82
FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – GESTÃO DE ORGANIZAÇÕES EDUCACIONAIS EXCLUSÃO NEGRA NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO CURITIBA 2008

FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

  • Upload
    others

  • View
    5

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

FACULDADE OPET

CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO

MBA – GESTÃO DE ORGANIZAÇÕES EDUCACIONAIS

EXCLUSÃO NEGRA NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO

CURITIBA2008

Page 2: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

SELMA ROSA DE MELLO FREITAS

EXCLUSÃO NEGRA NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO

Monografia apresentada à Faculdade Opet, ao Curso de Pós-Graduação, como requisito parcial à obtenção de titulação em MBA em Gestão de Organizações Educacionais.

Orientadora: Professora Doutora Maria Odette de Pauli Bettega

CURITIBA

2008

Page 3: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Agradecimentos

Preliminarmente, agradeço a Deus por mais esta chance de aprender. Sou

grata também a minha mãe, Ivone de Mello Freitas, bem assim expresso minha

gratidão para com Fabiane Barreto e Ralph, minha família, pela sua constante

onisciência, paciência; aos meus ex-alunos, causa e efeito dessa trajetória; ao

companheiro Diego Augusto Grunberg Garcia e ao Ministério Público do Estado do

Paraná, cujo apoio incondicional foi imprescindível nesta trajetória, bem assim à

dedicada condução da Professora Doutora Maria Odette de Pauli Bettega. A todos

vocês e àqueles que, involuntariamente, deixei de nomear, mas que, a sua maneira,

considero colabores, com sinceridade, só posso dizer duas palavras: Muito

Obrigada!.

Page 4: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

LISTA DE SIGLAS

ACNAP Associação Cultural da Negritude e Ação Popular

BBC British Broadcasting Corporation Brasil

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

DNA Ácido Desoxirribonucleico

ENADE Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes

FHC Fernando Henrique Cardoso

FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz

FUNDEB Fundo Nacional de Educação Básica

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IPAD Instituto de Pesquisa da Afro-Descendência

MEC Ministério da Educação e Cultura

OEA Organização dos Estados Americanos

ONU Organização das Nações Unidas

PHD Philosophy Doctor

PIB Produto Interno Bruto

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

REUNI Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das

Universidades Federais

UCSAL Universidade Católica de Salvador

UEL Universidade Estadual de Londrina

UFBA Universidade Federal da Bahia

UFPR Universidade Federal do Paraná

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UnB Universidade de Brasília

UNIPALMARES Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares

Page 5: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

SUMÁRIO

CAPA............................................................................... IFOLHA DE ROSTO......................................................... IIAGRADECIMENTOS....................................................... IIILISTA DE SIGLAS........................................................... IVSUMÁRIO........................................................................ VRESUMO......................................................................... VIRESUMEN....................................................................... VII

1 INTRODUÇÃO................................................................. 12 RAÇAS............................................................................. 33 A SITUAÇÂO DO NEGRO NO BRASIL........................... 144 A SOCIOLOGIA DO NEGRO NO

BRASIL............................................................................

28

5 COTAS............................................................................. 376 COTAS PREFERENCIAIS............................................... 487 CONCLUSÃO.................................................................. 66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................. 74

Page 6: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

RESUMO

Ao longo deste trabalho, houve uma incessante busca no sentido de se intentar questionar a situação das cotas no ensino superior, temário este, posto em paralelo com a vivência do negro no Brasil, num contexto que será verificado na capitulação a seguir, sob diversos aspectos, a exemplo de: significado do termo raça, a historicidade do negro no Brasil (hoje e ao tempo da escravatura), dados sobre as cotas raciais (no mundo, no País e no Paraná), informes genéricos sobre leis respeitantes ao racismo/preconceito, comparação de críticas (positivas e negativas) feitas à sistemática de quotas, rememoração de tópicos sociológicos alusivos aos negros, exame de efeitos (concretos e projeções) devido à adoção das cotas, esboço de uma estratégia eficiente e eficaz (prática e teórica) para que se dê uma real aceitação e, não imposição, das reservas raciais e preferenciais (ambas temporárias) em nosso meio — isto, livre de associações de cunho meramente ideológico e/ou assistencialista.

Palavras-Chave: cotas (raciais e preferenciais) no ensino superior nacional; racismo e preconceito; conceito de raça; historicidade, legislação, sociologia do negro; cotas quanto a efeitos, críticas e estratégias.

Page 7: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

RESUMEN

La elaboración de esta monografia tuvo la pretensión de cuestionar la situación de las cotas (fracciones/parcelas) en la enseñanza superior, tema puesto en paralelo o cotejado con la experiencia de vida del negro en Brasil, un contexto a ser explotado en los capítulos que siguen, bajo los aspectos: significado del término raza, recapitulación y actualidad de la historia del negro en nuestro País, datos sobre las cotas cuyo criterio determinante es la raza (en el mundo, en Brasil y en nuestro Estado), informaciones genéricas sobre las leyes relativas a la cuestión de la raza, comparación de críticas (positivas y negativas) realizadas cuanto a la sistemática de cotas, tópicos sociológicos referentes al negro, examen de efectos (concretos y proyecciones) por la adopción de cotas, bosquejo de una estrategia eficiente y eficaz (práctica y teórica) para que haya una verdadera aceptación, sin imposiciones, de las cotas con destinación a los ciudadanos de esto color y de aquellas llamadas “de preferência” (ambas, temporarias) en nuestro medio — esto, libre de asociamientos simplemente ideológicos, paternales.

Page 8: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

1. INTRODUÇÃO

Tratar da exclusão negra — leia-se, de pretos e pardos — no ensino

superior brasileiro é uma tarefa árdua, multifacetada e desafiadora. Uma atitude

simplista seria tecer considerações sobre tal tema, a partir de uma condenação, ou,

ao revés, de mera aceitação de fatos, uma vez que opiniões, eventos e estudos a

respeito não faltam, pululam desde a imprensa até conversas cotidianas;

entrementes, o suposto ineditismo a ser proposto nas páginas a seguir não se

afigura como um meio termo, mas, ao contrário, se transfigura em adequação

relativa às cotas raciais — hodiernamente, postas em uso no que tange ao ingresso

em universidades públicas nacionais (graduação) — e, na seqüência, em

implantação concernente às cotas preferenciais (destinadas a candidatos negros às

vagas de pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, em instituições

públicas de ensino superior). A visão inovadora que se tenciona propiciar nesta

monografia se cinge à comprovação de que a adoção de quotas raciais nos exames

vestibulares é benéfica — sendo imprescindível, tão-somente, que haja a efetuação

de um “molde nacional” — bem assim que o aceite de cotas preferenciais faz-se

necessário, ambas, em caráter temporário. Então, cabe destacar que os benefícios

referenciados dão-se não só para cidadãos negros brasileiros — há tempos, uma

fração deveras estigmatizada da população nacional — mas, também, estão

direcionados ao nosso tecido social e ao sistema educacional vigente. É lógico,

quando se aventa tal propósito, inexiste qualquer negação quanto às mazelas que

assolam a realidade educacional e socioeconômica (que dirá política!) pátrias — de

per si, já bastantes complicadas —, mas, se intenta, sobretudo, evidenciar mais uma

forma de resolução (ainda, que parcial e pontual) para um cenário, como já dito,

Page 9: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

intrincado e, por vezes, desolador; aliás, essa pretensa solução aqui buscada

encontra-se firmemente respaldada na prevenção de futuros embates, melhor

dizendo, a idéia primordial que se quer transmitir é a de se evitar uma possível cisão

racial no Brasil.

Desde a criação do sistema de cotas raciais nas universidades federais

brasileiras, há cerca de quatro anos, os debates sobre o assunto não pararam: na

verdade, para o pior e o melhor, eles têm se avolumado e dado margem a distorções

e a conseqüências imprevistas, quando não, indesejáveis, as quais se refletem,

diuturnamente, em várias áreas — científica, jurídica, comportamental, dentre

outras. Prova disso, é que nos meses vindouros as quotas raciais serão matéria de

apreciação da mais alta Corte de Justiça do País, devido à proposição de Ação

Direta de Inconstitucionalidade.

Pois bem! Mediante a exposição de alguns pontos tidos como cruciais e, por

óbvio, relativos à titulação deste trabalho monográfico, de antemão, já é possível

verificar a complexidade, senão, ousadia da aludida proposição, a qual será

“desenhada”, paulatinamente; todavia, note-se, é preciso reafirmar que o estudo em

questão será examinado com a melhor das intenções, e, longe de ser explicitado de

modo superficial, tampouco, far-se-á uma exegese aprofundada, comparável a um

tratado! O que se almeja, doravante, é informar aspectos dessa situação específica

de abominável exclusão, e, com base neles, instigar novas formulações, cujos

conteúdos sejam pautados na eficiência e na eficácia quando colocados em prática;

na verdade, o que se deseja, é afastar a temática focada de critérios absurdos,

amadores e que dêem vazão ao surgimento de resultados vinculados à violência, à

ignorância, à miséria, ao retrocesso, enfim, a fatos que prestem um desserviço ao

desenvolvimento da nação.

Page 10: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

2. RAÇAS

Um despropósito ocorrido recentemente em Brasília, veio à tona em boa

hora; ele sinaliza que o Brasil está enveredando pelo perigoso caminho de tentar

avaliar indivíduos não pelo conteúdo de seu caráter, mas pela cor de sua pele.

Em maio de 2007, Alan Teixeira, de 18 anos, e seu irmão gêmeo, Alex,

foram se inscrever no vestibular na Universidade de Brasília (UnB). Ambos têm pele

morena e, por isto, no certame, optaram pelo sistema de cotas raciais. Desde 2004,

a UnB – assim como outras, aproximadamente, 33 universidades do País – reserva

20% de suas vagas a alunos negros e pardos que obtêm a nota mínima no exame

em tela. Alan e Alex são gêmeos univitelinos (filhos de pai negro e mãe branca,

gerados no mesmo óvulo e, fisicamente, idênticos). Por antecipação e com base na

logicidade, seria normal presumir-se que os dois recebessem tratamento paritário no

papel de cotistas; entretanto, e até de modo surpreendente, não foi isso o que

aconteceu, pois uma comissão composta de “juízes da raça”, ao ver as fotos dos

irmãos, decidiu: Alex é branco e Alan, negro! Alan, que pretendia prestar vestibular

para educação física, foi classificado como preto (subcategoria parda) e pôde ser

considerado quotista racial; mas para Alex, que pretendia cursar nutrição, houve a

recusa de tal benefício. “Não sei como isso é possível, já que eu e meu irmão somos

iguais e tiramos a foto no mesmo dia”1, declarou um, compreensivelmente, perplexo

Alex, que decidiu recorrer da esdrúxula decisão.

Então, eis que interessa observar o seguinte: são

ocorrências desse quilate que colocam o Brasil — antes com o propalado privilégio

1ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.

Page 11: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

de ser oficialmente cego em relação à cor da pele de seus habitantes — sob o risco

de se mergulhar no ódio racial.

E é justamente a avaliação divergente acontecida com os irmãos Alan e Alex

pela banca da UnB que comprova o quão nefasto é tentar classificar as pessoas por

intermédio do critério racial. Aliás, consigne-se, em todas as partes do planeta onde

isso foi tentado, independente de sólidas justificativas, houve desastres.

Nessa trilha, um dos mais eloqüentes referenciais históricos de oficialização

da discriminação racial deu-se na Segunda Guerra Mundial, sob o comando de

Hitler, o qual promoveu um genocídio, em especial, de judeus, tudo em nome da

purificação da raça. O desiderato hitlerista teve na metodologia criada pelo

geneticista Otmar von Verschuer — mentor de Josef Mengele — um dos seus

pontos de partida e se valeu de medidas (de teor anti-semítico e pseudocientífico)

para fixar o grau de impureza racial das pessoas; desafortunadamente, da teoria se

passou para o efetivo exercício e, assim, o referido procedimento doutrinou centenas

de médicos, funcionários de saúde e oficiais nazistas.

Outro absurdo, ocorrido em 1948, ensejou movimento que por décadas

esfacelou a sociedade local (apartheid sul-africano), mediante turbulenta segregação

de indivíduos negros.

Com efeito, fácil inferir que de ambas as situações supramencionadas várias

lições restaram à humanidade, entre elas, algumas que resultaram em graves

tormentos sociais, cuja escala mínima deu azo à criação de campos de

concentração e de guetos.

Cabe relembrar que a discriminação do diferente, ou, do estrangeiro é um

absurdo, mas antiga; poder-se-ia até afirmar que equivale à existência da própria

civilização. Na Grécia se costumava desprezar os estrangeiros, chamados de

Page 12: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

“bárbaros” — significando “aqueles que gaguejam” —, pelo simples fato destes não

saberem falar o idioma local.

As diferenças fenotípicas humanas permitiram à sociedade dividir o mundo

em raças, de acordo com a cor da pele, dos olhos e de outros caracteres que nos

distinguem — inclusive, no que respeita indivíduos da mesma raça. Essa divisão,

muitas e muitas vezes, foi pièce de résistance utilizada pela raça dominante (e, isto,

não só numericamente), para subjugar as demais. Assim aconteceu durante o

Império Romano, quando os cidadãos de Roma tratavam aqueles que não eram

natos da Itália como animais sem alma. Outrossim, vale rememorar que em aludido

caso não se tratavam de distinções significativas, afinal, todos os povos da Europa

se assemelham bastante em termos fenotípicos; logo, gauleses, ou, trassios,

espanhóis ou aqueles nascidos na ilha da Sicília eram tidos como seres não

humanos e indignos de respeito. Então, eis que à época, a distinção física se

afigurava como marco de segregação e, portanto, ser de uma raça que não fosse a

romana era motivo suficiente para causar perjúrios à vida de qualquer um.

Atualmente, estudos concernentes à discriminação racial realizados no

século passado e que se ampararam em manifestações de pensadores, sociólogos

e cientistas se encontram relegados à lixeira da História. Nesse sentido, as ilações

disseminadas pelo arrogante e franzino conde francês Joseph-Arthur Gobineau, o

qual defendia a tese de que os alemães descendentes de um povo mítico (arianos)

representavam a suprema raça do mundo moderno. A desfaçatez de Gobineau foi

tão esmerada por ocasião da chefia da delegação francesa que visitou o Brasil em

1869, que ele previu o despovoamento do nosso território, graças aos casamentos

inter-raciais: em sua ótica distorcida, Gobineau acreditava que os brancos, os

negros e os índios (além de representantes de raças diferentes), eram espécies

Page 13: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

totalmente distintas e, desta feita, do cruzamento entre eles resultariam

descendentes estéreis.

Outro exemplo nessa linha deu-se nos idos de 1883, com a propagação de

idéias relativas à eugenia, patrocinadas pelo britânico Francis Galton, que pregava o

aperfeiçoamento da raça humana por intermédio do cruzamento concretizado entre

seres seletos, portadores de característicos tidos como desejáveis (inteligência,

força física, dentre outros).

A crença ou noção referente às raças — historicamente, uma construção

ideológica e cultural para que os homens, uns dominem os outros — é fruto não

apenas da ignorância, mas, ainda hoje, de reiteradas tentativas, nascidas na própria

seara científica, de se adquirir notoriedade (ainda que sob claro desafio ao consenso

reinante), de se revalidar arcaísmos propalados por antropólogos no século XVIII.

Destarte, em 2005, o biólogo inglês Armand Marie Leroi afiançou que raças não só

existem, mas sua conceituação deve ser aceita em prol do tratamento de

determinadas doenças, um mito que já deveria ter sido desfeito há tempo. Então, eis

que em pleno século XXI reina uma confusão relativizada quanto a estudos

freqüentemente divulgados sobre doenças mais comuns entre negros ou brancos,

ou, ainda, amarelos.

Há pouco, provocou escândalo no meio científico o comentário de cunho

racista tecido por James Watson, Prêmio Nobel (co-descobridor da estrutura do

DNA), britânico, de 79 anos. E o mais incrível, é que tão bombástico e inaceitável

comento foi posteriormente corroborado pelo cientista político estadunidense,

Charles Murray, tido como defensor da eugenia; para Murray, a ciência moderna

está ao lado de Watson e a probabilidade de negros serem portadores da anemia

falciforme é igual à capacidade de judeus adquirirem a Doença de Tay-Sachs, ou,

Page 14: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

serem asquenazes (grupo étnico originário da Europa Central e Oriental, ao qual

pertenceram Einsten, Freud e Mhaler), ainda que ele os considere dotados de

superioridade intelectual.

Na opinião do geneticista Antonio Sole-Cava, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, essas deduções equivocadas sobre enfermidades nada têm a ver

com raça, mas com grupos populacionais que se casam mais freqüentemente entre

si; os genes que determinam a cor da pele são insuficientes para determinar,

concomitantemente, essa ou aquela diferença, e, de conseqüência, impossível se

partir deste ponto com o fito de fixar uma relação causa-efeito entre “raça” e males.

