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NÚMERO 1 Edição Longa ANDRÉ DE LEONES - A tragédia é o nosso estado natural GARTH RISK HALLBERG - A volta dos longos? LIEV TOLSTÓI - Guerra e paz AURA ESTRADA - Borges, Bolaño e o retorno da épica D.H. LAWRENCE - O amante de Lady Chatterley MARK TWAIN - Cartas e mais. CASMURROS

Fanzine Casmurros

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Page 1: Fanzine Casmurros

NÚMERO 1Edição Longa

ANDRÉ DE LEONES - A tragédia é o nosso estado natural

GARTH RISK HALLBERG - A volta dos longos?

LIEV TOLSTÓI - Guerra e paz

AURA ESTRADA - Borges, Bolaño e o retorno da épica

D.H. LAWRENCE - O amante de Lady Chatterley

MARK TWAIN - Cartas

e mais.

CASMURROS

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COLABORADORES DESTA EDIÇÃO

André de Leones nasceu em 1980, em Goiânia. É autor do romance Como desaparecer completamen-te lançado pela Rocco em 2010, entre outros.

Garth Risk Hallberg nasceu em 1978, nos Estados Unidos. Ele é autor do romance A Field Guide to the North American Family. Integrante da equipe do site The Millions, seus contos e ensaios já foram pu-blicados em jornais e revistas como Glimmer Train, Canteen, The Pinch, Slate e The Los Angeles Times.

Liev Tolstói nasceu em 1828, em Iasnaia-Poliana, na Rússia, e faleceu em 1910 na estação ferroviária de Astapovo. Um dos maiores autores da literatura russa do século XIX, é autor de Anna Kariênina,

Guerra e paz, A morte de Ivan Ilitch, entre outros.

Aura Estrada nasceu em 1977, em Guanajuato, no México, e faleceu em 2007 na Cidade do México. Estudante Ph.D. na Universidade de Columbia, ela publicou resenhas e crônicas nas revistas

Bookforum, Wordswithoutborders.org e The Boston Review e na revista mexicana DF. Também publicou ficção em www.letralia.com.

Fábio Justino nasceu em São Paulo, mas vive em Santo André. Formado em Letras, ele é autor de blogs de rock e literatura, além de trabalhar como revisor. Ele escreveu o texto de apresentação

sobre D. H. Lawrence.

D. H. Lawrence nasceu em 1885, em Nottingham, na Inglaterra, e faleceu em 1930. Ao longo de sua vida publicou romances, poemas, peças de teatro e crítica literária. É autor de Mulheres apaixonadas,

O arco-íris e O amante de Lady Chatterley.

Rodrigo Bottura nasceu em 1980, em São Paulo. Formado em Letras, fez a tradução da carta de Mark Twain, escreveu o texto de apresentação do autor e revisou a tradução

do ensaio de Aura Estrada e Garth Risk Hallberg.

Giulia Paolillo nasceu em 1988, em São Paulo. Ela é ilustradora e designer e fez todas as ilustrações desta edição.

Nathalia Lippo nasceu em 1988, em São Paulo. É designer e também ilustradora e fez a diagramação e a arte dessa edição

Solange Reis fez a revisão.

Rafael Ramos nasceu em 1980, em São Paulo. Formado em Letras e edita o Casmurros. Também fez a tradução dos ensaios de Aura Estrada e Garth Risk Hallberg.

Agradecimentos: Companhia das Letras, Cosac Naify, Susan Harris, Francisco Goldman e Garth Risk Hallberg.

“A tragédia é o nosso estado natural”, de André de Leones, reproduzido sobre permissão do próprio autor. Copyright © André de Leones; “Is Big Back?”, de Garth Risk Hallberg, reproduzido e traduzido sobre permissão do próprio autor. Copyright © Garth Risk Hallberg, 2010. Tradução de Rafael Ramos, 2011; “Guerra e paz”, de Liev Tosltói, Tomo 3, Segunda Parte, cap. 26, tradução de Rubens Figueiredo, reproduzido sobre permissão da editora Cosac Naify. Copyright © Cosac Naify. Todos os direitos reservados; “Borges, Bolaño, and the Return of the Epic”, de Aura Estrada, reproduzido e traduzido

sobre permissão de Francisco Goldman. Copyright © Aura Estrada, 2006. Tradução de Rafael Ramos, 2010 - Publicado pela primeira vez como “Borges, Bolaño, and the Return of the Epic” em Words without Borders (www.wordswithoutborders.org), Outubro de 2006; “O amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence, tradução de Sérgio Flaskman, reproduzido sobre permissão da editora Penguin Companhia das Letras. Copyright © Penguin Classics Com-panhia das Letras. Todos os direitos reservados; “Mark Twain’s Letters 1867-1875”, de Mark Twain. Domínio público. Tradução de Rodrigo Bottura, 2010.

Casmurros é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Brasil.

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Nos últimos anos a internet impulsionou um enorme interesse das pessoas por ler ou escrever ficção. Com a redução de espaço nos jornais e revistas, a internet foi aos poucos se tornando o meio natural para proliferação e divulgação de novos escritores. Foi também a internet que proporcionou uma enorme onda de comentários de editores, críticos, membros da academia e leitores comuns. No entanto, as redes sociais e os blogs, apesar de todas essas mudanças, são tidos como espaços superficiais, de crítica ligeira e im-pressionista.

Mas esse mar imenso de vozes esconde em águas profundas pequenas péro-las que precisam ser compartilhadas e lidas com atenção, com calma.

O Casmurros é um fanzine simples, sem muitas pretensões. É um espaço vol-tado para a ficção interessante, seja ela nova, antiga, nacional ou estrangeira. Também é um lugar para ideias e ensaios sobre ficção, publicando textos originais ou de grande importância histórica que não poderiam aparecer em outro lugar. Evidentemente, não será possível esgotar nenhum assunto e nem dar conta de abarcar tudo o que acontece por aí. O principal objetivo é des-pertar paixão, criar debate e colocar em circulação vários assuntos ligados ao universo da ficção.

O fanzine será publicado três vezes no ano - abril, agosto e dezembro. Será distribuído gratuitamente em formato PDF e se você tiver interesse poderá imprimi-lo no papel que quiser para ler no metrô, no ponto do ônibus ou na fila do cinema. Quem não quiser imprimir pode ler diretamente no compu-tador. Os adeptos dos leitores digitais, também podem converter o formato PDF para outro formato acessível ao seu aparelho.

O designer do fanzine foi pensado para tornar a leitura agradável. Exatamen-te como aqueles bons livros que todo mundo gosta de ler. Não tem som, nem hiperlink, nem animações em flash. Apenas ilustrações em preto e branco de gente com muito talento.

Venha junto lendo, comentando, contribuindo e também compartilhando seu jeito de ler as coisas. Deixe a sua voz soar e faça-se ouvir!

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão...MACHADO DE ASSIS.

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Ficção

A tragédia é o nosso estado natural

André de Leones

Gracias, Bruno.

Foi um pouco antes da última Copa do Mundo, logo depois que a minha irmã foi solta. A

mãe recebeu alta naquele dia e eu achava que tudo ia se endireitar. Não ia, é claro. A escola tinha entrado em greve e eu ganhava uns trocados trabalhando com o meu tio na ofici-na dele. A ideia era aprender alguma coisa, mas o máximo que acontecia era eu perder dias inteiros em filas de banco ou buscando peças de que eles precisavam para arrumar os carros. No dia em que a minha mãe ia sair do hospital, meu tio ligou logo cedo e disse para eu ficar em casa. “Daqui a pouco eu passo aí.” Ele só apareceu no começo da tarde, de banho tomado e camisa social, os cabelos penteados para trás e aquele jeito esbaforido de quem está sempre atrasado. Foi entrando e gritando o meu nome. “Onde é que você se meteu, porra?” Eu estava no quarto, folhean-do uma Quatro Rodas. Ele parou do lado da minha cama, tirou a carteira do bolso e, dela, umas notas amassadas. “O que é isso?” “Dinheiro. Nunca viu?” Estendeu duas notas de vinte e uma de dez reais na minha direção. “Vou lá no Hospital de Base buscar a sua mãe. Você pega esse di-nheiro e compra duas ou três garrafas de vinho, melhor logo três, daquele vinho bom que a gente bebeu quando sua irmã voltou, sabe qual é?” “Mioranza?” “Mioranza, esse mesmo. Compra três garrafas de Mioranza e o que você precisar pra agilizar uma macarronada.” “Só isso?” Coçou a cabeça e pensou um pouco. Em seguida, pegou mais vinte

reais da carteira e também me entregou. “Umas latinhas de cerveja, também. Antarctica.” Ele ia saindo quando pareceu se lembrar de uma coisa. Disse sem olhar para trás, a mão direita no um-bral da porta: “Fala com a sua irmã. Diz que a sua mãe ia ficar muito feliz se topas-se com ela por aqui.” Concordei com a cabeça e, depois que ele saiu, troquei de roupa, calcei meu tênis e tratei de ir ao mer-cado comprar o que ele tinha pedido. No caminho, dei com a minha irmã parada em uma esquina. Conversava com um motoboy e eles riam de algu-ma coisa. Ela usava uma camiseta dos Doors que tinha sido minha, estava de bermuda jeans e tênis, os cabelos amarrados. Parecia alguém que ia sair correndo a qualquer momento. Alguém em fuga constante. Assim que me viu, despachou o cara e veio na minha direção. “O que você quer?” “Nada. Vou no mercado.” “Ah.” A gente ficou um tempo parado no meio da calçada, lado a lado, como se eu estivesse esperando que ela dissesse alguma coisa e vice-versa. Como se a gente posasse para uma fotografia e se recusasse a olhar para a lente, encarando o chão ou o nada, o oco de todo o resto. Então, eu a deixei ali parada e segui meu caminho. Pensei que, depois de um tempo, ela fosse acabar vindo atrás de mim, mas isso não aconteceu. Quando voltei, estava me esperando na mesmíssima esquina. “Desculpa”, disse, as mãos para trás, o olhar perdido em um ponto qualquer do outro lado da rua. “Achei que você tinha vindo aqui im-plicar comigo ou, sei lá, trazer algum recado do tio.”

