Faoro - Capitalismo brasileiro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Faoro, baseado em Max Weber, faz uma distinção entre capitalismo economicamente orientado e capitalismo politicamente orientado. No livro Economia e Sociedade, este último faz uma discussão que está na base das indagações de Faoro sobre o capitalismo brasileiro.

Citation preview

  • 207

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    O capitalismo brasileiro e as

    modernizaes desvinculadas

    da modernidade*

    Maria Jos de Rezende Professora de Sociologia da Uel e Doutora em Sociologia pela USP.

    Resumo

    Faoro, baseado em Max Weber, faz uma distino entre capitalismoeconomicamente orientado e capitalismo politicamente orientado. No livroEconomia e Sociedade, este ltimo faz uma discusso que est na base dasindagaes de Faoro sobre o capitalismo brasileiro. Sua principal indagao :esse capitalismo politicamente orientado pelo Estado seria uma fase necessriapara que ocorresse o desenvolvimento do capitalismo economicamente orientado,aquele fundado numa lgica racional e independente do poder estatal? Baseadoem Weber, ele diz que no. O desenvolvimento desse capitalismo racional teriaque lutar obstinadamente para suplantar o capitalismo politicamente orientadopelo Estado. Mas h, no Brasil, grupos empresariais dispostos a esse embate?O que o processo socioistrico teria demonstrado sobre essa possibilidade aolongo dos sculos XIX e XX? Uma parte de suas anlises visa dar respostas aessas questes.

    Palavras-chaves

    Capitalismo, desenvolvimento; mudana social.

    Abstract

    Faoro, based on Max Weber, makes a distinction between the economically--oriented and the politically-oriented capitalism. In the book Economia e Sociedade,Weber discusses Faoros questionings about the Brazilian capitalism. His mainquestion was: Would this capitalism, oriented politically by the State, be a

    * Artigo recebido em 1 mar. 2005.

  • 208

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    necessary step for the development of the no. economically-oriented capitalism,the one based on a logic which is rational and independent from the State power?Based on Weber, his answer is The development of this rational capitalism wouldhave to fight obstinately to supplant the capitalism which is politically orientedby the State. But are there, in Brazil, companies which are willing to do so? Whatwould the social-historical process have shown about this possibility along thenineteenth and twentieth centuries? A part of his analyses intends to answerthese questions.

    Key words

    Capitalism; development; social change.

    Classificao JEL: P17, 054, P11.

    Introduo

    Neste artigo, faz-se uma reflexo sobre as indagaes de Raymundo Faoro(1925-03) acerca das dificuldades de o capitalismo, no Pas, romper com o seucarter politicamente orientado pelo Estado. Essa anlise recorre s suasdiscusses empreendidas tanto nas obras Os Donos do Poder (1989) e Machadode Assis: a Pirmide e o Trapzio (1988) quanto nos artigos e nas entrevistaspublicados em peridicos da grande imprensa. Foram pesquisadas as colunaspublicadas semanalmente na revista Isto /Senhor, para verificar como eleentendia o chamado processo de modernizao do capitalismo brasileiroempreendido no incio da dcada de 90 pelo Presidente Fernando Collor deMello (1990-92).

    Com base nos escritos de Max Weber (1999), Faoro faz uma distinoentre capitalismo economicamente orientado e capitalismo politicamenteorientado. O caso brasileiro, em razo da ao efetiva e persistente do Estadodesde o incio do processo de colonizao, seria um tipo singular de capitalismopoliticamente orientado, o qual, ao se estender ao longo de vrios sculos, definiuuma estrutura social e poltica fortificadora de um padro de domnio que seviabilizou em razo de seu carter perpetuador de prticas econmicas e polticasassentadas numa articulao entre o estamento patrimonial e burocrtico e aestrutura de classes. Esta ltima, por sua vez, (...) ao mesmo tempo em que

  • 209

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    influencia o estamento, dele recebe o influxo configurador, no campo poltico(Faoro, 1989, p. 203).

    O capitalismo brasileiro, politicamente orientado, alimenta-se e alimentadopelo patrimonialismo estatal, que tem como trao principal um modo de agircompletamente alheio e indiferente s necessidades da sociedade. Nessascondies, no se formou qualquer projeto de nao, j que os interesses coletivosforam sempre rechaados em favor dos interesses que possuem condies dese articularem em torno do aparelhamento estatal.

    Sempre, no curso dos anos sem conta, o patrimonialismo estatal,incentivando o setor especulativo da economia e predominantementevoltado ao lucro como jogo e aventura ou, na outra face, interessadono desenvolvimento econmico sob o comando poltico, parasatisfazer imperativos ditados pelo quadro administrativo, com seucomponente civil e militar. (Faoro, 1989, p. 733).

    Assim, afirma Faoro, (...) a realidade histrica brasileira demonstrou apersistncia secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente,inviolavelmente, repetio, em fase progressiva, da experincia capitalista(Faoro, 1989, p. 736). A base terica da discusso empreendida por Faoro acercado capitalismo brasileiro extrada dos escritos de Max Weber, principalmentedos textos que compem a obra Economia e Sociedade (1999). As discussesde Weber sobre o surgimento dos estados nacionais oferecem as melhorespistas para a compreenso das condies de desenvolvimento e/ou deemperramento do moderno capitalismo ocidental.

    Weber, analisando o capitalismo europeu, afirma:(...) o mercantilismo (...) no constitui o ponto de partida dodesenvolvimento capitalista, mas este aconteceu inicialmente, naInglaterra, paralelamente poltica monopolizadora fiscal domercantilismo, e isto de tal modo que uma camada de empresrios,que havia ascendido independentemente do poder estatal, encontrou,aps o fracasso da poltica monopolizadora fiscal dos Stuarts,no sculo XVIII, o apoio sistemtico do Parlamento. Pela ltima vezenfrentaram-se aqui numa luta o capitalismo irracional e o racional:o capitalismo orientado para oportunidades fiscais e coloniais epara monoplios estatais e o capitalismo orientado para oportunida-des de mercado que resultavam, automaticamente, sem medidasimpostas de fora, das prprias transaes comerciais (Weber, 1999,p. 524-525).

    Faoro, em vista desses argumentos, considerava que o capitalismoeconomicamente orientado para as oportunidades de mercado nunca se formou,de fato, no Pas. O capitalismo brasileiro, dependente do Estado, acabava por

  • 210

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    ser um elemento emperrador de uma economia racional. Para que esta ltima seconstitusse, era necessrio que emergissem agentes econmicos capazes deafrontar as tecnocracias estatais, os estamentos dirigentes que comandam oaparelhamento estatal. Mas isso no ocorreu ao longo da histria do Pas.Tem-se, principalmente a partir de 1964, a implementao de uma ditadura com o apoio dos setores capitalistas modernos (industriais) e arcaicos(agrrio-exportadores) que conduziu ao poder estatal um estamento militarcapaz de incorporar as classes dominantes sua forma de mando. Ou seja,estas ltimas, historicamente pouco autnomas diante do Estado, tornavam-se,mais e mais, em razo de um jogo de interesses (econmicos e polticos) queas favorecia, submetidas expressivamente estrutura militar e estruturacapitalista vinculada ao Estado (Faoro, 1976, p. 4).

    Os processos de modernizaes postos em andamento, no sculo XX, noPas traziam sempre a marca desse capitalismo politicamente orientado peloEstado que aqui vigorava. Tais processos

    (...) se circunscrevem ao tempo circular, com uma memriacondicionada ao tempo precrio, que dura enquanto outra onda sesobrepe atual, desfazendo-se ambas. A histria que da resultaser uma crnica de dspotas, de governos, de elites, de castas,de estamentos, nunca a histria que realiza, aperfeioa e desenvolve.A histria, assim fossilizada, um cemitrio de projetos, de iluses ede espectros (Faoro, 1994, p. 112).