Num outro patamar, cientificamente e baseado em conceito assentado há

décadas, tem-se que, em termos biológicos, as raças são chamadas de subespécies

e definidas como grupos de pessoas — ou animais —, fisiológica e geneticamente

diferentes de outros grupos; assim, são considerados da mesma raça os indivíduos

que podem cruzar entre si e produzir descendentes férteis.

No entanto, de novo, a sobredita conceituação foi refinada, na medida em

que se concluiu ser viável ocorrer mais variação genética entre as pessoas de uma

mesma raça do que entre seres de raças distintas. Destarte, eis que um sueco loiro

pode ser, no íntimo de seus cromossomas, mais díspar de outro semelhante do que

de um negro africano. Para resumir e com fulcro nos estudos realizados na área da

genética, descobriu-se que a raça não existe abaixo da superfície cosmética que

define coloração de pele, tamanho e formato do crânio, tipologia dos olhos e do

nariz, bem como textura do cabelo; na verdade, essa descoberta está alicerçada no

genoma humano, composto de 25 mil genes e as distinções mais aparentes, tais

como cor da derme e textura capilar, são determinadas por um conjunto de genes

insignificantemente pequeno se comparado a todos os genes humanos. Então, em

Page 15: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

consonância com o dito acima, é admissível dizer com exatidão que as diferenças

entre um branco nórdico e um negro africano compreendem apenas uma fração de

0,005 do genoma humano. E mais: provém de comprovação empírica a peremptória

assertiva feita por Craig Venter (o primeiro geneticista a elaborar a descrição da

seqüência pertinente ao genoma humano) e de imensa maioria de seus pares que,

no tocante aos homens, a genética desautoriza falar-se de raças.

A diferença de cor de pele é um fenômeno relativamente novo na história da

humanidade. Quando o Homo sapiens surgiu, todos tinham a pele negra e

habitavam o continente africano; à medida que os indivíduos foram se espalhando

pelo globo, primeiro na Ásia, depois na Oceania e, sucessivamente, na Europa e na

América, houve a adaptação das populações aos ambientes. No mundo científico,

acredita-se que a seleção natural exercida nesses ambientes tenha originado as

várias cores de pele e uma série de peculiaridades anatômicas que distinguem as

raças. Desse modo, tem-se, à guisa de exemplo, que: a um, na África, a pele escura

do ser humano foi preservada a fim de protegê-lo do alto grau de radiação

ultravioleta solar; a dois, terem sofrido aqueles que migraram para o Norte europeu,

uma pressão seletiva no sentido de ocorrer o clareamento da pele para aproveitar

melhor o sol fraco típico da região e, assim, sintetizar a vitamina D, essencial aos

ossos.

Definitivamente, não existem genes exclusivos de uma determinada cor.

Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja mais comum que grupos

populacionais tenham uma carga genética mais parecida; já em lugares onde a

miscigenação predomina isto é muito improvável.

Neste trecho do presente capítulo, é producente registrar que a coloração da

pele sequer determina a ancestralidade de alguém: um negro, por exemplo, pode

Page 16: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

não ter ancestrais provenientes da África; por conseguinte, tem-se que tal evidência

científica é especialmente verdadeira entre os brasileiros, isto, devido ao alto grau

de miscigenação existente no País.

Enfim, são as inúmeras e freqüentes pesquisas na área que dão o “tom” da

matéria: segundo a geneticista Maria Catira Bortolini, da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, já é possível inferir que: “Os genes que determinam a cor da

pele de uma pessoa são uma parte ínfima do conjunto genético humano — apenas

seis dos quase 30 000 que possuímos”2. Em parceria com seu colega mineiro Sérgio

Pena, Maria Catira produziu um estudo que mostra que os negros brasileiros por

parte de pai têm em média mais genes europeus do que africanos. Nessa esteira,

Sérgio Pena, em outra pesquisa similar feita em conjunto com a BBC Brasil,

afiançou que: “Esses estudos mostram que é impossível dividir a humanidade em

raças”3.

Aliás, nas três últimas décadas, consensualmente, geneticistas afirmam que

os homens são todos iguais, ou, conforme diz Pena, os homens são igualmente

diferentes.

Sob outro ângulo, é inconteste e merece ser apontado que seres humanos e

a maioria dos animais baseiam suas escolhas sexuais na aparência e,

conseqüentemente, a raça firmou-se, ao longo da evolução e da história cultural

humana como um poderoso conceito; dessa maneira, compreensível que em termos

cosméticos essa idéia seja imutável, mas daí a tentar explicar diferenças

2 ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.3 ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.

Page 17: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

intelectuais, de temperamento ou de reações emocionais em função da raça não só

demonstra monumental estupidez, mas é algo extremamente perigoso.

No cenário sociológico, é fato, muitos insistem em defender a manutenção

de tacanhas noções sobre raça, conquanto admitam que sob o ponto de vista

científico, raças não existem.

E diante desse contexto, natural e pertinente perquirir: E onde se encontram

os pardos, no Brasil? Entre nós, os pardos sofrem “sem identidade” e servem, tão-

somente, para engrossar as estatísticas sobre afro-brasileiros — isso, diga-se de

passagem, graças à ocorrência de erro metodológico de nossa classificação

censitária. Nesse compasso, é bem-vinda a explicação de que aqui sempre foi um

problema definir o que é ser pardo; aliás, tão mal resolvida é a questão em apreço

que, como se não bastasse o entrave criado pela UnB aos irmãos Teixeira, em

2003, na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, registrou-se outro episódio

relacionado tanto à acessibilidade de cotas raciais quanto aos pardos, quando 76

candidatos não se alinharam ao fenótipo fixado pelos avaliadores da instituição,

especificamente, aqueles que não tinham lábios grossos, nariz achatado e cabelo

pixaim, característicos necessários à sua admissão na condição de cotistas. Na

origem, sabe-se que os indivíduos pardos são frutos do casamento entre brancos

(europeus) e negros (africanos) e deveriam, genericamente, ser chamados de euro-

afro-descendentes. Hoje, no País, o número daqueles que se declaram pardos beira

os 76 milhões, numa população estimada em 182 milhões de nacionais; então,

simples defluir desses dados que em muitas famílias brasileiras há negros.

De outra sorte, os movimentos negros e os cientistas sociais daqui chamam

de “negros” o conjunto de “pretos” e “pardos”, de conformidade com as estatísticas

oficiais. Ainda, de bom alvitre frisar que essa démarche metodológica confunde-as

Page 18: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

pessoas, que não empregavam, até pouco tempo atrás, tanto os termos “pretos”

quanto “negros” como antônimos. Somam-se a esses informes que, em vez de uma

população de 5,9% de pretos, percentual divulgado em prol da implementação

política de cotas fala de 48% de “negros”; os 42% de autodeclarados pardos não

aparecem nas estatísticas. E mais: segundo dados estatísticos, entre os 56,8%

milhões de pobres, o percentual de 65,8% é composto por negros e não por 7,1% de

pretos. Em tal quadro, há omissão de autodeclarados brancos (34,2% entre os

pobres) e de autodeclarados pardos (58,7%). Então, crava Ali Kamel: “se a pobreza

tem uma cor no Brasil, essa cor é parda”4. O conceito de “negro” para o mencionado

autor equivaleria ao sinônimo de “preto”. E aduza-se: após se debater contra a

leitura equivocada das estatísticas oficiais, Kamel percebeu que nelas “negros” são

todos aqueles que não figuram como brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo,

escurinho, moreno, marrom-bombom não são brancos, segundo a estatística

praticada no Brasil, ou, melhor dizendo, qualquer um que se encaixe neste gradiente

tão variado de cores, oficialmente, é negro.

E, ainda, vale fazer um aparte quanto ao ineditismo da lei pátria ter admitido

aos pardos, curiosamente, uma existência temporária, por ocasião da implantação

das cotas raciais, no Rio de Janeiro. Essa ocorrência sem precedentes deu-se em

novembro de 2001, quando o então Governador do Rio de Janeiro, Anthony

Garotinho sancionou a Lei nº. 3.708, instituidora de cotas. O espírito dessa

legislação refletia o pensamento do cidadão médio: negro é sinônimo de preto e

pardo, de pardo! Entrementes, por questões políticas (harmonização com a norma

que instituía as cotas para alunos da rede pública), a Lei nº. 4.151, sancionada em 4

de dezembro de 2003, vetou as cotas destinadas aos pardos. A reflexão que brota a

4 KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. 2ª. impressão. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 2006, p. 11.

Page 19: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

partir do acontecido concerne ao aspecto identificação racial, ficando comprovada,

de modo inconteste, a existência de racismo e, sobretudo, no que respeita às

dissensões havidas entre os defensores de cotas — incapazes de chegar a um

denominador comum sobre os critérios de fixação das referidas — que o assunto

merece, ainda, ser examinado detidamente, além de existir um longo trajeto a ser

cumprido. Ora, há que se refletir sobre o seguinte: uma vez aceita a tese referente à

“existência” dos pardos, clarividente tornar-se-iam os erros cometidos pelos

pesquisadores de censos oficiais, os quais não deixam de ser comentados à boca

pequena, mas carecem de explicações, adequadas.

Na Universidade de Brasília, outros acontecimentos (o primeiro, verificado

em 2003) fortificaram ainda mais o desalento que permeia tal discussão: no edital

daquele ano, que explicitava as regras do vestibular, houve a novidade de que o

estudante pardo também poderia se beneficiar com as quotas; porém, aconteceu o

inacreditável, do ponto de vista da lógica (se alguém é pardo, não pode ser negro!),

da ética (instou-se o candidato a mentir!) e das leis de igualdade racial (no País,

segundo a legislação em vigor, ninguém pode ser discriminado pela cor da pele),

pois se evidenciou, para pasmo geral, no item 3.1 do citado documento, que só

seriam beneficiários das cotas os negros pretos (pleonasmo) e os pardos negros

(uma nítida inviabilidade ótica!). Persistindo no inaceitável, a Universidade de

Brasília “legitimou” outros descalabros em dita documentação e estabeleceu não

apenas a submissão de cidadãos ao constrangimento moral, mas a uma comissão

de umas poucas pessoas tidas como abalizadas para essa tarefa (num Brasil

miscigenado), as únicas dotadas de capacidade para fazer determinada distinção.

Então, numa admirável e, mais do que isto, condenável perpetuação de erros

Page 20: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

crassos, senão (diante do já exposto) falha inadmissível, eis que na Universidade de

Brasília repetiu o coupe de grasse em 2007.

Page 21: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

3. A SITUAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL

Desde o dia 22 de abril de 1500, data oficial do descobrimento do Brasil,

nunca mais o País se viu livre da discriminação, a qual nasceu com ele e, a cada

dia, parece mais imorredoura, conforme indicativos reais. Tudo começou com os

indígenas, alcançando os negros escravos e, ainda, hodiernamente, voga uma

flagrante discriminação para com os pobres, os deficientes físicos, os homossexuais,

as mulheres, os idosos, entre outros; todavia, dentre todos esses excluídos, aos

negros destinou-se o maior quinhão de preconceito. Ao lado dos índios, os negros

foram vítimas no Novo Mundo, enfrentaram terríveis agonias, vivenciaram episódios

de lutas, martírio e morte, tudo em busca da libertação da escravidão que lhes foi

imposta.

Durante os três primeiros séculos de nossa História, foram trazidos para cá,

na condição de escravos e à revelia, aproximadamente, quatro milhões de africanos.

No Brasil colonial, a base da economia e da riqueza repousava no escravismo. Os

negros trazidos da África, aqui marcados pelo ferro em brasa que os designava

como propriedade de algum “senhor de terras”, eram aproveitados nas mais

diversas atividades econômicas, desempenhavam todas as funções nos engenhos,

cuidavam da agricultura, da pecuária, laboravam em minas de ouro e pedras

preciosas, além de participar, ativamente, no zelo das tarefas domésticas de seus

“senhores”.

Nosso País figurou como a última nação da América a abolir o regime

escravista — em 13 de maio de 1888 e apenas com dois artigos — ato este que

condenou a Monarquia à morte e abriu as portas à República; na supracitada data,

com o advento Lei Áurea, o Estado brasileiro além de abolir formalmente a

Page 22: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

escravatura, deixou os negros à mercê da concorrência do mercado capitalista —

período em que o trabalho assalariado já despontava como o mais adequado à

sociedade industrial que se formava. E em que condições a escravidão foi abolida

do Brasil? A contrario sensu de uma luta pela liberdade, a abolição brasileira

apresentou-se como um acordo entre a elite republicana (que havia se apropriado

de alguns ideais libertários durante sua estada na Europa) e um governo

monárquico altamente enfraquecido. Os negros não foram atores de sua liberdade e,

sim a receberam quase que pacificamente; e, junto com a alforria, houve a sua

marginalização. Uma vez expulsos de latifúndios apenas com um papel na mão, que

representava, teoricamente, a sua libertação, os negros não tinham para onde ir,

nem dispunham de dinheiro e tampouco contavam com a consideração da

sociedade que, agora, os via como animais fora das jaulas. A permanência de ex-

escravos nas terras de antigos “senhores” tornou-se algo impensável.

Simultaneamente, o Brasil abriu suas portas à mão-de-obra imigrante (últimas

décadas do século XIX e início do século XX), em especial, aos europeus,

negligenciando, desta forma e majoritariamente, os recém-alforriados. Aliás, durante

o aludido período, foram elaboradas leis com o fito de impedir negros e indígenas de

acessarem direitos sociais. Com efeito, os ex-escravos, uma vez declarados libertos,

passaram, então, a vivenciar a inatividade, a falta de meios no tocante à

subsistência básica: quando não permaneciam desempregados devido à ausência

de qualificação profissional, submetiam-se a serviços que exigiam mão-de-obra

pesada — tendência continuada nos dias atuais. A partir da Abolição da

Escravatura, os negros foram condenados à estagnação social e, sem

oportunidades, foram encaminhados por veredas pouco lúcidas, como o furto, o

roubo, alcançando, infelizmente, uma das vertentes mais devastadoras da

Page 23: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

capacidade humana, que consiste em matar. É inegável: uma vez assalariados, os

negros livres não tiveram a chance de ascender socialmente, tal como acontecia

com os brancos, e, para piorar a situação reinante, eles passaram a ser

considerados, apesar das desigualdades e do despreparo, uma ameaça.

No que tange à situação da mulher negra, é consabido, esta era tida como

um produto mais valioso do que o homem negro devido a sua capacidade

reprodutora; demais disso, consigne-se, além de ter sua dignidade maternal

frontalmente ignorada, na condição feminil era considerada mercadoria, e, não raras

vezes, como se não bastasse, por tal razão, aviltada, isto, em atenção aos mais vis

instintos sexuais de seus “senhores”.

Na verdade, com o término da escravidão, os negros foram relegados ao

olvido, conquanto o Estado os tenha contemplado, juridicamente e em tese, com

uma equiparação aos brancos, bem assim, conforme até hoje amplamente se

propala, os haja isentado de qualquer barreira institucional.

Então, num primeiro momento, tem-se a impressão de que aqui se seguiu,

ao pé da letra, o pensamento manifesto pelo ilustre enciclopedista, filósofo francês,

Jean-Jacques Rousseau, um produto do Iluminismo, a quem coube revigorar para a

democracia ocidental a reflexão aristotélica de que se a igualdade tende a ser

violada, a lei deve assegurá-la e promovê-la; entrementes, em termos legislativos,

tanto o que foi feito quanto àquilo que se pretende aplicar no Brasil em relação aos

negros, faz com que pairem sérios questionamentos em relação à verdadeira

apreensão dos conteúdos em “jogo”. E acresça-se: sob essa perspectiva, merece

ressalva que a justiça pátria nem sempre deixou de ser cega, a exemplo da Lei

Complementar à Constituição da República de 1824 (legislação do Império), cujo

teor preconizou que negros escravizados não podiam ir às escolas, uma vez que

Page 24: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

eram considerados portadores de moléstias infecciosas; já a Lei nº. 14, datada de 22

de dezembro de 1837, da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, insculpiu

em seu artigo 3º., que escravos e pretos (ainda que alforriados) eram proibidos de

freqüentar os estabelecimentos de ensino públicos. Ambas as legislações, não há

dúvida, aplicaram uma política estatal de cunho extremo e vergonhosamente

restritivo, caracterizaram o que hoje se denominariam de “cotas negativas”.

“No Brasil temos uma realidade de pessoas que foram tratadas como

objetos”5, afirma a docente Tânia Baibich-Faria referindo-se aos escravos libertos

pela Princesa Isabel. “A partir da abolição, o negro não teve uma integração na

sociedade. Por isso até hoje tem menos acesso à educação, à saúde”6, completa

Maria Nilza da Silva, socióloga e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos

da Universidade de Londrina (UEL).

O preconceito é (etimologicamente) atitude, sentimento ou parecer

insensato, especialmente de natureza hostil, assumido em conseqüência da

generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio: em

suma, refere-se à intolerância.