Mudei as sacolas da mão es-querda para a mão direita. Três garra-fas de vinho Canção (o Mioranza tinha acabado), um pacote de espaguete, duas latas de sardinha, meio quilo de salsicha, duas cebolas grandes e oito latinhas de Antarctica. “O tio foi buscar a mãe no hospital. Ela teve alta. Vou fazer um macarrão, comprei uns vinhos, cerve-ja.” “Com que dinheiro?” “Dinheiro do tio. De quem mais?” “Ele é um sujeito bacana.” Sabia que ela estava de saca-nagem, mas concordei mesmo assim: “Ele é”. “Então”, ela disse, encolhen-do os ombros, a voz tremendo um pouco. “Ele é um sujeito bacana.” Troquei as sacolas de mão outra vez. “Você vem?” “Vou o quê?” “Comer com a gente.” “Não sei. Talvez.” “O que você vai fazer?” “Nada. Não sei. Eu não tenho nada pra fazer. Tinha pensado em pegar um cinema, mas, sei lá. Ele não quis me levar.” “Onde é que ele mora?” “Setor O. É motoboy.” “Deu pra perceber.” Ela ficou me olhando e depois sorriu como se dissesse: “É”. Mas não disse nada. Troquei as sacolas de mão pela terceira vez. “Acho que você podia... sei lá. Acho que eles não vão te encher o saco.” “Sei lá.” “Você que sabe.” Coloquei as sacolas sobre a mesa da cozinha, puxei uma cadeira e me sentei para descansar um pouco. Fiquei olhando para as marcas que as sacolas tinham deixado nas minhas mãos. A base do polegar da mão direita estava meio roxa. Corri até o banheiro , abri a torneira da pia e deixei a água cair em cima das minhas mãos por um bom tempo. A sensação era boa. Todo o resto desapareceu e eu tive vontade de mergulhar a cabeça em um balde cheio d’água. Lembrei de quando era pequeno e o pai levava

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Ficção

todo mundo, eu, a mãe, minha irmã, o tio, para a Água Mineral. A gente também fez duas ou três viagens para Caldas, no inverno. Eu me lembrava dessas coisas. Minha irmã talvez tives-se esquecido. E a mãe, claro. A mãe fez questão de esquecer tudo. Voltei para a cozinha e peguei a panela maior, esmaltada, enchi de água e, quando ela estava bem cheia, fechei a torneira e fiquei olhando para o meu reflexo ali dentro. A panela den-tro da pia, a água dentro da panela, a minha cara refletida na água. Pensei que era até melhor que a minha irmã não aparecesse, e depois pensei que não, que ela tinha que aparecer, que a mãe ia gostar de ver nós dois ali, jun-tos, inteiros, reunidos. Como se isso significasse alguma coisa. Bem, talvez significasse para ela. Para a mãe. Eu mal tinha colocado a pa-nela no fogo quando a minha irmã en-trou na cozinha. Sem dizer nada, tirou as coisas das sacolas, colocou as garra-fas de vinho e as latinhas de cerveja no congelador e descascou e cortou as

cebolas e colocou dentro de um prato. Depois, começou a cortar as salsichas em rodelas bem finas. Esperei a água ferver e então coloquei o macarrão. “Você devia ter comprado bacon”, disse a minha irmã. “Esse seu macarrão fica melhor com bacon.” Era verdade. “Esqueci. Foi mal.” Peguei uma panela menor, coloquei um pouco de óleo e fritei as cebolas. Depois, coloquei as salsichas e a sardinha e misturei tudo. Pedi à minha irmã que pegasse uma lata de creme de leite que estava no armário. Ela pegou, abriu e me entregou. “Você realmente sabe fazer essa merda”, ela disse enquanto sorria (acho que estava sorrindo) às minhas costas. “Acho que é a única coisa que eu sei fazer.” Agora ela estava rindo: “Não é?” Em seguida, abriu o con-gelador e pegou uma das garrafas de vinho. Encheu dois copos que

estavam no escorredor sobre a pia e estendeu um deles um na minha direção. Peguei e tomei um gole. Ela se sentou numa cadeira, os cotovelos sobre a mesa. O cheiro de fritura to-mava toda a cozinha. Desliguei o fogo da panela menor. O macarrão ainda cozinhava. Abri a janela que ficava sobre a pia e fiquei olhando a parede do prédio vizinho. Como se enxergas-se um desenho naquelas rachaduras todas. Alguma lógica. Qualquer coisa. Fiquei ali parado por um tempo. Depois, abri o congelador e peguei uma forma de gelo. Dois cubos no meu copo, dois no copo da minha irmã. Guardei a forma no congelador e fiquei olhando o macarrão cozinhar. Estava quase no ponto. “Eu jurava que a mãe ia mor-rer”, disse depois de um tempo, sem desviar os olhos da panela. Minha irmã bebeu todo o vinho que estava no copo de um só gole. Mastigava um cubo de gelo quando disse: “Não é?”

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Três Livros

Pornopopéia, de Reinaldo Moraes.Editora Objetiva

Depois de um tempo sem publicar romances adultos, Reinaldo Moraes voltou com um livro que tem entre seus admiradores os críticos Roberto Schwarz e Leyla Perrone-Moisés. Zeca é um ex-diretor de cinema marginal que tem nas mãos a difícil tarefa de fa-zer um vídeo institucional de uma nova linha de embutidos de frango. A falta de inspiração e os dilemas pessoais o conduzem numa série de trapalhadas sem fim em busca de sexo, bebidas e drogas (muitas drogas). O livro com-bina a linguagem chula das ruas com um texto fluído e inventivo capaz de prender a atenção de qualquer leitor. Moraes, através de Zeca, faz um retra-to hilário do mundo contemporâneo em que imperam valores como indi-vidualismo, a busca desenfreada pelo prazer a qualquer custo e os excessos por todas as partes. Porém, a decepção e a tristeza andam sempre a espreita do protagonista até que um dia ele possa perceber que a vida não é uma verdadeira festa.

O tambor, de Günter Grass.Nova Fronteira

No ano passado esse longo romance escrito por Günter Grass comemorou cinquenta anos desde a sua primeira publicação na então Alemanha Ociden-tal. Internado em um manicômio, Oskar Matzerath relembra sua vida desde os três anos de idade, quando decide parar de crescer por ódio aos pais e ao mundo adulto. A partir de então, de-dica sua vida a um tambor de lata que toca obsessivamente e que serve como uma maneira de se comunicar com o mundo. Apesar do corpo de criança, Oskar tem um raciocínio maduro, capaz de compreender com clareza fatos im-portantes para a história da sociedade alemã. Por meio de uma narração ágil e com ares fantásticos, Günter Grass escreve um romance de crítica social e política em que surgem vários níveis de leitura sobre a história da Alemanha. O livro faz parte de uma trilogia seguida por Gato e rato e Anos de cão (ambos fora de catálogo).

As correções, de Jonathan Franzen.Companhia das Letras

Antes de se tornar o escritor mais co-mentado do momento Jonathan Fran-zen escreveu um romance que é uma pequena obra-prima. Alfred Lambert é um aposentado que está sofrendo as consequência do mal de Parkinson e sua mulher, Enid, quer reunir seus três filhos para um último Natal em sua casa na cidade americana de Saint Jude. No entanto, Gary, Chip e Denise na ânsia de conquistarem uma vida diferente e promissora se afundaram em suas próprias tragédias pessoais. Aos pou-cos a reunião familiar vai dando lugar ao fracasso, à tristeza e à frustração. Com esses elementos Franzen criou um poderoso romance de fôlego, cuja grandeza está concentrada na constru-ção de suas personagens e no olhar do narrador que oscila entre os momentos de ironia ácida e grande impacto emo-cional. Não é à toa que muitos críticos enxergam em Franzen um pouco de Tolstói já que cada família é trágica a sua própria maneira.

Longos

Edição e textos: Rafael R.

