152
FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016 1

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

1

Page 2: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

2

Page 3: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

3

EditorEditorEditorEditorEditorProf. Ms. Waldir de Pinho Veloso

Organização, padronização e revisão linguísticaOrganização, padronização e revisão linguísticaOrganização, padronização e revisão linguísticaOrganização, padronização e revisão linguísticaOrganização, padronização e revisão linguísticaProf. Ms. Waldir de Pinho Veloso

Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialProf. Ms. Edson Pires da Fonseca

Prof. Ms. Rafael Soares Duarte de MouraProf. Ms. Richardson Xavier BrantProf. Ms. Waldir de Pinho Veloso

e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho

ISSN 2179-8222

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho,v. 6, n. 1, jan.-jun./2016 – ISSN 2179-8222 – Semestral – Montes Claros

Page 4: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

4

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho

EditorProf. Ms. Waldir de Pinho Veloso

Organização, padronização e revisão linguísticaProf. Ms. Waldir de Pinho Veloso

Conselho EditorialProf. Ms. Edson Pires da Fonseca (Faculdade UBRES – Bahia)

Prof. Ms. Rafael Soares Duarte de Moura (Faculdade de Direito Santo Agostinho – Minas Gerais)Prof. Ms. Richardson Xavier Brant (Universidade Estadual de Montes Claros – Minas Gerais)

Prof. Ms. Waldir de Pinho Veloso (Faculdade de Direito Santo Agostinho – Minas Gerais)

Editoração GráficaMaria Rodrigues Mendes

CapaAdriano Magno de FreitasMaria Rodrigues Mendes

FAS@JUS : e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho / Faculdade de Direito SantoAgostinho. – Vol. 6, n. 1, 2016 - . - Montes Claros, MG. Fundação Santo Agostinho, 2016-

v. : il. 21 x 29cm.

SemestralISSN 2179-8222

1. Direito. I. Faculdade de Direito Santo Agostinho. II. Título.

CDU: 34 (05)

Page 5: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

5

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................

ARTIGOS DO CORPO DOCENTE

AS FUNDAÇÕES E A ESPECIFICIDADE DA CURADORIA EXERCIDA PELO MINISTÉRIOPÚBLICOCyntia Mirella Cangussu Fernandes Sales........................................................................................

O CONTEÚDO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM MANDADOS DE INJUNÇÃO: apontamentoslevinasianos e constitucionaisDébora Pereira Turchetti, Rafael Soares Duarte de Moura....................................................................

ÉTICA E DIREITO: como construir uma sociedade sem corrupçãoJosé Luiz Quadros de Magalhães..................................................................................................

ARTIGOS DO CORPO DISCENTE

PRECONCEITO EM UM PAÍS MULTICULTURAL: o “jeitinho” de discriminar do brasileiroGiowana Nunes de Pinho Veloso.......................................................................................................

TRIBUNAL DO JÚRI: análise entre Brasil e Estados UnidosIgor Emanuel Pereira Silva............................................................................................................

A TUTELA DAS LIBERDADES E SUAS INTERCONEXÕES COM A EFETIVAÇÃO DO BEM--ESTAR SOCIAL E DA CIDADANIAMatheus Medeiros Maia..................................................................................................................

O CASO “GLORIA TREVI”: colisão entre direitos da personalidadeWerley Pereira de Oliveira, Gabriel Pereira Novais.............................................................................

ELO COM OUTRAS IES

O PROTESTO EXTRAJUDICIAL DE CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA COMO INSTRUMENTOALTERNATIVO DE COBRANÇA DOS CRÉDITOS PÚBLICOSCarina Diniz Moura, Antônio Luiz Nunes Salgado..........................................................................

A EFICÁCIA DO CENTRO JUDICIÁRIO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E CIDADANIA NACOMARCA DE MONTES CLAROS/MINAS GERAIS: uma nova visão do JudiciárioDanilo Marques Evangelista, Eduardo Vinícius Pereira Barbosa, Heloise Lisboa Fonseca................

7

13

21

39

49

59

71

81

89

103

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho,v. 6, n. 1, jan.-jun./2016 – ISSN 2179-8222 – Semestral – Montes Claros

Page 6: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

6

TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS PROBATÓRIOPedro Fernandes Martins Cardoso, Maria Fernanda Soares Fonseca...................................................

AUTOR CONVIDADO

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA DE ROBERT ALEXY: análise das bases teórico--filosóficas e estudo de suas regras formadorasGivanildo Nogueira Constantinov......................................................................................................

RESENHA

MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplinaHortência Dias Silva Neta............................................................................................................

REGRAS PARA PUBLICAÇÃO.................................................................................................

111

127

141

147

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho,v. 6, n. 1, jan.-jun./2016 – ISSN 2179-8222 – Semestral – Montes Claros

Page 7: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

7

APRESENTAÇÃO

O ano de 2016 tem, pelo menos, mais umimportante marco: é o sexto ano de atividade daFas@Jus, e-Revista do Curso de Direito daFaculdade de Direito Santo Agostinho. São etapasde publicação ininterrupta, sem atraso. Ao contrário,mesmo sendo a periodicidade proposta de semestral,houve um ano em que houve três números, em vezde dois.

Neste volume 6, número 1, há uma consolida-ção em curso. É a confirmação do sucesso; é afirmeza do nome; é a certeza de que o crescimentoserá sempre e cada vez maior. O início deste sextoano da Fas@Jus, a e-Revista do Curso de Direitoda Faculdade de Direito Santo Agostinho, continuamostrando mais publicações do que o mínimo exigi-do. Prova do crescimento já afirmada, e da conso-lidação anunciada.

A seção destinada aos Professores que atuamno Curso de Direito da Faculdade de Direito SantoAgostinho está representada por três autores.

A Professora Cyntia Mirella CangussuFernandes Sales, desta vez, comparece parapublicar o seu artigo denominado “As Fundações ea Especificidade da Curadoria Exercida peloMinistério Público”, no qual demonstra que nãodeveria caber ao Ministério Público exercer acuradoria sobre Fundações de caráter particularinstituída em vida. Faz a ressalva de que quando setratar de instituição de Fundação em testamento, apresença do Ministério Público no processo traz acerteza da aplicação escorreita do patrimônio legadoe dos fins para a qual a Fundação deve ser e tersido instituída. Mas, em se tratando de Fundaçãocriada em vida pelo instituidor, ele próprio deverágerir tal funcionamento. E, se couber ao MinistérioPúblico a fiscalização sobre as Fundações como umtodo, apenas porque aplicam dinheiros que vêm deoutrem, também deveria acompanhar e fiscalizaras associações sem fins lucrativos.

Há autoria conjunta da Professora MestreDébora Pereira Turchetti com o ProfessorMestre Rafael Soares Duarte de Moura. Elesescreveram sobre “O Conteúdo das DecisõesJudiciais em Mandados de Injunção: apontamentoslevinasianos e constitucionais” e, pelo que se nota,há bastante aspectos da Filosofia do Direitoembutidos nos conceitos. Aliás, pelo resumo já sevê que o texto trata da compreensão hermenêutico--fenomenológica levinasiana em prol da

hermenêutica constitucional. Como o Mandado deInjunção é da competência do Supremo TribunalFederal, e é instituto criado pela Constituição Federalde 1988, pode-se considerar tema novíssimo, poispoucas são as ações neste formato, em comparaçãocom as demais que adentram no STF. Trata-se,portanto, de um estudo necessário ao debateconstitucional de alta qualidade.

Considerando que os artigos aparecem pelaordem alfabética dos seus autores, o terceiroProfessor que assina texto jurídico, nos presentesvolume e número, é Professor Doutor José LuizQuadros de Magalhães. Pelo título, já se nota otom filosófico da análise jurídica: “Ética e Direito:como construir uma sociedade sem corrupção”. Aodesenhar o texto, o autor faz referência às obras deSlavoj Zizek, Louis Althusser, Michel Foucault, AlainBadiou e Jacques Semelin, em um emaranhado deinformações que, ao fim, clareia não somente aexplicação do autor, como também e principalmente,o entendimento do leitor. Ao tratar sobre ética eDireito, o texto científico se mostra atual em qualquermomento da vida acadêmica. Por motivos quaseóbvios (a linha principal de pesquisa do autor),aparece no texto a dicotomia “nós” x “eles” e outrasdiferenças quando se deveria buscar pela igualdadeentre as pessoas.

A segunda seção da Fas@Jus, a e-Revista doCurso de Direito da Faculdade de Direito SantoAgostinho, é destinada aos Acadêmicos da Casa. Eé uma prova concreta, escrita e imaculada de que oCurso de Direito da Faculdade de Direito SantoAgostinho não tem a iniciação científica apenascomo palavras soltas e não interpretadas comocomponente da “missão”. De fato, Curso de Direitoda Faculdade de Direito Santo Agostinho incentivaa pesquisa científica em sua fase incipiente, juntoaos Acadêmicos. A publicação presente é provaincontestável desta afirmação, pois são quatro ostextos científicos produzidos por Acadêmicos.Aparecerão em ordem alfabética dos nomes dosseus autores.

Em artigo denso e de pesquisas pormenori-zadas, a Acadêmica Giowana Nunes de PinhoVeloso trata do tema “Preconceito em um PaísMulticultural: o ‘jeitinho’ de discriminar do brasi-leiro”. A autora faz incursões em na história daescravidão no Brasil e a origem do tratamento di-ferenciado em relação à cor e à origem. Depois,

Page 8: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

8

adapta o tema aos nossos dias e, indignada com ademonstração de preconceito racial nos temposatuais, demonstra como o brasileiro despista quantoao racismo demonstrado, disfarçado de brincadei-ra. Fala também sobre outros preconceitos,notadamente contra a mulher. Fundamenta o tex-to na Constituição Federal e no Código Penal.

Para produzir um texto científico, oAcadêmico Igor Emanuel Pereira Silva fezampla pesquisa do instituto do Tribunal do Júri tantono Brasil quanto nos Estados Unidos. Em uma formade mostrar o Direito Comparado, não na aplicação,mas na mostra do que há de similitude e dedessemelhança, o texto recebeu o título de “Tribunaldo Júri: análise entre Brasil e Estados Unidos”.Exatamente para poder conter o que o estudo mostrade como funciona o julgamento dos crimes dolososcontra a vida, pela legislação brasileira (inclusivecomo uma garantia constitucional de que tais crimesserão julgados pela sociedade e não por um Juiz deDireito, que apenas preside a sessão), com ademonstração de como funciona o mesmo institutonos Estados Unidos da América.

O Acadêmico Mateus Medeiros Maiase dispõe a escrever, do ponto de vista filosófico--constitucional, sobre o tema que recebeu o título“A Tutela das Liberdades e suas Interconexões coma Efetivação do Bem-Estar Social e da Cidadania”.E se desincumbe da tarefa com capacidade quedemonstra o constante hábito de estudos, opermanente exercício da arte de escrever eempregar muitíssimo bem as palavras. Ao falar sobreo tema, o Acadêmico procura por fundamentos emdoutrinadores brasileiros da área do Direito, nalegislação e argumentos de cunho filosófico tambémaportam em seu modo de escrever. Um textomaduro, de expressões típicas de quem estudoumuito antes de começar a produzir.

Dois acadêmicos se uniram na produção deum texto científico que envolveu pesquisajurisprudencial e sua confrontação com asdeterminações contidas na Constituição Federal de1988. São os Acadêmicos Werley Pereira deOliveira e Gabriel Pereira Novais, queescreverem sob a denominação de “O Caso ‘GloriaTrevi’: colisão entre direitos da personalidade”. Notexto, a busca pela solução que o Supremo TribunalFederal ofertou para o caso concreto, em que haviaconfronto do Direito à Intimidade como um Direitoda Personalidade em face do Direito à Honra e àImagem. A solução mostrada pelos autores revelapor que o estudo do Direito é tão interessante: trata--se de um tema vivo e credor de interpretações,

integrações e aplicações dotadas de profundoconhecimento jurídico.

O propósito da Fas@Jus, e-Revista do Cursode Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinhoé ultrapassar os “muros” do Curso e da Faculdade.Assim, a seção “Elo com outras Instituições deEnsino Superior” se abre para receber colaboraçãode outros autores, vinculados a outras IES coirmãs.São três os textos, dentre os recebidos, que foramaprovados pelo Conselho Editorial.

Carina Diniz Moura se associou aoProfessor Antônio Luiz Nunes Salgado eescreveram o artigo denominado “O ProtestoExtrajudicial de Certidão de Dívida Ativa comoInstrumento Alternativo de Cobrança dos créditospúblicos”, um trabalho de fôlego. Iniciaramdemonstrando a origem da execução fiscal,passaram pela análise do crédito tributário e, antesde adentrar ao tema propriamente dito, ainda fizeramvisitas à origem dos tabelionatos. Como centro,demonstraram que a remessa de Certidões deDívida Ativa, por parte do Estado (União, Estados--membros, Distrito Federal e Municípios) para osTabelionatos de Protestos representa economia detempo e dinheiro, constitui uma forma célere(solução em três dias) do crédito tributário (umaação tributária do mesmo porte, perante a Justiça,dura em média nove anos) e desafoga o PoderJudiciário com demandas de pequeno valor. Por sinal,o artigo demonstra que o custo para uma execuçãofiscal para o Estado é, em média, superior ao créditopretendido. De fato, um texto de qualidade.

Sob o título “A Eficácia do Centro Judiciáriode Solução de Conflitos e Cidadania na Comarcade Montes Claros/Minas Gerais: uma nova visãodo Judiciário”, os Acadêmicos Danilo MarquesEvangelista, Eduardo Vinícius Pereira Barbosae Heloise Lisboa Fonseca, começam explicandoda iniciativa do Conselho Nacional de Justiça emdeterminar que os Tribunais de Justiça dos Estados--membros brasileiros criassem os Centros deConciliação e Cidadania, fato que, posteriormente,com a entrada em vigor - em março de 2016 - doNovo Código de Processo Civil, passou a ser umaobrigação. De fato, o novo Código de Processo Civildetermina que haja audiência prévia de tentativa deconciliação para, somente após, iniciar o prazo paradefesa da parte citada. Há a demonstração davalidade do processo de intermediação (conciliaçãoe mediação) praticada em Montes Claros porcolaboradores voluntários ou contratados (e cedidos)pelas Faculdades de Direito.

Page 9: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

9

O terceiro (sequência ocupada em razão daordem alfabética dos nomes do primeiro autor) é deautoria de dois bacharéis em Direito. São eles PedroFernandes Martins Cardoso e Maria FernandaSoares Fonseca, que escrevem, sob o título “Teoriada Distribuição Dinâmica do Ônus Probatório” umimportantíssimo texto – pela atualidade e pelanovidade em termos doutrinários – mostrando aadoção, pelo Direito brasileiro, da teoria inicial deque compete ao requerido desconstituição do direitoprovado pelo autor. Mas, mostram os escritores aoutra teoria, a de que nem sempre a lei pode deixarexclusiva e necessariamente por conta do autor daação fazer a prova do seu direito, pois há casos quea Justiça deve determinar que o requerido é quemdeve apresentar a documentação comprobatória atédo objeto do pedido na petição inicial. Uma autênticainversão do ônus da prova, porque, como mostramos escritores, deixar a prova por conta de quem éhipossuficiente na relação probatória, é exigir uma“prova diabólica”, no sentido de impossível ou dedifícil cumprimento.

Como uma grande publicação de cunhocientífico deve representar as opiniões de autoresde diversas partes do território brasileiro, há a seção“Autor Convidado”. E há autores que somentepodem receber o título de “convidado”. Exatamentepela honra concedida à publicação. É o caso doProfessor Mestre Givanildo NogueiraConstantinov. Autor de livros e capítulos de livros,Juiz de Direito e Professor, o autor escreve,especialmente para Fas@Jus, o texto “A Teoria daArgumentação Jurídica de Robert Alexy: análise dasbases teórico-filosóficas e estudo de suas regrasformadoras”, em que toca, profundamente, na TeoriaGeral do Discurso Racional Prático, unindo JürgenHabermas a Robert Alexy, passando por temas

filosóficos que carregam até a interpretação jurídicacomo forma de mais bem aplicar a lei em casosconcretos (Sentenças, Acórdãos ou argumentaçõesem peças jurídicas). O texto do Doutorando emDireito é uma forma de bem ligar os ensinamentosde Robert Alexy, estudado em disciplinas comoArgumentação e Lógica Jurídica e emHermenêutica Jurídica, à prática do Direito.

Uma seção que recebe grande contribuiçõesjurídico-literárias é a “Resenha”.

A seção “Resenha”, com normas depublicação próprias, está recheada pelo texto daAcadêmica Hortência Dias Silva Neta, que,honesta quanto às limitações do espaço e com otanto que tinha para escrever, comentou não todo olivro, mas o Capítulo XII, que tem o título “Soberaniae Disciplina”, do livro “Microfísica do Poder”, deMichel Foucault. Na análise, a autora faz referênciasa outros filósofos e, em termos brasileiros, buscasubsídios em Dalmo de Abreu Dallari; em termosportugueses, em Boaventura de Sousa Santos;quanto à linha alemã, a base é Jürgen Habermas.Como resenha que é, o texto apresenta uma formade resumo entremeado de opiniões, observações,comparações. Válido para estudos.

Com este desfile de textos de cunho científico,a Fas@Jus, e-Revista do Curso de Direito daFaculdade de Direito Santo Agostinho vence maisum semestre.

E, como sempre, manifesta a esperança deque haja aquisição de conhecimento jurídico por partedos leitores.

Prof. Ms. Waldir de Pinho VelosoEditor

Page 10: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

10

Page 11: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

11

ARTIGOS DOCORPO DOCENTE

Page 12: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

12

Page 13: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

13

RESUMO

A fundação, pessoa jurídica de Direito Privado, édetentora de especificidades não observadas nasdemais pessoas jurídicas. Uma dessas peculiaridadesé o exercício da curadoria pelo Ministério Público.Diante disso, questiona-se: por que o MinistérioPúblico exerce a curadoria somente nas fundações?O presente trabalho tem por objetivo verificar oporquê da curadoria exercida especificamente peloMinistério Público somente em relação às fundaçõese não dispensar o mesmo tratamento às demaispessoas jurídicas que se dedicam a atividades defins semelhantes. Para tanto se utiliza da pesquisabibliográfica.

Palavras-chave: Fundação. Ministério Público.Curadoria

ABSTRACT

The foundation, legal entity of private law, holdscharacteristics not observed in other corporations.One of these peculiarities is the practice of curatingby Ministério Público. Given this, is questioned: whythe Ministério Público have curatorship only on thefoundations? This study aims to determine why thecuratorship is specifically exercised by MinistérioPúblico and only in relation foundations. For thatwe use the literature research.

Keywords: Foundation, Ministério Público, Curator.

1 INTRODUÇÃO

A fundação, enquanto pessoa jurídica de direitoprivado, está regulamentada no Código Civilbrasileiro de 2002, o qual impõe que a sua curadoriaseja exercida pelo Ministério Público do Estado ondeela estiver estabelecida.

O Ministério Público, instituição fortalecida

AS FUNDAÇÕES E A ESPECIFICIDADEDA CURADORIA EXERCIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

Cyntia Mirella Cangussu Fernandes Sales1

pela Constituição da República Federativa de 1988,tornou-se, a partir de então, instituição permanentee essencial à função jurisdicional do Estadobrasileiro. Dentre as suas atribuições, cuida degarantir a efetividade dos interesses da sociedade.

No exercício da curadoria, o Ministério Públicomantém proximidade nas relações jurídicasempreendidas pela fundação e não realiza a mesmafunção com as demais pessoas jurídicas de direitoprivado, mesmo que a instituição se dedique àatividade que seja do interesse da coletividade.

Daí surge o problema: por que o MinistérioPúblico exerce a curadoria somente nas fundações?Como hipótese a ser verificada, tem-se que oexercício da curadoria se dá porque a fundaçãorealiza atividade de interesse público e ainda porquenão há presença do instituidor na pessoa jurídica.

O presente trabalho se justifica por ter sidotemática recorrente em sala de aula, quando a autoraministrava a disciplina Direito Civil Parte Geral, quetrata das pessoas jurídicas de Direito Privado,corroborado pelo frequente questionamento daspessoas interessadas em constituir uma pessoajurídica de fins não econômicos. Assim, o trabalhoem epígrafe tem por objetivo verificar o porquê daespecificidade da curadoria exercida pelo MinistérioPúblico somente em relação às fundações, a partirda pesquisa bibliográfica.

2 FUNDAÇÕES: CONSIDERAÇÕESGERAIS

As pessoas jurídicas surgem da necessidadedas pessoas em conjugarem esforços para aconsecução de uma finalidade comum. Conformeensina Amaral (2003, p. 275) a pessoa jurídica é“um conjunto de pessoas ou bens dotados depersonalidade jurídica.”, apta a empreender relaçõesjurídicas agindo como sujeito de direito.

No Brasil, o ordenamento jurídico reconhecevárias espécies de pessoas jurídicas, as quais seclassificam conforme vários critérios. Um dos

1 Advogada. Professora de Direito Civil do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho. Assessora JurídicaVoluntária da Fundação Sara Albuquerque Costa.

Page 14: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

14

critérios utilizados, segundo Gonçalves (2014), o queleva em conta a função ou a órbita de atuação dapessoa jurídica, é o que as distinguem em pessoasjurídicas de Direito Público e Privado.

As pessoas jurídicas de Direito Privado estãodescritas no Código Civil brasileiro de 2002 (CCB/02), e são, segundo o art. 44, as associações, associedades, as fundações, as organizações religiosas,os partidos políticos e as empresas individuais deresponsabilidade limitada.

Nessa perspectiva, as fundações podem serpúblicas ou privadas. As privadas seguem as regrasestabelecidas no CCB/02, e são espécie de pessoajurídica diferenciada se observado o rolanteriormente elencado. Exercem atividade denatureza não econômica, como as associações, masdelas se distinguem, sob vários aspectos,principalmente por não se instituírem pela união depessoas.

Ao contrário das demais pessoas jurídicas,juntamente com a empresa individual deresponsabilidade limitada, a fundação privada nãonecessita da união de pessoas para sua instituição.Basta apenas a vontade de uma única pessoa,denominada de instituidor, um acervo de bensdestacado de seu patrimônio para odesenvolvimento de uma finalidade por eleespecificada, para que a fundação seja instituída.

Amaral (2003, p. 294) define as fundaçõescomo sendo “um complexo de bens que assume aforma de pessoa jurídica para a realização de umfim de interesse público, de modo permanente eestável.” É portanto um patrimônio afetado para umafinalidade.

Segundo estabelece o CCB/02, as fundaçõessó podem ser criadas para a consecução de fins denatureza religiosa, moral, cultural ou de assistência,conforme a vontade de seu instituidor. Apesar darestrição imposta pelo parágrafo único do artigo 62do CCB/02, Gangliano e Pamplona Filho (2012),lembram que o rol é meramente exemplificativo ena realidade, a restrição constante no dispositivo emepígrafe visa apenas impedir que as fundaçõesdesenvolvam atividades com caráter lucrativo comoacontece em outros países, mas não limitar a suaatuação nas atividades de interesse da coletividade.

Uma vez fixada a finalidade pelo instituidor,ela será imutável. E se houver necessidade dealteração, não restará outra alternativa senão aextinção da fundação originária para a criação deuma nova, como observam Farias e Rosenvald(2014).

A fundação será instituída por escritura pública

ou testamento, conforme disposição do art. 62 doCCB/02. Por um desses instrumentos, o instituidordestacará de seu patrimônio bens determinados,livres e desembaraçados, para a consecução de umafinalidade por ele determinada.

Como destacam Farias e Rosenvald (2014),as fundações são instituídas em ato formal que sesubdividem em quatro fases distintas. A primeiradelas, denominada de fase de dotação ou instituiçãopropriamente dita, consiste na reserva patrimonialdo instituidor, por meio da escritura pública ou dotestamento, destinando-o a uma finalidade, bemcomo a maneira de administrá-lo.

A segunda é a fase da elaboração dosestatutos. Os estatutos da fundação, como determinao CCB/02, podem ser elaborados pelo próprioinstituidor, por alguém designado por ele, ou, senenhuma dessas duas possibilidades se efetivarem,serão elaborados pelo Ministério Público.

A terceira fase é de responsabilidade exclusivado Ministério Público, a quem cabe a aprovaçãodos estatutos da fundação, salvo se elaborado porele próprio. Nessa circunstância os estatutos serãoaprovados pelo Poder Judiciário. Nessa fase, oMinistério Público avaliará também se os bens,destacados pelo instituidor, são suficientes para aconsecução da finalidade por ele definida.

A quarta e última fase de constituição é a fasedo registro, o qual é efetivado perante o Serviço deRegistro de Pessoas Jurídicas, ocasião em que afundação adquire personalidade jurídica, nos moldesdo art. 45 do CCB/02, estando apta a contrair direitose obrigações, e a titularizar relações jurídicas.

A fundação, por realizar atividades de interesseda sociedade, terá suas atividades fiscalizadas peloMinistério Público do Estado em que a instituiçãoestiver localizada, como dispõe o art. 66 do CCB/02.

Apregoa o art. 69 CCB/02 que a fundaçãodeverá ser extinta sempre que seu objeto se tornarilícito, impossível ou inútil ou quando se vencer oprazo fixado para sua existência. Ressalta ainda oreferido dispositivo que a extinção deverá serpromovida pelo Ministério Público ou qualquerinteressado, perante o Judiciário.

Por fim, destaca o dispositivo em referênciaque o patrimônio remanescente da instituição emextinção será incorporado a outra instituição que sededique a desenvolver finalidade igual ou semelhanteà fundação em referência, designada pelo juizcompetente se não houver destinação diversadeterminada pelo instituidor no ato da instituição ouno estatuto da entidade.

Page 15: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

15

3 MINISTÉRIO PÚBLICO E SUASATRIBUIÇÕES

A Constituição da República Federativa doBrasil de 1988 (CRFB/88), em seu art. 127,estabelece que o “Ministério Público é instituiçãopermanente, essencial à função jurisdicional doEstado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,do regime democrático e dos interesses sociais eindividuais indisponíveis.”. Com essa determinação,a Instituição permanente sob comento não estásubmetida a quaisquer dos poderes estabelecidos,não promovendo, portanto, a defesa dos interessesdo governo, mas, ao contrário, prima pela realizaçãodos interesses da sociedade.

No Brasil, segundo Moraes (2006), o MinistérioPúblico surgiu em 1832, no Código de ProcessoCriminal do Império, quando esse conjunto normativofazia referência ao promotor da ação penal. Em 1843,com o Decreto 120, de 21 de janeiro daquele ano,veio a expressa regulamentação do MinistérioPúblico, determinando sua nomeação pelo Imperadore pelos Presidentes das Províncias, os quais tambémseriam responsáveis por sua remoção, quando nãomais lhes conviessem a atribuição anteriormenteconferida.

Destaca Moraes (2006) que o Decreto 1.030,de 1890, fez surgir o Ministério Público enquantoinstituição necessária. Conta que a Constituição de1891 fez menção apenas ao Procurador-Geral daRepública, e que foi a Constituição de 1934 quecuidou mais detidamente da instituição. Previuinclusive sobre a estabilidade de seus membros e anecessidade de concurso público para ingresso nacarreira.

A CRFB/88 definiu, como dito, no artigo 127,o Ministério Público como instituição permanenteessencial à função jurisdicional do Estado. Elencouos princípios norteadores da instituição, bem comoampliou suas atribuições.

Muito se discute acerca da natureza jurídicado Ministério Público, chegando alguns doutrinadoresa denominá-lo como um quarto Poder da República,como lembra Pinho (2012). Entretanto, ele mesmodestaca as opiniões contrárias, as quais demonstramque a própria CRFB/88 em seu art. 2.°, só fazreferência a existência de Três Poderes, nãoinserindo o Ministério Público entre eles.

Theodoro Jr. (2005, p. 171) ressalta que oMinistério Público não integra o Poder Judiciário,

apesar de estar localizado no título quarto do textoconstitucional, o qual trata das funções essenciais àadministração da justiça, nem o considera como umpoder de soberania nacional. Defende que oMinistério Público “Figura entre os órgãos daAdministração Pública, pois realiza a tutela sobredireitos e interesses, não no exercício da jurisdição,mas sim sob forma administrativa.”.

Conclui Pinho (2012) que mais assertivo é oposicionamento doutrinário que percebe o MinistérioPúblico como uma Instituição que se encarrega dadefesa da sociedade e da fiscalização dos TrêsPoderes.

Carvalho (2002) lembra que a CRFB/88 fixacomo princípios institucionais do Ministério Públicoa unidade, a indivisibilidade e a independênciafuncional, sendo-lhe também assegurada aautonomia funcional e administrativa. Registra quea unidade significa que seus membros integram umúnico órgão e estão subordinados a direção únicado Procurador-Geral. A indivisibilidade implica nasubstituição de um promotor por outro de acordocom a lei. A independência funcional diz respeito anão sujeição às ordens de ninguém, devendo sesubmeter somente à Constituição, às leis e à própriaconsciência.

O artigo 129 da CRFB/88 elenca um rol deatribuições do Ministério Público. O dispositivo emepígrafe encerra o elenco das funções institucionaisdo Ministério Público abrindo um leque depossibilidades de atuação da Instituição, ao afirmar,no inciso IX, que compete-lhe “exercer outrasfunções que lhe forem conferidas, desde quecompatíveis com sua finalidade.”.

Essas “outras funções” estabelecidas pelaCRFB/88 para novas atribuições do MinistérioPúblico, serão conferidas por Leis Complementares,como a LC 75/93; e Leis Ordinárias federais, comoacontece com o Código Civil de 2002. Há tambéma previsão para que os Estados-membros possamregulamentar as atribuições do Ministério Públicomediante as Constituições Estaduais, como estãofixadas nos artigos 120 a 125 da ConstituiçãoEstadual de Minas Gerais, ou Leis Complementaresde competência dos Estados.

Além de titularizar a ação penal, funçãoprivativa da Instituição, Amendoeira Jr. (2012)lembra que o Código de Processo Civil brasileiro de1973 (CPC) prevê em seus arts. 81 a 852 as funçõesexercidas pelo Ministério Público no Processo Civil.

2 O autor faz referência ao CPC de 1973. Atualmente, o tema é tratado nos artigos 176 a 181 do Código de Processo Civil de 2015,instituído pela Lei 13.105, de 16 mar. 2015.

Page 16: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

16

Nesse contexto, destaca que o Ministério Públicopode atuar como parte ou como custos legis.Enquanto parte, o Ministério Público é autorizado asolicitar diretamente a tutela jurisdicional ao Estado.

Enquanto fiscal da Lei, não se comprometecom nenhuma das partes no processo, atua comointerveniente especial se comprometendo apenascom a ordem jurídica e o bem comum. A Leiprocessual brasileira prevê essa intervenção em trêscasos. Estabelece o art. 178 do CPC/2015, serobrigatória a intervenção do Ministério Público nascausas em que houver interesses de incapazes; nascausas que versem sobre interesse público e social;e nas ações que envolvam litígios pela posse de terrae ainda “nas hipóteses previstas em lei ou naConstituição Federal”.

Discute-se muito, atualmente, a atuação doMinistério Público preferencialmente na defesa dosdireitos coletivos. Considerados esses sempre quehouver interesse de toda a sociedade, ou de um gruposocial específico.

Pinho (2012) engrossa a discussão acentuandoque o art. 127 da Constituição Federal dispõe que éatribuição do Ministério Público a defesa “dosinteresses sociais”, e destaca que quando o legisladormenciona interesses sociais, substitui as expressõesinteresses coletivos, metaindividuais outransindividuais, bastante utilizados por ocasião daconstituinte.

E na atualidade, a partir da CRFB/88, observa--se que o Ministério Público incorporou esse papel.Fica evidente o compromisso da Instituição com adefesa dos interesses da coletividade, seja atuandoem juízo na defesa desses interesses, seja fora dele,na busca pela prevalência dos interesses dasociedade e do bem comum.

4 CURADORIA DE FUNDAÇÕES:DETALHAMENTO E JUSTIFICATIVAS

A estreita relação entre as fundações de direitoprivado e o Ministério Público está determinada peloCódigo Civil brasileiro de 2002 (CCB/02),corroborada pelas atribuições funcionais descritasna Constituição da República Federativa do Brasilde 1988 (CRFB/88), quando o define comoInstituição permanente, essencial à funçãojurisdicional do Estado.

O Ministério Público, enquanto curador defundações, detém participação fundamental naentidade. Participa da sua constituição, acompanharegularmente todo o seu funcionamento, fiscalizaseu patrimônio, os atos dos seus gestores, e ainda

pode requerer e acompanha necessariamente a suaextinção, nos termos do CCB/02.

Segundo Ferreira (1986, p. 511), a curadoriase refere ao “Cargo, poder ou função de curador;curatela.”. E, por sua vez, define curador comosendo a “Pessoa que tem, por incumbência legal oujudicial, a função de zelar pelos bens e pelosinteresses dos que por si não possam fazer. Aqueleque exerce a curadoria.”. E cita especificamente oexercício dessa função pelo Ministério Público.

Estabelece o art. 66 do CCB/02 que oMinistério Público deverá velar pelas fundações,exercer sua curadoria. Dentre as funçõesestabelecidas, para que esse velamento se efetiveestá a aprovação dos estatutos que regerão ainstituição.

Dispõe o art. 65 do CCB/02 que o estatuto dafundação deverá ser submetido “à aprovação daautoridade competente”. E a autoridade competentedescrita na Lei é o Ministério Público que, comodito, será o competente quando o estatuto forelaborado pelo instituidor ou por alguém de suaconfiança. Quando nenhuma das pessoasqualificadas elaborar o estatuto, caberá ao MinistérioPúblico a sua elaboração e a autoridade competentepara aprovação, nesse caso, passa a ser o PoderJudiciário.

O Estatuto somente poderá ser levado aregistro no cartório (Serviço Registral das PessoasJurídicas) competente se devidamente aprovado nascircunstâncias em assunto. Veja-se, portanto, que oMinistério Público exerce função primordial paraque a fundação adquira personalidade, visto que oregistro, que é o ato nascedouro da personalidade,só se efetiva com a referida aprovação do Curador.

Atua também o Ministério Público no exercícioda curadoria quando da alteração dos estatutos dafundação. Havendo necessidade de alterar as regrasinicialmente postas para a instituição, estabelece oart. 67 do CCB/02 que só se efetivarão as mudançasse partirem da deliberação de dois terços dosresponsáveis pela gestão, desde que não contrariea finalidade para a qual fora criada. As alteraçõespropostas deverão ser aprovadas pelo MinistérioPúblico, sem a qual não haverá possibilidade doregistro das modificações efetivadas no estatuto dafundação.

É também acometida ao Ministério Público,na função de velar pela fundação, a avaliação dosbens dotados para o desenvolvimento do objetoproposto pelo instituidor como destaca Tepedino(2004). Avaliará o curador se a dotação é suficientepara a consecução dos fins definidos pelo instituidor.

Page 17: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

17

Caso não sejam, serão destinados a uma instituiçãoque desenvolva atividade semelhante, comodetermina o art. 63 do CCB/02, se não houverorientação diversa no ato de instituição ou nosestatutos da fundação.

Atua também o Ministério Público nafiscalização das atividades desenvolvidas pelafundação a fim de garantir o pleno cumprimento desuas funções. Farias e Rosenvald (2014) defendema plena liberdade da Instituição na promoção dessafiscalização, atuando tanto internamente, na análisedos atos dos gestores, como também atuará contraterceiros que por ventura embarguem ou embaracemas atividade da fundação.

Segundo os autores (2014, p. 387) emreferência, “é a atuação fiscalizatória do promotorde Justiça, tendente a obstar a utilização da fundaçãopara fins ilícitos ou o desvirtuamento de seuspropósitos.”. E pode atuar tanto judicial comoextrajudicialmente na defesa dos interesses dainstituição curatelada.

Os bens da fundação são inalienáveis, comoobserva Gonçalves (2014, p. 244) “porque suaexistência é que assegura a concretização dos finsvisados pelo instituidor.”. Como destaca, ainalienabilidade dos bens não é absoluta, e cabe emregra uma autorização judicial para que a alienaçãoaconteça. E em alguns Estados o procedimentoautorizatório é administrativo, atribuição encampadapelo Ministério Público, como acontece em MinasGerais. Incumbe, portanto, ao Ministério Públicomineiro, a avaliação da viabilidade dessa alienação,bem como, a verificação da completa aplicabilidadeda renda auferida com a alienação, na própriainstituição.

O Ministério Público exerce também atividadefiscalizatória quando aprova ou rejeita as contas dafundação. A fundação privada, regularmente deveapresentar os relatórios contábeis e um balanço desuas atividades sociais para apreciação do Curador.

