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 Marx à luz de Arendt, Arendt à luz de Marx Leônidas Dias de Faria Publicado em Quarta, 29 Junho 2011 02:00 "Se eu puder ser dita como ‘vinda de algum lugar’, este lugar é a tradição da filosofia alemã.” 1 Hannah Arendt Todos os críticos filosóficos alemães afirmam que os homens reais têm sido até aqui dominados e determinados por idéias, representações e conceitos, que o mundo real é um produto do mundo ideal.” 2 Karl Marx Introdução Com o breve estudo que ora se expõe, tem-se o intuito de apresentar a crítica empreendida por Hannah Arendt, em seu livro  Da Revolução, ao pensamento de Karl Marx, notadamente no que tange à sua noção de História. Além disso, tem-se o propósito de confrontar a referida crítica com alguns textos de Marx, produzidos próximo ao início e ao fim de sua trajetória intelectual e política, de modo a realizar uma avaliação da pertinência da referida crítica, com  base em um recorte temporal abrangente da produção do autor. Por fim, pretende-se encetar uma crítica marxiana ao pensamento arendtiano. Desse modo, almeja-se um triplo ganho: a identificação da crítica feita por Arendt acerca da noção marxiana de História, uma avaliação dessa mesma apreciação e uma denúncia de problemas na teorização promovida pela autora que causam ruídos em sua compreensão do legado marxiano e da própria realidade de que o mesmo é parte   denúncia empreendida à luz do referencial teórico desse legado.  Nesse percurso analítico, não se empreende um tr atamento autônomo da trama categorial que sustenta a crítica arendtiana a Marx, conforme se apresenta na  Introdução e no Capítulo I  do livro de Arendt, em que ela expõe seu conceito de Revolução e esboça outros relacionados, tais como Violência, Liberdade e Política. Pretende-se ressaltar tais fundamentos à medida que se fazem notar na crítica mesma a Marx, efetuada de modo esparso e preparatório nessas  partes do escrito, mas concentrada e acentuada no segundo capítulo, em que a autora trata do que entende como  A Questão Social . Por fim, pretende-se responder aos ataques da autora ao filósofo alemão, com recurso a passagens de  A Ideologia Alemã , de 1846, da carta  À Redação de Otietchestvienniie Zapiski , de 1877, do  Primeiro rascunho a Vera Zasulich, de 1881, e ao  Prefácio, de 1882, à edição russa do  Manifesto Comunista    textos em que se explicita com

FARIA, L. D. Marx à Luz de Arendt, Arendt à Luz de Marx

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Com o breve estudo que ora se expõe, tem-se o intuito de apresentar a crítica empreendida por Hannah Arendt, em seu livro Da Revolução, ao pensamento de Karl Marx, notadamente no que tange à sua noção de História. Além disso, tem-se o propósito de confrontar a referida crítica com alguns textos de Marx, produzidos próximo ao início e ao fim de sua trajetória intelectual e política, de modo a realizar uma avaliação da pertinência da referida crítica, com base em um recorte temporal abrangente da produção do autor. Por fim, pretende-se encetar uma crítica marxiana ao pensamento arendtiano. Desse modo, almeja-se um triplo ganho: a identificação da crítica feita por Arendt acerca da noção marxiana de História, uma avaliação dessa mesma apreciação e uma denúncia de problemas na teorização promovida pela autora que causam ruídos em sua compreensão do legado marxiano e da própria realidade de que o mesmo é parte – denúncia empreendida à luz do referencial teórico desse legado.

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  • Marx luz de Arendt, Arendt luz de Marx

    Lenidas Dias de Faria

    Publicado em Quarta, 29 Junho 2011 02:00

    "Se eu puder ser dita como vinda de algum lugar, este lugar a tradio da filosofia

    alem. 1

    Hannah Arendt

    Todos os crticos filosficos alemes afirmam

    que os homens reais tm sido at aqui

    dominados e determinados por idias,

    representaes e conceitos, que o mundo real

    um produto do mundo ideal. 2

    Karl Marx

    Introduo

    Com o breve estudo que ora se expe, tem-se o intuito de apresentar a crtica empreendida por

    Hannah Arendt, em seu livro Da Revoluo, ao pensamento de Karl Marx, notadamente no

    que tange sua noo de Histria. Alm disso, tem-se o propsito de confrontar a referida

    crtica com alguns textos de Marx, produzidos prximo ao incio e ao fim de sua trajetria

    intelectual e poltica, de modo a realizar uma avaliao da pertinncia da referida crtica, com

    base em um recorte temporal abrangente da produo do autor. Por fim, pretende-se encetar

    uma crtica marxiana ao pensamento arendtiano. Desse modo, almeja-se um triplo ganho: a

    identificao da crtica feita por Arendt acerca da noo marxiana de Histria, uma avaliao

    dessa mesma apreciao e uma denncia de problemas na teorizao promovida pela autora

    que causam rudos em sua compreenso do legado marxiano e da prpria realidade de que o

    mesmo parte denncia empreendida luz do referencial terico desse legado.

    Nesse percurso analtico, no se empreende um tratamento autnomo da trama categorial que

    sustenta a crtica arendtiana a Marx, conforme se apresenta na Introduo e no Captulo I do

    livro de Arendt, em que ela expe seu conceito de Revoluo e esboa outros relacionados,

    tais como Violncia, Liberdade e Poltica. Pretende-se ressaltar tais fundamentos medida

    que se fazem notar na crtica mesma a Marx, efetuada de modo esparso e preparatrio nessas

    partes do escrito, mas concentrada e acentuada no segundo captulo, em que a autora trata do

    que entende como A Questo Social. Por fim, pretende-se responder aos ataques da autora ao

    filsofo alemo, com recurso a passagens de A Ideologia Alem, de 1846, da carta Redao

    de Otietchestvienniie Zapiski, de 1877, do Primeiro rascunho a Vera Zasulich, de 1881, e ao

    Prefcio, de 1882, edio russa do Manifesto Comunista textos em que se explicita com

  • vigor o fulcro da concepo de histria propugnada pelo autor desde o incio de sua crtica

    ontolgica ao idealismo, em 18433.

    Uma crtica arendtiana a Marx4

    A primeira referncia explcita que Arendt faz a Marx em seu livro se d em seguida

    afirmao de que, nos estgios finais da Revoluo Francesa, em que j havia ocorrido o que

    chamou de rendio da liberdade necessidade, pela intruso da questo social na esfera

    pblica, gerou-se o consenso para ela problemtico de que mais importante mudar a

    tessitura da sociedade (...) do que mudar a estrutura do domnio poltico. Dizendo que, se

    isso fosse verdade, a descoberta da Amrica e a colonizao de um novo continente

    constituiriam suas origens, no tendo necessidade ali de qualquer processo revolucionrio,

    diferentemente do que ocorria na Europa, que s podia alcanar aquela adorvel igualdade

    por meio da violncia e da sangrenta revoluo, sob impulso da nova esperana para a

    humanidade surgida nos Estados Unidos espontaneamente, Arendt abre caminho para seu

    ataque ao pensamento de Marx. Para ele, segundo a autora, nenhuma revoluo jamais

    ocorreria na Amrica, de modo que suas profecias sobre o futuro do capitalismo e as

    vindouras revolues proletrias no se aplicavam ao desenvolvimento dos Estados Unidos

    (ARENDT, 1990, p.20). Prosseguindo, a autora afirma peremptoriamente:

    Quaisquer que sejam os mritos das qualificaes de Marx que mostram, certamente, uma

    compreenso da realidade fatual bem maior do que os seus adeptos jamais foram capazes de

    ter , essas mesmas teorias so refutadas pelo simples fato da revoluo americana

    (ARENDT, 1990, p.20).

    J mais adiante em seu escrito, Arendt volta ao ataque contra Marx. E a preparao deste

    ataque se d com a firmao de que a maior conseqncia terica da Revoluo Francesa seria

    o moderno conceito de Histria que se encontra na obra de Hegel, de quem ela toma Marx

    como um discpulo (procedimento que a isenta de ter que lidar com seus escritos mesmos), e

    consistiria na revelao do antigo absoluto dos filsofos nos assuntos mundanos. Conforme

    esse conceito, corrente entre os sucessores dos homens da Revoluo Francesa, o processo

    histrico obedece a uma necessidade inelutvel, pela qual os revolucionrios so convertidos

    em agentes da histria e da necessidade histrica, que passa a ser a categoria principal do

    pensamento poltico e revolucionrio (ARENDT, 1990, p.41).

