

Podemos concluir também que a felicidade, apesar de não ter um critério

único e definitivo, como pensava Descartes, não se define somente por critérios

subjetivistas, como os instintos, os desejos, ou ainda critérios utilitaristas de prazer e

de poder. Mas, considerando as necessidades existenciais do individuo, se nos

apresenta como um estado de satisfação de todas as dimensões da vida humana, tendo

em vista que o ser humano é um composto orgânico e, sendo assim, não se limita, nem

se constitui de uma só dimensão da vida, mas devido a sua estrutura, tem necessidades

que se ligam a todas as dimensões de sua existência, por serem essas necessidades

norteadoras do modo de ser dos indivíduos, como é o caso da felicidade enquanto em

relação com a razão e a paixão.

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LUCAS LUCAS, Ramón. Orizzonte verticale, senso e significato della persona

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