Em Minas Gerais, essa verificação se dá peloSistema de Cadastro e Prestação de Contas(SICAP), programa desenvolvido pelo Centro deEstudos de Fundações e Entidades de InteressesSociais (CEFEIS), entidade da qual o MinistérioPúblico mineiro é conveniado. O sistema faculta umacompanhamento maior e mais próximo dasatividades da fundação. O SICAP exige dainstituição fiscalizada, até 30 de junho de cada ano,a apresentação detalhada de relatórios contábeis,administrativos, de voluntariado, das atividadesdesenvolvidas para a consecução de seu objeto, bemcomo da gestão.

Além disso, em Minas Gerais o curador defundações acompanha as atividades dos gestores,verificando com rigor todas as atas dos órgãosresponsáveis pela gestão da instituição sob suacuradoria. Sem a aprovação do Ministério Público,as atas não são registradas, e, portanto não podemsurtir os efeitos legais que delas se esperam.

Pelas atribuições aqui elencadas se percebeuma atuação efetiva do Ministério Público emrelação às fundações, o que não se verifica nasdemais espécies de pessoa jurídica reconhecida peloordenamento jurídico pátrio. Conforme opinião deFarias e Rosenvald (2014), a proximidadefiscalizatória do Ministério Público em relação àfundação se dá por conta do interesse social presentena sua finalidade.

Nesse sentido, Rezende (2013, p. 111) elencaseis argumentos para explicar o porquê da curadoriaexercida nas fundações. Segundo ele, o exercícioda curadoria se justifica porque “o patrimônio quecompõe a fundação pertence à sociedade ou a umaparcela determinada desta”. Defende que após oregistro, a fundação adquire personalidade e opatrimônio destacado do instituidor dele se desprendenesse momento. E os bens da instituição passam apertencer à sociedade que deles vai usufruir, daí anecessidade do Ministério Público para verificaçãoda correta aplicação desse patrimônio.

Destaca, em segundo lugar, a inexistência depessoas na constituição da fundação. Nas demaispessoas jurídicas de Direito Privado, salvo a empresaindividual de responsabilidade limitada, é necessáriaa união de pessoas para sua instituição. A fundaçãoé um patrimônio personalizado; por isso, anecessidade de fiscalização do curador paraverificação da consecução de seu objeto.

Como terceiro argumento, ressalta que afundação presta serviço de interesse coletivo, a partirda finalidade fixada pelo instituidor. Normalmente,a atividade da fundação supre uma deficiência doEstado em determinados serviços e, por isso, deveser atendida.

Argumenta ainda que, como os interessadosnão integram a instituição, como ocorre nassociedades e nas associações, os responsáveis pelagestão da fundação devem ser acompanhados deperto para não desvirtuarem da finalidadeestabelecida pelo instituidor.

Registra também que com a prestação deserviço de interesse público, a fundação auferebenefícios fiscais e ou tributários, e para evitar queterceiros utilizem a instituição para usufruir dessesbenefícios, a curadoria se justifica.

Page 18: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

18

Por fim Rezende (2003) justifica o exercícioda curadoria para a garantia de que os serviços porela fornecidos não sofram restrições em função dafé, partido político ou qualquer outra ideologia,professadas pelo instituidor ou pelos administradores.

Em que pesem os argumentos dos autoresacima elencados, percebe-se um tratamentodesigual em relação às associações que tambémdesenvolvem atividades sem fins econômicos, e nãopoucas as vezes, de interesse coletivo. Pode tambéma associação receber os mesmos benefíciostributários ou fiscais que a fundação, beneficiar-sede verbas públicas, quando reconhecida comoentidade de utilidade pública, e ainda assim, não estásujeita à curadoria do Ministério Público.

Nesses termos, vale o contraponto registradopor Coelho (2006, p. 257/258). Segundo ele, o únicopropósito da curadoria das fundações seria somentea garantia da proteção ao direito de propriedade doinstituidor. Um resquício do patrimonialismo eindividualismo do Código Civil de 1916, “cujapertinência à realidade econômica e social dos nossostempos é altamente questionável, inclusive sob oponto de vista da constitucionalidade.”.

Coelho (2006) argumenta que como oinstituidor retirou do seu patrimônio, bem específicopara atender a determinada finalidade, sua vontadedeve ser respeitada, e por isso questionável seapresenta a curadoria de fundações, pois colocariao Ministério Público como guardião da vontade edo patrimônio particulares.

Contudo, justificar-se-ia a curadoria dasfundações pelo Ministério Público somente quandofossem instituídas por ato causa mortis. Nessacircunstância, o instituidor não estará presente parafazer valer a sua vontade, e caberia a alguém aefetivação dessa vontade.

Determinava o art. 82, II do CPC/73 que cabiaao Ministério Público atuar nas causas que versavamsobre disposições de última vontade para efetivaçãodo princípio o qual determina que as disposições deúltima vontade devem ser cumpridas (a Lei 13.105,de 16 de março de 2015, ao instituir o Novo Códigode Processo Civil, não repetiu o dispositivo). Nessecontexto, embora não haja um procedimento judicial,o exercício da curadoria pelo Ministério Público eraplenamente aceitável, especialmente, quando o fiminstituído para a fundação fosse a execução de umaatividade de interesse público.

Ao contrário, quando a fundação for instituídapor ato inter vivos, a curadoria não se justifica, vezque o instituidor poderá por si próprio fiscalizar asatividades da instituição, mesmo que não atue em

sua gestão, tanto quanto os associados podem fazê--lo na associação. Caberia também ao poder públicoa fiscalização em âmbitos gerais como já efetivanas demais espécies de pessoa jurídica de direitoprivado.

Se a motivação para a curadoria for apenas aexecução de uma atividade de interesse público,factível a sua extensão a toda instituição que tenhapor objeto atividades dessa natureza. Com amanutenção da curadoria limitada à fundação, háuma autorização para reforçar os argumentostrazidos por Coelho (2006) de que a culturaindividualista e patrimonialista do Código Civil de1916 perpetua na vigência da nova ordem jurídicaimposta pela CRFB/88, e que a motivação dacuradoria é mesmo uma ideia equivocada.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As fundações, como pessoa jurídica de direitoprivado, possuem elementos que lhes são peculiares,que as distinguem das demais espécies.Notadamente, a inexistência do agrupamento depessoas para sua instituição, a personificação deum patrimônio e o exercício da curadoria peloMinistério Público.

A doutrina estabelece vários argumentos quejustificam o exercício dessa curadoria somente paraas fundações, ora fundamentados na finalidade paraqual fora criada, por envolver o interesse público;ora fundamentados em elementos estruturais, apersonalização de um patrimônio ou o destaque debens do instituidor para consecução de umafinalidade.

Contudo, após os estudos aqui realizados,acredita-se que nenhum desses fundamentosjustifica o exercício da curadoria exclusivamentedestinada às fundações, visto que se afundamentação prevalente for o desenvolvimentode atividade de interesse público, outras instituiçõesestão igualmente autorizadas a desenvolvê-las e nãosão agraciadas com o mesmo interesse do MinistérioPúblico.

No que concerne aos argumentos pertinentesaos elementos estruturais, também guarida nãoencontram na atual ordem jurídica, pois o MinistérioPúblico é órgão de defesa dos interesses dacoletividade; e, não, do patrimônio de particulares.

Caso essa configuração da curadoria exercidaapenas em relação à fundação se perpetue,perpetuar-se-á também uma atuação seletiva edesigual por parte do Ministério Público, o quedistancia do objetivo da Instituição que é zelar pelo

Page 19: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

19

interesse da sociedade em geral ou, pelo menos,parte considerável dela.

Possível seria, entretanto, sua atuação somentequando a instituição da fundação se der mediantetestamento, pois ao Ministério Público cabe afiscalização da efetivação das disposições de últimavontade, principalmente quando essas disposiçõesse destinarem à execução de atividade que atendaaos interesses da coletividade. Tem-se, portanto, porrefutadas as hipóteses inicialmente levantadas deque a curadoria do Ministério Público se destinaespecificamente à fundação por executar atividadesde interesse público ou porque não há presença doinstituidor na pessoa jurídica por ele instituída.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução.5. ed. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 2003.

AMENDOEIRA JÚNIOR, Sidnei. Manual dedireito processual civil. v. I. 2. ed. São Paulo:Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.

BRASIL. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973.Institui o Código de Processo Civil. DiárioOficial [da] República Federativa do Brasil,Brasília, DF, 17 jan. 1973.

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.Institui o Código Civil. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11jan. 2002.

BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.Código de Processo Civil. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17mar. 2015.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito

constitucional didático. 8. ed. Belo Horizonte:Del Rey, 2002.

CENTRO DE ESTUDOS DE FUNDAÇÕES EENTIDADES DE INTERESSE SOCIAL –CEFEIS. Disponível em: <http://www.fundata.org.br/cefeis.htm>. Acesso em: 15ago. 2014.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil.v. I. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD,Nelson. Direito civil: teoria geral. 12. ed.Salvador: Jus Podium, 2014.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novodicionário aurélio. 2. ed. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1986.

GANGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso dedireito civil: parte geral. 14. ed. São Paulo:Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civilbrasileiro. v. I. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MORAES, Alexandre de. Direitoconstitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direitoprocessual civil contemporâneo. v. I. 4. ed. SãoPaulo: Saraiva, 2012.

RESENDE, Tomaz de Aquino. Roteiro doterceiro setor: associações e fundações. 2. ed.Belo Horizonte: Newton Paiva, 2003.

TEPEDINO, Gustavo. Código civil: interpretadoconforme a Constituição da República. v. I. Riode Janeiro/ São Paulo/ Recife: Renovar, 2004.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso dedireito processual civil. v. I. 43. ed. Rio deJaneiro: Forense, 2005.

Page 20: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

20

Page 21: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

21

RESUMO

O presente artigo analisa o conteúdo das decisõesjudiciais em Mandados de Injunção, levando-se emconsideração o paradigma do Estado Democráticode Direito e o Pós-Positivismo, permeados pelanoção de separação dos Poderes, e a novaHermenêutica Constitucional, que pensa aconcepção de criação e interpretação das leispautadas pela observância dos princípiosnormativos. Dessa forma, a compreensãohermenêutico-fenomenológica levinasiana oferecesua contribuição para o pensamento oradesenvolvido, uma vez que deve ser consideradapara a plena efetivação e materialização da Justiça,especialmente no que tange aos Mandados deInjunção, a observância da dimensão da alteridadecomo elemento essencial para a configuração detoda a decisão judicial, sendo elemento imanentedo ato de julgar e da atuação virtuosa domagistrado.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito.Princípios constitucionais. Pós-Positivismo.Hermenêutica Constitucional. Mandado deInjunção. Ativismo judicial. Ética universal.Alteridade. Rosto do outro. Emmanuel Lévinas.

THE CONTENT OF JUDGMENTS INWRIT OF INJUNCTION:

CONSTITUTIONAL AND LEVINASIANNOTES

ABSTRACT

This article analyzes the content of judgmentsin writ of injuction, taking into account theparadigm of the Democratic State of Law andthe Post-positivism, permeated by the notion ofseparation of Powers, and the new ConstitutionalHermeneutics, which considers the creation and

O CONTEÚDO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM MANDADOS DE INJUNÇÃO:apontamentos levinasianos e constitucionais

Débora Pereira Turchetti1

Rafael Soares Duarte de Moura2

interpretation of laws guided by compliance withthe regulatory principles. Therefore, thephenomenological hermeneutic levinasianunderstanding offers its contribution to the thoughtnow developed, since it should be considered forfull fulfillment and materialization of Justice,specially regarding the writ of injunction, theobservance of the dimension of alterity as anessential element for the configuration of everyjudicial decision, as immanent element of act ofjudging and of virtuous acting of the magistrate.

Keywords: Democratic State of Law.Constitutional principles. Post-positivism.Constitutional Hermeneutics. Writ of injunction.Judicial Activism. Universal Ethics. Alterity. Faceof the other. Emmanuel Lévinas.

1 INTRODUÇÃO

Pretende-se desenvolver uma reflexão pormeio de apontamentos jusfilosóficos econstitucionais sobre as decisões judiciais emMandados de Injunção e suas tendências. Paratanto, far-se-á uma breve introdução sobre osparadigmas de Estado e os princípios constitucionais,necessária para a compreensão da atuação estatale da Hermenêutica no Pós-Positivismo, que apregoaser a interpretação do Direito circunstancial.Posteriormente, discorrer-se-á sobre alguns aspectosdo Mandado de Injunção e do ativismo judicial.Somente após, estar-se-ão habilitados a aprofundaro estudo acerca do conteúdo das decisões judiciaisem Mandados de Injunção, e, consequentemente, alegitimidade e a qualidade das normas decorrentesdessas decisões.

O estudo será permeado pela abordagem deconceitos hermenêutico-filosóficos que apontempara valores e princípios, visando ao desvelar deuma ética universal que seja compreendida no Pós--Positivismo.

1 Mestre em Direito pela UFMG. Servidora pública, bacharela em Direito pela UFMG.2 Mestre em Direito pela UFMG. Doutorando em Direito Constitucional pela UnB. Bacharel em Direito pela UFMG. Coorde-nador do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho. Professor de Direito Constitucional.

Page 22: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

22

Dessa forma, nada mais contemporâneo doque estudar Emmanuel Lévinas, que sustenta serna alteridade, ou seja, no exercício pleno doegoísmo ético para com o outro, o meio darevelação de uma ética de coexistência pacíficaque visa, teleologicamente, a plena efetivação doreconhecimento e da Justiça, em que o Rosto dooutro se apresenta como o início e o fim de toda equalquer reflexão. Essa Justiça se corporificaquando da análise da qualidade e legitimidade dasnormas decorrentes das decisões judiciais, dentreas quais se acham os julgados sobre os Mandadosde Injunção.

2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES:OS PARADIGMAS DE ESTADO E OSPRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A doutrina tradicionalmente diferencia trêsprincipais paradigmas: (a) do Estado de Direitoou Estado Liberal; (b) do Estado Social, ou deBem-Estar Social ou Providência; e (c) do EstadoDemocrático de Direito.

O Estado de Direito, que rompeu com oparadigma antigo ou medieval, foi instituído naModernidade, fortemente influenciado pelos ideaisburgueses e pelos autores como Locke eMontesquieu. Nele, todos os homens eram livrese a ideia de liberdade se assentava na de igualdade,uma vez que todos eram proprietários, no mínimo,de si próprios, podendo se autodeterminar damaneira que melhor lhes conviesse.

Pela primeira vez, existiu um ordenamentojurídico único constituído de leis gerais e abstratasválidas para todos, sendo, então, consagrado o idealde igualdade formal. Prevalecia, dessa forma, oEstado mínimo não intervencionista, liberal. Aimparcialidade do juiz repousava na sua cegueira,isto é, na aplicação mecânica das leis, ou seja, nasubsunção formal da lei positiva ao caso concreto.

O paradigma se tornou insustentável diantedas inúmeras reivindicações das classes operáriase de alguns setores mercantis, que propugnavama existência de leis que garantissem benefíciossociais, notadamente aqueles atinentes ao ambientede trabalho. Essas reivindicações resultaram daspráticas mercantis, oriundas do processo deRevolução Industrial e de intensa exploração damão de obra, em meio a extenuantes jornadas detrabalho remuneradas com baixíssimos salários, quegerou uma camada social caracterizada pelapobreza intensa.

O Estado Social, instituído após a Primeira

Guerra Mundial, rompeu com os parâmetrosidentificadores do Estado Liberal. No EstadoSocial, a liberdade se assentava não somente naigualdade formal, mas também na igualdadematerial, por meio do reconhecimento do papelfundamental do Estado enquanto garantidor de todauma pacificação social.

Prevalecia, então, o Estado intervencionista,atuante, que instituía políticas públicas focadas naredução de diferenças materiais entre as pessoas,com a consequente proteção dos estratos sociais,notadamente dos mais vulneráveis, por meio deleis, como as leis do Direito do Trabalho ou daPrevidência Social. A propriedade era condicionadaao exercício de sua função social. O maior desafiodo Estado Social era construir uma cidadania, umavez que a população carecia, desde o início, damaterialidade de seus direitos.

O Estado Democrático de Direito pressupõeum Estado em que se viva sob o primado do Direito,democraticamente estabelecido, em que haja oimpério da vontade do povo soberano, de quemdecorre todo e qualquer poder, exercido por meiode representantes, ou diretamente, através demecanismos tais como plebiscito e referendo. Alegitimidade das normas jurídicas está associada àvontade do povo soberano.

Esse paradigma instituiu os direitos de 3.ªgeração, tais como os presentes no DireitoAmbiental, no Direito ao Patrimônio Histórico eno Direito do Consumidor, que protegem interessesdifusos e refogem à dicotomia entre público eprivado. No seio do Estado Democrático de Direitoexiste o Pluralismo, uma vez que há uma grandecomplexidade social.

Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 928),assim definem o Pluralismo:

Na linguagem política chama-se assim aconcepção que propõe como modelo asociedade composta de vários grupos oucentros de poder, mesmo que em conflitoentre si, aos quais é atribuída a função delimitar, controlar e contrastar, até o pontode o eliminar, o centro do poder dominante,historicamente identificado com o Estado.

A sociedade atual é altamente complexa epluralista. Ora, coexistem harmonicamente váriosgrupos de indivíduos na sociedade, e cada indivíduopode se identificar, simultaneamente, com váriosgrupos. Como consequência, existem vários gruposde emanação de poder. Assim, pode-se afirmarque o Pluralismo não é uma opção política, mas

Page 23: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

23

uma realidade nas sociedades contemporâneascomplexas.

Consequência lógica da sociedade pluralistaé o Estado Pluralista, que, nos ensinamentos deBobbio, é simplesmente o Estado divido em partes,em que não existe uma fonte única de autoridadeque seja competente em tudo.

Uma importante teoria sobre o EstadoPluralista é a do italiano Massimo Severo Giannini,denominada Estado Pluriclasse, cuja característicamarcante seria atender simultaneamente aosmúltiplos interesses, representados de formapluralizada. Neste sentido, Moreira Neto (2011)afirma que o Estado Pluriclasse de Giannini nadamais é do que o atual denominado EstadoDemocrático de Direito.

Assim, é natural que também o Direitocontemporâneo seja complexo e oconstitucionalismo moderno se preocupeprincipalmente com os limites dos poderes doEstado. Assim, a divisão de Poderes consiste emconfiar cada uma das funções governamentais aórgãos diferentes, que tomam os nomes dasrespectivas funções, menos o Judiciário (SILVA,2005, p. 108). Em outras palavras, o sistema deseparação de Poderes é a divisão funcional dopoder político do Estado nos Poderes Legislativo,Executivo e Judiciário, independentes e harmônicosentre si, com a delegação de cada atribuiçãogovernamental básica a um órgão especializado,visando exatamente preservar os limites dospoderes do Estado.

Cada um dos três Poderes limita a força dopoder dos outros, formando o sistema de freios econtrapesos. Busca-se o equilíbrio necessário àrealização do bem da coletividade, indispensávelpara evitar o arbítrio e o desmando de um emdetrimento do outro, especialmente dos governados(SILVA, 2005, p. 110). Portanto, a harmonia entretais Poderes não significa domínio nem usurpação,mas sim colaboração e controle recíproco, a fimde evitar distorções.

Não se olvide, entretanto, que tal princípionão é absoluto e possui, assim, exceções como,por exemplo, a possibilidade de adoção peloPresidente da República de Medidas Provisórias,com força de lei; e a autorização de delegação deatribuições legislativas ao Presidente da República.

É notório que o Estado visa ao atendimentoao interesse público em todas as suas esferas ePoderes. O Legislativo, ao editar uma lei; oExecutivo, ao administrar os bens e serviçospúblicos; e o Judiciário, ao decidir as pretensões

que lhe são submetidas, visam ao atendimentodo interesse público e da vontade do povosoberano.

Diante deste contexto, um interesse públiconão pode mais ser observado isoladamente, masdeve ser observado em conjunto com os demaisinteresses. Verifica-se, assim, a existência de uminteresse público primário e um interesse públicosecundário, sendo o interesse público primário ointeresse ligado diretamente ao órgão atuante e ointeresse público secundário o interesse ligado aoutros órgãos.

No atendimento do bem comum, que éobjetivo do Estado, a realização do interesseprimário deve-se levar em consideração os outrosinteresses intervenientes no caso concreto, de modoque os interesses de todas as esferas de governodevem ser observados. Neste sentido, BatistaJúnior (2004, p. 94-95) leciona (sendo que “AP”contido no texto significa “AdministraçãoPública”):

A cada um dos órgãos, entidades ou uni-dades que participam da AP, ou que mirema prossecução do bem comum, é atribuídolegalmente, pelo menos, singular interessepúblico primário a ser atingido.Considerando o fato de que a missão pri-meira da AP é a prossecução do bem co-mum, a função administrativa disposta paraa identificação e a prossecução dos inte-resses públicos estabelecida pelas normasé atividade de comparação e de escolhadentre os vários interesses a satisfazer esacrificar em prol do bem comum.Em substância, firmamos que o interesseprimário é aquele previsto pela lei atributivado poder; os interesses secundários sãoaqueles presentes, eventualmente, nasituação concreta, decorrentes do complexodo ordenamento jurídico, e que interferemna decisão administrativa, embora não afundamentem diretamente.

A conclusão que se chega é que o Pluralismonão pode ser desconsiderado na atuação do Estadolato sensu, isto é, dos seus três Poderes, já queele evidencia os diversos interesses públicosexistentes e se afirma contra a concepção quecontraponha o indivíduo singular ao Estado.Destaquem-se as seguintes lições:

O que distingue o Pluralismo das restantesdoutrinas antiestatalistas é que ele se afirmapolemicamente contra toda a forma deconcepção individualista da sociedade e do

Page 24: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

24

Estado, isto é, contra toda a concepção quecontraponha o indivíduo singular aoEstado, porquanto considera o estatalismoe o individualismo como duas faces damesma medalha, isto é, como duasconcepções que, embora de dois pontosde vista diversos, tendem a marginalizar ouaté mesmo a eliminar as formações sociaisque ocupam o espaço intermédio entre osdois pólos extremos do indivíduo e doEstado (BOBBIO; MATTEUCCI;PASQUINO, 1998, p. 928).

Neste contexto, surge o Pós-Positivismo, quenada mais é do que a tentativa de síntese entre ojusnaturalismo e o positivismo clássico, propondouma aproximação entre o Direito e a ética, queganhou grande relevância após a Segunda GuerraMundial.

O Pós-Positivismo traz como consequências:a superação do normativismo, o retorno dos valores,o reconhecimento da normatividade dos princípios,a ponderação de princípios, a ponderação deinteresses, a essencialidade dos direitos fundamentaise a nova Hermenêutica Constitucional.

Dito isso, pode-se compreender que osprincípios constitucionais são de grande relevânciana avaliação da legitimidade não só das normasjurídicas, mas também dos atos da administraçãolato sensu, como se demonstrará a seguir.

A concepção acerca dos princípios foievoluindo ao longo do tempo, sendo que a doutrinacontemporânea, pós-positivista, conferenormatividade aos princípios. Ao contrário do quemuitos pensam, a ordem jurídica fundada emprincípios não é insegura, uma vez que eles é quevão buscar a realização da Justiça Material no casoconcreto. Neste sentido, são as lições próximas:

Com os princípios jurídicos, a interpretaçãodo Direito deixa de ser um mero silogismo;requer-se do intérprete-aplicador não maisa mera subsunção de um fato à regra legalprevista, mas a verdadeira “construção” danorma jurídica aplicável ao problemajurídico, cuja solução se requer, dentro daspossibilidades normativas permitidas pelorespectivo quadro jurídico-positivo.Os princípios, além de atenderem à próprianatureza ontológica do Direito comofenômeno sociocultural, consubstanciam aafirmação dos valores reconhecidos pelasdiferentes sociedades, o que os transformaem instrumento de fundamental valia no quetange à evolução do Direito positivo para aregulação de novos fenômenos sociais. Osprincípios jurídicos representam a fórmula

jurídico-positivista que permite apermanente adaptação dos textos jurídicosà realidade social subjacente.[...].O surgimento e a afirmação de uma ordemjurídica fundada em princípios, e não emregras pretensamente unívocas, longe estáde revelar insegurança jurídica,característica de uma época de declínio doDireito. Pelo contrário, reconhecer anormatividade dos princípios jurídicos éresgatar a riqueza do fenômeno jurídicocomo instância da realidade social.Portanto, o reconhecimento dapositividade dos princípios jurídicos éfundamental para o regular funcionamentoda ordem jurídica, pois é precisamenteatravés deles que o Direito revela a suafunção primordial, qual seja, a regulaçãodas condutas humanas buscando arealização de justiça material (PONTES, 2000,p. 30-31, Grifos nossos).

Desse modo, comprova-se que o estudo dosprincípios é essencial na doutrina contemporânea,uma vez que além de eles possuíremnormatividade, eles são norteadores doordenamento jurídico. Como bem esclareceBonavides (2004, p. 258):

Sem aprofundar a investigação acerca dafunção dos princípios nos ordenamentosjurídicos não é possível compreender anatureza, a essência e os rumos doconstitucionalismo contemporâneo.

A Constituição da República Federativa doBrasil de 1988 (CR/88), inserida no paradigma deEstado Democrático de Direito, é compreendidacomo uma Constituição principiológica e, com isso,faz-se necessária uma releitura da interpretaçãodos institutos jurídicos de todas as áreas do Direito,em consideração aos princípios constitucionais.Surgem, assim, o Direito Civil Constitucional, oDireito Processual Constitucional, entre outros. Emtodas as áreas, os princípios possuem carátersuperior e vinculante, criando uma novaHermenêutica.

Portanto, pode-se afirmar que se um atoda Administração lato sensu fere um princípio,ele é antijurídico, inferindo-se, assim, que atendência da atuação estatal lato sensu (dosPoderes Legislativo, Executivo e Judiciário) éser cada vez mais preocupada com a juridicidadeao invés de se preocupar simplesmente com alegalidade.

Page 25: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

25

3 O MANDADO DE INJUNÇÃO E OATIVISMO JUDICIAL

A Constituição da República Federativa doBrasil de 1988 assim dispõe, em seu art. 5.°, incisoLXXI: “conceder-se-á Mandado de Injunçãosempre que a falta de norma regulamentadora torneinviável o exercício dos direitos e liberdadesconstitucionais e das prerrogativas inerentes ànacionalidade, à soberania e à cidadania”. Referidodispositivo tem sido alvo de grande controvérsia,tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátrias,em especial em relação ao conteúdo das decisõesjudiciais nos processos de Mandado de Injunção.

O Supremo Tribunal Federal (STF) adotou,num primeiro momento, a corrente doutrinária nãoconcretista ao conferir ao Mandado de Injunção afunção de tão-somente declarar a ocorrência daomissão inconstitucional e comunicar ao órgãoomisso para as devidas providências. Neste sentidofoi o MI 107/DF, de Relatoria do Ministro MoreiraAlves, julgado em 21/11/90, publicado no Diáriodo Judiciário de 02/08/91. No entanto, ao evoluirsua jurisprudência, o STF foi progressivamenteconferindo maior concretude ao Mandado deInjunção, adotando mais recentemente a correntedoutrinária concretista geral.

Um dos argumentos favoráveis à conferênciade maior concretude ao Mandado de Injunção, quedefendem os autores deste artigo, é a exigênciado respeito ao direito de ação, previsto no incisoXXXV do art. 5.° da CR/88, que deve garantir oacesso à Justiça de modo efetivo. Isso porque taldireito fundamental, que é uma decorrência domonopólio da atividade jurisdicional pelo Estado,assegura que qualquer pessoa física ou jurídica que,porventura, tenha o seu direito ameaçado ou lesado,possa acionar o Poder Judiciário, que deverá dizero direito no caso concreto. Por isso, limitar-se aconfirmar a omissão inconstitucional e a comunicartal fato ao órgão omisso não garantiria a efetividadedo acesso à Justiça, uma vez que o Direito nãoestaria sendo dito, ou, em outras palavras, o conflitonão estaria sendo solucionado.

Entendimentos recentes do STF, a exemplodo MI 708/DF, de Relatoria do Ministro GilmarMendes, julgado em 25/10/2007, publicado no DJe--206 de 31/10/2008, em que a maioria dos Ministrosdeterminou a aplicação, no que coubesse, de leispré-existentes, in casu, as Leis n. 7.701/88 e n.7.783/89, que dispõem, respectivamente, sobre aespecialização de Turmas dos Tribunais do Trabalhoem processos coletivos e sobre o exercício do

direito de greve, ambas relativas ao regime celetista,enquanto persistisse a omissão.

Referida decisão é de extrema relevância, poisa aplicação das leis pré-existentes não se restringiuapenas aos impetrantes, mas a todos os servidorespúblicos, porquanto foi conferido efeito erga omnesà decisão, levando-se em consideração a recorrênciado tema no Judiciário. Seguindo o mesmo raciocínio,o STF também julgou o MI 670/ES, de Relatoria doMinistro Maurício Corrêa, cujo Relator para oAcórdão foi o Ministro Gilmar Mendes, e o MI 712/PA, de Relatoria do Ministro Eros Grau, ambosjulgados em 25/10/2007, e publicados no DJe-206de 31/10/2008.

Tais julgamentos acalentaram as discussõessobre o ativismo judicial, que é uma maiorinterferência do Poder Judiciário no espaço deatuação dos Poderes Legislativo e Executivo. Sãoexemplos de ativismo judicial as citadas decisõesde Mandado de Injunção relativas ao direito degreve dos servidores públicos; a edição de SúmulaVinculante sobre o nepotismo, após o julgamentode um único caso; e as inúmeras decisões judiciaisdeterminando a distribuição de medicamentos.

Paralelamente ao ativismo judicial, há ajudicialização, que é a decisão pelos órgãos doPoder Judiciário, em vez das instâncias políticastradicionais, de questões de grande repercussãopolítica ou social. O ativismo judicial vai além dajudicialização, pois no ativismo, o Poder Judiciáriodecide além de suas competências.

Interessante citar alguns dos argumentoscitados, em decisão monocrática, pelo MinistroCelso de Mello para a interferência do Judiciário,quando configurada hipótese de abusividadegovernamental, in verbis:

Em princípio, o Poder Judiciário não deveintervir em esfera reservada a outro Poderpara substituí-lo em juízos de conveniênciae oportunidade, querendo controlar asopções legislativas de organização eprestação, a não ser, excepcionalmente,quando haja uma violação evidente earbitrária, pelo legislador, da incumbênciaconstitucional.No entanto, parece-nos cada vez maisnecessária a revisão do vetusto dogma daSeparação dos Poderes em relação aocontrole dos gastos públicos e da prestaçãodos serviços básicos no Estado Social,visto que os Poderes Legislativo eExecutivo no Brasil se mostraram incapazesde garantir um cumprimento racional dosrespectivos preceitos constitucionais.

Page 26: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

26

(ADPF 45 MC / DF, decisão monocráticado Relator Ministro Celso de Mello, julgadaem 29/04/04, publicada no Diário doJudiciário de 04/05/04).

Os críticos do ativismo judicial enxergam umainterferência indevida no Legislativo e noExecutivo e uma consequente quebra de harmoniaentre os três Poderes. Aponta-se, assim, um riscopara a legitimidade democrática. Destaque-se quemesmo os críticos do ativismo judicial admitem queele é resultado principalmente da inércia doLegislativo.

Por outro lado, os defensores do ativismojudicial argumentam que o Judiciário está sujeitoàs normas do Legislativo e do Executivo, uma vezque está inserido no sistema de freios e contrapesos,e que ele, como guardião da Constituição, deveassegurar o respeito às suas normas a todo o custo,inclusive, invadindo competências dos outrosPoderes caso seja necessário, leia-se, em caso deinércia ou abuso. Argumentam ainda que essasinvasões nas competências dos outros Poderes sãoautorizadas em ocasiões especialíssimas,configurando uma exceção à atuação do Judiciário.

De qualquer modo, verifica-se que oLegislativo fica encurralado entre duas tendências:a do Poder Executivo em legislar por meio deMedidas Provisórias, Decretos, Portarias,Resoluções, entre outros, e a do Poder Judiciárioem decidir as questões que lhe são levadasativamente.

Enfim, sem aprofundar na discussão sobre oativismo judicial, tarefa que demandaria um estudoexclusivo, apenas se constata sua existência e selimita a analisar criticamente o conteúdo dasdecisões judiciais em Mandados de Injunção e,consequentemente, a legitimidade e a qualidade dasnormas decorrentes de tais decisões.

4 O CONTEÚDO DAS DECISÕES EMMANDADOS DE INJUNÇÃO E ALEGITIMIDADE E A QUALIDADEDAS NORMAS DECORRENTESDESSAS DECISÕES

O art. 4.º da Lei de Introdução ao CódigoCivil dispõe que quando a lei for omissa, o juizdecidirá o caso de acordo com a analogia, oscostumes e os princípios gerais do Direito. Esseartigo associado ao direito de ação leva à certezade que ao juiz não é facultado deixar de proferirqualquer decisão, mesmo que se faça necessário

recorrer à analogia, conjunção de textos normativos,decisões de casos semelhantes, bem como aoscostumes, aos princípios gerais de direito e, porfim, à equidade.

A análise das decisões judiciais dos MI 708/DF, MI 670/ES, e MI 712/PA revela que elas nãosó observaram o art. 4.° da Lei de Introdução aoCódigo Civil, como também solucionaram o conflitoque foi submetido ao Judiciário, qual seja, a omissãoinconstitucional de legislação regulamentadora doexercício do direito de greve dos servidorespúblicos.

Pelo exame das decisões, como já destacadoanteriormente, verifica-se que o STF adotou acorrente doutrinária concretista geral, que defendeser o Supremo Tribunal Federal competente para,no caso da omissão do Legislativo, legislar, comefeito erga omnes, até que sobrevenha normaintegrativa editada pelo Legislativo. Desse modo,a decisão judicial é apenas uma solução temporária,o que reforça a tese de que essas situações sãoexcepcionais e, consequentemente, não ferem oprincípio da separação dos Poderes.

Vale destacar que Di Pietro (2008), ainda queseja adepta da corrente doutrinária concretistaindividual, que vê o Judiciário como legitimado alegislar, na omissão do Legislativo, apenas comefeito inter partes, defende que a conferência decaráter temporário a essas decisões judiciais feririaa coisa julgada, prevista no art. 5.°, XXXVI, daCR/88.

Observa-se que a determinação de que adecisão judicial permaneça até que sobrevenhanorma integrativa editada pelo Legislativo, aindaque possa gerar certa insegurança, por ferir a regrada coisa julgada, é a tese que mais respeita aseparação dos Poderes e o princípio democrático.Isso porque o órgão legitimado para criar normasjurídicas é o Legislativo, eleito pelo povo soberano,para fazer valer suas vontades. O Judiciáriosomente está legitimado a legislar em situaçõesexcepcionais.

No contexto do Estado Democrático deDireito em que vivem o povo atual, quando umadas maiores preocupações do Direito é a limitaçãodos poderes do Estado e a legitimidade das normasjurídicas, entende-se ser o princípio da separaçãodos Poderes mais relevante que a coisa julgada,que, inclusive, vem sendo relativizada porimportantes doutrinadores, em hipótesesexcepcionais, levando em consideração osprincípios constitucionais, norteadores doordenamento jurídico.

Page 27: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

27

Ademais, como já mencionado, entende-seque caso o Judiciário adote a posição nãoconcretista, julgando pela simples constatação daomissão legislativa nos Mandados de Injunção, odireito de ação estará sendo ferido. Isso porque oJudiciário deve solucionar os conflitos que lhe sãopostos, ainda que para tanto precise recorrer àanalogia, à conjunção de textos normativos, àsdecisões de casos semelhantes, aos costumes, aosprincípios gerais do Direito e à equidade.

Neste sentido, Bobbio (1994) ensina que osordenamentos jurídicos em que ou o juiz não éobrigado a julgar todos os casos ou o juiz não éobrigado a julgar com base em lei são completáveisa todo tempo. Veja-se:

[...] a completude é uma condição necessáriapara os ordenamentos em que valem estasduas regras:1) o juiz é obrigado a julgar todas ascontrovérsias que se apresentarem a seuexame;2) deve julgá-las com base em uma normapertencente ao sistema.Entende-se que, se uma das duas regrasperder o efeito, a completude deixará de serconsiderada como um requisito doordenamento. Podemos imaginar dois tiposde ordenamentos incompletos, caso falte aprimeira ou a segunda regra. Numordenamento em que faltasse a primeiraregra, o juiz não teria que julgar todas ascontrovérsias que lhe fossem apresentadas:poderia pura e simplesmente repelir o casocomo juridicamente irrelevante, com umjuízo de non liquet (não convém). Paraalguns, o ordenamento internacional é umordenamento deste tipo: o juiz internacionalteria a faculdade, em alguns casos, de nãoculpar nem desculpar a nenhum doscontendores, e esse juízo seria diferente(mas é discutível que o seja) do juízo dojuiz que daria a culpa a um e a razão aooutro, ou vice-versa. Num ordenamento noqual faltasse a segunda regra, o juiz seria,sim, levado a julgar cada caso, mas não seriaobrigado a julgá-lo baseado em uma normado sistema. É o caso do ordenamento queautoriza o juiz a julgar, na falta de umdispositivo de lei ou da lei dedutível,segundo a equidade. Podem-se considerarordenamentos desse tipo o ordenamentoinglês e, em medida reduzida, o suíço, queautoriza o juiz a resolver a controvérsia, nafalta de uma lei ou de um costume, como seele mesmo fosse legislador. Dá pra entenderque num ordenamento onde o juiz estáautorizado a julgar segundo a equidade, não

tem nenhuma importância que oordenamento seja preventivamentecompleto, porque é a cada momentocompletável (BOBBIO, 1994, p. 116-119,passim).

