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Lutécia, Império Romano, ano 43 A.C. Você nasceu no ano 8 antes de Cristo, na capital do Império, Roma. Após seu casamento com um legionário romano, no entanto, você se mudou para Lutécia, atual Paris nos dias de hoje. Lutécia, antiga terra dos celtas gauleses, era um vilarejo bem desenvolvido. Tinha cerca de seis mil habitantes, o que era considerado um número considerável de gente para a época. Você, seu marido Aurélius, e os convidados Marcus e a esposa Sabina conversavam enquanto jantavam no átrium, um pequeno pátio no centro da casa romana. Zene, a escrava negra que Aurélius trouxera do Egito, servia a mesa. _...estão dizendo que vai haver uma grande feira, e que vão pôr muitos escravos a venda... – Marcus afirmou a Aurélius. _Então eles fecharam a mina de carvão? _Fecharam. E sobraram muitos escravos. _Devem estar em péssimo estado... _Vão estar com um ótimo preço! – Marcus enfatizou. _Isso significa que vou ganhar um escravo novo? – você insinuou ao seu marido. _Talvez. – ele bebeu um pouco de vinho – Pode ser que eu te compre uma escrava para ajudar Zene com os serviços domésticos... _Eu disse escravo , meu bem! Constantemente, Zene era vítima dos assédios de Aurélius, que se servia da moça como bem entendia. Você sabia o que acontecia, e não a culpava. Aurélius era desagradável até mesmo para você, e nada o fazia desistir

Fase 1 - Capítulo 9 - Roma

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Texto complementar da F1 - cap. 9

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Lutécia, Império Romano, ano 43 A.C.

Você nasceu no ano 8 antes de Cristo, na

capital do Império, Roma. Após seu casamento com um legionário romano, no entanto, você se mudou para Lutécia, atual Paris nos dias de hoje. Lutécia, antiga terra dos celtas gauleses, era um vilarejo bem desenvolvido. Tinha cerca de seis mil habitantes, o que era considerado um número considerável de gente para a época. Você, seu marido Aurélius, e os convidados Marcus e a esposa Sabina conversavam enquanto jantavam no átrium, um pequeno pátio no centro da casa romana. Zene, a escrava negra que Aurélius trouxera do Egito, servia a mesa. _...estão dizendo que vai haver uma grande feira, e que vão pôr muitos escravos a venda... – Marcus afirmou a Aurélius. _Então eles fecharam a mina de carvão? _Fecharam. E sobraram muitos escravos. _Devem estar em péssimo estado... _Vão estar com um ótimo preço! – Marcus enfatizou. _Isso significa que vou ganhar um escravo novo? – você insinuou ao seu marido. _Talvez. – ele bebeu um pouco de vinho – Pode ser que eu te compre uma escrava para ajudar Zene com os serviços domésticos... _Eu disse escravo, meu bem! Constantemente, Zene era vítima dos assédios de Aurélius, que se servia da moça como bem entendia. Você sabia o que acontecia, e não a culpava. Aurélius era desagradável até mesmo para você, e nada o fazia desistir

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de molestar a africana. Você já estava a ponto de vender a menina; o problema era que, se assim decidisse, teria que você mesma cuidar dos afazeres domésticos. Uma situação um pouco degradante para a esposa de um general romano em ascensão. Havia ainda mais dois escravos na casa, Nênia, uma senhora gorda de cinquenta anos, e Cesárius, um velho escravo de setenta e cinco anos de idade. Nênia fazia a comida, cuidava da dispensa e da água. Isso a ocupava o dia todo. Zene cuidava dos outros afazeres domésticos. Cesário nada fazia, estava velho demais e com dores demais para ser útil em algum tipo de serviço. Ao máximo, ajudava a cuidar do jardim e das plantas do átrium. Você só o mantinha por carinho, porque se fosse por Aurélius... _Preciso de um escravo para os serviços que Cesárius já não pode mais fazer... Na verdade, seu interesse era manter Cesárius cuidando das plantinhas. Zene era quem precisava ser substituída. E dessa vez por alguém em quem seu marido não se interessasse sexualmente... _É... – Aurélius se atrapalhou um pouco – Veremos isso amanhã, está bem, querida? Sabina disfarçadamente soltou um risinho, que só você viu. Ela entendeu o que você estava tentando fazer, e te deu apoiou: _Escravos homens são bastante úteis... É necessário ter alguém que cuide dos serviços mais pesados, e que também cuide do fogo da casa... – e ela bebeu um pouco de vinho também. Depois piscou para você, e te disse baixinho no ouvido – Do nosso fogo! – e ela riu. _Sinceramente, prefiro quando esse babaca está bem longe daqui... – você respondeu – Tem horas em que penso em me divorciar! Mas ainda tenho esperança de que ele morra em batalha. Assim, poderei herdar de volta todos os bens da minha família! Meu pai deu a ele quase tudo o que tinha como dote de casamento... _Sobre o que vocês estão conversando, meu bem? – Aurélius perguntou, incomodado com o cochicho. _Nada não, querido. – você disfarçou. Aurélius e Marcus costumavam ficar muito tempo distantes de Lutécia. Como generais de tropas romanas, seguiam seus superiores na conquista de terras pela expansão do Império. Durante o último levante, Aurélius ficou fora por três anos. Voltara havia seis meses. Vivo, infelizmente, e cheio de recompensas, honras, e casos amorosos... _Minha mulher tem razão, meu caro! – inesperadamente, Marcus concordou com Sabina – Você precisa de um escravo homem. Já tem um belo exemplar fêmea... – ele olhou Zene de cima abaixo - ...precisa de um macho para procriar com ela! Um escravo homem é um bom investimento, a longo prazo,

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considerando-se a prole de escravos que ele pode gerar! Zene olhou preocupada e suplicante para você. _Hum... Pensando-se por este lado... – Aurélius coçou o queixo – Pode até ser...

*** _Minha senhora, não deixa isso acontecer comigo não! – Zene implorava, ajoelhada aos seus pés. _Fique calma, mulher! – você estava sem muita paciência com a coitada – Eu mesma irei com ele até o mercado amanhã... E já não disse que negociei você com Gaius, não disse? Ele vai ficar com você, só preciso de alguém para pôr no teu lugar... E Aurélius não vai poder dizer nada. Você foi um presente, é minha, não dele. E fim de papo!

*** _Quatrocentos denários, aqui, quatrocentos denários, quem dá mais? O mercado de escravos era uma zona de gente amontoada. Os leiloeiros gritavam, e, em retorno, os interessados gritavam ainda mais alto. Você estava cansada de caminhar. A única coisa que Aurélius conseguira, até então, era te fazer andar em círculos. _Quatrocentos e cinquenta denários, alguém dá mais? – o leiloeiro mostrava uma moça de cabelos longos e escuros, bastante bonita. Ela estava nua. Era assim que eles leiloavam os escravos, nus. – Vejam! – ele deu um tapa no traseiro da menina – Tem um anca larga, será uma boa parideira! Aurélius parou para prestar atenção. Você se irritou. _Combinamos um homem, não foi meu bem? _Ãm... foi, foi! _Então, vamos andando, certo? E além do mais, esta escrava é cara demais! Os escravos variavam muito de preço. Normalmente, os melhores custavam por volta de 2000 sestércios (moedas de bronze), ou 500 denários (moedas de prata), o que seria equivalente ao preço de um carro popular. O status de uma família romana costumava ser medido pelo número de escravos que ela possuía. Porém, o preço dependia de vários fatores, como idade, constituição física, sexo, raça, aptidões, etc. Também havia predileção por alguns tipos de povos, e aversão por outros tipos. Os escravos eram, em sua maioria, prisioneiros vindos de terras conquistadas pelas tropas romanas durante as batalhas de expansão do Império. Os filhos que esses escravos viessem a ter, por destino, se tornavam escravos também.

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Aurélius a levou até outra parte do mercado, onde havia muita gente amontoada em gaiolas grandes. O cheiro do lugar era horrível. O estado em que se encontrava aquela gente era desumano e degradante. Ali parecia ser o setor de liquidação. _Quanto você cobra pelos escravos? – seu marido perguntou a um homem do lado de uma das gaiolas. _Mínimo de 350 sestércios. _Não, muito caro! – Aurélius respondeu e puxou você dali. Foram até outra gaiola. Nessa, os prisioneiros pareciam estar em estado ainda pior. Havia um cadáver entre eles. _O que você tem aí com bom preço? – Aurélius disse ao vendedor. _Mulher ou homem? _Homem. – você se antecipou. O vendedor entrou na gaiola com uma vareta na mão, e acertou uma varetada no rosto de um rapaz sentado ao chão. Ele parecia exausto ou enfraquecido e tentava dormir encostado às grades da gaiola. Acordou assustado com a pancada, e levantou de supetão. O vendedor o puxou para fora e o pôs de frente a vocês. O rapaz vestia alguma coisa que se parecia com um ‘camisetão’ sem mangas que ia até um pouco acima dos joelhos. O tecido da roupa estava podre, rasgado, e cheirava muito mal. Os pés estavam descalços. Mantinha o olhar no chão. Estava muito sujo, os cabelos curtos e despontados, cortados a faca. Os pulsos e os tornozelos presos por travas com correntes. A pele em volta das algemas estava machucada, cheia de feridas. David. _Esse aqui tá com um preço bom, é jovem, tá acostumado com trabalho duro... Só 200 sestércios. – o vendedor ofereceu. _Eu te peço uma mercadoria descente com bom preço e você quer me empurrar um maldito celta? – Aurélius se aborreceu. _Não é celta, não senhor, é trácio! Olhe... – e o vendedor apertou com uma das mãos as bochechas do rapaz, obrigando-o a abrir a boca – ...bons dentes! _Que trácio coisa nenhuma! Isso daí é celta! Se eu o levo pra casa, acordo com a garganta cortada, meu amigo! Seu marido tinha estado em muitas guerras. Mas ele sempre dizia com horror que a única vez que sentiu medo de verdade foi durante uma batalha que travou com um grupo celta, ou com os fantasmas azuis, como os soldados os chamavam. Ele contou que era uma gente muito perigosa. Que se pintavam com uma tinta que deixava a pele azulada, e que eram difíceis de serem derrotados. Disse que cometiam