    1 - Modernizao e modernidade: caminhos e descaminhos

    A tese de que as modernizaes postas em andamento no Brasil noconseguiram acionar um processo de desenvolvimento capaz de conduzir oPas rumo modernidade perpassou os escritos de Raymundo Faoro. Emmomento algum, ele supunha que a modernizao era um processo quefavoreceria a todos os membros de uma dada sociedade. No se trata, porm,de um processo de introduo de melhorias nas condies de vida da maioriada populao. Ela significa, sim, um projeto de mudana conduzido por umgrupo que, (...) privilegiando-se, privilegia os setores dominantes. Namodernizao no se segue o trilho da lei natural, mas se procura moldar,sobre o Pas, pela ideologia ou pela coao, uma certa poltica de mudana(Faoro, 1994, p. 99).

  • 211

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    As modernizaes1 que se sucederam ao longo dos sculos XIX e XX noconduziram ao desenvolvimento das condies para a instaurao da modernidadeno Pas, isto porque esta ltima (...) compromete, no seu processo, toda asociedade, ampliando o raio de expanso de todas as classes, revitalizando eremovendo seus papis sociais (Faoro, 1994, p. 99). Nesse caso, plenamentereconhecvel, no decorrer dos vrios anos e das vrias dcadas, que as aesmodernizantes postas em andamento abortavam quaisquer possibilidades denascimento de um devir em que todos os grupos sociais estivessem envolvidosna consecuo de um projeto de nao. O modo de controle, que se foiestabelecendo pelos grupos proponentes e condutores das vrias modernizaesque se sucederam no tempo, foi capaz de repelir intermitentemente a constituiode aes polticas capazes de engendrar caminhos por onde deveria fluir umanao, de fato, moderna no que tange ao conjunto das relaes sociais,econmicas, polticas e jurdicas.

    Faoro entende como modernidade tanto o processo de formao do Estadode direito e da cidadania quanto o de fortalecimento da sociedade civil comobase para a efetivao da democracia. No campo econmico, a modernidadeexpressa-se na constituio de um capitalismo economicamente orientado, oqual, segundo Max Weber, no derivou, ao menos na Europa, do capitalismoorientado pelo Estado. Aquele primeiro teria lanado bases em razo dosurgimento de uma camada de empresrios independentes do Estado, os quaistravaram uma luta contra o denominado capitalismo mercantil, ou irracional(Weber, 1999, p. 525).

    No caso do Brasil, quais seriam as possibilidades de um projeto demodernidade se impor nos campos econmico, poltico e social? As reflexesde Faoro tm esse problema como chave principal. As obras Os Donos doPoder (1989), Machado de Assis: a Pirmide e o Trapzio (1988), AssembliaConstituinte: a Legitimidade Recuperada (1981), Existe um PensamentoPoltico Brasileiro? (1994) e, tambm, as inmeras entrevistas e artigospublicados em vrios peridicos, nas dcadas de 70, 80 e 90 do sculo XX,tentam decifrar, em momentos e conjunturas diversas, obstinadamente, os(des)caminhos indicadores da desvinculao entre modernizao e modernidade.2

    1Modernizao, quer se chame ocidentalizao, europeizao, industrializao, revoluopassiva, via prussiana, revoluo do alto, revoluo de dentro ela uma s, com um vultohistrico, com muitas mscaras, tantas quantas as das diferentes situaes histricas.(Faoro, 1994, p. 99).

    2 Seria desejvel que o empresrio fosse independente ou, pelo menos, desfrutasse dealguma autonomia perante o Estado. Pois, enquanto a burguesia no se emancipar, en-quanto no ocorrer aqui uma transio capitalista, o Pas permanecer arcaico. (Faoro,1976, p. 4).

  • 212

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    Isto porque (...) a modernizao ser sempre uma concesso, uma forma deajustamento e nada mais (Faoro, 1976, p. 4).

    E por que a modernidade se impe? Ela se impe por no ser uma simplespoltica de mudana, como o caso da modernizao. Sendo um movimentoamplo que abarca a sociedade como um todo e, portanto, atinge todas as esferas(econmica, poltica, social, jurdica e cultural), as classes e os grupos, amodernidade no teria, segundo Faoro, como ser capturada, aprisionada edirecionada, inteiramente, quanto aos seus benefcios e conquistas, para algunssetores somente, como o caso da modernizao. E por que no seria possveltal captura e aprisionamento? Pelo fato de que as aes das diversas classessociais estariam na base do prprio movimento gerador dos caminhos damodernidade. Os embates, as lutas, as presses, os antagonismos queimpossibilitariam que o grupo dirigente coordenador do movimento que seimpe rumando a sociedade para a modernidade capturasse, somente parasi, os benefcios, os ganhos e as conquistas que adviriam desse processo.Essa , para ele, uma diferena bsica entre os dois processos denominadosmodernizao e modernidade.

    Quando (...) a modernizao se instaura, como ao voluntria, quema dirige um grupo ou classe dirigente com muitos nomes e demuitas naturezas que, na verdade, no reflete passivamente asociedade sobre a qual atua. Tal grupo, para mudar o que no vai, aoseu juzo, bem, comea por dissentir da classe dirigente tradicional.O desvio, entretanto, no altera a pirmide social, nem os valoresdominantes. Um exemplo (...) [foi] a projetada e frustrada reforma quese quis derivar da recepo do positivismo comtista, no sculopassado. Militares, engenheiros e mdicos, uma elite que noconseguia dar as cartas no estamento imperial (...), formam no umanova sociedade, mas um novo estamento, para que ocupe o lugar doantigo. claro que tal ascenso insegura s resultar numa mudanaespasmdica, limitada, incapaz de imantar toda a sociedade. (Faoro,1994, p. 100).

    O que tem sido caracterstica essencial das modernizaes (substituiodo trabalho escravo pelo trabalho livre, industrializao, urbanizao, proclamaoda Repblica, implementao do ensino superior, desenvolvimento da cincia,etc.) postas em prtica, ao longo da histria no Pas, a obstinada busca porcircunscrever os processos de mudanas desencadeados aos interesses dealguns grupos sociais que, de alguma forma, circundavam o projeto demodernizao em curso. Raymundo Faoro dava como exemplo as inovaes deD. Joo, que tinham, ao mesmo tempo, um carter de renovao e de frenagem,para que no ganhassem asas os interesses contrrios corte portuguesa. Os

  • 213

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    severos controles (...) da ascenso social que a emancipao poltica deveriaproduzir (Faoro, 1994, p. 100), a partir da Independncia, seriam outro exemplo.E por que tais controles, que acompanharam a modernizao poltica de 1822,significaram a anulao das possibilidades de o Brasil ir constituindo-se comouma nao que lanava as bases para a modernidade?3 Porque impede oflorescimento de antagonismos capazes de fazer emergir uma sociedade civilque seria fortificada pelas aes e pelos embates gestados pelos mltiplosenfrentamentos na arena poltica.

    Ao invs disso ocorreu que(...) entre a sociedade civil, frgil e vigiada, e o estamento aristocrtico,deu-se uma transao, alterada em torno dos meados do sculo XIX.A conciliao poltica, desarmando os antagonismos, regularia econtrolaria a mudana. Mantida a pirmide mantida a ordem, comose dizia o Imprio escravocrata adia sua mais urgente reformasocial, a do cativeiro, logo adiante, para se modernizar. Sem o sonhodas manufaturas e arquivado o projeto colbertiano, joga-se na febredas estradas de ferro e dos melhoramentos urbanos (Faoro, 1994,p. 101-102).

    Outros exemplos de modernizao que deixavam evidenciada a no-aberturado caminho para a modernidade foram discutidos por Faoro. Ele cita a tentativade elevar a cincia condio essencial da modernizao do Pas. O modocomo o estamento defensor da necessria cientificizao (juristas, engenheiros,mdicos e militares) tentava implementar a mesma punha s claras acircunscrio dos seus benefcios prpria elite dirigente. Manoel Bomfim (1993),intelectual e poltico, por exemplo, denunciava, no incio do sculo, esse projetode modernizao reafirmador da tutela do Estado e do parasitismo impregnado,desde a colonizao, na sociedade brasileira. H um dilogo dele com SilvioRomero (1969) questionando a crena cega, deste ltimo, no homem de cinciae nas suas propostas de modernizao.