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ensaio

O Google está nos tornando es-túpidos? A busca pela leitura nos Estados Unidos está mor-

rendo? O romance vai sbrvvr a era do twtr? Combine o suficiente dessas proposições-chave, e você começa a perceber um padrão. Ostensivamente abertas, a sua existência pressupõe uma resposta afirmativa: sim, o Goo-gle está nos tornando estúpidos... pelo menos, estúpidos demais para admitir a possibilidade de que não se tratam de perguntas cujas respostas sejam sim ou não. Se a presunção é correta, nós podemos razoavelmente esperar vê-la refletida na forma evolutiva do romance literário. Em agosto do ano passado, numa reportagem de capa sobre Jonathan Franzen, Lev Gross-man postulou na revista Time que “a tendência na ficção na última década tem sido no sentido da especializa-ção: o closeup, a miniatura, o micro-cosmo”. E, na prática, um jovem escri-tor, apresentando o seu manuscrito para os editores, rapidamente supõe que a definição corrente de romance não é mais a de Randall Jarrell “uma narrativa em prosa de um determi-nado comprimento que possui algo errado”, mas “uma prosa narrativa de 235 a 325 páginas que podemos publi-car como um livro original”. Joshua Cohen, autor de vários livros aos 29 anos, recentemente disse ao The New York Observer que, das oito edito-ras por que seu romance Witz (800 páginas) passou, “uma disse que iria publicá-lo se tivesse 200 páginas... uma outra disse que teria publicado há 10 anos quando as pessoas liam romances”. Mas, se como Grossman suge-re, a “megafauna literária da década de 1990” já não vaga pela terra, como explicar o interesse da Time por Free-dom (576 páginas)? Além disso, como explicar o emaranhado de romances longos que rodeiam as prateleiras das livrarias americanas – não só Witz, mas The children’s book, de A.S. Byatt

(675 páginas), e The lonely polygamist, de Brady Udall (599 páginas), e The four fingers of death, de Ricky Moody (725 páginas), e Matterhorn, de Karl Marlantes (529 páginas), e Three days before the shooting (1136 páginas), e Wolf Hall de Hilary Mantel (560 pági-nas), e a trilogia Seu rosto amanhã, de Javier Marías (1384 páginas) e The instructions, de Adam Levin (1030 pá-ginas)? Examinando aquelas pratelei-ras, qualquer um começa a suspeitar da propagação de micro-designações como “megafauna literária” (ou me-nos caridosamente, “mega-romances fálicos”), ao invés da plenitude ou escassez da espécie em questão, é o verdadeiro marco histórico da nossa evolução cultural. Não faz muito tempo, a frase “romance longo” não era menos redundante do que romance curto. As práticas de publicação em série de periódicos do século XIX empurraram os escritores vitorianos à amplitude. Multiplique 16 (o número de páginas em uma assinatura) por dois (o nú-mero de assinaturas em uma parcela) por 20 (o número de parcelas favo-recido por Dickens e seus editores), e você terá 640 páginas da série – o comprimento, mais ou menos, de Dombey and son, Little Dorrit, e Bleak house. Sem mencionar Vanity fair e Middlemarch e Daniel Deronda... Logo,

Anthony Trollope iria conceituar seus romances com assuntos de dois ou três volumes. Minha edição de As torres de Barchester publicada pela Oxford Classics retém sua publicação em dois volumes. Ela vai de 1-271 e de 1-280. Ao final do segundo volume, o autor começa dar sinais de ter de atingir um certo número de páginas. Na era da impressão offset, o romance longo é mais heterodoxo. Não existe muita coisa que une Ricky Moody e Javier Marías e Hilary Man-tel, além do fato de que eles estão li-dos pela metade na minha cabeceira. (Não há nada como o nascimento de uma criança para que o comprimento total de um livro venha para o primei-ro plano de sua mente). Julgar esses escritores em conjunto é, portanto arriscar vários tipos de reducionismo. Mais importante (e falando de An-thony Trollope): não queira confundir grandeza geométrica com tipo esté-tico. Alguns dos melhores romances que li recentemente são mais curtos do que as editoras americanas ten-dem a publicar. (Em países falantes de espanhol, particularmente, romances curtos prosperaram de uma maneira que não ocorreu nos EUA. Um ensaio paralelo talvez se veja justificado). Ainda assim, a atual profusão de ro-mances longos parecem complicar o quadro do Inacreditável Encolhimen-

A volta do longo?Garth Risk Hallberg

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ensaio

sim como o público forma os hábitos do escritor, o escritor, pelas exigên-cias que escolhe fazer de seus leitores imaginários, cria a sua própria audi-ência. Uma das coisas desvalorizadas em Franzen é que ele escreve como se o romance ainda (como coloca Benjamin Kunkel) “dominasse a paisa-gem como uma montanha”. E eis que, lá está ele na capa da Time! Não queremos cobrir com um véu todas as várias maquinações cor-porativas que tornaram isso possível. Porém, no fim das contas, um grande número de leitores está, como seus antepassados do século XIX, lendo e pensando e falando sobre uma obra de ficção cujas dimensões físicas sinalizam uma grandeza correspon-dente do intelecto e do espírito. Certamente, podemos concordar que isso é uma coisa boa. No meio de tudo que é questionável e duvidoso sobre a nossa consciência em evolu-ção, a relação entre o romance e uma certa qualidade de atenção parece ser inevitável. Seja em livros longos ou de alguma forma exigentes, ou em frases longas e exigentes, ou prodi-giosas sutilezas de perspectiva, os escritores do século XXI continuam a buscar um público possuidor dessa atenção. E, contrariando (até agora) as previsões, os leitores continuam a fazer jus a essas expectativas.

Potter ficaram cada vez mais longos... Por outro lado, ao impedir a garantia de venda de livros como Harry Potter, os editores odeiam livros longos, como Cohen aprendeu de maneira dura. Eles são caros para publicar, dis-tribuir e armazenar. E, para agravar o problema, revisores odeiam ro-mances longos. É tão mais fácil dizer “é tão bom que eu tive de ler duas vezes” ao falar de The imperfectio-nists, de Tom Rachman (288 páginas) do que, digamos, Women and men, de Joseph McElroy (1191 páginas). Para uma explicação mais profunda da saúde duradoura do romance longo, temos que olhar para uma coisa mais difícil de quantificar: a formação do leitor. Quanto mais nos dizem que estamos nos tornando lei-tores de blogs, de textos, de tweets, de arquivos mais o comprometimento com o livro longo parece um ato de resistência. Pegar um romance com mais de 600 páginas é dizer a si mes-mo: “eu vou gastar de vinte e quatro a quarenta e oito horas da minha vida com um livro, ao invés do jornal, da internet ou do smartphone. Eu vou sentir isso na pele”. (Alguns vão argu-mentar que arrastar Infinite Jest no metrô é mais uma maneira de dizer, “olhe para mim!” Mas certamente questões de estilo, e de gênero estão em jogo aqui; ninguém faria as mes-mas acusações aos leitores de Mar-guerite Young). O desejo de escapar da colméia-mental do ciberespaço – e ser, mais uma vez, um leitor solitário – pode também estar em jogo no sur-gimento do “livro de prova Kindle”: o livro é tão adaptado para a sua forma de códex que ainda não pode ser reproduzido eletronicamente. Pense em Os originais de Laura, ou em The selected works of T.S. Spivet, de Reif Larsen, ou na edição da editora New Directions para The unfortunates, de B.S. Johnson, ou Nox, de Anne Carson (quase um rolo), ou Microscripts, de Robert Walser. No mínimo, o boom atual, ou miniboom, sobre romances longos deveria nos dizer que os escritores ainda acreditam nesse tipo de leitor. No final, isso pode ser o suficiente para garantir a sua sobrevivência; as-

to do Alcance da Atenção. A vontade dos editores de dar uma chance ao livro longo em 2010 pode estar ligada diretamente as chances dadas no passado. A luta feroz, em 2007, por As benevolentes, de Jonathan Littell (912 páginas), um trabalho exigente na tradução, certa-mente deve algo a recepção absorta de Roberto Bolaño, Os detetives sel-vagens (624 páginas) e a subsequente expectativa generalizada por 2666 (856 páginas). A editora McSweeney espera que The instructions repita o sucesso de The children’s hospital, de Chris Adrian (615 páginas). E Infinite Jest, de David Foster Wallace (1104 páginas) continua a ter uma segunda vida notável nas listas, e continua sendo o pão e a manteiga da editora a que pertence. Livros biográficos e artigos de David Lipsk e D.T. Max, bem como a copiosa discussão online, mantém o interesse no livro. Um funcionário de uma livraria local me disse que, nos últimos meses, ele está voando fora das prateleiras. Na verdade, depois de Infinite Jest, os duvidosos devem sentir um cheiro de decadência ou pelo menos de auto-consciência, em torno dos esforços de Cohen, Levin, e outros candidatos à prodigalidade. Para ser ainda mais grosseira-mente econômico, no trabalho árduo da Grande Recessão, o romance longo oferece aos leitores uma pro-posta de valor. Pode-se insultar todas as obras de William T. Vollmann, e admirar o escritor mexicano Mario Bellatin, mas até mesmo a 55 dóla-res, Imperial (1344 páginas) oferece um benefício muito maior na relação hora-dólar (é cerca de um-para-um) do que Salão de beleza (80 páginas). (Bem, Imperial não é realmente um romance, mas é estranho discutir livros longos e excluir os monólitos de Vollmann). Dito de outra maneira: Walks with men, de Ann Beattie (102 páginas) vai te custar tanto quanto uma ida ao multiplex local, e durar aproximadamente o mesmo tempo. E não vamos esquecer que os editores podem cobrar mais por um livro lon-go do que por um curto. Isso ajuda a explicar porque os romances de Harry

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Ficção

O centenário de morte de Tolstói

A editora Cosac Naify está pre-parando o lançamento de uma nova edição de Guerra e paz,

de Liev Tolstói. O livro será publicado em comemoração ao centenário de morte do escritor russo. Considera-do o maior romance da história da literatura, Guerra e paz foi publicado originalmente em capítulos no jornal russo Russkiy Vestnik, entre 1865 e 1867. A história trata nos menores detalhes de questões que atormenta-vam a sociedade russa no século XIX. A tradução dessa obra monumental será feita diretamente do russo por Rubens Figueiredo. A editora adian-tou um capítulo do romance que será publicado ainda em 2011.