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atrocidades, e que tinha visto um deles decepar a cabeça de um soldado romano e, logo em seguida, beber o sangue. _Não é celta não senhor! – o vendedor insistiu – Ele é vema! Vema era um escravo nascido de outro escravo. _Aurélius... – você interveio – É um vema! Qual o problema, ãm? Vemas costumavam ser apreciados porque, normalmente, já eram educados para servir. Também não costumavam apresentar problemas com disciplina, por terem sido ‘domesticados’ desde muito cedo. _Não sei não... – Aurélius coçou o queixo. Ele sempre fazia isso quando estava pensando – Estou achando que esse vendedor está querendo me enganar... _Faço por 100 sestércios pro senhor! O que acha? Aurélius coçou o queixo de novo. Depois disse: _Hum... Tire a roupa dele, quero vê-lo antes de decidir! O vendedor não gostou muito do pedido, e fez cara de quem iria perder a venda. Deu outra varetada no rapaz, desta vez nas pernas, e o mandou tirar a roupa. _Já é o sexto hoje, se ele não te levar, você não entra mais na gaiola! – você percebeu o vendedor cochichar no ouvido do escravo, raivoso. Em seguida, o vendedor apontou para algum lugar detrás da gaiola. Você olhou. Havia uma poça de sangue no chão. O rapaz não esboçou nenhuma reação. Estava como se entorpecido, deprimido, talvez cansado; incapaz ou desinteressado de entender que a morte o esperava. Ou, entendendo, como se ele a aguardasse ou desejasse. Demorou-se para tirar a roupa. O vendedor perdeu a paciência e puxou o pano mal cheiroso do corpo dele. A roupa se rasgou inteira, como se fosse feita de papel. O rapaz ficou inteiramente nu. _Por Júpiter! – Aurélius exclamou ao vê-lo. O rapaz tomou outra varetada quando tentou esconder suas partes íntimas com as mãos. Era incapaz de se preocupar com a própria vida, mas não era incapaz de ainda sentir vergonha. O vendedor mandou que ele erguesse as mãos. Você já começava a se sentir mal com tamanha humilhação. Agradeceu aos deuses por não ter nascido escrava... _Não! – Aurélius disse ao vendedor quando viu o corpo muito magro e machucado do escravo. Ele tinha a barriga para dentro e as costelas à mostra. Pele e osso. Tinha também alguns hematomas. As mãos estavam grossas e feridas, os pés inchados e machucados. Ao menos, era bem dotado. O rapaz projetou os ombros para frente, numa tentativa inútil de tentar se esconder. _Senhor, considere... – o vendedor ainda tentava mostrar alguma qualidade que justificasse o excesso de

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defeitos - ...ele tem bons testículos, poderá gerar uma boa prole! – ele disse, apalpando o rapaz – Sabe como é... Esses escravos vieram da mina de carvão... E lá eles não são alimentados direito, são deixados ao relento... Mas em uma semana, com um pouco de cuidado, ele vai estar ótimo! É um rapaz alto, tem uma constituição óssea muito boa, será um bom investimento, com certeza! E praticamente de graça! Aonde mais o senhor irá arrumar algo parecido por aí, ãm, me diga! _De jeito nenhum! – Aurélius se decidiu. _M-mas senhor! – o vendedor tentou ainda garantir a venda – Faço por 70 sestércios! É um preço muito bom! _Não me interessa, obrigado! – Aurélius terminou a negociação, e puxou você dali. O vendedor ficou com raiva, mas a conteve. Ele deu um sinal para um homem grande e forte que guardava a gaiola, e este carregou o rapaz para detrás da jaula. Ele tinha um facão na mão. Você viu acontecer enquanto se distanciavam. Se sentiu mal. _Espere, Aurélius! – você o parou. _O que foi? _Eu acho que seria burrice perder esse negócio! O preço realmente é muito bom, onde acha que vamos conseguir comprar um escravo por 70 sestércio? _Não. Prefiro procurar alguma coisa melhor! _Está bem! – você fingiu estar de acordo. Tinha visto um rapaz bem afeiçoado e musculoso numa gaiola ao lado – Vou querer aquele ali então! – você apontou para ele, com cara de segundas intenções. Seu marido não gostou. _Não! Esse não... Deve ser muito caro! – Aurélius caiu como um patinho no seu jogo – Está bem, vamos levar o celta, está feliz assim? O vendedor se surpreendeu com o retorno. _Vou levar o escravo! – seu marido disse, meio a contragosto. _Ãm... – o vendedor olhou para trás da gaiola, tentando ver se já não era tarde demais – Só um minuto, senhor! – e correu. Você ficou apreensiva. Mas o vendedor trouxe o rapaz, ainda nu, e muito assustado dessa vez. Ele estava em pânico, e tinha um leve corte na pele do pescoço, onde a lâmina da faca tinha encostado. O vendedor sorriu, sem graça. Ele não ia sustentar um escravo que não ia dar lucro. Aurélius olhou para o estado de nervos do rapaz, e ainda quis se aproveitar um pouco da situação. _Só que eu vou querer um desconto para levar esse mariconas embora! Eu te dou 50 sestércios. _65. E pode levar as travas. Não aceito devoluções. – o vendedor rebateu.

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_Fechado! E Aurélius pagou o homem. _É todo seu. Não vai se arrepender! – o vendedor entregou o rapaz com um empurrão. Depois deu as correntes que o prendiam nas mãos do seu marido. O rapaz ainda tentou se abaixar para pegar a roupa rasgada, mas Aurélius chutou o pano podre para longe. _Deixe esse troço fedido aí! Tá cheirando carniça! Aurélius te ajudou a subir no cavalo. Depois prendeu as correntes do rapaz na lateral do cavalo dele. Montou o animal, e vocês partiram para casa. O rapaz foi obrigado a andar com passos curtos e aos tropeços por causa das travas que prendiam os pés. Você pediu ao seu marido que desse a ele o manto que usava sobre a toga para que se cobrisse, mas Aurélius achou que tal atitude era absurda. O rapaz fez o caminho do centro do vilarejo até sua residência completamente pelado. Já em casa, você chamou por Cesárius e Zene. _Zene, peça à Nênia que faça uma sopa, depois vá até a casa de Gaius e peça a ele a gentileza de me fazer uma visita, ainda hoje. Cesárius, - você apontou para o rapaz - leve-o para o pátio externo e mostre aonde ele pode se lavar. Vou até meu quarto procurar alguma coisa para ele vestir... Pegou uma túnica velha que Aurélius nunca usava, levou-a até o pátio e a entregou ao escravo. _Pode se vestir com isso. – disse. Ele pegou a vestimenta, e agradeceu, mantendo os olhos baixos. _Obrigado, senhora. Tinha a voz baixa e vacilante. _Olhe para mim quando falar comigo. – você ordenou, mas não em tom de repreensão. _Obrigado, senhora. – ele repetiu, e olhou timidamente para você, como se com medo de ser fulminado por um raio pelo atrevimento. O olho esquerdo já tinha sido ferido. _Qual é o seu nome? – você perguntou. Automaticamente ele desviou o olhar mais uma vez para o chão, e respondeu, constrangido: _Eu não tenho nome, senhora. _O quê? Não tem nome? Mas todo mundo tem um nome... Do que te chamam? _Não sei, senhora. Não ter um nome era algo realmente cruel. _Está bem, vou te chamar de Dárius, então. _Sim, senhora. _E quantos anos você tem? Ou vai me dizer que também não sabe? _Não sei, senhora... _Você tem um problema sério, hein, rapaz...

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Ele já estava tremendo de frio. _Vamos, vista-se! – você esperou, mas se deu conta de que ele só não o fizera ainda porque as algemas o impediam. _Oh... – você pegou as chaves e ia soltar as travas das mãos, mas Aurélius chegou e berrou, enlouquecidamente: _Não faça isso! O susto do grito fez você parar e olhar para seu marido. _O que está fazendo? – Aurélius correu e arrancou as chaves da sua mão – Faça isso, mulher, e ele pula no teu pescoço e te estrangula! _Ah!... Deixe de ser ridículo! Sinceramente, essa samambaia pendurada em cima da sua cabeça é dez vezes mais perigosa do que ele! – você apontou pra o vaso preso à parede. Depois tomou as chaves de volta e o soltou. Aurélius manteve a mão na bainha da espada o tempo todo. _Só as mãos – ele disse - Não deve confiar no celta! _Vista-se, e venha comigo. – você ordenou ao escravo. O rapaz enxugou o rosto com a túnica, depois jogou a vestimenta sobre o corpo ainda molhado. _Que ótimo! – seu marido debochou – O mau cheiro não saiu e agora ele está fedendo cachorro molhado! _Venha... – você repetiu ao rapaz – Depois damos um jeito nisso... Na cozinha, Zene e Nênia olhavam o novo escravo devorar afoito o prato de sopa. _Osíris tenha piedade! Essa criatura já viu comida alguma vez na vida? – Zene comentou com a cozinheira. Nênia riu e zombou: _Esse aí é o garanhão que te arrumaram! Melhor ir se acostumando... _Isso aí? – ela desdenhou – Isso aí não aguenta não... Fraquinho demais... – e ela coçou o nariz – Podia ser menos fedido pelo menos! _Zene... – você interrompeu a gozação – O que Gaius disse? _Ele disse que virá assim que puder, senhora! _Espero que venha logo!

*** _Não vou te machucar, está bem? Só preciso te examinar... – Gaius disse ao escravo. Você observava. Gaius era médico, e era a ele a quem você recorria sempre que alguém adoecia, ou, simplesmente, quando precisava de algum outro tipo de favor. Ele tinha sido amigo de seu pai e de sua família. Tinha uns sessenta anos de idade, e a tratava como uma filha.

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Gentilmente, Gaius se prontificou a examinar o rapaz, ao seu pedido, mas o escravo parecia relutante a colaborar. A falta de confiança que ele tinha nas pessoas era algo evidente e compreensível, por motivos óbvios. O médico examinou-o na medida do possível. Depois diagnosticou a você: _Ele deve ter por volta de uns vinte a vinte e um anos no máximo. É muito jovem ainda, apesar da aparência envelhecida... _Achei que ele tivesse uns vinte e sete, talvez uns vinte e oito anos... – você se espantou. _É difícil precisar, mas os sisos ainda estão nascendo... Você disse que ele veio das minas... O estado físico ruim e enfraquecido que ele tem é resultado da submissão ao trabalho forçado, ao estado de desnutrição, à falta de higiene, às condições sub-humanas e à violência física. Os pulsos e tornozelos estão machucados por causa das correntes, seria bom deixá-lo livre por algum tempo, até as feridas cicatrizarem... Eu vou fazer um curativo. Quanto aos hematomas, são recentes, mas não há ossos danificados, aparentemente, a não ser pelos ossos dos dedos da mão direita... Estão tortos, muito provavelmente por terem cicatrizado em posição errada – Gaius pôs o braço direito sobre a cabeça, como se quisesse proteger o rosto – Ele deve ter feito assim; a pancada acertou os dedos... Terei que quebrá-los de novo para concertar. Ele não vai conseguir trabalhar direito com os dedos desse jeito, não vai conseguir manusear nada com eles... De fato, os dedos da mão apontavam cada um para um lado diferente, e faziam curvas dissonantes e estranhas. _Mas resolveremos isso depois que ele estiver com a saúde refeita. _Quanta maldade! – você se indignava. Sabia que os escravos, especialmente os que não viviam com famílias romanas, sofriam maus tratos e abusos de todos os tipos. Mas você não os via, não tinha contato com esse tipo de realidade, por isso, não tinha se importado, até então. _O que me preocupa... – Gaius continuou - ...é o estado de desnutrição em que ele se encontra. Faça-o beber bastante água, e o alimente no máximo três vezes ao dia, nessas primeiras semanas. Dê a ele comida leve, ensopados e frutas de preferência, nada de carne. Se não, pode acabar matando-o! Os pulmões podem estar doentes também, fazem um chiado quando o ar entra ou sai... _E os olhos? – você perguntou, apontando para o próprio olho esquerdo. _Não sei o que aconteceu, a pupila está muito dilatada e não reage a estímulos luminosos... Gaius tirou da sacola que trouxera uma tira de ataduras, e um líquido de cor avermelhada. Os deu a você.