    No incio do sculo XX, floresce uma perspectiva de modernizaoassentada essencialmente na cincia, encarada esta, por polticos, intelectuais,juristas4, como a salvadora da nao, j que promoveria a industrializao, o

    3 Entre a linha da modernizao e a linha da modernidade, h uma oposio que, mais queuma diversidade, no se funde numa contradio. A oposio pode, uma vez que no chega contradio, e da superao, conciliar-se e acomodar-se num quadro sem afirmaese sem negaes. A conciliao fixa, ceticamente, a indefinio como norma. (Faoro, 1994,p. 111).

    4 Entre eles, estavam Rui Barbosa, Slvio Romero, Tobias Barreto, Rodrigues Alves, PauloEgdio e outros.

  • 214

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    progresso, a ocidentalizao, a civilidade, a higienizao, as mudanas polticas,o rompimento com o passado colonial e com o carter inferior do povo brasileiro.Manoel Bomfim denunciou em 1905, em Amrica Latina: Males de Origem,esse iderio modernizante e excludente que repelia a menor possibilidade deflorescimento de aes dos setores populares. O povo, por esse meio, noparticipava da mudana: ele a padecia. Foi o que quis dizer Euclides da Cunha,ao notar que estvamos condenados civilizao, na obra Os Sertes (1995).A condenao civilizao significava, ento, a antimodernidade.

    Raymundo Faoro defende a tese de que as modernizaes postas emmarcha, nos diversos momentos histricos, no Pas acabavam por repelir amodernidade. E isso adquiriu sua feio mais acabada, a partir de 1930, com oprocesso de urbanizao e de industrializao que mantm intocadas as inmerastradies polticas e sociais brasileiras. Dentre elas, podem-se mencionar asreiteradas formas de manter uma parte expressiva da populao na condio defigurantes mudos, conforme observava Srgio Buarque de Holanda (1972). Aantimodernidade expressava-se tambm na conciliao que se vai tecendopaulatinamente entre uma sociedade que se industrializava e se modernizava euma organizao social patrimonialista e burocrtica que persistia, processoque culmina na negao absoluta da modernidade. Tal negao expressa-se nadomesticao, atravs do clientelismo, do personalismo e do populismo, dasclasses populares.

    E, entre 1930 e 1964, teria sido possvel identificar algum momento indicadorde que o Pas abria as portas para a modernidade? Faoro afirma que, na segundametade da dcada de 50, no Governo Juscelino Kubitschek (1956-61), (...)pode-se admitir uma febre de modernidade (Faoro, 1994, p.109). Para ele, essemomento no pode ser caracterizado como um processo de modernizao nosmoldes conhecidos no Pas, tanto anteriormente quanto posteriormente. O perodops 1964 caracterizado, por Faoro, como um processo drstico de modernizaoindustrial que levava ao extremo um projeto calcado na antimodernidade porexcelncia. Foi uma industrializao em [cujo projeto] os industriais no tiveramvoz (...) eles se transformaram, em escala sem precedentes na histrianacional, em concessionrios dos favores oficiais (Faoro, 1994, p. 109).

    Em outros momentos da histria poltica brasileira, as investidasdirecionadas modernizao acenavam para a possibilidade de uma relativaautonomia das classes dominantes. Depois do golpe militar de 1964, isso noestava mais em pauta. O estamento militar empenhou-se para submeter todos aseu projeto modernizante, at mesmo os industriais (Faoro, 1976). Esses sesubmeteram s imposies em vista das vantagens que vislumbravam auferircom a implementao do regime ditatorial. Esse projeto de modernizao foicontrolado e dirigido com mos frreas pelo estamento militar, que no deixou

  • 215

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    de contar com os civis (a tecnocracia), que compunham o grupo de poder e queoperavam vrias aes, visando amortecer o impacto das imposies sobre osprprios setores industriais. A estrutura militar e a estrutura capitalista vinculadaao Estado, representada pela tecnocracia (Faoro, 1976, p. 4), conduziam o projetomodernizante, exercendo aquela primeira o papel central no processo decisrio.Em 1976, Faoro afirmava:

    No acredito que o sistema industrial-financeiro participe do processode tomada de decises. A atuao dos tecnocratas consistejustamente nisso: uma deliberao sem a participao dosinteressados. Enquanto essas deliberaes favorecem o empresrio,ele tende a aceitar tranqilamente o processo. S quando se julgaprejudicado tenta protestar. Como, no entanto, no dispe de poderpoltico, esse protesto no modifica substancialmente as coisas(Faoro, 1976, p. 4).

    Mesmo no havendo, em razo de tais protestos, modificaes substanciaisno padro de domnio vigente, pode-se dizer que, quando se examina acotidianeidade da vida poltica, naquele momento, o estamento militar, quecomandava a ditadura, investia todos os seus esforos para no perder o controledo processo econmico e poltico em curso. Isso gerava, ano aps ano, algumasfissuras no interior do bloco de poder, as quais iriam provocar tensesirremediveis no prprio projeto de modernizao gerado a partir da ditadurainstaurada em 1964.

    2 - Modernizao, desenvolvimento e modernidade

    Raciocinando em termos do processo histrico, Faoro considerava que odesenvolvimento, e no a modernizao, se situava numa mesma linha diretivarumo modernidade. Ele recorria a Hegel (1770-31), visando buscar elementospara demonstrar que o desenvolvimento (social, econmico e poltico) era ummovimento que no podia ser confundido com transio, aperfeioamento,progresso, atualizao, inovao ou melhoramento de qualquer natureza. Odesenvolvimento uma realizao. A progresso, que a modernizao capazde fazer, uma passagem de um para outro, enquanto o desenvolvimento oaparecimento de algo adequado ou que o ser comporta, que estava na essnciado ser (Faoro, 1994, p. 112).

    Essas observaes de Faoro tinham como objetivo destacar que o processode industrializao colocado em andamento pela ditadura militar no podia ser

  • 216

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    identificado como uma forma de desenvolvimento. Ele no o era, de fato, j queteria havido uma progresso forada por uma deciso tecnocrtica. Quando setem uma inovao em vista da atuao de um grupo de pessoas voltadas paraa realizao somente de seus interesses, no h desenvolvimento possvel.Nesse caso, pode haver inovao, progresso, mas no desenvolvimento. Este,por sua vez, quando em marcha, no pode ser detido, barrado, interrompido,desviado, em razo da vontade subjetiva de um grupo somente. Isto porque ele,enquanto tal, est alm dos caprichos de quaisquer grupos, uma vez quedesencadeia foras sociais que impediro que vontades ou interesses isoladosvenham a prevalecer. O processo de desenvolvimento vai deixando mais e maisevidenciado que a histria um processo aberto, um contnuo em construo.Da a sua possvel desembocadura na modernidade. Ele afirmava que Hegel jhavia demonstrado que a linha do desenvolvimento a linha da modernidade.

    Algumas reflexes de Raymundo Faoro sobre desenvolvimento tmproximidades com as discusses de Celso Furtado. Em Dialtica doDesenvolvimento, este ltimo afirmava que a sua noo de desenvolvimentotinha afinidades com a perspectiva hegeliana, segundo a qual (...) o mundo noest constitudo por coisas acabadas, e sim por um conjunto de processos (...).Somente uma lgica do desenvolvimento nos poder capacitar (...) (Furtado,1964, p. 13) a compreender os mesmos. Todavia a comparao entre os doisdemandaria um artigo prprio, para esmiuar as semelhanas e asdessemelhanas em suas concepes. Para Furtado, por exemplo, o (...)subdesenvolvimento uma variante do desenvolvimento, ou melhor, uma dasformas que historicamente assumiram a difuso do progresso tcnico (Furtado,1992, p. 47).

    Faoro d indicaes de que concebe a difuso do progresso tcnico comomodernizao, e no como uma variante do desenvolvimento. Essa idia levatanto Faoro quanto Furtado para caminhos distintos. O subdesenvolvimento era,para Furtado, como o deus Jano, que tanto olha para frente como para trs. Seele no possua necessariamente uma orientao definida, era possvel que umprojeto poltico consistente rompesse com a sua lgica perversa (Furtado, 1992,p. 57). Ou seja, a inovao, a modernizao e o progresso tcnico poderiam serconvertidos em fatores de desenvolvimento. Faoro, por sua vez, parecia, emvista da realidade brasileira, no considerar possvel que a lgica da modernizaodesembocasse na do desenvolvimento.