Dito isso, vale relembrar que as normasjurídicas devem ser aceitas pelos seus destinatários(legitimidade), devem ser observadas (efetividade),e devem cumprir os seus objetivos, possibilitandoo exercício do direito ou da sanção nelas previstos(eficácia). E, se considera que as normasdecorrentes das decisões judiciais em Mandadosde Injunção são dotadas de legitimidade, uma vezque o Judiciário não pode deixar de cumprir o seudever constitucional que é solucionar os conflitos,sob o pretexto de evitar ferir a harmonia entre osPoderes, na medida em que o Judiciário pode edeve solucionar os conflitos que lhe são levadosem Mandados de Injunção ainda que necessite,para tanto, legislar.

Ressalte-se que existem mecanismos hábeisa aumentar ainda mais a legitimidade das decisõesdo Judiciário, que já vem sendo utilizadas pelo STF,como, por exemplo, as audiências públicas, namedida em que a participação dos interessados nasdecisões permite uma maior aproximação entre asdecisões judiciais e a vontade do povo soberano.

Ultrapassado esse ponto, admitindo-se alegitimidade das decisões judiciais em Mandadosde Injunção e, consequentemente, das normasdelas decorrentes, pode-se ponderar sobre aqualidade de tais normas.

Uma opção contemporânea para a análiseda qualidade das normas jurídicas é sob o olhar daLegística, que, em apertada síntese, é a ciência dalegislação. A Legística estuda a legislação desde oimpulso para legislar até a sua aplicação e objetivaa qualidade da lei lato sensu. Ela é uma disciplinarelativamente nova e interdisciplinar, envolvendoaspectos do Direito, da Política, da Linguística, entreoutros.

Assim, diversos doutrinadores da Legísticapropõem métodos para a racionalização daprodução normativa. Entretanto, por mais que sereconheça o enorme mérito da Legística namelhoria da legislação, considera-se que ela aindanão supre todas as indagações acerca da qualidadedas normas jurídicas. Ora, ainda que a norma sejaclara, precisa, compreensível, coerente, completa,livre de contradições, entre outras característicasapontadas pelos doutrinadores, ela ainda carecedo mais importante, que é o seu caráter axiológico,

Page 28: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

28

em conformidade com o povo soberano e com asociedade como um todo.

Com efeito, as ciências já não mais garantemo acerto. Exatamente por isso, no Pós-positivismo,retorna-se aos conceitos filosóficos, em busca devalores e princípios universais, visando a reflexãosobre a eticidade universal, focada nos parâmetrosjusfilosóficos atinentes à materialização da Justiça.Assim sendo, analisar-se-á a qualidade das normasdecorrentes das decisões judiciais em Mandadosde Injunção na doutrina de Emmanuel Lévinas, quesustenta ser o amor do homem pelo outro, naconcepção ágape, o meio da revelação de umaética de coexistência pacífica, em que o Rosto dooutro é visto como ponto de partida de toda equalquer reflexão.

Na perspectiva levinasiana, o Direito seplenifica enquanto instrumento de promoção depacificação social e não apenas um conjunto deregras, sendo que a completude do justo agir serealiza na imediatidade da relação ética.

5 IMBRICAÇÃO ÉTICA E ALTERIDADENO ATO DE JULGAR

Para Emmanuel Lévinas, assim como paramuitos estudiosos, não só é possível a existênciade uma ética que seja universal, como desejávelpara uma reta compreensão da Justiça. A presençado terceiro, na relação entre o Eu e o outro, conduza reflexão do processo do existir social àconsideração dos aspectos da ética, do exercíciovirtuoso da política e, consequentemente, doabordar a Justiça, enquanto necessária para queseja evitado o cometimento de injustiças para como outro. Neste sentido, a política

segundo a proposição levinasiana, é ainstância de uma necessária e benéficainterrupção da ética, a instância de umamedida comum segundo uma “entrada” (doterceiro) que Levinas afirma ser“permanente”. Querer ou tentar fazer distouma tradução da ética em “valores” queconformariam uma “ação” seria reabsorvera ética num conjunto lógico, lógico-político,de relações. Seria reintegrá-la na “aliança”sacro-santa e, no fim de contas, esquecerque toda política, mesmo a mais universal emais democrática, deixada a si mesma, trazuma tirania, segundo uma formula notávelde Totalité et infini. Em outros termos, todopensamento de uma relação de tipotransitivo entre a ética e a política,entre afilosofia, as ontologias do ser social ou

político e a história, arrisca-se ao desastreou se expõe, no mínimo, ao perigo de umapossível catástrofe (BENSUSSAN, 2009, p.50-51, grifos nossos).

A Justiça deve ser pensada não apenas aJustiça Formal, ou seja, aquela resultante doregramento dos poderes do Estado competentespara tal, leis emanadas do Poder Executivo,decisões judiciais do Poder Judiciário, Decretos,Portarias, Circulares, enfim, o exercício daAdministração Pública dos poderesretromencionados, mas, também, como a Justiçaenquanto conceito, enquanto dimensão do agir ético,que preexiste às configurações estruturaisdesenvolvidas pela sociedade para estabelecer umaregulamentação e ordenação da dinâmica doscidadãos. Assim, poder-se-ia ressaltar que essepensamento segundo da Justiça surge “com oadvento do próximo de meu próximo, colocava-sea questão da relação entre ética e política naintriga humana. [...] Trata-se da intrínseca relaçãoentre a humildade – considerada a maior dasvirtudes na ética do rosto – e a justiça enquantoesta última deve preservar os outros dos maus.”(RIBEIRO JÚNIOR, 2008, p. 99)

Veja-se neste diapasão que a temática daJustiça perpassa a questão da humildade, enquantoatitude ética do rosto. Percebe-se uma relaçãointrínseca entre o agir com Justiça e o estar emestado de humildade, segundo o pensamentolevinasiano, que não se confunde com umasubserviência, uma passividade que resultaria deuma anulação da própria identidade, mas querepresenta uma abertura no processo relacional.Essa abertura se imbrica com a materialização doatuar justo na medida em que o Eu humilde seapresenta com acentos de passividade na relaçãocom outro e o terceiro. Essa passividadeproporciona a ele uma potencialização dapercepção da realidade alheia à sua própriaexistência em construção.

Isso quer dizer que, por meio do exercíciohumilde no relacionar-se, pode-se um indivíduosensibilizar-se mais com as realidades, sejam elaspolíticas, econômicas, sociais em geral, que secolocam à sua face e, consequentemente, atentepara as particularidades que podem não sercomponente integrante da construção da identidadedo Eu que analisa e interage com o diferente.Dessa forma, “a relação face-a-face, asubstituição, a responsabilidade infinita não sãoapenas um modo de compreender o outro modo

Page 29: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

29

de ser do sujeito, mas também a gênese dasociedade e da política.” (MELO, 2003, p. 255).

Essa abertura humilde muito tem a contribuirpara a produção legislativa quando atenta àsrealidades que, pela própria constituição do Eu queelabora um determinado projeto de lei, por vezesnão são dedutíveis de sua própria existência.Portanto, faz-se necessário um olhar de aberturapara a exterioridade que se torna interioridade noprocesso de contemplação do rosto-do-outro. Essabusca pelo resgate da sensibilidade pelo diálogo,presente no olhar que quem atua comorepresentante do povo e no funcionamento doEstado, representa o apelo por uma compreensãode efetividade da Justiça que se afaste de umavisão que a intervenha apenas como consequênciade um ato burocrático/formalista do PoderJudiciário com a prolação de uma Sentença ouAcórdão quase que de forma automática eestatística, a título de exemplificação.

Transformar juízes no homem estatística,sermos vistos apenas pelos números queconsignam a nossa produtividade implicatirar a carne que dá sentido à aritmética emascarar o único caminho que pode levar auma mudança efetiva no modo como oJudiciário se coloca. Transformar juízes nohomem estatística significa substituir odiálogo pelo medo e imprimir a estereotipiaem que o desprezo pelo detalhe levará aoemudecimento e à artificialidade, compondoum quadro que só interessa a uma armaçãoprogramada para satisfazer em massa aopinião pública (LOPES, 2011, p. 279).

Tem-se a necessidade de se cambiar umamentalidade que se paute pelo formalismo encer-rado em si, como a visão dos “juízes-máquina”,numa concepção de indivíduo encerrada apenaspelo que diz a “letra da lei”, certamente objetificantee redutora. O que se propõe é tornar o olhar dohomem sobre a sociedade pautado pela visãopersonalista que compreende a dignidade humanacomo resultado de um sistema de organização so-cial que, antes de ser fim em si mesmo, está aserviço do homem, tendo a sua razão de existirfocada na promoção do mesmo. Assim,

os que preconizam um tipo personalista desociedade vêem a marca da dignidade

humana, antes e acima de tudo, no poderde colocar esses mesmos bens da naturezaa serviço da conquista comum de bensintrinsecamente humanos, morais eespirituais, e da liberdade de autonomia dohomem (MATA MACHADO, 1953, p. 197).

O fazer da Justiça uma realidade concretanão resulta da elaboração de uma decisão que,atendendo aos requisitos formais exigidos por lei,considera-se finalizada como valor que se encerrana própria redação que se apresenta a assinaturado magistrado3. O valor da efetivação da Justiçase apresenta sugestionado em dois momentos nodecorrer do desenvolvimento da decisão judicialque, longe de ser um aspecto dispensável, nãopodem ser considerados como resultados, de persi, da justiça pleiteada pelos que apelam ao PoderJudiciário.

Uma Sentença que aspira ser justa começaa se delinear com a análise dos fatos e suporteprobatório processual. “O juiz anda por estas ruasnos caminhos abertos nos processos. Eles são seucaderno de anotações.” (LOPES, 2011, p. 274).Eis que o processo, longe de ser apenas umamontoado de documentos perfilhado por razõese argumentos tecidos pelos advogados, representaa realidade, ou algum aspecto dela, de uma pessoaque é refletida em laudas. Por essa razão, requerum olhar do magistrado que ultrapasse aconcretude do papel, de forma a poder visualizaros acontecimentos ocorridos na vida do requerente,e que, também, passe a exercer um policiamentoreflexivo de si, para que não deixe os aspectosnegativos do cotidiano, como os problemaspessoais, do excesso de trabalho, da falta deestrutura para o exercício da judicatura etc.,entorpecer o olhar que decidirá os problemas reaisde inúmeras vidas4.

A disponibilização do juiz para o outro, asua responsabilidade para o outro que deveconhecer, como rosto e como identidadeúnica e importante, encontra ressonânciana ética segundo Levinas que coloca atodos como testemunhas da humanidadepara a qual nos apresentamos sempre noque realizamos nas relações e nas ações[...] A disponibilidade não se dá no absolutoou na perfeição. Dá-se corriqueira ecotidianamente. Este é o infinito. Assim com

3 Para maior aprofundamento, Cf. SANTOS, 2008, p. 66-78.4 Sobre a temática abordada, Cf. HAYEK, 1985, p. 109-141.

Page 30: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

30

qualquer ser humano (LOPES, 2012a, p. 14-15).

Não é fácil desconectar-se desses problemasno exercício das atividades do dia-a-dia, mas énecessário um esforço por tentar minorar a suainfluência como distrações que desviam o foco dasrealidades da vida presentes nas laudas de processoque solicitam uma resposta responsável.

A tensão, a pressão e a repetição podemtransformar juízes em pessoas amortecidaspara a experiência humana do outro. Podemnos transformar em autômatos sensíveisapenas o peso dos dias e de suaredundância. E mesmo que não seja o sol eo calor. Serão as sucessivas aberturas daporta das salas de audiência. Será oautomatismo dos despachos. Será ainsuficiência de servidores. Será ocomputador que não funciona bem. Será ainviabilidade da execução. Será umaaudiência após a outra, após a outra, apósa outra. Será o que não podemos resolver.Tudo isto pode nos tornar cegos para osfatores que demandam entendimento e parao poder que está em ser independente paradizer exatamente como é. Pode nosamortecer o sentido para os riscos do outro.Pode quebrar o equilíbrio dos dias e dasexpectativas que se voltam para o nossoofício (LOPES, 2011, p. 269).

Na medida em que há essa análise prévia doprocesso instruído, passa-se o juiz à fase deelaboração da sua decisão que, em resultando doseu convencimento pelo conteúdo probatório e pelaargumentação dos defensores dos requerentes,será tanto quanto justa se se pautar pelaobservação criteriosa e sensível do processoenquanto pleito de um indivíduo e não apenas comomais um caso dentre muitos outros que todos osdias são levados ao olhar do magistrado.

Mais uma vez a cena paradoxal do direitoisola o juiz em si mesmo e o conecta àvisibilidade forçada da publicidadeobrigatória, cuja repercussão varia deacordo com interesses que vão desde apeculiaridade do caso à forma como o setorde comunicação do tribunal deseja noticiá--lo. O juiz não forma a convicção para si.Forma-a em si, mas para o outro (LOPES,2011, p. 267).

Neste ponto, ressalta-se que, por mais queao julgar o magistrado deixe transparecer suas pré--concepções sobre o assunto, e isso é muito natural,

já que não há como dissociar uma formaçãosociocultural do agir ao decidir demandas que,mesmo que inconscientemente, irão apresentaralguns acentos de concepções íntimas do juiz.

O que se pode destacar, nesse ponto, é que omagistrado, na observância da lei, como deve sersua conduta, deve se atentar para as realidadesplurais, muitas das quais ele mesmo porventuradesconheça. Essas realidades podem conduzir oseu olhar para um despertar da noção estável demoralidade comum, como se ela fosse um colossoque conferisse rotina e solidez às decisõesproferidas.

Apesar de não ser possível formar os juízespara a ética no absoluto, como se fosse elauma fórmula matemática, de não serpossível a difusão do conteúdo permanentedo jeito de avisar dos pais, há de se abrir aperspectiva formativa para um cenáriodialogal e de narratividade que permita adifusão do exemplo, a contemplação deleem sua versão oral como um elemento dacultura humana em geral e da cultura jurídica(de um país, de uma instituição) em especial(LOPES, 2012a, p. 4).

Tem-se que mesmo o que se concepcionacomo comum, não poucas vezes, representa umarcabouço de visões de um segmento específicoda sociedade, às vezes, não compartilhado em seusvalores por outros grupos e pessoas. Dessa forma,o exercício de ampliar o olhar sob o caso em análisepermitirá a elaboração de uma decisão quecontemple realidades novas e que, ao mesmotempo, seja um contínuo aprendizado do terceiroque julga e que deve conduzir sua atuação comofruto da configuração de um processo no qual oautoconhecimento e a possibilidade de aberturapossibilitaram o policiamento de si e da tentaçãode ceder a uma visão cômoda à ética do juiz, masque, por vezes, não se apresenta como a maisadequada para ao litígio analisado.

O aprendizado resultante da vida se depositana estrutura do Eu existente como memória, frutoda consciência dos erros e acertos diante dassituações vividas. A evolução do indivíduo está em,de fato, aprender com os fatos da vida, visandoum aprimoramento pessoal que repercute naidentidade do outro que dialoga. Assim,

são estes erros e acertos nos lugares ondeesbarramos nossas solidões que fazem amemória. Nas salas de audiência, nassecretarias das varas, nos corredores dos

Page 31: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

31

prédios da Justiça, na escritura dedespachos e de decisões também temosesses encontros, também tocamos pessoase somos tocados por elas. E é assim queformulamos o que somos. Dia a dia. Face aface. No transcurso das horas emcaleidoscópio (LOPES, 2012, p. 8-9).

Essa abertura ao outro, por meio do exercícioda escuta, e a uma visão distinta possibilita a esteterceiro, no exercício de uma humildadeabsolutamente humana, viver a riqueza dadiversidade social e dela poder aprender mais sobrea nobre decisão do decidir que, muito mais do queum cumprimento legalista, subsuntivo e burocrático,representa o exercício da escuta do outro queclama por ser ouvido, reconhecido em suas misériase injustiças.

Nós nos encontramos com as pessoas nosautos ou na parte deles que se verte nasaudiências, nas secretarias, nos despachos.Somos testemunhas de suas vidas nacontinuidade numerada da autuação.Ouvimos o que tem a dizer por escrito ouquando os interrogamos. Pesquisamos suavida pelas provas. A ordem jurídica dá-noso poder de decidir quem tem razão e de fazerum relato que justifique a nossacompreensão das coisas. O relato não sedestina ao nosso gosto pessoal. Ele é omais forte elo de contato do Poder Judiciáriocom a democracia na medida em que,tornado público, ele permite controle ecrítica. Constitui parâmetro que se soma àsfontes para o conhecimento do direito(LOPES, 2011, p. 277-278).

Essa escuta gera o bem, a vida e areconstrução moral daquele que teve algum direitoou liberdade usurpados ou inobservados poroutrem. Referenda-se o posicionamento de Villelaque, se baseando em Hart, conclui que esse

nota que sociologicamente é umaingenuidade supor-se que “haja uma únicamoralidade social homogênea”, de que o juizseria um porta-voz quando baixa a sentença.Nossa sociedade – gostemos ou não – émoralmente uma sociedade plural, concluiHart, que desvela ainda a ficção que seesconde sob o apelo ao chamado ordinaryreasonable man, o nosso conhecido homemcomum. Atrás dessa entidade mítica, o quehá, não raro, é a própria figura do juiz. O

hipotético julgamento do homem comum,muito frequentemente, é uma simples sombraprojetada, que lançam as próprias percepçõesmorais do juiz ou as daqueles de sua classesocial mesma. [...] Em apoio aheterogeneidade do julgamento social, Hartinvoca pesquisa de opinião, segundo a qualo desvio de enquadratura nunca foi inferiora 75%, isto é, não mais de uma em quatropessoas estimaram um mesmo fato comidêntico rigor jurídico (VILLELA, 1982, p. 24).

Aqui se pode relacionar o processo com oindivíduo, na medida em que se considera aquelecomo personificação deste que se coloca diantedo magistrado com suas queixas e solicitações. “Odireito tecnocrático e sem vida nada tem a ver coma experiência cotidiana do trato dos processos, ondetudo, literalmente tudo, pode acontecer. E acontece.E demanda respostas de quem deve estarpreparado para dá-las.” (LOPES, 2012a, p. 4-5).Dessa forma, “a entrada do terceiro juiz que estáseparado dos arranjos sociais introduz apossibilidade de justiça no mesmo momento emque se torna necessário para o eu ter essa justiça.”(HUTCHENS, 2007, p. 140). O juiz não podereduzir, sob essa óptica, o processo ao meronúmero que o identifica face aos outros, isso seriauma nadificação da singularidade à totalidade quehomogeneíza a sociedade5, tratando de reduzir aoanonimato uma realidade que clama serreconhecida e escutada. “A totalidade incorpora amultiplicidade dos seres que a paz implica. Só osseres capazes de guerra podem ascender à paz. Aguerra tal como a paz supõe seres estruturadosdiferentemente de simples partes de umatotalidade.” (LÉVINAS, 2008, p. 218).

Para se concretizar a presença e efetivaçãoda Justiça na existência concreta dos querelantes,passa-se a um segundo momento em que aqueladecisão prolatada aguarda sua execução, ou seja,a materialização do decidido, sob pena de seconfigurar como letra-morta, sem aplicabilidadepara os anseios de quem espera a sua realização.

A execução de uma Sentença figura, nesseraciocínio, como o corolário de todo um processodecisional que considerou a singularidade do rostodesde a análise probatória e argumentativa. Essaatenção para com o outro, que representa olaborioso exercício do magistrado humilde, diligentee sábio. O exercício da humildade garante aomagistrado uma percepção dos fatos que não se

5 Para maior aprofundamento, Cf. CHALIER, 1993, p. 76.

Page 32: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

32

deixa levar pelas vaidades a que podem sucumbirdiante do “prestígio” e “poder” socialmenteconferidos a função do “dizer o que é justo”. Esseafastamento dessas vaidades representa umapotencialização da sensibilidade para uma visãomais humana no exercício cotidiano das suasfunções.

a refletir se estavam preparados para oexercício de julgar “nesta terra de Doutor”,se estavam conscientes da importância denão se transformarem em personagensestéreis na fórmula vazia do “Seu Doutor”,da importância de não se deixarem vender,não apenas no sentido literal da integridadeética e da incorruptibilidade, mas tambémde não se deixarem levar pelo medo, pelodescaso, pela preguiça, pelo desleixo(LOPES, 2012a, p. 6).

Uma “maturidade” decorrente do ser humildepossibilita a vivência da hospitalidade concreta nafraternidade. Essa vivência atinge não apenas asestruturas do Poder Judiciário, mas a dos outrosPoderes e a sociedade como um todo. Representa,por conseguinte, toda uma “recuperação dasinstituições, da teoria, da política, da fenomenologia,exige um olhar crítico para que a vigilância, própriado cuidado pelo outro, não seja traída pelo conceitoda justiça formal. O conteúdo adequado e autênticoda justiça só pode vir da primazia concedida àfraternidade sobre a ‘comunidade de gênero’.”(RIBEIRO JÚNIOR, 2008, p. 99).

Apresenta-se, no excerto acima disposto, aresponsabilidade levinasiana para com o outro, paracom a alteridade no exercício da fraternidade.Neste sentido,

a tomada na fraternidade” é o indício deuma perturbação do pensamento: talvez apolítica não é toda circunscrita pela filoso-fia política, seus conceitos e suasproblematizações. Se é de alguma maneirapensável que uma resposta a uma singula-ridade falante difunda-se antes mesmo quea questão à qual ela responde possa serposta, é que a resposta ética precede a filo-sofia que vem pensá-la, e que ela autorizaque suas interrogações possam chegar de-pois dela e mesmo que ela predetermine emtodo rigor a instância do político(BENSUSSAN, 2009, p. 73).

Essa responsabilidade que, junto àsubstituição, representa uma verdadeira liberdadee autonomia do sujeito que, vivendo em sociedade,

não se faz senhor ou escravo dela, mas a vive comoum degrau de singularidade que se apresenta àinteração e ao crescimento individual e coletivoresultante da abordagem do diferente. Crescimentoeste que se arvora ao tecido social, com abundantesfrutos emanados da ética surgida daintersubjetividade comunicativa, e que se estendematé as instituições que regulamentam e organizamesta comunidade de cidadãos que é o Estado. “Umhomem que atingiu a maturidade é um personalistaque concelebra a sua existência com homenssemelhantes a ele pela responsabilidade, liberdadee razão.” (HÄRING, 1974, p. 32). Ressalte-se queo “estado, as instituições e as leis, como forma deordem econômica, sem a responsabilidade éticaindividual não chegam a realizar o seu papel.”(MELO, 2003, p. 257).

Sem trégua nem repouso, eu estou exposto,em minha responsabilidade insistente, emmeu tormento de ter de entender e ter deresponder, ao apelo e ao grito, ao sofrimento,e infortúnio importunos e, porconsequência, à obrigação insuportável deter que sofrer a prova cada vez minha. Nestaética da resposta infinita deresponsabilidade põe-se em jogo e emmovimento uma insubmissão continuada aquaisquer possibilidades de racionalmentepredeterminadas. Uma política dócil esubmissa ao real poderia talvez aí encontrarmotivo de uma reabertura, interrogando-sesobre sua demasiado pronta subordinaçãoà distinção do fato e do valor, a qual,peremptória, a conduz algumas vezes atomar os fatos pelos valores e aquilo queexiste por uma norma. Assim, a ideia de umainspiração ética da política poderia fornecerum critério empírico, permitindo julgar umaação ou uma lei. Estas poderiam serchamadas “boas” se elas não se substituemao acontecimento ético que as precede e seelas não obstruem o antes-da-lei, nãoreconhecendo nem sob elas nem alem delasmesmas, dito de outra forma, se elasautorizam sempre e conduzemcontinuamente à possibilidade de suainterrupção. [...] Importa fazer uma aberturaindefinida de interrupções que, a cada vez,quebram os encadeamentos, no sentidoestrito, da dialética, os ajuntamentosmassivos da política onde se articulam,totalizando-se pessoa e sociedade. Essasinterrupções, no fundo, são os interstíciosdo político tais como se deixam ver naspluralidades, a contestação, a diversidade,os conflitos, enfim, naquilo que, sobre umplano institucional, corresponde mais ou

Page 33: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

33

menos à democracia, à sua dramaturgia, àsua fragilidade (BENSUSSAN, 2009, p. 78,grifos nossos).

Assim, diante da aparente paradoxal missãodo Estado, em resguardar os direitos de cada um ede todos, resta o exercício de coragem de viver adimensão do aprendizado, como erros e acertos,de se governar, de se fazer política que possa saciarcom respostas na integridade aos muitos que aesperam. O ato de espera do cidadão representaesse chamado à responsabilidade por quem tem odever de responder, dever esse ético e nafuncionalidade da competência atribuída. Tem-seque

a humildade, vivida como amor e responsa-bilidade, orienta e ordena a relação primevade justiça entre o eu e o outro. Esta virtudeaquém do Ser, por sua vez, motiva e agilizaa instituição da relação com todos-os-ou-tros a fim de resguardá-los da injustiça domesmo. Diante desta constatação, a filoso-fia da alteridade justifica o sentido da polí-tica a partir da justiça. [...] o Estado justodeve promover e garantir os deveres e osdireitos de todos, deixando, no entanto,transparecer sua tarefa radicada naeticidade que nasce do amor como respon-sabilidade [...] que advém da relação com orosto. [...] A política, cuja meta é instituir ajustiça por intermédio da universalidade dalei, não pode deixar de garantir o sentidopré-original da fraternidade do um-para-o--outro ou da substituição sobre a qual seconstrói a igualdade do Direito (RIBEIROJÚNIOR, 2008, p. 99).

A humildade que, como semente que germinana sociedade, proporciona uma abertura dialogalque se encaminha para o amadurecimento daspráticas políticas, principalmente quando se atrelaao ser humilde a sadia cobrança de si no ato deresponder as misérias sociais. A soberba do Euindividualista o cega quanto à necessidade decontínuo aprimoramento moral. A lógica da nãonecessidade de evolução comportamental é oriundade uma visão estreita e que não se faz sensível arealidades que não sejam afetas ao si-mesmo. Ahumildade destrona essa autossuficiência “prontae acabada” do Eu e o possibilita a seguir com osoutros no exercício de construção política fruto deuma cidadania consciente do muito que ainda sehá por fazer para que seja o Estado lugar dehospitalidade para com todos.

O magistrado, assim, não deve sentenciar pormeio de silogismos dedutivos/subsunção direta dalei ao caso apresentado, mas é conveniente queobserve e desenvolva uma prática coerente queanalise caso a caso como que únicos e peculiares,de forma que haja a possibilidade de que todas aspartes possam usufruir de iguais oportunidades dese manifestarem enquanto rostidade, emitindo seusvalores e opiniões, em uma harmoniosa dialética.Só assim ter-se-á uma sentença observante àJustiça, enquanto concretização da igualdade nadesigualdade, em cumprimento da lei.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após análise histórica dos paradigmas deEstado, viu-se que no Estado Democrático deDireito, deve sempre prevalecer a vontade do povosoberano, muito embora esse povo soberano sejaoriundo de uma sociedade extremamentecomplexa, em que coexistem interesses diversos.Viu-se também que a consequência lógica dessasociedade pluralista é o Estado de natureza pluralna qual não existe uma fonte única de autoridade,de modo que o constitucionalismo moderno sepreocupe fortemente com os limites dos poderesdo Estado, dividindo-o em três: Legislativo,Executivo e Judiciário, por meio de um sistema defreios e contrapesos, que visa, em última ratio, àharmonização, à colaboração e controle entre eles,de modo que a separação não seja concebida comoabsoluta e intangível.

Desse modo, na busca do atendimento aointeresse público, que é fim da atuação dos trêsPoderes, verifica-se que devem ser observadostodos os interesses intervenientes, isto é, o interessepúblico primário e o interesse público secundário,sendo o interesse público primário o ligadodiretamente ao órgão atuante, e o interesse públicosecundário o ligado aos outros órgãos não atuantesin casu.

Constata-se que, neste contexto, surge o Pós--Positivismo, que propõe uma aproximação entreo Direito e a ética, trazendo como resultado oreconhecimento da normatividade dos princípiose, consequentemente, uma nova HermenêuticaConstitucional, que demanda seja realizada umareleitura da interpretação dos institutos jurídicosde todas as áreas do Direito. Verifica-se que osprincípios constitucionais são de grande relevânciana avaliação da legitimidade não só das normasjurídicas mas também dos atos da administraçãolato sensu. Verifica-se também que a ordem

Page 34: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

34

jurídica fundada em princípios é segura, uma vezque a eles compete o alcance da plena realizaçãoda Justiça material no caso concreto.

Assim, percebe-se que um ato que fere umprincípio é antijurídico, e conclui-se que a tendênciada atuação estatal lato sensu (dos PoderesLegislativo, Executivo e Judiciário) é a de se cadavez mais observar a juridicidade em vez desimplesmente se preocupar com a legalidadeformal.

Destaca-se que o Mandado de Injunção,previsto no art. 5.°, LXXI, da CR/88, foi sendoreinterpretado pela jurisprudência do STF, que,progressivamente, foi conferindo maior concretudeàs suas decisões.

Viu-se que a favor da conferência de maiorconcretude ao Mandado de Injunção está o direitode ação, previsto no inciso XXXV do art. 5.° daCR/88, uma vez que o Judiciário, ao se limitar aconfirmar a omissão inconstitucional e a comunicartal fato ao órgão omisso, não garantiria a plenaefetividade do acesso à Justiça, tendo em vista queo Direito não estaria sendo dito, ou, em outraspalavras, o conflito não restaria solucionado.

Conclui-se que as decisões judiciais dos MI708/DF, MI 670/ES, e MI 712/PA, em que o STFadotou a corrente doutrinária concretista geral, nãosó observaram o art. 4.° da Lei de Introdução aoCódigo Civil, como também solucionaram o conflitoque foi submetido ao Judiciário, qual seja, a omissãoinconstitucional de legislação regulamentadora doexercício do direito de greve dos servidorespúblicos, uma vez que foi determinada a aplicação,no que coubesse, das Leis n. 7.701/88 e n. 7.783/89, que dispõem, respectivamente, sobre aespecialização de Turmas dos Tribunais do Trabalhoem processos coletivos e sobre o exercício dodireito de greve, ambas relativas ao regime celetista,enquanto persistisse a omissão, até que sobrevenhanorma integrativa editada pelo Legislativo, suprindoa lacunosidade legal.

Conclui-se, também, que a determinação deque a decisão judicial permaneça até quesobrevenha norma integrativa editada peloLegislativo, ainda que possa gerar certainsegurança, por ferir a regra da coisa julgada, é atese que mais respeita a separação dos Poderes eo princípio democrático, que são de observânciamais relevante no contexto do Estado Democráticode Direito em que vivemos.

Realça-se a existência de mecanismos hábeisa aumentar ainda mais a legitimidade das decisõesdo Judiciário, que já vem sendo utilizados pelo STF,

como, por exemplo, as audiências públicas, namedida em que a participação dos interessados nasdecisões permite maior aproximação entre asdecisões judiciais e a vontade do povo soberano.

Lembra-se que para a análise da qualidadedas normas jurídicas, a Legística, que é umadisciplina relativamente nova e interdisciplinar,contribui enormemente para a melhoria dalegislação. Entretanto, considera-se que ela éinsuficiente, uma vez que a norma, mesmo sendoclara, precisa, compreensível, coerente, completae livre de contradições, ainda carece do seu caráteraxiológico, em conformidade com o povo soberano,e sua vontade que legitima toda a produçãonormativa que regulamenta a existência e ofuncionamento do Estado, que garante o plenodesenvolvimento social.

Desse modo, no contexto do Pós-Positivismo,retorna-se aos conceitos filosóficos, em busca devalores e princípios universais, por meio da análiseda doutrina de Emmanuel Lévinas, que sustentaser o amor do homem pelo outro, na concepçãoágape, o meio da revelação de uma ética decoexistência pacífica, segundo a qual o Rosto dooutro é visto como ponto de partida de toda equalquer reflexão. Assim, o agir virtuoso domagistrado, bem como o dos demais servidorespúblicos e agentes políticos, deve ter comoreferência a própria realidade social que oscercam, de forma que a realização da plena funçãoatribuída a cada Poder estatal deve ser pautadapela ética. Isto, na medida em que se objetiva oadministrar, o decidir e o legislar de forma a exercera criatividade pautada na responsabilidade,observante da segurança jurídica, para com aalteridade, aplicando a lei de forma a maximizarsua eficaz atuação no meio social.

A interpretação da normatividade positivafeita, por exemplo, por meio da ampliação dosefeitos da decisão do Mandado de Injunção, gera,por consequência, uma intensificação da eficiênciado papel do Estado, afastando a concepção deburocracia pública enrijecida e inoperante, bemcomo a clássica e pulverizada imagem demorosidade da resposta judicial às lides que sãoencaminhadas para serem decididas pelo juiz dedireito. Notadamente, nos casos em que há omissãolegislativa, o agir do magistrado deve ser pautadopelo exercício de uma postura proativa, tambémresponsável, de forma a exercer plenamente aatividade criadora de normatividade.

A garantia última da observância de umcomportamento ético, pautado pela flexibilização

Page 35: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

35

responsável dos parâmetros de funcionamento edesenvolvimento das atividades dos órgãos dosPoderes estatais, conduz a uma plena consciênciade que o alcance de uma atuação, guiada pela éticavirtuosa no agir para com os interesses sociais,gera a efetivação plena, na concepçãofenomenológica de comportamento para com aalteridade cidadã, da Justiça.

REFERÊNCIAS

ACKEL FILHO, Diomar. Writsconstitucionais. São Paulo: Saraiva, 1988.

ALBUQUERQUE, Marcela. O SupremoTribunal Federal e a omissão inconstitucional: atarefa realizadora da constituição e o mandadode injunção. Revista de Direito Público, SãoPaulo, Fórum Administrativo, ano 5, v. 60, p.6.827-6.832, fev. 2006.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação eaplicação da constituição. 6. ed. São Paulo:Saraiva, 2004.

______. Temas de direito constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Princípioconstitucional da eficiência administrativa.Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

BENSUSSAN, Gérard. Ética e experiência apolítica em Levinas. Passo Fundo: IFIBE, 2009.

BITENCOURT NETO, Eurico. Mandado deinjunção na tutela de direitos sociais.Salvador: Jus Podivm, 2009.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamentojurídico. 5. ed. Brasília: Ed. UnB, 1994.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;PASQUINO, Gianfranco. Dicionário depolítica. v. I. 11. ed. Tradução de Carmen C.Varriale et al. Brasília: Ed. UnB, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direitoconstitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros,2004.

______. Do estado liberal ao estado social.8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tomemosa sério o silêncio dos poderes políticos: o direito àemanação de normas jurídicas e a proteçãojudicial contra as omissões normativas. In: Asgarantias do cidadão na justiça. São Paulo:Saraiva, 1993. p. 351-367.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manualde direito administrativo. 19. ed. Rio deJaneiro: Lúmen Juris, 2008.

CHALIER, Catherine. Lévinas: l’utopie del’humain. Parigi: Albin Michel, 1993.

CHEVALLIER, Jacques. A racionalização daprodução jurídica. Legislação. Cadernos deCiência da Legislação, n. 3, Oeiras, INA, p.15-36, 1992.

CRETELLA JÚNIOR, José. Os writs naconstituição de 1988: mandado de segurança,mandado de segurança coletivo, mandado deinjunção, habeas data, habeas corpus, açãopopular. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicialdas omissões do poder público. São Paulo:Saraiva, 2004.

DANTAS, Ivo. Mandado de injunção: guiateórico e prático. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide,1994.

DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei – aelaboração legislativa. Cadernos da Escola doLegislativo, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p. 101--144, jan.-jun. 2004.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direitoadministrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

DWORKIN, Ronald. Uma questão deprincípio. Tradução de Luís Carlos Borges. SãoPaulo: Martins Fontes, 2005.

GARCIA, Juvêncio Gomes. Função criadorado juiz. Brasília: Brasília Jurídica, 1996.

HAGE, Jorge. Omissão inconstitucional edireito subjetivo. Brasília: Brasília Jurídica,1999.

HÄRING, Bernhard. Moral personalista. SãoPaulo: Paulinas, 1974.

Page 36: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

36

HAYEK, Friedrich A. Direito, legislação eliberdade: uma nova formulação dos princípiosliberais de justiça e economia política. Traduçãode Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985.