    Nesse ponto, cabe antecipar que tal idia ento corrente no acometeu Marx, dado que, de

    modo algum, encontra-se em destaque em sua obra a noo, a categoria de necessidade, ainda

    menos como idia abstrata que engendra processos. Pode-se falar de necessidade natural e de

    necessidade histrica em Marx, como ser visto, mas em uma acepo muito distinta em

    meio a uma trama conceitual em que a atividade livre ocupa posio central.

    De todo modo, segundo esse novo conceito de Histria, gestado sob o impacto da Revoluo

    Francesa e de seu fracasso, a verdade seria compreendida historicamente, no sentido de que

    se iria revelando no tempo. Desse modo, no seria vlida para todas as pocas; mas, para

    todos os homens (ARENDT, 1990, p.42). E, outra vez, Marx deve ser tido como exceo,

    dado que a especificidade do objeto em pauta, o conjunto preciso das determinaes que o

  • configuram, torna-se quase uma obsesso em seu projeto de inteleco de mundo, como se vai

    ressaltar adiante de modo que as categorias gerais e operantes de Arendt provocar-lhe-iam

    pruridos.

    Mas, prosseguindo em sua exposio, Arendt denuncia algo mais de problemtico sobre essa

    nova noo de verdade, dizendo referir-se a mesma ao homem qua homem, que inexiste

    enquanto realidade terrena, tangvel (ARENDT, 1990, p.43). E tampouco essa afirmao se

    aplica a Marx, cuja idia de humanidade se refere a algo construdo historicamente por meio

    de interao efetiva dos indivduos reais. De modo que em tal idia nota-se a atinncia aos

    indivduos concretos, singulares; mas em sua conexo real, em sua articulao

    multidimensional efetiva, algo de que Arendt descuida, com conseqncias filosficas

    drsticas.

    Assim, aquilo de que se vale a autora para a preparao de seu ataque a Marx no se aplica a

    ele. A reduo de quase todo o humano necessidade, da qual s escapa a dimenso poltica,

    algo que impede a autora de enxergar e compreender toda essa riqueza na obra do filsofo, o

    qual v na formao do humano um processo histrico concreto, no regido por princpios,

    como em todo idealismo, nem submisso implacvel necessidade natural, mas derivado da

    apropriao cooperativa relativamente livre da natureza por indivduos concretos. Ainda

    assim, no obstante sua discrepncia com o padro que vem traando, Marx posto por

    Arendt como seu exemplar mais tpico de um hegeliano de respeito o que um desrespeito

    inclusive com Hegel, que, se vivo, certamente no gostaria dessa qualificao para obra to

    diversa da sua.

    Se a histria a revelao da verdade, prossegue Arendt, ela deve ser vista como Histria

    mundial, por meio da qual se revela um esprito mundial (ARENDT, 1990, p.43). Mais

    uma vez, Marx deve ser tido como exceo, dado que sua idia de histria mundial tem a

    ver com a interao efetiva dos indivduos concretos em escala cada vez mais ampla de

    articulao real e no com o atendimento a exigncias lgico-discursivas internas a uma trama

    metafsica de idias vivas. No por ser revelao da verdade que a histria mundial;

    mas, porque o humano moderno o , concretamente, objetivamente5.

    Ainda tratando do carter do movimento histrico segundo o conceito hegeliano com vistas a

    atacar Marx, mostra-nos Arendt que se trata no caso de um processo ao mesmo tempo

    dialtico e movido pela necessidade, que arrasta os homens com sua corrente

    irresistvel. Lamentando que isso ocorra justamente quando os homens tentam estabelecer a

    liberdade sobre terra, Arendt se insurge contra a famosa dialtica da liberdade e da

    necessidade, em que ambas finalmente coincidem, a qual , a seu ver, talvez o mais terrvel

    e, humanamente falando, o mais intolervel paradoxo de todo o pensamento Moderno

    (ARENDT, 1990, p.43).

    Ainda sobre essa repercusso terica e disposicional do que chamou fracasso da Revoluo

    Francesa, ou seja, esse conceito moderno de Histria, Arendt nos diz ser ele inspirado na idia

    de que a natureza um processo inexorvel que a tudo engloba, da qual deriva a concepo

    do humano como passvel de ser compreendido segundo os padres das cincias naturais. E

    uma vez mais Marx indiretamente atacado (como volta a s-lo diretamente mais adiante no

  • livro, como ser visto), embora devesse ser percebido como exceo, dado que no se

    encontra em sua obra seno o contrrio dessa identificao do scio-histrico com o natural,

    sendo a recusa de tal posio o fulcro de sua crtica economia poltica.

    Concluindo suas consideraes acerca do tema, Arendt lamenta que o conceito moderno de

    revoluo, por vcio hegeliano submetido necessidade e purgado de liberdade, no capturou

    o nico fenmeno digno daquela designao: a Revoluo Americana, impulsionada, segundo

    a autora, pelo anseio por liberdade que aguilhoava os pais fundadores dos Estados Unidos6.

    Segundo aquele conceito, a memria da revoluo em geral ficou conspurcada, para fins

    tericos e prticos, dado que os homens, arrebatados sua revelia nos vendavais

    revolucionrios, para um futuro incerto tomaram o lugar dos orgulhosos idealizadores da

    revoluo, que visavam a construir seus novos lares com base no saber acumulado de todas

    as pocas pretritas, na forma como o entendiam (ARENDT, 1990, p.43).

    Contra a propagao dessa perverso, que segundo ela ocorre quando a transformao dos

    Direitos do Homem nos direitos dos sans-cullotes (ARENDT, 1990, p.49) tomada como

    historicamente necessria e vazada enquanto tal em teorias gerais, Arendt assume uma postura

    psicologizante (mais freqente em sua obra do que gostaria de assumir) e assevera que:

    Isso devido, em grande parte, ao fato de que Karl Marx, o maior terico que as revolues

    jamais tiveram, era muito mais interessado em Histria do que em poltica, e, por conseguinte,

    omitiu quase que inteiramente as intenes originais dos homens da revoluo, a fundao da

    liberdade, e concentrou sua ateno, quase que exclusivamente, no curso aparentemente

    objetivo dos eventos revolucionrios (ARENDT, 1990, p.49)

    Aps assegurar que, por preferncias, puramente subjetivas, Marx teria escamoteado a

    histria, Arendt aponta que, desse modo, mais de meio sculo depois, a transformao

    referida, marcada pela abdicao da liberdade em face dos ditames da necessidade, teria

    encontrado nele seu terico (ARENDT, 1990, p.49). E como nada se produziu de comparvel

    a respeito da Revoluo Americana, a Francesa compreendida sob esse prisma se tornou a

    referncia universal para o estudo das revolues e manancial privilegiado para aspirantes a

    revolucionrios.

    Defendendo poder-se atribuir a influncia perniciosa do marxismo s muitas descobertas

    autnticas de Marx, Arendt assegura no haver dvida de que o jovem Marx entendia que

    a Revoluo Francesa falhara em instituir a liberdade em funo de seu fracasso em

    resolver a questo social. Mostrando que liberdade e pobreza eram incompatveis, o autor

    teria feito sua contribuio mais explosiva, por meio da qual interpretou as

    constrangedoras carncias da pobreza do povo em termos polticos, apontando suas

    sublevaes como rebelies no apenas por po ou riqueza, mas tambm por liberdade.

    Essa afirmao de que a pobreza pode ser uma fora poltica de primeira ordem teria sido

    sua descoberta mais relevante e igualmente nefasta, de modo que os componentes

    ideolgicos do pensamento de Marx, isto , sua crena no socialismo cientfico, na

    necessidade histrica, nas suprerestruturas, no materialismo etc. podem ser tidos como

    secundrios e derivativos, inclusive por serem, conforme idiossincrtica apreciao da

    autora7, partilhados com todo o mundo moderno, bem como pelas diversas ramificaes

  • do socialismo e do comunismo e em todo o conjunto das cincias sociais (ARENDT,

    1990, p.49).

    A referida transformao da questo social numa fora poltica encontraria sua expresso na

    noo de que a pobreza a conseqncia da explorao por uma classe dominante, que

    detm a posse dos meios de violncia (ARENDT, 1990, p.49). Aps essa correo do texto

    marxiano, em que a propriedade dos meios de produo, lastro para a ciso de classes, se

    converte em posse dos meios de violncia, para adequao linguagem de sua antropologia

    especulativa (e para que, lanada para o reino da necessidade, a questo se torne insolvel),

    Arendt avalia que tal hiptese goza de valor pequeno para as cincias humanas, uma vez

    que toma como base uma economia escrava 8 em cujo seio uma classe de senhores

    realmente se impe sobre uma base de trabalhadores, a qual tem sua validade restrita aos

    primeiros estgios do capitalismo, quando a pobreza atingiu nveis sem precedentes, como

    resultado da expropriao pela fora (ARENDT, 1990, p.49). Essa hiptese, formulada pela

    prpria Arendt e por ela atribuda a Marx, no teria sobrevivido a mais de um sculo de

    pesquisa histrica, no fosse por seu contedo revolucionrio, que supera sua repercusso

    por mritos cientficos.