Guerra e pazLiev Tolstoi

No dia 25 de agosto, véspera da batalha de Borodinó, o prefeito do palácio do impe-rador dos franceses, monsieur de Beausset,

e o coronel Fabvier che-garam ao acampamento

de Napoleão em Valúievo.

Depois de vestir o unifor-me palaciano, monsieur de Beausset man-

dou que fossem pegar o embru-

lho que ele havia trazido para o

imperador e entrou no primeiro cômodo da

tenda de Napoleão, onde, enquanto conversava com os ajudantes-de-ordens de Napoleão que o rodearam, começou a desembrulhar a caixa. Fabvier, sem entrar na tenda, ficou junto à porta, conversando com ge-nerais seus conhecidos. O imperador Napoleão ainda

não havia saído do seu dormitório e estava terminando de se arrumar. Bufando e arquejando, voltava ora as costas largas, ora o peito gordo e peludo, para a escova que o camarei-ro esfregava no seu corpo. Outro ca-mareiro, com um frasco seguro entre os dedos, borrifava água de colônia sobre o bem tratado corpo do impera-dor, com uma expressão que dizia que só ele e mais ninguém podia saber quanta água de colônia era preciso borrifar, e onde. Os cabelos curtos de Napoleão estavam molhados e cola-dos na testa. Mas seu rosto, embora balofo e amarelo, exprimia um prazer físico: “Allez ferme, allez toujours...”,i dizia ele para o camareiro que o borri-fava, ofegante e tenso. Um ajudante-deordens entrou no dormitório a fim de comunicar ao imperador quantos prisioneiros tinham sido feitos no combate do dia anterior e, cumprida sua missão, continuou junto à porta, aguardando a permissão para sair. Napoleão, de sobrancelhas franzidas, lançou um olhar de esguelha para o ajudante-de-ordens. − Point de prisonniers − repe-tiu as palavras do ajudante-de-ordens. − Il se font démolir. Tant pis pour l’armée russe − disse. − Allez toujours,allez ferme ii − exclamou, recurvando as costas e apresentando os ombros gordos ao camareiro. − C’est bien! Faites entrer mon-sieur de Beausset, ainsi que Fabvier iii − disse para o ajudante-de-ordens, com um aceno de cabeça. − Oui, Sire iv − e o ajudante-de-ordens sumiu pela porta da tenda.Dois camareiros rapidamente vesti-ram Sua Alteza e ele, numuniforme azul da Guarda, seguiu para a sala de recepção a passos firmes e ligeiros.Beausset, naquele momento, estava com as mãos ocupadas colocando o presente que trouxera da imperatriz bem na frente do caminho do impe-rador, sobre duas cadeiras. Mas o im-perador terminou de vestir-se e saiu com uma rapidez tão inesperada que Beausset não teve tempo de preparar inteiramente a sua surpresa. Napoleão percebeu sem de-mora o que estavam fazendo e adivi-nhou que ainda não estavam prontos.

Não quis privá-los da satisfação de lhe fazer uma surpresa. Fingiu que não tinha visto o senhor Beausset e chamou Fabvier à sua presença. De rosto franzido, severo e em silêncio, escutou o que Fabvier lhe dizia a respeito da bravura e da dedicação das suas tropas, que combateram em Salamanca, na outra extremida-de da Europa, e que só tinham um pensamento, serem dignas do seu imperador, e um só medo, deixá-lo insatisfeito. O resultado da batalha foi lamentável. Napoleão fez um co-mentário irônico durante a exposição de Fabvier, como se um combate não pudesse transcorrer de outro modo sem a sua presença. − Tenho de compensar isso em Moscou − disse Napoleão. − Atantôtv − acrescentou e chamou de Beausset que, naquela altura, já tivera tempo de preparar a surpresa, colocando algo sobre duas cadeiras e cobrindo com um pano. De Beausset curvou-se com a reverência profunda dos cortesãos franceses, que só os antigos servidores dos Bourbons sabiam fazer, e aproxi-mou-se, entregando um envelope. Napoleão voltou-se para ele com ar alegre e lhe de um puxão na orelha. − O senhor não perdeu tem-po. Muito bem. Mas o que Paris tem a dizer? − perguntou, passando subita-mente da expressão severa de antes para a fisionomia mais afetuosa. − Sire, tout Paris regrette votre absencevi − respondeu Beaus-set, da forma devida. Mas embora Napoleão soubesse que Beausset tinha de falar aquilo ou algo seme-lhante, embora soubesse, em seus momentos de lucidez, que aquilo não era verdade, gostou de ouvir o que Beausset disse. E dignou-se a lhe dar outro puxão de orelha. − Je suis fâché de vous avoir fait faire tant de chemin − disse. − Sire! Je ne m’attendais pas à moins qu’à vous trouver aux portes de Moscouvii − disse Beausset. Napoleão sorriu e, erguen-do a cabeça com ar distraído, olhou

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para a direita. O ajudante-de-ordens, em passos deslizantes, aproximou-se com uma tabaqueira de ouro e a ofereceu. Napoleão pegou-a. − Sim, foi até bom para o senhor − disse ele, aproximando do nariz da tabaqueira aberta. − O senhor gosta de viajar e daqui a três dias o senhor verá Moscou. Sem dúvi-da, o senhor não esperava conhecer a capital asiática. O senhor vai fazer uma viagem agradável. Beausset curvou-se agradeci-do por aquela atenção ao seu gosto pelas viagens (que ele até então ignorava). − Ah! Mas o que é isso? − dis-se Napoleão, ao notar que todos os cortesãos olhavam para algo cober-to por um pano. Beausset, com sua habilidade de cortesão, sem voltar as costas para o imperador, deu um quarto de volta e recuou dois passos, ao mesmo tempo retirava o pano que cobria o embrulho e dizia: − Um presente da imperatriz para Vossa Alteza. Era um retrato em cores claras, pintado por Gérard, de uma criança, o filho de Napoleão com a filha do imperador austríaco, um me-nino a quem por algum motivo todos chamavam de Rei de Roma. O menino lindo, de cabelos cacheados, com um olhar semelhante ao de Cristo na Madona Sistina,viii es-tava representado jogando bilboquê. A bola do brinquedo representava o globo terrestre e a vareta na outra mão do menino representava um cetro. Embora não estivesse de todo claro o que o pintor queria exprimir exatamente ao representar o cha-mado Rei de Roma enfiando o globo terrestre numa vareta, a alegoria pelo visto pareceu clara a Napoleão e lhe agradou bastante, como ocorrera com todos aqueles que tinham visto o quadro em Paris. − Roi de Rome − disse ele, apontando para o quadro com um gesto gracioso da mão. − Admirable! − Com a capacidade peculiar aos italia-nos de mudar à vontade a expressão do rosto, Napoleão aproximou-se do retrato e assumiu um ar de ternura pensativa. Teve a sensação de que o