HUTCHENS, Benjamim C. CompreenderLévinas. Tradução de Vera Lúcia MelloJoscelyne. Petrópolis: Vozes, 2007.

LÉVINAS, Emmanuel. De Deus que vem àideia. Petrópolis: Vozes, 2008.

LOPES, Mônica Sette. Crash: entre encontros edesencontros. Disponível em: <http://www.amatra3.com.br/uploaded_files/crash.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2012.

______. O juiz como agente de suaindependência: entre o diálogo e o medo. RevistaBrasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,n. 103, p. 257-284, jul./dez. 2011. Disponível em:<http://www.pos.direito.ufmg.br/rbep/103257284.pdf 2011>. Acesso em: 11 jun. 2012.

______. Os juízes no espelho: ver e ser visto.No prelo, 2012a.

MADER, Luzius. Legislação e jurisprudência.Cadernos da Escola Legislativa, v. 9, n. 14, p.193-206, jan.-dez. 2007.

MATA MACHADO, Edgar de Godoi.Contribuição ao personalismo jurídico. BeloHorizonte: Vera Cruz, 1953.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direitoadministrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo:Malheiros, 2007.

______. Mandado de segurança, açãopopular, ação civil pública, mandado deinjunção e “habeas data”. 17. ed. São Paulo:Malheiros, 1996.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso dedireito administrativo. 18. ed. São Paulo:Malheiros, 2005.

MELO, Hygina Bruzzi de. A cultura dosimulacro: filosofia e modernidade em J.Baudrilard. São Paulo: Loyola, 1988.

MELO, Nélio Vieira de. A ética da alteridadeem Emmanuel Lévinas. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2003.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO,Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo GustavoGonet. Hermenêutica constitucional e direitosfundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

MONTEIRO, Cláudia Servilha. Fundamentospara uma teoria da decisão judicial.Disponível em: <www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/claudia_servilha_monteiro.pdf>. Acesso em: 1maio 2011.

MORAES, Alexandre de. Direitoconstitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Oparlamento e a sociedade como destinatários dotrabalho dos Tribunais de Contas. Disponível em:<http://www.direitodoestado.com/revista/RERE--4-DEZEMBRO-2005-DIOGO.pdf>. Acessoem; 19 jan. 2011.

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de.Tutela jurisdicional e estado democrático dedireito: por uma compreensãoconstitucionalmente adequada do mandado deinjunção. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: novaretórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. SãoPaulo: Martins Fontes, 1998.

PIOVESAN, Flávia Cristina. Proteção judicialcontra omissões legislativas: ação direta deinconstitucionalidade por omissão e mandado deinjunção. 2. ed. São Paulo: RT, 2003.

PIVATTO, Pergentino Stefano. A nova propostaética de Emmanuel Lévinas. In: Cadernos daFAFIMC, Viamão, n. 13, 1995.

PONTES, Helenilson Cunha. O princípio daproporcionalidade e o direito tributário. SãoPaulo: Dialética, 2000.

QUARESMA, Regina. O mandado deinjunção e a ação de inconstitucionalidadepor omissão, teoria e prática. 3. ed. Rio deJaneiro: Forense, 1999.

REIS, Palhares Moreira. Servidores, greve eremuneração. Revista de Direito Público, SãoPaulo, Fórum Administrativo, ano 1, v. 10, p.1.324–1.325, dez. 2001.

Page 37: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

37

RIBEIRO JÚNIOR, Nilo. Sabedoria da paz:ética e teo-lógica em Emmanuel Lévinas. SãoPaulo: Loyola, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para umarevolução democrática da justiça. São Paulo:Cortez, 2008.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade dasnormas constitucionais. 6.ed. São Paulo:Malheiros, 2004.

______. Curso de direito constitucionalpositivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

______. Mandado de injunção e habeasdata. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

SOARES, Fabiana de Menezes. Teoria dalegislação: formação e conhecimento da lei naidade tecnológica. Porto Alegre: SAFE, 2004.

SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Podereséticos do juiz. Porto Alegre: SAFE, 1987.

VILLELA, João Baptista. Direito, coerção &responsabilidade: por uma ordem social nãoviolenta. Belo Horizonte: Movimento Editorial daRevista da Faculdade de Direito da UFMG,1982. (Série monografias, 3).

______. Variações impopulares sobre adignidade da pessoa humana. Revista doSuperior Tribunal de Justiça, Doutrina, EdiçãoComemorativa, 20 anos. Brasília, DF, 2009.

Page 38: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

38

Page 39: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

39

1 INTRODUÇÃO O filósofo esloveno Slavoj Zizek (2009) em

sua obra “Sobre la violencia: seis reflexionesmarginales” desenvolve três conceitos de violênciaque são importantes para se entender os equívocosdas políticas de encarceramento e aumento daspenas e controle sobre as pessoas. Zizek nos falade três formas de violência:

a) uma violência subjetiva que representa adecisão, vontade, de praticar um ato violento.A violência subjetiva representa a quebra deuma situação de (aparente) não violência porum ato violento. A normalidade seria a nãoviolência, a paz e o respeito às normas(normalidade) que é interrompida por um atode vontade violento;b) a violência objetiva, diferente da violênciasubjetiva, é permanente. A violência objetivasão as estruturas sociais e econômicas, aspermanentes relações que se reproduzem emuma sociedade hierarquizada, excludente,desigual, opressiva e repressiva;c) a violência simbólica é tambémpermanente. Esta violência se reproduz nalinguagem, na gramática, na arquitetura, nourbanismo, na arte, na moda, e outras formasde representação. Para se entender melhor,pode-se exemplificar a violência simbólicapresente na gramática: em diversos idiomas,os sobrenomes se referem exclusivamenteao pai ou ainda, o plural, no idioma português,por exemplo, sempre vai para o masculino.Assim, se estiverem em uma sala quarentamulheres e um homem, dir-se-á: “eles estãona sala”. O plural para uma mulher passeandocom um cachorro será: “eles estãopasseando”. A violência simbólica, assimcomo a violência estrutural, objetiva, atuampermanentemente.Assim, de nada adianta se construir políticas

públicas de combate à violência subjetiva sem se

ÉTICA E DIREITO: como construir uma sociedade sem corrupção

José Luiz Quadros de Magalhães1

mudar as estruturas socioeconômicas opressivase desiguais (violentas) ou todo o universo designificações e representações que reproduzem adesigualdade, a opressão e a exclusão do “outro”diferente, subalternizado, inferiorizado.

Um exemplo interessante: a escola modernaé um importante aparelho ideológico (ALTHUSSER,1985), reproduzindo a mão de obra necessária paraocupar os postos de trabalho que permitirão ofuncionamento do sistema socioeconômico assimcomo reproduzindo os valores e justificativasnecessárias para que as pessoas se adaptem e nãoquestionem seriamente o seu lugar no sistema social(e no sistema de produção e reprodução). A escola,portanto, tem a fundamental função de uniformizarvalores e comportamentos. O recado da escolamoderna é: adapte-se; conforme-se; este é o seulugar no sistema.

Simbolicamente, a escola moderna dizdiariamente isso aos seus alunos, por meio douniforme. Sem o uniforme, a meia, a calça, acamisa e os sapatos da mesma cor, o aluno nãopode assistir a aula. Durante muito tempo, e aindahoje em algumas escolas, uniformizam-se oscabelos, o andar, o sentar, e, ainda, o pensar, odesejar e o gostar. A criança, desde cedo, deve sevestir da mesma forma, comportar-se da mesmamaneira, pronunciar palavras mágicas sem as quaisas portas não se abrem.

Chega-se ao problema: a criança, mesmo quenão seja dito por meio da palavra (o que tambémocorre), simbolicamente percebe, diariamente, todoo tempo, que não há lugar para quem não senormaliza, não se uniformiza. O recado muito claroda escola moderna é: o uniformizado é o bom; nãohá lugar para o diferente (não uniformizado); parao que se comporta diferente, veste-se diferente,ou de alguma forma não se enquadra no padrão. Éclaro que esta criança, processando o recadopermanente (repetido de várias formas) irácompreender que o padrão é bom e o diferente dopadrão é ruim.

1 Doutor e Mestre em Direito. Professor do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho, da PUC-Minas e daUFMG.

Page 40: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

40

No seu universo de significados em processode construção, o diferente deve ser excluído,afastado, punido, uma vez que o que foge ao padrãonão pode assistir a aula, não pode sequerpermanecer na escola. Logo, quando esta criançapercebe alguém ou algo em alguém que, para ela,é diferente do padrão (o cabelo; uma roupa; a cor;a forma do corpo; da fala; do olhar) esta criançairá de alguma forma reagir à ameaça do diferente,excluindo e punindo o diferente “ruim”.

Em outras palavras, a escola moderna ensinadiariamente a criança a praticar o “bullying”. Veja--se, então, a ineficiência das políticas de combateà violência, à discriminação, à corrupção quepadecem, todas, deste mal. No exemplo descritoacima, a escola, o Estado, os governos, criampolíticas públicas pontuais de combate ao “bullying”(a tortura mental e agressão física decorrente dadiscriminação do “diferente”) ao mesmo tempo quemantém uma estrutura simbólica que ensina adiscriminação (o “bullying”).

Voltam-se aos conceitos de violência: todapolítica de combate à violência, às drogas, àcorrupção, serão sempre ineficazes se não setransformarem as estruturas sociais e econômicasque permanentemente criam as condições para queesta violência subjetiva se reproduza, assim comoo sistema simbólico que continua, da mesma formareproduzindo a violência. Para acabar com aviolência subjetiva só há uma maneira: acabar coma violência simbólica e objetiva. Para acabar como “bullying” na escola só mudando as estruturasuniformizadoras e excludentes presentesdiariamente na escola; para acabar com acorrupção só transformando o sistema social eeconômico e de valores (condições objetivas esimbólicas) que reproduzem as condições para queesta (a corrupção) se torne parte da estrutura sociale econômica vigente.

Neste artigo, pretende-se trazer algumasreflexões (preocupações) sobre a relação entreética, cotidiano e corrupção, o que se fará a partirdas premissas teóricas acima desenvolvidas. Denada adiantarão as constantes políticas pontuaisde combate à corrupção na vida do país se estaspolíticas atacarem apenas os efeitos de formarepressiva e (ainda pior) com o Direito Penal, oaumento do controle e da punição. Os resultadosserão enganosos, sempre, se não se responder aalgumas perguntas: por que a corrupção? Quaissão os elementos estruturais e simbólicos nasociedade que reproduzem as condições para acorrupção?

2 O DIREITO PENAL NÃO RESOLVE

Nesta perspectiva, pode-se trazer asreflexões para o Brasil, 2012, segundo semestre,às vésperas das eleições municipais.

O pano-de-fundo do julgamento é construídopela insistente campanha dos principais meios deinformação (a grande imprensa) que aposta napunição dos excluídos, dos não enquadrados, dosnão uniformizados e normalizados. As cidades, aexemplo da Paris do Barão Haussmann (1853-1867), não são para todos. A higienização urbana(a exclusão dos pobres) continua sendo a mais novapolítica urbana do século XXI. O Direito Penal é agrande aposta. A ideia também não é nova.

Se se voltar ao século XIX, reencontram-secom este morto-vivo que perambula pelo séculoXXI. A brutal concentração de riquezas causadapela aposta em uma economia naturalizada querecompensará o mais ousado e eficaz competidorno mercado gera a exclusão; a exploração radicaldo trabalho; a desigualdade, e com esta, acrescente insatisfação, que se traduz em rebeliõesdifusas de um lado (o que se pode chamar de umacriminalidade “comum”) e rebeliões políticas deoutro lado (que são também criminalizadas peloEstado ocupado pelos grandes proprietários). Emmeio a tamanha insatisfação causada peladesregulamentação econômica que agrava aconcentração de riqueza e deixa livre os grandesproprietários para o abuso do poder econômico(qualquer semelhança com a atual crise não é meracoincidência), a resposta do Estado será (é comose se estivesse no século XIX) mais Direito Penal;mais encarceramento; mais controle social; maispolícia; mais manicômios e presídios. Toda umajustificativa ideológica é construída para explicara situação: os problemas econômicos não sãosistêmicos, mas atribuídos a condutas de algunsindivíduos e na mesma construção ideológica acriminalidade tampouco é sistêmica, e não sereconhece nenhuma conexão desta com o sistemaeconômico, social e cultural do liberalismo.

No senso comum, constrói-se a ideia de que,se existe crime, é por causa dos indivíduos queescolhem o caminho do mal ou são doentes mentais.O poder do Estado, nas mãos dos proprietários,define o que é crime, normalidade e pecado, o que,é claro, são as condutas dos pobres excedentes dosistema econômico. Este retrato do século XIXrestaurado com cores falsas no fim do século XXé colocado em grandes imagens globalizadas noséculo XXI. Este é o pano-de-fundo para o

Page 41: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

41

“espetáculo” transmitido diariamente para todo opaís. Onze juízes, vaidosos, com poses e gestos,com capas pretas até o tornozelo, sentindo-se aconsciência moral do país, julgam e condenam semprovas, mas segundo “indícios fortes” (alegaçãotransmitida e gravada pela TV para todos ouvirem).Não, não se está no século XVI. O maisinteressante é a coincidência do julgamento comas eleições municipais.

O julgamento dos políticos envolvidos naacusação coincide, quase, com o dia do pleitoeleitoral municipal de 2012. Coincidências à parte,lembrem-se que os fatos que envolvem ojulgamento foram utilizados para uma tentativa de“golpe de estado” contra o Presidente eleitodemocraticamente e no poder em 2005 (no novoformato de golpe utilizado em Honduras e Paraguai- o golpe parlamentar travestido de falsalegalidade).

Não, o Direito Penal não resolverá acorrupção. A corrupção está na estrutura e nasrepresentações simbólicas de um sistema social,econômico e político intrinsecamente corrupto. Acorrupção está no futebol de toda semana; na filafurada; na propina diária; nas pequenas vantagens.A corrupção está na sala de aula; no assinar apresença sem estar presente na aula; na mentirana imprensa; na mentira e no encobrimento; nanotícia distorcida; nas coincidências... No jogo doroto e do esfarrapado só um é mostrado como tal.Assim como se viram apoiadores da ditaduraacusando democratas de autoritários, assistem-secorruptos “históricos” pronunciando discursoshistóricos de moralidade.

Efetivamente, o Direito Penal não resolveráa corrupção. Lei de “ficha limpa”; o espetáculotelevisivo da Ação Penal 470 (realizado por umaimprensa que se tornou autista); isto não resolveráa corrupção. Felizmente, alguma coisa está forada ordem (como diria Caetano Veloso). Por algummomento “eles” (na verdade, o “nós” no poder)perderam o controle do monopólio dadesinformação diária. A imprensa alternativamostra o que a grande imprensa (que defende aliberdade dos donos dos meios de comunicação, enão a liberdade de imprensa) não mostra, maspropositalmente esconde. O “autismo” em que selança a imprensa pode ser um sinal de esperançapara a conquista da liberdade de expressão. O“julgamento do século” como insistiu a grandeimprensa não mobilizou ninguém e ainda nos expôsao pior, à ameaça e comprometimento do Estadoconstitucional e democrático por uma prática que

lembra um ”tribunal de exceção” (condenação porindícios). Aliás, o que se vê revelado nas telas é oque acontece diariamente com os pobres.

3 QUEM DIZ O QUE É ÉTICO?

Uma pergunta necessária: quem diz o que édireito, o que é justo, o que é legal, o que é normal,o que é crime? O que é crime em uma sociedadepode não ser crime em outra sociedade. O que écrime em um momento histórico pode não ser crimeem outro momento. Crime é um conceito histórico,como são conceitos históricos “justiça”; “direito”;“normalidade” e “anormalidade”.

Quem diz o que é normal? Ora, a resposta éfácil de ser encontrada: quem tem poder para dizer.E quem tem poder para dizer? Ainda hoje, tempoder para dizer quem detém o controle do podereconômico, do poder do Estado, quem controla osaparelhos ideológicos e repressivos do Estadomoderno. Será que existe alguma conexão, emalguns países, o fato do crime de usura não sermais crime com o fato dos recursos parafinanciamento da campanha eleitoral virem, emgrande medida, dos Bancos? Será que se poderelacionar o fato dos parlamentares de algum paísdescriminalizarem a usura, com o fato dascampanhas eleitorais serem financiadas porbanqueiros? Esta afirmação não se relaciona comnenhum fato específico. Convém, entretanto,pesquisar sobre o tema. Isto é somente umahipótese para reflexão.

Uma reforma estrutural no sistema político;a adoção do financiamento público de campanha;a proibição de reeleição; a introdução demecanismos de democracia participativa,deliberativa e consensual; estas e outras medidaspoderiam ajudar no combate à corrupção? Poder--se-ia dizer que seria um passo importante, masainda não se chegaria ao núcleo do problema.Trata-se do início de uma reforma estrutural dosistema político, mas que ainda necessita detransformações nas estruturas sociais, culturais eeconômicas que geram a corrupção. Lembre-sedo conceito inicialmente trabalhado. Impossívelresolver a violência subjetiva sem eliminar aviolência objetiva e simbólica. O mesmo vale paraa corrupção: impossível resolver a corrupçãosubjetiva sem a eliminação da corrupção objetiva(estrutural) e simbólica, permanentementepresentes em uma sociedade fundada sobre valoresegoístas, materialistas e competitivos. Impossíveleliminar a corrupção quando esta é incorporada

Page 42: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

42

como valor social e legalizada em diversosaspectos.

Uma pergunta: e se o Parlamento fosse inte-grado por pessoas corruptas que transformassemem lei práticas corruptas? Em outras palavras: ese legalizassem a corrupção como legalizaram ausura?

O conceito de ética e de corrupção deve seruma construção conjunta, livre, dialógica, consensualem uma sociedade livre das engrenagens corruptaspresentes nas estruturas sociais, econômicas epolíticas modernas e fortemente impregnadas noselementos simbólicos das representações de mundopresentes nos cotidianos. Em outras palavras: acabarcom a corrupção exige compreender as estruturasobjetivas e simbólicas da sociedade capitalistaconstruída na modernidade e eliminá-las. Sem isto,ficar-se-á permanentemente repetindo políticaspúblicas pontuais, reapresentadas periodicamentecom nova embalagem, políticas estas que nãofuncionaram no passado e não funcionarão no futuro.

4 ÉTICA X DIREITO

O Direito está ocupando o espaço da ética.Grande perigo. Esta é mais uma pontuaçãonecessária para se entender a relação entre ética,Direito e corrupção. Vive-se no Brasil umfenômeno que se reproduz também em outrosEstados: a expansão do Direito e a construçãoideológica da crença no Direito (especialmente oDireito Penal) para a solução de problemasrecorrentes (já discutidos) de corrupção eviolências. A leis se reproduzem como coelhos. Leipara punir as pessoas que dirigem após beberemálcool; lei para proibir a palmada; lei da ficha limpapara proibir candidatos “sujos” de se candidatarem;lei para proibir o tabaco; leis, leis e mais leis. Oproblema não é apenas o fato de que estas leisnão funcionarão, é obvio, pelo que já se discutiuanteriormente. O problema, também, não é o fatode que estas leis desviam a atenção dos reaisproblemas e fatos geradores da violência, exclusãoe corrupção. Talvez, o maior problema seja asubstituição da ética pelo Direito.

A busca por uma sociedade ética não é umdesafio novo. Na modernidade, a grande pretensãode construção de uma sociedade ética, queprescindisse do Direito (Direito Penal incluído,óbvio), foi defendida por anarquistas e comunistas.A pretensão da construção de uma sociedade semEstado, sem Direito, sem Polícia, Exército,Governos, Parlamentos, propriedade privada e

qualquer outra forma de poder, de opressão eexclusão foi defendida pelas lutas de comunistas eanarquistas, que por caminhos distintos,acreditavam na possibilidade de construção de umasociedade de pessoas livres de qualquer forma deopressão. Esta liberdade seria conquistada após aconstrução pelo Estado socialista (na perspectivacomunista), de um ser humano ética, moral eintelectualmente “evoluído”.

Sem pretender discutir neste momento a“hipótese comunista” (BADIOU , 2012), ressalta--se a aposta na ética. Para viabilizar a hipótesecomunista seria necessário construir sereshumanos éticos. Nesta sociedade, as pessoasrespeitariam o outro, seriam solidários, honestos,íntegros, não roubariam ou agrediriam, não pormedo do Estado e do Direito Penal, não por medoda polícia e do sistema penitenciário (pois nadadisto existiria mais), mas pelo fato de estaremconvencidos de que respeitar o “outro”, ser solidárioe honesto, seria a única conduta correta e logo,possível, de ser adotada.

Não é o objeto deste texto, como disseanteriormente, debater a hipótese comunista: seráesta sociedade de pessoas éticas e conscientespossível? O que ressalto aqui é o fato da aposta napossibilidade, na busca e na luta de uma sociedadeética que não mais necessite do Direito.

Hoje, ocorre o contrário! Hoje, ocorre ooposto! As sociedades contemporâneas apostamno Direito como a solução de tudo, o que significaa falência da ética e da moral.

Explica-se.O Direito, ainda necessário, e todo o seu

aparato ideológico, punitivo e repressor, pode sernecessário nas sociedades que se conheceatualmente. Se no Estado moderno, o Direito serviu(e ainda serve em boa medida) para proteger apropriedade e os privilégios (direitos para alguns)de uma minoria de homens, brancos e proprietários(substituídos por proprietários diversos hoje), oDireito, mais recentemente, também passou acumprir um outro papel: proteger e garantir direitospara aqueles que foram sistematicamenteexcluídos do sistema social e econômico eestruturar formas e sistemas de participaçãopolítica democrática, o que resultou noreconhecimento do Direito à Diferença, e maisrecentemente, o Direito à Diversidade. Bem, oDireito pode ser necessário, ainda, durante umtempo razoável (entendam o tempo razoável comoquiserem).

Page 43: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

43

Portanto, os Direitos Fundamentais,especialmente o Direito à Diversidade, é umaimportante conquista na luta pela superação de umamodernidade padronizadora e excludente.

O problema reside no fato de fortalecer oDireito Penal como encobrimento e distração. Enão só isto: o maior problema está na ampliaçãodo Direito Penal: tudo passa a ser criminalizado.Todas as condutas não aceitas (não aceitas porquem?) são agora objeto de punição, decriminalização. Presencia-se uma invasão radicaldo Direito sobre o espaço que deveria permanecercom a ética (qual deve ser o espaço da ética). Oresultado disto é a troca de condutas decorrentesdo convencimento por condutas decorrentes domedo. Explica-se. Nos espaços éticos, as pessoassão levadas a agir de determinada maneira porestarem convencidas de que esta é a condutamoralmente sustentável e eticamente correta. Nocampo do Direito, as pessoas são levada a agirnão apenas (e talvez principalmente) por estaremconvencidas, mas pela existência de uma sançãoestatal, penal, que ameaça a paz, a liberdade e aintegridade do infrator.

Assim, quanto mais Direito Penal, mais seexige do Estado a capacidade de vigiar e punir(FOUCAULT, 1987). Uma pergunta salta diantede percepção: e se o Estado não conseguir vigiare punir o suficiente para intimidar as pessoas aagirem como o Estado (quem tem poder) desejaque estas pessoas ajam?

Veja-se, então, o resultante desta equação: oEstado, por meio do Direito, chamou tudo para si.“Posso resolver tudo por meio do Direito Penal,do controle, da polícia e do sistema penitenciário”,dizem os donos do poder. Diz ainda o “Estado”:“posso acabar com a corrupção punindo econtrolando os corruptos”. Entretanto, alguém,timidamente, no fundo da sala, levanta a mão e faza seguinte pergunta: se o Estado absorveu toda aética, se tudo passou a depender de um Estadoque tudo controla, tudo vê e a todos pune, se algumdia este Estado não conseguir mais controlar, vere punir, o que restará, se toda a ética foi reduzidaao direito penal?

Não restará nada. Se as pessoas não maisagem por convencimento racional (ético), mas simpor coação, quando a coação anular as pessoasou não mais funcionar, não sobrará muita coisaalém do caos.

Não, o Direito Penal não solucionará acorrupção, e o triste espetáculo que se assiste noSupremo Tribunal Federal (STF) ainda

comprometerá o que o Direito ofereceu de muitobom: respeito aos Direitos Fundamentaisconquistados por meio de muita luta.

5 O CANDIDATO LIMPO

Como se não bastasse tudo isto, ainda seassiste à volta de uma outra assombração: operigoso discurso da pureza.

Acredita-se que se pode começar este tópicocitando a Bíblia: “Mas, como insistissem emperguntar-lhe, [Jesus] ergueu-se e disse-lhes:aquele dentre voz que está sem pecado, seja oprimeiro que lhe atire uma pedra.” (João 8, 7).

O que pode dizer Jesus nesta passagem?Aqueles que apontam o dedo acusando o outronão se veem no espelho. Pior. Aqueles que apontamo dedo em direção ao outro, acusando-o decorrupção, de impureza, de mentira, não enxergamseus erros, não querem enxergar, fingem nãoenxergar, e o que pode ser ainda pior: creemfirmemente que não têm pecados, que são puros.Estes que creem em sua pureza são os maisperigosos, são os que apedrejam e matam.

A crença na pureza moral, na pureza racialou qualquer outra pureza levou milhões, emdiversos momentos da história, à morte e à tortura.Não há pior discurso do que o discurso da pureza.Não há pior atitude de uma pessoa do que a de sejulgar puro.

Quando se assiste uma propaganda oficialda Justiça Eleitoral, de uma bela senhora, afirmandoque deseja candidatos “limpos”, e as pessoasaceitam este discurso com muita tranquilidade,alguma coisa parece, mesmo, que está fora delugar. Entra-se em uma estrada que não se deveriaentrar, e estão todos indo longe demais nela.

O pesquisador francês Sémelin (2009)escreveu o livro “Purificar e destruir”. Trata-sede um importante estudo sobre massacres egenocídios. O autor estuda três passagens trágicas,três genocídios: a “Shoah” judaica na segundaguerra mundial; o conflito e “limpeza” étnica naex-Iugoslávia; o genocídio da população Tutsi, deRuanda. O livro se refere ainda aos genocídiosarmênio e cambojano.

Neste livro, o autor descreve, no decorrer deuma análise minuciosa, os passos dados em direçãoao extermínio em massa. Pode-se resumi-los nosseguintes:

a) a política não mais enquanto razão, mascomo emoção. O espaço político deixa deser um espaço racional de construção de

Page 44: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

44

consensos para ser uma competição entreadversários que almejam o reconhecimentodo seu melhor argumento;b) de adversários a inimigos. A superação daracionalidade dialógica para construção deconsensos, superada pela competição deargumentos, tem como etapa seguinte atransformação destes competidores eminimigos. Não se trata mais, nem de buscade consensos racionais, nem de vitória domelhor argumento de competidores quebuscam um “bem comum”, mas de uma lutaentre inimigos: ou está comigo ou está contramim;c) o inimigo, entretanto, tem a mesmaestatura. Embora inimigos, respeitam-se.Qual o passo seguinte? O inimigo não serámais respeitado, mas rebaixado, inferiorizado.Alguma característica no inimigo impede,definitivamente, qualquer possibilidade dediálogo;d) agora, os passos que se seguem visamcolocar este “inimigo” político em uma esferanão humana. Assim, o inimigo seráanimalizado. Estes passos dados pelo nazismoforam repetidos em outros genocídios epassaram a ser integrantes de “manuais” depropaganda eleitoral. A animalização dosjudeus e sua representação com ratos foi aestratégia nazista na década de trinta;e) depois da animalização vem a coisificação.Este é o momento do discurso religioso seinfiltrar na política. Com o discurso religiosovem a busca da pureza. Agora não são maisadversários políticos; não apenas inimigoshumanos; não mais, nem mesmo uma relaçãoentre o humano o animalizado. O outro écoisificado pelo discurso do bem e do mal.Fulano é do bem, o inimigo é do mal. Odiscurso da pureza é um passo da catástrofe;f) passo seguinte: disseminar o medo. Esteinimigo do mal, coisificado, ameaça. Ameaçaa paz de todos; a família, a propriedade. Todosestão contra a parede;g) agora é necessário o fato. Um episódio,em geral forjado (falso), desencadeia aviolência. Na Alemanha, o assassinato de umdiplomata alemão em Paris por um anarquista“judeu” desencadeia a barbárie. A noite doscristais;h) Por fim, o extermínio.O que se acaba de relatar foram os passos

em direção à violência extrema do projeto nazista.

O que se acaba de relatar pode ser encontradoem campanhas eleitorais brasileiras, hoje, sem queos passos finais sejam dados, mas com umaaproximação irresponsável e perigosa. O que seacaba de relatar decorre do discurso na crençaem uma pureza que não existe, e é muito bom quejamais exista. Os que se julgam puros (se julgamalém da condição humana) são sempre aquelesque apedrejam.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclusão, sempre provisória: os seremhumanos são seres processuais, singulares, pluraise dinâmicos.

Uma lembrança: são seres processuais ecomplexos, plurais. O que significa isto? Não sepode, jamais, deixar reduzir a um nome coletivo.Lembra-se que a nomeação na terceira pessoa,nós x eles, ideia que já este autor desenvolveu emoutros artigos e livros, é o passo para o genocídio,para a violência sem limites. A fórmula modernase repete à exaustão, mudando os nomes coletivos:“nós”, os bons, x “eles”, os maus; “nós”, osespanhóis, x “eles”, os “índios”; “nós”, os fiéis, x“eles”, os infiéis; “nós”, os arianos, x “eles”, osjudeus; “nós”, os tutsis, x “eles”, os hutus; e assimrepetindo.

Assim como não se pode reduzir uma pessoa,ser complexo, em permanente processo detransformação, que é simultânea e historicamenteuma grande variedade de identificações, a um nomecoletivo, não se pode condenar ninguém a repetir,interminavelmente, um momento de sua vida. Nãose é um fato, assim como não se é uma religião,uma nacionalidade, um time de futebol, umaprofissão ou uma condição social. Ninguém é um“pobre” ou um “rico”. Ninguém é só um “cristão”ou um “muçulmano”; ninguém é só um “homem”ou uma “mulher”; ninguém é só um“heterossexual” ou um “gay”. Todos são muitasidentificações, muitos sonhos e medos, muitosdesejos e crenças ao mesmo tempo. Os seremhumanos são plurais e complexos. As nomeaçõessão simplificações que expõe a todos ao pior.

Assim, como não se são só cristãos,muçulmanos, judeus, homens, mulheres, gays,brasileiros, americanos, africanos, asiáticos,trabalhadores, desempregados, professores, alunos,vermelhos, azuis, liberais, comunistas, socialistas,conservadores, não se são, não se pode ser, deforma nenhuma, reduzidos a um momento, umaação, ações, erros e acertos. Assim como não se

Page 45: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

45

são só isto e tudo isto, não se são também, parasempre honestos ou desonestos, corruptos ousantos, bons ou maus ou tudo isto ao mesmo tempo.

Tem-se que ter sempre o direito de mudar,de aprender, de errar e acertar de novo.

Ao término, a lembrança triste e ridícula:lembram do caso do Juiz de Direito que queria quetodos no condomínio em que morava o chamassemde “excelência”? Triste redução. Talvez ele fossejuiz com seus filhos e sua mulher e dormisse eacordasse de terno e gravata.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicosdo estado: nota sobre aparelhos ideológicos doestado. 9. ed. Tradução de Walter AndréEvangelista e Maria Laura Viveiros de Castro.

Rio de Janeiro: Graal, 1985. (Biblioteca deCiências Sociais).

BADIOU, Alain. A hipótese comunista.Tradução de Mariana Echalar. São Paulo:Boitempo, 2012. (Coleção Estado de Sítio)

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história daviolência nas prisões. 20. ed. Tradução deRaquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

SEMELIN, Jacques. Purificar e destruir: usospolíticos dos massacres e dos genocídios. Rio deJaneiro: Difel, 2009.

ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seisreflexiones marginales. Tradução de Antonio JoséAntón Fernández . Buenos Aires: Paidós, 2009.

Page 46: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

46

Page 47: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

47

ARTIGOS DOCORPO DISCENTE

Page 48: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

48

Page 49: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

49

RESUMO

O presente artigo objetiva tecer consideraçõessobre a forma inigualável de preconceito no Brasilque não se assemelha a outras expressõesconhecidas mundialmente, mas se apresenta tãodiscriminador quanto. A pesquisa é bibliográfica,utilizando artigos e livros, além das aulas de DireitoCivil I ministradas pela Professora Cyntia MirellaCangussu Fernandes Sales, na Faculdade de DireitoSanto Agostinho. Importante o estudo dessatemática para apuração crítica quanto aopreconceito que tem presença num país conhecidopelo multiculturalismo. Essa presença única quemodela suas práticas: anedotas, provérbios,comentários casuais ou ditos populares.Consequência, portanto, de uma colonizaçãoescravista que permitia a plena prática racista –racismo como espécie de preconceito. Porém, umavez proibida a escravidão e o racismo, foramsurgindo as modernas formas de discriminar, tendoum potencial ofensivo que até interfere nos direitose princípios resguardados pela atual Constituição.É o preconceito cordial, que não violentafisicamente, mas agride moralmente ehumanamente tanto o ofendido como o ofensor.

Palavras-chave: Preconceito cordial. Racismo.Multiculturalismo.

PREJUDICE IN A MULTICULTURALCOUNTRY: “jeitinho” of discrimination of

the brazilian

ABSTRACT

This article aims to make considerations about theunique form of prejudice in Brazil which is notsimilar to other expressions globaly known, but itshows itself as discriminative as the others. Theresearch is bibliographic, using articles and books,besides the classes of “Direito Civil I” by Professor

PRECONCEITO EM UM PAÍS MULTICULTURAL:o “jeitinho” de discriminar do brasileiro

Giowana Nunes de Pinho Veloso1

Cyntia Mirella Cangussu Fernandes Sales atFaculdade de Direito Santo Agostinho. This themeis important for critical ascertainment of prejudicewhich is present in a country known by itsmulticulturalism. This unique presence shapes itsactions: jokes, sayings, casual comments or popularexpressions. It is a consequence of the slavecolonization which alowed a complete racist activity– racism as a kind of prejudice. However, onceprohibited the slavery and racism, it became toemerge modern forms to discriminate, posessingna offensive potencial which interfers on the rightand principles sheltered by the Constitution of 1988.It is the cordial prejudice, which is not fisicalyviolent, but hurts moral and humanly both insultedand offender.

Keywords: Cordial prejudice. Racism.Multiculturalism.

1 INTRODUÇÃO

O Brasil é privilegiado pela diversidade detradições, dialetos, etnias e culturas. Não obstantese pensar que não há propriamente umpreconceito que possa ofender ou humilharalguém, pois as diferenças entre os povosbrasileiros os tornam em um só: o povo brasileiro.Contudo, apesar desse rico multiculturalismo, épossível identificar traços de um país colônia, noqual o racismo era legitimado e sua práticajustificava a escravidão. Mesmo sendo apenasresquícios, não diminuem a ofensividade da atualforma de preconceito: o cordialismo.

Como a própria palavra indica, aquele quese mostra preconceituoso acredita numa ideiaanterior à verdade. Esta ideia produz umestereótipo que, por sua vez, subtrai o indivíduo àcondição de objeto, pois retira sua subjetividadeúnica e torna-a padronizada. Pode-se observar,porém, devido ao histórico escravista e marcado

1 Acadêmica do Terceiro Período do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho

Page 50: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

50

pela luta das minorias, a maneira do preconceitocordial se mostra único e, muitas vezes, aceito.

2 O VOCÁBULO

É intrigante o que está na realidade dopreconceito no Brasil: sua manifestação singular,ao mesmo tempo que é tão discriminador quantooutros – por exemplo, o apartheid e a antigasegregação no Sul dos Estados Unidos –, e suapresença num país multicultural. Observa-se,porém, que, no Brasil, o preconceito não seassemelha normativamente ao apartheid ou aqualquer forma de segregação institucionalizada;ao contrário, é claramente ilícito qualquerdemonstração de preconceito no territórionacional. Todavia, não é suficiente que uma leiproíba a prática do preconceito, assim comoqualquer lei que limite o ser humano, pois, se háuma regra para tanto, é porque pode acontecer;se não, não seria preciso haver a norma. Isto podeser percebido nas normas que tratam, por exemplo,sobre os tributos. Se o ordenamento brasileiro nãodeterminasse taxas, impostos e contribuições demelhoria como essenciais para a economia do país,e não os cobrasse de maneira rigorosa, dificilmentealguém pagaria algum tributo por desejo ouiniciativa próprios.

Entretanto, primeiramente, é de sumaimportância, para os fins deste artigo, apontar osignificado da palavra preconceito. O GrandeDicionário Sacconi da Língua Portuguesadescreve tal palavra como

qualquer opinião adotada ou sentimentoconcebido ou manifestado de forma apres-sada, sem o devido exame crítico, basea-dos apenas numa experiência pessoal ouimpostos pelo meio em que se vive, pelamídia, educação, etc.; conceito ou opiniãoformada antecipadamente ou precipitada-mente, sem maior ponderação ou conheci-mento dos fatos (SACCONI, 2010, p.1.649).