    O desenvolvimento no pode ser matria de decretos, nem assimque uma nao aprende de outra. Uma elite no pode, pela compulso,pela ideologia, gerar a nao. A nao que quer se modernizar sob oimpulso e o controle da classe dirigente cria uma enfermidade, que amodernidade, quando aflorar, extirpa, extirpando os modernizadores.

  • 217

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    Todos os pases que sofreram modernizaes (...) expulsaram, paraque o desenvolvimento se irradiasse ao povo, a elite, a classe dirigente,a burocracia (...). A modernidade emergiu com a ruptura, construindo,sobre a runa das autocracias o desenvolvimento, capaz de sesustentar com o movimento prprio, eliminando, juntamente com osmales antigos, os males modernos. Todos deixaram de ser umadualidade, uma imobilizada oposio de direes, para revelarem suaidentidade cultural, num vo prprio, dentro do universo, libertos datradio e da contemplao nacional. (Faoro, 1994, p. 113).

    2.1 - A modernizao em curso no incio da dcada de 90

    Em suas colunas semanais publicadas na revista Isto/Senhor, RaymundoFaoro, entre os anos de 1990 e 1992, tecia algumas consideraes acerca dapropaganda de modernizao feita pelo Governo Collor (1990-92). E sob quaiselementos essa propalada inovao modernizante se assentava? Em primeirolugar, ela estava fundada na suposta necessidade de anular o Estado. Ou seja,este ltimo, na viso dessa elite conservadora que se apossou do aparelhamentoestatal aps as eleies presidenciais de 1989, deveria ser aniquilado.

    O paradigma parece estar nos tigres asiticos, que teriam (ao queerradamente supem) ingressado no mundo, inscrevendo-se naprimeira fila, montados no liberalismo, contra o drago do Estado. OEstado, diante dos estarrecedores ndices de misria, se limitaria, nasua administrao, a promover e, se houver sobras pblicas, a assistira populao. Abdicaria de um programa de distribuio de rendas entregue mo invisvel com todas suas implicaes econmicase sociais, por exorbitante aos fins do Estado. O liberalismo, em todaa parte uma ideologia da sociedade civil, seria aqui uma ideologia doEstado para a sociedade civil, que recebe as diretrizes do tipo deEstado que pode criar. O corte do Estado o chamado Estadoprodutor, na verdade o Estado interventor se daria com oredimensionamento das tarefas pblicas. Ele [o Presidente daRepblica] confunde o Estado, que , em certos momentos, umaburocracia capaz de tutelar e de arbitrar os interesses sociais, com ofuncionalismo. O Estado se tornaria um mero planejador da infra--estrutura, sobre a qual assentariam as obras econmicas queestimulassem o desenvolvimento, voltando as costas ao pas, ao

  • 218

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    pas de uma minoria sitiada por uma maioria faminta e pobre. (Faoro,1994, p. 114).

    O projeto de modernizao que Collor e seus ministros alardeavam aosquatro ventos vinha com uma aparncia de novo, de originalidade e, portanto, dequebra, de ruptura, de desmonte de toda uma era. Foi o que se convencionouchamar de desmonte da Era Vargas. Faoro chamava ateno para a fragilidadedessa tese. Para ele, antes de ser pensado como desmonte, dever-se-ia ter emmente o seguinte: o que causava tal aparncia era o modo atrapalhado de oGoverno Collor tentar destruir o Estado atravs do prprio Estado. O Plano Collor,por exemplo, posto em andamento nas primeiras horas aps a posse, era umaespcie de choque econmico que dificultava a manuteno de algo que sevinha repetindo ao longo da histria do Pas: o florescimento de novos ricos aolado dos ricos arcaicos.

    O Plano Collor, ao tomar medidas drsticas e inconstitucionais na reaeconmica, passava a impresso, num primeiro momento, de desmonte de todoum processo sedimentado ao longo do sculo XX. Faoro afirma que o Pas nohavia tido somente um choque econmico: teria sido eletrocutado. E oacontecimento mais grave foi a dificuldade de reao, da sociedade civilorganizada, contra a ruptura constitucional que se estabelecia. Tal dificuldadedevia-se a qu? carncia de meios institucionais. (Faoro, 1994, p. 114).

    O dado fundamental para essa anlise que busca reconstruir o debate deFaoro acerca do capitalismo brasileiro e de seus emperramentos, baseado nosensinamentos de Max Weber, situa-se na afirmao de que, assim como asdemais propostas de modernizao, a do incio da dcada de 90 no era tambmsequer dotada de uma racionalidade capitalista. E no o era em vista dainexistncia de um capitalismo economicamente orientado no Pas. Amodernizao de Collor no rompia com o capitalismo politicamente orientado.A tutela e a irracionalidade eram a marca principal do processo que o GovernoFederal tentava implementar no Pas.

    Assistia-se, assim, a mais uma modernizao inteiramente desvinculadada modernidade, a qual ajudava a edificar, no final do sculo XX, um capitalismode concesses e de subsdios. Os aproveitadores dos favores oficiaismovimentavam-se, estabelecendo relaes duvidosas com aqueles quepassaram a estar frente do aparelhamento estatal aps as eleies de 1989. OPresidente da Repblica, que havia prometido, em sua campanha, desencadearuma guerra contra os marajs e, por conseguinte, contra um Estado excessivo,fazendo uma absoluta confuso entre Estado e funcionalismo pblico, tendia aaparecer como redefinidor do modelo do Estado brasileiro. Parecia, aos maisdesavisados, que o capitalismo politicamente orientado seria eliminado. No seulugar, no se sabia, ao certo, o que surgiria. Os dirigentes no davam qualquer

  • 219

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    indicao de que sabiam o que estavam gestando. Havia indicao, atravs desuas falas, de atos, aes, atropelos, medidas descabidas, desrespeitosconstitucionais, etc., de que eles no tinham clareza nem sequer do que estavamprocurando gestar. Um capitalismo economicamente orientado, por certo, noera. Mesmo porque este no tem como ser gestado a partir de tais condies.

    Observe-se que Faoro no estava dizendo que no havia inovaes emcurso naquele momento. Ocorriam inovaes, mas (...) que inovar no reformar,sabem os conservadores de todos os tempos (Faoro, 1990, p. 25). Inovar tambmno mudar. So processos distintos estes dois ltimos. Quando sedesencadeiam inovaes, o objetivo , na verdade, manter as coisas comoesto, e no as mudar. No caso do Governo Collor, tentavam-se algumasinovaes, muitas delas catastrficas e trgicas pelo que representavamenquanto ruptura constitucional. Tais inovaes vinham geralmenteacompanhadas do alarde do prprio Presidente da Repblica de (...) que noficaria pedra sobre pedra (Faoro, 1990, p. 25). Tudo seria subvertido, recriado,reinventado, reestabelecido, reelaborado.

    Neste pas tropical, impvido colosso, temos uma longa e montona histriaconservadora. Em alguns momentos conhecemos coisa pior: a fisionomiareacionria do perfil conservador (Faoro, 1990, p. 25). Todavia no se pode imaginarque o conservadorismo um bloco monoltico, destitudo de conflitos e embates.Estes ltimos se manifestam, mais claramente, nos momentos em que vem tona alguma vanguarda conservadora que tenta, sem trgua, estabelecer ocontrole sobre o aparelhamento estatal. No entanto, quando no so osconservadores histricos, os conservadores novos ou os conservadoresconvertidos que esto no controle do poder, tem ocorrido, ao longo da vidapoltica brasileira, um fenmeno interessante: os reformistas, uma vez no poder,vestem-se da pele conservadora, ou at mesmo da reacionria, sem qualquerproblema. o que observava Manoel Bomfim, em O Brasil Nao (1931), aoanalisar a poltica ao longo do sculo XIX. Os reformistas, dizia ele, no tinhamproblema algum de vestir a pele conservadora, pois, geralmente, (...) semintransigncias de idias nem de virtude para sacrifcios (...), [eles] tratavam deaproveitar a situao no modo mais moderado, mais cmodo [possvel] (Bomfim,1931, p. 125).