que quer que ele dissesse ou fizesse naquele momento entraria para a história. Pareceu-lhe que o melhor que podia fazer naquele momento era, com toda a sua majestade − por conta da qual seu filho podia brincar com o globo terrestre num bilbo-quê −, dar mostras da mais simples ternura paternal, em contraste com aquela majestade. Seus olhos ficaram nublados, ele se abaixou, virou-se à procura de uma cadeira (uma cadeira surgiu de um salto sob ele) e sentou-se diante do retrato. Um gesto seu e todos saíram na ponta dos pés, dei-xando o grande homem sozinho com seus sentimentos. Depois de ficar ali por um tempo e depois de, sem saber para que, tocar com a mão na aspereza do ponto mais importante do retrato, Napoleão levantou-se e mandou cha-mar de novo Beausset e o ordenança. Mandou levar o retrato para a frente da tenda a fim de não privar a Velha Guarda, que se mantinha em redor da sua tenda, da felicidade de ver o Rei de Roma, o filho e herdeiro do seu adorado soberano. Como já esperava, enquan-to estava almoçando com o senhor Beausset, a quem concedera essa honra, ressoaram na frente da tenda gritos entusiasmados de oficiais e soldados da Velha Guarda dirigidos ao retrato. − Vive l’Empereur! Vive le Roi de Rome! Vive l’Empereur! ix − soaram vozes entusiasmadas. Depois do almoço, Napoleão, na presença de Beausset, ditou sua ordem do dia para o exército. − Courte et énergique! x − ex-clamou Napoleão, quando terminou de ler a proclamação que ele mesmo acabara de escrever de um só fôlego e sem nenhuma emenda. A ordem do dia era: “Soldados! Eis a batalha que vocês tanto desejavam. A vitória depende de vocês. Ela é indispensável para nós; nos dará tudo aquilo de que precisamos: acomodações confor-táveis e um breve regresso à pátria. Comportem-se como se comporta-ram em Austerlitz, em Friedland, em Vitebsk e em Smolensk. Para que a

posteridade mais remota se recorde com orgulho das façanhas de vocês no dia de hoje. E que digam de cada um de vocês: ele esteve na grande batalha de Moscou!” − De la Moskowa! − repetiu Napoleão, convidou o senhor Beaus-set, grande apreciador de viagens, a acompanhá-lo em seu passeio e saiu da tenda rumo aos cavalos selados. − Votre Majesté a trop de bon-téxi − disse Beausset em resposta ao convite para acompanhar o impera-dor: estava com vontade de dormir, não sabia andar a cavalo e tinha medo de montar. Mas Napoleão acenou com a cabeça para o viajante e Beausset teve de ir. Quando Napoleão saiu da tenda, os gritos dos membros da Guarda diante do retrato do seu filho soaram ainda mais fortes. Napoleão fez cara feia. − Tirem-no daí − disse, apon-tando para o retrato com um gesto elegante e majestoso. − Ainda é cedo para ele ver um campo de batalha. Beausset, de olhos fechados e de cabeça baixa, deu um suspiro profundo, indicando com esse gesto como sabia apreciar e compreender as palavras do imperador.

NOTAS:

i Francês: “Vamos lá, com firmeza, não pare”.

ii Francês: “Nada de prisioneiros”; “Eles é que es-

tão se destruindo”; “Pior para o exército russo.”

iii Francês: “Muito bem, mande entrar o senhor

Beausset, e também Fabvier”.

iv Francês: “Sim, senhor”.

v Francês: “Até já”.

vi Francês: “Senhor, Paris inteira lamenta a vossa

ausência”.

vii Francês: “Lamento ter obrigado você a fazer

uma viagem tão longa”.

“Senhor! Eu não esperava outra coisa que não

encontrá-lo às portas de Moscou.”

viii Refere-se a um quadro do pintor italiano

Rafael, do século XVI.

ix Francês: “Viva o Imperador! Viva o rei de

Roma!”.

x Francês: “Curto e enérgico!”.

xi Francês: “É muita bondade de Vossa

Majestade”.

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Borges, Bolaño e o retorno da épica.Aura Estrada

Durante suas vidas, Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño lutaram contra a vaidade e

todas as coisas pretensiosas, ambi-ciosas, comuns e prestativas. Ambos são casos particulares na literatura, que a máquina literária em si parece rejeitar. Não foram bestsellers. Du-rante uma parte importante de suas vidas, eles viveram sob a sombra da rejeição pública, ou na clandestinida-de da violação estética. A relação que estabeleceram com “o tempo deles” e com os escritores de sua época era complexa e salpicada de farpas. Certamente, o que eles entendiam como literatura pouco tinha a ver com o desejo de satisfazer qualquer estética (social, moral, política, filosó-fica) que não fosse a deles. A relação de ambos com a literatura era quase sagrada. Eles acreditavam em pouco, além disso, e se dedicavam somente a ela, como se a literatura fosse (talvez porque ela seja mesmo) uma questão de vida ou morte. Como em Flaubert ou Kafka, a literatura para eles não era um caminho para o respeito, o reconhe-cimento ou a realização pessoal; nem um meio difícil e perverso de subir na escala social ou econômica; mas sim um martírio ou uma peregrinação, ou uma peregrinação martirizada para a completa anulação: o nirvana literário. “O homem não é nada, o trabalho é tudo!” Flaubert postulava em uma carta exaltada ao seu amigo, o escritor George Sand. Da mesma maneira, em um discurso conferido em Barcelona um ano antes de sua morte, Bolaño declarou, “A literatu-ra é uma máquina blindada. Não se preocupa com os escritores. Às vezes nem sequer percebe que eles estão vivos”. Borges manteve essa noção em numerosos ensaios, de “Todo y nada” até “De alguien a nadie”, “La na-

deria de la personalidad”, e “El escritor argentino y la tradición”, em que fala da criação artística como um “sonho voluntário” a que se deve abandonar a si mesmo. No entanto, além de parti-lhar uma devoção quase religiosa à literatura, é difícil conciliar o trabalho de Borges com o de Bolaño. Quando o crítico espanhol Ignácio Echevarría escreveu que os romances de Bolaño eram “o tipo de romance que Bor-ges teria concordado em escrever”, ele concedeu um elogio ao escritor chileno, mas o que os jogos eruditos dos contos de Borges tem em co-mum com as sagas de fortuna e azar que são os romances volumosos de Bolaño? Borges simplesmente não é o precursor que naturalmente vem à mente quando lemos Bolaño.

II.Borges é um caso curioso na vastidão da literatura latino-americana do século XX. Entre as obras de escrito-res como Carpentier, Lezama Lima, Astúrias, Rulfo, Cortazar, Fuentes, García Márquez, Vargas Llosa e ou-tros, a obra de Borges está sozinha: ele nunca escreveu um romance. Sua história mais longa, “O congresso”, totaliza catorze páginas. Sua obra apaga o biográfico, o psicológico, e o local. Como consequência, suas his-tórias adquirem um nuance filosófico que os transformam em meditações místicas, ensaios, ou alegorias que questionam a natureza da realida-de. (O número de autores que tem se mostrado dispostos a usar seus talentos para destruir ou corrigir as estruturas da história mundial como a conhecemos é pequena; Kafka e Joyce poderiam começar uma peque-na lista.) Além disso, Borges rejeitou o romance realista e psicológico e defendeu as histórias de aventura.

Esta rejeição pode ser lida como uma ruptura inteligente com a própria tradição imediata a Borges, a litera-tura argentina e latino-americana da primeira metade do século vinte, e todos os “ismos” dos anos 20, 30 e 40. Para ele, o escritor – seja poeta ou romancista – era um fabricante, um rapsodo, um contador de histó-rias, e a épica foi a maior forma de arte.

III.Quando Bolaño se estabeleceu como escritor, não desperdiçou nenhuma oportunidade de se declarar um discípulo de Borges, “Como todos os homens, como todas as coisas vivas”, ele escreveu no Diari de Girona. Em “Borges y los cuervos” ele escreveu sobre sua visita fúnebre ao cemitério em Genebra onde Borges foi enterra-do. Em “El bibliotecário valiente”, ele elogia os méritos de seu precursor: “escrita clara, uma leitura de Whit-man (...) um dialogo e um monólogo antes da história, uma abordagem sincera do verso Inglês. E ele nos dá aulas de literatura que ninguém ouve. E lições de humor que todo mundo pensa que compreendeu ainda que ninguém entenda”. “Borges y Paracelso”, “Bor-ges y los cuervos”, e “El bibliotecário valiente” são os três únicos artigos que Bolaño dedica explicitamente à figura emblemática de Borges, mas a menção do seu nome é um denomi-nador comum em suas colaborações com várias publicações por toda a Espanha e América Latina – compi-lados recentemente com o título de Entre paréntesis – em que se revela a imensa dívida sentida por Bolaño, e por muitos outros escritores latino americanos de sua geração, para com Borges. Em El libro que sobrevive, “um exercício de memória que não é”, Bolaño nostalgicamente recorda a tarde de 1977 em Madri quando ele adquiriu as Poesias completas de Jorge Luis Borges, que devorou em uma noite. Lá ele descobriu “a inteligência bem como a coragem e o desespero, isto é, as únicas coisas que incitam a reflexão e mantêm a poesia viva”.A

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Ensaio

obra poética foi o primeiro livro comprado por Bolaño na Europa (du-rante sua estada no México, ele não comprava livros, ele os roubava). Em “Derivas de la pesada” Bolaño colocou as Poesias completas de Jorge Luis Borges no eixo do cânone literário da Argentina (uma posição que ele com-partilha com Macedônio Fernández, Bioy Casares, Julio Cortazar, Roberto Arlt). Para Bolaño, a literatura ar-gentina perdeu seu equilíbrio após a morte do poeta cego. Se soltaram as águas serenas de um sonho agradável no caos turbulento dos pesadelos. Posicionar Borges no centro do cânone da literatura argentina é, para Bolaño, uma maneira modesta de colocá-lo no centro de um cânone pessoal.