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_Para os curativos. – disse. – Isso vai ajudar a desinfetar e a secar as feridas. Se precisar, pode conseguir mais no centro da vila. Uma feiticeira... – e isso tinha uma conotação muito ruim, mas Gaius era um homem racional e inteligente demais para cultivar preconceitos - ...vende várias poções e ervas de todos os tipos perto daquela construção grande ao lado do mercado. Ele fica em um espaço abaixo do solo, nas cavernas de calcário dos gauleses, onde funciona o comércio secreto de Lutécia. Ela não vai atendê-la sem a senha, que é ‘Lapsus’. Diga que eu a mandei, e ela vai te ouvir... E claro, não se esqueça de fazer uma oferenda a Esculápio no templo! Era de bom grado fazer oferendas ao deus da cura em casos de enfermidades. _Agora... quanto aos piolhos... – Gaius coçou a própria cabeleira prateada - Basta raspar a cabeça dele e estará resolvido! Ao terminar o diagnóstico, Gaius fez alguns curativos no escravo. _Vai precisar trocá-los amanhã. O remédio vai expulsar toda a infecção e o pus, mas não deve ser ingerido. Faça a higiene do local, depois passe a poção sobre os ferimentos. Para os pulmões, dê a ele chá de alho branco, e não o deixe ficar ao frio. Em pouco tempo ele estará apto para trabalhar...

*** No dia seguinte, você foi ao templo, e levou Zene. Fez uma oferenda a Esculápio, conforme recomendação de Gaius. Depois, disso, voltaram para casa. Zene a ajudou a trocar os curativos do escravo. Dessa vez, ele permaneceu quieto. As feridas pareciam bem melhores, quase curadas. Tinham secado em um espaço de poucas horas. _Esse negócio que Gaius trouxe é realmente muito bom! – você se referiu ao remédio. Fez a assepsia dos ferimentos, e passou o que restara da poção nos machucados. Ela tinha um cheiro forte de vinho e ervas, mas se parecia com sangue. Depois rasparam os cabelos dele. Havia muitas cicatrizes sobre o couro cabeludo. Uma grande, em especial, do lado direito do crânio. Você mandou Zene queimá-los para acabar com a peste de piolhos. No dia seguinte, não haviam mais feridas abertas, e ataduras foram o suficiente para os pulsos e tornozelos. _Tome o chá! – você ordenou ao escravo, apontando para o copo com a malcheirosa infusão de alho – Só vai ganhar a sopa depois que tomar tudo! Beba de uma vez.

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Ele obedeceu, e quase vomitou. Ganhou a sopa como recompensa. Mas teve que tomar o chá de alho por um mês seguido. Fortaleceu a dieta do rapaz aos poucos, como fora recomendado. Em dois meses, ele já estava em boa parte recuperado. Então, Gaius voltou para vê-lo e para consertar os dedos da mão direita. O médico precisou quebrar falange por falange, com uma marretinha, até pôr os ossos no lugar certo. Mesmo dopado com uma bebida a base de ópio, feita pelo próprio Gaius, foi difícil segurá-lo. Ele passou quase dois meses com talas nos dedos. Você trocou a sela de Zene. Fez a africana dormir no aposento de Nênia, e pôs o rapaz no lugar dela. A sela era o único lugar da casa em que os escravos ficavam trancados durante a noite. Você achou melhor assim, até ter confiança de deixá-lo livre. Zene só dormia lá por vontade de Aurélius, que usava o cubículo para suas perversidades. Seu marido não gostou nada da troca, mas não teve como escapar da sua justificativa, afinal, como ele dissera, ‘Você não devia confiar no celta’. Depois fez o escravo assumir o trabalho da serviçal: lavar o chão da casa pela manhã antes de todos acordarem; depois encher sua banheira com água quente; lavar as latrinas, ajudar Nênia com o abastecimento de água, levar para dentro os suprimentos e a lenha, cuidar do restante da limpeza, além de cuidar dos cavalos, no lugar de Cesárius. Foram três meses desde a chegada do novo escravo. Então, você vendeu Zene a Gaius, como prometera. Aurélius enlouqueceu. _Ficou maluca, mulher? – ele andava de um lado para o outro, jogando os braços para o ar – Como você vende Zene, agora que eu comprei um escravo novo, só para emprenhá-la? A raiva, na verdade, era porque você acabara com a festinha dele. _Qual o motivo disso? – Aurélius gritava. _Quer mesmo que eu te responda? – você falou calmamente, com certa ironia – E além do mais, a escrava era minha... Aurélius fez uma cara feia. Você já sabia que ele não ia deixar barato...

***

Passaram cinco meses desde a venda de Zene. Dárius ainda cometia alguns erros de serviço, mas se esforçava ao máximo para fazer tudo certo. E certo para ele significava perfeito. Você percebeu essa fixação uma noite, quando o levou para a sela. Assim que ele terminou a última refeição do dia, e depois que você soltou as travas que ele ainda usava nos

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pés – à exigência de seu marido – ele agradeceu pela coberta velha que você deu a ele para passar a madrugada fria. A roupa insuficiente e a coberta não iriam protegê-lo totalmente do frio, muito menos o ‘colchonete’ de palha sobre a cama de pedra. Era tudo o que Aurélius queria oferecer. Mas para Dárius, parecia muita coisa. Pior, parecia bondade. “Muito agradecido, senhora!” – ele respondeu. Você entendeu o medo que ele sentia de perder a esmola que lhe ofereciam em troca da própria liberdade, da dignidade, e de dezoito horas diárias de trabalho pesado. O horror de dormir ao relento, passar semanas de estômago vazio, e de apanhar quase até a morte, sem contar o sem número de humilhações sofridas, era a medida de comparação que ele tinha entre a felicidade e a falta dela. Ninguém gostaria de ter que passar por aquilo de novo. Dárius achava que estava bem agora. Bem por ter uma sela, um colchão duro e um cobertor velho, além de horários estabelecidos para comer, banhar-se em água fria, e fazer suas necessidades. Precisava ser perfeito o suficiente para manter esse ‘bem estar’ e não ser devolvido ou trocado ou abandonado a própria sorte. Você se sentiu culpada...

*** _Vou soltá-lo das correntes, preciso ir até o mercado, não quero ir sozinha. Vou levá-lo comigo, para que me proteja... – você abriu as travas dos pés do escravo – Por mim você não precisaria usar isto, mas meu marido... Você sabe! Então... por favor, Dárius, não faça nenhuma bobagem, está bem? _Não farei nada para prejudicar a senhora... – o rapaz respondeu. _Vamos. Desceram até o centro de Lutécia. Você queria ir até a feiticeira de quem Gaius tinha falado certa vez. Precisava pedir a ela um pouco daquela poção milagrosa para Aurélius. _Não acredito que estou fazendo isso por aquele idiota! – você se queixava. Aconteceu que Aurélius, algumas noites atrás, voltava para casa após uma bebedeira e algumas prostitutas, desequilibrou-se, e caiu por uma ladeira. Um pedaço grande de vidro entrou pela planta do pé. Gaius conseguiu retirar o objeto cortante, mas a ferida infeccionou. Agora Aurélius estava de cama, fazendo da vida de vocês um inferno. Reclamava o tempo todo, quando não estava gemendo de febre. Gaius disse que para salvá-lo teria que amputar o pé direito, caso a infecção não regredisse. O problema era que isto não estava acontecendo. Você pediu ao médico que não amputasse o pé do seu marido. Se Aurélius ficasse aleijado, jamais voltaria para

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a guerra. Você teria, então, que aturá-lo até a velhice. Ele precisava era voltar para as batalhas, e, quem sabe assim, nunca mais voltar para casa... Então Gaius se lembrou da poção. E você desceu as ruas, junto com Dárius, para achar a tal mulher. Entraram por ruelas e becos mal iluminados, passaram por amontoados de gente, até chegarem a uma praça fechada entre construções altas. Ali funcionava uma feira de produtos exóticos. Procurou pela entrada de que Gaius falara. Achou-a. Uma escada que entrava solo abaixo. Desceu os degraus de pedras, seguida de Dárius, e andou por corredores escuros, em cavernas subterrâneas de calcário, escavada pelos gauleses, onde, séculos mais tarde, os parisienses depositariam os ossos dos cemitérios superlotados da cidade, criando a famosa catacumba de Paris. Vendedores de todos os tipos estavam espalhados pelos cantos. Gente mal encarada, oferecendo produtos contrabandeados ou proibidos. O médico disse para procurar uma mulher loira, de pele pálida. Olhou por todas as direções. Havia pessoas de todos os lugares, de todo tipo de rosto. Viu uma mulher com a descrição do médico parada ao lado de uma parede. Segurava uma cesta. Usava roupas romanas, mas era de outra etnia. Tinha os olhos claros como os de Dárius. Você se aproximou. Alice. Chegou ao lado dela. A mulher olhou para você. Disse discretamente: _O que quer? Tenho chá para dores no estômago, para urina escura, para tirar crianças do ventre, para coceira e feridas nas partes íntimas, para despertar homens impotentes, para afrouxar homens infiéis... O que vai querer? _Hum... – você ouviu a oferta, curiosa – Quanto é esse ‘afrouxador’ que você tem aí? Funciona mesmo? – pensou em comprá-lo para Aurélius. _Dois sestércios e meio. _Interessante... – mas você se lembrou do que viera buscar – Só que eu procuro pela poção vermelha! Ela olhou para você, como se aquele fosse um pedido peculiar. _Não vendo esse tipo de coisa... E te ignorou. Você se lembrou da senha que Gaius te passara. _Lapsus! – você tentou. A senha significava ‘erro’. Ela olhou para você de novo. _Por favor! – você disse – Eu posso pagar! _São sete denárius. Venha buscar amanhã a esta hora. _Sete denárius? É muito caro!