Sacconi destaca aspectos válidos e críticossobre o preconceito: a participação da imprensa,da educação e do meio na formaçãopreconceituosa, o pouco ou nenhum conhecer sobre

o que é fato diante de uma opinião como essa e acaracterística de um juízo feito previamente a umaanálise crítica. Isso denota um outro fundamentodo preconceito, com uma influência determinista,que é a construção sociológica do serpreconceituoso. Tal construção passa porexperiências que desenvolvem o olharpreconceituoso: certos filmes ou programastelevisionados que, implícita ou explicitamente,utilizam um discurso preconceituoso; a educaçãoda família que ensina os membros a evitarempessoas fisicamente diferentes e a imposição deoutros indivíduos do meio que incitam o desgostocontra algumas etnias, origens, religiões eorientação sexual. Assim, surgem as demaisespécies do preconceito (SILVA; SILVA, 2012):o racismo, preconceito de gênero, regional,homofobia e outras; todas representando um grupoafetado pela discriminação.

O mesmo dicionário traz um comentárioválido sobre o vocábulo estudado:

Não se confunde [preconceito] comracismo; o preconceito não alimenta ódio,é por índole, passivo, tímido, introvertido;o racista, ao contrário, deixa extravasar seussentimentos negativos sempre que aocasião lhe pareça oportuna. O preconceito,por isso, pode ser atenuado, corrigido eaté eliminado; o racismo, por sua vezarraíga-se cada vez mais, subjugando porcompleto o ser humano. No Brasil não hápropriamente racismo, mas sim muitopreconceito social (SACCONI, 2010, p.1.649) (grifos do autor).

Tal posicionamento pode ser problematizado,uma vez que há como questionar a não-existênciado racismo no Brasil e a pouca expressividade dopreconceito. Assim, no primeiro caso, entende-secomo racismo o tratamento das diferenças físicasde um indivíduo como sendo o refletor do seuinterior. A raça2 seria a exteriorização dascaracterísticas do “eu”. No discurso racista, certosatributos subjetivos – humor, sentimentos,habilidades e aptidões – são delimitados pela etnia.Logo, a pessoa de cor negra teria características--padrão diferentes da pessoa de cor branca ou dade cor amarela, justamente devido à cor de pele

2 O mais apropriado seria “etnia”, pois, como dizem Silva e Soares (2011, p. 108) “o uso de ‘raça’ no desígnio de grupos sociaishumanos, do ponto de vista das ciências naturais, apresenta um erro, pois sugere que atualmente não há somente uma raçahumana, mas sim várias, teoria que há muito se prova inconsistente.”. Logo, raça é palavra que remete a toda a humanidade,sendo que etnia é um conjunto de características não somente morfológicas como culturais e sociais.

Page 51: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

51

que mostraria como eles são em essência. Essediscurso prevaleceu durante muitos anos, na épocado Brasil escravista. A esse respeito, tratar-se-áno próximo tópico.

Retomando a discussão proposta quanto aosignificado do vocábulo preconceito, ainda épreciso um olhar mais apurado por parte dasociedade para o conceito desta palavra,considerando que o Operador do Direito tambémnecessita da Sociologia e da Filosofia para garantircondições mínimas de problematizar comcompetência acerca da temática. Portanto, oconceito de Allport citado por Lima e Vala (2004)favorece aos estudos que aqui se iniciarão: opreconceito é uma atitude aversiva e hostil paracom alguém que pertence a determinado grupo,apenas porque aquele faz parte deste (ALLPORTapud LIMA, VALA, 2004).

Há de constatar, portanto, que o preconceitoé uma opinião que, compartilhada por váriaspessoas e disseminada como uma crença,desencadeia atos de discriminação e exclusão. Issose torna cada vez mais importante para a formaçãosocial e profissional do acadêmico de Direito.Afinal, identificar atos movidos pelo pensamentopreconceituoso é essencial para entender a causade crimes ou situações em que o direito do outronão está sendo preservado. Por exemplo, umaescola que não admite que uma criança de famílianegra seja devidamente matriculada está violandoo direito de todo jovem à educação. Logo, além decriar situações de privação social, o preconceitorestringe o acesso de várias pessoas aos seusdireitos. E é demasiado importante o papel doacadêmico e do Operador do Direito para que asgarantias individuais sejam observadas diante deum cenário de violência e discriminação.

Observa-se, assim, que o preconceito seorigina de um esquema rígido de pensamento ouuma crença que se mostra rígida, sem considerarque talvez esteja sendo equivocada ou antecipada.O indivíduo percebe apenas aquilo que lhe remeteódio ou repulsa: o alvo do preconceito. E assim,surgem os estereótipos: imagens associadas acertos comportamentos ou posturas, sendo elasboas ou ruins (FIORELLI; FIORELLI;MALHADAS JÚNIOR, 2010).

Além dessa ideia geral sobre o vocábulo, háas várias formas de preconceito, sendo aquelasapontadas pela Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil de 1988, ainda que de formaimplícita: raça, origem, cor, sexo, etnia, idade,religião e procedência nacional. Desde o

Preâmbulo, o sistema jurídico-constitucionalbrasileiro almeja uma sociedade igualitária erespeitosa: “a igualdade e a justiça como valoressupremos de uma sociedade fraterna, pluralista esem preconceitos” (preâmbulo da ConstituiçãoFederal de 1988). Além de explicitar novamente que

Art. 3.º Constituem objetivos fundamentaisda República Federativa do Brasil:[...]IV - promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo, cor,idade e quaisquer outras formas dediscriminação.

3 UM BREVE COMENTÁRIO SOBREHISTÓRIA

Uma das expressões mais comuns dopreconceito, o racismo, perdurou muitos anos, eainda é vivo em quase todos os países e regiões.O racismo – corrente do preconceito – pode serqualificado como

o exercício de uma atitude preconceituosavoltada contra determinado grupo racial,por indivíduos que acreditam ser superioresà outra raça, em virtude de seus caracteresfísicos, culturais, intelectuais, econômico--financeiro, entre outros. A convicção deexistência de raças superiores foi a principalcausa encorajadora da escravidão em todomundo (SILVA; SILVA, 2012, p. 25).

Embasado nisso e no sentido etimológico dapalavra (Grande Dicionário Sacconi) é possívelobservar o potencial ofensivo e até violento daprática racista. Afinal, vários grupos ao longo daHistória foram discriminados e quase levados àextinção devido à crença na superioridade deetnias, como a ariana na Alemanha e a branca nosEstados Unidos e em grande parte da África.

No Brasil, o racismo foi a justificativa para aprática escravista. Na época, muitos senhoresproprietários de terras negociavam escravos negrose os mantinham realizando tarefas nas lavouras enas casas. Todavia, países industrializados como aInglaterra buscavam a abolição da escravatura noBrasil. Para os ingleses em pleno desenvolvimentoindustrial e tecnológico, novos mercados fora deseu território eram essenciais para enriquecer aInglaterra. Logo, apoiaram os abolicionistasnacionais a libertarem os milhares de escravosvivendo no Brasil no século XVIII (SILVA; SILVA,2012).

Page 52: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

52

A primeira lei que contribuiu para abolir aescravidão foi a Lei 581, de 1850, denominada LeiEusébio de Queirós. O objetivo era cessar aentrada de novos escravos no país, o que jásignificou um avanço para os abolicionistas, masum regresso na economia ,em razão daconsequente supervalorização do tráfico interno,devido à oferta reduzida (SILVA; SILVA, 2012).

A lei subsequente, conhecida como Lei doVentre Livre, do ano de 1871, assinada pelaPrincesa Isabel, determinava que os filhos nascidosde escravas a partir da publicação da lei seriamconsiderados livres. Contudo, os cuidados dacriança seriam entregues ao senhor da fazendaaté os oito anos de idade, sendo que poderiamtrabalhar para este até os vinte e um anos, ou aogoverno, se fosse paga uma indenização para ofazendeiro (SILVA; SILVA, 2012). Essanegociação pode ser questionada: mesmo sendo,em tese, libertos, os filhos de escravas erampertencentes à fazenda até seus vinte e um anosse não fossem entregues aos cuidados do governo,o qual ainda deveria pagar uma quantia por essapessoa-objeto para o correspondente “proprietário”.Observando por esse ponto, pela Lei do VentreLivre, os nascidos em suposta liberdade eram,ainda, coisificados, visto que se tornavam objetoindenizatório. Logo, o fato de não ser nomeadomais escravo servia apenas como disfarce, poisnão era visto ainda como ser humano.

A última lei que precede a Lei Áurea, de1888, foi a chamada Lei dos Sexagenários, denúmero 3.270, publicada em 1885. Tal normacomunicava à população brasileira que os escravosque completassem os sessenta anos de idadedeveriam ser libertos. Com uma ressalva, porém:estes ainda trabalhariam por três anos ou atécompletarem sessenta e cinco anos para quepagassem de alguma forma os seus ex-senhores(SILVA; SILVA, 2012).

Tanto a Lei do Ventre Livre como a dosSexagenários apresentaram um contraditório: aliberdade cedida aos escravos e o ressarcimentoaos fazendeiros. Pode-se perceber a pertinênciada coisificação dos escravos e, ao mesmo tempoque eles se tornam livres, seus antigos donos (que,aparentemente, sofrem com a perda de seustrabalhadores), devem ser indenizados, pois suamão de obra já não está mais em suas posses.Estariam os ex-escravos pagando pelos anosservindo seus donos? Neste ponto que se encontrao contraditório. Na verdade, o lucro dos fazendeirosera maior do que a suposta liberdade. Sendo que

ser livre é um dos direitos mais preciosamenteresguardados na sociedade brasileira atual.Todavia, é possível ver hoje tantas regras que,mesmo apresentando incoerências com asdemandas sociais ou com níveis de contraditórioelevados, são postas e impostas ao brasileiro assimcomo as leis mencionadas. Diante desses sinaisde injustiça é que o acadêmico do Direito deveproblematizar as normas e refletir sobre a suaimposição. Essa avaliação é válida para que seobserve se os preceitos do Estado Democráticode Direito estão sendo devidamente seguidos:legalidade, justiça e igualdade. Além da referênciaà valorização da dignidade da pessoa humana,presente no art. 1.º, inciso III, da ConstituiçãoFederal e quesito tão discutido no Brasil,especialmente quando se aborda sobre opreconceito, racismo e exploração de pessoas.

Dando seguimento ao momento antes da LeiÁurea ser publicada, a abolição conquistava aospoucos sua totalidade, mesmo que somente nopapel; diferentemente do racismo, o qual continuavatão presente quanto no início da exploração. Nãobastava ser declarado livre ao nascer ou quandoestivesse idoso, provavelmente sem muita forçaou saúde, a sociedade ainda discriminavaracialmente os ex-escravos. Estes dificilmente seempregavam, frequentavam lugares públicos oufestas, pois os demais os identificavam, pela corde sua pele, e os repudiavam. Muitos senhores osculpavam por ter menos escravos em suapropriedade do que antes, contribuindo para o ódioque se tornou uma expressão do preconceito. Orompimento com o tradicionalismo preconceituosofoi uma meta muito difícil de se cumprir. Assim,surge o “medo branco”, caracterizado pelo repúdioda elite branca em relação aos escravos negros.Estes, cada vez conquistando mais sua liberdade,seriam chamados de “classes perigosas” ou de“suspeitos preferenciais” quando se tratava dedelitos (SILVA, 2014). Isso contribuiu muito parao atual pensamento preconceituoso de enxergar,muitas vezes, uma pessoa negra como perigosaou marginal.

Surge, como uma conquista histórica para oBrasil, a Lei Áurea no dia 13 de maio de 1888,assinada pela Princesa Isabel, estabelecendo noart. 1.º que a escravidão no Brasil está extinta, apartir desta data, e, no art. 2.º, qualquer proposiçãoao contrário será revogada.

Apesar do avanço social que essa lei propôs,o “medo branco” e o ódio expressadopreconceituosamente ainda motivaram exclusão e

Page 53: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

53

violência para com os negros. É o caso de um duploassassinato em 1904, de Antônia de Oliveira Fuckse sua filha Alcinda de Oliveira, de três anos deidade, negras, por Policarpo Cardoso de Oliveira,Pedro Cardoso de Oliveira, ambos brancos, e JoãoAntônio Felizardo, negro. O motivo do crime, diantedos depoimentos dos envolvidos, foi devido a umarecusa de Antônia de Oliveira de pernoitar comPolicarpo Cardoso, após este oferecer cinquentae quatro mil réis em troca. Dois meses depois,Policarpo e Pedro Cardoso, irmãos, dirigiam-se àcasa de Antônia para assassiná-la, encontrandocom João Antônio no caminho e oferecendo-lhedinheiro e um cavalo para ajudá-los, oferta que foiaceita. Chegando à casa da vítima, Policarpoanunciou-se utilizando outro nome, fazendo comque Antônia abrisse a porta e fosse surpreendidapelos três homens. Policarpo a segurou na sua camae João o ajudou, apertando suas pernas. O primeiroa degolou com uma espada e, tendo a filha da vítimadeitada ao lado na cama, a matou seguidamente.Depois, segundo o depoimento de João Antônio,Policarpo abusou sexualmente de Antônia. Emdepoimento, Policarpo Cardoso confirma o crimee o motivo, contudo, no julgamento, este já contauma nova versão da intriga meses antes comAntônia: em vez de ele ter oferecido o dinheiro aela, a vítima teria dito a ele que “ele não pousavalá porque não tinha um mil-réis para dar para umamulher branca e ia dar para uma Negra (sic)duzentos réis”, sendo que logo após, Policarpoapresentou-lhe, incomodado, os cinquenta e quatromil réis. Qual das versões é a verdadeira não é ofoco deste artigo, mas a abordagem de ser de cornegra pela segunda versão de Policarpo reflete ascondições dos negros à época. O último depoimentosugere que os serviços sexuais feitos por umamulher branca valiam mais do que uma negra, e adiferença é considerável. Percebe-se, portanto, adiscriminação aparente no Brasil, dezesseis anosapós a Lei Áurea. Vale ainda destacar que, duranteo processo, a cor de João Antônio Felizardo foiabordada várias vezes, numa tentativa de atribuirsomente a ele o homicídio. Este, por sua vez, nãopodia pagar um advogado e se conteve com umindicado pelo juiz, mas que não atuou como deveriano processo. Além da testemunha Pacífico CorrêaDornelles, parente dos irmãos Cardoso, que ajudou

a incriminar João afirmando ser ele “gatuno eladrão” (SILVA, 2014).

Apenas na metade no século XX que adiscussão sobre o preconceito é tratada com maisrigor, principalmente após a Declaração dosDireitos Humanos instituída em 1948. Há marcosna História, fora do Brasil, mesmo não tão antigos,que registram a violência e desumanidade dopreconceito. A exemplo disso, o regime nazista oqual utilizava do discurso preconceituoso paradisseminar um ódio contra demais etnias e paraperseguir e executar judeus, negros, socialistas,comunistas, homossexuais e aqueles que secontrapunham ao füher3.

Um dos argumentos que fizeram com quemuitos alemães se juntassem ao nazismo foi acrença na superioridade da etnia ariana, sobre todasas outras. Essa ideia partiu primeiramente de umpequeno grupo, e, ao tratá-la como assunto político,foi compartilhada com cada vez mais pessoas. Oódio propagado por esse pensamento – o qual sepercebe, hoje, que não era verdadeiro ou ao menosjusto –, estava presente quando um dos maioresmassacres humanos de toda História ocorria: oholocausto.

De acordo com o discurso nazista, aquelesque não se encontravam no perfil traçado – cristão,não-judeu, heterossexual, branco e aliado ao partido– pelo líder ariano, eram considerados tão inferioresque não eram vistos como seres humanos, nãomerecendo nenhum tratamento diferente detortura, trabalho forçado e morte.

Na África do Sul, outro foco dediscriminação, até o ano de 1990, ainda se constavanitidamente exclusão por causa de hostilidade dogoverno liderado por brancos para com a etnianegra. Neste caso, todavia, evidencia-se o racismo,que, como apontam Lima e Vala:

diferentemente do preconceito, é muito maisdo que uma atitude. O racismo constitui-senum processo de hierarquização, exclusão ediscriminação contra um indivíduo ou todauma categoria social que é definida comodiferente com base em alguma marca físicaexterna (real ou imaginada), a qual é re--significada em termos de uma marca cultu-ral interna que define padrões de comporta-mento (LIMA; VALA, 2004, p. 402).

3 Significa “líder”, em alemão. Conhecida mundialmente pela associação desta a Adolf Hitler. Utilizar-se-á essa conexão para maisbem situar o momento histórico retratado neste tópico.

Page 54: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

54

Com o tempo, porém, as leis se modificarampara sancionar praticantes do racismo e dopreconceito. Logo, na década de 1990, de um ladodo Oceano, o apartheid se encerra, e do outro,um apartheid com “jeitinho” brasileiro cresce.Afinal, o ordenamento brasileiro já proibia a práticado preconceito, logo, o que houve fora odesenvolvimento de uma discriminação velada,disfarçada.

Estas características serão mais bemdiscutidas no próximo tópico.

Mesmo com a abolição da escravidão noBrasil assinada pela Princesa Isabel em 1888,somente em 1951, como ressaltam Silva e Silva(2012), com a Lei 1.390, conhecida como LeiAfonso Arinos, a discriminação racial foi repudiadanormativamente e determinou-se sanção para oscasos previstos no art. 1.º:

Art. 1.º Constitui contravenção penal,punida nos termos desta Lei, a recusa, porparte de estabelecimento comercial ou deensino de qualquer natureza, de hospedar,servir, atender ou receber cliente, compradorou aluno, por preconceito de raça ou decor.Parágrafo único. Será considerado agenteda contravenção o diretor, gerente ouresponsável pelo estabelecimento.

Nos próximos artigos da mesma Lei, estãoprescritas as situações detalhadas de cadapossibilidade do art. 1.º e suas respectivas penas.Tal Lei foi revogada pela Lei n. 7.437/85, a qualacrescentou atitudes preconceituosas por motivode sexo ou de estado civil. Não tardou, porém, paraque a Constituição Cidadã de 1988 declarasse noart. 5.º, inciso XLII, o texto “a prática do racismoconstitui crime inafiançável e imprescritível, sujeitoà pena de reclusão, nos termos da lei.”.

Quanto à característica de ser um crimeinafiançável, o crime de racismo não admite comoopção de sanção o pagamento em pecúnia. O réuserá privado de sua liberdade e é ilícito que seamenize ou que se substitua a pena por meio defiança. Já o termo que adjetiva o delito comoimprescritível denomina que o direito do Estado depunir o delinquente não apresenta prazo. Logo,mesmo passando-se anos após o crime, a vítima,por medo, por exemplo, que não acionou a Justiça

antes, pode exercer o seu direito subjetivo buscandoa aplicação da lei.

Ainda sobre o inciso XLII do art. 5.º daConstituição Federal de 1988, a escolha da reclusãodo racista em vez de detenção mostra a importânciade punir severamente, pois não há a opção de prisãodomiciliar por determinado tempo da pena comopermite a detenção, o que proporciona um confortoe maior liberdade. Logo, em se tratando deracismo, somente é positivado o seu cumprimentototal dentro da prisão.

4 PRECONCEITO NO BRASIL

Hodiernamente, há o reconhecimento dasfalhas jurídicas no combate ao preconceito contraos grupos minoritários4. A Declaração Universalde Direitos Humanos, de 1948 impulsionou o Brasile outros países a combaterem a miséria, a fome,as guerras e o preconceito. Devido a isso e aTratados Internacionais, o Brasil normatizou comodelito praticar ou, de alguma forma, externaropiniões preconceituosas. Porém, já foiapresentado que o preconceito no Brasil sedistingue dos demais. Esse não condiz com o paísque é reconhecido mundialmente por suadiversidade de culturas, etnias, costumes.

A realidade brasileira é o multiculturalismo –uma das variedades culturais mais complexas eestudadas do mundo. Pessoas como RobertoDaMatta, Sérgio Buarque de Holanda, GilbertoFreire, Arthur Ramos e Nina Rodrigues investiramem pesquisas e teorias sobre o povo brasileirodevido a esse aspecto multicultural.

Sendo um país único em diversidade, o modoque a variedade não é respeitada também seráinigualável. Vale, entretanto, ater ao significadoda palavra preconceito, o qual não muda, mes-mo que sua expressão seja diferente: essa opi-nião pré-estabelecida à verdade não necessaria-mente condiz com a realidade, pois, como a pala-vra já mostra, o preconceito é uma concepçãoprévia ao pleno conhecimento. Não somente isto,mas também é formulada uma ideia que não estáconsiderando a essência – a personalidade, os ta-lentos, aptidões, temperamento, sensibilidades, pai-xões – daquele que é julgado – não se torna possí-vel compreender o outro. Isto porque o precon-ceito venda o sujeito para que este não enxergue

4 Considera-se como minoria, nesse contexto, os povos que já sofreram (ou sofrem) alguma discriminação, massacre, ou outraforma de violência ou exclusão. Como exemplos, as mulheres, os negros e os quilombolas.

Page 55: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

55

o outro além do motivo de seu pré-julgamento: acor, os traços físicos, a maneira de se vestir, seportar, de falar ou qualquer outra característica.Logo, considerando a moral kantiana que trata oser humana como um valor absoluto, possuindodignidade (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001), oúnico resultado é uma pessoa injustiçada e outramenos humana.

A expressão “jeitinho brasileiro” associadaao preconceito representa muito bem a maneirade o brasileiro discriminar o outro, principalmenteo negro. É um racismo cordial, como nomeiam Turrae Venturi, citados por Lima e Vala (2004), que écaracterizado por uma prática disfarçada pelapolidez e pelo humor nas anedotas, falas com tomde brincadeira e até provérbios. Esse racismo podeser associado ao “medo branco” da época daescravidão. Ambos retratam uma aversão aonegro. Entretanto, o contexto do segundo nãocondenava os praticantes do racismo; era livre talexpressão de ódio. Já o primeiro foi adaptado, demodo a não transparecer – camuflar-se – dianteda Lei e da sociedade.

As anedotas do preconceito cordialtrabalham com estereótipos, enraizando-os efortalecendo a crença neles. Contudo, essa questãopassa, muitas vezes, despercebida, pois o riso e adescontração provocados são essenciais para queas piadas não demonstrem o real teor de julgamentoque contém. Dessa forma, ainda que inconsciente,o estereótipo se perpetua, pois aquela piada serárepetida para os amigos, a família e colegas detrabalho, a fim de provocar a mesma reaçãodescontraída e com o mesmo efeito de enraizaraquele conceito. Porém, se o alvo do preconceitovelado estiver ouvindo a anedota, o interlocutorainda pode dizer: “sem ofensas”. O acontecimentopode realmente não ter a intenção de prejudicarninguém, mas é capaz de ofender quem ouve. Alémde, como foi dito, ajudar a disseminar uma ideiabaseada em um conceito pré-definido, umjulgamento à margem da verdade. Ainda que porbrincadeira.

Alguns provérbios e frases populares queincitam conceitos já desmentidos, além de serempassadas de geração em geração, reiteram opreconceito disfarçado. São expressões como“lugar de mulher é na cozinha”, “o sexo frágil”,“amanhã é dia de branco”, “serviço de preto” quesão tão conhecidas, usadas, e também muitas vezesacreditadas pelos que proferem essas palavras.Ainda que incitem divertimento, sarcasmo,casualidade, dependendo do contexto, há de se

atentar à origem dessas expressões. Elas surgiramem momentos em que justificavam o tratamentodiscriminatório. No exemplo da mulher na cozinha,por exemplo, retrata uma época em que o gênerofeminino não era reconhecido nem pela lei comoser humano igual ao homem. E, mesmo a partir dainclusão no ordenamento jurídico de que homens emulheres deverão ser tratados como iguais, antigastradições, conservadoras, como esses provérbios,retomam preconceitos já hoje contestados edesmentidos, mas não esquecidos.

São os padrões reafirmados a cada geraçãoque dificultam o desenvolvimento normal de umasociedade. Esses significam o apego ao passado,ao conservadorismo, que muitas vezes não permiteque novos conceitos e evoluções se consolidem.No caso do racismo, o pensamento conservador eo preconceito cordial afirmam a hierarquizaçãosocial deixada pelos colonizadores, a ideia de “lugarpara negro” e “lugar para branco” e a padronizaçãode certos comportamentos “de negros” e “debrancos”. Foi disseminada entre os brasileiros aideia de que a pessoa negra denota “bandidagem”,e o branco, “burguês”. Além da herança da épocada escravidão que, uma vez proibida, o racismoprolongou o sofrimento dos ex-escravos e dos seusfilhos, os quais dificilmente conseguiam umemprego bom, salário adequado e permissão paraentrar em lugares públicos e privados frequentadospelos brancos. Com o “medo branco”, o olhar quea elite tinha sobre seus ex-escravos e a poucalegitimidade da elite sobre a abolição resultou oestereótipo que prevalece até hoje de que o negroé perigoso (SILVA, 2014).

Pelas pesquisas sobre o racismo no Brasil,realizadas por Turra e Venturi, citados por Lima eVala (2004), é necessário atentar que as atitudesmovidas pelo racismo, normalmente, sãomoralmente repudiadas pela população. Porém, oque é observado é a constante prática destas, aindaque muitos censuram quem afirma ser racista. Éum círculo de hipocrisias: ser preconceituoso érepreensivo, entretanto, aquele que julga opreconceituoso também discrimina, e assim sesucede com outro que censura esta pessoa, masque também tem uma visão estereotipada.

É possível associar o crime de racismo a nãosomente o art. 3.º, inciso IV da Constituição de1988 que proíbe veemente sua prática, mas tambémcom o descumprimento do princípio da dignidadeda pessoa humana. Fundamento este que

irradia valores e vetores de interpretaçãopara todos os demais direitos fundamentais,

Page 56: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

56

exigindo que a figura humana receba sempreum tratamento moral condizente eigualitário, sempre tratando cada pessoacomo fim em si mesma, nunca como meio(coisas) para satisfação de outros interessesou de interesses de terceiros(FERNANDES, 2011, p. 231).

Dessa forma, o amplo uso do argumento dadignidade da pessoa humana é também discutidonos casos de crimes de racismo. Afinal, quando sediscrimina alguém, ocorre um processo dedesumanização de ambas as partes – mas, demaneiras diferentes. O ofendido é visto cominferioridade, classificado como ser abaixo dacondição humana, segundo o racista; coisificando--o, a fim de ser objeto dos interesses – nãofinanceiros, mas morais – do ofensor. Já este, aotentar se exaltar no conceito de pessoa, viola adignidade do outro, tornando ele próprio alguémmenos humano, menos sensível ao próximo.

Na questão sobre gênero, o feminino é oprincipal alvo do preconceito. Apesar dasconquistas ao longo da história que transformaramvários conceitos conservadores sobre a mulher –o direito de votar, trabalhar fora de casa, a própriamaneira de se vestir e que lugares frequentar –,há tantos crimes contra a mulher quanto anedotascordiais que a inferiorizam em relação aos homens.Sobre os crimes, o Instituto Avante Brasil divulgouque, em 2013, até 70% das mulheres brasileiras jásofreram alguma violência física e/ou sexual porum parceiro íntimo. No mesmo ano, 4.762 mortesde mulheres por meios violentos foramcomputadas. Até então, a Lei 13.104, conhecidacomo Lei do Feminicídio, ainda não existia. Apenasem 2015, com a publicação da Lei em assunto, ohomicídio contra mulheres foi destacado e éconsiderado crime hediondo. Deve-se explicar,antecipadamente, que a Lei 10.104, de 9 mar. 2015,é uma lei modificadora. Ela alterou o art. 121 doCódigo Penal para acrescentar o § 2.º-A e o incisoVI ao § 2.º do referido art. 121. Importante, porém,o motivo do crime, indicado pelo novo inciso VI do§ 2.º do art. 121 do Código Penal, que é por ser,simplesmente, mulher. Essa razão de se cometerum crime é resultado de uma sociedadeconservadora, que encontra razoabilidade em mataruma mulher apenas por este ser seu gênero. Assimdescreve o Código Penal com as alteraçõesimpostas pela Lei do Feminicídio:

Art. 121. Matar alguém:[...]

§ 2.° Se o homicídio é cometido:VI - contra a mulher por razões da condiçãode sexo feminino:[...]Pena - reclusão, de doze a trinta anos.§ 2.º-A Considera-se que há razões decondição de sexo feminino quando o crimeenvolve:I - violência doméstica e familiar;II - menosprezo ou discriminação à condiçãode mulher.[...]§ 7.º A pena do feminicídio é aumentada de1/3 (um terço) até a metade se o crime forpraticado: I - durante a gestação ou nos 3 (três) mesesposteriores ao parto;II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos,maior de 60 (sessenta) anos ou comdeficiência;III - na presença de descendente ou deascendente da vítima.

Alguns exemplos do conservadorismo aindavisto comumente na sociedade brasileira são a ideiade que mulher deve saber cozinhar, cuidar do lar,se casar, ser submissa ao marido (sendo que ambosdeveriam ser companheiros; “co” significa “ao ladode”), e ter um salário inferior ao do marido e doshomens que possuem o mesmo cargo que o seu.Essa última questão pode ser representada pelosdados: em 2014, o salário das mulheres, em média,equivalia a 74,5% do salário dos homens, segundoo IBGE (2016).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se verificar que o Brasil, ainda quedispondo de um multiculturalismo tão ricamentediverso, não está isento de práticaspreconceituosas – mesmo veladas e disfarçadaspelo tratamento cordial. O próprio ordenamentojurídico do país proíbe os crimes motivados peloracismo ou outras espécies de discriminação,porém, com preconceito cordial, é dificultoso paraa Justiça identificar se houve o dolo de desrespeitaro outro. Considerando também que, com asanedotas, provérbios e comentários que incitam oriso, os “pré-conceitos” por eles representados seperpetuam, pois a cordialidade é característicaforte e muito presente na cultura brasileira.

Contudo, já não condizem mais essas ideiascom a realidade do país que tanto valoriza aigualdade de direitos e a criminalização dopreconceito. São ideias conservadoras, que

Page 57: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

57

remetem ao ódio e à crença na hierarquizaçãoentre os seres humanos, que humilham grupos ese revestem de injustiça e imoralidade. Porém, porcima dessa roupagem preconceituosa, há acordialidade, o “jeitinho brasileiro” de camuflar aantijuricidade de suas práticas. Cabe aosacadêmico e Operador do Direito problematizaremo preconceito cordial, para que seja observada aJustiça na sociedade e que os direitos e garantiasse tornem cada vez mais eficazes. Afinal, não háoutro cenário, para o ofendido, do que a injustiça ea subversão de seus direitos; e, para o ofensor, adesumanidade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.

BRASIL. Lei n.º 1.390, de 3 de julho de 1951.Lei Afonso Arinos. Inclui entre as contravençõespenais a prática de atos resultantes depreconceitos de raça ou de cor. Diário Oficial[dos] Estados dos Unidos do Brasil, Rio deJaneiro, DF, 10 jul. 1951.

BRASIL. Lei n.º 3.353, de 13 de maio de 1888.Lei Áurea. Declara extinta a escravidão noBrasil. Coleção de Leis do Brasil, Rio deJaneiro, DF, 13 maio 1888.

BRASIL. Lei 13.104, de 9 de março de 2015.Altera o art. 121 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7de dezembro de 1940 - Código Penal, paraprever o feminicídio como circunstânciaqualificadora do crime de homicídio, e o art. 1.ºda Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, paraincluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.Diário Oficial [da] República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 10 mar. 2015.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso dedireito constitucional. 3. ed. rev. ampl. e atual.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

FIORELLI, José Osmir; FIORELLI, MariaRosa; MALHADAS JUNIOR, Marcos JulioOlivé. Psicologia aplicada ao direito. 3. ed.São Paulo: LTr, 2010.

IBGE - Instituto Brasileiro de Pesquisa eEstatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 21 jan.2016.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo.Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2001.

LIMA, Marcus Eugênio Oliveira; VALA, Jorge.As novas formas de expressão do preconceito edo racismo. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9,n. 3, p. 401-411, 2004.

SACCONI, Luiz Antonio. Grande dicionárioSacconi da língua portuguesa: comentado,crítico e enciclopédico. São Paulo: NovaGeração, 2010.

SILVA; Amaury; SILVA, Artur Carlos. Crimesde racismo. Leme: JH Mizuno, 2012.

SILVA, Márcio Antônio Both da. Histórias de umlugar onde “preconceitos raciais nunca houve”: osnegros nas matas do Rio Grande do Sul (1889--1930). Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 28, 2014.

SILVA, Maria Aparecida Lima; SOARES,Rafael Lima Silva. Reflexões sobre os conceitosde raça e etnia. Entrelaçando: RevistaEletrônica de Culturas e Educação, Ed.Universidade Federal do Recôncavo Baiano,Amargosa (BA), a. 2, n. 4, p. 99-115, 2011.

Page 58: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

58

Page 59: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

59

RESUMO

O presente trabalho objetiva demonstrar ofundamento no qual se baseia o instituto do Tribunaldo Júri no Brasil e nos Estados Unidos, bem comosuas divergências elementares. Intenta-se, damesma forma, analisar e pormenorizar os aspectoscapitais do dado instituto em ambos os países,individualmente, justificando através de consultaem fontes históricas e na doutrina o porquê dessasdivergências. Faz-se mister salientar, outrossim, asdisparidades no que concerne à comunicabilidadedos jurados no Tribunal do Júri dos dois países emquestão, visto que é ponto primacial às finalidadesdo estudo.

Palavras-chave: Júri. Direito Comparado. Brasil.Estados Unidos da América.

ABSTRACT

The following work aims to show the fundamentalsin which are based the Jury institute in Brazil andin the United States, as well as their elementarydifferences. An attempt is made, likewise, toanalyze and itemize the capital aspects of the saidinstitute in both countries, individually, justifyingthrough reference in historical sources and in thedoctrine the reason of these disagreements. It ismade necessary to stress, similarly, the discrepancyregarding the communicability of the jurors in theJury Trial in both countries at stake, whereas thatis a primordial matter to the scope of the study.

Keywords: Jury. Comparative Law. Brazil.United States of America.

1 INTRODUÇÃO

A participação do povo na atuação do Estadose mostra fundamental à preservação de suasoberania. O instituto do Júri surge como uma

TRIBUNAL DO JÚRI: análise entre Brasil e Estados Unidos

Igor Emanuel Pereira Silva1

forma de efetivação da Justiça pela sociedade, e évisto como um dos aspectos mais democráticospresentes nas constituições de várias nações.Entretanto, devido a fatores culturais, o dadoinstituto se desenvolveu de variadas formas aoredor do globo.

O presente trabalho visa demonstrar, deforma objetiva, como se desenvolveram os Júrisnorte-americano e brasileiro, ressaltando asprincipais dessemelhanças e similitudes entre osdois sistemas. A fim de se estabelecer uma análisecomparativa entre o modelo de Júri vigente nosEstados Unidos e no Brasil, é de suma importânciaexaminar os aspectos históricos de cada um, bemcomo a ideia universal do Tribunal do Júri.Acredita-se que através da comparação é possívelevidenciar fatores determinantes de cada sistemajurídico, assim como da cultura de cada país noque se refere à Justiça.

Não se aspira, todavia, fazer uma comparaçãodetalhista e completa entre os dois modelos de Júri.Apenas se busca dar uma visão geral do institutoem análise, universal e individualmente, apontandoos pontos discordantes e coincidentes entre otribunal popular nas duas nações abordadas.Ademais, considera-se qual dos modelos mais bemretrata o ideal maior do Júri: participação popularna efetivação da Justiça.

Com esse objetivo, dividiu-se o presenteArtigo de maneira didática, abordando em umprimeiro momento aspectos gerais e históricos doinstituto do Júri, subsequentemente pontuando aspeculiaridades de cada sistema em questão,realizando, em um último momento, a análisecomparativa desses sistemas, seguido das devidasconsiderações.

2 O TRIBUNAL DO JÚRI: ORIGEM EASPECTOS GERAIS

A instituição do Tribunal do Júri surge comotentativa de legitimar o exercício da democracia,de modo que a participação popular no julgamento,

1 Acadêmico do Terceiro Período do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho.

Page 60: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

60

por meio da democracia participativa, assegurassea participação da sociedade na atuação estatal.

Diante de uma série de teorias e propostasdiscordantes, que divergem quanto ao momentohistórico da gênesis do Júri, torna-se difícilassegurar uma origem exata do instituto. Isso sedá devido à manifestação popular nos julgamentosser dessemelhante e apresentar-se de formaheterogênea durante o curso da História(BISINOTTO, 2015).