    Os supostos reformadores, que faziam parte do Governo Collor,proclamavam aos quatro ventos que estariam dispostos a realizar reformasestupendas no Estado. Mas interessante observar o movimento que faziamquando se aninhavam no cargo. Faziam-se conservadores e, desde ento, nointeressava a eles nada mais que a inovao. A inteno de reformar ou demudar saa totalmente de cena. Reformadores e conservadores tinham, ento,um s objetivo: inovar. E o que era o alvo principal desse processo? O Estado,

  • 220

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    obviamente. Ocupava o debate poltico a seguinte questo: havia necessidadede combater o agigantamento do Estado e de implementar o seu encolhimento.

    Lembre-se que a trilha conservadora est calcada de estatismo, naeconomia, na supremacia sobre a sociedade, nas oportunidadesempresariais e de emprego. Pouco Estado? Substituam-se, na cabinede comando, as velhas elites, por elites responsveis, no jogo intra--elitrio. Era o Estado o principal agente econmico? O discurso dirde um Estado que sai de cena para colocar em seu lugar a iniciativaprivada e a economia de mercado. Enquanto a economia e a sociedadeno mudam, rebeldes retrica oficial, substitua-se a reforma pelainovao. Mude-se o subsdio, o incentivo, a concesso aberta efranca, a barreira alfandegria pelo subsdio que cobre todos ossubsdios. (...) Na verdade, debaixo da fumaa da inovao, ainterveno do Estado, que era fluda e indolor, torna-se amarga edura, caindo como recair sobre a classe que tem menores recursosde protesto. (Faoro, 1990, p. 25).

    Faoro ressaltava que o capitalismo politicamente orientado no deixaria deexistir por uma operao milagreira advinda do jogo entre as elites que seaninhavam no seio do Estado e faziam dele o seu melhor negcio. O GovernoCollor seria, provavelmente, o momento mais adequado para observar asdificuldades e as impossibilidades de operacionalizar reformas, mesmo queartificiais, no mbito do padro de domnio e no de organizao social vigentes.As inovaes eram formas de empurrar toda reforma para longe. Nessascondies, no havia qualquer indicao, apesar de todas as propagandas doGoverno Collor no incio da dcada de 1990 de que o capitalismoeconomicamente orientado viesse a prevalecer, no Brasil, no limiar do s-culo XXI.

    E a inexistncia de tal indicao no se devia ao fato, como queria fazercrer a Ministra Zlia Cardoso de Melo, de que a sociedade que no correspondias expectativas do Governo. Este ltimo estaria fazendo de tudo, segundo aautoridade citada, mas a sociedade nada fazia para ajudar os dirigentes a tirar oPas do atoleiro do atraso. Seguindo a lgica desse raciocnio dos que chegaramao poder aps as eleies de 1989, os governantes tentavam implementar umEstado moderno, uma economia moderna, mas a sociedade no respondiasatisfatoriamente ao processo em curso. Que fazer? Trocar de sociedade,composta de um povo que no foi digno dos iluminados dirigentes que ilustrameste apagado fim de sculo? (Faoro, 1990a, p. 23).

    Dada a impossibilidade de trocar a sociedade, os governantes vinham apblico, seguidamente, para ameaar a todos indistintamente. Faoro lembravaque a Ministra da Economia insistia que o Governo Collor tinha uma meta a

  • 221

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    cumprir e faria isso de qualquer modo. Ou seja, caso fosse necessrio, faria, namarra, o que tinha que ser feito. Uma postura autoritria como essa, ao serabertamente proclamada por um membro do Governo, era, no mnimo,expressivamente reveladora. Toda a gente considerada pelo Governo comonefasta (funcionalismo pblico, desempregados, operrios que reivindicavamaumentos salariais, aposentados que queriam ajustes em suas penses, dentreoutros) seria combatida duramente pelos iluminados que estavam frente dopoder naquele momento. Assim que eles iriam construir um capitalismo modernoe um Estado tambm moderno no Pas. No entender dos governantes, essafrmula era infalvel.

    Os condutores do Governo Collor supunham que o capitalismo modernosurgiria no Pas pela fora de meia dzia de inovadores. Toda contestao, todorepdio, toda crtica de funcionrios pblicos, de juristas, de intelectuais, deempresrios, de trabalhadores, de aposentados, etc., fossem de quem fosse,deveriam ser desconsiderados, atravs de alguns golpes certeiros, o que setentava fazer sempre tendo mo um bode expiatrio, acusado de estardestruindo as possibilidades modernizantes que haviam sido postas emandamento naquele momento. O que est na essncia de todas asmodernizaes, como as de 1937 e 1946, bem como das pequenasmodernizaes, vendidas a varejo, a convico de que a sociedade pode serdesenhada com uma providncia enrgica, ainda que imposta goela abaixo.(Faoro, 1990a, p. 23). No seria, portanto, por acaso que este pas tem sido umvasto cemitrio de modernizaes. So muitos os esqueletos, as carcaas, osfsseis, os restos mortais desses processos postos em andamento no decorrerda histria do Brasil (as inovaes conhecidas como pombalismo, as de D. JooVI, as de Pedro II, as de Getlio Vargas a partir de 1937 e as dos militares aps1964 podem ser citadas como exemplo), afirmava Faoro no artigo A TristeModernizao (1991).

    A maioria das modernizaes no Brasil veio acompanhada de alguma formade despotismo. A modernizao de 1937 e a industrializao modernizante dops 1964 foram exemplos de processos despticos, nos quais as autocraciasde cada um desses momentos assumiram caras diversas. O perodo inauguradocom as eleies de 1989 teria tambm uma feio tirnica, que era expressa nodesprezo que se estabeleceu Constituio. As grandes modernizaes asarquivam sumariamente, como [ocorreu em] 1937 e 1964. As pequenasmodernizaes as desprezam, entregando-as ao culto dos adoradores de filigranas

  • 222

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    ou de pessoas que no vem a eficincia do governo e sua sabedoria, sempresuperior aos entraves das ninharias jurdicas. (Faoro, 1990a, p. 23).5

    A modernizao do Governo Collor repetia a histria de outrasmodernizaes havidas anteriormente. E o fazia em vrios aspectos. Mas, emum deles, era flagrante a semelhana com outros processos que foram postosem andamento em momentos diversos. Ela se fazia s custas da euforia de unse do desespero de outros. Os eufricos teriam sido aqueles que enriquecerams custas de tais inovaes. Os desesperados eram os que empobreceramainda mais, em razo do processo de concentrao de rendas desencadeado.H tambm um outro trao que se tem repetido ao longo da histria: a avaliaofantasiosa da realidade (Faoro, 1991, p. 47). Os promotores das polticas demodernizao falseiam e colorem a realidade das cores mais inimaginveis.Muitas vezes, os colapsos so iminentes, j que so recorrentes os tumultosque provocam na base econmica. Isto porque, afirma Faoro, as inovaes, svezes, colidem com a rota da economia. Mas uma coisa tem sido inquestionvelna histria do Pas: independentemente de qualquer forma (provinciana, desptica,superficial, elitista, inconstitucional, desequilibrada, defeituosa, mesquinha) quea modernizao assuma, ela sempre enriquece vertiginosamente aqueles quea conduziram.

    Raymundo Faoro sugeria uma comparao entre a modernizao levada atermo a partir da dcada de 50 do sculo XIX e a modernizao que seiniciou em 1990. Mais de 100 anos separavam-nas, mas, nas duas, os seuscondutores celebravam o surgimento de uma era moderna. Tudo seria diferentea partir de ento. Ao menos para o grupo que se beneficiava de tais processos,no havia dvida de que as coisas mudariam, em vista de seus enriquecimentosprivados ocorridos s custas dos novos negcios, inaugurados sob a gide docapitalismo politicamente orientado.