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_Sete denárius e trinta sestércius! Venha buscar amanhã a esta hora! _Está bem! – você concordou antes que ela aumentasse mais uma vez o preço – Amanhã a esta hora! – você olhou para Dárius e disse a ele – Vamos embora! No dia seguinte, incumbiu o escravo de ir sozinho buscar a poção. Deu na mão dele os sete denárius e trinta sestércius (o equivalente a mais ou menos cento e cinquenta libras) e disse: _Vá e volte para casa, assim que pegar a encomenda. Não quero você andando sozinho pelo vilarejo. _Sim senhora! E ele foi. Ficou com medo que ele pegasse o dinheiro e fugisse. Ele tinha o suficiente para subornar uma carona para longe dali, ao menos. Mas Aurélius estava tão inquieto que não daria para deixá-lo sozinho. Deu um voto de confiança a Dárius. Também precisava testar-lhe a lealdade... Depois de uns quarenta minutos, ele voltou trazendo a poção, como um cão treinado. Ficou feliz por vê-lo de novo. _Bom menino! – disse a ele – Vá descansar um pouco! _Sim senhora! – e ao se virar para sair, ele lembrou-se de alguma coisa. Falou timidamente – A mulher disse para não beber... ‘Se for venenosa, dou o vidro inteiro para aquele canalha!’ – você pensou. Mas respondeu ao escravo: _Entendi. Pode ir agora. Tratou a ferida de Aurélius com o remédio. Um vidrinho pequeno foi o suficiente para salvar-lhe o pé. Nem ele acreditou no milagre. _Que coisa é essa mulher? _Afrouxador de safadeza! – você respondeu, sem paciência – Curou seu pé, mas seu pinto nunca mais vai subir, seu descarado! Experimente me aprontar mais uma dessas para você ver a fama que vais ganhar de Lutécia a Roma! Ele não gostou da resposta, mas ficou quieto. No fundo sabia que você não seria louca de cumprir uma promessa dessas. Seria punida com pena de morte se o fizesse...

*** Três anos se passaram. Você se encontrava com trinta e seis anos de idade. Não tinha filhos. Nunca engravidara de Aurélius. Nunca engravidara de homem algum. Aurélius dizia que você tinha o ventre ‘seco’. Casara-se com ele quando tinha quinze anos de idade. Ele, dez anos mais velho. Apenas uma vez conseguiu ‘pular a cerca’ com um conhecido em Roma, uma coisa bem rápida e sem consequências. E nunca mais.

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Agora seu detestável marido estava de volta à guerra. Que ele não voltasse era o seu desejo. Precisava se libertar dele. Precisava retomar sua vida. Sabia que notícias ruins sempre corriam rápido; lamentava nenhuma ter chegado até você... ‘Aurélius deve estar se divertindo...’ A vida em Lutécia ia passando. Todo dia a mesma coisa. Acordar, tomar banho, administrar a casa e os escravos... Cesárius morrera no ano anterior. Gaius devolveu Zene a você. Pelo menos, até a volta de Aurélius, se voltasse... Sentia-se abatida nesses dias. Passava muito tempo sozinha. Saía pouco. Lia poemas e filosofia. Era o pouco que tinha. Às vezes escrevia sobre o nada e o vazio do passar do tempo. Sentada no atrium, no meio do jardim interno, reparava o quanto Dárius a observava secretamente, enquanto esfregava o chão. Ele gostava de estar por perto enquanto você lia. Às vezes ele escutava um ou outro poema que você dizia em voz alta. Ele não podia ler. Não sabia... O escravo já tinha lavado o chão pela manhã. Não havia motivo para lavá-lo novamente à tarde. Ficava por perto só porque era curioso por ouvi-la. _Dárius, venha até aqui. – você ordenou. Ele deixou o esfregão, se levantou e enxugou as mãos na roupa. Aproximou-se lentamente, parou ao seu lado, e baixou a cabeça, esperando pelo sermão. Você já o tinha libertado há tempos das correntes. Ele nunca dera motivos para mantê-las. _Sente-se! – você disse. Ele hesitou, como se não entendesse o pedido. _Vamos! Sente-se! – você repetiu. Ele puxou uma das cadeiras da mesa e se sentou. Olhou amedrontado para você. _Quer aprender a ler? Tímido, ele acenou positivamente com a cabeça. _Vou te ensinar então... Reservou uma hora do dia para dar lições a Dárius. O esforço que ele empregava, movido pelo desejo que tinha de saber ler e escrever, fez com que ele aprendesse rápido. Educá-lo era uma boa distração para você. Aos poucos isso foi dando a ele um pouco de confiança. Até conseguiu aproximá-lo. Dárius era calado, afinal, ele era um escravo. Mas essa aproximação abriu espaço para que você conseguisse satisfazer alguma curiosidade a respeito dele. Ele não sabia muito sobre si mesmo, nem mesmo o próprio nome, e nem ao menos se tinha um. A mãe, também escrava, tinha o abandonado ainda muito menino. Não sabia de outros parentes, além de dois irmãos filhos do padrasto, um outro escravo. Era desprezado, humilhado e maltratado por eles. Ainda assim, amava a mãe. “Mas ela me odiava...”

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– ele disse. Não sabia do paradeiro deles. Não tinha mais ninguém. O pai era qualquer um soldado da infantaria romana, como a mãe dizia – provavelmente um caso de estupro, muito comum entre os legionários que capturavam escravas. Meio romano, meio celta. Talvez um celta gaulês. Cresceu sendo levado de um lado ao outro, até ir parar na mina de carvão, ainda muito jovem. Sofreu muito. Dormia ao relento, não comia, apanhava... Então, fecharam a mina. Acorrentaram todos os escravos e os fizeram andar até Lutécia. Foram vendidos aos mercadores, por valor nenhum. Ficou naquela gaiola quatro dias, sem água e comida, debaixo de chuva e sol forte. As lembranças daquele lugar o atormentavam. No entanto, e de acordo com ele, se sentia bem agora. Estava agradecido a você. _A senhora é muito boa... – dizia.

*** O tempo continuava passando. Nenhuma notícia de Aurélius. A única novidade era que o batalhão do qual ele fazia parte havia sofrido uma vergonhosa derrota no Egito. Você esperava, contudo, que a notícia confirmasse sua viuvez, o que ainda não era considerada um fato, mas apenas uma suposição... _Não aguento mais ficar aqui esperando por uma confirmação! – você desabafava a Sabina – Minha vida está estagnada por causa desse homem! Não posso nem ter um amante sem despertar suspeitas... As pessoas lá fora reparam demais na vida alheia; eu não colocaria minha sorte nas mãos delas! Um flagrante de adultério poderia custar-lhe a vida naqueles dias. _Tem razão! – Sabina concordou – Lá fora os olhos dessa gentinha espreitam todas as direções... Também tomo muito cuidado com isso! – e ela bebeu o chá que tomavam na tardezinha ensolarada, no átrium, como de costume – Por isso, meu bem, tenho meus escravos... – e ela deu uma piscadinha com o olho esquerdo – O que os muros da minha casa escondem fica longe da boca maledicente desses desocupados! – e ela jogou levemente a cabeça para o lado, apontando para Dárius, cuidando das plantas – Devia tentar também! _Quê? Ele? Não... _Qual o problema? – ela ergueu os ombros – Ele não é seu escravo? Tem a obrigação de satisfazer os seus desejos, meu bem! Tá certo que até Aurélius consegue ser mais bem afeiçoado do que ele, mas nesses dias de completa seca, minha filha, qualquer criatura que tenha um... ah, você sabe... tá valendo! – e ela bebeu mais um pouco do chá -

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Ninguém vai ficar sabendo... E se te desagrada, compre outro mais bonitinho! _Você fala como se um escravo bonitinho fosse barato... _Então se vire com o que tem! – ela sorriu.

*** _Dárius, encha a banheira com água quente! – você ordenou ao escravo. Era a hora do seu banho. Nênia esquentou a água. Depois o rapaz despejou balde por balde na tina grande. Equilibrou a temperatura com água fria. Terminado, deixou-a sozinha. Você pensou em Sabina enquanto se banhava. Talvez ela tivesse razão... Assim que se trocou, chamou por Dárius mais uma vez. _Encha a banheira com água quente! – disse a ele. O rapaz pareceu meio confuso, afinal, você já havia tomado o seu banho. _Vamos, Dárius, isso é pra hoje! – você foi um pouco mais ríspida. Ele saiu apressado. Repetiu toda a preparação do banho. Balde por balde, até a temperatura ficar agradável à pele. Quando terminou, pegou o balde vazio, e se dirigiu à saída. Você o impediu. _Ponha isso no chão! – você mandou que ele largasse o balde. Parado, ele obedeceu. Você olhou para ele. _Tire a roupa! – você ordenou. Ele não reagiu. Parecia atônito. _Pelos deuses... Será que é tão difícil cumprir uma ordem minha? – você se fez de brava – Vamos! Tire toda a roupa e a entregue para mim! Não quero começar a ter motivos para te castigar... Ele obedeceu mais uma vez. Tirou toda a roupa, apesar do constrangimento, e entregou-a em suas mãos. Você ficou olhando para ele, nu, por alguns segundos. _Agora entre na tina e tome um banho! E quero um banho bem tomado, me ouviu? Vou verificar suas orelhas e suas unhas pessoalmente, e ‘ai’ de você se eu achar um sujeirinha... _Mas senhora... _‘Mas’ nada. – a interjeição era pelo fato de que ele, um escravo, não deveria sentar-se na tina e nem usar a água dos seus senhores – Não me desobedeça! Volto daqui alguns minutos, e espero que esteja limpo! Saiu do lavatório levando as roupas dele. Entregou-as a Zene. _Cuide disso! – disse a ela.