    Promovendo ainda mais distoro nos fatos, aos quais se diz ater, a autora atribui a Marx a

    origem da disciplina arduamente construda por uma sucesso de geraes, marcada por

    nomes como Quesnay, Turgot, Smith, Ricardo e outros: ela lhe atribui a criao da economia

    poltica, que teria sido engendrada por ele graas introduo de um componente poltico na

    nova cincia da economia, transformando-a, portanto naquilo que pretendia que fosse, isto ,

    em uma economia poltica, uma economia que repousava no poder poltico e, como tal,

    podia ser alijada pela organizao poltica e pelos meios revolucionrios (ARENDT, 1990,

    p.50) 9.

    Atribuindo a Marx aquilo que se entrev em seu prprio discurso, Arendt diz que o filsofo

    teria reduzido as relaes de propriedade ao antigo relacionamento que a violncia, mais do

    que a necessidade instaura entre os homens; e assim teria invocado um esprito de rebelio

    que s pode surgir sob presso violenta, nunca pelo aguilho da necessidade. E isso foi de

    grande auxlio na libertao dos miserveis, no por convencer-lhes de que so a

    encarnao viva de alguma necessidade histrica, mas de que a prpria pobreza um

    fenmeno poltico, e no natural, uma decorrncia da violao, mais do que da escassez

    (ARENDT, 1990, p.50).

    Para Arendt, o que se v em Marx afirmao de que a condio de misria (da qual, para

    ela assim como para Marx10 no brota gente de esprito livre em funo da sujeio

    necessidade), deveria conduzir revoluo, ao invs de runa dos trabalhadores. Essa seria a

    decorrncia do procedimento marxiano de traduzir condies econmicas em fatores

    polticos, e explic-las em termos polticos (ARENDT, 1990, p.50).

    Tratando de encontrar o lugar de Marx, na histria da liberdade humana, a autora sustenta

    que ele permanecer sempre equvoco. Pois, se verdade que, em seus primeiros

    trabalhos, ele falava da questo social em termos polticos, e interpretava o estado de pobreza

    como includo nas categorias da opresso e explorao, no menos verdadeiro que ele em

  • quase todos os seus escritos aps o Manifesto Comunista, reformulou, em termos econmicos,

    o lan genuinamente revolucionrio de sua juventude (ARENDT, 1990, p.51). Desse modo:

    Onde inicialmente enxergou a violncia humana e a opresso do homem pelo homem,

    enquanto outros acreditavam existir alguma necessidade inerente condio humana, mais

    tarde interpretou como sendo as leis implacveis da necessidade histrica, agindo por trs de

    cada violncia, cada transgresso e cada violao. (ARENDT, 1990, p.51)

    Em seguida a mais essa imputao de posio a Marx, tambm dessa vez sem qualquer arrimo

    textual, Arendt desfere outro golpe destes, ao dizer que, ao contrrio dos medievais, mas em

    convergncia com seus mestres da Antigidade, o filsofo equiparava a necessidade aos

    impulsos compulsivos do processo vital, motivo pelo qual acabou por enfatizar, mais do

    que qualquer outro, a doutrina politicamente mais perniciosa da Idade Moderna, aquela

    segundo a qual a vida o bem maior e (...) o processo vital da sociedade o prprio centro

    do esforo humano (ARENDT, 1990, p.51). Deixando a refutao de tal disparate para a

    prxima seo, prossegue-se com a afirmao conseqente da autora, segundo a qual:

    Dessa forma, o papel da revoluo no seria mais libertar os homens da opresso de seus

    semelhantes, nem muito menos instituir a liberdade, mas libertar os processo vital da

    sociedade de seus grilhes da escassez, e faz-lo avolumar-se numa torrente de abundncia. A

    abundncia, e no a liberdade, torna-se agora o objetivo da revoluo. (ARENDT, 1990, p.51)

    Aps mais essa remisso descuidada de Marx aos marcos da economia poltica, que criticara

    fervorosamente durante mais de trs dcadas, Arendt passa a especular sobre uma possvel

    explicao da conhecida diferena entre os primeiros e os posteriores escritos, que no se

    atenha a causas psicolgicas ou biogrficas, apresentando a coisa em termos de uma

    verdadeira mudana de inclinao. Dizendo no adotar esse procedimento injusto, Arendt

    se lana a uma empreitada de hegelianizao de Marx, por meio da dissoluo da

    especificidade de suas idias em uma trama de categorias reversveis, na qual tanto era

    possvel interpretar a poltica em termos econmicos, como vice-versa, de modo que ficaria

    ao seu critrio optar pela forma mais adequada. Para a autora, Marx o teria feito ao promover

    essa converso terica da violncia em necessidade, aproveitando-se da inegvel vantagem

    terica de ser muito mais elegante e de simplificar o problema, por tornar suprflua uma

    distino real entre violncia e necessidade (ARENDT,1990, p.51). Arendt, por fim, no v

    problema nesse procedimento, uma vez que para ela a violncia pode ser reduzida a uma

    funo da necessidade, cujos imperativos so mais prementes, o que possibilita que a

    necessidade conduza a um levante de libertao contra a tirania, embora no possibilite a

    constituio da liberdade, em seus termos.

    Como desfecho de sua crtica a Marx, Arendt lana mo de outra explicao para sua suposta

    mudana radical de posio, que acima foi apontada como no mais que inverso de posio

    lgica. Tal a explicao:

    Foi o cientista em Marx, e sua ambio de elevar sua cincia ao nvel de cincia natural cuja

    principal categoria ainda era ento a necessidade, que o induziu a inverter suas prprias

    categorias. (ARENDT, 1990, p.52)

  • Segundo ela, politicamente, essa evoluo levou Marx a uma real capitulao frente

    necessidade. Assim se resumem os ganhos do esforo de Marx para reescrever a Histria

    em termos de luta de classes, o qual foi inspirado, pelo menos parcialmente, no desejo de

    reabilitar postumamente aqueles a cujas vidas vilipendiadas a Histria acrescentou o insulto

    do esquecimento (ARENDT, 1990, p.52).

    Uma resposta marxiana a Arendt

    Nessa seo empreende-se um esforo em trazer tona alguns traos fundamentais da

    concepo de historicidade do humano propugnada por Karl Marx ao longo de sua trajetria

    intelectual, com vistas a amparar textualmente as consideraes acima arroladas em sua

    defesa, quando da exposio comentada da crtica feita a ele por Hannah Arendt, quanto sua

    idia de Histria e, conseqentemente, de Revoluo.

    O primeiro passo dessa empreitada o esclarecimento de que a noo marxiana, exposta em A

    Ideologia Alem, segundo a qual a libertao um ato histrico e no um ato de

    pensamento (MARX & ENGELS, 2007, p.29) antecipa o carter positivo e relacional da

    liberdade humana que se apresenta como inovao em Arendt. E o faz com a vantagem de no

    confin-la a um mbito especfico do agir humano, mas de evidenci-la como um conjunto de

    capacidades de ao articulveis e mutuamente influentes, que s se podem desenvolver e

    aplicar em um contexto material compartilhado e co-produzido por sucessivas geraes, em

    processo em que a naturalidade s comparece como substrato progressivamente modificado,

    mas jamais suprimido ainda que nunca exera um papel preponderante. E isso o que se

    pretende demonstrar nas pginas seguintes.

    Em crtica dirigida a Feuerbach no mesmo texto acima referido, Marx o condena por partir de

    abstraes insufladas de vida prpria para a investigao sobre a vida real. Criticando

    Feuerbach por dizer o homem em vez de os homens histricos reais, Marx antecipa em

    mais de um sculo o reconhecimento, arrogado por Arendt, da pluralidade como condio

    humana inelutvel. Prosseguindo em sua crtica, Marx no s se mostra frente de Arendt,

    como nos d elementos para situ-la ao lado de Feuerbach e dos demais filsofos a quem

    critica como os idelogos alemes (MARX & ENGELS, 2007, p.32), o que faz jus s

    palavras da autora citadas na epgrafe deste estudo. O autor o faz ao dizer que Feuerbach:

    ...no v como o mundo sensvel que o rodeia no uma coisa dada imediatamente por toda a

    eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indstria e do estado de coisas da

    sociedade, e isso precisamente no sentido de que um produto histrico, o resultado da

    atividade de toda uma srie de geraes, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente,

    desenvolveu sua indstria e seu comrcio e modificaram sua ordem social de acordo com as

    necessidades alteradas. (MARX & ENGELS, 2007, p.32)

    Feuerbach no percebe que sua certeza sensvel s lhe dada mediante essa ao de uma

    sociedade determinada numa determinada poca (MARX & ENGELS, 2007, p.32). E o

    mesmo parece ocorrer com Arendt 11

    , para quem o processo material de produo de riqueza,

    no qual Marx v o locus de auto-engendramento do humano, regido pela necessidade e pela

  • violncia (uma vez que alguns lanam mo desse recurso para, fazendo recair em outro sua

    prpria necessidade, ver-se livre para a ao).