Segundo a doutrina majoritária, o Tribunal doJúri como hoje se conhece advém da Magna Cartainglesa de 1215, que garantia uma série de direitosaos cidadãos perante o Estado. No entanto, hávestígios de um tribunal composto por cidadãosdesde os primórdios. De acordo com Nucci (2008a),havia na Palestina um tribunal designado a julgarcrimes puníveis com a pena capital, que eraconstituído por padres, levitas e chefes de famíliade maior importância em Israel. Tal ficou conhecidocomo Tribunal dos Vinte e Três, e ocorria em vilasde população excedente a cento e vinte famílias,tendo atribuído aos crimes julgados nesse tribunala pena de morte.

Ferreira (2015) destaca que “outra esteirade pensamento aponta o surgimento deste institutonos áureos tempos de Roma com os judices jurati,também na Grécia antiga existia a instituição dosdiskates, podendo mencionar ainda os centenicomitês.”. Ainda segundo o autor, na Grécia, osistema de julgamento era decomposto em doisconselhos, a Helieia e o Areópago. A Helieia eradesignada a julgar atos menos relevantes e o faziapor meio de suas próprias convicções, sendo oAreópago incumbido de julgar crimes de homicídioque eram premeditados, utilizando-se do sensocomum nas decisões proferidas.

Quanto ao aspecto variável do instituto,elucida-se que,

No correr da história e nos diversos países,apresentou ele grandes variações deestrutura, como o escabinado (tribunalmisto, em que o juiz togado também vota),de origem germânica ou franca, e oassessorado, de origem italiana. O júriinglês, aliás, se desdobra em grande júri,que decide sobre a formação da culpa, epequeno júri, que profere o julgamentodefinitivo (GRECO FILHO, 1997, p. 412).

Aos que defendem a origem inglesa do Júri,o instituto foi concebido quando o Concílio deLatrão aboliu as Ordálias ou Juízos de Deus, que

apresentavam um julgamento notadamenteteocrático, e instalaram o tribunal popular(TOURINHO FILHO, 2013). “Ordáliascorrespondiam ao Juízo ou julgamento de Deus,ou seja, crença de que Deus não deixaria desocorrer o inocente.” (BISINOTTO, 2015).

Com a supressão das Ordálias, o tribunalpopular inglês adquiriu um formato composto deum pequeno Júri, composto por doze pessoas, e ogrande Júri, constituído de vinte e três jurados.Enquanto o primeiro era incumbido de julgar o casoconcreto, apresentando um veredicto, o segundose encarregava apenas da acusação, já que eraintegrado por pessoas que testemunharam o crimeque estavam a julgar. Relativamente a como sedeu a organização do Júri inglês,

[...] nesse conjunto de medidas, acusaçãopública, que até então era feita por umfuncionário, espécie de Ministério Público,passou a ser feita pela comunidade localquando se tratava de crimes graves(homicídios, roubos etc.), surgindo assim,o júri que, como era formado por um númerogrande de pessoas (23 jurados nocondado), foi chamado de grandjury (Grande Júri). Por isso era chamado deJúri de acusação (RANGEL, 2008, p. 485).

A partir da Inglaterra, o Júri encontrou espaçona França após a Revolução Francesa, eposteriormente, teve repercussão em quase todaa Europa. Quanto ao tribunal popular na França, ésalientado que,

Após a Revolução Francesa, de 1789, tendopor finalidade o combate às ideias emétodos esposados pelos magistrados doregime monárquico, estabeleceu-se o Júrina França. O objetivo era substituir umJudiciário formado, predominantemente pormagistrados vinculados à monarquia, poroutro, constituído pelo povo, envolto pelosnovos ideais republicanos (NUCCI, 2008a,p. 42).

Voltado às ideias iluministas, a RevoluçãoFrancesa organizou aspectos referentes aoJudiciário, incluindo a adoção do Júri como fatorrelevante ao exercício da soberania popular. Combase nisso, o Júri se alastrou pela Europa comoum ideal de democracia e liberdade a se almejar,atribuindo grande relevância à participação do povonos julgamentos, e conferindo-lhe a ideia de “justiçapopular”.

Page 61: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

61

Quanto à denominação, Tourinho Filho (2013)ressalta que na Inglaterra eram chamados de“jurados” os que participavam do Júri devido aofato de os membros convocados realizarem umjuramento. “Este corpo de 12 cidadãos eradenominado Júri (jurados) porque prestavajuramento antes de dar seu veredicto; seusmembros eram chamados jurados, pessoas quehaviam prestado juramento.” (TOURINHOFILHO, 2013, p. 770). O que se nota é a presençado tribunal popular em vários espaços da História;contudo, o Júri, estritamente dito, só foi concebido,como concorda a maioria da doutrina, na Inglaterra,com o advento da Magna Carta de 1215. Esse é oJúri do qual sofre influência o Brasil, e que sedisseminou pelo mundo a partir de sua origeminglesa. Nesse sentido,

[...] há uma diferença de concepção entre otribunal popular e o júri. Aquele tem origemna própria formação da sociedade, em todosos aspectos de expressão cultural e daorganização social. Este tem uma origemmais definida e precisa, sendo nesteparticular identificada com a Inglaterra, oque gerou todas as consequênciashistóricas que vamos analisar em seguida(REIS, 2015).

Assim sendo, o Júri, em seus aspectos gerais,formou-se de maneira específica na Inglaterra,tendo ali sua origem nos moldes conhecidoshodiernamente em diversos ordenamentos. O Júriinglês teve imensa influência na estruturação detodos os demais tribunais populares que,subsequentemente, vieram a se constituir, demaneira especial nos Estados Unidos, que se veráde modo mais atencioso posteriormente.

3 O TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO

No conceito universal de Tribunal do Júri,vigora a ideia de julgamento pelos pares, o que noBrasil não é diferente. O instituto foi inicialmenteestabelecido no país em 18 de junho de 1822,limitando-se ao julgamento de crimes de imprensa(BISINOTTO, 2015).

A partir da Constituição Imperial de 1824,teve sua competência entendida à apreciação decrimes que atingiam certos bens jurídicos, emespecial a vida, bem como casos de matéria cível,passando a se posicionar no âmbito do PoderJudiciário, e não como direito e garantiafundamental.

Mais adiante, na Constituição de 1937, houveuma omissão quanto à existência do tribunal popularno texto constitucional, o que causou controvérsiano campo jurídico. Nucci (2002) salienta que devidoà falta de norma regulamentando o Júri, iniciaram--se as discussões acerca da manutenção ou não doinstituto do tribunal popular no Brasil, possibilitandodiversas interpretações quanto à temática. “A únicaConstituição que não trouxe previsão do tribunalpopular foi a Carta outorgada em 1937, inauguradorade um período ditatorial, instaurando-se dúvidaquanto a sua subsistência até o ano de 1938.”(TÁVORA; ALENCAR, 2012, p. 834).

Isso porque, em 1938, com a promulgaçãodo Decreto-Lei n.º 167, finalmente instituiu-se edisciplinou-se a instituição do Júri, dessa vez deforma mais minuciosa, apontando quais crimesseriam julgados pelo tribunal.

Com a Constituição democrática de 1946, oJúri teve restabelecida sua soberania, e foi dispostono rol de direitos e garantias fundamentais. Apósum período controverso em que por vezes o tribunalpopular era reafirmado, como na Constituição de1967, mas que posteriormente, como na EmendaConstitucional de 1969, lhe era omitida a soberania,finalmente se confirmou o Júri como direito egarantia fundamental com a vinda da Constituiçãode 1988.

Em sua última versão, vem previstoconstitucionalmente no art. 5.º, XXXVIII,assentando os princípios regentes do tribunalpopular, quais sejam a) plenitude de defesa; b) osigilo das votações; c) a soberania dos veredictos;e d) competência para o julgamento de crimesdolosos contra a vida (TÁVORA; ALENCAR,2012).

A plenitude de defesa consiste em umaespécie de ampla defesa potencializada, de formaque há tanto a defesa técnica quanto a autodefesa.Távora e Alencar (2012) ressaltam que, enquantoa primeira é de cunho obrigatório, sendo atribuídaao profissional competente, a última se mostracomo faculdade do imputado, que também trazconsigo o direito ao silêncio. Os autores tambémasseveram que, peculiarmente, prevalece noplenário do Júri a possibilidade de se utilizar deargumentos que não tenham natureza técnica,aproximando-se de elementos de conteúdosentimental, social e até mesmo de política criminal.Tudo com o escopo de persuadir o corpo de jurados.

O sigilo das votações trata-se de uma mínimaexceção à regra geral da publicidade, disposta noartigo 93, IX, da Constituição Federal, e visa

Page 62: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

62

preservar a livre convicção dos jurados de modo aevitar constrangimentos decorrentes da publicidadeda decisão (BISINOTTO, 2015). De maneirasemelhante:

Assegura a Constituição o sigilo dasvotações para preservar, com certeza, osjurados de qualquer tipo de influência ou,depois do julgamento, de eventuaisrepresálias pela sua opção ao responder oquestionário. Por isso mesmo ajurisprudência repeliu a ideia de eliminaçãoda sala secreta, assim entendida necessáriapor alguns juízes com base na norma daCarta que impõe a publicidade dos atosdecisórios (art. 93, IX, da CF) (NASSIF, 2001,p. 27).

A soberania dos veredictos apregoa que adecisão proferida pelo Conselho de Sentença ésuprema, no sentido de que não pode sermodificada por magistrado togado. Tal princípio seencaixa no rol das cláusulas pétreas da Constituiçãode 1988, não obstante prevaleça a faculdade de serecorrer da decisão, desde que os autos retornemao Tribunal do Júri para nova apreciação.

Quanto à pretensão de cortes togadasinvadirem o mérito do veredicto, de modo asubstituí-lo, Nucci (2008b, p. 32) versa que“Quando – e se – houver erro judiciário, bastaremeter o caso a novo julgamento pelo tribunalpopular. Porém, em hipótese alguma, pode-seinvalidar o veredicto, proferindo outro, quanto aomérito.”.

O último dos princípios constitucionaisregentes da atividade do Júri, localizado no art. 5.º,XXXVIII, d, da Carta Magna, é o de competênciapara julgar crimes dolosos contra a vida, tentadosou consumados. Vale ressaltar que tal estipulaçãonão veta a ampliação da competência do Júri,somente proibindo sua restrição (MENDONÇA,2009).

Os crimes dolosos contra a vida seencontram elencados na Parte Especial do CódigoPenal brasileiro, sendo eles: homicídio simples,privilegiado ou qualificado (art. 121 §§ 1.° e 2.°);induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art.122); infanticídio (art. 123); e aborto em suas trêsmodalidades (arts. 124, 125, 126 e 127). Igualmente,associam-se os delitos que apresentam relação decontinência ou conexão com os crimes dolososcontra a vida, podendo esses também ser levadosa julgamento pelo Júri (NUCCI, 2008b).

Importante destacar que o latrocínio (artigo157, § 3.º, segunda parte, do Código Penal) e o

sequestro com resultado morte (artigo 159, § 3.º,do Código Penal) não se encaixam no âmbito decompetência do Tribunal do Júri, sendo apreciadospor juiz singular. Tal classificação se justifica pelofato de se tutelar dois bens jurídicos distintos nessescrimes, quais sejam, vida e patrimônio. Ainterpretação atribuída aos crimes a serem julgadospelo Tribunal do Júri é restritiva, contemplandomeramente os tipos expostos no capítulo “Doscrimes contra a vida” do Código Penal, desde quena modalidade dolosa.

A configuração hodierna do Tribunal do Júrino Brasil demanda a presença de um juiz togado,que assume a presidência do Tribunal, e de vinte ecinco cidadãos, representantes do povo, queassumem a função de jurados, dentre os quais seteconstituirão o Conselho de Sentença em cadasessão de julgamento. O Código de Processo Penal,em seu artigo 436, atribui como requisitos gerais àfunção de jurado: ser cidadão maior de dezoito anose gozar de notória idoneidade na comunidade emque se vive.

O Júri ostenta caráter de obrigatoriedade aosque forem convocados, de modo que a recusainjustificada ao serviço do Tribunal Popular ensejaaplicação de multa de um a dez salários mínimos,a critério do juiz, considerando-se a condiçãoeconômica do jurado. A recusa ao serviço do Júri,quando por convicção de caráter religioso, filosóficoou político, importa dever de prestação de serviçoalternativo, sob pena de suspensão dos direitospolíticos durante o período em que não se presta aobrigação determinada (art. 438 Código deProcesso Penal).

Ao longo do procedimento há a possibilidadede que os jurados sejam recusados. No momentoda instauração da sessão, os sete jurados quecomporão o Conselho de Sentença são sorteadospelo Juiz Presidente, sendo essa a ocasião dasrecusas peremptórias. Tanto a defesa quanto oMinistério Público poderão rejeitar, imotivadamente,o número máximo de três jurados sorteados. Sehouver justificativa, não há limites para oimpedimento dos jurados, desde que o argumentoseja aceito pelo Juiz Presidente. Em caso deinsuficiência de membros para a formação doConselho de Sentença, quer por recusa, quer pordispensa, serão sorteados tantos suplentes quantosnecessários para compor o Conselho, adiando-sea sessão de julgamento.

O procedimento do Júri é bifásico ouescalonado, sendo composto pela etapa dojudicium accusationis e do judicium causae

Page 63: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

63

(MARCO, 2016). Muito embora haja quem digaque o procedimento é trifásico, como o doutrinadorNucci, a doutrina majoritária concorda com a ideiade que duas fases compõem o procedimento doTribunal do Júri.

De forma concisa, o jucidium accusationis,também denominado sumário da culpa, dá-seinicialmente com a apresentação da denúncia porparte do Ministério Público, ou da queixa peloquerelante, podendo ou não ser acolhida pelo juiz.É válido que se diga que, no que concerne àacusação, “A denúncia apresentada pelo MP nãomais irá requerer a condenação do indiciado, massim a sua pronúncia. A denúncia, ainda, será oinstrumento hábil para o arrolamento dastestemunhas de acusação (num número máximode oito).” (MARCO, 2016).

Depois de recebida a denúncia, abre-se aoportunidade para que o réu apresente sua defesa.Posteriormente, o Ministério Público, em um prazode cinco dias, deve apresentar sua resposta, paraque finalmente se dê início à fase de produção deprovas, inquirição de testemunhas, dentre outrasdiligências. O que acarretará a audiência deinstrução e julgamento, momento em que se realizaa oitiva de testemunhas de ambas as partes, bemcomo o depoimento do réu, debates orais e,finalmente, a decisão do magistrado.

Há quatro possíveis Sentenças, sendoelas: absolvição sumária, desqualificação oudesclassificação, impronúncia e pronúncia. Demodo sintético, tais decisões são bem explanadas,assim:

[...] pode ser de absolvição sumária –hipótese em que o réu será absolvido, como consequente fim do processo –,desqualificação do crime – quando o juiz,constatando tratar-se de crime diversodaquele descrito na peça-piloto não dolosocontra a vida, enviará os autos ao juizcompetente –, impronúncia – hipótese emque, enquanto não ocorrer a extinção dapunibilidade, poderá ser formulada novadenúncia ou queixa se houver prova nova– ou pronúncia – remetendo-se o feito àfase seguinte do julgamento pelos jurados(REIS, 2016).

Com a decisão de pronúncia, inicia-se asegunda fase do procedimento do Júri, o judiciumcausae, ou juízo da causa. Dá-se a partir dapreparação do processo de julgamento, que envolvea intimação das partes para aduzirem testemunhasà prestação de depoimento em plenário, e se

desenrola durante todo o procedimento deinstauração da sessão do Júri, indo até a prolaçãoda sentença condenatória ou absolutória(MARCO, 2016).

Durante essa fase, há a oitiva dastestemunhas, que serão de no máximo cinco paracada parte, seguido da apresentação de provas edocumentos, previamente listados aos autos, comantecedência mínima de três dias úteis, a fim deque se dê ciência à outra parte. Também é nessaetapa do procedimento que há os debates oraispor parte do Ministério Público e da defesa.Subsequentemente, o corpo de jurados do Conselhode Sentença se dirige à sala secreta a fim deproceder com a votação, que será anunciada peloJuiz Presidente que, em caso de condenação,realizará a dosimetria da pena.

Incumbe ao Conselho de Sentença sepronunciar quanto aos fatos e quanto à absolviçãoou condenação do réu. Para tal fim, o magistradoque preside a sessão formulará quesitos a seremrespondidos pelos jurados, alusivos,respectivamente, à materialidade do fato, à autoriaou participação, à absolvição do réu, às causasexistentes de diminuição de pena alegadas peladefesa, à existência de circunstância qualificadoraou caso de aumento de pena reconhecida napronúncia ou em decisões posteriores que julgaramadmissível a acusação. Também pode haver,eventualmente, quesitos concernentes a questõesrelevantes, tais como desclassificação do crime,divergência quanto à tipificação do crime, que oaponte como outro delito de competência doTribunal do Júri, e ocorrência do crime em suaforma tentada (MARCO, 2016).

Os votos dos jurados são de total sigilo,conforme o mandamento constitucional presenteno art. 5.º, XXXVIII, b, e suas decisões se darãopor maioria simples dos votos. Em sala especial,cada jurado decidirá quanto aos quesitosapresentados pelo Juiz, sendo que uma respostanegativa por mais de três jurados aos quesitos damaterialidade do fato e da autoria e participaçãoimplicam na automática absolvição do acusado,sendo encerrada a votação.

Em caso de resposta afirmativa por mais detrês jurados aos dois primeiros quesitos, ainda terãoa oportunidade expressa de condenar ou não o réuquando forem indagados quanto à sua absolvição.Em um último momento, o Presidente da sessãoproferirá a Sentença, fixando os respectivos efeitosda condenação e absolvição, a depender doveredicto, de acordo com os deveres que lhe

Page 64: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

64

incubem o art. 492 do Código de Processo Penal.Vale salientar que a decisão cabe recurso deapelação à instância superior, segundo as provisõesdo art. 593, III, do diploma processual penal.

4 O TRIBUNAL DO JÚRI NORTE--AMERICANO

Antes de se abarcar o estudo do Júripropriamente dito, em sua versão norte-americana,convém verificar os pilares da Common Law, umavez que se acham intrinsecamente ligados àtradição jurídica estadunidense. Na concepção deSoares (2000, p. 31), “[a] Common Law constituiuma ‘família de direitos’, à qual pertence a maioriados direitos dos Estados da Federação norte--americana, em contraste com a ‘família dosdireitos romano-germânicos’, à qual se filia o Direitobrasileiro.”. Ainda segundo o autor, na CommonLaw, a principal ideia é de que o direito não temcomo pressuposto de existência a construção deuma edificação lógica, abstrata e sistemática, massim de um sistema capaz de resolver questõesconcretas.

Contudo, o sistema jurídico norte-americanonão caracteriza uma forma pura de Common Law,uma vez que devido à organização federal do país,em que se concede grande autonomia aos Estados--membros, há certa variabilidade na maneira emque é feito e aplicado o Direito. Portanto, há de sefalar mais em Direito de Nova York, ou Direito deMassachusetts, por exemplo, do que Direito dosEUA, como um todo harmônico entre si(SOARES, 2000).

Ainda de acordo com Soares (2000), o Direitonorte-americano seria um sistema conjunto daCommon Law e da Civil Law. Isso se dáprimordialmente devido à concomitância dos caselaws (com base em casos concretos anteriores) edas disposições normativas, com relação àaplicação do Direito. Todavia, utiliza-se como fonteprimária do Direito, ao julgar, os casos práticos,sendo que somente na falta de caso aplicável serecorre à legislação escrita, o que é visivelmentemais característico da Common Law.

Já no que tange o instituto do Júri, em suatrajetória histórica nos Estados Unidos, tem-se queinicialmente fora adotado o modelo de tribunalpopular então vigente na Inglaterra, em razão doscolonos do século XVIII temerem o quedenominaram tirania dos britânicos. Desse modo,as decisões inglesas consideradas arbitrárias eparciais eram passíveis de reforma por um Júri

formado por cidadãos americanos. De modoespecial, esse Júri se aplicava às decisões queenvolviam embarque ilegal de mercadorias emembarcações não britânicas (HOROSTECKI,2011).

No ano de 1791, os Estados Unidos adotaramexpressamente em sua Declaração de Direitos (Billof rights), escrita por James Madison, que “[...]em todos os processos criminais, os acusados terãodireito a um julgamento rápido e público, por umjúri imparcial” (HOROSTECKI, 2011, p. 353).Outrossim, a Declaração também institui apreservação do julgamento pelo Júri em casos civis(GRAHAM, 2016).

A Constituição Federal Americana, em suaSexta emenda, traz de modo especial umaabordagem ao tribunal popular em seu âmbitocriminal:

Sixth Amendment: “In all criminalprosecutions, the accused shall enjoy theright to a speedy trial, by an impartial juryof the State and district wherein the crimeshall have been committed, which districtshall have been previously ascertained bylaw, and to be informed of the nature andcause of the accusation; to be confrontedwith the witnesses against him; to havecompulsory process for obtaining witnessin his favour, and to have the Assistance ofCounsel for his defense”.(“Em todos osprocessos criminais, o acusado deverá tero direito a um julgamento rápido, por umJúri imparcial do Estado e do Distrito emque o crime tenha eventualmente sidocometido, sendo o referido distrito fixadopreviamente por lei; e a ser informado danatureza da causa da acusação; a serconfrontado com as testemunhas quecontra ele existirem; a dispor de meioscoercitivos para obter testemunhos em seufavor; e a ter a assistência de um advogadopara sua defesa”) (ARAÚJO; ALMEIDA,1996, p. 208).

Já a Sétima emenda trata da possibilidade deaplicação do Júri na seara cível:

Seventh Amendment: “In Suits at commonlaw, where the value in controversy shallexceed twenty dollars, the right to a trial byjury shall be preserved, and no fact tried bya jury shall be otherwise re-examined in anyCourt of the United States, than accordingto the rules of common law.” (“Nas Causasda common law, em que o valorcontrovertido exceder a vinte dólares, o

Page 65: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

65

direito a um julgamento pelo Júri serápreservado, e nenhum fato conhecido peloJúri poderá de alguma forma, serreexaminado por qualquer corte dos EstadosUnidos, senão de acordo com as normasda common law”) (ARAÚJO; ALMEIDA,1996, p. 208).

Devido à falta de regulamentação por partedas emendas que instituíram o Tribunal do Júriamericano, as regras gerais se conceberam pormeio de decisões jurisprudenciais. Uma delasdefiniu que o julgamento pelo Júri (trial jury) seriauma faculdade do acusado em casos em que apena incorrida ultrapassasse seis meses de prisão,havendo a possibilidade de abdicação do tribunalpopular (SÉROUSSI, 2001).

A princípio, o Júri era composto por dozemembros que deveriam atingir uma decisãounânime, sendo que se isso não ocorresse, o casoseria novamente julgado e um novo Júri teria deser formado. Contudo, posteriormente, a SupremaCorte americana admitiu a constituição de um Júriintegrado por seis membros, sem a necessidadede se estatuir por unanimidade (HOROSTECKI,2011). Ainda sobre o tema,

No que diz respeito ao quórum de votação,é de se elucidar que a regra é a de que overedicto deve ser unânime, diretiva queprevalece, de forma absoluta, no juízofederal. Por outro lado, no que diz respeitoà justiça dos Estados, a Suprema Corte dosEstados Unidos tem aceitado apossibilidade de julgamentos não unânimesem alguns casos (REIS, 2013, p. 1).

O Júri americano tem como um de seusfundamentos a ideia de que a igualdade decondições às partes possibilitará chegar à verdadecom mais precisão e equidade (fairness). Osadvogados de cada uma das partes (acusação edefesa) têm amplo protagonismo durante ojulgamento, havendo a crença de que as mesmaspossibilidades de se apresentar provas a ambos oslados ensejam uma maior probabilidade de sealcançar a Justiça (SÉROUSSI, 2001).

No decorrer do procedimento do Júri, cabeàs partes produzir as provas, convocar e preparara testemunhas, contratar os peritos (quando semostrar necessário) e angariar as evidências quelhes possam favorecer. Na sessão, cabe aomagistrado zelar pelo fairness dos procedimentos,fazendo uso de uma gama de normas costumeirase legais regentes da relevância e admissibilidade

das provas levadas à apreciação do tribunal (Lawof evidence) (CARLOTTO; SOARES;GRESSLER, 2016).

Uma das bases do sistema jurídico norte--americano da Justiça Criminal consiste no respeitoa um princípio basilar da estrutura democráticadaquele país, o due process of law, ou devidoprocesso legal, que se encontra expresso naConstituição dos Estados Unidos e se propaga portodas as Constituições estaduais, evidenciando aimportância desse princípio (LOPES, 1999).

Na seara criminal, o sistema americano adotadois institutos referentes ao Júri, que atuam de mododistinto, o Grande Júri (Grand Jury) e o PequenoJúri (Petit Jury). O Grande Júri tem previsãoconstitucional na quinta emenda e é composto poreleitores da comunidade, tendo variações em suaformação a depender do Estado federado em quese encontra. O número de membros queparticipam desse Júri vai de dezesseis a vinte etrês integrantes, que são sorteados e devemcumprir uma série de deveres. Suas funçõesenglobam acusar infratores que infringiram alegislação penal (acusação denominadaindictment), tendo em vista acharem suficientesas provas expostas pelo Promotor (prosecutor).Também podem, por sua vez, apresentaracusações formais sem levar em conta osargumentos do Promotor (acusação denominadapresentment) (LOPES, 1999).

Assim sendo, tem-se que o Grande Júri podeassumir o papel de acusação ou investigação,contudo, não avalia a culpabilidade do possívelcriminoso. Em sua função investigativa, o GrandeJúri “[...] pode ouvir testemunhas, ordenarprovidências investigatórias, em audiênciassecretas (a fim de não prejudicar a reputação doacusado, no caso de uma eventual absolvição domesmo).” (LOPES, 1999, p. 284). Sendo um direitode caráter disponível, o acusado pode optar porum indiciamento unilateral por parte do Promotor,dispensando, assim, seu direito a uma acusaçãopelo Grande Júri.

Nesses termos, o Grande Júri desempenha opapel de judicium accusationis, preliminarmente(before trial) ao juízo da culpabilidade, tendoefetivada a acusação se obtiver quórum de maioriasimples, o que acarreta à causa a apreciação peloPequeno Júri, que realiza o julgamento da culpa(REIS, 2016).

Já o Pequeno Júri (Petit, ou Petty Jury) éincumbido da responsabilidade especial de julgarse o réu é inocente ou culpado. Já na fase de

Page 66: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

66

julgamento (trial), o Pequeno Júri tem de decidirsobre a culpabilidade do réu, medianteprocedimento público, indicando por vezes a penaa ser atribuída ao acusado em caso de condenação.

Sua composição sofre variações dependendodo âmbito da federação em que atua, assim comode Estado para Estado. Nos Júris federais, oConselho é formado por doze membros e suadecisão deve ser unânime. Já nos Estadosfederados, a quantidade de membros varia de seisa doze jurados, tendo a possibilidade de condenaçãopor um quórum de dois terços ou três quintos dosmembros, não obstante a regra também seja aunanimidade do veredicto (REIS, 2016).

Durante o desenrolar do processo, há apossibilidade de ocorrer o plea barganing, bemcomo a guilty plea. Na definição de Oliveira (1999,p. 108) o plea barganing, durante um processo,“[...] é a negociação entre o infrator (podendo serrepresentador por seu advogado), o representantedo Ministério Público e o juiz, às vezes até com aparticipação da própria vítima, para encontrar umaconclusão-solução em torno do objeto daacusação”.

Segundo Séroussi (2001), oitenta e cinco porcento das condenações penais nos Estados Unidosresultam do plea barganing, sendo que o acordopode ser firmado em qualquer momento dojulgamento, até a decisão do Júri.

Já o guilty plea é a confissão por parte doréu, assumindo a posição de culpado no processo.Tal fenômeno geralmente é precedido pela pleabarganing, o que pode dar fim ao processo sehouver interesse do Juiz e do Promotor. Contudo,em casos de grande repercussão social, o MinistérioPúblico tem recusado a negociação via pleabarganing, optando pelo cumprimento integral dosritos processuais, a fim de demonstrar àcomunidade a transparência da justiça na searapenal (OLIVEIRA, 1999).

Na fase de julgamento (trial), que secaracteriza pela total publicidade dos atos, é quese realiza o procedimento do Júri (relembrando quealguns Estados federados admitem a desistênciaexpressa por parte do réu ao julgamento pelo Júri).Nessa etapa predomina a oralidade, havendo ainquirição e a exibição das provas, seguido delongos debates por parte de acusação e defesa, oque geralmente ocorre numa única sessão(LOPES, 1999).

Logo após, os jurados se reúnem a portasfechadas a fim de deliberarem por horas até quese alcance um veredicto. A decisão deve ser

baseada estritamente em elementos probatóriosapresentados durante a sessão de julgamento,conjuntamente com o livre convencimento de cadaum.

Urge apontar que na sala de deliberaçãosomente os jurados podem entrar para a discussão,a fim de que sem impedimentos possam chegar aoveredicto. Durante as instruções em plenário, ojuiz orienta aos jurados que somente condenem oacusado se o veredicto se basear beyond areasonable doubt, isto é, além de uma dúvidarazoável. Com isso, a confirmação acerca daparticipação do réu no crime e seu grau deculpabilidade não se sustentam em manifestaçõesexclusivas de dúvida (OLIVEIRA, 1999).

Durante os procedimentos de deliberação nasala secreta, o chamado Foreman (ou Foreperson)assume o papel de líder entre os jurados, sendoencarregado de conduzir o debate de maneira a sechegar à decisão unânime. Também tem o papelde representar o corpo de jurados no momento daproclamação da decisão, que deve ser guilty(culpado) ou not guilty (inocente), sem que hajanecessidade de expor os motivos da deliberação,que é secreta (LOPES, 1999).

Como já dito anteriormente, em regra, overedicto do Júri deve ser unânime, com exceçõesapenas em alguns Estados. Em caso de o tribunalpopular não atingir uma decisão consensual, tem--se o chamado hung jury, o que enseja ao JuizPresidente a declaração de mistrial, determinandooutro julgamento a ser realizado (OLIVEIRA,1999).

5 ANÁLISE COMPARATIVA:SIMILITUDES E DESSEMELHANÇAS

Ao se examinar as características eelementos dos sistemas de Júris norte-americanoe brasileiro, é de suma importância frisar os pontosdivergentes e convergentes desse instituto nessespaíses. Por um olhar comparativo, podem-sealcançar perspectivas novas acerca de dadainstituição jurídica nacional e seu modo defuncionamento, uma vez que muito se podeaprender sobre o sistema brasileiro ao compará-locom um de características distintas. No tocante àdefinição e função do Direito comparado, mostra--se que:

Direito comparado é expressão que resulta,claramente, da junção de dois termos:direito, que, no caso, se refere a sistema

Page 67: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

67

jurídico, e comparado, que tem a ver com acomparação, na busca por semelhanças ediferenças entre objetos comunspesquisados, sejam eles um sistema jurídicosejam eles um instituto jurídico (SIQUEIRA,2016).

Convém, portanto, adentrar aos principaispontos de semelhança e discordância do tribunalpopular nos países abordados, levando emconsideração tudo que já foi exposto previamenteacerca do funcionamento e configuração do Júrinessas nações.

Em princípio, é relevante salientar que asorigens do instituto se mostram diversas nos doispaíses, sendo que enquanto o Júri brasileiro teveseu cerne no Tribunal de Roma, o Júri norte--americano baseou-se primordialmente no Tribunalda Inglaterra. Ademais, o sistema de Júri brasileirose consagrou nos moldes romano-germânicos, demodo a seguir a Civil Law como família jurídica,sendo os Estados Unidos, de modo diverso, adeptoda Common Law, não obstante serem um modeloimpuro, como já mencionado nesse trabalho.

Imperioso aclarar que os delitos decompetência do Tribunal do Júri no Brasil,conforme disposto na Constituição federal, são oscrimes dolosos contra a vida, constantes no § 1.ºdo artigo 74 do Código de Processo Penal. NosEstados Unidos, por sua vez, são levados àcompetência do Júri todos os crimes, exceto os deresponsabilidade, tendo em vista que em casoscriminais o réu deve ser condenado a mais de seismeses de prisão para que tenha direito aojulgamento pelo Júri.

O Tribunal do Júri norte-americano, consoanteo prescrito na sétima emenda à Constituição,estabeleceu que fosse de sua competência casosde matéria cível, desde que excedentes ao valorde vinte dólares. Já no Brasil, somente aConstituição de 1824 estipulou ao Júri aincumbência de casos cíveis, o que não mais éadmitido no ordenamento pátrio (BISINOTTO,2015).

No que concerne aos princípiosconstitucionais regentes da atividade do Júri, noBrasil disciplinados no inciso XXXVIII do artigo5.º da Lei Maior, encontram-se o da plenitude dedefesa, do sigilo das votações, da soberania dosveredictos e da competência para julgar os crimesdolosos contra a vida. De modo discordante, o Júrinorte-americano não prevê sigilo nas votações,nem incomunicabilidade dos jurados, já que essestêm de deliberar conjuntamente a fim de se chegar

a uma decisão unânime.Lopes (1999) explica que são inúmeras as

vantagens de não se apegar tanto ao formalismocontemporâneo, uma vez que o Júri é um meio departicipação popular na administração da justiça.Ainda segundo o autor, por vezes as convicçõesdos jurados são pouco precisas e mal formuladasinternamente, o que os leva, diante do debate comseus pares, a exprimir suas dúvidas mais profundas,além de aderir a dúvidas e convicções que outrosmembros da deliberação compartilham.

Mais um item que se mostra relevanteabordar, tendo em conta a divergência queapresenta, é de que no Direito norte-americano oJúri é um privilégio do acusado, tendo ele aprerrogativa de abster-se dessa garantia, desde quecumpra os requisitos para ter seu julgamento levadoà competência do Júri. Opostamente, no Direitobrasileiro o acusado tem de se submeter,teoricamente, ao julgamento pelo Tribunal Popular,contanto que cometa um dos crimes dolosos contraa vida.

Imprescindível acentuar uma dascaracterísticas mais marcantes do Tribunal do Júrinos Estados Unidos, que se difere do modelobrasileiro, qual seja, a unanimidade no veredicto.Em sua maioria de Estados federados, nos EstadosUnidos da América, mostra-se necessária a decisãounânime por parte dos membros do Pequeno Júri,enquanto que no Brasil o veredicto é dado pormaioria de votos, feitos de modo sigiloso.

Em temos de similaridade, ambos os sistemasdão ao acusado o direito a uma defesa técnica,isto é, um advogado, não sendo possível dispor detal direito, sob pena de lesão aos princípios docontraditório, da ampla defesa e do devidoprocesso legal, bem como da presunção deinocência (BUNA, 2016).

Outro ponto semelhante entre os modelos emquestão diz respeito à alocução explicativaproferida pelo juiz aos jurados antes de adentraremà sala secreta. Nos Estados Unidos, conforme oprincípio Allen Charge, o magistrado comandanteda sessão chama a atenção dos jurados “[...] paraa necessidade de uma decisão correta emconsonância com o corolário das provas ante olivre convencimento, não esquecendo que ali sedá rumo ao destino de uma pessoa.” (OLIVEIRA,1999, p. 110). No Brasil, a explanação de como sedará a votação dos quesitos e a formação doveredicto na sala secreta é sempre admitida,enquanto que no modelo norte-americano algunsEstados já abandonaram tal ritual.

Page 68: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

68

Um tópico de suma importância no quesitode comparação entre os sistemas é o pleabarganing, que é uma negociação presente noordenamento americano. Esse acordo firmadocom o Ministério Público em qualquer momentodo procedimento do Júri possibilita ao acusado adiminuição da pena incorrida. Por sua vez, o Brasilpossibilita ao Juiz aplicar a Delação Premiada,conforme a Lei 9.807/1999, que não se confundecom o instituto americano, mas que pode ensejartanto o perdão (art. 13) quanto a diminuição dapena incorrida ao acusado (art. 14).

Convém destacar que no ordenamentobrasileiro, diferentemente do norte-americano, nãohá previsão para um Grande Júri e Pequeno Júri,que são institutos diversos, com funções próprias.Na legislação pátria, encontra-se um único modelode Tribunal do Júri, que age com moldes idênticos,seguindo as mesmas finalidades.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo ora exposto, é possívelvisualizar pontos favoráveis e desfavoráveis doTribunal do Júri no sistema de ambos os países emanálise. O diagnóstico das divergências e similitudesdo instituto no Brasil e nos Estados Unidos levantauma série de questionamentos acerca de qualmodelo seria mais eficiente ante a propostademocrática que o Júri apresenta.

Um ponto que, indubitavelmente, mostra-sepertinente ao se buscar atingir uma resposta quantoa qual o modelo mais adequado, é levar emconsideração as condicionantes históricas quederam forma ao Júri. Em sua versão original, essemolde de julgamento surge como a possibilidadede um cidadão comum interagir, de forma íntima edesafiadora, no exercício das atribuições do Estado,no momento em que é posto a julgar um de seuspares.