Já o vocábulo racismo concerne ao conjunto de teorias e crenças que

estabelecem uma hierarquia entre as raças e etnias; o termo traduz doutrina ou

sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior)

de dominar outras; significa o preconceito extremado contra indivíduos pertencentes

a uma raça ou etnia diferente, em geral, considerada inferior; externa, ainda, atitude

de hostilidade em relação à determinada categoria de pessoas.

5 MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005. 6 MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005.

Page 25: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Preconceito e racismo são manifestações próprias do ser humano e

costumam apresentar-se em algum momento de nossas vidas, sob forma direta ou

indireta e inspiram, inclusive, reflexões que podem tanger aforismos ou sofismas;

segundo clichê, ambos se explicam, mas jamais se justificam.

E de acordo com apreciação a respeito, expressa pela supracitada doutora

em psicologia social e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a raiz

do preconceito está na necessidade do ser humano classificar o outro. Além disso,

para ter uma identidade, os indivíduos precisam fazer parte de grupos e a tendência

generalizada neste sentido, é se referir aos demais não integrantes do grupo como

inferiores. A esse contexto, juntam-se fatores sociais, econômicos e, igualmente, o

elemento historicidade. E, para que se opere a erradicação do preconceito, a

especialista sugere que não se fechem os olhos para a questão e, que, tampouco se

tente classificar nossos semelhantes. “Tem que se colocar no lugar do outro”7,

afirma.

A verdade é que tal excrescência social, que em nada nos ajuda, segue

incólume a interferir em nosso cotidiano, sendo aferível por números. Tânia ainda

lembra que os negros representam 65% dos pobres e cerca de 70% dos indigentes

do País. Para ela, existem alguns inimigos invisíveis que ajudam a propagar as

desigualdades, como a falta de políticas públicas para combater o racismo e a

miséria e, também, a ausência de uma cultura mais reflexiva por parte da teia social

quanto a aceitar diferenças.

Na opinião da professora Maria Nilza da Silva, o racismo (um tipo de

desinformação), deve ser enfrentado por intermédio da educação. Nessa

perspectiva, por exemplo, um passo significativo já foi dado: recentemente, o

7 MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005.

Page 26: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

governo federal tornou obrigatório o ensino da História da África e História da

População Afro-Brasileira em todas as escolas de ensino fundamental do País.

Preambularmente, é chocante a abordagem de que 120 anos depois da

assinatura da Lei Áurea, o Brasil ainda convive com o preconceito, o racismo: de

nada adianta tal data ser comemorada todos os anos como um marco de libertação

e dignidade da população negra, quando a situação atual experimentada por essa

fatia populacional de brasileiros é, no mínimo, incômoda: nessa toada e em pleno

século XXI, tal parcela da população continua, em sua maioria, sem vez e sem voz,

empregada em trabalhos árduos, sob regime de quase semi-escravidão,

particularmente, nas fazendas do Norte e Nordeste do Brasil. Aqui, a ideologia de

mais de 300 anos de escravidão se mantém forte e o negro é rotulado como um

indivíduo submisso e inferior. Ao se inventariar a posição hoje ocupada pelos afro-

descendentes no cenário nacional, descobre-se que mecanismos foram arquitetados

pelas classes dominantes para mantê-los na marginalidade, isto é, constata-se que

instrumentos de segregação para com a comunidade negra passaram por um

aperfeiçoamento ao longo do tempo, com o intuito de se atingir um objetivo maior,

qual seja, manter a supremacia racial branca. Entre nós, o preconceito racial e/ou o

racismo são continuamente exteriorizados, não raro, de maneira até discreta e

branda; ambos vigoram, hodiernamente, em várias regiões do Brasil, explicitados,

em maior ou menor grau, em todas as classes sociais. Um exemplo típico de

racismo se comprova mediante dados obtidos pelo Datafolha, que publicou uma

pesquisa onde se revela serem os negros abordados com assiduidade em batidas

policiais: eles são mais revistados do que pessoas de outras etnias, recebem mais

insultos e agressões físicas do que brancos. Aliás, a escolaridade e a condição

financeira de negros têm pouca influência sobre a freqüência e incidência nessas

Page 27: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

ações da polícia. Conclui-se, então, que os métodos empregados pelos policiais

quanto aos indivíduos, num primeiro momento, levam em consideração sua

aparência física (vestimentas), a etnia (fator principal) e um estereótipo

completamente fora de sentido: a expressão facial da pessoa; dessa maneira,

aquele que se encaixa dentro de uma determinada tipificação psicológica, acaba

fazendo parte de um sistema seletivo e discriminatório, e, em geral, esse alguém é

pobre, e, de regra, negro ou mulato (pardo).

Por infortúnio, o passado escravista registrou no inconsciente coletivo

nacional a absurda noção da inferioridade negra e tal ideação atingiu também muitos

negros, que se sentem inferiorizados em relação à sua condição, chegando a

abominar a própria cor e a valorizar a cultura branca como padrão ideal. Por causa

de razões históricas, os negros continuam a encabeçar um dos setores mais

miseráveis e sofridos da sociedade brasileira; deles foi retirada a liberdade,

dificultada a conservação de sua cultura e memória e, até hoje, não lhes foi,

efetivamente, restituída a plena condição de cidadania.

Quotidianamente, renovados e constantes exemplos mostram que o

preconceito, o racismo vigem entre nós — em algumas ocasiões, conforme já

afirmado, pautado pela discrição; nesse quadrante, o racismo desumaniza e elimina

a compaixão que se presume existente nos homens, os quais, em geral, sequer

conseguem manifestar os sentimentos mais nobres do ser humano quando as

“vítimas” não são seus iguais. Então, num breve aparte, torna-se cabível, diante de

tal tessitura, externar o raciocínio de um dos mais famosos e influentes filósofos

alemães do pós-guerra, Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt, segundo

o qual o modernismo político é o responsável por acostumar a tratar igualmente

seres desiguais, em vez de tratá-los de modo desigual.

Page 28: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Outra prova cabal do acima exposto, emerge da recentíssima obra de

autoria de Alberto Carlos Almeida, a qual trata da percepção dos brasileiros em

relação à cor da derme; nela, o sociólogo pediu aos entrevistados que atribuíssem

qualidades ou defeitos a homens brancos, negros e pardos, retratados em fotos. Aos

brancos atribuíram-se qualitativos, tais como inteligência, honestidade e educação

— aliás, no que concerne aos negros, estes ficaram posicionados em segundo lugar

em dita “classificação” — e, quanto aos pardos, é fato que foram os mais

relacionados com características negativas. Nessa pesquisa, merece destaque,

pardos e negros são percebidos de modo mais negativo, justamente por continuar a

figurar em maior número (por causa de circunstâncias históricas) e na base da

pirâmide social, onde as oportunidades são escassas e a marginalidade é crescente.

A partir disso, Almeida refuta a tese de que, talvez, um dos grandes e sérios

problemas brasileiros seja o classismo; ao revés, para ele, possivelmente, seja o

preconceito racial. No livro em pauta, novos elementos acrescentam combustível à

discussão, a exemplo de cruzamentos específicos, como o que relaciona a cor da

pele a profissões de maior ou menor prestígio, sempre com vantagem para os

brancos.

Em continuidade ao sobredito, para muitos, o racismo decorre do classismo,

este, por sua vez, entendido como o preconceito declarado contra os pobres. Kamel

preconiza que o classismo trata da razão oculta por trás da maior parte das

manifestações racistas e, segundo ele, considerável número de ocorrências relativas

ao racismo se dão com negros que não são pobres. Nesse sentido, o ilustrativo

episódio acontecido com o dentista paulista, negro, Flávio Ferreira dos Santos,

assassinado em 2004, por policiais: o odontólogo morreu, em tese, devido ao

classismo, pois foi vitimado porque confundido com um pobre.

Page 29: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Aqui, abram-se parênteses quanto à hipótese respeitante ao classismo e

para uma peculiaridade censitária pátria (já mencionada anteriormente), haja vista

que qualquer brasileiro já leu, ou, ouviu frases com o seguinte conteúdo: no Brasil a

pobreza tem cor e ela é negra! Pois bem! A referida assertiva consta, com

freqüência, em trabalhos de pesquisadores que culpam o racismo pela situação de

penúria em que vivem os negros daqui. E mais: essa afirmação não encontra

dissonância nos números que divulgam tal fato de modo tão eloqüente, ainda que

seus dados sejam inexatos, pois de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) — que contradiz os pesquisadores — no País, os negros

totalizam 5,9% e não 48%, os brancos compõem 51,4% da população e os pardos

(omitidos na contagem dos estudiosos) são 42% dos nacionais. Entre os 56,8

milhões de pobres, os brancos são 34,2% (cerca de 19 milhões de brasileiros), os

pardos são 58,7% e os negros, tão-somente, 7,1%. Dessa feita, consoante diz

Kamel, se a pobreza tem cor no Brasil, ela é parda! Assim, equivocadamente, os

supracitados pesquisadores tornam sua realidade mais favorável, uma vez que

praticam uma condenável rotina acadêmica a partir da somatória de negros e pardos

pobres, atingindo, por conseguinte, o percentual alto e irreal de 65,8% — Pesquisa

Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), datada de 2004. Em seus dados, eles

estratificam a população entre brancos, pretos (negros), pardos, amarelos e

indígenas para, na seqüência, agrupar pretos e pardos e chamá-los todos de negros

(justificados pela idéia de que ambos os grupos apresentam desempenho em tudo

semelhante aos em variados indicadores sociais e compartilham idêntico perfil

socieconômico), rotulando-os em uma única embalagem. Aliás, é só dessa maneira

que se confirma a já recorrente informação de que o Brasil tem a maior população

negra depois da Nigéria, informação ampla e retumbantemente relembrada em

Page 30: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

discursos do atual presidente da República em suas viagens internacionais ou

quando faz referência direta a ações afirmativas de cunho racial. Além disso,

enfatize-se, essa prática foi herdada da metodologia aplicada pela sociologia dos

anos 50, que, como se vê, ainda permanece em uso, conquanto errada, já que

existe uma ideação cabal sobre o tema: todos aqueles que não são brancos, são

negros!

Nesse passo, desafortunadamente, mais um informe que deve ser agregado

ao temário é o de que aqui o preconceito racial contamina diversos movimentos

sociais, sindicais e partidos de esquerda que, quando não são contaminados, ficam

insensíveis à causa e utilizam os negros para outros interesses pré-determinados.

O Estado e a teia social brasileira não podem mais fazer vistas grossas a

fatos concretos e alarmantes relacionados ao racismo. Então, se municípios,

estados, União, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e demais órgãos estatais e

empresas privadas deixarem de pôr em marcha políticas efetivas de combate à

desigualdade racial, certamente incorrerão em inconstitucionalidade, porquanto

estarão descumprindo os objetivos fundamentais contidos no artigo 3º. da Lei Maior,

no que concerne a edificar uma sociedade livre e igualitária, com progresso social,

destituída de qualquer ranço discriminatório — isso, ainda que já esteja provado que

políticas universalistas, no mais das vezes, são insuficientes, embora necessárias, à

eliminação das diferenças que decorrem do preconceito, do racismo.

A Constituição da República de 1988 soube repudiar a marginalização do

negro, tipificando o racismo como delito em seu artigo 5º., inciso XLII — talvez, na

busca de concretizar o sonho de que, mediante correta e ampla aplicação da lei,

depois de um histórico sombrio para com os escravos, a sociedade brasileira se

tornasse mais humana e balizada por ideais de justiça social; tampouco, no mesmo

Page 31: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

artigo, a Carta Magna ignorou o princípio da igualdade (formal e material), ademais

de cumprir, pelo menos no papel, a principiologia da dignidade humana e da

cidadania — consoante os objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil, quais sejam: a construção de uma sociedade liberta, justa e solidária, urdida

na redução das desigualdades sociais e regionais, com a promoção do bem de

todos (artigo 3º., I, III e IV, do citado Diploma).

Ainda assim, no País, há distintas formas de discriminação racial, velada ou

ostensiva, um grave obstáculo ao exercício do direito à igualdade, em que há franco

desprezo pelo pressuposto metodológico proposto pelo jurista e doutrinador

austríaco Hans Kelsen acerca da rígida separação entre o mundo do ser e o do

dever-ser. Destarte, os negros têm de lutar contra tudo aquilo que está sedimentado

e que, quase inconscientemente, é posto em circulação em nossa sociedade; logo, a

cidadania deve ser plena, indistinta para todos: negros, brancos, favelados, ricos e

pobres.

De outra sorte, ordinariamente, é a Lei nº. 7.716, datada de 5 de janeiro de

1989, que define os crimes de preconceito racial. Tal norma proíbe, entre outras

coisas, impedir o acesso de pessoas a locais públicos ou particulares, tendo como

motivo a cor ou etnia. Ofender alguém com palavras racistas também é delito — a

punição varia de um a cinco anos de prisão.

O racismo não é um crime fácil de comprovar e, para complicar esta

assertiva, eis que por muito tempo o Brasil passou a imagem de paraíso da inclusão

racial; isso, em especial, porque o País nunca foi palco de conflitos e manifestações

racistas como os promovidos pelo regime apartheid na África do Sul ou teve

organizações com a magnitude da Klu Klux Klan, ainda atuante nos Estados Unidos,

ao lado de outros grupos racistas que defendem a supremacia branca explicitamente

Page 32: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

— a exemplo daqueles que se tatuam com teias de aranha, símbolo de adeptos de

mencionada ideologia. Na verdade, episódios conflitantes podem não ter acontecido

de forma tão violenta entre nós, todavia, é inegável, a discriminação no tocante à

raça se afigura como um ingrediente incrustrado socialmente no Brasil — que

emerge não apenas em piadas, mas até no simples e puro desprezo presente nas

relações pessoais e profissionais.

No dia-a-dia, na luta por trabalho, postos de subemprego tradicionalmente

ocupados pelos negros têm sido alvo de acirrada disputa, isto, devido ao crescente

número de desempregados; destarte, na batalha pela sobrevivência, é comum que

afro-descendentes não encontrem outro caminho para trilhar, senão o da

indignidade. Em face do expendido, deflui-se que o Brasil — ”pentacampeão”

também nas desigualdades sociais —, encontra na figura do negro grande parte de

sua força laboral, mas força-o a sobreviver sob condições desumanas. Então, eis

que o negro, uma vez empregado acaba por obter rendimentos inferiores aos

percebidos pelo branco e é associado ao labor de pouca qualificação; por

conseguinte, a ilação de que a cor atua como fator determinante sob o ponto de

vista laboral, sobrepondo-se aos aspectos qualificação e formação.

Quanto à educação, em 1992, um relatório sobre Direitos Humanos

realizado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) revelou que o

analfabetismo entre os negros guarda relação com a sua falta de acesso à educação

formal e que o problema da abstenção escolar das crianças negras é ordinário, já

que elas são obrigadas a deixar de estudar para fazer frente ao sustento familiar.

Em relatório mais amplo divulgado pelo Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD), analisaram-se as desigualdades raciais em áreas como

renda, educação, habitação e emprego e, no que tange ao acesso ao ensino

Page 33: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

superior (população de 18 a 24 anos, matriculada na universidade, por cor/raça em

%), tem-se que no Brasil, brancos em 1991 constituíam 7,0 dos universitários e

negros, apenas, 1,4 dos acadêmicos; como contraponto, em 2000, contabilizou-se

11,7 brancos nas universidades enquanto só 2,5 negros freqüentavam o ensino

terciário. Em que pese os índices nacionais terem melhorado sensivelmente, eis que

os afro-brasileiros estudam menos que os brancos. Os negros permanecem, em

média, 2,1 anos a menos do que os brancos nas salas de aula. No entendimento

expendido por Nivaldo dos Santos Arruda, os índices gerais e desestimulantes

apresentados pelo PNUD só podem ser revertidos de uma maneira: “Nossa atenção

está voltada para a educação. É o meio mais eficaz de conseguirmos um resultado

de inclusão do negro na sociedade”8.

E mais: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (baseado na

Pesquisa Mensal de Empregos) a respeito da desigualdade de raças, quanto mais

anos de estudos, maior a vantagem salarial sobre negros e pardos. Aliás, o

desequilíbrio em tela se agiganta quando considera brasileiros negros e pardos com

formação superior, que ganham, em média, 48% a menos que os brancos, ainda

que o estudo não identifique o tipo de curso, tampouco a qualidade dos

entrevistados – misturam-se profissionais formados em carreiras mais prestigiadas

ou não e em cursos de maior ou menor qualidade. Tal pesquisa constata igualmente

que, conquanto a escolaridade seja o passaporte para ingressar no mercado de

trabalho, o processo histórico de exclusão social do qual o negro é vítima funciona

como determinante na remuneração dos trabalhadores.

O fosso existente entre brancos e negros é persistente e deveras profundo;

assim, quando o PNUD faz verificações referentes ao Índice de Desenvolvimento

8 AUMENTA O FOSSO ENTRE NEGROS E BRANCOS : RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO CLASSIFICA A DEMOCRACIA RACIAL NO PAÍS COMO UM “MITO”, Gazeta do Povo, Curitiba, 19/11/05.