IV.O escritor e crítico espanhol Eduardo Lago apontou em um ensaio reve-lador sobre as obras completas de Bolaño que “a sua dívida com Borges é incalculável, mas é difícil imaginar algo que esteja tão longe da fragmen-tada ficção intelectual dos argenti-nos” quanto os enredos itinerantes de Bolaño. Borges cultivou uma prosa re-sumida que era expressão do pensa-mento preciso, sucinto: uma equação quase matemática. A erradicação do “eu” psicológico está em um espaço atemporal e que se postularia como eterno, se não fosse por algumas variações. Essas variações, Borges murmura em “Hombre de la esquina rosada”, também são formas de eter-nidade. Uma delas é a personalidade. Todo homem é Shakespeare e Shakes-peare é qualquer homem comum. A personalidade é um mito ou uma miragem mental atacada por Borges. A erradicação do ego é, claro, um tru-que literário que no fim se torna uma das características da obra borgiana. Seus “contos-ensaios” possuem uma brevidade devastadora. Sua escrita suprime, ou espera suprimir, qualquer impressão biográfica, para o bem do nirvana literário. Os romances de Bolaño avan-çam da brevidade de suas primeiras incursões narrativas para as propor-

ções mastodônticas de seu romance póstumo, 2666, que totaliza mais de mil páginas. Sua prosa acontece no Aqui e Agora. É embebida em imedia-tismo, o presente totalizante. Nela são encontrados inúmeras persona-gens que são bibliotecários e poetas, mas também os assassinos e gigolôs, loucos, desesperados, ressentidos. Seu modo desajeitado de narrar dá a impressão de ser impulsivo, como seus personagens, mas no fim revela-se que um único motor está movendo partes aparentemente distintas. Des-de seu primeiro romance, escrito em parceria com Antonio Porta e publica-do em 1984, Consejos de um discípulo de Morrison a un fanático de Joyce, uma inclinação pueril se manifesta: sua natureza rebelde, inconformista, sem vontade “de se acalmar”, como ele mesmo disse. Bolaño escreveu com seus instintos, Borges com a cabeça. Por que, então, escolher Bor-ges como O Precursor? Por que não Onetti, Cortazar, Puig, Vargas Llosa, García Márquez, ou qualquer um dos escritores forçados a se unir sob a categoria elástica do Boom? Os escri-tores que Bolaño leu com admiração, carinho, curiosidade, e às vezes com ódio? Ele nos deu a resposta em uma entrevista: O território que marca minha geração é aquele da ruptura. É uma geração altamente infratora, uma geração que quer deixar para trás não só o boom mas também o que o boom gerou, que é uma geração de escrito-res muito comerciais. É o território do parricídio por um lado. E por outro, é

o território do borgianismo. É preciso investigar cada margem, cada caminho que Borges deixou para trás. Para Bolaño, a obra de seus predecessores foi um tanto profa-na, sua expressão mais evidente é o sucesso comercial sem preceden-tes. Como Kafka, Bolaño entendia a literatura como um modo intenso de oração. Às vezes, até mesmo uma ca-dência hipnotizadora pode ser ouvida em sua prosa, como se fosse uma ladainha cantada quando exposto aos elementos. Seu valor estético não inclui “escrever bem”. O que ele queria revelar com sua narrativa superou os limites da elegância e do bom gosto. Ele procurou desmascarar as atrocidades cometidas em nome da “elegância” e do “bom gosto”. Em seu universo, esses termos eram pseudônimos de Civilização e Poder. Suas personagens eram marginaliza-das, os seres desesperados que, ao final, perdiam seu estilo. A elegância, a perfeição, e a exatidão pouco lhe importavam; o que ele achava trans-cendente era o enredo, o destino de suas personagens. Essa “falta de estilo” é uma outra forma de ruptura que o afasta de seus precursores ime-diatos – a prosa cristalina, correta de Garcia Márquez ou o hiperrealismo de Vargas Llosa – e dos mais distantes, como Flaubert, para quem a acústica da prosa era consubstancial à sua eficiência, sua beleza. Nesta nota, em “La supersti-ciosa ética Del lector”, Borges atacou a “vaidade do estilo” e a aspiração à “perfeição”, tomando como sua ban-deira a prosa descuidada de Cervan-tes: Mudanças na linguagem ex-cluem os significados laterais e as nu-ances de sentido; a página “perfeita” é aquela composta por esses valores delicados que podem ser desgastados com mais facilidade. Por outro lado, uma página que tenha uma vocação imortal pode suportar o fogo das erratas, das versões aproximadas, das leituras distraídas, da incompreensão, sem que sua alma fique deixada para trás nas provas. O que permanece, Borges

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Ensaio

argumenta, não pode ser encontrado no estilo, na forma, mas sim em um espaço mais profundo: o espaço do mistério, o inexplicável, tudo aquilo que a linguagem não consegue dizer. A experiência humana, o tempo.

V.Como Borges – cuja estatura como poeta dentro da tradição literária latino-americana, Roberto Bolaño, em várias ocasiões, tentou reivindicar – Bolaño começa sua carreira como um poeta, mas, para ser mais preciso, um poeta maldito. Fundou uma esco-la efêmera chamada “infrarealismo” que era ao mesmo tempo efêmera e dispersa. O recomeço de Bolaño como narrador não o fez perder sua paixão pela poesia, que ele conhecia bem e acompanhava de perto. Em uma ocasião declarou que a melhor poesia do século vinte teria sido escri-ta em prosa, citando Joyce como um exemplo. A figura do poeta é central, quase mítica em seus romances. Nelas a lucidez e bravura são codifica-das. Em seu artigo “La mejor banda”, escreveu estas linhas para justificar o enredo de um de seus principais romances, Los detectives salvajes (Os detetives selvagens): Se eu tivesse de roubar o ban-co mais seguro da Europa e pudesse escolher livremente meus parceiros no crime, definitivamente eu escolheria um grupo de cinco poetas. Cinco poe-tas de verdade, apolíneos ou dionisía-cos, não importa, mas os verdadeiros no sentido de ter um destino e vida de poeta. Não há ninguém no mundo mais valente. Não há ninguém no mundo que possa enfrentar os desastres com

maior dignidade e lucidez... como os astronautas perdidos em planetas dos quais não é possível escapar; ou em um exílio sem leitores ou editores, somen-te construções verbais ou canções idiotas cantadas não por homens, mas por fantasmas. Na associação dos escritores eles são as jóias mais valori-zadas e menos cobiçadas. Quando um jovem enlouquecido decide se tornar um poeta com dezesseis ou dezessete anos, é um desastre familiar infalível. Neste parágrafo está co-dificado a trama de Detetives, um romance no qual um grupo de jovens poetas partem em busca de Cesárea Tinajero, uma misteriosa poeta da vanguarda mexicana que desapare-ceu da cena literária no início do sé-culo vinte. Durante a jornada, alguns enlouquecem, outras se prostituem, outras morrem; mas todos lêem ou escrevem com fervor, ou admiram ou detestam poesia. Na mitologia Bolañesca, os poetas são seres que não tem nada a perder. Só a partir desse distancia-mento a verdadeira literatura pode nascer. Atenção: quando fala dos poetas, Bolaño não está pensando no respeitado Pablo Neruda ou no te-mido Octavio Paz, ele está pensando em Borges, Roque Dalton, Gabriela Mistral, Enrique Lihn, Rodrigo Lira, e acima de tudo, Nicanor Parra, que era segundo ele poeta por antonomásia. No entanto, apesar de todo seu amor por poesia, Bolaño nunca se esque-ceu de contar uma história em seus romances. Nesse sentido, ele divide com Borges a visão clássica do escri-tor como criador, como um contador de histórias. Em uma das seis famosas pa-lestras que Borges deu na Universida-de de Harvard em 1967, Borges falou sobre o futuro do romance e disse: Há algo sobre um conto, uma história, que vai estar sempre acon-tecendo. Não acredito que os homens jamais se cansarão de contar ou ouvir histórias. E se junto com o prazer de contar uma história tivermos o prazer adicional da dignidade do verso, então algo grandioso terá acontecido. Talvez eu seja um homem antiquado do século dezenove, mas tenho otimismo,

tenho esperança; e como o futuro nos reserva muitas coisas – como o futuro, talvez, reserve todas as coisas – eu acredito que a épica voltará para nós. Creio que o poeta será novamente um criador. Quero dizer, ele vai contar uma história e também vai cantá-la. E não pensaremos nessas duas coisas como diferentes, assim como nós não pensamos que elas são diferentes em Homero ou em Virgílio. Borges sentiu anacrônico de sua maneira mais otimista naquele outono de 67, e assim Bolaño se sen-tiria durante a década de 90, escre-vendo épicos enquanto muitos de seus contemporâneos alçavam a vela do navio da pós-modernidade com seus jogos eruditos e vanguardistas. Bolaño não se ligou integralmente a nenhuma dessas duas filiações, mas fez uso de seus recursos a fim de vol-tar a temas tão antigos como o exílio, a guerra, e a luta entre o bem e o mal. Em seus romances mais ambiciosos (Os detetives selvagens, 2666) cantou as aventuras da América Latina, não porque considerava a tragédia um recurso exclusivo daquele continen-te, mas como um meio de explorar o mundo, a fortuna humana e a desgra-ça. Ao lado de Borges, a prosa de Bolaño nos lembra que a literatura, quando não é uma mera aspiração, quando não é servil, desencadeia uma outra literatura, em que os valo-res do profano, uma realidade literá-ria, não funcionam (ou seja, naqueles casos excepcionais quando não é feita para servir a um sistema social, econômico, político, ideológico ou pessoal ((público ou secreto)) ). O que devemos pensar de quem despre-za o sucesso mundial por uma parcela de nirvana literário que não vende? É uma missão suicida a que poucos escritores, poetas, ou romancistas estão dispostos a se juntar. Contudo, estes são os casos que renovam a literatura, abrindo novos paradigmas. Seus exemplos não são para serem seguidos, mas sim para serem lidos.