    Ainda no tocante crtica passvel de se extrapolar de Feuerbach a Arendt, pode-se mencionar

    a problematizao da idia de cincia natural da qual parte o neo-hegeliano, Marx questiona

    onde estaria a cincia natural sem a indstria e o comrcio?. E responde que mesmo essa

    cincia natural pura obtm tanto sua finalidade como seu material apenas por meio (...) da

    atividade sensvel dos homens, desse contnuo trabalhar e criar sensveis, essa produo, a

    base de todo o mundo sensvel, tal como ele existe agora (MARX & ENGELS, 2007, p.32).

    Com essa afirmao, Marx nos disponibiliza elementos para uma crtica idia de cincia

    como contemplao que Arendt defende em sua obra12

    , aproximando-se das elaboraes

    feuerbachianas.

    Aps indicar como uma vantagem de Feuerbach sua compreenso de que o homem

    tambm objeto sensvel, Marx o repreende mais uma vez; agora por no conceber os

    homens em sua conexo social dada, em suas condies de vida existentes, que fizeram deles

    o que eles so, de modo que no se chega nunca at os homens ativos, realmente

    existentes, permanecendo na abstrao o homem (MARX & ENGELS, 2007, p.32). No

    obstante defenda o contrrio, tal o procedimento adotado por Arendt, ao confinar o que

    propriamente humano em sua abstrao do homem poltico13

    , que se esvazia de qualquer

    interesse concreto com cuja lida no mundo se forma qualquer indivduo real.

    Ainda em considerao crtica extensvel a Arendt, Marx nos diz que Feuerbach:

    No nos d nenhuma crtica das condies de vida atuais. No consegue nunca, portanto,

    conceber o mundo sensvel como a atividade sensvel, viva e conjunta dos indivduos que o

    constituem, e por isso obrigado, quando v, por exemplo, em vez de homens sadios um

    bando de coitados, escrofulosos, depauperados e tsicos, a buscar refgio numa concepo

    superior e na ideal igualizao no gnero [no caso de Arendt, igualizao no poltico];

    obrigado, por conseguinte, a recair no idealismo justamente l onde o materialista v a

    necessidade e simultaneamente a condio de uma transformao, tanto da indstria como da

    estrutura social (MARX & ENGELS, 2007, p.32).

    Ento, pode-se dizer no s do pensamento de Feuerbach, como tambm daquele de Arendt,

    que, na medida em que (...) materialista, nele no se encontra a histria, ao passo que na

    medida em que toma em considerao a histria ele no materialista. Assim, em ambos,

    materialismo e histria divergem completamente (MARX & ENGELS, 2007, p.32).

    Apresentando, em seguida, algo de sua prpria concepo, Marx e Engels sustentam que o

    primeiro ato histrico consiste na produo da prpria vida material, uma condio

    fundamental de toda a histria, que ainda hoje, assim como h milnios, tem de ser cumprida

    diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos, afirmaes com as

    quais Arendt estaria de pleno acordo, demonstrando sua atinncia aos fatos. Mas, contrariando

    a expectativa arendtiana de naturalizao de tais processos fundamentais, os autores nos

    dizem que a satisfao dessa primeira necessidade, a ao de satisfaz-la e o instrumento de

    satisfao j adquirido conduzem a novas necessidades, de modo que se promove um

  • afastamento de determinaes naturais, por meio da apropriao consciente e cooperativa da

    natureza. Aps essa demonstrao do carter scio-histrico das necessidades que se

    pretendem sanar com a atividade material tipicamente humana, dizem os autores, em tom

    irnico, acerca da grande sabedoria histrica dos alemes (MARX & ENGELS, 2007,

    p.33), que:

    ... quando lhes falta o material positivo e quando no se trata de discutir disparates polticos,

    teolgicos ou literrios, nada nos oferecem sobre a histria, mas sim sobre os tempos pr-

    histricos, contudo sem nos explicar como se passa desse absurdo da pr-histria histria

    propriamente dita. (MARX & ENGELS, 2007, p.33)

    Divergindo de tais procedimentos especulativos, os autores advertem que as necessidades

    aumentadas criam novas relaes sociais, de modo que a famlia torna-se uma relao

    secundria. E recomendam que a mesma deva portanto, ser tratada e desenvolvida segundo

    os dados empricos existentes e no segundo o conceito de famlia, como se costuma fazer

    na Alemanha (MARX & ENGELS, 2007, p33) e tal como parece proceder Arendt na

    elaborao da peculiar idia que tem da esfera econmica, cujo mximo de complexidade que

    pode atingir sua articulao de famlias em unidades mais amplas, at a formao de uma

    famlia sobre-humana sob forma de nao, tal como expe em A Condio Humana

    (ARENDT, 1983, p.38).

    Dizendo tratarem as idias acima apresentadas de aspectos da atividade social, que no

    devem ser considerados como trs estgios distintos, dado que coexistiram desde os

    primrdios da histria e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na

    histria (MARX & ENGELS, 2007, p.34), Marx e Engels asseveram, sinteticamente:

    A produo da vida, tanto da prpria, no trabalho, quanto da alheia, na procriao, aparece

    desde j como uma relao dupla de um lado, como relao natural, de outro como relao

    social , social no sentido de que por ela se entende a cooperao de vrios indivduos, sejam

    quais forem as condies, o modo e a finalidade. (MARX & ENGELS, 2007, p.32)

    Da se segue, segundo eles, que um determinado modo de produo esteja sempre ligado a

    um determinado modo de cooperao (...) que , ele prprio, uma fora produtiva. Segue-se

    tambm que a soma das foras produtivas acessveis ao homem condiciona o estado social e

    que, portanto, a histria da humanidade deve ser estudada e elaborada sempre em conexo

    com a histria da indstria e das trocas (MARX & ENGELS, 2007, p.34). pertinente

    lembrar que, para alm da mera reproduo fsica dos indivduos, trata-se aqui do

    desenvolvimento de uma determinada forma de atividade dos indivduos, determinada forma

    de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos; da poder-se afirmar que o

    que eles so coincide (...) com sua produo, tanto com o que produzem, como com o modo

    como produzem, depende das condies materiais de sua produo (MARX & ENGELS,

    2002, pp. 27-28).

    Assim, para os autores:

  • Mostra-se, portanto, desde o princpio, uma conexo materialista dos homens entre si,

    conexo que depende das necessidades e do modo de produo e que to antiga quanto os

    prprios homens uma conexo que assume sempre novas formas e que apresenta, assim,

    uma histria, sem que precise existir qualquer absurdo poltico ou religioso que tambm

    mantenha os homens unidos. (MARX & ENGELS, 2007, p.34)

    somente nesse estgio da reflexo, depois de j examinados quatro momentos, quatro

    aspectos das relaes histricas originrias, que se d conta de que o homem tem tambm

    conscincia. Mas, segundo tambm se compreende, esta no , desde o incio, conscincia

    pura, uma vez que o esprito sofre, desde o incio, a maldio de estar contaminado

    pela matria, que, aqui, se manifesta sob a forma (...) de linguagem. E esta, para os autores,

    to antiga quanto a conscincia, ela a conscincia real, prtica, que existe para os

    outros homens e que, portanto, tambm existe para cada um: ela nasce, tal como a

    conscincia, do carecimento, da necessidade de intercmbio com outros homens (MARX &

    ENGELS, 2007, p.34) 14

    .