Page 34: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Humano (IDH) e considera os estados da federação, eis que são obtidos, de regra,

informes escandalosos, tais como o exemplo de que os negros das Alagoas vivem

em idêntica precariedade à vivenciada pela população da Nanímbia. Neste século, o

Brasil dos negros é distinto do Brasil dos brancos: naquele, a situação geral

experimentada por indivíduos de cor negra ou parda aproxima-se da realidade

vigente em países muito pobres, a exemplo do Vietnã e da Bolívia; já o Brasil

“branco” contemporâneo, no quesito qualidade de vida, apresenta similaridade com

nações européias relativamente desenvolvidas, tais como Letônia e Bulgária.

E, do exposto, emergem perguntas simples, que atreladas à

contemporaneidade, têm respostas pouco edificantes quanto à inserção do negro na

teia social brasileira, quais sejam: Quantos professores negros as universidades têm

em seu quadro docente? Quantos chefes de estado, ministros, secretários de

estado, governantes, são negros? Qual é a porcentagem de negros que integram a

alta sociedade e que não obtiveram sua ascensão vinculada ao entretenimento, a

exemplo da música, dos esportes ou da televisão? Com efeito, é natural crer que:

“Enquanto os leões não puderem contar a sua história, a história será sempre a dos

caçadores” — (provérbio africano).

Page 35: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

4. A SOCIOLOGIA DO NEGRO NO BRASIL

Aqui, nas primeiras décadas do século passado, o pensamento quase que

unânime nas ciências sociais (apesar de racista), reconhecia que o Brasil era fruto

da miscigenação. O racismo decorria justamente dessa constatação: para que o

País progredisse, diziam os sociólogos, era preciso que embranquecesse,

diminuindo a porção de sangue negro que corria nas veias de nosso povo. Foi o

sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) quem mais se destacou em se contrapor a tal

pensamento abjeto; Freyre pode ser apontado como o pioneiro no combate a um

raciocínio tão perverso. O ilustre pernambucano Freyre mostrou que as culturas e

não as diferenças raciais eram os fatores decisivos nos processos civilizatórios.

É oportuno consignar que Freyre, sempre atendo à realidade nacional, não

foi o autor do conceito de “democracia racial”, tampouco cunhou o uso desta

expressão, hoje deveras combatida. Aliás, o entendimento freyreano era avesso à

referida conceituação, porque a sua visão sobre essa realidade era a da mestiçagem

e não a do convívio sem conflito entre raças estanques. É certo, Freyre utilizou a

expressão, uma ou duas vezes, em discursos, mas sempre como sinônima de um

molde em que a miscigenação prevalecia. Gilberto Freyre nunca edulcorou a

escravidão e não omitiu nada: ao revés, expôs!

Para muitos, o papel desempenhado pelo festejado Freyre, foi outro: ao

relacionar os tópicos negritude e pensamento reinante na época, ele resgatou o

valor do negro no que diz respeito à construção da identidade nacional. A maioria

dos brasileiros crê que o sociólogo em apreço enalteceu a figura do negro, dando a

ela a sua verdadeira dimensão, a sua real importância.

Page 36: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Nesse passo, cabe rememorar aqui o comento de que “Casa-Grande &

Senzala”, em seu lançamento, foi recebido de modo entusiástico nos meios

acadêmicos, para nos anos 60 ser entendido como uma apologia à escravatura no

País.

Na atualidade, eis que o Movimento Negro deprecia Gilberto Freyre: tais

ataques, para Kamel, decorrem de uma leitura apressada, despojada de reflexão,

marcada pela ausência de lucidez.

Destarte, não são poucos os que defendem a ideação de que a supracitada

ideologia da democracia racial sobrevive há décadas entre nós não unicamente pelo

seu potencial argumentativo, mas porque há verbas estatais para reproduzir os

quadros intelectuais que a disseminam; as mencionadas verbas destinam-se a

mestrandos, doutorandos e para professores que estejam dispostos a escrever

sobre o tema. Com efeito, Gilberto Freyre é presença constante em nosso meio não

só pela sua “genialidade”, mas, sobremodo, por um esforço inaudito do Estado.

Interessa à elite branca racista, a qual detém o controle estatal, que a população

brasileira acredite viver num País racialmente integrado, ainda que todas as

evidências neste sentido sejam contrárias. Entrementes, se faz necessário apontar

serem os autores que assinam esses inúmeros ensaios, invariavelmente, brancos. E

então, vale perguntar: Qual intelectual ou acadêmico negro escreveu a favor da

integração racial proposta por Gilberto Freyre?

Em continuidade ao raciocínio urdido acima, a argumentação Freyre não foi

desmascarada pela elite brasileira porque inexiste interesse nisto, mas, na sua

perpetuação. Os argumentos freyreanos representam a vitória do sofisma sobre os

dados empíricos, da apologia divulgada sobre a denúncia censurada. Freyre

pugnava que nenhuma raça era inferior e, por isto, a mestiçagem, para ele, consistia

Page 37: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

em vantagem; demais disso, ardilosamente, ele desviou a denúncia contra o racismo

social imperante para a discussão humanista que colocava de um lado, aqueles que

sustentavam a superioridade da raça ariana (Gobineau, Euclides da Cunha, dentre

muitos) e, de outro, os iluminados pela Antropologia, os quais enfatizavam a

inexistência de desigualdade entre as raças. Dessa forma, o autor em foco fez o

favor de desautorizar a formação de um discurso que denunciasse o massacre

específico dos negros brasileiros. A ideologia freyreana implicou, também, na

desautorização da identidade negra, ou seja, quem detém o poder econômico e

social (branco) desautoriza a identidade com que o discriminado se apresenta

(negro). É com a “morenidade” de Freyre que o branco se livra da responsabilidade

de assumir os privilégios que adquiriu ilicitamente, graças a sua “brancura”. No

Brasil, isso se dá na medida em que o racismo opera em nosso quotidiano, favorece

brancos com algum capital (social, econômico, cultural) distribuído desigualmente,

segundo critérios raciais, a exemplo do tempo menor de espera para ser atendido no

espaço público, devido a uma carta de recomendação. Ainda que não existam raças

no sentido biológico do termo, a representação social da diferença é racializada

fenotipicamente. Freyre repudiou a presença de ideologias de negritude entre os

brasileiros, impediu que os negros afirmassem sua verdadeira identidade E, pior:

Freyre chegou a escrever à Organização das Nações Unidas (ONU) e sugeriu que o

País era modelo para o mundo no campo das relações raciais harmônicas. Assim,

Freyre, ao lado de intelectuais como Jorge Amado e Darcy Ribeiro, “brancos-sem-

cor”, pugnaram a favor da “morenidade” nacional - instrumento pelo qual o negro

perdeu o seu crédito reivindicatório (que data de um século de discriminação e

desigualdade) e deram ao branco, o direito de cancelar, automaticamente, sua

dívida.

Page 38: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

A partir de 1950, “nossa” sociologia começou a abandonar esse tipo de

raciocínio para começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo para

chegar aos que hoje fatiam o País entre brancos e negros, afiançando que negro é o

indivíduo que não é branco. Para a corrente de sociólogos formada por Florestan

Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e Carlos Hasenbalg, se a

idéia era “fazer ciência”, o resultado sempre foi uma ciência engajada, a favor dos

negros explorados contra brancos racistas. O papel a ser encenado pela ciência

“para o bem dos negros”, seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e

substituindo-a pela realidade racista. Tal mentalidade levava, porém, ao paradoxo de

permitir a suposição de que um racismo explícito é melhor do que um racismo

envergonhado, esquecendo-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto este,

normalmente, deixa de oprimir pelo pudor. A chave metodológica encontrada por

essa sociologia foi importar dos Estados Unidos da América uma terminologia que

não se identificava conosco, revestindo-a de uma nova roupagem.

Na construção de Oracy Nogueira, aqui como lá, há negros e brancos, mas

para os estadunidenses o racismo é de origem (demarcado pela ascendência) e

para nós é de marca (determinado pela aparência). Nos Estados Unidos da América

se um cidadão de pele branca e olhos e cabelos claros tiver um negro como

antepassado — por distante que seja — toda a carga de preconceitos e interdições

contra os negros, como um todo, recairá sobre ele. Já para os brasileiros mais vale a

aparência do que a origem: um cidadão de pele, olhos e cabelos claros, mesmo

tendo negros na família, será muito mais aceito do que os negros em geral – mas,

na visão de Oracy, isto, apenas até que ocorra um briga, quando, então, o primeiro

xingamento a surgir na cabeça do branco será chamar o negro de “seu negro isso,

seu negro aquilo”. Para Oracy, teórica e didaticamente, tem-se que onde é possível

Page 39: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

detectar o preconceito de origem, o negro é excluído de certos direitos, segregado,

não pode cultivar relações de amizade com brancos, e, de conseqüência, é

consciente do preconceito que recai sobre si e, assim, mais propenso a lutar como

grupo pela extinção de injustiças; contrariamente, se o preconceito é de marca, o

negro é mais preterido do que excluído — mas pode vir a ser aceito como igual, a

título de exceção —, sua pessoa é assimilada (tenderia a desaparecer pela

miscigenação), pode cruzar as fronteiras da cor no estabelecimento de relações de

amizade, e, por conseguinte, é menos consciente quanto a atitudes preconceituosas

e menos disposto a lutar grupalmente pelos seus direitos. Nessa perspectiva, as

nossas especificidades são olvidadas e, para Oracy, socialmente, os brasileiros são

tão racistas quanto os estadunidenses. Eis que, então, existe pertinência em se

indagar: Por que, ao reconhecer que no Brasil há relações de amizade inter-raciais,

casamentos mistos, inexistência (em tese) de barreiras institucionais contra negros,

ausência de conflito e de consciência de raça, Oracy optou por edificar uma

engenhosa diferenciação e afastou a ideação de que não somos uma sociedade na

qual o racismo figura como traço dominante?

Kamel, por seu turno, tem o racismo, de lá e cá, como de origem. Lá, um

sujeito de pele e olhos claros será considerado negro se a sua ascendência for

conhecida, já que os americanos ainda não têm o dom da vidência: se esconder a

origem, sua negritude passará incólume. No Brasil, um homem branco proveniente

de família negra não será alvo das agruras do racismo, caso as suas origens não

forem descobertas por um racista; no entanto, se forem, a história muda de foco. Na

ótica de Ali Kamel, entre os norte-americanos o racismo é rotineiramente mais duro,

explícito e direto. O repúdio que grassa no seio da sociedade estadunidense para

com os negros é total; em nosso meio, quase todos, mesmo os racistas, encantam-

Page 40: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

se, por exemplo, com tudo o que provém do continente africano e é possível

asseverar que, neste aspecto, os brasileiros são mais amenos.

Kamel destaca que o Movimento Negro abraçou, no final dos anos 70, uma

sociologia que prega ser o brasileiro racista e apesar das distinções supracitadas, a

propagação de tal ideal foi propícia à instalação, em nosso ambiente, da importação

acrítica de um remédio americano para um problema americano; hoje em dia,

inclusive, eis que essa ideação ganha ares de “verdade oficial”.

Fernando Henrique Cardoso (FHC) — segundo se tem notícia, imbuído das

melhores intenções —, avançou com êxito em nossa remodelagem como uma

nação bicolor, de negros e brancos, em que os últimos oprimem os primeiros. Cabe,

então, relembrar que em 1994, deu-se um episódio famoso e tragicômico, no início

de sua campanha eleitoral. Em resposta a Orestes Quércia, ex-governador de São

Paulo e seu oponente à presidência da República, que o acusara de ter as “mãos

brancas”, um eufemismo empregado para acusá-lo de nunca ter trabalhado, o então

candidato Fernando Henrique declarou que tinha as mãos mulatas, um “pé na

cozinha” e que não era preconceituoso. A ironia contida nessa declaração é que

FHC, para si próprio um branco, parecia discordar de Oracy Nogueira e demonstrar,

que, no Brasil, é a origem e não a marca que define a “raça”. Tal assertiva de

Fernando Henrique desagradou profundamente o Movimento Negro, que ameaçou

processá-lo por considerar os termos em que se expressou “pejorativos” e

“preconceituosos”. “Só se ele é filho de mula. Mulatinho é o cruzamento com mula,

não com negro”9, contra-atacou Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra.

Destarte, numa das muitas afirmações feitas em sua admirável trajetória

política e intelectual, FHC salientou que os estudos mostrariam que as nossas

9 KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. 2ª. impressão. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 2006, p. 24.

Page 41: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

desigualdades sociais carecem de uma explicação centrada apenas na

miserabilidade; segundo sua opinião, tais desigualdades estão fulcradas, também,

no aspecto racial. O ex-presidente em questão, autor de livros específicos sobre cor

e raça foi quem iniciou a moldagem institucional do Brasil bicolor. À época e na visão

de FHC, era preciso que se avançasse, cada vez mais, em políticas que

garantissem a inclusão da população negra. Aliás, oportunamente, rememore-se

que em seus trabalhos de juventude, a “mistura”, ou melhor, “o gosto pela mistura”

não foi sequer mencionado: nas sociedades que estudou, só havia espaço para

brancos explorando negros e mestiços, cada qual guardando seu status quo. FHC

repudiava a hipótese de que o preconceito fosse direcionado ao pobre em geral e

não especificamente contra o negro; e mais: observe-se que sua produção literária

abordou o problema educacional vivenciado pelos negros de modo deveras

superficial.

Em tal contextura, entre acertos e desacertos presidenciais, FHC tornou-se

emblemático, na medida em que propiciou aos negros algumas chances no tocante

a serem inseridos na teia social brasileira, sem que se esqueça, entrementes, que,

conforme demonstra o seu passado literário, foi dado azo a algumas impropriedades

na área, as quais deveriam ser revistas, mas nunca estendidas ao Estatuto da

Igualdade Racial, documento ora em trâmite no Congresso Nacional e cujo teor é

altamente discriminatório.

Em 1995, Fernando Henrique criou o Grupo de Trabalho Interministerial para

a Valorização da População Negra, o qual era composto por representantes da

comunidade afro-brasileira e, significativamente, em 13 de maio de 1996, lançou o

Programa Nacional de Direitos Humanos, que continha em seu bojo ações mais do

que pertinentes para combater o racismo. Por sorte, muitas das determinações

Page 42: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

estipuladas por FHC naquele período se esvaziaram, outras propostas demoraram a

sair do papel e algumas tantas se concretizaram, motivação pela qual se tem a

presente exposição, voltada ao aperfeiçoamento na concessão de cotas raciais e

dotada de sugestões de caráter positivo quanto às cotas preferenciais. Não se

contesta, Fernando Henrique Cardoso contribuiu sobremaneira para que mazelas

que afligem os negros não mais fossem atribuídas à pobreza, mas ao preconceito e

ao racismo vigorante entre os brasileiros. Mas, cumpre anotar que FHC jamais

propôs formalmente ao Congresso a adoção de cotas para negros em

universidades; ele tão-somente expressou apoio, mas não especificou quais

políticas afirmativas deveriam ser adotadas nesse campo.

Em 2001, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi a primeira

instituição pública de ensino superior no País a adotar o sistema de quotas, no que

foi seguida pela Universidade de Brasília, Universidade Estadual do Mato Grosso do

Sul, Universidade Estadual da Bahia.

O sistema de cotas raciais nas universidades, uma promessa de campanha

do presidente Lula, deu prosseguimento à programação de ações afirmativas

iniciadas no governo tucano. Conquanto já encampada por significativa parcela de

nossas universidades, a lei que regulamenta dita sistemática de cotas ainda espera

a aprovação do Congresso Nacional; junto com ela, segundo Ali Kamel, outra norma

temerária, que institucionaliza o cisma racial no País, igualmente, aguarda

aprovação para vigorar entre nós: o pré-falado Estatuto da Igualdade Racial. Caso

ambos os projetos sejam aprovados, metade das vagas nas universidades federais

terá de ser preenchida por negros. Para Kamel, o mérito acadêmico ficará relegado

ao segundo plano. Em vigorosa contestação, Kamel alega que a legislação referente

às cotas e ao estatuto racial são monstruosidades jurídicas que atropelam a

Page 43: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Constituição da República – ao tratar os negros e brancos de forma não paritária –,

ademais de oficializarem o racismo nacional. Aliás, um dos disparates contidos no

supracitado Estatuto, está inserto no artigo 14, que pressupõe a existência de

doenças raciais (idéia já apresentada como descartada no Capítulo referente à

Raça, uma vez que toda a evidência científica sobre a matéria prova o contrário).