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Depois foi até o seu quarto para pegar a toalha e os objetos que seu marido usava para a higiene pessoal, e levou-os para o lavatório. Dárius ainda estava dentro da tina quando você entrou. Assim que a viu, se levantou apressado. A água escorria pelo corpo magro dele. _Saia e se enxugue. Depois apare a barba e limpe os dentes com isso... – e você entregou a ele a toalha, e pôs a disposição os utensílios de Aurélius. O escravo olhou para você com medo. _Vamos logo, rapaz! Não tenho a noite toda... Ele obedeceu, cheio de temor. Se enxugou com a toalha de seu marido, enrolou-a na cintura depois, e usou os objetos de Aurélius como se aquele fosse o último ato de sua vida. Tremia feito um condenado à morte. Na verdade, era como ele se sentia pelo atrevimento. Para você era apenas um espetáculo. Aurélius ficaria possesso se soubesse. Mandaria até matar o coitado, antes mesmo de ordenar queimarem a toalha e os objetos. _Está tremendo por quê? – você quis judiar dele um pouquinho mais, só por diversão – Você ainda vai cometer uma falta pior que esta hoje à noite! Você disse isso, mentalizando seus planos. Pretendia se deitar com ele... Quando o escravo terminou, você mandou que a seguisse. Foram até seu aposento. Aproximou-se dele. Tirou a toalha da cintura. Tocou o corpo do escravo, intimamente. Ele recuou. _O que foi? – você sentiu o nervosismo dele – Aurélius não está aqui... Ninguém vai saber! Então, tentou beijá-lo. Ele fugiu mais uma vez. O nervosismo do rapaz ia aumentando. _Nunca esteve com uma mulher antes, ãm? Sua vida foi muito ruim naquele lugar, não foi? Mas está tudo acabado agora! Relaxe... Não vou te machucar... – você o fez deitar-se sobre a cama, e subiu por cima dele – Só vamos nos esquecer das coisas ruins por algumas horas... Vai ser bom... Confie em mim! – e beijou cuidadosamente os lábios do rapaz, devagar, bem devagar... Ele fechou os olhos, e deixou que você fizesse o resto. Debaixo de você, sob os seus toques, ele gemia, gemia, gemia baixinho, de prazer... de felicidade... Talvez a única felicidade que teria na vida. Foi bom, mas foi rápido. Deitada ao lado dele, você acariciou o rosto e os cabelos ralos. Disse, afetuosamente: _Você foi bem, menino, mas precisa aprender a não deixar o prazer ir embora tão depressa! – e sorriu. O escravo procurou o seu corpo como um bebê faminto procuraria o seio da mãe. Abraçou você num ato de pura carência. Você teve medo de lhe partir o coração... Dormiram.

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Daquele dia em diante, você passou a se usar mais do rapaz. Com o consentimento dele, é claro. Ele também aprendeu rápido. Uma coisa nisso tudo te incomodava, no entanto. O escravo era uma criatura que tinha sido carente em muitos aspectos da vida. Mas tinha sido carente principalmente de amor. A atenção dada a ele fez com que o rapaz procurasse suprir-se de você toda a necessidade que tinha desse sentimento. A devoção que ele tinha por você denunciava essa conduta. E isso te assustava... Mas Dárius era tão carinhoso, te fazia companhia nas suas muitas horas solitárias, e você não sentia vontade de se afastar dele. Algumas coisas aconteceram, porém. A primeira delas foi Zene. Obviamente as outras escravas sabiam do que se passava dentro da casa. Zene, estranhamente, começou a ficar enciumada da atenção que você dava em maior escala para Dárius. Você acreditou que a africana começou a fantasiar que aquilo podia representar algum tipo de ameaça, uma vez que Dárius agora era o escravo preferido, e não mais ela. Era visível seu descontentamento, e conversas e advertências não foram suficientes para resolverem o problema. Ela só se sentiu mais segura quando você prometeu devolvê-la a Gaius mais uma vez, assim quem achasse alguém para substituí-la. Mas essa não foi a pior surpresa... _O que eu tenho Gaius? – você perguntou ao médico, aflita pelo mal estar que te afligia nas últimas semanas. O velho homem, depois que a examinou, olhou para você com um pouco de repreensão. Com a voz calma, explicou: _Eu não sei bem ao certo, pode ser apenas uma simples fadiga, mas... seu estado me leva a crer que você está grávida! _Grávida? – você escutou aquilo como se ele proferisse uma sentença de morte – Mas como pode ser isso? _Acho que eu não preciso explicar como acontece, não é mesmo? E também não é da minha conta quem é o pai... só sei que não é Aurélius, e isso vai te complicar, você sabe, não sabe? _Eu nunca engravidei em toda minha vida, porque isso iria acontecer justo agora? Aurélius sempre me culpou por eu ser incapaz de gerar uma criança, não pode ser! _Então, nesse caso, minha amiga, só podemos concluir que o problema não era você... Não havia muita informação a respeito disso na época. Acreditava-se que os homens eram quem possuía o dom de gerar a vida, e que as mulheres eram apenas incubadoras para que esta vida se desenvolvesse. Se alguma coisa não

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saía bem, a culpa era da mulher por ter um útero defeituoso. Você simplesmente tinha acreditado em Aurélius. _O que vou fazer agora, Gaius? – você começou a chorar. Sabia que isto te custaria a vida – O pai dessa criança é o escravo... Gaius se surpreendeu com a confissão. Isso piorava ainda mais as coisas. _Não sei o que vai fazer, Dolabella, mas vamos dar um jeito... – o médico acariciou seus cabelos. Você o abraçou e chorou tudo o que pode.

*** Seu estado emocional caiu da abatia para uma terrível depressão. Estava em apuros. Não sabia o que iria fazer, só sabia que não poderia ter essa criança. Durante muito tempo você desejou ter um filho. Mas agora essa possibilidade tinha se tornado um pesadelo. Não ia contar ao escravo. Não ia contar a ninguém. Ia esconder enquanto pudesse. Apenas Gaius saberia. Pensava que mesmo que Aurélius tivesse morrido, ainda assim, o problema não estaria solucionado. Seu filho seria filho de um escravo, o que faria dele um ‘escravo’ também. Seria um cidadão sem direitos. Dárius não entendeu quando você passou a evitá-lo. Foi doído, mas era necessário. Se contasse a verdade, ia por a vida dele em risco também. Dárius sentiu essa mudança de tratamento, e isso o machucou. Mas ele permaneceu leal, esperançoso de ainda receber ao menos um olhar seu. _Posso arranjar para que fique em minha casa de veraneio, ao sul. Poderá ficar lá até o bebê nascer... _Não posso ficar com essa criança, Gaius! _Eu sei. O que pretende fazer? _Não sei... Dá-la, eu não tenho outra alternativa! – e você olhou para o seu amigo. Pegou as mãos dele, num ato suplicante – Poderia ficar com ela por mim? Você poderia criá-la, Gaius? _Não me peça isso, Dolabella! Gaius era viúvo. Decidiu, por escolha própria, não se casar novamente. O único filho estava na guerra. Sozinho, o sexagenário resolveu dedicar a sua vida ao senado. Não deu muito certo. Então se recolheu em sua casa, e agora ajudava atendendo os pobres de Lutécia. Gaius era um homem rico, não praticava a medicina para ganhar dinheiro. _Por favor... Não confio em mais ninguém! E sei que vai ser um ótimo tutor! Terá alguém para cuidar de você, te fazer companhia... _Sou um homem velho, Dolabella, não me resta muito tempo... _Por favor, Gaius! Não quero que essa criança se torne escrava, não quero que sofra as torturas pelas quais Dárius

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passou, essa possibilidade me enche de terror! Ninguém precisa saber, ninguém! – e você caiu em um choro inconsolável. Na última semana, você vinha tendo sonhos perturbadores a respeito do nascimento do bebê. Sonhava que nascia uma menina com uma cabeleira alaranjada e cheia, com um rostinho redondo ornado com grandes olhos azuis. Era uma criança linda. Então, Aurélius aparecia, segurando em uma das mãos a cabeça degolada do escravo, e na outra uma espada ensanguentada. Ele dizia: “Vou pendurar a cabeça dos três na praça da cidade, sua adúltera!”. E você acordava, em prantos. _Está bem – Gaius concordou – Vou ficar com a criança por um tempo, até encontrarmos um casal que possa criá-la. Mas não vamos pensar nisso agora. Temos que tirar você daqui, antes que sua barriga comece a crescer... Gaius tinha razão. Não queria que ninguém a visse barriguda. Principalmente Dárius... _Gaius, não tenho como te pagar todo o bem que você me faz, meu amigo! Serei sempre agradecida a você por tudo! Me meti nessa confusão, e no entanto, você me compreende. Sei que vai entender se eu te pedir mais um favor... _Então o peça. _Pode levar Dárius para a sua casa? _Quer que eu fique com o pai e com a criança? _Não. Eu só preciso que ele fique longe daqui, não que eu queira isso, mas não vejo outra alternativa! Não quero que ele descubra a gravidez. Acho que ele se recusaria a entregar o bebê. Depois, como você disse, veremos o que fazer... Sei que podemos encontrar outra casa que possa acolhê-lo... Vou falar com Sabina. Dou Dárius e Zene a ela, e em troca, ela me cede apenas um escravo. É uma proposta irrecusável! Eu só preciso que o leve por alguns dias. Não suporto mais olhar para a tristeza dele. Agora Dárius acha que eu o desprezo, e isso me corta o coração...

*** No dia seguinte, você interrompeu o serviço do escravo e ordenou que Dárius se apresentasse a você. Esperou por ele no seu dormitório. Arranjava coragem para dizer o que precisava... Ele chegou. Tímido, entrou pela porta, com a cabeça baixa, em respeito. Se posicionou a sua frente, com as mãos para trás. Disse, com voz baixa: _Estou aqui, senhora. Você se levantou e se aproximou. Precisava ser enérgica, mas temia que sua voz falhasse. _Estou vendo que está aqui. Dárius... preciso que você junte as suas coisas, agora.

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Ele levantou os olhos para você. As sobrancelhas estavam franzidas de surpresa. Se aproximou, e segurou sua mão, tentando utilizar-se da pouco intimidade que tinham ganho. Suplicou: _Mas senhora... – ele ainda olhava para você - ...eu... eu não entendo! Você puxou a mão. Não queria que ele a tocasse, não queria prolongar mais esse sofrimento. Já estava sendo difícil o suficiente. _Faça o que te disse. Agora! - Você ordenou mais uma vez. Ele travou o maxilar com força. Você podia ver as bochechas tremerem. O escravo já sentia o que estava por vir. A respiração dele acelerou. O semblante era de decepção... _Sim, senhora... – ele baixou a cabeça, e saiu. Você fechou a porta, e chorou.

*** Gaius chegou para buscar o escravo. Você foi recebê-lo. Mandou Zene ir avisar Dárius para que se apresentasse, com seus pertences. A africana obedeceu. _Tem certeza que quer fazer isso? – Gaius sussurrou no seu ouvido. _Não tenho outra escolha... Dois minutos, o escravo se apresentou, com a postura de sempre: cabeça baixa, mãos para trás. Não trazia nada. _Você vai passar alguns dias na casa de Gaius, até eu conseguir achar uma casa que te aceite... Ele levantou a cabeça. Os olhos lacrimejavam. Ele soluçou: _O que eu fiz de errado, senhora? _Nada. – você foi seca. Doía muito fazer isso, mas era necessário – Mas não o quero mais aqui! _Sim, senhora... – a voz dele já quase não podia ser ouvida. Aí você notou que ele não carregava coisa alguma. _Onde estão suas coisas, Dárius? – você perguntou – Não mandei juntar seus pertences? _Não tenho pertences, senhora... Dárius se recusou a levar as roupas, os calçados, os cobertores, os objetos de higiene, e até mesmo o livro para treinar leitura que você tinha dado a ele. E pior. Num ato de orgulho e revolta, ele tirou a roupa e a sandália que vestia, dobrou-as e colocou-as no chão, como quem deixava claro que não era dono nem da roupa que cobria o próprio corpo. Ficou inteiramente nu na frente dos presentes. _O que é isso, rapaz? – Gaius tirou o manto vermelho que usava sobre a toga branca, ao contrário de Aurélius, e

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cobriu o corpo do escravo com ele – Tenha mais respeito com sua senhora! _Peço perdão, senhora. Irei embora levando somente o que eu trouxe quando cheguei. Não desejo causar-lhe mais nenhum prejuízo... Serei eternamente grato pela sua bondade, senhora! Que os deuses a recompense em dobro! E ele abaixou a cabeça mais uma vez, em agradecimento. Estava, no entanto, sentindo muita dor e raiva, você podia ver no olhar dele. Ele a amava, e você o estava dispensando. Gaius achou melhor não alongar mais a despedida, e o levou dali. Dárius foi embora da casa, pelado.