    Sobre a problemtica da ciso e da dominao de classes no seio da sociedade, condio

    scio-histrica naturalizada pela antropologia especulativa de Arendt, e de sua repercusso na

    conscincia, Marx assevera que:

    A diviso do trabalho s se torna realmente diviso a partir do momento em que surge uma

    diviso entre trabalho material e [trabalho] espiritual. A partir desse momento, a conscincia

    pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da conscincia da prxis existente,

    representar algo realmente sem representar algo real a partir de ento, a conscincia est em

    condies de emancipar-se do mundo e lanar-se construo da teoria, da teologia, da

    filosofia, da moral etc. puras. (MARX & ENGELS, 2007, p.35)

    Aqui cabe comentar que, por trabalho espiritual, Marx entende a atividade de concepo e

    orientao gerais para o complexo processo interativo de auto-produo concreta do humano

    scio-histrico, o que inclui a magia e a mitologia, a moral e a religio, bem como os

    princpios polticos aparentemente ilibados, purificados (filosoficamente) de qualquer rano

    moral ou religioso (como os pretende encontrar Arendt por via da contemplao). nesse

    mbito que se insere a problemtica das interaes complexas, nada mecnicas, entre a assim

    chamada infra-estrutura e a famosa superestrutura, instncias que so mutuamente

    determinantes, mas em cuja interao a materialidade preponderante15

    . Desconsiderando-se

    essa problemtica, perde-se de vista que o objetivo comum que inspirara a filosofia socrtico-

    platnica e aquela de Arendt justamente a legitimao filosfica daquela separao16

    , que

    em Marx no decorre de qualquer determinao natural, nem de qualquer necessidade

    propriamente histrica no sentido hegeliano aludido acima. Mas, decorre, sim, de processos

    histricos reais.

    At aqui, o nico sentido possvel para a expresso necessidade histrica na obra de Marx

    o de demanda engendrada em meio ao convvio multidimensional humano, que histrico;

    seja uma carncia referente reproduo biolgica de um organismo singular, seja um anseio

    referente ao conjunto global de indivduos concretos que coabitam e produzem

    cooperativamente esse mundo. Nada tem a ver com a realizao de uma necessidade

  • metafsica ou natural, de todo modo transcendente; mas com a ingerncia humana efetiva e

    muitas vezes eficaz nos assuntos propriamente humanos, que decorrem do processo

    cooperativo de apropriao da natureza (externa e prpria ao homem) segundo propsitos

    scio-historicamente engendrados, portanto, livres17

    ainda que admitindo graus distintos de

    reflexo e deciso, conforme a configurao scio-histrica especfica em vigor, cujo ajuste

    violento Marx denomina revoluo.

    Compreendendo a histria como o suceder-se de geraes distintas, em que cada uma delas

    explora os materiais, os capitais e as foras de produo a ela transmitidas pelas geraes

    anteriores, os autores percebem que, por um lado ela continua a atividade anterior sob

    condies totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente

    diferente as antigas condies. E percebem tambm que esse processo pode ser

    especulativamente distorcido, ao converter-se a histria posterior na finalidade da anterior,

    com o que a histria ganha finalidades parte, por meio da dao de vida prpria a uma

    abstrao da influncia ativa que a histria anterior exerce sobre a posterior (MARX &

    ENGELS, 2007, p.40), com o que se pode defender que no h em seu pensamento qualquer

    finalismo, qualquer elemento escatolgico; mas, sim, a afirmao da possibilidade

    indeterminada de auto-engendramento do homem, por meio da interao concreta dos

    indivduos reais em um ambiente objetivo.

    Para acentuar a concretude da noo marxiana de histria mundial, que Arendt v como

    decorrncia lgica do conceito hegeliano de necessidade histrica, que teria sido herdado por

    Marx, bem como para evidenciar a abrangncia e a profundidade de seu propsito

    revolucionrio, que a autora nega taxativamente com base naquela interpretao hegelianizada

    de suas idias, cabe relacionar essa passagem como reforo:

    Na histria que se deu at aqui sem dvida um fato emprico que os indivduos singulares,

    com a expanso da atividade numa atividade histrico-mundial, tornaram-se cada vez mais

    submetidos a um poder que lhes estranho (cuja opresso eles tambm representavam como

    um ardil do assim chamado esprito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e

    que se revela, em ltima instncia, como mercado mundial. (MARX & ENGELS, 2007, p.41)

    Desdobrando essa afirmao no que tange ao processo de individuao, os autores

    rememoram que do mesmo modo empiricamente fundamentado que, com o

    desmoronamento do estado de coisas existente da sociedade por obra da revoluo

    comunista, a libertao de cada indivduo singular atingida, na mesma medida em que a

    histria transforma-se plenamente em histria mundial. Acentuando que a efetiva riqueza

    espiritual do indivduo depende inteiramente da riqueza de suas relaes reais (MARX &

    ENGELS, 2007, p.41) e no apenas do atendimento s necessidades biolgicas, dizem Marx e

    Engels:

    Somente assim os indivduos singulares so libertados das diversas limitaes nacionais e

    locais, so postos em contato prtico com a produo (incluindo a produo espiritual) do

    mundo inteiro e em condies de adquirir a capacidade de fruio dessa multifacetada

    produo de toda a terra (criaes dos homens). (MARX & ENGELS, 2007, p.41)

  • Ainda de A Ideologia Alem cabe apontar mais alguns poucos aspectos. Alm da afirmao de

    que a atual forma alienada de produo da vida transformada, por obra dessa revoluo

    comunista, que consiste na instaurao do controle e domnio consciente daqueles poderes

    que, criados pela atuao recproca dos homens, a eles se impuseram como poderes

    completamente estranhos e os dominaram (MARX & ENGELS, 2007, p.42), apresenta-se

    uma pista acerca do processo formativo do agente revolucionrio mesmo, temtica que em

    Arendt no merece qualquer tratamento concreto18

    . Diz-se no texto, antecipando a idia

    arendtiana de que, em uma revoluo, a etapa de libertao deveria ser seguida daquela em

    que se promove a constituio da liberdade:

    ...tanto para a criao em massa dessa conscincia comunista quanto para o xito da prpria

    causa faz-se necessria uma transformao massiva dos homens, o que s se pode realizar por

    um movimento prtico, por uma revoluo; que a revoluo, portanto, necessria no

    apenas porque a classe dominante no pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas

    tambm porque somente com uma revoluo a classe que derruba detm o poder de

    desembaraar-se de toda a antiga imundcie e de se tornar capaz de uma nova fundao da

    sociedade. (MARX & ENGELS, 2007, p.42)

    Defendendo, em seguida, que a historiografia deve se operar em ateno ao processo real de

    produo a partir da produo material da vida imediata, concebendo a forma de

    intercmbio conectada a esse modo de produo e por ele engendrada, Marx e Engels dizem

    que assim se pode explicar a ao da sociedade civil via Estado, bem como explicar a partir

    dela o conjunto de diferentes criaes tericas e formas da conscincia, seja a religio, a

    filosofia, a moral etc., seguindo seu processo de nascimento a partir dessas criaes, o que

    ento torna possvel, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua toda (assim como a

    ao recproca entre esses diferentes aspectos). Em defesa de tal posio, sustentam que:

    Toda concepo histrica existente at ento ou tem deixado completamente desconsiderada

    essa base real da histria, ou a tem considerado apenas como algo acessrio, fora de toda e

    qualquer conexo com o fluxo histrico. A histria deve, por isso, ser sempre escrita segundo

    um padro situado fora dela; a produo real da vida aparece como algo pr-histrico,

    enquanto o elemento histrico aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e

    supraterreno. Com isso, a relao dos homens com a natureza excluda da histria, o que

    engendra a oposio entre natureza e histria.(MARX & ENGELS, 2007, p.43)

    Dessa posio, segundo Marx e Engels, s se pode ver na histria aes polticas dos

    prncipes e dos Estados, lutas religiosas e simplesmente teorticas, bem como se levado a

    compartilhar, em cada poca histrica, da iluso dessa poca. Assim, se uma poca se

    imagina determinada por motivos puramente polticos ou religiosos, embora religio e

    poltica sejam to-somente formas de seus motivos reais, ento o historiador dessa poca

    aceita essa opinio. E se for o caso de se decidir o terico, nem que seja por uma nica

    vez, tratar dos temas verdadeiramente histricos como, por exemplo, o sculo XVIII, s

    nos ser oferecida a histria das representaes, destacadas dos fatos e dos desenvolvimentos

    histricos que constituem sua base (MARX & ENGELS, 2007, p.44). Assim, se na anlise

    de tal ou qual perodo histrico desconsideramos os indivduos e as condies mundiais que

  • constituem o fundamento dessas idias, poderemos incorrer em equvoco anlogo quele de

    dizer que durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra,

    fidelidade etc., enquanto durante o domnio da burguesia dominaram os conceitos de

    liberdade, igualdade etc. (MARX & ENGELS, 2007, p.44). Quanto importncia dada por

    Arendt ao discurso daqueles que toma como os autnticos revolucionrios, em funo de seu

    incontido anseio por liberdade pblica, Marx e Engels tm algo a dizer, que reitera posio

    criticada no primeiro por ela. Nas palavras dos autores:

    Enquanto na vida comum qualquer shopkeeper sabe muito bem a diferena entre o que

    algum faz de conta que e aquilo que ele realmente , nossa historiografia ainda no atingiu

    esse conhecimento trivial. Toma cada poca por sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e

    imagina sobre si mesma. (50)

    Fecha-se esse tratamento de A Ideologia Alem com a afirmao marxiana de que na

    explorao de um esquema j existente, adequando-o s suas prprias finalidades e

    demonstrando essa concepo prpria com ajuda de exemplos isolados aquele que pretende

    historiar ou refletir sobre a histria se isenta da necessidade de qualquer conhecimento da

    histria. E com isso passa-se ao tratamento de outro texto.