Além do supramencionado dispositivo, existe outro que interessa, e muito, à futura

população negra acadêmica: o artigo 62 do Diploma em destaque contém a previsão

de que as cotas a serem utilizadas no serviço público aumentarão, até que se

alcance o correspondente à estrutura de distribuição racial no País; então, pergunta-

se o seguinte: De que modo as nossas empresas privadas serão incentivadas a

contratar, preferencialmente, negros? Por intermédio de imposição a empresas

fornecedoras de bens e serviços do setor público para que adotem programas de

igualdade racial? Demais da má interpretação legal que já ocorre na adoção de

cotas raciais no serviço público, que embustes, estratégias serão criados por

empresários para boicotar, burlar, tão desastrosa exigência em seu meio?

Então, em suma, eis que a atuação do governo Lula quanto aos negros

configura-se tão-só como conseqüência de um contexto pré-existente; foi a atual

gestão petista que criou a Secretaria da Igualdade Racial, viabilizou o projeto que

torna obrigatória a política de cotas nas universidades federais, lançou as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, deu respaldo ao Estatuto da

Igualdade Racial (que, em alguns pontos, radicaliza, sobremodo, as relações entre

os cidadãos e o Estado brasileiro).

Page 44: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

5. COTAS

As políticas de ação afirmativa, inclusive, as referentes às reservas raciais,

têm sido implementadas por várias nações; elas são levadas avante com o fito de

atender diferentes segmentos populacionais que, por razões históricas, culturais,

religiosas ou de racismo e discriminação, foram prejudicados em sua inserção social

e participação igualitária no desenvolvimento de países. Consta do elenco daqueles

que abraçaram a sistemática de cotas: Inglaterra, Canadá, Colômbia, Alemanha,

Austrália, Nova Zelândia, Israel, Alemanha, África do Sul, Malásia, entre outros.

Em geral, as quotas são utilizadas para reparar, junto aos descendentes,

discriminações consideradas odiosas, que inibiram o progresso socieconômico de

gerações passadas de determinados grupos sociais.

As cotas surgiram na Índia em 1949 (a título de política estatal) e foram

previstas para durarem 10 anos; não obstante, elas existem até hoje. De início, as

cotas indianas eram destinadas aos chamados intocáveis (16% da população) e a

8% de membros de tribos fora do sistema de castas. Recentemente, a Índia

anunciou que vai enviar para o seu Parlamento um projeto de lei que dobra

quantidade de vagas destinadas às minorias no sistema de cotas para universidades

federais. Segundo tal projeto, quase metade das vagas nas faculdades

profissionalizantes públicas será direcionada às castas mais baixas e às classes

tidas como “tradicionalmente desfavorecidas”. Na atualidade, 22,5% das vagas nas

faculdades são reservadas para os dalits (intocáveis) e a estudantes tribais. De

acordo com o novo projeto, o número de vagas sob reserva aumentará para 49,5%.

Nesse panorama e como contraponto, a Índia é um dos países que mais nos

causam inveja em termos de crescimento econômico e desenvolvimento

Page 45: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

tecnológico. Provavelmente, parte essencial dessa perfomance se deva ao

investimento efetivo que ela faz em seus recursos humanos, pela educação. Mas

nada disso impediu que lá, há pouco, se registrasse uma cizânia quanto à adoção

de cotas especiais para eunucos, haja vista que, por definição, estes não geram

descendência — então, eis aí um exemplo de má utilização de cotas. E o mais

bizarro: nesse panorama, 63% dos indianos intocáveis continuam analfabetos, além

de que restou consignado que inúmeras atrocidades perpetradas contra eles

quadruplicou nos anos 90 em comparação à década de 80.

No Sri Lanka — que decidiu adotar políticas “de preferência étnica” — e na

Nigéria (adotante das cotas de preferência racial), por exemplo, houve o registro de

trágicas guerras civis.

A inspiração para a adoção das cotas “raciais” é proveniente dos Estados

Unidos da América. Lá, uma secular história de discriminação dos negros foi

amenizada pela integração forçada nas escolas e nos locais de trabalho. Ali Kamel

volta à carga quando explica que nunca houve nada parecido no Brasil e tampouco

existem aqui guetos destinados a negros. O autor em tela também entende que,

enquanto em alguns estados norte-americanos o casamento entre brancos e negros

era proibido, no Brasil sempre foi um fato cotidiano (ou quase normal), que não

causa nenhuma atenção; para ele, aqueles que acreditam ser a problemática racial

do País semelhante à estadunidense, por certo desconhecem os elogios tecidos à

nossa democracia racial, feitos por numerosos autores negros lá nascidos. Outro

disparate verificado na atualidade com relação ao aceite de cotas nos Estados

Unidos da América dá-se pelo fato destes possuírem o maior conjunto de cotistas

mulheres que, sob quaisquer hipóteses, configuram uma minoria. E, anote-se: lá, os

Page 46: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

conflitos raciais cresceram a partir de 1970, ano de adoção das cotas, sendo que a

Lei de Direitos Civis (garantidora da igualdade racial) data de 1964.

Uma conclusão interessante referente à instituição de cotas aponta que o

indivíduo que sabe mais e apresenta mínima superioridade econômica e/ou de

recursos, conquanto pertença a uma minoria discriminada, terá mais chances do que

aqueles que servem de base à pirâmide social.

Eis que toda essa generalidade de casos confirma o mau uso das cotas,

pois trata de exemplos que não devem ser seguidos aqui, assim como é preciso

afastar relativamente de nosso convívio — como ferramenta (importada) redutora de

exclusão — as políticas chamadas de universais (pelo menos quanto a negros),

posto que elas, com certeza, não trarão as mudanças substanciais tão almejadas e

necessárias a esta população específica; outrossim, oxalá essas ocorrências nos

sirvam de ensinamento, a fim de que não se cometam os mesmos enganos. Na

realidade, o que se pretende com o acima exposto é alertar os brasileiros para que

não se dêem ao luxo de errar, ignorando a experiência internacional no que tange à

temática, sob pena de caminhar conscientemente para um desastre sem

precedentes.

Por isso, entre prós e contras quanto às cotas, o manifesto representativo de

grupo favorável ao Estatuto da Igualdade Racial, que contou com a adesão e o

endosso de Augusto Boal; sob a ótica desse afamado diretor teatral, a situação

educacional dos afro-descendentes no Brasil é pior do que a dos negros sul-

africanos, à época da segregação racial. Para Boal, uma das principais formas de

reverter tal quadro consiste na aceitação do sistema de cotas nas universidades.

Todavia, entendimento discrepante foi exposto por José Jorge de Carvalho,

antropólogo da Universidade de Brasília: “Racismo é o que temos agora. As ações

Page 47: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

afirmativas querem apenas promover o acesso dos afro-descendentes aos

benefícios previstos para todos.” 10

Aqui, por sorte, projetos nesse âmbito, em sua maioria, prevêem que a

durabilidade das cotas será temporária. Pois, então, que sejam! É salutar que as

quotas tenham data pré-estabelecida para uso, dentre outros regramentos

garantidores de justa e bastante inserção da comunidade afro-descendente no

ensino superior, posto que este mecanismo não pode se tornar alavanca eleitoral de

políticos mal-intencionados, nem criador de crescente desconforto na teia social

brasileira. Dentre as injustiças que vicejam em nosso território (forjado à sombra da

escravidão africana), comprometendo não só sua vitalidade, mas adiando o seu

crescimento, nenhuma parece mais constante do que a racial; é flagrante a

sensação de que não se conseguiu romper com a metástase desse câncer, que

enfraquece a nossa sociedade.

Enfim, do até então relatado, aclara-se que a adoção das cotas raciais

mostra a nossa atração pelas aparências conciliadoras e imitações, ou seja,

evidencia-se certo empenho quanto à aprovação desta pseudo-solução. E mais: é

preciso ter em mente que as impropriedades balizadoras da sobredita adoção

repousam em duas razões: 1) a primeira delas, é que as quotas reproduzem uma

tendência dos Estados Unidos da América para tratar a justiça racial como espécie

de preliminar, divorciada da justiça social. Nessa perspectiva, cumpre salientar que o

cenário vislumbrado pelos nacionais é ainda mais inapropriado para tal separação

do que aquele vigente entre os norte-americanos, pois com essa idéia pouco

louvável de reservas raciais posta em prática do jeito que está (sem mudanças), em

breve, é possível vaticinar um resultado previsível: a promoção e simultânea

10 PARA GRUPO PRÓ-COTAS, MELHOR SOLUÇÃO SÃO AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Folha de São Paulo, São Paulo, 7/7/06.

Page 48: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

estigmatização da elite afro-brasileira! E, a partir desse raciocínio, é quase certo que

a elite “negra”, no porvir, ao se intitular representante da massa de gente oprimida

pela cor, acabará — com base nos experimentos de outras nações — por colocar à

prova, tão-somente, a si própria. Por conseguinte, a “massa negra” continuará onde

sempre esteve, ou seja, no limbo. E, destarte, elementar deduzir que o resíduo de tal

exercício será a confirmação íntima do preconceito ou racismo, ofuscado pela

hipocrisia, na qual, cotidianamente, se especializam os nossos quadros dirigentes. O

fiasco pode ficar maior ainda quando se aplicar o critério da “auto-identificação”

como negro, com a finalidade de se fazer jus a benefícios — quesito quase

inevitável, dada à miscigenação racial reinante na população trabalhadora brasileira;

2) demais disso, num segundo momento e de acordo a alegação feita por muitos, o

regime de cotas é inservível no Brasil: ele é e deve ser tido como inconstitucional,

fere qualquer entendimento contemporâneo plausível no que concerne à igualdade

perante a lei; na verdade, ele só poderia ser instituído por iniciativa constitucional —

assim como aconteceu na Índia para libertar os “intocáveis” — e, por isto, constitui

brecha suficiente para que brasileiros “inconformados” formulem ações diretas de

inconstitucionalidade dirigidas ao Supremo Tribunal Federal. Aduza-se também que,

atualmente, nos Estados Unidos da América, as cotas “sofrem” sérias restrições

impostas pelo Judiciário e são consideradas, em sua literal acepção, apenas pelos

adversários de políticas de “ações afirmativas”; quanto a esse último ponto crucial,

no País, basta vontade para regularizá-las!

Alternativa, talvez, eficaz e justa, na opinião de alguns, fosse cercar

estudantes de adequado apoio financeiro e de estímulos intelectuais extraordinários,

proporcionando-lhes a culminância da formação, dentro e fora do Brasil, uma vez

que a maioria dos beneficiados seria automaticamente de cor — algo, a cada dia,

Page 49: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

mais palpável, graças à adoção das quotas raciais, bem assim diante de uma

provável aceitação de das reservas preferenciais. Segundo tal ideação, a contra-elite

negra e pobre faria frente à elite branca de “herdeiros”, causando, assim, um

impacto transformador e imediato na sociedade pátria. Outra ferramenta subsidiária

de valia, em conformidade com os seguidores dessa linha de pensamento, seria

revigorar normas antidiscriminatórias, as quais acabariam com as suspeitas de

discriminação, ante a persistente ausência de negros em organizações públicas ou

privadas e nas universidades públicas do País.

Entre os brasileiros, as ações afirmativas “patinam” num debate que pode

ser definido como escapista, fundado na defesa de uma suposta “meritocracia”, a

qual esconde em seu bojo o desejo de permanência de um status quo que

historicamente produz privilégios, reproduz e amplia as desigualdades raciais,

ademais de retardar o desenvolvimento pátrio.

Para José Vicente, reitor da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares

(UNIPALMARES), uma referência no ensino superior voltado para negros, a política

de cotas utilizada nas universidades, empresas e serviços públicos é incapaz de

alterar o fato de que, no Brasil, um negro rico não se livra do racismo. Os avanços

ocorridos, se é que podem ser assim chamados, na opinião do reitor, traduzem-se

nas cotas, as quais resultam da preguiça de nossa intelectualidade em pensar numa

resolução aceitável para o problema do negro no Brasil: a universidade ainda não

digeriu o assunto! Vicente considera que o sistema de cotas raciais, de per si,

constitui uma engrenagem posta em movimento que tem incomodado muita gente,

posto que a temática da igualdade racial “ganhou” inusitada projeção; a exemplo

disso, a recente legislação pertinente que, agora, exige a implementação da história

do negro e da África nas redes de ensino (público e privada). Para o único reitor

Page 50: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

negro do Brasil, há uma esmagadora maioria de pessoas nas classes C, D e E

(pobres), mas, sob o seu ponto-de-vista, os obstáculos aumentam quando o

indivíduo é, além de pobre, negro. E, à guisa de respaldo, dentre suas impressões

pessoais, Vicente exemplifica que 90% dos espaços sociais são ocupados por não

negros. Por derradeiro, consigne-se uma sábia ilação do dirigente da

UNIPALMARES: utilizar-se das cotas, sob certas condições, não é um demérito,

porquanto seja necessária inteligência, ou, para se manter na universidade, ou, para

encerrá-la.

Em apreciação mais restrita quanto ao assunto em foco, sabe-se que no

Paraná, em 1995, a população negra alcançava o percentual de 1,6%; nessa

perspectiva, em 2005, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística estimou que

2,5% de negros viviam no Estado. Na opinião emitida pelo sociólogo Lindomar

Boneti, a detecção desse aumento pode ser mais um dado estatístico do que real,

pois, “A nossa sociedade evoluiu muito em relação às etnias, hoje, mais pessoas se

declaram negras sem receio”11. Entretanto, tais números também podem ser

explicados pelo aumento de indústrias e empresas no Paraná, fato que atraiu gente

de outros lugares.

No vestibular realizado em 2007 pela Universidade Federal do Paraná, a

quantidade de cotistas raciais aprovados foi ainda menor do que em 2006. Para as

entidades ligadas ao Movimento Negro, esse foi um indicador de que se faz

necessário intensificar, conscientizar a população negra do Estado com campanhas

que mostrem aos jovens ser possível ingressar no ensino superior. “A verdade é que

o negro não tem estímulo para tentar as cotas”12, afirma Paulo Borges, presidente da

Associação Cultural da Negritude e Ação Popular (ACNAP); de acordo com ele há

11 KOPPE, Jennifer. Quem somos nós? Gazeta do Povo, Curitiba, p. 7, 11/2/07.12 CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.

Page 51: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

resistência aos cotistas dentro do ambiente universitário. No entanto, Marcilene

Garcia de Souza, socióloga que preside o Instituto de Pesquisa da Afro-

Descendência (IPAD), acredita que a manifestação do preconceito acontece mais

cedo: “A maioria dos professores de ensino médio é contra as cotas para negros.

Num ambiente desses, como o jovem pode se sentir incentivado a ser cotista?”13

indaga. Marcilene opina que a universidade pode ir mais além, intensificando

campanhas publicitárias a respeito. Nessa trilha, o reitor da Universidade Federal do

Paraná, Carlos Augusto Moreira Júnior afiança que: “Fizemos uma série de ações

em escolas públicas, visitamos várias delas, e não só em Curitiba, fizemos uma

cartilha mostrando como se inscrever pelas cotas”14.

Novo empecilho às reservas raciais de acesso ao ensino superior diz

respeito ao fato de vários estudantes pardos desconhecerem seu direito de optar por

elas, pois temem serem barrados pela comissão que avalia os aprovados. Borges

esclarece que “Existem certos traços que são característicos do negro e, se o

candidato pardo tem esses traços, ele não precisa achar que será reprovado nessa

avaliação”15.

Diante desses fatos, representantes de entidades do Movimento Negro

fazem uma autocrítica e sugerem, inclusive, o aproveitamento de negros que já

sejam universitários e possam servir de exemplo para jovens estudantes do segundo

grau.

Oportunamente, uma alteração havida no edital do vestibular de 2008 da

Universidade Federal do Paraná pode mudar o destino de boa parte dos candidatos

do concurso, ou seja, a instituição abriu suas inscrições para o maior vestibular do

13 CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.14 CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.15 REALISMO NAS COTAS. Gazeta do Povo, Curitiba, 11/8/07, p. 14.

Page 52: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Estado com algumas mudanças no sistema de cotas, modificou as regras da

distribuição de vagas de inclusão racial e social. Aliás, é bom que se consigne, tal

modificação no regulamento do certame introduz uma dose adicional de realismo na

política de cotas de inclusão social e racial ora aplicada pela supradita instituição.

Esse aperfeiçoamento da política de inclusão adotada pela universidade em tela

valoriza a educação pública, que, para fazer frente à alteração concretizada, precisa,

agora, receber investimentos e esforços de melhoria por parte de toda a cadeia

envolvida, a começar pelos administradores públicos.

Até o exame vestibular de 2007, as vagas remanescentes (sobra) de cotas

sociais (de estudantes de escola pública) e, em particular, as raciais, eram,

automaticamente, repassadas para a concorrência geral. Hoje, as vagas reservadas

que não forem ocupadas serão transferidas, em princípio, para a outra modalidade

de cota e vice-versa. A mudança corrige distorções havidas em vestibulares

anteriores, quando vagas destinadas a estudantes afro-descendentes não chegaram

a ser preenchidas, enquanto sobravam candidatos habilitados, mas não

aproveitados, oriundos de outras áreas. No que pertine ao assunto, a pró-reitora de

graduação da Universidade Federal do Paraná, Rosana Albuquerque Sá Brito, diz

ainda o seguinte: “Fizemos essa alteração porque o nosso plano de metas não

estava cumprindo 100% a inclusão racial e social”16.