    A modernizao, com sede no Rio de Janeiro, iluminou a cidade,trazendo, com a luz, Mau, at que seus sonhos de grandeza seperdessem no p da histria econmica. Uma nova camada emergiu,atilada e voraz, com fronteiras, mediando-se em outras direes.Agora, em 1990, a outra modernizao, a que parte de Braslia. Medrana sombra, onde circulam personagens obscuras. O lance que lhe do perfil a compra da Vasp. Ningum sabia, antes do fato, o nome doator, como, paralelamente, ningum tinha jamais ouvido o nome dos

    5 Faoro afirmava que o Governo Collor no apresentava qualquer apreo pela Constituio emvigor desde 1988. Isso ficava claro nas tentativas de emend-la e/ou nas aes que indica-vam a existncia mesmo de uma ruptura constitucional como o Plano Collor (Faoro, 1991a,p. 15).

  • 223

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    mancebos. Ningum se espantaria se, na seqncia, algum ferreirode Braslia comprasse a Cia Siderrgica Nacional. (Faoro, 1991,p. 47).

    Faoro questionava, assim, as teses que sustentavam que as inovaespostas em prtica no incio da dcada de 90 representavam a redefinio docapitalismo brasileiro. Este continuaria a depender do que se via naquele momento,to arcaico como sempre foi no que se referia dependncia e orientao doEstado. O mito da modernizao havia sido montado s custas da prpriaestabilidade constitucional. Qual capitalismo racional, economicamente orientado,sairia dessas bases? Nenhum, obviamente. O encontro entre os setoresfantasiadores da realidade (os componentes do Governo Collor) e os setoresanacrnicos (Faoro, 1991b, p. 5), que se acotovelavam para ver quem levavamais vantagens nas negociatas promovidas por aqueles que estavam frentedo aparelhamento estatal, era indicador de que a persistncia no modelo arcaicode capitalismo seguiria ainda por tempos indefinidos.

    Em entrevista dada revista Isto/Senhor, Raymundo Faoro, em janeirode 1991, insistia que o fundamento da modernizao posta em prtica peloGoverno Collor se assentava num modelo passivo de submisso da populao(Faoro, 1991b, p. 8). Nisso, ela repetia a histria das inovaes ocorridas nopassado distante e no passado recente. O trao que mais chamava ateno eraa insistncia em adotar, no Pas, uma modernizao pautada na importao deprodutos acabados. Ela chegava a ir mais longe que a modernizao pombalina6,que importou professores. O Governo em exerccio no incio da dcada de 90tentava implementar um processo de importao dos produtos acabados. Nadade investimento em pesquisas e/ou em tecnologia. Tudo seria trazido de fora,numa lgica que tendia a perverter inteiramente a Nao. Era uma proposta demodernizao do capitalismo na contra-mo do que haviam feito o Japo e aAlemanha, por exemplo. Nesses pases, os seus tcnicos e intelectuais tiveramum papel essencial.

    No caso do Brasil, no incio de 1990, era perceptvel um dogmatismo msticoem relao modernizao. No havia nada de racional nas medidas tomadaspelo grupo de poder. Analisando-se suas aes e suas falas, ficava evidenciadauma maneira mgica de pensar o mundo e suas relaes. Os dirigentesimaginavam que era possvel se integrar ao mundo globalizado apelando para ainterveno divina, para magias, para milagres. Mas qual integrao seriapossvel? Se os governantes agiam de modo a desmantelar inteiramente a

    6 Referente ao estadista portugus Marqus de Pombal, Sebastio Jos de Carvalho e Melo(1699-82).

  • 224

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    economia nacional, qual modernizao seria possvel? Nenhuma, assinalavaFaoro.

    Havia, ainda, um outro agravante no modo de o Governo conduzir a suamodernizao: a incapacidade de ver que a democracia mais importante queo liberalismo. Notava-se uma defesa de bandeiras liberais ultrapassadas,desconexas de nosso tempo, o que era, sem dvida, sintoma de esprito perifrico.Somente assim, dava para entender a compreenso subdesenvolvida demodernizao que possuam os donos do poder, os quais apregoavam aosquatro ventos que estavam implementando algo que ningum sabia exatamenteo que era. No se diz o que a modernizao, como pode ser feita e como nopode ser feita. Este pas tem, afinal, 200 anos de frustraes, nessa rea,desde Pombal at o regime militar. (Faoro, 1991c, p. 19).

    A perspectiva subdesenvolvida de modernizao ficava explicitada no modocomo o Governo Collor advogava que o empreendimento da mesma devia serfeito:

    (...) do alto para baixo, sem o concurso da sociedade.[7] Com talesquema, [ela] h de ser forosamente uma fora concentradora derendas e, reduzindo-se o grupo de poder, de concentrao poltica.Quem no lembra o que houve com a prosperidade brasileira dosltimos anos, a do milagre econmico, que no chegou ao povo?(Faoro, 1991c, p. 19).

    No incio da dcada de 90, as inovaes propostas pelos dirigentesdesintegravam, destruam, a economia nacional. Isso s poderia ser lido comoa persistncia do regime colonial de feitorias nada mais (Faoro, 1991c,p. 19).

    O Governo Collor pregava uma necessria reforma constitucional paraampliar o seu poderio. Dizia-se incumbido de remodelar a economia e a polticado Pas. Da a incessante busca pelo aumento de seu poder decisrio. Nohavia nada de novo em seus atos e medidas. Uma inovao, sujeita somenteaos comandos de uma elite, que se autodenominava sbia demais para escutaros diversos segmentos da Nao e que lutava para reduzir todos a umapassividade absoluta atravs do enfraquecimento dos sindicatos e dos rgosde classe no era, por certo, no caso do Brasil, algo novo (Faoro, 1991d, p. 25).As reformas que os governantes se diziam empenhados em levar a termo tinhamuma fisionomia bem conhecida ao longo da histria do Pas, ou seja, a feioautocrtica. Esse carter autoritrio ficava evidente na discusso sobre a reforma

    7 Faoro afirmava que Machado de Assis e Lima Barreto tinham demonstrado, de modo preci-so, o que as modernizaes haviam significado para o Pas no final do sculo XIX e no inciodo XX.

  • 225

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    constitucional que o Governo Collor queria pr em prtica. Ele queria fazer umaemenda que possibilitasse a implementao de medidas no reveladas nacampanha presidencial.

    A emenda que se [queria] implementar no [era] uma emenda qualquer.Ela mudava o sistema tributrio (incidindo sobre a ordem federativa),alm de, passando por outros tpicos, entregar a burocracia ao arbtrioexclusivo uma vez que se retira estabilidade dos funcionrios dos agentes do Poder Executivo. (Faoro, 1991e, p. 25).

    Em nome da instaurao de um moderno capitalismo liberal, o GovernoCollor punha s claras a essncia de uma poltica conservadora, que, desdemuito tempo, percorria as artrias da Nao brasileira. Usando e abusando daexpresso liberal, o grupo no poder estabelecia um processo de inovaoeconmica que mantinha intocados a miserabilidade, a concentrao de rendase o divrcio entre a sociedade e o Estado. Este ltimo era atacado como excessivodemais, da a necessidade de implementao do Estado mnimo. Estava emquesto a velha obsesso por copiar modelos completamente desconexos denossa realidade. Todo o discurso supostamente liberal do Governo Collor revelavaisso. E por que supostamente liberal? Porque so falas e aes que utilizavamvrios expedientes para esconder a real natureza das polticas postas em prticanaquele momento.

    No Brasil, alis, o liberal esteve sempre condenado ao ostracismo. CiprianoBarata, Tefilo Otoni, Rui Barbosa e Teotnio Vilela eram liberais. Mas havia umadistncia muito grande entre suas propostas e as dos supostamente liberaisque estavam no poder, a partir das eleies de 1989. Estes ltimos nunca foramliberais; foram, sim, conservadores que no se assumiam enquanto tal.8 Mas,no caso brasileiro, havia alguma possibilidade de encontrar alguma afinidadeentre os liberais e os conservadores? Faoro diz que sim. Ele afirma:

    Antes que me esquea, o conservador tem real afinidade com oliberal, com uma espcie particular de liberal. Ele tambm, depois dese cevar nas estrebarias do Estado, sonha com o mercado, a livreiniciativa, a empresa liberta de intervenes e interferncias gover-namentais. Trata-se de uma coincidncia singular. Dizendo-se filiadoao liberalismo econmico, com o Estado mnimo, desvaloriza aessncia da racionalidade liberal: a calculabilidade e a previsibilidadedas aes do poder pblico, e, conseqentemente, o meio poltico de

    8 Faoro afirmava que Bernardo Pereira de Vasconcelos, poltico poderosssimo do sculo XIX,podia ser tomado como o modelo de conservador que se apresentou, em determinadascircunstncias, como liberal, mas em cujas aes iam rapidamente ficando evidenciadassuas posturas conservadoras (Faoro, 1991f, p. 25).