    Para que se tenha plena clareza de que a posio de Marx quanto histria no se esvai com o

    tempo, no suposto trnsito entre juventude e maturidade, faz-se til a considerao de uma

    carta enviada pelo autor, em novembro de 1877, ao peridico russo Otietchestvienniie

    Zapiski19, em que o filsofo relata que, para poder apreciar com conhecimento de causa o

    desenvolvimento econmico da Rssia, havia aprendido o russo e estudado, durante longos

    anos, as publicaes oficiais e outras relativas a este assunto (informao que aqui se faz

    relevante dado o contraste que se pretende estabelecer entre o procedimento deste autor e

    aquele de Arendt) e chegado concluso de que, se a Rssia continuar marchando pelo

    caminho seguido desde 1861, incorrer em grande perda: deixar passar a mais bela

    oportunidade que a Histria jamais ofereceu a um povo, habilitando-se a experimentar todas

    as peripcias fatais do regime capitalista. (MARX, 1982, p.)

    Respondendo a uma polmica levantada a partir do captulo sobre a acumulao primitiva

    de seu livro O Capital, em que tratava do caminho percorrido pela Europa Ocidental, Marx

    explica que a aplicao Rssia deste esboo histrico se restringe ao seguinte: se a

    Rssia tende a transformar-se numa nao capitalista, ter antes que transformar uma boa

    parte de seus camponeses em proletrios. Uma vez introduzida no seio do regime

    capitalista, ela dever operar segundo suas leis impiedosas. E isto tudo (MARX, 1982,

    p.). Mas, nota Marx, isso no basta para seu crtico.

    Ele se sente obrigado a metamorfosear meu esboo histrico da gnese do capitalismo na

    Europa Ocidental em uma teoria histrico-filosfica da marcha geral fatalmente imposta a

    todos os povos, sejam quais forem as circunstncias histricas em que se encontrem, para

    chegar, finalmente, a esta formao econmica que assegure, juntamente com o maior

    impulso das foras produtivas do trabalho social, o mais completo desenvolvimento do

    homem. Mas ele que me perdoe: isso, ao mesmo tempo, muito me honra e muito me

    envergonha. (MARX, 1982, p.)

  • Negando taxativamente a seu pensamento qualquer pretenso de se constituir como uma

    teoria histrico-filosfica que desse conta de trazer luz a legalidade prpria de uma

    marcha geral fatalmente imposta a todos os povos, Marx deixa sem cho aqueles que

    imputam a seu pensamento uma filosofia da histria, de talhe hegeliano dentre os quais se

    encontra Hannah Arendt, como se viu acima.

    Como exemplo de seu procedimento de ir estudando cada uma dessas evolues

    separadamente e comparando-as em seguida, sem nunca lanar mo do passe-partout de

    uma teoria histrico-filosfica geral (MARX, 1982, p.), podem-se apresentar os esboos

    elaborados por Marx em resposta carta de Vera Zasulich, de 1881. Nesses escritos, Marx

    defende que na Rssia, graas a uma combinao de circunstncias nicas, a obchina,

    forma especfica de comuna rural, ainda estabelecida em escala nacional em seu tempo, podia

    desembaraar-se gradualmente de seus caracteres primitivos e desenvolver-se diretamente

    como elemento da produo coletiva em escala nacional (MARX, 1982 b, p.).

    Mais uma vez, nada se percebe de inexorabilidade histrica no texto marxiano. Ao invs

    disso, percebe-se uma grande sensibilidade e uma acentuada receptividade terica para a

    diversidade, para o especfico, sem sua dissoluo em abstraes20

    . E essa idia reforada

    quando, indo a detalhes sobre o objeto de que trata, Marx assevera:

    justamente graas contemporaneidade da produo capitalista que ela pode apropriar-se

    de todas as conquistas positivas desta ltima, sem passar por suas peripcias terrveis. A

    Rssia no vive isolada do mundo moderno, nem presa de um conquistador estrangeiro,

    como as ndias Orientais.

    Aps essa passagem, em que se nota o esforo do autor em no tomar seu objeto como

    avulso, reconhecendo-o como inserido em um todo, com o qual se relaciona, determinando e

    sendo determinado, v-se a reiterao da possibilidade de a comuna russa vir a servir de base

    para uma revoluo, no s restrita Rssia, mas de abrangncia global21

    . E, contra uma

    possvel objeo no sentido de interditar realidade russa uma absoro efetiva e positiva dos

    avanos produtivos materiais e intelectuais, bem como referentes organizao poltica dos

    trabalhadores ocidentais, dada sua especificidade cultural marcante, argumenta:

    Se os porta-vozes dos novos pilares sociais negassem a possibilidade terica dessa evoluo

    da comuna rural moderna, poder-se-ia perguntar-lhes se a Rssia teve que passar, como o

    Ocidente, por um longo perodo de incubao da indstria mecnica para chegar s mquinas,

    aos barcos a vapor, s estradas de ferro etc. Tambm se perguntaria como fizeram para

    introduzir entre eles, num piscar de olhos, todo o mecanismo de trocas (bancos, sociedades

    por aes etc.) cuja elaborao (alhures) custou sculos ao Ocidente.

    Trazendo tona que o Estado serviu de intermedirio no desenvolvimento precoce dos

    meios tcnicos e econmicos mais apropriados para facilitar a explorao do cultivador, ou

    seja, da maior fora produtiva da Rssia, com vistas a enriquecer os novos pilares

    sociais, Marx conclui suas consideraes sustentando que o que ameaa a vida da comuna

    russa no uma inevitabilidade histrica, nem uma teoria, mas a opresso, e explorao

    pelos capitalistas intrusos cujo Estado tornou poderosos a expensas dos camponeses. Tal

  • afirmao evidencia a inadequao do esquema economicista para compreender suas idias

    sobre o tema das relaes entre economia e poltica, por ressaltar o papel da lei e da espada na

    constituio de dado modo de vida repercutindo procedimento adotado j em O Capital, na

    seo destinada a tratar-lhe a acumulao primitiva (MARX, 1982 b, p.).

    O prefcio escrito em 1882 para a edio russa do Manifesto Comunista merece ser trazido

    aqui baila, neste ltimo momento, por dois motivos: ele permite ressaltar mais uma vez o

    carter globalmente articulado da histria humana, por um lado; bem como permite trazer

    tona o acurado conhecimento que Marx tinha dos Estados Unidos, de sua importncia para a

    histria humana e de seu potencial revolucionrio, o qual nos permite mais uma vez

    questionar a validade da crtica que Arendt lhe direciona.

    Quanto questo da comuna russa, basta apresentar a indagao formulada por Marx a seu

    respeito, acompanhada de sua resposta. Primeiro, questiona Marx:

    ...poderia a comunidade rural russa forma por certo j muito desnaturada da primitiva

    propriedade comum da terra passar diretamente forma superior da propriedade coletiva,

    forma comunista ou, pelo contrrio, dever primeiramente passar pelo mesmo processo de

    dissoluo que constitui o desenvolvimento histrico do Ocidente? (MARX, 1977, p.16)

    Ento, ele responde:

    ...se a revoluo russa d o sinal para uma revoluo proletria no Ocidente, de modo que

    ambas se completem, a atual propriedade comum da terra na Rssia poder servir de ponto de

    partida para uma desenvolvimento comunista. (MARX & ENGELS, 1977, p.16)

    Nessa reapresentao do Manifesto mais de trinta anos depois de sua primeira apario,

    justifica-se a ausncia da Rssia e os Estados Unidos do texto, em funo do momento

    especfico de sua elaborao, em que a Rssia constitua a ltima grande reserva de toda a

    reao europia, enquanto que a emigrao para os Estados Unidos absorvia o excesso de

    foras do proletariado da Europa. Naquele tempo, segundo se relembra, estes dois pases

    proviam a Europa de matrias-primas e eram, ao mesmo tempo, mercados para a venda de sua

    produo industrial, consistindo ambos, de um modo ou de outro, esteios da ordem vigente

    na Europa. Mas, tudo mudou muitssimo nessas trs dcadas: condicionado pela emigrao

    europia, verificou-se na Amrica do Norte um colossal desenvolvimento da agricultura,

    cuja concorrncia abala os prprios alicerces da grande e da pequena propriedade territorial

    na Europa; verificou-se tambm a possibilidade de empreender a explorao dos seus

    imensos recursos industriais com um vigor e em propores tais que muito cedo havia de

    acabar com o monoplio industrial do Ocidente europeu e especialmente com o da Inglaterra

    (MARX & ENGELS, 1977, p.15). Acentuando exatamente o que se obscurece na obra de

    Arendt, o autor nos esclarece que:

    Estas duas circunstncias repercutem por sua vez, de um modo revolucionrio, sobre a prpria

    Amrica do Norte. A pequena e mdia propriedade agrria dos granjeiros, pedra angular de

    todo o regime poltico norte-americano, sucumbe continuamente diante da concorrncia das

  • gigantescas fazendas, enquanto em regies industriais se forma, pela primeira vez, um

    poderoso proletariado ao lado de uma fabulosa concentrao de capitais.