Para o reitor Carlos Augusto Moreira Júnior “A alteração já estava em fase

de estudo, desde 2005. Agora mudamos, na perspectiva de tornar a seleção mais

justa”17.

A notícia surpreendeu os vestibulandos, pois muitos deles desconheciam a

novidade e, alguns se mostraram apreensivos diante do citado regramento,

16 CABRAL, Themis. UFPR muda sistema de cotas para torná-lo eficiente, Gazeta do Povo, Curitiba, 16/8/2007.17 BINDER, Angelo. Mudança sutil e sem alarde, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 27/8/2007.

Page 53: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

doravante, em vigor. Então, fácil concluir que as cotas raciais utilizadas quanto ao

ingresso no ensino superior, independente da maneira como são administradas, e,

por mais que se façam alterações em prol de seu aproveitamento — conforme

intenta, agora, em atitude pioneira, a Universidade Federal do Paraná —, são

malvistas, rechaçadas; logo, de modo geral e longe de questionar os méritos

vinculados à questão, urge fazer tentativas inovadoras quanto ao seu

aperfeiçoamento e uso, bem como cumpre implementar medidas que favoreçam a

sua aceitação social.

Para relembrar, em 2004 a reserva destinada a alunos negros pela maior

universidade pública do Estado foi alvo de duras críticas, dentro e fora da instituição:

o temor maior era o de que os cotistas formassem um subsistema fragilizado, algo

que não aconteceu; superado esse ponto, sabe-se que permanecem inalterados os

conflitos relativos ao temário. Nesse aspecto, por sorte, até os peer effects (efeito

que os colegas têm sobre o desempenho de determinados alunos, objeto de franco

estudo apontado na literatura empírica educacional) foram, aparentemente,

relegados a um plano secundário

No juízo de Carlos Moreira, o percentual de evasão é um outro dado que

serve de referencial, pois a reitoria da Universidade Federal do Paraná, após dois

anos completos de curso, observou que a evasão de não-cotistas atinge 12,5%;

enquanto entre os cotistas raciais alcança o índice de 6% — resultado este que

autoriza que se pugne pela idéia das cotas preferenciais, posto que os cotistas

evadidos, dentre os vários problemas enfrentados, devem ter “sentido a falta” de

referenciais (docentes negros) que lhes ajudassem a enfrentar obstáculos. Mas do

exposto, no que tange à evasão, o consenso da reitoria é o de que os cotistas

valorizam sua conquista e desejam permanecer no ambiente universitário.

Page 54: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Em tempo: a comissão de avaliação de integração social e racial da

Universidade Federal do Paraná pleiteia junto ao Conselho Universitário uma

reavaliação do fator de aprovação da primeira fase do vestibular. O

supramencionado fator trata-se de um índice utilizado pela Comissão de Vestibular,

a fim de se estabelecer a quantidade de aprovados para a etapa seguinte; de acordo

com a procura por determinados cursos, tal índice, desde 2005, tem variado de 2

(dois) a 5 (cinco). A partir de um rápido prognóstico sobre essa revisão se obtém um

resultado que aparenta ser ruim, pois inexiste divisão de vagas baseada em cotas

na primeira fase do certame, sendo provável que tal cálculo se reverta em prejuízo

aos cotistas.

Page 55: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

6. COTAS PREFERENCIAIS

Na obra de Kamel, conforme pesquisa feita pelo Ministério da Educação, em

2003, entre os estudantes de nível superior que se submeteram ao chamado

“provão” promovido pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade),

os resultados surpreenderam quando 4,4% dos alunos de universidades federais se

declararam negros, sendo que a população negra estimada no País era, naquele

ano, de 5,9%. Já nas universidades estaduais os números declarados foram 5,5%.

Por sua vez, os pardos nas instituições federais totalizaram 30,3% e nas

universidades estaduais perfizeram 30,5%; à época, o quinhão de nacionais que se

declarou de cor parda atingia os 41,4%. Em 2004, com as mudanças introduzidas

pelo governo Lula no “provão”, dos formandos em universidades federais que

participaram do Exame Nacional de Estudantes, os negros eram 2,8% e os pardos,

25,6%; entre os negros iniciantes, a porcentagem alcançava 3,5% e no tocante aos

pardos, a parcela de universitários chegava a 23,7%. O único e substantivo

problema na crescente positividade visualizada por Kamel quanto ao assunto, é que

os dados estatísticos sob apreço deixaram de verificar os cursos freqüentados por

pretos e pardos, bem assim que em 2004 tal número censitário provavelmente

abrangeu instituições privadas, sem falar nas sempre presentes distorções

numéricas relativas às pesquisas oficiais.

Além disso, se a mentalidade do brasileiro não muda e tampouco acontece

uma inserção quase que maciça de negros e de pardos nas universidades (isto, de

forma planejada e, se possível, segundo os parâmetros aventados neste estudo, por

exemplo), o calvário desta fatia populacional continuará.

Page 56: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Com efeito, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

no que concerne às desigualdades e às raças, quanto mais anos de estudos, maior

a vantagem salarial de brancos em relação a afro-descendentes. Tal levantamento,

realizado com fulcro na Pesquisa Mensal de Emprego constata uma disparidade

clarividente em relação a brasileiros negros e pardos com formação superior,

embora nele não se identifique o tipo de curso concluído, nem a qualidade dos

entrevistados; de conseqüência, trabalhadores formados em carreiras que detêm

mais prestígio e em cursos de melhor qualidade equiparam-se com profissionais

com formação em carreiras de menor remuneração ou cursos de instituições

desqualificadas. Por último, os resultados obtidos revelam que, embora a

escolaridade seja o passaporte para ingressar no mercado de trabalho, o processo

histórico de exclusão de negros e pardos ainda funciona como determinante na

remuneração de trabalhadores.

No ano passado, Cléverson Marinho Teixeira, vice-presidente do Movimento

Pró-Paraná, declarou em entrevista que o Estado é um celeiro de juristas, mas que

lhe falta um representante na Suprema Corte. Ao tentar demonstrar o alcance da

visão e da atuação do governo federal em indicações políticas que são de praxe, o

supracitado advogado, defensor do nome de um ilustre paranaense para ocupar

vaga na mais alta Corte do Brasil, mencionou que o presidente Lula colocou

representantes de todos os segmentos sociais e regionais em cargos

representativos. Demais disso, em atenção ao contexto ora sob consideração,

merece distinção a seguinte assertiva feita pelo citado jurista: “O ministro Joaquim

Barbosa (negro) é um bom exemplo, pela sua capacidade. Isso é importante para

mostrar todos os substratos sociais e regionais que o país dispõe”18.

18 BERTOTTI, João Cabral. Procura-se novo ministro para o STF, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 26/8/07.

Page 57: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Eis aí, talvez, uma excelente manifestação para justificar que, nem sempre,

indicações são nefastas, viciadas, pois: a um, relembre-se, tal Ministro foi o Relator

responsável pelo sucesso no indiciamento de todos os envolvidos no difícil caso

vulgo “Mensalão”; a dois, sua indicação para o Supremo Tribunal Federal foi

exemplar, na medida em que houve reconhecimento de seu notório saber jurídico e,

pela primeira vez, um negro integra esta prestigiada Corte; e, a três, Joaquim

Barbosa pode representar condignamente um exemplo positivo no caso das cotas

preferenciais para o ensino superior (leia-se, pós-graduação, mestrado e doutorado),

afastando a pecha negativa que pode ser associada à sugestão de tal prática, e; a

quatro, será o seu voto “histórico”, caso a questão das cotas raciais vá a julgamento

no Supremo Tribunal Federal.

Um pouco além do até então escrito, surge outra perquirição, balizada por

fenômenos distintos: o racismo barra os negros em universidades ou as

universidades despejam no mercado nacional, anos a fio, profissionais de qualidade,

os quais deixam de ser absorvidos pelas empresas por racismo?

E, dessa feita, muito mais adiante desses fatos, a dura realidade vivenciada

por cidadãos brasileiros negros (pretos e pardos) demonstra que eles merecem, sim,

chances, objetos de defesa deste estudo não só na discussão sobre a adoção de

cotas raciais no ingresso ao ensino superior, mas, neste capítulo, viabilizadas, em

quotas preferenciais, destinadas à pós-graduação. E, acresça-se: nessa linha de

pensamento, o que aqui se busca disseminar não se restringe a uma simples defesa

possibilitada pela facilitação e avessa à meritocracia, mas trata-se de considerar

oportunidades únicas, respaldadas em justa reivindicação social, associadas a

algumas adaptações a serem feitas na atual práxis, as quais não fujam à lógica, à

ética, ao bom-senso e, sobretudo, impeçam a ocorrência de resultados danosos aos

Page 58: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

beneficiários de tal sistemática no agora, vindo a ecoar beneficamente no futuro

tanto no aspecto social quanto (e, em especial) profissional.

Ainda, não se pode negar, se o status quo atual permanecer inerte, o Brasil

continuará partícipe de um processo de desigualdade racial; é inaceitável haver

limitação ideológica dirigida tão-só à proposta de ações afirmativas raciais à

graduação. Isso, porque existe outra questão igualmente política e grave que

deveria ocupar a cabeça dos brasileiros com energia: a necessidade de incluir, igual

e imediatamente, os negros que desejarem, nos cursos de pós-graduação. Tal

contextura não reflete apenas uma ilação isolada, mas é fruto de esforço sistemático

(mesmo que quase nunca verbalizado) feito pelos próprios acadêmicos negros ou

pardos. Mais ainda: só haverá possibilidade de se entender porque há tão poucos

negros na universidade hoje, desde que analisada a pirâmide do mundo acadêmico

pelo topo e não apenas pela base. O foco da reprodução ou da mudança dessa

sistemática não reside no perfil racial dos calouros, mas dos professores – que,

afinal de contas, têm autonomia para gerir o sistema universitário pátrio.

Pesquisas demonstram que a média de estudantes negros universitários

(em relação ao total do País) gira em torno de 2% de pretos e beira os 8% de

pardos. Os afro-descendentes estão concentrados nos cursos tidos como de baixa

demanda, demais de cursarem faculdades particulares de menor prestígio. Um

exemplo evidente disso dá-se na Universidade Católica de Salvador (UCSAL),

conhecida na Bahia como “a universidade negra”: criada há quase meio século, ela

cresceu a partir dos anos 70, absorvendo os negros que não conseguiam ser

aprovados nos certames vestibulares realizados pela Universidade Federal da Bahia

(UFBA); destarte, eis que referida instituição privada encarna uma dupla

discriminação, pois nela está concentrado o alunato negro mais pobre, que

Page 59: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

freqüenta uma faculdade com menos possibilidades de pesquisa e ainda tem que

pagar pelos estudos!

Outro ponto intimamente vinculado à temática ora em exposição versa sobre

a ausência de professores negros nas universidades públicas nacionais; a falta

deles faz incidir aos alunos negros, desfavorecidos e ainda, em geral,

sobreonerados financeiramente, uma tripla discriminação: a injustiça simbólica de

carecer de figuras modelares de identificação, que os ajude a construir uma auto-

imagem positiva e suficientemente forte para resistir aos embates do meio

acadêmico racista em que têm que se mover.

Outrossim, é de fundamental importância não se esquecer de que, em última

instância, são professores que votarão nos Conselhos Acadêmicos a respeito das

propostas de inclusão racial e, atente-se, 99% deles, brancos. Aqui, sublinhe-se, a

primeira realidade que se deve ter em mente é que nas universidades, a

porcentagem de professores brancos é ainda muito mais alta do que a de alunos

brancos.

Então, é necessário voltar no tempo e verificar que a historicidade da

academia brasileira do século 20 registra e esbarra no ato de barrar, de obstar o

ingresso na universidade, de ilustres professores negros. É de sumo valor recordar,

por exemplo, o caso emblemático de Guerreiro Ramos, um eminente cientista

brasileiro do século passado, formado na primeira turma de Filosofia da

Universidade do Brasil, atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Guerreiro Ramos desenvolveu sua carreira universitária nos Estados Unidos da

América, publicou obras em espanhol (que ainda não foram traduzidas ao

português) e, no final da vida, indicou, sem pudor e rodeios, que foi vítima de

perseguição racial na Universidade do Brasil e acusou nossa pátria de ser o país

Page 60: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

mais racista do mundo. Uma década depois, o notável pesquisador negro Edison

Carneiro também ficou fora da universidade pública e apesar de toda a sua rica,

invejável bagagem intelectual, nos anos 50, ao se candidatar a substituir Arthur

Ramos, na vaga de Antropologia, da já mencionada Universidade do Brasil,

dramaticamente, não conseguiu ser docente da atual Universidade Federal do Rio

de Janeiro, apesar de ter sido presidente do Instituto Nacional de Folclore. Além

dessas situações, atente-se para o caso de Clóvis Moura (destacado pesquisador

sobre a história da resistência negra no Brasil); em que pese ser de autoria de

Moura obra tida como vasta e significativa, ele jamais recebeu qualquer indicação

para exercer a docência em universidades públicas paulistas.

Nessa toada, as perguntas a serem feitas são: Como os estudiosos

elencados acima conseguiriam sobrepujar uma “teia” urdida historicamente para

consolidar a rede racista que se formou na academia brasileira? O que resta aos

negros e pardos no presente, diante de uma situação já conformada?

Em resumo, eis que a Universidade de São Paulo foi criada nos anos 30,

totalmente branca, e formou a sua segunda geração de professores, os quais, por

sua vez, começaram a formar outros docentes que assumiram cargos em

faculdades e universidades de São Paulo e de vários estados da federação. Num

momento subseqüente, criou-se, nos anos 50, a Universidade Federal do Rio de

Janeiro (composta por professores brancos, alguns egressos da Universidade de

São Paulo). A docência branca da Universidade Federal do Rio de Janeiro cresceu e

tratou de formar professores que ajudaram a consolidar novas universidades

públicas. O mesmo processo sucedeu-se com a Universidade de Brasília nos anos

60, integrada por professores brancos, oriundos do eixo Rio — São Paulo

(Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade de São Paulo, principal e

Page 61: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

respectivamente). Em seu tempo, a Universidade de Brasília formou mestres e

doutores, que foram absorvidos por outras universidades federais e estaduais do

País, isto e neste contexto especialíssimo, configurando o estabelecimento de um

círculo vicioso, não virtuoso. Então, deflui-se, após quarenta anos, o Brasil possui

um quadro universitário gigantesco e que reproduz essencialmente as

características da rede original construída na Universidade de São Paulo: o ethos

branco da academia brasileira, cuja etnografia ainda carece ser relatada.

A falta de dados sistematizados que versem sobre a composição racial da

nossa classe de docentes e pesquisadores é algo que exige atenção, uma séria

reflexão. A média é de menos de 1% de professores negros nas universidades. Na

Universidade de São Paulo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro ou na

Universidade Estadual do Rio de Janeiro há exclusão racial quanto à docência,

demais de concentração de professores negros em unidades acadêmicas

estigmatizadas como de menor prestígio. Hipoteticamente, crê-se que, nos últimos

trinta anos, diminuiu o número de professores universitários negros nas instituições

de ensino superior, isto, por pelo menos duas razões: no Brasil dos anos 50 e 60, a

elite acadêmica era muito menor, as próprias redes de poder acadêmico estavam

menos saturadas e, por circunstâncias momentâneas, alguns negros puderam

concorrer em condições mais igualitárias com seus colegas brancos.

Então, eis que jovens negros doutores contemporâneos são, em boa

medida, egressos de escolas públicas menos apoiadas pelo Estado, concorrem com

uma quantidade muito maior de doutores brancos e, para cúmulo, ainda, têm que

superar dois entraves, quais sejam: a) as eventuais deficiências de capital cultural

específico e idiossincrático, segundo a universidade em que pretendem ensinar e,

conforme a disciplina na qual se especializaram, e; b) as barreiras de

Page 62: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

recomendação, na medida em que não se integraram a essa fechadíssima rede

acadêmica, já há muito consolidada.

Em tese defendida por Maria Solange Pereira Ribeiro na Faculdade de

Educação da Universidade de São Paulo, confirma-se tal intuição, pois desde o ano

de 1980 não houve ampliação da presença de professores negros nas universidades

públicas paulistas. Solange Ribeiro conta que, em uma das quatro universidades por

ela pesquisada, encontrou apenas cinco negros entre dois mil professores.

Os brasileiros padecem de uma “inconsciência racial”, a qual parece

manifestar-se indefinidamente à sombra da ideologia freyreana dos brancos sem

cor. Tem-se a impressão de déjà vu, como se meio século simplesmente não tivesse

provocado nenhum tipo de impacto no tocante à exclusão racial. É inequívoco, dita

situação só é vagamente melhor do que a verificada há alguns anos atrás, mas, por

outro lado, existe algo de estático, estagnado, uma imutabilidade quase inacreditável

na realidade racial brasileira.