*** _Sinto muito, querida... – Sabina olhou para você, sem jeito – Mas não poderei ficar com o seu escravo! Posso ficar com Zene se quiser, mas não vou poder hospeda-lo na minha residência... Meu marido Marcus odeia celtas! _Marcus? _Sim. Ele está a caminho de Lutécia! Hoje de manhã, um mensageiro me trouxe um aviso. Ele chegará em um mês, no máximo! _Marcus está voltando para casa? – você engoliu em seco – Será que... _Aurélius está vindo com ele? Quem é que sabe? Você não recebeu nenhum comunicado? _Não. – seu desespero ia aumentando. _De certo, se Aurélius não vir junto, Marcus terá notícias dele... _Por Júpiter, as coisa só estão piorando! _Escute, Dolabella, porque não tira essa criança? Isso resolveria o problema! Podemos dar um jeito... _Eu não sei, eu não sei o que fazer, não sei se tenho coragem! _Pois deveria ter...

*** Desceu as ruas de Lutécia e procurou pela entrada das cavernas subterrâneas. Precisava encontrar a feiticeira. Não foi difícil. A mulher estava no mesmo lugar de sempre. Olhou para você quando se aproximou. _Não posso ter esse bebê! – você disse a ela, passando a mão sobre o ventre. Ela olhou para a sua barriga, depois olhou para você. _Tem certeza? – ela perguntou. _Tenho. Então, ela tirou da cesta um vidrinho com um líquido escuro. Entregou-o a você:

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_Tome todo o vidro. Mas fique avisada que isso pode te matar! _Sim. – você pegou o vidrinho. – Quanto é? _É de graça. Não cobro pelo mal que faço. Em casa, você se trancou no lavatório, sentou e chorou. Ficou por muito tempo observando o vidrinho com o abortivo. Pensou várias vezes em bebê-lo, em resolver o problema. Mas não teve coragem...

*** _Dolabella... – Marcus olhou para você, como se sentisse pena - ...as notícias que trago não são muito boas... O marido de Sabina voltara para Lutécia aos trancos e barrancos. Contou que quase morrera em batalha. Agora ele e a mulher estavam na sua casa, na sua frente, para te dar a notícia. Marcus achava que iria destruir sua vida com o que tinha para dizer. Sabina apenas piscou o olho, querendo te adiantar que estava tudo bem. _Que notícias você tem pra mim? – você já imagina o que era, mas rezava para que ele fizesse a confirmação logo. _...seu marido, Aurélius... ele... ele não conseguiu... _Como assim? _...Dolabella... seu marido... está morto! Eu sinto muito! Foi um choque. Você não esperava essa reação. Teve vontade de gargalhar. Sim, a felicidade que te invadiu tinha a sensação de alívio. Se Aurélius estava morto, ninguém poderia te acusar de adultério. Foi difícil fingir tristeza... Lamentava pelo homem que seu marido deixara de ser em vida. Não lamentava por ele não ser mais um peso. A sorte parecia que sorria para você. Marcus notou alguma coisa estranha no seu comportamento. Sabina se interpôs rápido: _Ela está em choque, querido! Deixe, vou levá-la para o quarto e ficar com ela... – ela disse – Vá para casa descansar, meu bem, depois conversamos, está bem? Marcus concordou com a esposa, e ofereceu seus pêsames e a ajuda que fosse necessária neste momento que ele julgava ser tão difícil. Mal ele imaginava... Sabina fechou a porta do dormitório assim que entraram. _Ficou louca? – ela brigou com você – Você nem conseguiu disfarçar sua felicidade quando soube! _Eu não acredito! Não acredito! – você repetia – Está tudo resolvido, tudo! _É está sim. Que sorte!

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_Como aconteceu? _Marcus contou que o barco em que seu marido viajava, quando cruzavam o mar que leva ao Egito, afundou durante uma tempestade, e que ninguém sobreviveu. Você ficou em silêncio, relembrando tudo o que vivera ao lado de Aurélius. _Ei, você está bem mesmo? – Sabina se aproximou e tocou seu ombro. _Estou. Só estava pensando em como eu devia estar me sentindo, na realidade. Quando me casei com Aurélius, eu não o amava. Mas acreditava que conseguiria amá-lo com o tempo. Isso não aconteceu, no entanto. Aurélius só me fez sentir raiva dele, só me fez sofrer! Tanto, que nem consigo lamentar a sua morte... Me sinto aliviada, não só pelos últimos acontecimentos, mas porque estou livre para recomeçar a minha vida, da forma que eu quiser! Sabe o que isso significa para mim? _Calma, amiga... – Sabina abraçou você – Entendo o que você diz, mas lembre-se: existem outras questões ainda... Mas felizmente, o pior já passou! Deite-se e descanse um pouco... Amanhã será outro dia!

*** Um mês se passou desde então. Sua barriga começava a aparecer, embora você a escondesse por debaixo do vestido largo. No entanto, as coisa iam bem. Trocou Zene com Sabina. No lugar, ela cedeu outra moça grega, de nome curioso: Calipso. Era uma menina geniosa, mas obediente. Ao menos, fazia o serviço. Não havia mais homens na casa. Você achou melhor dar o seu escravo a Gaius, de vez. Precisava mantê-lo afastado por causa do bebê. Preferia que ele ficasse com o seu velho amigo, onde você sabia que seria bem cuidado e acolhido. Dárius não tinha escolha, não aceitou muito bem sua decisão, embora nunca se rebelasse. Se sentia rejeitado. Quando a isso, você nada podia fazer. Tinha decidido ter a criança, em segredo. Não contaria a ninguém sobre a paternidade dela. Sabia que isso não era certo, mas faria de tudo para protegê-la de um destino ingrato e miserável como o do pai. Ela seria cidadã romana, e teria o mesmo direito de que todos usufruíam. Podia criá-la e educá-la com o dinheiro que Roma te pagara em indenização pela morte de Aurélius. Então, um dia, Antonius apareceu na cidade. Antonius era o único filho de Gaius. Era um homem bonito e bem constituído fisicamente. Dedicara a vida ao exército, e agora, aos quarentas anos de idade, tinha ganho a aposentadoria de Roma, pelos serviços prestados. Voltara

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a Lutécia para se reencontrar com o pai e enfim levar uma vida monótona e sossegada. Gaius o apresentou. Tom... _Encantado, senhora! – ele beijou sua mão, com o olhar sobre o seu. Alguma coisa aconteceu entre os dois naquele momento. Paixão. Vocês se aproximaram, se conheceram. Antonius procurava uma vida pacífica para gastar a pequena fortuna paga a ele pelo Império, e uma esposa que pudesse compartilhar tudo isso com ele. E ele queria que você fosse a esposa. Você gostava dele. Foi difícil ter que revelar seu segredo. No entanto, ele se dispôs a assumir o bebê, com a condição de que você nunca dissesse à criança a verdade. Ele protegeria seu filho. E não desejava ser humilhado se descobrissem que ele criava o filho de um escravo como se fosse seu próprio sangue. Antonius era bem orgulhoso neste sentido. Era bem diferente do pai, nesse ponto. Vocês se casaram, em uma cerimônia simples. Você pediu para que fossem morar na sua casa. Antonius entendeu.

*** Chegou o dia do parto. Naturalmente você ficou apreensiva, já que era sua primeira experiência como mãe. Foi um parto difícil. Mas felizmente, ao final, tudo correu bem. Você deu à luz uma menininha de cabelos alaranjados e olhos claros, azuis iguais aos do pai. Assim como você tinha sonhado. Chamaram-na de Júlia. O tempo ia passando, e Júlia crescia bem e feliz ao lado da mãe e do ‘pai’ Antonius. Tinha os mimos do avô Gaius, e era adorada por todos. Era uma criança bonita, bastante inteligente e ativa. O que assustava era a semelhança que ela ia ganhando cada vez mais com Dárius. Você nunca a levava a casa de Gaius, e o avô precisava visitá-la sempre na sua residência, para evitar encontros desastrosos. Gaius achava que era bobagem, já que dizia que Dárius nem desconfiava da paternidade, mas, na sua opinião, todo cuidado era pouco. Tinha medo que ele visse nela alguma similaridade... Era engraçado como Júlia, já com seus doze anos, se achava parecida com Antonius. Seu marido, loiro e de olhos claros, não se parecia em nada com ela, mas sua filha insistia que eram parecidíssimos. O temperamento genioso e pretensioso, você tinha que admitir, era igual. Antonius a treinara direitinho dentro do orgulho romano. Mas no fundo, algo dizia a ela que havia alguma coisa fora de lugar. Era inevitável que um dia ela instintivamente se sentisse assim, e isso te assustava.