    Essa ltima passagem refora que, no s em termos histricos, mas tambm filosficos22

    , a

    compreenso marxiana do fenmeno norte-americano, com suas especificidades e

    generalidades, em sua dinmica prpria e em sua insero interativa global, se mostra mais

    fecunda que aquela de Hannah Arendt, que pretende super-la por atinncia aos fatos.

    Concluso

    Tomando como base o que fora arrolado, acredita-se poder defender que, de um modo geral, a

    obra de Marx se mostra mais fecunda que aquela de Arendt para a compreenso do fenmeno

    revolucionrio, bem como assim se evidencia no tocante liberdade, individualidade,

    sociabilidade e historicidade humanas. No cindindo o homem em instncias definitivas de

    atividade, que so incomunicveis (como o faz Arendt em outras obras23

    , mas com impacto

    no livro aqui em pauta embora seu pensamento permita que a razo econmica invada a

    poltica, desnaturando-a, evidenciando mais um de seus inmeros paradoxos), mas

    compreendendo-o na multiplicidade cambiante de seus mbitos interativos de ao, Marx no

    o aprisiona por emaranhado de idias em dado momento histrico (em grande parte

    inventado24

    ), que naturalizado ou sobrenaturalizado, mas o reconhece imerso em um

    complexo ambiente material e imaterial produzido por ele mesmo ao longo de geraes

    (atravs da apropriao cooperativa da natureza, sua volta e em si), em meio ao qual cada

    indivduo se produz, como resultado de sua interao concreta singular (embora configurada

    por inmeras particularidades e universalidades) com os demais. A pretensa crtica que a

    autora direciona ao filsofo revela, portanto, muitssimo mais de sua prpria debilidade e

    inconscincia dos prprios limites do que a ingenuidade e a eventual perversidade de um

    discpulo que nunca chegou a mestre, a quem apraz escamotear a histria motivado por

    intenes escusas e cujo maior impacto foi sublevar as massas a uma libertao que faria

    malograr a Revoluo dos Livres Proprietrios (cognominados de O Povo), de que aquela

    norte-americana seria o exemplo maior (a idia platnica em roupagem materialista)

    revoluo que deveria ter na populaa apenas o seu exrcito, para lutar por eles contra

    quem constrangia a ambos, o Rei e sua corte. Marx ter-lhes-ia roubado aos Livres o exrcito

    de sociais que eles tinham sua disposio, para us-lo em seu projeto totalitrio prprio.

    Se lida por tal vis, talvez a filosofia arendtiana se mostre muito mais prxima daquilo que diz

    combater do que cr a prpria autora. Essa a proposta deste texto.

    Referncias

    ARENDT, Hannah. A Condio Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1983.

    _____. Da Revoluo. So Paulo: tica, 1990.

    _____. The Jew as Pariah. New York: Grove Press, 1978, pp.245-246.

    MARX, Karl. Redao de Otietchestvienniie Zapiski. In: Fernandes, R.C. Dilemas do

    Socialismo: A controvrsia entre Marx, Engels e os Populistas Russos, pp.165-168. So

    Paulo: Paz e Terra, 1982.

  • _____. Primeiro rascunho de carta a V. Zasulich. In: FERNANDES, Rubem Csar. Dilemas

    do socialismo. So Paulo: Paz e Terra, 1982 b.

    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo, 2007.

    _____. A ideologia alem (I Feuerbach). So Paulo: Hucitec, 2002.

    _____. Prefcio Edio Russa de 1882 [ao Manifesto Comunista]. In: Karl Marx e Friedrich

    Engels: Textos 3. So Paulo: Edies Sociais, 1977.

    Notas

    1 ARENDT, Hannah. The Jew as Pariah. New York: Grove Press, 1978, pp.245-246.

    2 MARX & ENGELS, A ideologia alem. So Paulo: Hucitec, 2002, p.18

    3Toma-se aqui como pertinente a periodizao da obra de Marx feita por J. Chasin, em seu

    livro Marx:Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica (So Paulo: Boitempo, 2009),

    segundo a qual no h quaisquer rupturas fundamentais na obra marxiana aps 1843.

    4No s em Da Revoluo, mas por toda a sua obra, Hannah Arendt tece, sistemtica ou

    acidentalmente, de modo esparso ou articulado, consideraes que desaprovam o filsofo em

    vrios aspectos de seu pensamento, tal como ela o concebe. De todas as pores crticas, que

    tm como caracterstica comum a precariedade da sustentao textual para as afirmaes

    apresentadas, trata-se aqui apenas daquelas presentes naquele livro.

    5 Ver WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem Histria. So Paulo: Edusp, 2004

    6 Para a caracterizao dos Pais Fundadores e de seu contexto especfico, remeto o leitor a

    Who Wrote the Constitution? The Economic Interests of the Founding Fathers,

    compilao feita por Bill Bigelow, em que aqueles personagens so apresentados com suas

    respectivas posies sociais, ocupaes e fortunas. Este documento, de que se pode inferir

    algo acerca dos interesses econmicos que motivaram sua participao no processo de

    independncia, encontra-se em:

    http://www.rethinkingschools.org/static/publication/roc2/sla2roc2.pdf. Tambm acerca dos

    chamados Pais fundadores, relevante levar em conta a forte influncia exercida sobre eles

    pela constituio da confederao indgena iroquesa, a qual Benjamin Franklin teria tomado

    como modelo. Para uma primeira aproximao da temtica, negligenciada por Arendt, pode-

    se acessar com proveito: http://www.ratical.org/many_worlds/6Nations/index.html#FF.

    7 Comum nas obras da autora e notadamente no livro em questo o arremesso de asseres

    acerca da posio filosfica ou poltica de terceiros sem qualquer amparo textual. Vtima

    freqente desse procedimento no referido livro Jean-Jaques Rousseau.

    8 V-se que o pequeno apreo que a autora tem para com as determinaes histricas

    especficas impediu-a no s de discernir traos importantes da realidade que se props a

    compreender, mas tambm de reconhecer o que central no pensamento de Marx, a saber, seu

  • esforo em capturar a especificidade do modo de produo em vigor nesse ou naquele

    contexto analisado.

    9De fato ela inverte as coisas, dado que essa economia cientfica, pretensamente isenta,

    nasceu justamente como reao crtica de Marx economia poltica.

    10Cumpre salientar aqui que Marx jamais prope a revoluo seno como apropriao por

    parte dos produtores de uma riqueza produzida, mas deles alijada, em funo da forma social

    pela qual essa riqueza mesma riqueza se produz; no prope em parte alguma a revoluo a

    partir da misria.

    11 possvel objeo de que a autora reconhece adequada e conseqentemente o carter

    artificial do ambiente material humano, sob suas categorias relacionadas de homo faber e de

    fabricao, pode-se retorquir que estas idias, por conferirem carter natural quilo a que se

    referem (a produo de um mundo de objetos teis) e a descolarem de tudo o que seja

    especificamente humano, esvaziam qualquer possibilidade de sua articulao com as demais

    dimenses do fazer-se histrico do homem. Isso se pode notar no terceiro captulo de A

    Condio Humana.

    12 Em nota primeira pgina de seu ensaio O pblico e o privado em Hannah Arendt,

    Marco Antnio Antunes, afirma que A contemplao o ltimo elemento conceptual da

    antropologia filosfica de Hannah Arendt [e] consiste na relao do homem com o mundo

    fsico na tentativa de apreender leis eternas semelhantes s leis da Matemtica e da Fsica.

    Este conceito tematizado em The life of the spirit. Compreende reflexo filosfica e

    religiosa. O texto de Antunes est disponvel em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/antunes-

    marco-publico-privado.pdf.

    13 Ver A Condio Humana, em que se expe a atividade poltica, a ao, como a

    prerrogativa exclusiva do homem, de modo que nem um animal nem um deus capaz de

    ao, e que s a ao depende inteiramente da constante presena de outros (ARENDT,

    1983, p.31), o que de modo algum um fato, como se percebe na obra de Marx e por meio da

    experincia cotidiana.