A visão pregada pelo presente artigo é que oJúri norte-americano possibilita um alcance maiorde participação popular na efetivação da Justiça,uma vez que a possibilidade de deliberação paracom os demais jurados enseja um debate produtivo,em que é possível que sejam comungadas dúvidase convicções internas. Por meio dessa discussão,os jurados, no modelo estadunidense, devemalmejar o consenso. A unanimidade na decisãoexpõe de modo mais acurado as aspirações sociais,garantindo que o julgamento pelos pares se dê demodo mais equitativo. Assim, atinge-se finalmenteo ideal maior do Júri, isto é, a participação soberana

do povo na efetivação da Justiça, de modo a evitarque um de do povo venha a ser alvo do ímpetoestatal sem que antes haja a anuência de um grupode seus semelhantes em sociedade.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, Ricardo R. Otribunal do júri nos estados unidos – suaevolução histórica e algumas reflexões sobre seuestado atual. Revista Brasileira de CiênciasCriminais, São Paulo, v. 4, jul.-set. 1996, p. 200-216.

BISINOTTO, Edneia Freitas Gomes. Origem,história, principiologia e competência do tribunaldo júri. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n.86, mar 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9185>. Acesso em: 4 nov. 2015.

BRASIL. Lei 9.807, de 13 de julho de 1999.Estabelece normas para a organização e amanutenção de programas especiais de proteçãoa vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui oPrograma Federal de Assistência a Vítimas e aTestemunhas Ameaçadas e dispõe sobre aproteção de acusados ou condenados quetenham voluntariamente prestado efetivacolaboração à investigação policial e ao processocriminal. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 14 jul. 1999.

BUNA, Themis Alexsandra SantosBezerra. Aproximações legais e doutrinárias aojúri popular no Brasil e nos EstadosUnidos. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano10, n. 685, 21 maio 2005. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/6754>. Acesso em: 27 mar.2016.

CARLOTTO, Daniele; SOARES, Deise Mara;GRESSLER, Gustavo. Um olhar sobre o tribunaldo júri norte-americano. In: Âmbito Jurídico,Rio Grande, VIII, n. 20, fev 2005. Disponívelem: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=860>. Acesso em: 21 mar. 2016.

FERREIRA, Paulo Rogério Alves. Tribunal dojúri: breve apanhado histórico, concepção atual eexpectativa de futuro. jun. 2007. Disponível em:

Page 69: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

69

<http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=7653&>. Acesso em: 16out. 2015.

GRAHAM, Fred. Os júris americanos. E-Journal USA: anatomia de um tribunal do júri.Julho de 2009. Volume 14. 7. Disponível em:<http://www.embaixadaamericana.org.br/HTML/ijde0709p/0709p.pdf> Acesso em: 15mar. 2016.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de processopenal. 4. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva,1997.

HOROSTECKI, Rosana Gavina Barros. Osistema de júri nos EUA. Escola da AGU,Brasília, Ed. AGU, n. 12, p. 351/362, set.-out.2011.

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Do sigilo eda incomunicabilidade no júri. In: TUCCI,Rogério Lauria (Coord.). Tribunal do júri:estudo sobre a mais democrática instituiçãojurídica brasileira. São Paulo: Revista dosTribunais, 1999.

MARCO, Vilson de. O novo rito do tribunal dojúri esquematizado segundo a Lei. 11.689.In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 59, nov.2008. Disponível em: <http://www.ambito--juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4199>. Acesso em: 21 mar. 2016.

MENDONÇA, Andrey Borges de. Novareforma do código de processo penal:comentada artigo por artigo. 2. ed. São Paulo:Método, 2009.

NASSIF, Aramis. O júri objetivo. 2. ed., rev. eatual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual deprocesso penal e execução penal. 5. ed. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2008a.

______. Tribunal do júri. São Paulo: Revistados Tribunais, 2008b.

______. Código de processo penalcomentado. São Paulo: Revista dos Tribunais,2002.

OLIVEIRA, Edmundo. O tribunal do júri naadministração da justiça criminal nos EstadosUnidos. In: TUCCI, Rogério Lauria (Coord.).Tribunal do júri: estudo sobre a maisdemocrática instituição jurídica brasileira. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1999.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 13.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

REIS, Fernando Antônio Calmon. Júri: pequenasobservações históricas sobre um instituto aindanão compreendido. Revista Jus Navigandi,Teresina, ano 15, n. 2.667, 20 out. 2010.Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17652>.Acesso em: 23 out. 2015.

REIS, Wanderlei José dos. Tribunal do júri:Brasil x EUA. Revista Jus Navigandi,Teresina, ano 18, n. 3.490, 20 jan. 2013.Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/23474>. Acesso em: 7 mar. 2016.

SÉROUSSI, Roland. Introdução ao direitoinglês e norte-americano. Tradução de RenataMaria Parreira Cordeiro. São Paulo: Landy,2001.

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homemde. Natureza jurídica do direitocomparado. Revista Jus Navigandi,Teresina, ano 18, n. 3.508, 7 fev. 2013.Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/23674>. Acesso em: 26 mar. 2016.

SOARES, Guido Fernando Silva. Common law:introdução ao direito dos EUA. 2. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2000.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, RosmarRodrigues. Curso de direito processual penal.7. ed. Salvador: JusPodivm, 2012.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.Manual de processo penal. 16. ed. São Paulo:Saraiva, 2013.

Page 70: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

70

Page 71: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

71

RESUMO

O presente trabalho se propõe a estabelecerum elo entre liberdades humanas, bem-estar sociale cidadania. Objetiva-se, através de métododedutivo e procedimento bibliográfico, demonstrarque o estado de bem-estar social tem influênciasdeterminantes nas liberdades dos indivíduos. Sobessa perspectiva, o ser humano que não tem acessoa direitos sociais básicos, como saúde, educação,alimento, moradia e renda tem suas liberdades reaisameaçadas, pois que restringidas suaspossibilidades de escolhas na vida. Nestes casos,é restringida a liberdade do indivíduo ditar os rumosda própria vida com autenticidade. Sendo assim, aopressão socioeconômica passa a representar umrelevante fator de privação de liberdades em âmbitomundial, conforme indicou Sen (2010) na Teoriado Desenvolvimento como Liberdade. Conclui-seque o bem-estar social, em maior ou menor grau,pode ser visto como um pressuposto às liberdadeshumanas. Portanto, o ser livre por excelência éaquele que exerce a cidadania em sua plenitude,isento de influências socioeconômicas querestrinjam suas possibilidades de escolha acercadas opções de vida a se viver.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto de estudoas interconexões entre liberdades humanas,cidadania e bem-estar social como valoresfilosóficos, políticos e sociais materializadosjuridicamente com status fundamental.

Para tanto, com utilização de metodologiadedutiva e procedimento bibliográfico, a pesquisase desenvolve traçando primeiramente um breveescorço filosófico acerca da evolução por quepassou o conceito abstrato de liberdade,expandindo-o para além da óptica liberal da estritalegalidade e o aproximando da subjetividade esensibilidade humana.

A TUTELA DAS LIBERDADES E SUAS INTERCONEXÕESCOM A EFETIVAÇÃO DO BEM-ESTAR SOCIAL E DA CIDADANIA

Matheus Medeiros Maia1

A posteriori, serão apresentados osprincipais aspectos da Teoria do Desenvolvimentocomo Liberdade, elaborada por Amartya Sen(2010), bem como os respectivos pontos atinentesà liberdade, pobreza e desenvolvimento.

A perspectiva da Teoria do Desenvolvimentocomo Liberdade será trazida por se tratar de umateoria contemporânea, amplamente discutida noâmbito das ciências sociais, mas nem tanto peloDireito, cujo teórico é reconhecidointernacionalmente, sobretudo por ter recebido oprêmio Nobel de Economia em 1998, e ter sido umdos elaboradores do Índice de DesenvolvimentoHumano (IDH) utilizado pelo Programa dasNações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)como o principal indicador de desenvolvimentohumano dos países.

Após o estudo da teoria seniana, serátrabalhado o conceito de cidadania como elementode conexão entre o bem-estar social e as liberdadesem sentido amplo.

Ao final, em capítulo conclusivo, serãoespecificados os liames entre bem-estar social ecidadania, como pressupostos ao pleno exercíciodas liberdades humanas.

2 PROLEGÔMENO ACERCA DASLIBERDADES HUMANAS

Liberdade é termo plurívoco. Conformereflexão de Montesquieu (2010, p. 166): “Não hápalavra que tenha recebido significados maisdiversos e impressionado os espíritos de tantasmaneiras como liberdade.”.

Essa heterogeneidade conceitual e teórica sejustifica devido ao fato da liberdade, em suaacepção abstrata, ser atributo contingencialmentehumano, indissociável de significação política.

O próprio caráter plúrimo deste vocábulo évetor indicativo do que representa a política comofator determinante da autenticidade humana. Comobem identificou Aristóteles (2011), a políticadiferencia a sociabilidade complexado ser humano

1 Acadêmico do Nono Período da graduação em Direito pela Faculdade de Direito Santo Agostinho (FADISA).

Page 72: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

72

em face da sociabilidade rústica, regida pelanecessidade que norteia a essência de outros seresvivos.

Por assim dizer, a faculdade humana de secomunicar por meio de palavras plúrimascorrobora a premissa de que o homem é um serpolítico, dotado da libertadora capacidadeintelectual de atribuir valores a tudo quanto omundo lhe põe a apreciar, desde as questõesfísicas às metafísicas. Neste sentido, Aristóteles(2011, p. 22) refletiu que:

O homem só, entre todos os animais, tem odom da palavra; a voz é o sinal da dor e doprazer, e é por isso que ela foi tambémconcedida aos outros animais. Esteschegam a experimentar sensações de dor ede prazer, e a se fazer compreender uns aosoutros. A palavra, porém, tem por fim fazercompreender o que é útil ou prejudicial e,em consequência, o que é justo ou injusto.O que distingue o homem de um modoespecífico é que ele sabe discernir o bemdo mal, o justo do injusto, e assim todos ossentimentos da mesma ordem cujacomunicação constitui precisamente afamília do Estado.

Assim surgiu a expressão aristotélica que ohomem é um animal político, na medida em que,diferentemente de outros seres, vale-se daspalavras para atribuir valor a tudo que lhe éperceptível, o belo e o feio, o bem e o mal, o justoe o injusto, o certo e o errado, o prazer e a dor,dentre tantos outros valores mundanos.

Esse atributo político, muito bem identificadopor Aristóteles (2011), é que faz do humano umser livre a priori, movido que é pelaimprevisibilidade existencial de que trata oprincípioda contingência.

O princípio da contingência consubstanciaa faculdade do ser humano, a partir de umprocesso intelectivo de autodeliberação sobre aprópria vida, fazer escolhas frente àspossibilidades plurais e antagônicas, de acordocom os graus de valoração que são atribuídos àscoisas e fenômenos mundanos. A gestão dessasescolhas é fazer política, é que faz do humanoum ser diferente de outras espécies, porquanto apartir dos seus critérios de valoração, atribuiautenticidade à sua vida.

Arrimando este entendimento, ensinam osfilósofos brasileiros Barros Filho e Meucci (2014,p. 164-165) que:

[…] vivemos como vivemos porque somossenhores de nossas deliberações. Livres,portanto. Fundamentalmente livres.Liberdade de que, paradoxalmente, nãopodemos abrir mão. Estamos condenadosà liberdade de definir a própria vida. Nãose trata de um diletantismo. De umaprerrogativa da qual podemos nos servirquando nos apetecer. Não se tratatampouco de um direito. Deliberarlivremente sobre a própria vida é nossomaior ônus. Responsabilidade que pesarásobre os nossos ombros enquanto houvervida a viver. Responsabilidade de que, semparadoxo nenhum, não podemos abrir mão.

Essa liberdade é que também tornounecessária a regulamentação institucional da vidahumana pelo Direito.

Conforme a doutrina clássica de Rousseau(2011) a regulamentação das liberdades humanasse fez indispensável para evitar arbitrariedadesprovenientes da força bruta e, conseguintemente,atingir o bem comum da sociedade. Ainda segundoo mesmo pensador, a liberdade política natural nãopoderia ser irrestrita, ao passo que potencialmenteengendraria no despotismo dos mais fortes sobreos mais fracos.

Esse raciocínio fez com que Rousseau (2011,p. 34) tenha diferenciado a liberdade natural daliberdade civil nos seguintes termos: “O que ohomem perde pelo contrato social é sua liberdadenatural e um direito ilimitado a tudo o que lhe dizrespeito e pode alcançar. O que ele ganha, é aliberdade civil e a propriedade de tudo o quepossui.”.

Com efeito, a própria Constituição daRepública Federativa do Brasil tutela as liberdadese garantias individuais dos cidadãos, restringindo--as, entretanto, aos imperativos da lei, conformedicção do art. 5.º, II, verbis:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, semdistinção de qualquer natureza, garantindo--se aos brasileiros e aos estrangeirosresidentes no País a inviolabilidade dodireito à vida, à liberdade, à igualdade, àsegurança e à propriedade, nos termosseguintes:[...]II - ninguém será obrigado a fazer ou deixarde fazer alguma coisa senão em virtude delei;

Page 73: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

73

Hodiernamente, as liberdades humanas emespécie2 abrangem desde a autonomia privadanegocial do ser humano, até sua liberdade de ir evir, expressar-se, pensar, professar sua fé, associar--se e exercer a livre iniciativa. Todas essasliberdades em espécie derivam de um mesmo vetor,ou melhor, de uma moldura comum referente àliberdade em sentido amplo, dotada de um conceitoabstrato a priori.

Não constitui objeto do presente trabalho oestudo das liberdades em espécie, mas sim seuconteúdo amplo como valor elevado ao patamarjurídico de direito e garantia fundamental, cujonúcleo abarca todas as espécies de manifestaçãodas liberdades humanas stricto sensu.

Posto isso, pertinente trazer a lumeimportante dispositivo da Declaração Universal dosDireitos do Homem e do Cidadão de 1789(DUDHC), que tem positivado em seu artigo 4.ºum conceito amplo, in verbis

A liberdade consiste em poder fazer tudoque não prejudique o próximo. Assim, oexercício dos direitos naturais de cadahomem não tem por limites senão aquelesque asseguram aos outros membros dasociedade o gozo dos mesmos direitos.Estes limites apenas podem serdeterminados pela lei.

Trata-se de conceito amplo e com alto graude abstração, que embora não especifique, abrangeas liberdades em sentido estrito e limita as atitudespositivas dos sujeitos de direito às liberdadesigualmente asseguradas pela lei aos seus pares.

Notoriamente, esse conceito recebeuinfluências iluministas das doutrinas político--filosóficas de Montesquieu (2010) e Rousseau(2011), que vislumbram nas leis o legítimo fruto davontade geral, que materializa a igualdade entreas pessoas e resguarda de modo isonômico, aindaque meramente formal, as liberdades dos cidadãos.Neste sentido, Montesquieu (2010, p. 74) afirmaque

É verdade que nas democracias o povoparece fazer o que quer; mas a liberdadepolítica não consiste em se fazer o que sequer. Em um Estado, isto é, numa sociedadeonde existem leis, a liberdade só podeconsistir em poder fazer o que se deve

querer e em não ser forçado a fazer o quenão se tem o direito de querer. Deve-se terem mente o que é a independência e o queé a liberdade. A liberdade é o direito de fazertudo o que as leis permitem; e se um cidadãopudesse fazer o que elas proíbem ele já nãoteria liberdade, porque os outros tambémteriam este poder.

Apesar dos méritos destas conceituações emsubmeter as liberalidades humanas aos limítrofesparâmetros do bem comum consubstanciados nalei, algumas doutrinas contemporâneas vêmaperfeiçoando o conceito amplo das liberdades,dando maior ênfase à isonomia material, àsinfluências dos fatores socioeconômicos nasesferas das liberdades individuais e ao poder deautodeterminação do indivíduo, o que valorizaaspectos da sensibilidade dos sujeitos de direito talcomo a possibilidade substancial do indivíduorealizar-se subjetivamente.

Nada obstante haver certo receio na tradiçãoepistemológica do Direito no que se refere àutilização de conceitos afetos à sensibilidadehumana, a essência cultural do Direito prejudicaque sejam feitas análises tão somente racionais eobjetivas. Esta é a lição de Bittar e Almeida (2011,p. 436), para quem

A preocupação hodierna com o direito, por-tanto, valoriza a dimensão da sensibilidadecomo princípio, e deve propor-se a refletirsobre as práticas que o definem em seu agirsocialmente relevantes, agora na base deuma cultura de desrepressão da tradiçãomasculina-viril, enraizada social e cultural-mente, arquetipicamente determinando aforma como funcionam as instituições, asrelações, e as formas de construção social.

Atento a essa dimensão, propõe oconstitucionalista Silva (2014, p. 235) que a liber-dade “consiste na possibilidade de coordenaçãoconsciente dos meios necessários à realização dafelicidade pessoal.”.

Sedimentando essa tendência conceitual,Carvalho (2012) também entende que, em setratando da liberdade como direito fundamental,não há que se falar apenas em sua vertentenegativa, noutros termos, na mera observância doprincípio da estrita legalidade, mas também e,sobretudo, sua vertente positiva, no que se refere

2 Utiliza-se neste trabalho a denominação liberdades em sentido amplo para designar conceito genérico e abstrato do termo, eliberdades em espécie ou em sentido estrito para designar as liberdades específicas, tais como liberdade de expressão e locomo-ção, englobadas no conceito de liberdades em sentido amplo.

Page 74: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

74

à remoção dos impedimentos tanto econômicos esociais quanto políticos que tenham o condão de“obstruir a autorrealização da personalidadehumana.” (CARVALHO, 2012, p. 676).

De se notar que na passagem histórica doiluminismo moderno para o pensamentocontemporâneo houve um importante giroconceitual do termo liberdades, que passou de umavisão racional legalista para alcançar um ideal desatisfação pessoal do indivíduo com as opções eescolhas de vida que dispõe e que lhe sãofacultadas escolher.

Trata-se agora da liberdade do indivíduodeliberar sobre os rumos da própria vida, ou seja,que a sua realização subjetiva seja uma autênticaconstrução do próprio ser, da própria vivênciaexperimentada, e não de forças alheias opressoras.Aqui, a liberdade não é vista apenas sob o ânguloda garantia individual dos sujeitos de direito nãoterem as respectivas esferas de proteçãofundamentais invadidas por outrem ou pelo Estadosoberano, tampouco o mero agir nos limites dostatus quo estabelecido pela lei, mas também eprincipalmente, as faculdades à disposição doindivíduo para que busque “a vida que vale a penaser vivida.” (BARROS FILHO; MEUCCI, 2014).

3 A IDEIA DE LIBERDADE, COMBATEÀ POBREZA E DESENVOLVIMENTONO PENSAMENTO DE AMARTYA SEN

Corroborando o giro conceitual dasliberdades, no campo da filosofia econômica, foielaborada por Sen (2010) a Teoria doDesenvolvimento como Liberdade. Nesta obra,Sen (2010, p. 120) utiliza o conceito elementar decapacidades básicas, definidas pelo autor como as“liberdades substantivas para levar o tipo de vidaque ela [a pessoa] tem razão para valorizar.”.

Sob a óptica seniana, o ser humano livre éaquele que desfruta plenamente das suascapacidades básicas. Ocorre que, conforme ateoria em comento, o principal obstáculo aoexercício das capacidades básicas e, portanto, fatorprejudicial ao exercício das liberdades humanas éa pobreza. Neste sentido, Sen (2010, p. 17)contextualiza sua teoria afirmando que

A despeito de aumentos sem precedentesna opulência global, o mundo atual negaliberdades elementares a um grande númerode pessoas – talvez até a maioria. Às vezesa ausência de liberdades substantivasrelaciona-se diretamente com a pobreza

econômica, que rouba das pessoas aliberdade de saciar a fome, de obter umanutrição satisfatória ou remédios paradoenças tratáveis, a oportunidade de vestir--se ou morar de modo apropriado, de teracesso à água tratada ou saneamentobásico. Em outros casos, a privação deliberdade vincula-se estreitamente àcarência de serviços públicos e assistênciasocial, como por exemplo a ausência deprogramas epidemiológicos, de um sistemabem planejado de assistência médica eeducação ou de instituições eficazes para amanutenção da paz e da ordem locais.

Sendo a liberdade entendida como o poderdo ser humano buscar ser o que ele quer e valorizapara si, o principal obstáculo ao gozo das liberdadesplenas seria a pobreza, fator prejudicial ao plenodesfrute das capacidades humanas pelosindivíduos.

Nesta linha de raciocínio, quem não exercesuas capacidades, também não exercerá comexcelência sua liberdade em sentido amplo, qualseja a de ter condições materiais de ditar os rumosda própria vida, de gerir suas escolhas de vidaconforme critérios autênticos de valoração.

Surge então a ideia de pobreza no pensamentoseniano, entendida como a privação dascapacidades básicas do indivíduo. O grau depobreza é diretamente proporcional ao exercíciodas capacidades básicas e, portanto, das liberdadessubstantivas do indivíduo.

Nestas circunstâncias, quando o sujeito épobre, as possibilidades de escolha em sua vidapassam a ser restringidas por fatoressocioeconômicos que estão além das suascapacidades básicas. A liberdade de buscar suaautorrealização subjetiva, sua felicidade pessoal, édirimida, porquanto as suas escolhas autênticaspassam a ser substituídas pelas escolhas pautadasnas necessidades de não passar fome, de não perdera moradia, de não ter os fornecimentos de serviçospúblicos básicos como água e energia elétricacortados, dentre várias outras.

Não obstante haver críticas quanto àaplicabilidade concreta da Teoria doDesenvolvimento como Liberdade, os seus efeitospráticos são de notável relevância. Considerandoas premissas elaboradas por Sen (2010), sobretudoa de que a liberdade do indivíduo é plena na medidaem que tem condições de exercer suas capacidadesbásicas, de fato, a pobreza passa a ser vista comoum dos maiores, se não o maior, fator de restriçãodas liberdades humanas. Afinal, o próprio Relatório

Page 75: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

75

do Desenvolvimento Humano de 2014 (RDH--2014), divulgado pelo Programa para oDesenvolvimento das Nações Unidas (PNUD),identificou que, nos países em desenvolvimento,quase 1,5 bilhão de pessoas vive na pobrezamultidimensional, ou seja, com privações de direitosfundamentais sociais como saúde, educação eproteção social latu sensu.

Sen (2010) também critica o fato de apobreza ser comumente entendida como meraprivação de rendas. No Brasil, por exemplo, orequisito legal caracterizador da situação deextrema pobreza é a renda familiar per capitamensal de até R$77,00. Ou seja, os núcleosfamiliares que percebem renda mensal superior aR$77,00 por integrante, não são considerados peloEstado brasileiro como em situação de extremapobreza3.

Sob a perspectiva seniana, este critério éfalacioso. Sen (2010, p. 120) defende que a pobrezanão deve ser entendida como mera privação derendas, mas sim, como privação das capacidadesbásicas, verbis

[...] ao analisar a justiça social, há bonsmotivos para julgar a vantagem individualem função das capacidades que umapessoa possui, ou seja, das liberdadessubstantivas para levar o tipo de vida queela tem razão para valorizar. Nessaperspectiva, a pobreza deve ser vista comoprivação de capacidades básicas em vez demeramente como baixo nível de renda, queé o critério tradicional de identificação dapobreza.

Sendo assim, a pobreza deve sercompreendida como privação das capacidadesbásicas. Noutras palavras, uma pessoa é pobrequando não usufrui das condições e liberdadessubstantivas necessárias para buscar ser o quevaloriza para si.

Todavia, apesar da pobreza não se restringirà baixa ou inadequada renda, Sen (2010) reconheceque ela exerce grande influência na privação dascapacidades das pessoas, uma vez que a ausênciade renda é uma predisposição ao estado de pobreza.

Três argumentos são basilares na perspectivaseniana, que considera a pobreza uma privação decapacidades e, portanto, de liberdades substantivas.

Neste sentido, Sen (2010, p. 120) identifica que

1) A pobreza pode sensatamente seridentificada em termos de privação decapacidades; a abordagem concentra-se emprivações que são intrinsecamenteimportantes (em contraste com a rendabaixa, que é importante apenasinstrumentalmente).2) Existem outras influências sobre aprivação de capacidades – e, portanto,sobre a pobreza real – além do baixo nívelde renda (a renda não é o único instrumentode geração de capacidades).3) A relação instrumental entre baixa rendae baixa capacidade é variável entrecomunidades e até mesmo entre famílias eindivíduos (o impacto da renda sobre ascapacidades é contingente e condicional).

O primeiro e segundo argumentosestabelecem que a pobreza não se resume àprivação de rendas, em que pese se tratar de umimportante instrumento para o exercício dascapacidades básicas. As privações de capacidadesreferentes à pobreza dizem respeito ao não acessoa direitos fundamentais sociais, por exemplo,educação, saúde e moradia de qualidade. Aspessoas que não usufruem de uma gama mínimadesses direitos, em regra, não conseguem gerir aspróprias escolhas para que se realizemsubjetivamente, na medida em que suascapacidades básicas são mitigadas. O que Sen(2010, p. 123) insistentemente chama a atenção éque a privação de rendas, principal indicativoutilizado pelos países para aferir a pobreza daspessoas, não exaure o conceito de pobreza que émuito mais amplo.

O que a perspectiva da capacidade faz naanálise da pobreza é melhorar o entendimen-to da natureza e das causas da pobreza eprivação desviando a atenção principal dosmeios (e de um meio específico que geral-mente recebe atenção exclusiva, ou seja, arenda) para os fins que as pessoas têm razãopara buscar e, correspondentemente, paraas liberdades de poder alcançar esses fins(SEN, 2010, p. 112).

O terceiro argumento apresentado por Sen(2010) é de extrema relevância. Em sua obra,

3 Estabelece o artigo 2.º, parágrafo único, do Decreto n.º 7.492/2011, que instituiu o Plano Brasil Sem Miséria, verbis: “Para efeitodeste Decreto considera-se em extrema pobreza aquela população com renda familiar per capita mensal de até R$77,00 (setentae sete reais)”.

Page 76: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

76

exemplifica que, num grupo de pessoas, ainda quetodos percebam a mesma renda, o potencial paraconversão dessa renda em capacidades é variável.Bastaria imaginar um jovem saudável e um idosoenfermo que auferem mesma renda. Enquanto ojovem está no auge do seu vigor físico, o idosoestá debilitado e necessita de medicamentos e/oupróteses para ter uma vida digna. As despesas doidoso enfermo são potencialmente maiores que asdespesas do jovem saudável. Logo, apesar deauferirem a mesma renda, o jovem saudável temmais potencialidade para converter sua renda emcapacidades e, portanto, em liberdade substantiva,do que o idoso enfermo. Sen (2010, p. 121) aindaexplica, a respeito deste exemplo, que “a pobrezareal (no que se refere à privação de capacidades)pode ser, em um sentido significativo, mais intensado que pode parecer no espaço da renda.”.

Depreende-se da Teoria do Desenvolvimentocomo Liberdade que a pobreza real é a decorrentedas restrições das capacidades básicas, queensejam conseguintemente privações dasliberdades substantivas dos indivíduos. A pobrezaé fator de restrição das condições humanas debuscar ser o que quer e valoriza para si, e, portanto,das próprias liberdades substantivas.

Daí a premissa seniana de que a expansãodas liberdades é fim e meio para o desenvolvimento(SEN, 2010). É fim por consistir objetivofundamental dos Estados4.

Noutro giro, o enfrentamento da pobreza éimportante instrumento para o desenvolvimento dosEstados. Portanto, quando o Estado busca odesenvolvimento enfrentando a pobreza, porconsequência amplia as capacidades básicas doscidadãos.

Sendo assim, quanto mais capacidades e,portanto, mais liberdades de escolha os indivíduostêm, mais o Estado se desenvolve. As pessoaspassam a ter aptidão para atribuir autenticidade àspróprias vidas, através de escolhas feitas com basena contingência e não na necessidade. Por essasrazões, a ampliação das liberdades das pessoaspassa a funcionar como catalizador dodesenvolvimento estatal.

4 A EFETIVAÇÃO DAS LIBERDADES EDO BEM-ESTAR SOCIAL ATRAVÉS DOPLENO EXERCÍCIO DA CIDADANIA

Atribuir conceitos é tarefa hercúlea, queinquieta os pensadores na medida em que se veemexpostos ao risco de deixar de lado aspectosrelevantes dos verbetes, que em muitos casospossuem semânticas amplas e multidisciplinares.

Com o termo cidadania a situação não édiferente. Sua significação envolve relevantesquestões afetas à Sociologia, à Antropologia, àPolítica e ao Direito.

Conforme ensinamento do antropólogoDaMatta (1997, p. 65), o conceito de cidadaniaenvolve dois pontos principais, quais sejam, a ideiafundamental de indivíduo e as regras universais,entendidas como “um sistema de leis que vale paratodos em todo e qualquer espaço social.”.

Por muito tempo na história constitucionalbrasileira, a ideia jurídica de cidadania foi deverasrestrita, resumindo-se a critérios objetivosrelacionados aos direitos políticos comonacionalidade e capacidade eleitoral ativa e passiva.

Quebrando este paradigma constitucional, opoder constituinte de 1988 elevou a cidadania aopatamar jurídico de fundamento da RepúblicaFederativa do Brasil5, o que indubitavelmenteexpandiu o substrato teórico-conceitual do termopara além dos direitos políticos. Atento a estecenário, Carvalho (2002, p. 9), identifica que

Tornou-se costume desdobrar a cidadaniaem direitos civis, políticos e sociais. Ocidadão pleno seria aquele que fosse titulardos três direitos. Cidadãos incompletosseriam os que possuíssem apenas algunsdos direitos. Os que não se beneficiassemde nenhum dos direitos seriam “não--cidadãos”.

Segundo essa perspectiva conceitual, ocidadão pleno é aquele em favor do qual o Estadopõe à disposição todos os direitos fundamentaisgeracionais. Lado outro, o cidadão que nãodesfruta de alguns dos direitos fundamentaisgeracionais seria um “cidadão incompleto”.

4 Inclusive, a própria CRFB elevou, em seu artigo 3.º, II, ao patamar de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.

5 Conforme dicção do artigo 1.º, II da CRFB, “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados eMunicípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] II - a cidadania”.

Page 77: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

77

Esclarece-se que essa perspectivaapresentada enfoca no aspecto da cidadaniarelacionado aos direitos dos indivíduos frente aoEstado. Portanto, o “cidadão incompleto” de quetrata, é aquele que não tem satisfeito algum direitofundamental a que faz jus por sua só condiçãohumana.

O acerto deste conceito, que vislumbra nacidadania o pleno gozo e exercício dos direitosfundamentais individuais, políticos, sociais,econômicos e culturais, está em enxergar nosdireitos fundamentais uma relação decomplementariedade recíproca, direcionados deforma uníssona à finalidade de materializar adignidade da pessoa humana.

Desta forma, o ser humano que não desfrutade uma das espécies de direitos fundamentais teriaprejudicada a plenitude do seu status de cidadãopleno. Isso porque, mais uma vez trazendoensinamentos de Carvalho (2002, p. 8)

O exercício de certos direitos, como aliberdade de pensamento e o voto, não geraautomaticamente o gozo de outros, como asegurança e o emprego. O exercício do votonão garante a existência de governosatentos aos problemas básicos dapopulação. Dito de outra maneira: liberdadee a participação não levamautomaticamente, ou rapidamente, àresolução de problemas sociais. Isto querdizer que a cidadania inclui váriasdimensões e que algumas podem estarpresentes sem as outras. Uma cidadaniaplena, que combine liberdade, participaçãoe igualdade para todos, é um idealdesenvolvido no Ocidente e talvezinatingível. Mas ele tem servido deparâmetro para o julgamento da qualidadeda cidadania em cada país e em cadamomento histórico.

De fato, o Estado que respeita os direitos egarantias individuais e políticas, mas que tem grandeparcela da população marginalizada e sem acessoa direitos sociais básicos, não pode avocar para sios méritos democráticos de uma nação formadapor cidadãos livres. Isso porque, conforme ensinaSarlet (2003, p. 422):

[...] os segmentos excluídos da população,vítimas das mais diversas formas deviolência física, simbólica ou moral –resultantes da opressão socioeconômica –acabam não aparecendo como portadoresde direitos subjetivos públicos, nãopodendo, portanto, nem mesmo ser

considerados como verdadeiros “sujeitosde direito”, já que excluídos, em maior oumenor grau, do âmbito de proteção dosdireitos e garantias fundamentais.

Seguindo este raciocínio, vislumbrando nacidadania plena a materialização da dignidade dosindivíduos, entende Silva (2014, p. 106) que

A cidadania está aqui num sentido maisamplo do que o de titular de direitospolíticos. Qualifica os participantes da vidado Estado, o reconhecimento do indivíduocomo pessoa integrada na sociedade estatal(art. 5.º, LXXVII). Significa aí, também, queo funcionamento do Estado estarásubmetido à vontade popular. E aí, o termoconexiona-se com o conceito de soberaniapopular (parágrafo único do art. 1.º), comos direitos políticos (art. 14) e com oconceito de dignidade da pessoa humana(art. 1.º, III), com os objetivos da educação(art. 205), como base e meta essencial doregime democrático.

Vê-se que o conceito contemporâneo decidadania guarda tenaz relação com a ideia dobem-estar social como importante pressuposto àsliberdades individuais, bem como o contrário: asliberdades individuais como fator determinante dobem-estar social.

A dedução desta premissa é relevante namedida em que a tradição jurídica tende avislumbrar os direitos fundamentais individuais esociais em planos separados, até mesmo por seremalocados pela doutrina, por critérios objetivos,finalísticos e históricos em gerações distintas.

Conforme prelecionam Mendes e Branco(2014, p. 137), enquanto os direitos fundamentaisde primeira geração pretendiam “[...] sobretudo,fixar uma esfera de autonomia pessoal refratáriaàs expansões do Poder”, e “[...] traduzirem-se empostulados de abstenção dos governantes, criandoobrigações de não fazer, de não intervir sobreaspectos da vida pessoal de cada indivíduo” osdireitos fundamentais de segunda geração “[...] nãomais correspondem a uma pretensão de abstençãodo Estado, mas que o obrigam a prestaçõespositivas [...], por meio dos quais se intentaestabelecer uma liberdade real e igual para todos,mediante ação corretiva dos Poderes Públicos.”.

Logo, pelo fato de os direitos fundamentaisde segunda geração terem surgido como respostasantônimas aos princípios do liberalismo político--econômico desenfreado, que abalizou o surgimentodos direitos fundamentais de primeira geração, é

Page 78: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

78

incomum que referidos direitos, por estarem“alocados” em gerações distintas, sejamvislumbrados como reciprocamente complemen-tares.

Justamente por isso, Fernandes (2014, p.135), sustenta que “a tese das gerações(dimensões) de direitos fundamentais não se mostraadequada ao momento contemporâneo, pois nãolograria explicar por si mesma a complexidade deformação histórica e social dos direitos.”.

Feitas essas considerações, a plenitude dasliberdades humanas é indissociável do estado debem-estar social dos indivíduos, que por seu turno,materializa-se no exercício da cidadania porexcelência, consubstanciada cumulativamente nopleno exercício dos direitos fundamentais denatureza individual, política, social, econômica ecultural.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, na linha do que propõemos autores referenciados, conclui que a liberdadeem sentido amplo deve ser entendida como apossibilidade substancial do indivíduo ditar os rumosda própria vida, fazendo as escolhas necessáriascom base em critérios de valoração experimentadospelo próprio ser, desgarrado de influênciasopressoras que prejudiquem a busca pela realizaçãosubjetiva.

Neste sentido, a pobreza foi identificada comoum relevante fator prejudicial da liberdade, namedida em que restringe as possibilidades deescolhas pelos indivíduos, que passam a escolherimpositivamente por necessidade, havendo, nestescasos, redução da contingência nas experiênciasdo viver.

Portanto, nos casos em que a pobreza for detal dimensão que as escolhas de vida se pautempredominantemente em necessidades desobrevivência, estar-se-á diante de indivíduosprivados das suas liberdades elementares.

Em que pese os números oficias daOrganização das Nações Unidas (ONU) indicaremque quase 1,5 bilhões de pessoas vive em extremapobreza no globo terrestre, ainda há restrições aovislumbre da pobreza como um fator que priva osindivíduos das suas liberdades de buscarem vivero que valorizam.

Isso porque se trata de uma privação deliberdades velada, encoberta pelo véu dos EstadosDemocráticos de Direito, “respeitadores” dosdireitos e garantias individuais dos cidadãos.

O exercício da liberdade, de acordo com aconceituação aqui defendida, é viável quando osindivíduos têm acesso a um mínimo de bem-estarsocial, ou seja, quando o Estado enfrenta a pobrezae trata as pessoas como verdadeiros e plenoscidadãos.