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Você e Antonius já começavam a levar em consideração a possibilidade de se mudaram para a capital Roma a fim de deixá-la longe de possíveis e futuro problemas. Júlia não entendia o por que dela nunca poder ir até a casa do avô. Antonius brigou várias vezes com o pai, tentando convencê-lo de se livrar de uma vez por todos do escravo. Era mais fácil que Dárius fosse embora. Gaius entendia a angustia de vocês, mas não achava correto Dárius ser o único penalizado. _Eu seria ainda mais canalha se o botasse na rua e o deixasse a própria sorte! – Gaius disse – Já me basta a mentira que tenho que esconder! Dárius é um amigo, e eu não faria isso com ele... Vocês estão se preocupando demais, já disse que ele nem desconfia! E sinceramente, Antonius, se eu pudesse, contaria toda a verdade e dormiria bem esta noite! _Você não teria essa coragem... – Antonius se sentiu ameaçado pelo próprio pai. _Não, não tenho, infelizmente! Não quero que isso termine mal! A única coisa que te peço é que se esqueça do escravo e viva a sua vida em paz! Você confiava em Gaius, e sabia que ele nunca quebraria uma promessa. Sabia que ele nunca contaria a verdade, e concordava com ele com relação a Dárius. Não seria justo. Por isso, tentou dobrar Antonius, até ele ceder e decidir a mudança para Roma. Você entendia a preocupação de seu marido. Ele e Júlia se amavam muito. O pai era tudo na vida da menina. Entendia o desespero dele. Certa vez, Júlia desobedeceu às ordens, e foi sozinha a casa do avô. Você notou o desaparecimento dela só meia hora depois. Teve um insight e você e Antonius correram para a casa de Gaius, onde a encontraram, ao lado do médico. Seu sogro fazia um curativo no tornozelo da menina. Antonius ia explodir, mas você o conteve. _Júlia, o que houve? – você perguntou. _Eu escorreguei nas escadas e torci o tornozelo, tá doendo muito! – ela choramingava – Mas ele viu e me ajudou... – ela apontou para Dárius quase escondido em um dos cantos do aposento - ...me pegou no colo, me trouxe até aqui e chamou o meu avô! Antonius quase desmaiou quando escutou as palavras da menina. Você olhou para Dárius. Ele olhou para você. Depois dos acontecimentos, eram raras às vezes em que você pisava na casa de Gaius. Ele não a via mais. Algumas vezes você o pegara perto de sua casa, espreitando o lugar na tentativa de te ver. Ele ainda a amava. Mas a atenção dele não era sua hoje. Ele prestava atenção em Júlia. Dárius agora era um homem de trinta e poucos anos, alfabetizado e educado. Vestia-se como os romanos de

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Lutécia. Trabalhava na casa de Gaius em troca de teto e comida, mas já era um homem livre. Há muito tempo, seu sogro havia libertado todos os seus escravos, que permaneciam com ele apenas por consideração ou escolha própria. Com Dárius não tinha sido diferente. O médico o presenteou com a carta de alforria, que podia ser concedida a qualquer escravo pelo seu senhor. Embora os escravos alforriados não fossem considerados cidadão romanos, podiam ser livres para ir e vir em todo o Império. Também tinham o direito de receber salário pelos seus serviços. Esta era a lei e Roma a respeitava. Vendo aquilo, Antonius se adiantou, enfurecido, e jogou Dárius contra a parede. Depois o levantou pelo colarinho da roupa, preparando-se parta acertar-lhe um soco no rosto. _Se você se aproximar da minha filha mais uma vez, eu te quebro, você me escutou? – ele gritou com o homem. Você correu e o impediu. Antonius largou Dárius. Júlia olhava assustada para a reação do pai. _Melhor vocês irem embora! – Gaius disse. Em casa, você e Antonius discutiram. _Ridícula a sua reação! – você gritava. _Ridícula? – ele replicava – Ridículo foi o que você fez, se deitando com um escravo! Não tem respeito por si própria e nem por Júlia! A condenou a esse destino ruim, e se não fosse por eu assumi-la, sabe-se lá o que poderia ter acontecido! _Ah, é? – você se indignou. Depois do nascimento de Júlia, você não conseguiu mais engravidar. O parto complicado teve as suas consequências. Mesmo conformado com a situação, vez ou outra, Antonius se lamentava por saber que nunca teria um filho seu. Por isso, tinha posto na menina todas as suas expectativas. E Dárius para ele significava uma ameaça terrível e constante. _Acho que você tem razão... – você continuou – Não devo mesmo ter nenhum respeito por mim por dormir com um homem ignorante como você! Você saiu do quarto, não queria mais olhar para Antonius. Qual foi sua surpresa ao encontrar Júlia perto do seu dormitório? Ela se aproximou, mancando, e perguntou, com os olhinhos aflitos: _Mãe, por que meu pai não gosta do escravo do vovô? Você achou que ela tinha ouvido a discussão, e que a pergunta que ela tentava fazer era outra. Mas você nunca soube, ao certo... _Seu pai é um pouco preconceituoso com as pessoas, acha que não deve respeito a ninguém por causa da sua posição privilegiada. Mas você sabe que isso é um erro, como seu avô sempre diz. Foi só uma bobagem do seu pai, querida, não tem com o que se preocupar, está bem?

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Ela concordou com a cabeça. Mas você podia ver que algo nela havia mudado...

*** Antonius e você apressaram a mudança para Roma. Dias antes da partida, porém, Gaius morreu vítima do coração. A notícia pegou todos de surpresa, e os planos foram suspensos. Foi um funeral muito triste. Gaius era querido por muita gente. Dárius também estava lá. Ficou em silêncio, lamentando a morte do amigo, talvez a única pessoa que tinha se importado com ele na vida, de verdade. Depois de alguns poucos dias após o funeral, Antonius decidiu ficar em Lutécia. Disse a você: _Não temos porque ir embora daqui. Vou assumir a casa de meu pai. Nós iremos nos mudar para lá... _Mas... – você não entendia. Ou queria não entender. O fato era que, agora que Gaius não estava mais presente para defender o ex escravo, nada impediria Antonius de pô-lo na rua e se livrar dele de uma vez por todas. _Seu pai não admitiria isso! E eu também não! – você relutou. _Não me importo com o que você pensa agora. Mas quando Júlia voltar a ser feliz, vai me agradecer! Dito e feito. Antonius expulsou Dárius da casa do pai. Justificou que agora que ele era um homem livre, não tinha mais a necessidade de permanecer ali. _Já que está livre, vá embora! – ele disse – Não o quero mais aqui! E se precisar de uma nova carta de alforria, posso lhe dar uma... _Não haverá necessidade, senhor. – Dárius respondeu – Vou juntar minhas coisas, com licença... E se retirou. Você discutiu mais uma vez com Antonius, mas no fundo, sabia que não havia o que fazer. Não havia como Júlia e Dárius viverem no mesmo lugar. Então, você teve que aceitar. Só se preocupava com o que seria dele, porque sabia que Dárius não tinha ninguém e nem para onde ir. _Ao menos dê algum dinheiro a ele, Antonius! – você pediu – Ele ficou muito tempo aqui, cuidou do seu pai, não pode pô-lo na rua sem nada... _Está bem. É justo... Você procurou por Dárius. Ele estava no seu quarto, um cômodo simples abarrotado de livros, juntando algumas poucas roupas e outros objetos pessoais. Colocava tudo dentro de uma sacola. _Eu sinto muito! – foi tudo o que você conseguiu dizer.

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_Tudo bem. – ele respondeu, sem parar o que fazia – Não é a primeira vez que sou expulso de algum lugar... Você ficou constrangida. _Para onde vai? – você quis saber. _Não sei. Não tenho para onde ir... _Sei que vai conseguir refazer sua vida. É livre agora... _Eu nunca serei livre... – ele respondeu – Você me escravizou... para sempre! Ele olhou para você. _Sei que me rejeita por eu ser quem sou... – ele continuou – Mas eu não sinto raiva de você. Vou te amar pelo resto dos meus dias, enquanto eles durarem... _Isso é muito tempo! – você falou, como se quisesse se desculpar – Dedique seus dias a você, não a mim, que não os mereço! Ele acabou de juntar os pertences. _Você tem uma filha muito bonita e esperta! – ele comentou – Será que eu poderia vê-la mais uma vez antes de partir? _Eu... – você ficou amedrontada e sem jeito - ...eu acho que não é uma boa ideia, Dárius, meu marido não vai gostar! _Sim – ele baixou a cabeça e se conformou. Então, com a sacola na mão, ele se aproximou e tentou beijá-la. Você recuou. Não podia fazer isso com Antonius. Apesar dos apesares, ele era seu marido, e tinha a ajudado. Viviam felizes, não tinha motivos para isso. _Não, Dárius, por favor! – você encostou as mãos no peito dele e o empurrou levemente, com cuidado – Por favor... Ele não insistiu mais. Pegou a sacola, e saiu do quarto. _Espere! – você gritou. Ele parou. Então você correu até ele. Tirou do pulso uma pulseira de jade e ouro que você usava, e a pôs nas mãos dele, fechando-as. _Quero que leve isto! Sei que é pouco... mas é o que eu tenho! Sei que esta pulseira nunca irá pagar o que te devo, mas espero que ela te conforte... Ele olhou para a pulseira nas mãos. Concordou em aceitá-la. Era um pouquinho de você que ele poderia carregar. _Adeus! – ele disse, e saiu. Antonius tentou pagar-lhe pelos serviços e ofereceu-lhe um cavalo, mas Dárius se recusou a aceitar o dinheiro e o animal, mesmo sob insistência. Foi embora a pé, levando apenas os pertences que podia carregar.

***

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Vocês se mudaram para a casa de Gaius, que era maior e mais confortável. Aos poucos, Júlia se esqueceu do incidente, e daquilo que talvez tivesse escutado. Eram dias bons. E se não fosse por Dárius, teriam sido perfeitos. A expulsão do ex escravo da casa não resolveu o problema da presença dele. Sem ter para onde ir, e sem poder ir para muito longe, Dárius ficou pelas ruas de Lutécia, dormindo ao relento e vivendo da caridade de algumas poucas pessoas. Ele vivia pelas redondezas da casa. Ali era um lugar familiar, e tinha uma fonte d’água da qual ele se utilizava. Então, como solução, Antonius proibiu Júlia de sair de casa. Isso a irritou. _Se ele está na nossa porta mendigando, a culpa é sua! _Qual é, Dolabella? Parece que tudo o que eu faço para proteger a minha família, para você é como se eu cometesse um crime! Aliás, já estou tão nervoso com essa situação, que estou muito perto de cometer um de verdade! Você se assustou com a declaração do seu marido. _Se você machucá-lo... _Não vou matar o seu queridinho escravo! – ele afirmou – Só vou forçá-lo a sair daqui! Do meu jeito... Três dias depois, você soube pelo rapaz que entregava o leite que durante a noite Dárius tinha sido assaltado por um grupo de três homens, que o surraram até ficar inconsciente. _Como ele está? _Bem. Os vizinhos de lá viram e chamaram um centurião. Ele está no posto de assistência... _Por que ladrões iriam assaltar um mendigo? – você sentia o cheiro de Antonius na estória. _São uns selvagens! – o rapaz respondeu. Você foi visitar Dárius no posto de assistência, fundado por Gaius. O lugar era uma pequena casa onde médicos, a maioria iniciante, cuidavam dos mais pobres e necessitados. Encontrou-o deitado em uma das macas. Estava todo roxo e inchado. Dormia. _Levaram as coisas dele, mas ele vai ficar bem! Sofreu alguns hematomas, mas nada muito sério... Só está um pouco confuso, ficou repetindo o seu nome... - um dos médicos disse. Voltou para casa. Entrou, e procurou Antonius. A discussão entre os dois foi feia, apesar dele negar o envolvimento no acontecido. Você preferiu pegar Júlia e ir para a sua antiga casa, por alguns dias. Implorando por sua volta, Antonius admitiu ter pago aqueles homens para dar uma surra em Dárius. _Eu só queria assustá-lo para que ele fosse embora! – ele se justificou.