Nas universidades, a cada vez que entra um professor negro nas áreas de

Ciências Humanas e Sociais, linhas de pesquisa e interesse pelo conhecimento da

cultura/história negra são abertos ou ampliados. E é justamente devido ao baixo

número de docentes afro-descendentes que, após cem anos de vida acadêmica,

muitas questões significativas da nossa sociedade continuam à margem de serem

debatidas com propriedade. Por conseguinte, os concursos para docentes,

preenchidos quase que, exclusivamente, por candidatos brancos, já não podem ser

vistos tão-só como efeito de decisões racionais, embasadas em padrões impessoais

de membros componentes das bancas. Tais certames refletem, na verdade, o

resultado de uma complexa equação que envolve variáveis, a exemplo de política

acadêmica (pressões externas e internas em favor de determinados candidatos),

Page 63: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

redes de relações dentro da comunidade acadêmica (linhas de pesquisa, filiações

teóricas, campos de atuação), mérito e trajetória acadêmica de cada um (artigos e

livros publicados, experiências em pesquisas), cuja relevância muda de acordo com

o perfil do candidato desejado (pesquisador sênior, pesquisador júnior, etc.). Diante

desses dados, por que não sugerir ao Ministério da Educação que investigue os

concursos efetuados e procure saber se as vagas públicas estão alocadas dentro de

algum critério de interesse social — incluindo a pluralidade racial?

Senão, eis que vale anotar que, absurdamente, 99% dos pesquisadores do

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) detentores

de bolsa de produtividade em pesquisa são brancos. Idêntica proporção de exclusão

racial extrema é encontrada entre os pesquisadores da Fundação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Fundação Oswaldo

Cruz (Fiocruz/Manguinhos), do Museu Nacional do Rio de Janeiro, da Fundação

Getúlio Vargas, do Museu Goeldi, enfim, em todos os chamados “centros de

excelência” nacionais prevalece o mesmo perfil racial homogêneo. Qual será a

causa que explica esse “fenômeno”? A rede de pesquisas é uma espécie de supra-

rede da elite da rede de professores universitários, que vão indicando seus

“melhores talentos” (por sua vez, recrutados da rede dos estudantes de pós-

graduação) para irem formando os centros de pesquisa; destarte, o que aconteceu

nos anos 60 e 70 quanto à formação docente universitária no Brasil, se perpetua,

identicamente, na área de pesquisas.

O Estado brasileiro, respeitoso da autonomia universitária, continua a

ignorar detalhes desse perfil racial dramático, porque ele próprio está formado quase

que exclusivamente por membros de referida elite, que construiu a academia

(docência e pesquisa) “à sua imagem e perfeição”. E a academia não se enxerga,

Page 64: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

sob hipótese alguma, racializada, ou melhor, não quer se ver assim! Os acadêmicos

crêem que integram o mundo do saber, do mérito, da ciência, do empírico, um

universo incolor, ainda que sem negros; na “redoma” edificada pela comunidade

científica brasileira ninguém tem cor: todos são cientistas, pesquisadores, doutores,

acadêmicos, trata-se apenas de uma comunidade de pares. Nos Comitês de

Avaliação dos órgãos de financiamento, trabalha-se para silenciar o discurso anti-

racista que, até hoje, produz ecos no País. Não são poucas as informações de pós-

graduandos das áreas de Ciências Sociais de várias instituições que, nas seleções

das universidades federais, são cientificados de que as bancas buscam estudantes

que queiram trabalhar na linha de pensamento de Gilberto Freyre; por conta disso,

“jovens freyreanos”, com disposição para discorrer sobre aspectos “desconhecidos”

da obra do festejado sociólogo pernambucano, tornam sua produção literária

“irremediavelmente” presente na consciência discursiva da elite intelectual brasileira.

Volta-se a “cutucar a ferida”, mas é preciso! O equívoco disseminado pela

vigente ideologia racial no Brasil traduz-se no conteúdo de que a nossa suposta

excepcionalidade se deve à mestiçagem; para o mundo, a originalidade dos

brasileiros repousa no fato de que somos harmônicos numa pluralidade de

identidades raciais e, ao contrário de nós, África do Sul e Estados Unidos da

América são países de estoques raciais separados. Então, para que haja a

desmistificação de sobredita ideologia, basta comparar essa informação

escamoteada ao grau de integração racial que vigora aqui e aquele que vige em

nações ditas mestiças do mundo afro-americano (quantidade de médicos e juízes,

por exemplo), tais como Cuba, Santo Domingo, Porto Rico, entre outras do Caribe,

para se evidenciar que sairíamos vergonhosamente perdedores no que respeita à

efetiva participação de negros no meio social.

Page 65: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

A elite branca nacional fez mais do que calar quaisquer notícias sobre a

desigualdade racial no Brasil: com inaudito descalabro, ela contribuiu para a

produção de um sem-número de dados constantes deste trabalho. Nesse ponto,

consigne-se, no entendimento de Jorge de Carvalho, antropólogo da Universidade

de Brasília, a idéia é que a elite quer manter o poder e as vagas disponibilizadas nas

universidades públicas boas, que significam cotas de poder; de conseqüência, essa

mesma elite, se tiver que concorrer para ocupá-las, não quer concorrentes,

adversários negros.

De outra sorte, os intelectuais negros tentaram, ao longo do século 20,

denunciar a realidade da exclusão racial e encaminhar propostas de apoio estatal à

população negra; seus discursos foram propositalmente silenciados do circuito

hegemônico de comunicação do País.

A meta das ações afirmativas em pauta é deselitizar radicalmente o ensino

superior e proporcionar à universidade pública pátria um retorno à sua função social,

há tempo desvirtuada pela homogeneidade de classe, para não dizer, racial. Nesse

novel universo afirmativo, há que se discutir também o seguinte: é fato que as

universidades estrangeiras que servem como referencial de excelência para a

academia brasileira, como Cambridge, Oxford, Harvard, Columbia, Sorbonne, entre

outras, estão muito mais integradas racialmente do que as nossas instituições de

ensino superior. Diante disso, como calar-se quando o discurso pró-mestiçagem, de

fachada anti-racista, opera, na prática, uma força anti-racista (obliquamente, um tipo

de atitude racista) que parece querer permanecer vivo entre nós, liberto de

restrições, indefinidamente?

Propõe-se, então, complementar a proposta de cotas para a graduação pelo

sistema de preferência; dessa forma, o Ministério da Educação (MEC), poderia

Page 66: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

alterar a sistemática em vigor, com o intuito de que não se perpetuasse essa

pirâmide de “poder acadêmico”, mediante aplicação criteriosa bastante em que

negros com doutorado tenham ingresso automático (segundo novo regramento

pertinente), na carreira docente; conseqüentemente, os que tiverem mestrado,

ingressariam no doutorado pelo sistema preferencial. Tais cotas ajudarão a instituir

no Brasil um clima de concorrência aberta na academias brasileiras; deduz-se que

elas criarão oportunidades para que estudantes negros bem preparados ingressem

na universidade, cursem não só o mestrado, mas o doutorado, isto, fora da rede já

fixada. Eis que assim, pelo menos, haverá a chance de competição com brancos

insertos na supracitada rede, algo que não acontece há décadas...

Um caminho a ser perseguido, talvez seja incluir no Estatuto da Igualdade

Racial, de autoria do Senador Paulo Paim, antes de sua votação pelo Congresso

Nacional, três itens, quais sejam:

a) Um sistema de preferência de vagas na pós-graduação: as unidades

acadêmicas (institutos, centros ou faculdades) das Instituições Federais de Ensino

alocarão, do montante total das vagas ofertadas nos cursos de pós-graduação, pelo

menos 20% do total das vagas de mestrado e idêntico percentual do total das vagas

do doutorado para candidatos negros aprovados em processo seletivo. Deve-se

enfatizar que o critério para seleção de negros por preferência não se operará com

base no desempate, mas por preferência na aprovação (equivalente ao que foi

proposto para o caso das cotas para graduação pelo vestibular: um piso mínimo de

aprovação). Poder-se-á utilizar na pós-graduação a mesma idéia de um Plano de

Metas que foi usado na Proposta de Cotas para negros e índios da Universidade de

Brasília. Demais disso, é viável definir que, por 20 anos, a diversidade racial será um

critério significante na avaliação dos programas de pós-graduação no Brasil. Com

Page 67: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

esse fator incorporado à nossa cultura acadêmica, em pouco tempo será ilegítima a

pergunta: que sentido de excelência pode ter um programa de mestrado ou

doutorado que seja constituído exclusivamente de professores e alunos brancos, em

um País que conta com 45% de negros e com centenas de sociedades indígenas?

b) Um sistema de preferência de vagas nos concursos para professores:

nesse tipo de certame, 20% do total de vagas para docentes deverão ser

preenchidas por candidatos negros que sejam aprovados. O montante poderá,

igualmente, ser contabilizado por unidades acadêmicas, para não atomizar

excessivamente o processo de seleção dos candidatos negros. Assim, haverá

estímulo bastante no sentido de que programas de pós-graduação absorvam

candidatos afro-brasileiros, alterando e ampliando suas linhas de pesquisa para,

então, pela primeira vez, o Brasil recebê-los de um modo consciente e aberto. Ao

mesmo tempo, com certeza, potenciais candidatos dessa “estirpe” estariam se

preparando para participar de concursos destinados à docência de instituições

federais de ensino.

c) Um sistema de preferência na concessão de bolsas de pesquisa para

negros nas instituições federais de fomento (Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico, etc.): a complexidade constitutiva do sistema brasileiro de

pós-graduação e de pesquisa tem que mudar sua feição altamente discriminatória;

deve, inclusive, revisar posicionamentos, caso haja a real pretensão de se promover

uma nova postura de integração racial no setor. Conforme já se disse anteriormente,

será preciso, além de reavaliar a função social da universidade, rever, também, não

só as linhas de pesquisa, bem como as disciplinas ofertadas. Nessa tessitura e indo

mais adiante, quiçá, seja necessário, igualmente, repensar a contratação de

Page 68: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

professores, no sentido de que estes possam atender aos temas de pesquisas

demandados pela novel clientela, os negros.

Tão veementes considerações estão calcadas em várias motivações, dentre

as quais merecem ênfase a um, pela possibilidade de mudança das regras de

concessão de bolsas para os próximos anos e, a dois, pelo questionável sistema de

avaliação de ingresso na pós-graduação, cujo mecanismo exclusivamente seletivo

prima por ser não-universalista, ou, parcial e, portanto, funciona como contribuinte

de peso para a prévia exclusão de candidatos negros em tal meio, haja vista que o

cumprimento de suas “exigências” traz inserto em seu bojo, a certeza de redução

quanto às prováveis chances de aprovação destes.

Quanto à primeira idéia, a embrionária proposição de mudanças desses

centros de excelência sobre seus critérios de seleção, de plano, funda-se no fato

deles afetarem os negros, em especial, aqueles que sejam docentes e pretendam

fazer doutorado. Isso, porque ao invés de haver consideração quanto ao talento

demonstrado pelo indivíduo e pela temática específica do candidato, as novas

diretrizes recomendam, a título de princípio seletivo, privilegiar estudantes já

inseridos em alguma rede de pesquisa, quadro este que, de per si, elimina qualquer

pessoa isolada; logo, fecham-se as portas da pós-graduação devido a grupos já

existentes, nos quais, em regra, inexistem elementos negros e, num círculo vicioso,

distribuem-se, praticamente, todos os recursos do Estado entre os estudantes

brancos. Acaba-se, aqui, dessa feita, quaisquer direitos à livre “concorrência”! Dessa

feita, crucial relembrar que os poucos negros participantes da pós-graduação, são

justamente os estudantes isolados, autônomos, que ousaram ultrapassar o bloqueio

racial ao contrariar as estatísticas oficiais que, por antecipação, já os havia deixado

de fora da referida comunidade.

Page 69: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

No tocante à segunda ideação, é necessário pensar nos efeitos das cotas na

pós-graduação; se no vestibular (que não mede necessariamente as pessoas mais

capazes, mas aquelas que têm mais condições de se preparar para tal certame)

foram adotadas as cotas raciais e, com freqüência, por isto, registram-se problemas,

imagine-se as dificuldades consignadas no que tange às cotas na pós-graduação!

Eis que se torna necessário ressair que a pós-graduação não se configura como

uma busca livre pelo conhecimento, mas se baseia em linhas de pesquisa. E aí,

surge o nó górdio da questão: as linhas de pesquisa resultam de vontades políticas.

O ingresso na pós-graduação é prática que se dá embasada no critério de

preferência, aliado a uma meritocracia tendenciosa que, não raro, premia os

melhores num conjunto de preferências escolhido (o qual se vincula à manutenção

de linhas para que professores dêem continuidade as suas pesquisas e encontrem

um alunato que se adapte à consecução de seus interesses investigativos). Então,

em reiteradas ocasiões, um estudante mais qualificado, simplesmente deixa de

ingressar na pós-graduação porque elegeu uma linha de pesquisa com poucas

vagas, ou, que não consta da programação em que se inscreveu, enquanto outro

candidato menos preparado tem seu ingresso garantido na comunidade acadêmica

por ter escolhido uma linha menos concorrida; nesse ponto, evidente, o sistema não

tem respaldo democrático, tampouco está alicerçado no mérito! Nessa trilha, difícil

verificar a capacidade relativa dos estudantes, uma vez que não existe unificação de

critérios entre professores, programas, linhas de pesquisa e recursos

disponibilizados pelas instituições. Lógico, no exame de seleção das instituições de

ensino superior brasileiras há parâmetros que, apesar de variações, colocam-nas

em patamares similares. Entretanto, na realidade, quando se trata de avaliar, por

exemplo, um candidato desconhecido da banca, que estudou com um orientador

Page 70: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

sem renome e que apresenta recomendações de professores desconhecidos, é

flagrante sua desvantagem para com outro concorrente que (conquanto haja

igualdade de condições acadêmicas entre ambos) tenha apresentado “atributos”

contrários aos acima enumerados; se, por desventura, acrescenta-se àqueles

primeiros elementos elencados o componente racial, mais forte a incidência de

estereótipos negativos e a projeção de preconceitos devido à cor do candidato: o

negro é menos capaz, apresenta mais deficiências, etc. Some-se àquilo que já foi

dito, a idiossincrasia presente em alguns membros de bancas e observar-se-á, no

total, um processo de qualificação acadêmica eivado de alta imprecisão e suscetível

a falhas, que tem como agravante um padrão de segregação racial! Por isso, a triste

escandalosa e vergonhosa estimativa de que no Brasil, tão-somente, 0,5% de

pesquisadores negros participem do sistema de produtividade em pesquisa; é digna

de pasmo, senão de revolta a notícia de que dos quase oito mil pesquisadores

componentes da elite científica de nosso País, apenas constam cerca de vinte

negros.

Num outro patamar, é notório o isolamento experimentado por pós-

graduandos e professores negros no ambiente acadêmico; não raro, eles são

vítimas de uma pulverização de sua presença no meio universitário e poucas vezes

encontram oportunidade de expor tamanha situação de exclusão e de discriminação

que vivenciam, inclusive, levada a cabo subliminarmente quando intentam galgar

degraus mais altos nas instituições em que trabalham. Contra os pós-graduandos

negros, voga o fator competitividade, que os coloca sob constante pressão, graças à

falta de capital cultural específico, melhor dizendo, de um código lingüístico para-

disciplinar peculiar do ethos acadêmico (tão essencial à pesquisa, aos grupos de

discussão, à obtenção de informes e dados do saber disciplinar) que lhes guie no

Page 71: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

universo social e simbólico no qual se movem os brancos universitários. Daí, o

caminho que se apresenta aos negros que tiveram acesso à educação superior: ou

eles se metamorfoseiam de brancos (após se apropriarem do uso da mencionada

codificação e, de conseqüência, abrirem mão de sua identidade racial) ou

confrontam abertamente o racismo reinante (e arriscam suas possibilidades de

inserção nas redes brancas firmadas, saturadas e marcadas por um controle que vai

além do aspecto econômico).