  • 226

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    control-lo. Compreende-se a excentralidade. Os conservadores, nasua atividade prtica, se geram dentro da esfera estatal e dela scuidam em se libertar quando podem viver a sua prpria custa. Estasimbiose, provocadora do conflito mental do conservador, explica suatimidez medrosa diante do governo. Onde esto os empresrios deoposio? Suas restries ao governo so, no mximo, como disse opresidente da Fiesp, um desabafo, nada mais, nada menos (Faoro,1991f, p. 25).

    Tornar o capitalismo moderno numa sociedade como a brasileira passava,antes de mais nada, pela constituio de atores polticos capazes de agir demodo a balizar a ao dos dirigentes. Tais atores polticos tinham, tambm, queemergir dos diversos segmentos sociais, at mesmo dos setores empresariais.Enquanto estes ltimos fizerem afirmaes de que seus protestos so apenasdesabafos, e no um empenho questionador das aes governamentais, huma clara indicao de que o Pas est ainda muito longe da constituio de umcapitalismo economicamente orientado. Ao longo do sculo XX, no se viupraticamente nenhuma indicao de que este ltimo estava lanando suas basesno Brasil. Os diversos planos econmicos, desde os do Presidente CamposSales (1898-02), empobreceram as massas urbanas, solaparam a possibilidadede emergirem novas atividades, novos empresrios independentes do Estado,novos agentes sociais organizados politicamente no mbito da prpria classetrabalhadora, novas lutas de classes, novas correlaes de foras e novosembates. Assim que foi sendo retardada, dia aps dia, a implantao de umprojeto de Repblica, no para um grupo, mas para os brasileiros (Faoro, 1991g,p. 19).

    O modelo conservador burocrtico esteve na base dos vrios planoseconmicos postos em andamento no decorrer do sculo XX. As prticas dosdirigentes que colocaram tais planos em andamento estiveram sempre permeadaspor atos e medidas ditatoriais. Veja-se, por exemplo, o Plano Collor, que foi, atmesmo, uma forma de ruptura constitucional. A mentalidade dos governantestem estado, ao longo da histria, aprisionada por um modelo que repele, naprtica, a sedimentao da Repblica e da democracia. O Governo Collor era oexemplo mais acabado disso. Nele,

    Ficamos num naipe em que o poder quer justificar-se pelo poder,como governo gerado por uma minoria e por uma minoria dirigido,com o artefato clssico da minoria a propaganda. Estamoscondenados, (...) ao pacote que sucede ao pacote, sempre beminstrumentado pela mdia, at que a prpria mdia reclame a mudanado cenrio, para que se torne a representar a mesma pea, com outroscanastres (Faoro, 1991h, p. 23).

  • 227

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    Um dado revelador, por excelncia, de uma mentalidade burocrticaconservadora era o fato de o Governo Collor insistir que a modernizao docapitalismo brasileiro somente se poderia concretizar se fosse feita a reformada Constituio. Ele pretendia tornar a mesma um instrumento de governo,passando sempre a idia de que a Carta de 1988 que deveria ser posta a seuservio, e no o contrrio. Se o chefe de governo se elegeu dentro da Constituio,no devia ele adequar seu governo Constituio, em lugar de querer ajeitar aConstituio ao seu governo? (Faoro, 1991e, p. 25). Mas isso seria romper comuma mentalidade burocrtica conservadora que vinha, h dcadas, reinandoentre os donos do poder.9

    3 - Algumas consideraes finais acerca do capitalismo politicamente orientado

    Raymundo Faoro, tanto em suas obras quanto em seus artigos publicadosnas dcadas de 80 e 90, procurou demonstrar que se sedimentou no Pas umaestrutura social e poltica que tem rechaado, sculo aps sculo, ano apsano, a constituio de um capitalismo economicamente orientado no Brasil. Ocapitalismo foi, ao longo do sculo XX, por exemplo, moldando-se tanto econmicaquanto politicamente a uma dada forma de processamento da prpria realidadeestatal, a qual, por sua vez, no hesitou em sacrificar o aparelhamento institucionale o sistema de liberdades, para fazer prevalecer uma orientao policialesca erepressiva. Foi o que ocorreu em 1937, foi o que ocorreu em 1964. Nesses doiscasos, o aparelhamento estatal centralizador passou a conduzir no somenteas instituies de modo geral, mas tambm o prprio processo de expanso docapitalismo brasileiro.

    Nesses dois momentos, implementava-se um tipo de modernizaofortemente comandado por aqueles que se encontravam frente doaparelhamento estatal. Na dcada de 30, a indstria siderrgica deu a tnica aoprocesso de expanso do capitalismo no Pas. No entanto, Faoro no supe queGetlio Vargas tenha chegado ao poder, em 1930, j empenhado nodesenvolvimento das indstrias de base. O investimento na rea de siderurgia

    9 Para demonstrar a persistncia dessa mentalidade conservadora, Faoro afirmava em 1991:Tivemos, nestes quase sete anos, dois presidentes. Na verdade, no dois presidentes,mas dois corpos diferentes de uma alma que, com a sucesso, transmigrou de um paraoutro. O problema (...) ser definir a primeira encarnao. Teria acontecido em 1964 ou em1968? (Faoro, 1991i, p. 21).

  • 228

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    no tinha como pressuposto lanar vo rumo quelas ltimas. Suas primeirasmanifestaes a favor do investimento no setor siderrgico tinham como finalidadeatender s reivindicaes do Exrcito, que exigia a criao das condies paraque os meios de defesa fossem modernizados. evidente que a implementaodas indstrias siderrgicas cria um lastro sobre o qual a industrializao vaiganhar flego.

    Contudo a modernizao que o regime poltico instaurado em 1930 se propsa realizar no Pas teria que ser analisada luz das condies econmicas dosltimos anos da dcada anterior. A crise do caf tornava propcio o centralismoe o autoritarismo de governo. O Estado, nessas condies, assumia o papel derealizador do desenvolvimento econmico e fazia isso com o apoio das forasmilitares, que viam o Estado como aquele que poderia equilibrar e subordinar osdiversos interesses aos interesses nacionais.10 Fixavam-se, assim, firmemente,no processo de modernizao industrial que ocorria a partir dos anos 30, ospilares que dariam continuidade a um capitalismo politicamente orientado peloEstado.

    Faoro entendia que havia um conjunto de circunstncias que levava fixaodos pilares desse capitalismo politicamente orientado no ps 30. Era evidenteque, numa economia que dependia da exportao do caf j que 70,9% dototal exportado pelo Pas era constitudo por esse produto , a crise econmicamundial abalou de tal forma a economia que se impunha uma realidade em queo Estado ia, mais e mais, adquirindo um papel essencial. No entanto, haviaainda um outro elemento que potencializava as condies para a permannciade um capitalismo politicamente orientado: a crena, por parte dos setorespreponderantes, de que o aparelhamento estatal deveria continuar atuando parapacificar as demandas sociais. Para estes ltimos, o progresso nacional somenteseria alcanado se fossem domadas as foras sociais que tentavam abrir espaosna arena poltica em razo da industrializao e da urbanizao.