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Os 50 anos do ilustríssimo amante

Fábio Justino

Numa época em que a literatura ainda causava algum reboliço social, em que um livro poderia mudar pensamentos, hábitos, poderia estimular uma revolução, num tempo em que palavras numa folha de papel eram mais do que palavras, eram ideias, uma obra foi banida. Levada a júri, sentenciada à morte. O Amante de Lady Chatterley, escrito pelo inglês D.H. Lawrence, teve sua primeira versão lançada em 1928, e a publicação impedida logo depois. “Os esgotos da pornografia francesa não tinham produzido nada de comparável”, afirmou-se à época. Trata-se da história de Constance Reid, casada com Clifford Chatterley, que, na ausência e com a permissão do marido, arranja um amante. O texto então é permeado de termos descabidos para uma sociedade ainda desacostu-mada com a exposição artística dos segredos de alcova. Passados os anos, com o surgimento de novos costumes, novos autores, novas ideias, e, sobretudo, com a sociedade um pouco mais desavergonhada, a obra finalmente conseguiu uma publicação oficial, após enfrentamento aos valores na Justiça pela editora Penguin, lá pelos idos 1960. O livro deixou de ser um reles relato de um pornógrafo ocioso para se tornar literatura, e tudo o que chocou os incautos de outrora hoje é visto como ferramentas de expressão de um artista legítimo e consagrado. Sr. Lawrence estaria orgulhoso agora ao ver sua obra chegar à comemoração dos seus 50 anos. Uma edição que inclui A propósito de O Amante de Lady Chatterley, trabalho do autor a respeito do imbróglio todo e de suas reais intenções literárias, isto com introdução de Doris Les-sing, Nobel de Literatura em 2007. Ainda há um apêndice e notas explicativas que situam o leitor na geografia das Midlands e no vasto contexto social e político no qual a trama está inserida. No Brasil, com tradução de Sérgio Flaskman, a edição sai pela Penguin Companhia das Letras. Se talvez um livro não possa mais causar tanto frisson, e o erotismo não mais nos choque, desfrutemos desta obra revolucionária para atentarmos ao menos às transformações que nós mesmos, como sociedade, vivenciamos ao longo desses tempos. É provável identificarmos algo novo em nós por meio de cada leitura, e releitura. Esdrúxula realidade esta para os nossos dias, mas possível. Grandes amantes, ou melhor, autores, nunca deixam de nos proporcionar grandes descobertas.

O amante de Lady ChatterleyD. H. Lawrence

Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê la tragica-mente. O cataclismo já aconteceu e nos encontramos em meio às ruínas, co-meçando a construir novos pequenos habitats, a adquirir novas pequenas es-peranças. É trabalho difícil: não temos mais pela frente um caminho aberto para o futuro, mas contornamos ou passamos por cima dos obstáculos. Precisamos viver, não importa quantos tenham sido os céus que desabaram.Era esta mais ou menos a posição de Constance Chatterley. A guerra der-rubara o teto sobre sua cabeça. E ela

percebera que todos precisamos viver e aprender.Casou se com Clifford Chatterley em 1917, quando ele veio passar um mês de folga do exército em casa. Tiveram um mês de lua de mel. Em seguida ele vol-tou para Flandres, 1 mas foi embarcado de volta para a Inglaterra seis meses depois, mais ou menos em frangalhos. Constance, sua esposa, tinha vinte e três anos; ele, vinte e nove.2

Seu apego à vida foi extraordinário. Não morreu, e seus fragmentos pare-cem ter readquirido a coesão. Perma-neceu dois anos nas mãos dos médicos. Depois disso, pronunciaram sua cura e ele pôde voltar à vida, com a metade in-ferior do corpo, da cintura para baixo,

paralisada para sempre.Isso aconteceu em 1920. Voltaram, Clifford e Constance, para a casa dele, chamada Wragby Hall, a “sede” da família. O pai dele morrera, Clifford era agora baronete, 3 sir Clifford, e Constance era lady Chatterley. Vieram assumir os cuidados da casa e começar a vida de casados na residência um tanto abandonada da família, com uma renda consideravelmente inadequada. Clifford tinha uma irmã, mas ela partira de casa, e não havia nenhum outro parente próximo. O irmão mais velho morrera na guerra. Aleijado para sem-pre, sabendo que jamais poderia ter filhos, Clifford voltou para casa nas en-fumaçadas Midlands para manter vivo

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ções socialistas, onde oradores discur-savam em todas as línguas civilizadas e ninguém se mostrava constrangido.As duas moças, portanto, desde muito novas não se intimidavam nem um pouco diante da arte ou dos ideais polí-ticos, uma atmosfera natural para elas. Eram ao mesmo tempo cosmopolitas e provincianas, com o provincianismo cosmopolita da arte que sempre acom-panha os ideais sociais mais puros.Foram mandadas para Dresden aos quinze anos de idade, pela música,

entre outras coisas. E divertiam se muito por lá. Viviam soltas em meio aos estudantes, discutiam com os homens questões filosóficas, sociológicas e artísticas, e eram equivalentes aos homens em tudo: só que ainda me-lhores, pois eram mulheres. E faziam excursões pelas florestas com rapazes vigorosos munidos de violões, tlang-tlang! —, entoavam as canções dos Wandervogel 7 e eram livres. Livres! Era a grande palavra. À solta no vasto mundo, à solta nas florestas matutinas,

o nome Chatterley enquanto pudesse.Mas na realidade não estava abatido. Deslocava se por conta própria numa cadeira de rodas, e mandara adap-tar um motor a uma dessas cadeiras móveis de jardim para poder trafegar lentamente em meio aos canteiros e pelo belo parque melancólico que na verdade lhe trazia um imenso orgulho, embora ele afetasse votar lhe uma certa indiferença.Tendo sofrido tanto, sua capacidade de sofrer se esgotara até certo ponto. Continuava estranho, alegre e anima-do, e quase, pode se dizer, radiante, com seu rosto sanguíneo e saudável e os olhos brilhantes e desafiadores, de um azul muito claro. Tinha ombros lar-gos e fortes, e mãos poderosas. Vestia-se com alfaiates caros de Londres e usava belas gravatas de Bond Street.4

Ainda assim, em seu rosto, podia se ver a expressão alerta, e também a ligeira vaguidão, dos inválidos.Esteve tão perto de perder a vida que atribuía extremo valor a quanto dela lhe restara. Ficava óbvio, no brilho an-sioso dos seus olhos, como se orgulha-va de ainda estar vivo depois do grande choque. Mas seus ferimentos foram de tal ordem que alguma coisa dentro dele se extinguira. Alguns dos seus sen-timentos se perderam, deixando uma lacuna inanimada.Constance, sua mulher, era uma jovem corada com ar de camponesa, macios cabelos castanhos, um corpo cheio e movimentos lentos, repletos de uma energia incomum. Tinha olhos azuis, grandes e inquietos, e uma voz mansa e suave; parecia ter acabado de chegar de sua aldeia natal. O que estava muito longe da verdade. Seu pai era o velho sir Malcolm Reid, pintor da Academia Real 5 bastante conhecido em sua época. Sua mãe fora uma das participantes mais cultas da Sociedade Fabiana 6 nos seus tempos mais gloriosos, praticamente pré rafaelitas. Cercadas de artistas e socialistas cultos, Constance e sua irmã Hilda tiveram o que se poderia definir como uma formação esteticamente nada convencional. Viajaram por Paris, Florença e Roma para respirar o mundo da arte, e noutra direção foram levadas a Haia e Berlim para as grandes conven-

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Ficção

NOTAS:

1 Área do norte da França e província da

Bélgica; sede de inúmeras batalhas na Primeira

Guerra Mundial.

2 O nome “Chatterley” era comum na cidade

natal de DHL, Eastwood: destacavam se George

Chatterley (1861 1940), gerente da Barber Walker

Co., e seu secretário entre 1918 e 1931, e suas

filhas Constance (1883 ?) e Winifred (1886 ?). A

ação principal do romance transcorre de 1922

a 1924. Quando é ferido em 1918, Clifford tinha

“vinte e nove” anos: mas tinha “vinte e dois” em

1914, quando começa a guerra. Constance tinha

“dezoito” em 1913 e “vinte e três” em 1918: mas

tem “vinte e sete” no início de 1924. Mellors,

nascido como DHL em 1885, tem “trinta e nove”

ano sem agosto de 1924; no início do mesmo

ano, Connie calculara que ele teria “trinta e sete

ou trinta e oito anos”.