A espinhosa missão de conscientizar, de promover a aceitação das cotas

raciais na pós-graduação, em muito se sobrepõe ao desafio enfrentado pelos

cotistas negros em vestibulares realizados Brasil afora, posto que a aceitação de tal

processo dar-se-á de forma mais lenta e esporádica. Ao revés do exame vestibular,

a decisão de inclusão racial no meio acadêmico, a bem de sua legitimidade, eficácia

e eficiência, não deverá, por exemplo, centralizar-se numa comissão fixa, porém, em

inúmeras bancas específicas ad hoc, cujos critérios não sejam uniformizados. Além

disso, ao debater a idéia de compensação e preferência pelos negros entre aqueles

que integram a classe docente no ensino superior, certamente, far-se-á presente o

choque de crenças e convicções sobre aquilo que se entende por mérito e

qualificação e, sem dúvida, serão trazidos à tona aspectos pontuais tais como, uso e

finalidade da expressão “política acadêmica”, aspectos classistas, “etiqueta social”,

interesses de composição de grupos, além de possíveis contribuições que um

candidato pode trazer ao tipo de capital simbólico acumulado por uma determinada

unidade acadêmica, que poderá absorvê-lo; então, veja-se que, quanto a esses itens

foram enumeradas algumas das preferências exercitadas à acessibilidade de

qualquer indivíduo à carreira acadêmica, mas, o que se indaga, é o porquê de não

se preferir/aceitar negros na comunidade universitária brasileira. E, mais: torna-se

Page 72: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

essencial perquirir se as nossas bancas estarão aptas a modificar o seu

comportamento diante da proposição de um novo sistema de ações afirmativas, o

qual pretende ser direcionado para reavaliar o papel desempenhado pelos afro-

brasileiros no ensino superior, em específico, na pós-graduação.

Page 73: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

7. CONCLUSÃO

Não é incomum políticos afiançarem que o problema brasileiro da educação

não é dinheiro. Verdade! Não nos faltam recursos, mas prioridade; falta-nos,

sobretudo, realocar corretamente o dinheiro disponibilizado à educação. Destarte,

normalmente, os números citados se cingem ao volume de recursos investidos na

educação do setor público (nas três esferas: municipal, estadual e federal) como

proporção do Produto Interno Bruto (PIB). O Brasil investe 4% em educação, um

percentual que quase se iguala ao aplicado por outras potências. Todavia, nesse

quesito é preciso pôr atenção! Os números enganam, pois se desconsidera nesse

cenário, o tamanho do PIB e a quantidade de estudantes atendidos. Uma das

melhores maneiras de se verificar o quanto um país investe num aluno, é medir o

gasto público por estudante como proporção da renda per capita.

No ensino superior, por exemplo, o Brasil gasta por aluno, o equivalente a

58,6% da renda per capita. Eis aí um gasto que denota excessos, senão, veja-se

que, comparativamente, os germânicos gastam 41,2%; os mexicanos, 35%; os

espanhóis, 22,4%; os chilenos, 17,7%; e, os coreanos, 7,3%. Os excessos acima

referidos não acontecem, obviamente, em outras nações; no entanto, aqui, dizem

respeito à relação entre o percentual de verbas destinadas ao ensino superior e a

respectiva população acadêmica, ou seja, o alunato inscrito em universidades soma

apenas 2% do total de estudantes, conquanto o ensino superior fique com 20% de

todas as verbas aplicadas no setor educacional.

Vivemos num País onde se constata, freqüentemente, não só a perpetração

de erros na política educacional posta em prática pela cúpula federal, mas em que

as conseqüências da redução de investimentos governamentais na seara em tela

Page 74: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

ficam evidenciadas no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que, de acordo

com a Organização das Nações Unidas, fez o Brasil recuar para a 69ª. posição no

ranking internacional. É o cúmulo, mas, só recentemente a Câmara Federal decidiu

aprovar o Fundo Nacional de Educação Básica (FUNDEB) – recuperando, assim,

investimentos feitos pelo governo federal na área. Então, eis que tais dados são de

sumo valor para seja possível entender o discurso de expansão do ensino superior

(Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades

Federais - REUNI) que vige atualmente no Planalto, retórica esta que assume,

conforme a ótica, diversos matizes, em sua maioria, nada louváveis.

Constatada a existência de uma sofrível gestão educacional

(ordinariamente, aliada a uma má distribuição de recursos financeiros), pior do que

isto, é a quase absoluta certeza de que, do jeito que as coisas “andam”, uma parcela

ínfima da comunidade negra brasileira, terá acesso ao ensino superior, em

particular, à pós-graduação, à pesquisa e à docência; logo, eis que a maioria dos

negros nacionais está (em que pese algumas mudanças operadas), por

antecedência e em pleno século XXI, relegada à indigência intelectual.

A pergunta que não quer calar neste momento é sobre o porquê o Brasil se

insurge com tamanha veemência contra o uso de cotas raciais e, quiçá,

preferenciais, no ensino superior.

Numa primeira tentativa de resposta, é fato que o País teve, por dez anos,

como comandante supremo, Fernando Henrique Cardoso, sociólogo que sempre

pensou em termos de nação dividida (composta por brancos opressores e por

negros submissos), e, que, para o bem e para o mal, conforme se detectou no

decorrer desta monografia, instou por institucionalizar entre nós políticas públicas

Page 75: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

(ações afirmativas) raciais, cujo formato e aplicabilidade são questionáveis, posto

que importados de sociedades diametralmente distintas de nossa realidade.

Em uma segunda possibilidade de reposta, eis que surge (ainda que fraco,

mas, pelo menos inicial) um ambiente externo relativamente favorável e crescente

no sentido de se atenuar o racismo que grassa em boa parte do globo. Campanhas,

dinheiro, patrocínio e estudos foram desenvolvidos por governos e organismos

internacionais com o intuito de amortizar o racismo, fazer prevalecer, mundo afora, a

visão multiétnica, tolerante às diversidades, a exemplo do que acontece, com

sucesso, na Inglaterra e com tremendo, senão discutível esforço, na França.

A terceira contestação está resguardada pela imensa desigualdade

vigorante no Brasil; infelizmente, os brasileiros estão divididos em ricos e pobres,

sendo que a maioria destes é constituída por negros e pardos; aí reside mais uma

senha permissiva à forte instauração do preconceito, racismo, além do classismo

que grassa, comprovadamente, em solo pátrio.

Por derradeiro, some-se ao rol de respostas dadas para o questionamento

anteriormente externado, a certeza inabalável de que um país sem educação não

progride, fator este que, alinhavado às soluções fáceis (importação e ajustes

caseiros quanto à aplicação das reservas raciais e inexistência de quotas

preferenciais no ensino superior, sem a criação de um modelo próprio, adequado à

sociedade brasileira), às barreiras construídas e profundamente cimentadas no

universo acadêmico, conduzem ao insucesso das razões focadas, as quais

permitiram a elaboração desta monografia.

No Brasil não havia racismo declarado, apenas atuante, mas sob forma

disfarçada, travestido de preconceito; agora, com o uso de um molde de quotas (não

suficientemente adaptadas ao nosso contexto), corrobora-se o sobredito: aquilo que

Page 76: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

antes era velado, hoje se tornou quase explícito, isto, depois do recente aceite de

uma política pública construída à época do governo Fernando Henrique Cardoso, a

qual pugna favoravelmente à existência de dois Brasis (o branco e o negro). Então,

tem-se que as ações afirmativas devem ser analisadas sob ótica distinta da utilizada

por Kamel, posto que detêm o poder de virem a ser traduzidas como preparatórias

para um sério e imprescindível debate, ainda que deveras tardio: há que se discutir o

racismo no Brasil! Eis aí, o passo inicial para que se dê uma verdadeira integração

racial neste País, forjada na inclusão de negros capazes no ensino superior, seja por

intermédio de cotas raciais em vestibulares ou na pós-graduação (utilização do

sistema de preferência).

São, exemplarmente, dados como os transcritos a seguir, os autorizadores

da linha de raciocínio que prima por considerar tanto negros quanto pardos

indivíduos destituídos de significação na educação nacional,

É fato, na atual situação social, política e econômica vivenciada em território

pátrio clama-se por providências urgentes; nessa configuração, primordialmente, o

que mais nos interessa é a questão educacional do ensino superior público, no que

concerne às reservas raciais e preferenciais, destinada à parcela de afro-brasileiros.

Aliás, conforme se viu até agora, tudo aquilo que se implementou a respeito tem

causado problemas e está longe de uma aplicação satisfatória. Do observado no

que tange às cotas raciais (ingresso por meio de vestibular à graduação), é

consabido que: a legislação relativa a esse tipo de quota não está totalmente

pacificada na esfera federal, ademais de ser conformada com “perigosas” ressalvas

pelos legisladores e mal interpretada por cultores e operadores do direito, bem

assim deficitária quanto ao material legislado; os critérios de aferição das cotas sob

apreço mudam “ao sabor dos ventos” nas universidades federais e, de regra, de

Page 77: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

acordo com os imbróglios surgidos e nunca dantes aventados; a sua temporalidade

deixou de ser fixada — elemento perigosíssimo quanto aos fatores ideologia

reinante e assistencialismo, uma vez que, do modo como estão sendo aplicadas, as

quotas raciais garantem particular êxito ao afã eleitoreiro de certos parlamentares;

as vagas respeitantes às reservas raciais deixam de ser preenchidas,

desafortunadamente, devido à desinformação, senão ao despreparo educacional de

alunos, vestibulandos negros; há subliminar, quando não explícito, preconceito em

relação aos cotistas raciais (seja por parte dos quotistas não-raciais, do próprio

corpo docente e de funcionários das instituições de ensino superior) e, pior, lhes

faltam referenciais, moldes (professores negros) para eventual apoio, orientação

quanto à atuação; no quotidiano, constata-se a conformação de veemente, maciça e

reiterada crítica negativa social, veiculada midiaticamente e via criação de

movimentos de cunho anti-racial; verifica-se que o modelo cotista racial adotado no

País é um reflexo amador de práticas já condenadas por outras nações, quando não

extintas, o qual foi posto em uso sem que tenha havido o providencial zelo de se

resguardar ou respaldar devidamente as diferenças que nos caracterizam como

povo brasileiro; há que se catalogar, dentre os aspectos até então elencados, a

existência de uma “cultura” vigente entre nós, herdada e equivocada no tocante aos

negros, pois a historicidade destes — repleta de fatos reais e, igualmente, eivada

“com o dobro” de fictícios, estes últimos, desabonadores e criados ao bel-prazer de

uma minoria dominante branca — pende, com exageros e dosada iniqüidade, ora

para uma penalização exercida a priori e de modo gratuito, ora para uma pseudo ou

limitada aceitação no meio em que estão insertos.

Já no que pertine às cotas preferenciais, notória a avassaladora, “quase”

inexistente, ausência de pós-graduados, mestres, doutores, PhDs negros e/ou

Page 78: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

pardos no Brasil; o percentual desses em atuação no meio acadêmico é exíguo,

vergonhoso, conquanto afro-brasileiros componham significativo quinhão da nossa

população. Os prejuízos decorrentes de tal situação são inúmeros, tais como:

conforme já apontado, eis que os universitários cotistas raciais sofrem clarividente

desestímulo à continuidade de seus estudos, haja vista ingressarem em

universidades federais de nosso País com a pecha de terem sido “auxiliados” em

sua aprovação no vestibular; os acadêmicos negros e/ou pardos brasileiros somente

podem se espelhar em raríssimos exemplares de afro-descendentes “bem-

sucedidos” presentes no corpo docente de universidades federais brasileiras,

ademais de serem vitimados por habitual preconceito e/ou racismo manifestado por

seus pares e funcionalismo destas instituições, e, pior: eles são, em geral e

crescentemente, alvos de críticas diferenciadas, quando não, impiedosas, expressas

pelos meios, tanto acadêmico quanto social — e, no porvir, tudo indica, o serão,

também, em maior escala e desastrosamente, na esfera profissional (podem vir a se

tornar vítimas de mais restrições do que as já havidas, justamente, em função do

uso das cotas raciais, isto, inclusive, para adentrar no círculo fechadíssimo da

“academia”); sabe-se que no Brasil, os órgãos federais responsáveis pela concessão

de bolsas de estudo governamentais destinadas às pós-graduações, mestrados,

doutorados e PhDs têm planos de afunilar à acessibilidade de graduados a elas,

fator restritivo, impediente (outra sutil discriminação) para que o reduzidíssimo

número de negros e/ou pardos universitários venham a compor o seleto “grupelho”

de cientistas, de pesquisadores brasileiros — terminologia aqui empregada, não no

sentido pejorativo (tendo em vista o “domínio do saber” que permeia tal ambiente),

mas, sim, elitista; a permanência e a preponderância (por mais incrível que aparente

ser) de uma visão marginalizada da figura do negro e/ou pardo no “mundo”

Page 79: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

acadêmico, a qual, não raras vezes, sobrepuja, opõe-se àquilo que ali mais

interessa: o aspecto conhecimento!

As conclusões acima enumeradas e concernentes à dupla tipologia de cotas

que são objeto precípuo desta monografia, em alguns tópicos apresentam certa

similaridade, todavia, torna-se imperioso aduzir, é preciso ter em mente que os

resultados obtidos a partir da recorrência desses óbices são diferentes, conquanto

espraiem-se, genericamente e de modo maléfico entre aqueles que sofrem “na pele”

tais conseqüências.

Nesse ponto, é cabível, à guisa de reflexão, abrirem-se parênteses para o

escritor português Antonio Alçada Baptista, que em sua obra “O tecido do outono”

diz o seguinte: “Acho que a consciência da nossa dignidade é o suficiente para

termos um comportamento honesto”19.

Por fim, eis que a adoção das cotas raciais e preferenciais por tempo

limitado parece ser uma oportuna senda a ser trilhada: ambas as proposições são

dignas de atenção, trazem em seu cerne benesses e diferem do modelo e do

simulacro (latu sensu) hoje em voga nesta área, tendo em vista que: sua prática se

dará com fulcro em pré-seleção, baseada na meritocracia individual, em tempo

determinado e, segundo o tipo, em percentuais pré-fixados (número de aprovados,

em diversas áreas do conhecimento humano). Demais disso, é por intermédio de

ações construtivas semelhantes a essas que se torna possível pensar na edificação

de um Brasil progressista, divorciado de dados estatísticos pífios, preparado para

competir pari passo — na atual era globalizada — com outros grandes e novos

mercados, e, sobremaneira, irmanado como um povo plenamente cidadão, com

alguns de seus principais anseios básicos atendidos (conforme reza nossa Lei

19 BAPTISTA, António Alçada. O Tecido do Outono. São Paulo : Editora Globo. 2001.

Page 80: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

Maior) e independentemente da cor da pele, ou, da “raça” de cada brasileiro. O que

está em pauta são a nossa concepção de nação e o nosso destino como País!

Page 81: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUMENTA O FOSSO ENTRE NEGROS E BRANCOS : RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO CLASSIFICA A DEMOCRACIA RACIAL NO PAÍS COMO UM “MITO”, Gazeta do Povo, Curitiba, 19/11/05.

ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro : Editora Record, 2007.

ALMEIDA, Maria Lucia Pacheco de. Como elaborar monografias. Pará : Editora CEJUP Ltda., 1996.

BAPTISTA, António Alçada. O Tecido do Outono. São Paulo : Editora Globo, 2001.

BERTOTTI, João Cabral. Procura-se novo ministro para o STF, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 26/8/07.

BINDER, Angelo. Mudança sutil e sem alarde, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 27/8/2007.

BRALDATI, Breno. Paraná destaca-se em políticas públicas para a inclusão social, diz pesquisadora, Gazeta do Povo, Curitiba, 19/11/2005.

CABRAL, Themis. UFPR muda sistema de cotas para torná-lo eficiente, Gazeta do Povo, Curitiba, 16/8/2007.

CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.

CARNEIRO, Sueli. Cotas e políticas públicas. ISTOÉ. São Paulo : Editora Três, n. 1945, p. 47, 7/2/07.

CHAVES, Lílian. Cotas da UFPR chegam ao quarto ano : sobra de vagas leva a mudanças no regulamento do concurso, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 4, 17/9/07.

DROPA, Romualdo Flávio. Brasil 500 anos de exclusão : O “problema” da abolição, Jacarezinho, 2000. Direito. FUNDINOPI – Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, Paraná.

FRANCA, Ronaldo. Como pensam os brasileiros. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2022, ano 40, n. 33, 22 de agosto de 2007.

GAMEZ, Milton. José Vicente : somos um país de sacis-pererês. ISTOÉ. São Paulo : Editora Três. N. 1954, 11/04/2007.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Editora Objetiva Ltda., 2001.

KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. 2ª. impressão. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 2006.

Page 82: FACULDADE OPET CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO MBA – …

KOPPE, Jennifer. Quem somos nós? Gazeta do Povo, Curitiba, p. 7, 11/2/07.

MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005.

NEGROS SÃO METADE DOS DESEMPREGADOS. Gazeta do Povo, Curitiba, 18/11/06.

PARA GRUPO PRÓ-COTAS, MELHOR SOLUÇÃO SÃO AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Folha de São Paulo, São Paulo, 7/7/06.

RANGEL, Natália. Gilberto Freyre, Pensador do Brasil. ISTOÉ. São Paulo : Editora Três, n. 1984, 7/11/07.

REALISMO NAS COTAS. Gazeta do Povo, Curitiba, 11/8/07, p. 14.

SILVA, P. B. G. e; SILVÉRIO, Valter Roberto. Educação e Ações Afirmativas : Entre a justiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília : Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.

UNGER, Roberto Mangabeira. Justiça Racial Já. Folha de São Paulo, São Paulo, 13/1/04.

ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.