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Você resistiu por um tempo, mas acabou voltando para casa. E Dárius acabou voltando para as ruas.

*** Algum tempo mais se passou. Antonius não conseguiu expulsar Dárius. Você o convenceu de que mudar-se para Roma, como haviam planejado antes, era a melhor saída, e ele concordou. Se preparavam mais uma vez para deixar a cidade. Mas uma morte, novamente, interrompeu os planos. E dessa vez, a de Antonius. Aconteceu que uma noite ele saiu para beber vinho com uns conhecidos, como fazia toda semana, no mesmo dia, e não voltou para casa. Você passou a noite toda preocupada. Achou que ele pudesse ter bebido demais, caído em algum lugar e dormido. Mas de manhã, quando saiu para procurá-lo, não o encontrou. Três dias se passaram então. Curiosamente, Dárius, que sempre era visto pelas ruas, também desapareceu. Você procurou por ele, na esperança de que talvez ele tivesse visto Antonius, mas nada do escravo. Então, a tardezinha, alguns soldados bateram à sua porta. Traziam o corpo de seu marido, achado nos esgotos da cidade. Antonius tinha sido esfaqueado, e sangrou até morte. Foi uma dor horrível. Júlia perdeu completamente o chão. O pai era tudo o que ela mais amava na vida. _Acha que pode ter sido o escravo? – o centurião perguntou a você. _Acho. – você respondeu. Sabia que seu marido era do tipo fanfarrão, e que tinha algumas inimizades, mas nada tão sério que pudesse justificar tal ato. Mas Dárius tinha um motivo para assassiná-lo. O que você não tinha certeza era se ele sabia que tinha esse motivo. Ao menos, se não fosse por Júlia, seria por inveja. Estava obcecado por você. O sumiço repentino dele levantava muitas suspeitas. Mas algo não parecia fazer sentido: como Dárius, que era um homem fraco, podia conseguir esfaquear um ex soldado romano, preparada para lutar? Antonius era fisicamente e tecnicamente superior ao escravo. Ele não conseguiria sozinho... O corpo demonstrava sinais de luta. _Seu marido podia estar bêbado – o soldado considerou. Procuraram por Dárius durante dias. E nada. Então, numa manhã, o soldado encarregado de solucionar o mistério, fez-lhe uma visita. _Tenho algo que gostaria que a senhora visse... Levaram-na até a prisão. Foi uma surpresa grande quando você viu Aurélius, trancafiado numa das celas. Ele estava diferente, tinha envelhecido, estava sujo e usava

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uma barba enorme. Parecia que tinha enlouquecido. Mas era ele. Tinha sobrevivido ao naufrágio. Ficara preso durante muito tempo em uma ilha, até ser encontrado por mercadores cartagineses. Aurélius a olhou e sorriu, maliciosamente, satisfeito consigo mesmo. _Seu escravo me levou até ele... – e riu – Eu te avisei que esses celtas são traiçoeiros, não avisei? Disse para não confiar nele! – e ele caiu numa gargalhada enlouquecida – Você me traiu, sua desgraçada, cheguei aqui, depois de passar por tanta desgraça, e te encontrei com outro homem, vagabunda! Mas agora as coisas estão resolvidas! Ao menos, aquele celta desgraçado permaneceu fiel ao seu senhor; já você... Aurélius nunca te amara. Mas se sentia seu dono, como se sentia dono dos escravos. Fez isso por ódio a você, não porque a queria. _Ele nos disse que Dárius deu informações a ele sobre onde seu marido estava, e o caminho que costumava fazer na ida e na volta da taverna. Aurélius armou uma emboscada e o matou... – o soldado contou. Era fato que Dárius, plantado na praça em frente a sua casa, sabia da movimentação de quem entrava e saía dela. A informação foi vendida a Aurélius, por três sestércios (£$15,00). Você entedia o sofrimento do escravo, mas não imaginava que ele poderia praticar tal vilania. Se enganou, no entanto... Aurélius foi condenado à morte pelo assassinato de Antonius. Ficou preso por duas semanas, até a sua execução por enforcamento. Uma semana depois, Dárius foi encontrado a alguns quilômetros de distância. Foi julgado e condenado por prestar informações ao assassino. Escapou da morte por considerarem que sua participação fora indireta. Ele justificou sua defesa alegando que dera a informação em troca de dinheiro porque mendigava e sentia fome. Na verdade, você não acreditava nisso. Dárius tinha muita inveja e ódio de Antonius. Ele sabia o que estava fazendo quando contou a Aurélius onde seu marido estava. Não conseguiu perdoá-lo, embora entendesse sua revolta e se sentisse meio culpada por deixar as coisas chegarem a tal ponto... Dárius foi condenado a dez chibatadas de flagelo. O flagelo era um tipo de chicote que os romanos usavam para castigar criminosos ou escravos. Muita gente não resistia ao castigo. Morria... Marcada a hora, você compareceu a praça pública para assistir a execução da pena. Juntou muita gente curiosa afoita para ver a tortura. Os soldados trouxeram Dárius preso por travas, como na época em que era escravo. A

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multidão, revoltada, jogava tomates e ovos podres no réu. Os soldados precisaram conter a população. Dárius estava muito assustado. Os soldados tiraram a roupa dele. Depois amarraram as mãos em pedaço de tronco, preso ao chão, de forma que ele ficou ajoelhado e quase abraçado ao tronco. O carrasco se posicionou para o cumprimento da pena. O centurião que organizava a execução a chamou. Ele perguntou a você com qual dos flagelos o castigo seria aplicado. Mostrou uma mesa onde havia sete tipos de chicotes. Um comprido, grosso, com uma ponta serrilhada, outros menores, com ossos presos às pontas, outro de couro cru, coberto por cola e vidro moído, outro feito de uma vareta fina e flexível, ornada com pregos. Escolheu um chicote de três pontas, com ganchos de metal afiado em cada uma delas. O carrasco pegou a arma, e deu início ao castigo. A primeira chibatada atingiu o meio das costas. Os ganchos encravaram na pele, ficando presos na carne. Dárius gritou. Então, o carrasco puxou de volta o chicote. Os ganchos rasgaram as costas de cima a baixo quando saíram. A pele se abriu e o sangue espirrou para vários lados. Era uma cena pavorosa, mas a população assistia como se aquilo fosse um espetáculo. Pensou ter feito bem ao proibir Júlia de comparecer a execução, mesmo sobre os protestos dela. O carrasco continuou. A segunda, a terceira ,a quarta chibatada... A multidão contava cada uma delas. O som do chicote e os gritos de Dárius ecoavam forte sobre a voz da população. Ele chorava, pedia clemência, não estava suportando a dor. O escravo estava banhado em sangue. O chão sobre ele também. A décima e última chibatada acertou as costelas do lado esquerdo. Os ganchos prenderam-se entre os ossos. Ao serem puxados pela força do carrasco, rasgaram a carne de tal forma que um pedaço do músculo se desprendeu, deixando o osso da costela exposto. Era uma cena horrível. O carrasco recolheu o flagelo, dando fim à execução. Soltou Dárius do troco. Ele caiu de lado. Tremia como se estivesse tendo uma convulsão. Estava em choque. A população, satisfeita, foi saindo e indo embora. Os soldados ainda ficaram por lá, para terminar o trabalho. Começaram a juntar e a guardar as armas. Ninguém se preocupou em ir até o escravo para ajudá-lo. Ignoravam-no como se esperassem que morresse. Quase trinta minutos. Aos poucos ele foi parando de tremer, e ficou imóvel. Você se indignou: _Ei, não vão ajudá-lo? Ele ainda está vivo! _Está preocupada com o delatorzinho que ajudou o assassino do seu marido, senhora? – um dos soldados debochou de você.

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Realmente, parecia não fazer sentido. Achava que sentiria ao menos algum consolo vendo a dor daqueles que a feriram. Mas não se sentia melhor por ver Dárius daquele jeito. Tirou a pequena manta que usava sobre os ombros e foi até ele tentar enxugar o sangue que escorria pelos cortes. Só assim, convencidos de que ele não morreria, os soldados a tiraram de lá, e jogaram Dárius em uma carroça, como se fosse um porco abatido. Em seguida, um deles jogou uma garrafa inteira de vinho sobre os cortes. O álcool despertou o escravo com sua dor aguda. Ele gritou mais uma vez. _O que está fazendo? – você brigou com o homem. _Desinfetando as feridas! – ele riu. _O que vão fazer com ele? _Jogá-lo na casa de assistência. Se não morrer de febre, terá sorte! Foram semanas na casa de assistência. Os médicos não queriam aceitar o cúmplice do assassino do filho do homem que admiravam sob o teto da casa de caridade que o próprio Gaius fundara. Mas você os lembrou de que Gaius era um homem bom e decente, e que mesmo ele perdoaria e não recusaria ajuda a um homem a beira da morte. No fundo, você se lembrava o quanto seu sogro se sentira culpado por pactuar da sua mentira. Mentira esta que causara sofrimento a muita gente, inclusive a você e a sua filha. Dárius sofreu muito, teve febre alta, infecções, quase morreu por várias vezes. Os médico não davam a ele a atenção devida. Se não você visitá-lo todos os dias, nem fariam a higiene dele e nem o alimentariam. Ninguém entendia por que você o ajudava. Nem mesmo você entendia. Não sabia se era por pena ou se por culpa. Talvez pelas duas coisas... Apenas um jovem médico, chamado Décius (Dorian), se apiedou do coitado. Ajudou a suturar a costela exposta, e cuidou da febre e das infecções. Dárius se curou. Na última vez que fora vê-lo, ele disse: _Eu... sabia que Aurélius não estava bem intencionado, e minha raiva e dor eram muito grandes, mas não imaginei que as coisas pudessem acabar assim... Ele estendeu a mão, tentando tocar o seu braço. Você recuou. _Não me toque, por favor! – você demonstrava o seu desprezo, embora ainda sentisse culpa. _Me perdoe, por favor! – ele implorou. _Não me peça isso... _Senhora... _Não sou sua senhora... _Eu... preciso do seu perdão! Estou muito arrependido e envergonhado do que fiz...

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O ódio finalmente começou a te atingir. _Você vai vagar pela terra durante muitos anos até eu ser capaz de te perdoar... Isso ainda vai levar muito, muito tempo! Você terminou a conversa, virou as costas, e foi embora. Nunca mais o viu. Cauteloso, Dárius desapareceu de Lutécia. Oito verões após este incidente, você morreu, vítima de uma desidratação muito severa, contraída por alguma contaminação na água. Júlia ficou definitivamente órfã...

***