    14 Cabe aqui o comentrio de que nem mesmo a mais rudimentar expedio de coleta

    cooperativa pode operar-se sem que haja comunicao entre seus partcipes, de modo que a

    linguagem no se restringe esfera pblica, instncia historicamente recente que apenas o

    mais crasso anacronismo poderia remeter aos primrdios da humanidade, pr-histria na

    qual, diga-se, j se encontra altssimo grau de elaborao lingstica e espiritual em geral,

    acentuadamente de carter moral.

    15 Para um tratamento mais aprofundado da questo, que no recaia na atribuio de uma

    teoria da ideologia a Marx, mas reconhea a complexidade do tratamento que o autor d ao

    tema, consultar o artigo de Ester Vaisman, A usina onto-societria do pensamento (em:

    Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 4, Ano II, Abril de 2006,

    periodicidade semestral Edio Especial: Dossi Marx; disponvel em:

    http://www.verinotio.org/Verinotio_revistas/n4/r4artigo8.pdf). Ver tambm, de Lenidas Dias

  • de Faria, A determinao scio-histrica das formaes ideais na teorias da mais-valia de

    Karl Marx. Dissertao de mestrado em filosofia, Fafich UFMG, 2003.

    16 Ellen Wood, em seu Class ideology and ancient political theory, ressalta que, na filosofia

    dos socrticos (Scrates, Plato e Aristteles, dentre outros menores), os homens na polis

    que so incapazes de ser sbios por causa de seu trabalho rduo, sua falta de cio e sua priso

    necessidade material so algo menos que humanos e so serventes naturais daqueles que so

    superiores (p.109). Desbancando a idia corrente de que a polis grega era fundada no

    trabalho escravo e que por isso essa atividade era vista como indigna, basilar para o

    pensamento poltico de Arendt, Wood defende, em seu livro Democracia contra capitalismo,

    que o trabalhador livre, com o status de cidado numa cidade estratificada, especificamente o

    cidado campons, com a liberdade jurdica e poltica implcita e a liberao de formas de

    explorao por coao direta dos donos de terra ou do Estado, era certamente uma formao

    distintiva que indicava uma relao nica entre classes apropriadoras e produtoras e que

    essa formao nica est no centro de grande parte do que caracteriza a polis grega e

    especialmente a democracia ateniense, afetando todo o seu desenvolvimento cultural e

    poltico, a includa a filosofia grega clssica (p.157). No mesmo diapaso, Vernant ensina

    que Plato teve sua concepo do homem afetada por esse contexto, mas apenas

    negativamente, uma vez que nenhum dos aspectos psicolgicos da tcnica lhe parece

    apresentar contedo humano vlido, de modo que o filsofo tem o cuidado de separar e de

    opor a inteligncia tcnica e seu ideal de homem, como ele separa e ope na cidade a funo

    tcnica e as outras duas, a de defender e a de governar (p.320). Com base nisso, Wood pode

    afirmar sobre Arendt, em seu livro Peasant-Citizen and Slave, que ela constri toda uma

    filosofia poltica com base na identificao da realidade com a sugesto aristotlica de que os

    cidados, apenas por serem livres da necessidade de trabalhar para viver, eram capazes de

    uma verdadeira conscincia poltica. Assim, Arendt seria forada pelos fatos, pelos quais

    afirma ter apreo, a retratar-se filosoficamente e atribuir as glrias da antiga Atenas no ao

    seu esprito agnico, mas influncia nefasta do cidados banusicos (pp.40-41); ou assumir

    o carter apolgtico, poranto estreitamente instrumental, de seu pensamento poltico

    incorrendo em mais um pardoxo.

    17 E essa a soluo marxiana para a problemtica kantiana da causalidade livre.

    18 Nem poderia merecer, dado que as revolues, para ela, ocorrem inadvertidamente aos

    seus protagonistas, que tm de assumi-la j em curso afirmao que se choca frontalmente

    com aquela segundo a qual um processo revolucionrio se empreende sob a motivao de um

    anseio consciente e aguerrido por liberdade pblica, que a autora defende em todo o livro Da

    Revoluo.

    19 Em resposta a uma resenha feita acerca de seu livro O Capital, que estava recm-editado

    na Rssia e vinha sendo objeto de um fervoroso debate, principalmente acerca da noo de

    histria ali contida e de sua fecundidade para a anlise do caso russo.

    20 Outro ponto a notar no texto o fato de que nele Marx traz para seu campo de reflexo o

    conhecimento que ento se produzia na etnologia e na investigao sobre a pr-histria, para

    incorpor-lo produtivamente em seu discurso, tornando-o assim, em troca, mais apto a

  • orientar a investigao emprica. A anlise da vitalidade da comuna europia, que deixou

    profundas marcas mesmo depois de extinta, bem como do potencial revolucionrio da comuna

    russa (MARX, 1982 b., p.), no se pode empreender com base nas idias de Arendt, para

    quem a esfera da produo econmica se rege pela mera necessidade biolgica ou pela

    violncia, que no seno uma funo da necessidade (ARENDT, 1990, p.52).

    21 Quanto sua especificidade e ao seu contexto mais amplo, nos diz o autor que a Rssia

    o nico pas europeu onde a comuna agrcola manteve-se em escala nacional at os nossos

    dias, no presa de um conquistador estrangeiro tampouco vive isolada do mundo

    moderno; a propriedade comum da terra permite-lhe transformar direta e gradualmente a

    agricultura parcelar e individualista em agricultura coletiva e os camponeses russos j a

    praticam nas pradarias indivisas e a configurao fsica do seu solo convida explorao

    mecnica em grande escala. Outros dois pontos a destacar so: a contemporaneidade da

    produo capitalista no Ocidente, com o qual ela mantm relaes materiais e intelectuais e o

    compromisso da sociedade russa e de sua Intelligentsia para com os camponeses, a cujas

    custas viviam e a quem deviam os avanos necessrios a tal transio (MARX, 1982 b, p.)

    22 A filosofia, na obra de Marx, deve ser entendida como a dimenso mais abstrata de uma

    anlise multidimensional e integral da realidade, que no se arroga uma pretensa compreenso

    do todo, mas uma cautelosa compreenso dessa mesma realidade como sendo um todo; a

    filosofia deve ser entendida como um discurso que no autnomo, mas que se integra (ou

    deve integrar-se), como elemento especfico em outro mais amplo (em que se articulam aos

    filosficos aqueles saberes de carter cientfico, bem como tcnicos e mesmo de senso

    comum, cuja legitimidade em seu mbito prprio inquestionvel, embora a se deva

    reconhecer a abertura para supersties etc.). Tal articulao de enunciados dotada de nveis

    diversos de abstrao e de vrios recortes da realidade, tendo como objeto a totalidade do ser,

    em sua intrincada interao efetiva de complexos heterogneos, o que Marx chamou de

    cincia da histria e se constitui, como qualquer conhecimento, sob impulso de

    necessidades prticas. essa a sua empreitada terica.

    23 Ela o faz, notadamente, em sua obra A Condio Humana, em que detalha sua concepo

    tripartite do homem.

    24 Segundo Hobsbawm, Da Revoluo, de Arendt, deve ser visto como bom ou mau no

    pelas descobertas da autora ou por sua percepo em relao a certos fenmenos histricos

    especficos, mas pelo interesse de suas idias e interpretaes gerais, como se podia esperar

    do livro de uma filsofa. Uma ressalva, no entanto, deve ser feita, segundo o historiador: uma

    vez que tais generalizaes no tm lastro em estudo adequado da matria que pretendem

    interpretar, o texto consiste em uma trama de percepes ocasionais sumamente

    penetrantes; prprias, porm, ao terreno difuso que existe entre a literatura, a psicologia e o

    que, na falta de uma palavra melhor, poderia chamar-se de profecia social, distanciando-se

    das cincias sociais como so atualmente estruturadas. (p.202). Prosseguindo em sua

    resenha, o autor afirma, mostrando mais uma vez reconhecer o carter do texto em exame: A

    primeira dificuldade encontrada em Hannah Arendt pelo historiador ou socilogo dedicado ao

    estudo das revolues um certo matiz metafsico e normativo do seu pensamento, que se

  • combina com um antiquado idealismo filosfico s vezes plenamente explcito (p.202.). Ver:

    HOBSBAWM, Eric. Hannah Arendt e a Revoluo. Em: Revolucionrios. So Paulo: Paz e

    Terra, 2003. pp.201-208.

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    Referncia:

    Disponvel em:

    Acesso em: 10 jun. 2015