3 Título hereditário superior ao de cavaleiro e

inferior ao de barão. No caso de Clifford, se ele

não tivesse um filho, o baronete seguinte seria

o descendente mais próximo do sexo masculino

de um detentor anterior do título. O tratamento

convencional para um baronete é o do título

antecedendo seu prenome (“sir Clifford”), e o de

sua mulher, “lady” seguido do sobrenome (“lady

Chatterley”). [No caso da presente tradução, o

tratamento de segunda pessoa “your Lordship”

ou “your Ladyship”, de uso corrente em subs-

tituição a “you” nos dois casos, foi substituído

pelo tratamento convencional descrito acima.

(N. T.)]

4 Rua de lojas caras em Londres.

5 A Academia Real de Artes, fundada em 1768.

6 A Sociedade Fabiana foi fundada em 1883 com

o fito de promover um socialismo moderado.

Os pré rafaelitas, um grupo de artistas plásticos

reformistas criado em 1848, procuravam emular

a pintura italiana do período “anterior a Rafael”,

especialmente seus detalhes muito nítidos e seu

contato imediato com a natureza.

7 Os Wandervogel (literalmente, “pássaros

migradores”) eram membros de uma organiza-

ção de jovens alemães que promovia a vida ao ar

livre, especialmente as excursões a pé.

com jovens rapazes transbordantes de desejo e dotados de esplêndidas vozes, livres para fazer o que quises-sem e, acima de tudo, dizer o que bem entendessem. O que contava mais que tudo eram as conversas, o intercâmbio apaixonado da fala. O amor era apenas um acompanhamento ocasional.Tanto Hilda quanto Constance tiveram suas primeiras experiências amorosas em torno dos dezoito anos. Os rapazes com quem conversavam com tanta paixão, cantavam com tanta ânsia e acampavam com tamanha liberdade sob as árvores sempre queriam, claro, a conexão amorosa. As jovens tinham muitas dúvidas, mas afinal falava se tanto dessa coisa, supostamente tão importante. E os rapazes se mostravam tão humildes e suplicantes. Por que então uma jovem não podia portar se como uma rainha e conceder a ele a dádiva de si mesma?De maneira que tinham concedido as dádivas de si mesmas, cada uma ao rapaz com quem tinha as discussões mais íntimas e sutis. As conversas, as discussões, eram o que importava: o amor físico, a conexão, era apenas uma espécie de reversão primitiva, e em boa parte um anticlímax. Depois dela, sentiam se bem menos apaixonadas pelo rapaz e até um pouco inclinadas a odiá lo, como se ele tivesse violado a privacidade e a liberdade interior de cada uma. Pois obviamente, no caso das moças, toda a dignidade, todo o sentido da vida, consistia na conquista de uma liberdade absoluta, perfeita, pura e majestática. O que mais po-dia significar a vida de uma jovem? Desembaraçar se das antigas e sórdidas conexões e submissões.E, por mais que se pudesse sentimentalizá la, toda essa história de sexo era uma das conexões e sub-missões mais sórdidas e antigas que existiam. Os poetas que a glorificaram eram quase todos homens. As mulhe-res sempre souberam que existia uma coisa melhor e mais elevada. E agora sabiam disso mais definitivamente que nunca. A linda e pura liberdade da mulher era infinitamente mais magní-fica que qualquer amor sexual. A única dificuldade é que nessa matéria os homens estavam muito mais atrasados

que as mulheres. E faziam questão da coisa do sexo, como cães.E a mulher tinha de ceder. O homem era como uma criança, com seus apeti-tes. A mulher tinha de conceder o que o homem queria ou o mais provável era que ele, igual a uma criança, perdesse o controle, debatendo se pelo chão e ar-ruinando o que sempre tinha sido uma ligação muito agradável. Mas a mulher podia ceder sem entregar ao homem o que ela possuía de mais interior e de mais livre. Que os poetas e os que falavam tanto sobre sexo não pareciam levar na devida conta. A mulher podia aceitar um homem sem na verdade entregar se a ele. E certamente podia aceitá lo sem se entregar ao seu poder. Em vez disso, podia usar essa coisa do sexo para adquirir poder sobre ele. Pois bastava ela se conter na relação sexual, deixá lo acabar e esgotar se sem chegar ela própria à crise, para em seguida prolongar a conexão e chegar a seu orgasmo e sua crise tendo o como um simples instrumento.

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memória

Mark TwainRodrigo Bottura

Mark Twain foi o escritor responsável por dar à literatura norte-ameri-cana um fôlego novo, não só por escrever romances como Huckleber-ry Finn e Tow Sawyer, mas por seus contos, sátiras políticas e acima

de tudo pelo ato pioneiro de relatar suas viagens por seu país e pelo mundo. O conjunto de sua obra parece ter dado ao jornalismo americano da época uma certa cor local desprendida dos excessos que o antecederam. Tão interessante quanto seus romances são as cartas escritas ao longo de sua vida reunidas em diversos volumes. A correspondência entre ele e seus amigos revela desde acontecimentos banais no cotidiano do escritor até os basti-dores de seu processo de criação. A carta selecionada data de 1875 e foi enviada por Mark Twain a William D. Howells, na época editor da revista The Atlantic. Mark Twain estava finalizando seu romance As aventuras de Tom Sawyer que foi publicado em 1876. É interessante observar a dúvi-da do autor quanto a ver sua personagem principal chegar à vida adulta ou encerrar a história com ela ainda rapaz. Outro ponto curioso é sua incerteza em relação ao sucesso do romance. Twain chegou a considerar que o livro seria lido apenas por adultos.

Para W. D. Howells, em Boston:

HARTFORD, 5 de julho, 1875.

Meu querido Howells, - - Eu terminei a história e não levei o rapaz além de sua infância. Acredito que seria fatal fazê-lo de qualquer maneira que não autobiograficamente – como Gil Blas. Talvez tenha cometido o erro de não escrever em primeira pessoa. Se eu prosseguisse, agora, e o levasse até a idade adulta, ele seria insignificante como qualquer outro homem da litera-tura e o leitor desenvolveria um forte desprezo por ele. Não é um livro para garotos, de nenhuma maneira. Ele será lido apenas por adultos. Foi escrito para adultos. Além disso, o livro já é longo o suficiente do jeito que está. Tem cerca de 900 páginas de manuscritos, e pode chegar a 1000 quando eu tiver termi-nado de “trabalhar” os trechos vagos; então seriam entre 130 ou 150 páginas da The Atlantic – mais ou menos o que foi Foregone Conclusion, não?Eu gostaria muito de vê-lo na Atlantic, mas duvido que o livro cobriria os gas-tos dos editores pelos direitos, ou os meus por vendê-lo. Bret Harte vendeu seu romance (devo dizer do mesmo

tamanho que o meu) para a Scribner’s Monthly por $6.500,00 (a publicação começará em setembro, eu acho) e ele ganha 7 ½ por cento pelos direito da Bliss em forma de livro mais tarde. Ele ganha dez por cento pelos direitos autorais na Inglaterra (por tiragem) e o mesmo percentual em direitos sobre o livro publicado, e receberá o pagamento adiantado de quinhentas libras no dia em que a primeira tiragem do número aparecer. Se eu me der bem assim, aqui, e lá, com o meu livro, poderia ser o suficiente para me pagar, mas eu duvido seriamente que isso aconteça embora eu possa me dar melhor na Inglaterra do que Bret, que não é muito conhecido por lá. Veja eu tenho uma visão vil, mercenária das coisas – mas minhas despesas são algo completamente assustador.No futuro eu vou escolher um garoto de doze anos e acompanhá-lo por sua vida (na primeira pessoa) mas não Tom Sawyer – ele não seria uma boa persona-gem para isso.Eu gostaria que você prometesse ler o manuscrito de Tom Sawyer um dia des-

ses, e ver se você não acha que eu estou certo em finalizá-lo como um menino – e apontar os defeitos mais evidentes. É um favor enorme a se pedir, e espero que o recuse e ficaria envergonhado se esperasse o contrario. Mas estive pensando tanto tempo nisso que é um alivio dizer isso. Não conheço outra pessoa cujo julgamento eu me aventura-ria aceitar completo e totalmente. Não hesite em dizer não , pois eu sei como o seu tempo é valioso, e eu teria uma franca necessidade de me envergonhar caso você aceite.Osgood e eu vamos tentar a arrogante G---- por violação de marca. Ganhar um ou dois processos desse tipo daria mais segurança aos literatos. Gostaria que Osgood processasse pelo roubo do poema de Holmes. Não seria maravilho-so processar R---- por pequenos furtos? Eu prometo ir à corte e jurar que eu o penso capaz de roubar amendoins de um ambulante cego.

Sempre seu,CLEMENS.