    As vigas mestras de um capitalismo politicamente orientado estavamconstrudas desde a colonizao. Interessa compreender como, em cadaconjuntura (ps 1930, ps 1964 e ps 1989), se delineiam as aes que vodando a esse processo, o qual social, econmico e poltico, a substancialidadenecessria para a sua perpetuidade. De que maneira a comunidade poltica agiuem todos esses perodos mencionados? Ela atuou sempre, frente do

    10 Ges Monteiro, chefe militar da Revoluo de 1930, afirmava: O Estado deve ter poderpara intervir e regular toda a vida coletiva e disciplinar a nao, criando aparelhos prpriospara organizar nossa economia, obrigar todos ao trabalho e satisfazer o mnimo dasnecessidades morais e materiais de todo cidado brasileiro que sirva, realmente, suaptria (Goes Monteiro apud Faoro, 1989, p. 695).

  • 229

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    aparelhamento estatal, como se fosse a gerenciadora de negcios privados.Ou seja, conduziu e comandou os negcios pblicos como se fossem seusnegcios privados, gerando, assim, um corpo empresarial inteiramente dependentedo Estado quer para crditos, quer para subsdios, quer para fomentos, querpara facilitaes de seus negcios de modo geral. Esse processo eliminoupaulatinamente a constituio de um capitalismo economicamente orientado. Oefeito imediato desse processo foi o no-florescimento de um embate polticopor onde flussem os interesses nacionais e coletivos.

    O capitalismo politicamente orientado est praticamente viciado emprocessos polticos que extirpam o enfrentamento, o embate entre as diversasforas sociais. Os setores trabalhadores estiveram sempre, de algum modo,amordaados. O golpe militar de 1964 aprofundou o processo de rechaamentodos embates entre os diversos segmentos sociais. O trao mais marcante desseperodo foi a fortificao do capitalismo politicamente orientado. O estamentomilitar dirigia o Estado e pressionava at mesmo as foras sociaispreponderantes, para incorpor-las a um dado padro de mando e de deciso. Opadro de domnio prevalecente, excludente e autoritrio por excelncia,alimentou a gerao de uma dependncia extrema dos vrios setores econmicosdo Estado. Os subsdios, os crditos e as isenes vo gerando uma relao debeneficiamento para os setores econmicos arcaicos e modernos, que solapava,dia aps dia, a constituio de um capitalismo economicamente orientado pelosembates estabelecidos pela prpria lgica do mercado, afirmava Faoro.

    A partir de 1985, no se assistia a uma redefinio desse capitalismopoliticamente orientado. Sua essncia fundada nos controles do aparelhamentoestatal, na dependncia dos setores capitalistas em relao a subsdios, crditos,isenes e na busca de desmantelar quaisquer conflitos entre as diversasforas sociais continuava a prevalecer de modo vigoroso. Por isso, Faoroafirmava, em 1991, que aqueles que conduziam o processo econmico e poltico,na segunda metade da dcada de 80 e no incio da de 90, demonstravam possuira mesma alma daqueles que haviam conduzido o Pas durante a ditadura militar.

    O Governo Sarney (1985-90) e o Governo Collor (1990-92) reproduziam,em suas polticas, a essencialidade de um padro de domnio que deixavaevidenciada a no-existncia de qualquer indicao de que estavam constituindo,no Brasil, as bases para o rompimento com o modelo de capitalismo politicamenteorientado pelo Estado. E quais eram as principais indicaes disso? O PlanoCollor, implementado logo aps a instalao do Governo, empobrecia as massastrabalhadoras, extinguia as possibilidades de emergncia de novas atividadeseconmicas e de novos empresrios independentes do Estado, solapava apossibilidade de emergncia de novas correlaes de foras, de novos embates.Somente esses elementos eram suficientes para levar a concluir que as inovaes

  • 230

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    Maria Jos de Rezende

    propostas no eram, de fato, mudanas. Era a repetio, conforme ocorreu emmuitos outros momentos da histria do Pas, de intenes modernizantes nadacondizentes com a construo de relaes sociais que poderiam conduzir oBrasil modernidade. Esta ltima era entendida por Faoro como um conjunto deaes capazes de engendrar uma nao, de fato, democrtica e inclusiva.11

    Referncias

    BOMFIM, Manoel. Amrica Latina: males de origem. 4. ed. Rio de Janeiro:Topbooks, 1993, 358p.BOMFIM, Manoel. O Brasil Nao: realidade da soberania brasileira. Rio deJaneiro: Francisco Alves, 1931, 327p.CUNHA, Euclydes da. Os sertes. 37. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1995, 654p.FAORO, Raymundo. A amnsia liberal. Isto/Senhor, So Paulo, n. 1128, p. 25,08 maio 1991f.

    FAORO, Raymundo. A mania das grandezas. Isto/Senhor, So Paulo, n. 1131,p. 19, 29 maio 1991g.FAORO, Raymundo. A modernizao nacional. In: Existe um pensamentopoltico brasileiro? So Paulo: tica, 1994a, p. 95-115.FAORO, Raymundo. A triste modernizao. Isto/Senhor, So Paulo, n. 1113,p. 47, 23 jan. 1991.FAORO, Raymundo. As inesperadas coincidncias. Isto/Senhor, So Paulo,n. 1126, p. 25, 24 abr. 1991d.FAORO, Raymundo. Assemblia Constituinte: a legitimidade recuperada. SoPaulo: Brasiliense, 1981, 98p.FAORO, Raymundo. Entrevista. Veja, So Paulo, n. 399, p. 3-6, 28 abr. 1976.

    11 As dificuldades para construir processos que caminhem no sentido da modernidade sovisveis no decorrer da dcada de 90 e na atual. Franscisco de Oliveira afirma: A longuedure autoritria brasileira prega mais uma pea nossa modernidade. O PT, nascido nosEstados ricos, portador do futuro, quando se expande nacionalmente, ganha nos Estadospobres e perde nos ricos. Mais que simples troca geogrfica, o que ocorre o precoceenvelhecimento poltico do partido nascido para reformar o pas; no se expandiu amodernidade, o atraso a engoliu. Raymundo Faoro no gostaria de ter visto essa regres-so (Oliveira, 2004, p. 11).

  • 231

    Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 207-232, maio 2006

    O capitalismo brasileiro e as modernizaes desvinculadas da modernidade

    FAORO, Raymundo. Existe um pensamento poltico brasileiro? So Paulo:tica, 1994, 135p.FAORO, Raymundo. Inovar no reformar, nem mudar. Isto/Senhor, So Paulo,n. 1093, p. 25, 29 ago. 1990.FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirmide e o trapzio. 3. ed. Rio deJaneiro: Globo, 1988, 496p.FAORO, Raymundo. Mudar a Constituio. Isto/Senhor, So Paulo, n. 1143, p.25, 21 ago. 1991e.FAORO, Raymundo. O eterno retorno. Isto/Senhor, So Paulo, n. 1142, p. 23,14 ago. 1991h.FAORO, Raymundo. O governo da ineficincia. Isto/Senhor, So Paulo, n.1114,p. 4-8, 30 jan. 1991b. Entrevista.FAORO, Raymundo. O monstro e a indecncia. Isto/Senhor, So Paulo, n.1151, 16 out. 1991i.

    FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formao do patronato polticobrasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989, 750p.FAORO, Raymundo. Rquiem para mais um plano. Isto/Senhor, So Paulo, n.1095, p. 23, 12 set. 1990a.FAORO, Raymundo. Todos os homens do presidente. Isto/Senhor, So Paulo,n. 1111, p. 15, 9 jan. 1991a.FAORO, Raymundo. Uma instituio ausente. Isto/Senhor, So Paulo, n. 1114,p. 19, 30 jan. 1991c.FURTADO, Celso. Brasil, a construo interrompida. So Paulo: Paz e Terra,1992, 87p.FURTADO, Celso. Dialtica do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo deCultura, 1964, 181p.HOLANDA, Srgio Buarque de. O poder pessoal. In: HISTRIA geral da civilizaobrasileira. So Paulo: Difel, 1972, v5, t.2, p. 72-78.OLIVEIRA, Francisco de. Quem derrotou Marta? O governo Lula. Folha de S.Paulo, So Paulo, 2 nov. 2004, C. A., p. 11.ROMERO, Silvio. Obras filosficas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1969, 869p.WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologiacompreensiva. Braslia, DF: UNB, 1999, v. 2, 580p.