Portanto, a premissa conclusiva destetrabalho é a de que o bem-estar social mínimo épressuposto ao exercício, pelos indivíduos, das suasliberdades em sentido lato. Sendo assim, acidadania plena é o elemento de conexão entre asinterfaces destes valores tão importantes para apessoa e indispensáveis à caracterização de umavida digna, livre e de realizações subjetivas, frutoautêntico das opções escolhidas pelo próprio ser.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A política. Tradução deNestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2011.

BARROS FILHO, Clóvis de; MEUCCI, Arthur.A vida que vale a pena ser vivida. 12. ed.Petrópoles: Vozes, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.

BRASIL. Decreto n.º 7.492, de 2 de junho de2011. Institui o Plano Brasil Sem Miséria. DiárioOficial [da] República Federativa do Brasil,Brasília, DF, 3 jun. 2011.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA,Guilherme Assis de. Curso de filosofia dodireito. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania noBrasil: o longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2002.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direitoconstitucional. 19. ed. Belo Horizonte: Del Rey,2012.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos doHomem e do Cidadão. In: Textos básicos sobreDerechos Humanos. Madrid: Ed. UniversidadComplutense, 1973. Tradução de MarcusCláudio Acqua Viva. Apud FERREIRA FILHO,Manoel Gonçalves et. al. Liberdades públicas.São Paulo: Saraiva, 1978.

Page 79: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

79

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso dedireito constitucional. 6. ed. Salvador:Juspodivm, 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, PauloGustavo Gonet. Curso de direitoconstitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baronde. Do espírito das leis. Tradução de RobertoLeal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS.Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (PNUD). Relatório doDesenvolvimento Humano 2014. Disponível em:<hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2014_pt_web.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2015.

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social.Tradução de Antônio P. Machado. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamentalà moradia na constituição: algumas anotações arespeito de seu contexto, conteúdo e possíveleficácia. In: SAMPAIO, José Adércio Leite(Org.). Crise e desafios da constituição. BeloHorizonte: Del Rey, 2003, p. 415-466.

SEN, Amartya. Desenvolvimento comoliberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta.São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direitoconstitucional positivo. 37. ed. São Paulo:Malheiros, 2014.

Page 80: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

80

Page 81: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

81

RESUMO

Este artigo, com apreciação engrenada aos direitosda personalidade, objetiva, em uma pesquisadoutrinária, compreender o instituto da privacidade;bem como, em caso concreto, analisar a situaçãode colisão deste direito fundamental com o tambémdireito da personalidade, honra e imagem. Paraatender ao segundo objetivo, trabalha-se com ocaso “Gloria Trevi”, julgado pelo Supremo TribunalFederal (STF) brasileiro. Embora o direito àprivacidade e o direito à intimidade tenham tutelaparticulares, chega-se às considerações finaisentendendo a privacidade como a vida particularda pessoa natural, compreendendo uma de suasmanifestações do direito da personalidade àintimidade. Em casos concretos, quando houverDireitos da Personalidade objetados, caberá aojudiciário harmonizá-los.

Palavras-chave: Privacidade. Direitos dapersonalidade. Colisão entre direitos.

ABSTRACT

This article, with appreciation geared to the rightsof personality, intends, in a doctrinal research,understand the privacy institute; and, in this caseto analyze the collision situation of this fundamentalright with the also right of honor, personality andimage. Seeking to meet the second objective, wework with the “Gloria Trevi” case, judged by theBrazilian Federal Supreme Court (STF). Althoughthe right to privacy and the right to intimacy haveparticular guardianship, comes out to the finalremarks understanding privacy as the private lifeof natural person, including one of its manifestationsof personality rights to intimacy. In concrete cases,there are rights of disputed personality, fitting thejudiciary harmonize them.

O CASO “GLORIA TREVI”: colisão entre direitos da personalidade

Werley Pereira de Oliveira1

Gabriel Pereira Novais2

Keywords: Privacy. Personality rights. Collisionof rights.

1 INTRODUÇÃO

Em uma análise voltada aos direitos dapersonalidade, este artigo objetiva compreender oinstituto da privacidade a partir de estudosdoutrinários e, em caso concreto, analisar a situaçãode colisão deste direito fundamental com o tambémdireito da personalidade, honra e imagem. Trabalha--se com o caso “Gloria Trevi”, julgado peloSupremo Tribunal Federal (STF) brasileiro paraatendimento do segundo objetivo.

O que se entende por privacidade comoDireito da Personalidade? Qual a extensão daproteção do Direito à Privacidade e à Honra/Imagem? Qual é a proteção constitucional e civildesses direitos? O que se entende por colisão entreDireitos Fundamentais? Como se resolvem casospráticos nos quais se observa a colisão de DireitosFundamentais?

Os esforços para responder tais questõespossibilitaram a estruturação deste artigo, alémdesta introdução, em quatro seções. A primeiravolta-se à extensão do instituto da privacidade e asegunda apresenta um caso concreto de colisãoentre os Direitos da Privacidade e da Honra/Imagem. A seguir, na terceira seção, verifica-secomo se dá a resolução de conflitos entre Direitosda Personalidade pelo Poder Judiciário. E por fim,chegam-se às considerações finais deste estudo.

2 NOÇÕES CONCEITUAIS

A privacidade, isto é, a vida pessoal do serhumano, transcorre nos aspectos interiores – vidaamorosa, sexual, religiosa, familiar – até um aspectoexterno. Ela é o refúgio reservado da sociedade.

1 Mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Graduando do Curso de Direitoda Faculdade de Direito Santo Agostinho.

2 Graduando do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho.

Page 82: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

82

Como Direito da Personalidade, incide no direitode a pessoa viver a própria vida sem ser submetidaà publicidade que não provocou. Consiste no direitode proteção das particularidades de uma pessoa,impedindo que a atividade de terceiro venha aconhecer, descobrir ou divulgar estasparticularidades. O repúdio à violação daprivacidade de uma pessoa, apesar da suaressonância como mandamento a regra, não é algofácil de qualificar concretamente. Por este motivo,acaba amenizando o caráter absoluto queaparentemente possui a norma. Diversosordenamentos seguiram seus próprios caminhos aotratar de privacidade, visto que entravam emterreno no qual as particularidades de cadacoletividade são determinantes (FARIAS;ROSENVALD, 2011).

Para esses doutrinadores, no Direito àPrivacidade, como Direito da Personalidade, estãocontidos o Direito à Intimidade e ao Segredo,compondo diferentes aspectos de um mesmo bemjurídico personalíssimo. Já para Gagliano ePamplona Filho (2013), em uma classificaçãopormenorizada, o Direito à Privacidade encontra--se no rol da Integridade Psíquica da pessoa e oDireito à Intimidade seria um desdobramento daprivacidade. Assim, a privacidade

manifesta-se, principalmente, por meio dodireito à intimidade, não obstante aproteção legal da honra e da imagem lheseja correlata. O elemento fundamental dodireito à intimidade, manifestação primordialdo direito à vida privada, é a exigibilidadede respeito ao isolamento de cada serhumano, que não pretende que certosaspectos de sua vida cheguem aoconhecimento de terceiros. Em outraspalavras, é o direito de estar só(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p.192).

Sem fazer distinção entre privacidade eintimidade, Gonçalves (2011) lembra que o direitode proteção à privacidade ou intimidade é garantidono Código Civil brasileiro de 2002 (CCB/02) e noart. 5.º, inciso X, da Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). Maisprecisamente, no art. 21 do CCB/02, o qual,segundo Gonçalves (2011, p. 164), “protege todosos aspectos da intimidade da pessoa”.

Dispõe assim a Constituição Federal de 1988:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, semdistinção de qualquer natureza, garantindo-

-se aos brasileiros e aos estrangeirosresidentes no País a inviolabilidade dodireito à vida, à liberdade, à igualdade, àsegurança e à propriedade, nos termosseguintes:[...]X - são invioláveis a intimidade, a vidaprivada, a honra e a imagem das pessoas,assegurado o direito a indenização pelodano material ou moral decorrente de suaviolação,[...]

Por seu lado, assim se encontra descrito noCódigo Civil de 2002:

Art. 21. A vida privada da pessoa natural éinviolável, e o juiz, a requerimento dointeressado, adotará as providênciasnecessárias para impedir ou fazer cessar atocontrário a esta norma.

A principal forma de manifestação doinstituto privacidade é por meio da intimidade,quando cada pessoa tem o direito de serrespeitada, sendo que sua vida não precisa estarao conhecimento das demais. Nesteentendimento, a vida privada da pessoa natural éprotegida de possíveis atentados.

No domínio da privacidade, conceitoevidenciado nos Direitos da Personalidade noâmbito do Direito Civil, é o mesmo conceitoconsagrado nos Direitos Fundamentais quepertencem ao Direito Constitucional. Oportunodestacar as observações de Gangliano e PamplonaFilho (2013) nesse aspecto. Segundo eles osDireitos evidenciados enquanto Direitos daPersonalidade, examinados em relação ao Estado,e não em face a outros indivíduos, serão observadosenquanto Liberdades Públicas, fixadas pelo DireitoConstitucional, as quais necessitam de positivaçãopara a efetiva proteção.

Os mesmos direitos encarados sob aperspectiva civilista, os denominados Direitos daPersonalidade, inatos à condição humana,transcendem o homem e independem depositivação, restando ao Estado apenas a proteçãoa esses Direitos.

Nesse sentido Carvalho (2011, p. 651) lecionaque “os direitos de ordem moral, tais como a honra,a privacidade, a intimidade e a imagem são direitosfundamentais que se inserem no contexto dosdireitos de personalidade”, portanto, “entendidaessa como o caráter que individualiza a pessoa eque a distingue das outras”.

Page 83: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

83

Na seara constitucionalista, os conceitosconstitucionais de intimidade e vida privada estãoconectados. “O conceito de intimidade relaciona--se às relações subjetivas e de trato íntimo dapessoa humana, suas relações familiares e deamizade.” (MORAES, 2002, p. 135); ao passo quea privacidade, isto é, vida particular, volta-se,inclusive aos objetivos da pessoa humana em suasrelações comerciais, de trabalho, de estudo entreoutros relacionamentos não familiares e deamizade, de foro íntimo. Assim, constata-se que avida das pessoas perpassa em dois aspectos, sendoum voltado para o interior (intimidade) e o outropara o exterior (vida privada).

Embora quase sempre considerados comosinônimos, o Direito à Intimidade e o Direito àPrivacidade são tutelas constitucionais que visamproteger as pessoas de duas violações privadas, asaber: 1) ao segredo da vida privada, e 2) àliberdade da vida privada.

Silva (2014) ressalta que, nos termos daCRFB/88, é possível a distinção expressaretrocitada, quando o inciso X do art. 5.º separaintimidade de outras manifestações da privacidade(vida privada, honra, imagem, inviolabilidade dodomicílio, bem como os sigilos bancário e fiscal).

A seguir, será apresentado o caso concretode “Gloria Trevi”, julgado pelo STF do Brasil, paraanalisar o conflito entre os Direitos daPersonalidade, Privacidade em confronto com aHonra/Imagem.

3 O CASO “GLORIA TREVI”: COLISÃOENTRE DIREITOS DAPERSONALIDADE

A partir do estudo de Lourenço (2011),sintetiza-se o caso concreto em análise.

Gloria de Los Angeles Treviño Ruiz, maisconhecida como Gloria Trevi, é cantora mexicana.Em 1997, apontada como autora de abuso sexualem menores de idade, teve decretada sua prisãopelas leis do México, quando fugiu deste país. Elafoi, em 2000, presa no Brasil, sendo mantida sobcustódia na prisão da Polícia Federal em Brasília,para aguardar o processo de extradição.

No decorrer desse tempo, Gloria Treviengravidou. A paternidade do nascituro foiquestionada, momento em que ela alegou ter sidovítima de contínuos estupros praticados entrepoliciais federais e ex-detentos, perfazendo, nomínimo, um total de 60 pessoas. Na tentativa deconhecer quem seria o pai do filho dela, os acusadosdecidiram fornecer material biológico para

realização do exame de DNA. Para tal finalidade,chegou-se à decisão judicial segunda a qual dacantora fosse coletado sangue da placenta duranteo parto; e, igualmente, coletado sangue de seurecém-nascido, para análise e, consequentemente,definição da paternidade de seu filho.

Todavia, Gloria Trevi negou-se a submeterao referido exame, reclamando perante o STF paraevitar a execução daquela decisão. Ela alegou estarem risco seu direito à vida privada e intimidade.Por sua vez, os acusados, indicados comoestupradores e expostos por meio de reportagens,antagonizaram o direito à honra e à imagem.

Neste contexto há, de um lado, uma pessoaprocurando defender o seu direito à intimidade e àvida privada e, de outro, pessoas lutando parapreservarem o direito à honra e à imagem.

Destarte, o caso “Gloria Trevi” apresentauma situação de ocorrência de colisão entreDireitos da Personalidade. A pluralidade de direitosfundamentais consagrados na CRFB/88, sendomuitos deles positivados também no CCB/02, é quepossibilita que esses direitos conflitem entre si.

Para Alexy (2008, p. 160), “o exercício ou arealização do direito fundamental de um dado titularde direito produz efeitos negativos sobre os direitosfundamentais de outro titular.”. Fala-se, assim, daocorrência de colisão entre os próprios direitosfundamentais, de modo que a conjetura de fato deum direito intercepta o pressuposto de fato de outrodireito.

Ainda conforme Alexy (2008), diante de umconflito entre direitos fundamentais, deve-serealizar um sopesamento entre os interessesconflitantes. O objetivo do balanceamento consisteem definir qual dos direitos envolvidos, queabstratamente estão no mesmo nível, tem maiorpeso no caso concreto.

Na operacionalização do sopesamento, oprincípio da ponderação, deve ser levado em contapela intensidade e pela importância da intervençãoem um direito fundamental, ora analisado comodireito da personalidade. Através desse critério, eleprocura explicar o nível de importância dasconsequências jurídicas de ambos os direitos emcolisão.

Assim, segundo a lei de ponderação, há dese efetuar os três planos, assim pedagogizados: a)definir a intensidade da intervenção, ou seja, o graude insatisfação ou afetação de um dos direitos; b)definir a importância dos direitos fundamentais,justificadores da intervenção, (a importância dasatisfação do direito oposto); e por fim, c) realizar

Page 84: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

84

a ponderação em sentido específico, isto é, se aimportância de satisfação de um direitofundamental justifica a não satisfação do outro.

A ponderação na visão de Dworkin (2002),por sua vez, possui um significado diferente dianteda teoria de Alexy. Ponderar é um processo dereflexão em que o conflito será resolvido por meiode uma análise cuidadosa e pormenorizada a partirda leitura que a coletividade faz da sua históriajurídica. Não há neste entendimento exclusividadedo intérprete. Ele denomina de “integridade” umaconcepção do direito que se destaca por tentar agirassim. Por consequência, um direito que apresenteintegridade é capaz de sinalizar e nortear aaplicação dos princípios em face de cada casoconcreto que sempre deve ser tratado como eventoúnico e que não se repete. Afirma, ele, que emcada caso se podem observar os argumentostrazidos por todos os envolvidos, assim como asdiscussões anteriores sobre aqueles direitospautados. Posto assim, será capaz de compreenderque é uma ilusão o que se mostra aparentementecomo um conflito entre direitos.

Nessa perspectiva, diferente de Alexy, paraDworkin, não há uma contradição ou colisão entredireitos que será resolvida a partir doestabelecimento de prioridades ou preferências,mas uma concorrência entre eles para determinadocaso.

4 HARMONIZAÇÃO NA COLISÃOENTRE CONFLITOS

Antes de apresentar a decisão do STFperante o caso “Gloria Trevi”, vale discorrerbrevemente acerca da resolução de colisão entreDireitos da Personalidade.

O Ministro Celso de Mello (AI 595.395/SP.Segunda Turma. Rel. Ministro Celso de Mello.Brasília, 20 de junho de 2007) escreve que:

No processo de ponderação desenvolvidopara solucionar o conflito de direitosindividuais não se deve atribuir primaziaabsoluta a um ou a outro princípio ou direito.Ao revés, esforça-se o Tribunal paraassegurar a aplicação das normasconflitantes, ainda que, no caso concreto,uma delas sofra atenuação.

Percebe-se que a resolução de conflito entreDireitos da Personalidade é comum no PoderJudiciário. Cabe, primeiramente, a ele sepronunciar sobre qualquer caso, pautado no

princípio da inafastabilidade do controlejurisdicional. A colisão sempre se dá em um casoconcreto, o que não possibilita a previsão exaustiva,em abstrato, do legislador, a todos os casos deconflito que possam aparecer. Por isso, paraminimizar o sacrifício dos direitos colididos, ajurisprudência desenvolve um necessário ecasuístico balanceamento dos bens jurídicosenvolvidos.

No caso “Gloria Trevi”, o STF ponderou pelarealização do exame de DNA para esclarecimentoda verdade quanto à participação dos acusados nosuposto estupro. A efetivação do referido examenão afetaria a intimidade ou a vida privada de“Gloria Trevi” ou de seu filho. Abaixo, transcreve--se, de Lourenço (2011), a fundamentação e oentendimento da decisão do STF.

O Pretório Excelso, vencido o ministroMarco Aurélio, deferiu a realização do examede DNA com a utilização do materialbiológico da placenta retirada de GlóriaTrevi, determinando ao juízo de primeirainstância adotar as providênciasnecessárias para tanto.Ponderou o Supremo Tribunal que arealização de tal exame não feriria qualquerdireito à intimidade ou vida privada damesma, posto não haver qualquerprocedimento invasivo na coleta daplacenta (que é descartada após o parto) eque a coleta de cabelo ou sangue da criançanão lhe traria qualquer prejuízo, sendo certoque tal procedimento é feito, inclusive, paraoutros exames (como o “teste do pezinho”).Ademais, restaria violado o direito àpersonalidade do recém-nascido, privadode saber quem é seu pai...O voto vencedor, proferido pelo MinistroNéri da Silveira, relator da Reclamação,abordou o cerne da controvérsia, nosseguintes termos:“Em realidade, assim, de um lado, aextraditanda, ora reclamante, com baseno art. 5.º, inciso X, da Constituição, alegacomo o faz na inicial seu direitofundamental à intimidade, à vida privada,em não concordando com qualquer examede ‘material genético dela e de seu filho’(fls. 3), e, de outra parte, os PoliciaisFederais (fls. 186), atingidos, consoantealegam, em sua honra, pelas acusações dareclamante, juntamente com o DelegadoFederal que preside o Inquérito Policialem que se apuram os fatos ligados àorigem da gravidez da requerente, e oMinistério Público Federal, invocando,por igual, o direito à honra e à imagem, ut

Page 85: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

85

art. 52, x, da Constituição, sustentam aimprescindibilidade da prova do DNA dofilho da reclamante, recém-nascido, o quese pode obter por meio da placentaretirada da reclamante.“Põem-se, aqui, portanto, em confrontoalegações de direitos fundamentais àintimidade, de um lado, e à honra e imagemde outro lado, previstos no art. 5.º, incisoX, da Lei Magna da República.“Edílson Pereira de Farias, in Colisão deDireitos, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2.ed., p. 130, referindo-se à honra, àintimidade, à vida privada e à imagem,anota: ‘Os direitos em epígrafe possuemduplo caráter: além de constituíremdireitos fundamentais (com sua especialproteção pelo ordenamento jurídico) sãoao mesmo tempo direitos dapersonalidade, isto é, essenciais à pessoa,inerentes à mesma e em princípio extrapatrimoniais. Na verdade, os direitos àhonra, à intimidade, à vida privada e àimagem foram paulatinamente sendoperfilados, primeiramente, como direitossubjetivos da personalidade, com eficáciaprevalente no âmbito inter privato para sómais tarde alcançar a estaturaconstitucional.’. Não há, em linha deprincípio, precedência de um dessesdireitos sobre os demais, constantes doinciso X, do art. 5.º, da Constituição, nãocabendo, assim, considerar um delessuperior a outro; decerto, todos estãovinculados ao princípio da igualdade dapessoa humana, reconhecido como um dosfundamentos da própria ordemconstitucional (Constituição Federal, art.1.º II).“Observa, de outra parte, Gilmar FerreiraMendes, in Colisão de Direitos Individuais(Anotações a propósito da obra de EdilsonPereira de Farias), Revista dos Tribunais– Cadernos de Direito Tributário eFinanças Públicas, n. 18, p. 390:‘A Corte Constitucional alemãreconheceu, expressamente, que, tendo emvista a unidade da Constituição e a defesada ordem global de valores por elapretendida, a colisão entre direitosindividuais de terceiros e outros valoresjurídicos de hierarquia constitucionalpode legitimar, em casos excepcionais, aimposição de limitações a direitosindividuais não submetidosexplicitamente à restrição legal expressa.Ressalte- se, porém, que tal como apontadono presente trabalho, o Tribunal não selimita a proceder a uma simplificadaponderação entre princípios conflitantes,atribuindo precedência ao de maior

hierarquia ou significado. Até porque,como observado, dificilmente logra-seestabelecer uma hierarquia precisa entredireitos individuais e outros valoresconstitucionalmente contemplados. Aorevés, no juízo de ponderação,indispensável entre os valores em conflito,contempla a Corte as circunstânciaspeculiares de cada caso. Daí afirmar se,correntemente, que a solução dessesconflitos há de se fazer mediante autilização do recurso à concordânciaprática (Praktesche Konhordanz), demodo que cada um dos valores jurídicosem conflito ganhe realidade’ (LOURENÇO,2011).

Ressalta-se que a precedência de direitossobre os demais não significa considerar um delessuperior a outro, pois todos estão vinculados aoprincípio da igualdade da pessoa humana e daliberdade, reconhecidos como um dos fundamentosda própria ordem constitucional. O que reafirma alógica de Dworkin (2002), quando defende que naaplicação de princípios, não se utiliza o mesmomarco de aplicação das regras, as quaisnecessariamente são excludentes. Ao aplicarprincípios no caso concreto, caberá ao intérpretedimensionar o peso ou importância deles naquelacircunstância específica.

Sendo extensão da personalidade, Mendes(2013), doutrina o princípio da dignidade humanacomo obsecrado essencial da ordem constitucional,estabelecendo a inviolabilidade da privacidade, bemcomo fixando a liberdade de expressão e aomesmo tempo o resguardo a Honra e ou Imagemde todos os envolvidos.

Nos conflitos entre os direitos postos no casoconcreto o intérprete se atentará para o valor maisimportante a ser preservado naquela ocasiãoavaliada.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chega-se à consideração principal que a vidaprivada é entendida como a vida particular dapessoa natural, compreendendo, por assim dizer,uma de suas manifestações do Direito daPersonalidade à Intimidade. Direito esteconsagrado especificamente pelo inciso X do art.5.º da CRFB/88 e também no art. 21 do CCB/02.

Apesar da importância dos Direitos daPersonalidade, não há a possibilidade de considerara proteção absoluta sobre cada um deles. Aliberdade consagrada em um terá o limite

Page 86: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

86

necessariamente imposto pela liberdade previstapelo outro.

Pelo caráter principiológico desses Direitos/Liberdades, é possível ao intérprete sopesar aimportância e aplicabilidade no caso concreto.

Dessa forma, quando houver Direitos daPersonalidade objetados, caberá ao Judiciárioharmonizá-los com um sopesamento entre osinteresses conflitantes. Na análise de casosconcretos de contraposição de DireitosFundamentais, na apreciação pelo STF, é possívelconstatar que a resolução nos casos de colisãodestes direitos, com preferência à liberdade e àigualdade da pessoa humana em todos os aspectos,dá-se pela proporcionalidade e a razoabilidade daponderação e harmonia.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitosfundamentais. Tradução de Virgílio Afonso daSilva. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação eaplicação da constituição: fundamentos deuma dogmática constitucional transformadora.São Paulo: Saraiva, 2004.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.Institui o Código Civil. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,11 jan. 2002.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo deInstrumento 595.395/SP. Segunda Turma.Relator Ministro Celso de Mello. Julgamento em20 jun. 2007. Publicado em 3 ago. 2007. Diárioda Justiça Eletrônico, Brasília, 3 ago. 2007, p.134.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito

constitucional. 17. ed. Belo Horizonte: Del Rey,2011.

DWORKIN, Ronald Myles. Levando osdireitos a sério. Tradução de Nelson Boeira.São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONAFILHO, Rodolfo. Curso de direito civil: partegeral, v.1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civilbrasileiro: parte geral – de acordo com a Lei n.12.874/2013. v. I. 12. ed. São Paulo: Saraiva,2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civilesquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD,Nelson. Direito civil: teoria geral. 9. ed. Rio deJaneiro: Lumen Juris, 2011.

LOURENÇO, Valéria Jabur Maluf Mavuchian.Colisão de direitos fundamentais: análise dealguns casos concretos sob a ótica do STF. In:Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 95, dez2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10840>. Acesso em: 23 set. 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO,Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo GustavoGonet. Curso de direito constitucional. 8. ed.São Paulo: Saraiva, 2013.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanosfundamentais: teoria geral, comentários aosarts. 1.º a 5.º da Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil: doutrina e jurisprudência. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

SILVA, José Afonso da. Curso de direitoconstitucional positivo. 37. ed. São Paulo:Malheiros, 2014.

Page 87: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

87

ELO COMOUTRAS IES

Page 88: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

88

Page 89: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

89

RESUMO

O presente artigo tem como objeto a análise sobrea viabilidade do protesto extrajudicial de certidãode dívida ativa como instrumento alternativo decobrança dos créditos públicos de baixo valor.Utilizando-se do método dedutivo e sistemático,buscou-se trazer à discussão os diferentesposicionamentos acerca do tema, reunindo, ainda,dados estatísticos e resultados até então apuradoscom a adoção do novo mecanismo de cobrança.Ao longo do estudo procurou-se traçar um paraleloentre o desafio da Administração Pública naarrecadação de que necessita para atingir os seusfins e o direito do cidadão-contribuinte de não sofreruma cobrança além dos limites da razão e dalegalidade. Por meio das pesquisas avaliadas,constatou-se uma maior eficácia no resgate doscréditos públicos pela via extrajudicial, traduzindo--se em expectativa otimista, especialmente do pontode vista econômico, na medida em que, com umaarrecadação mais efetiva, poderá o Estadopropiciar maior atenção aos interesses dacoletividade.

Palavras-chave: Protesto extrajudicial de CDA.Instrumento alternativo de cobrança.Administração Pública. Crédito público.

THE SYSTEM OF MAKING PUBLICTHE DEBT CERTIFICATES WITH THE

STATE AS AN ALTERNATIVE TOOLFOR THE COLLECTION OF LOW

VALUE UNPAID TAXES

ABSTRACT

This paper aims to analyse the viability of thesystem of making public the debt certificates with

O PROTESTO EXTRAJUDICIAL DE CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA COMOINSTRUMENTO ALTERNATIVO DE COBRANÇA DOS CRÉDITOS PÚBLICOS

Carina Diniz Moura1

Antônio Luiz Nunes Salgado2

the State as an alternative tool for the collection oflow value unpaid taxes. Using the deductive andsystematic method, the paper focus on thediscussion of different positions on the subject,gathering statistics data and results obtained withthe adoption of the new taxes collectionmechanism. Throughout the study it was comparedthe challenge of the State in collecting the taxes itneeds to achieve its purposes and the right of thecitizen-taxpayer not to suffer a charge beyond thebounds of reason and legality. Through the studiesevaluated, it was noted the greater efficiency inthe recovery of unpaid taxes by the system ofmaking public the debt certificates, resulting inoptimistic expectations, especially from theeconomic point of view, to the extent that, with amore effective collection of taxes, the state willpromote greater attention to interests of thecommunity.

Keywords: Making public the debt certificates.Alternative tool. Public administration. Publiccredit.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca analisar a(in)viabilidade do protesto cartorário de Certidãode Dívida Ativa (CDA) como meio alternativo decobrança dos créditos públicos de baixo valor,precipuamente os decorrentes de obrigaçãotributária.

Sob o argumento de se buscar meios maiseficazes e menos onerosos do que o processojudicial, o Estado tem se mostrado cada vez maisatraído pelo protesto extrajudicial de CDA’s emdetrimento das execuções fiscais, no que dizrespeito aos créditos de baixo valor.

1 Acadêmica de Direito.2 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em 2000. Pós-graduado em Gestão Contábil e

Controladoria Empresarial pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em 2010. Professor do Núcleo dePrática Jurídica e do Centro de Pesquisa, ambos do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas (Funorte).Presidente do Conselho de Ética da 11.ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil em Montes Claros/MG.

Page 90: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

90

Assim, avistando no protesto uma forma maiscélere e eficiente de resgatar seus créditosdecorrentes de obrigação tributária, aAdministração Pública passou a utilizar-se desteinstrumento, apresentando suas CDA’s aoTabelionato de Protesto de Títulos.

Contudo, quanto à possibilidade econveniência de a Administração Pública adotar oprotesto como um de seus mecanismos decobrança, muitos são os posicionamentosdivergentes, precipuamente em razão dos princípiosque regem a atuação estatal. Vários são osargumentos a favor e contra a adoção do protestode CDA’s em substituição ao ajuizamento deexecuções ficais de baixo valor.

De um lado estão aqueles que afirmam seresse mecanismo totalmente válido e eficaz,precipuamente em razão do custo-benefício dacobrança, cumprindo, assim, com os princípios daeficiência, economicidade e celeridade nasatisfação do interesse público. Em oposição,apresentam-se aqueles que defendem ser esta umaforma arbitrária do Estado para forçar o devedora cumprir com a obrigação jurídico-tributária.

O protesto cartorário de Certidão de DívidaAtiva está cada vez mais presente na atividadefinanceira do Estado. Todavia, cabe avaliar se esteato realmente consiste em uma sanção legítima ouse, na verdade, não passa de uma sanção política,indiscutivelmente vedada no ordenamento jurídiconacional, uma vez que as sanções políticas podemrepresentar profundos impactos na sociedade e naeconomia (BORGES; SIMINI; VEZZANI, 2014).

Assim sendo, o presente artigo tem comofoco o exame dos aspectos positivos e negativosque envolvem o protesto extrajudicial de Certidõesde Dívida Ativa por meio da análise de suaconsonância com ordenamento jurídico como umtodo, em especial a verificação da afrontaou não de direitos e garantias assegurados aoscontribuintes.

A título de referência tomou-se por basedados relevantes acerca da adoção e dos resultadosaté então obtidos pelo Estado de Minas Gerais naadoção do novo procedimento, cuja autorização sedeu por meio da Lei n.º 19.971, de 27 de dezembrode 2011 – que introduziu a denominada “cobrançaamigável” – bem como pelo Decreto Estadual n.º45.989, de 13 de junho de 2012, que dispõe sobre autilização de meios alternativos de cobrança doscréditos, inclusive o protesto cartorário de CDA’s.

Para o alcance do objetivo proposto, optou--se pelo método dedutivo e sistemático, visando

reunir informações e discussões de modo aproporcionar uma melhor compreensão sobre otema. Os métodos de procedimento foram oshistóricos, comparativos, monográficos eestatísticos, adotando-se como critério de inclusãomateriais científicos que apresentem especificidadecom a problemática do estudo.

Por fim, buscou-se traçar um paralelo entreo desafio da Administração Pública na arrecadaçãode que necessita para atingir os seus fins e o direitodo cidadão-contribuinte de não sofrer umacobrança além dos limites da razão e da legalidade/constitucionalidade.

2 ARRECADAÇÃO DE RECEITAS:ATIVIDADE ESSENCIAL PARA AMANUTENÇÃO DO ESTADO

A busca de recursos financeiros para amanutenção do Estado é uma constante na história.Como instituição indispensável à existência de umasociedade organizada, o Estado depende derecursos tanto para sua manutenção quanto paraa realização de seus objetivos/deveres (PAULSEN,2014, p. 15).

Visando alcançar seus fins sociais, aAdministração Pública desenvolve atividade paraobter recursos financeiros e aplicá-los. Talatividade, porém, não constitui atividadeeconômica, mas sim financeira, na medida em oEstado pratica atos para a obtenção, gestão eaplicação das receitas de que necessita para assuas finalidades. E a tributação é o principalinstrumento de obtenção de receitas,representando-se como parte fundamental dessaatividade desenvolvida pelo Estado (MACHADO,2009, p. 26).

Pode-se afirmar que, dentre os poderes con-cedidos ao Estado, o poder de tributar é o maisoperado pelos entes políticos, na medida em quea tributação aparece como a maior fonte de ar-recadação de receitas – necessárias para a rea-lização de seus fins – e, ao mesmo tempo, surgecomo mecanismo de determinação de comporta-mentos/condutas aos cidadãos-contribuintes –percebido pelo seu caráter extrafiscal.

Assim, segundo Machado (2009, p. 29) “noexercício de sua soberania, o Estado exige que osindivíduos lhe forneçam recursos de que necessita.Institui o tributo. O poder de tributar nada mais éque um aspecto da soberania estatal, ou umaparcela desta.”.

Page 91: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

91

Dessa forma, ao realizar a situação definidaem lei como necessária e suficiente à ocorrênciado fato gerador (artigo 114, do Código TributárioNacional-CTN) de determinado tributo, surge parao particular a chamada obrigação tributária, ouseja, a obrigação de realizar o pagamento do tributodevido. Logo, o pagamento realizado pelocontribuinte traduz em receita para o Estado, quedeverá ser aplicada para os seus fins. Nessesentido, segundo Paulsen (2014, p. 20):

Contribuir para as despesas públicasconstitui obrigação de tal modo necessáriano âmbito de um Estado de DireitoDemocrático, em que as receitas tributáriassão a fonte primordial de custeio dasatividades públicas, que se revela naConstituição enquanto dever fundamentalde todos os integrantes da sociedade.Somos, efetivamente, responsáveis diretospor viabilizar a existência e ofuncionamento das instituições públicas emconsonância com os desígniosconstitucionais.

No entanto, caso o particular não cumpra,espontaneamente, com a determinação legal(obrigação tributária) e não realize o pagamentodevido, é aberto ao Estado um prazo para constituirseu crédito tributário e, então, iniciar o processode cobrança em face do devedor, queradministrativa, em primeiro momento, quer judicial,caso aquela seja infrutífera.

Constitui-se o crédito tributário por meio dodenominado lançamento, assim entendido oprocedimento administrativo que identifica aocorrência do fato gerador da obrigação, determinaa matéria tributável, calcula o montante do tributodevido, identifica o sujeito passivo e aplica apenalidade cabível, se for o caso (art. 142 do CTN).

A constituição definitiva do crédito tributáriosomada à ausência de pagamento pelo contribuinteautoriza a inscrição do débito na dívida ativa doente tributante (União, Estados, Distrito Federalou Municípios). A inscrição em dívida ativa seconstitui no ato de controle administrativo delegalidade e trata-se de requisito indispensável parao ajuizamento de uma ação de execução fiscal.Para Mazza (2015, p. 583/584):

Em termos práticos, inscrever o débito emdívida ativa significa inserir o nome docontribuinte na lista dos inadimplentesfrente ao Fisco, transformando o sujeitopassivo da obrigação tributária em uma

pessoa oficialmente em débito nãonegociado. Com isso, o patrimônio do inscritopassa a sujeitar-se a diversas limitações emrazão da dívida (grifos originais)

Conforme o artigo 201 do Código TributárioNacional (CTN), considera-se dívida ativa tributária“a proveniente de crédito tributário dessa natureza,regularmente inscrita na repartição administrativacompetente, depois de esgotado o prazo fixado,para pagamento, pela lei ou por decisão finalproferida em processo regular.”.

A inscrição da dívida, conforme o artigo 202do CTN, dá-se com a autenticação, pela autoridadecompetente, do denominado “termo de inscriçãoda dívida ativa”. O mesmo dispositivo legalapresenta os requisitos da inscrição na dívida ativa,verbis:

Art. 202. O termo de inscrição da dívidaativa, autenticado pela autoridadecompetente, indicará obrigatoriamente:I - o nome do devedor e, sendo caso, o dosco-responsáveis, bem como, sempre quepossível, o domicílio ou a residência de ume de outros;II - a quantia devida e a maneira de calcularos juros de mora acrescidos;III - a origem e natureza do crédito,mencionada especificamente a disposiçãoda lei em que seja fundado;IV - a data em que foi inscrita;V - sendo caso, o número do processoadministrativo de que se originar o crédito.Parágrafo único. A certidão conterá, alémdos requisitos deste artigo, a indicação dolivro e da folha da inscrição.

Ato contínuo, o referido termo será lavradoem livro próprio, extraindo-se a respectiva certidãode dívida ativa que, de acordo com o artigo 784,IX, do Código de Processo Civil (CPC) de 2015,constitui título executivo extrajudicial.

Por fim, de posse da CDA, a Fazenda Públicaestá autorizada a ajuizar uma ação de execuçãofiscal em face do devedor, seguindo o rito previstona Lei Federal n.º 6.830, de 22 de setembro de1980 – a Lei de Execução Fiscal (LEF), aplicando--se, subsidiariamente, o CPC. A execução fiscaltambém é meio próprio para a cobrança de créditosnão tributários.

O processo de execução fiscal se distinguedos demais procedimentos executivos justamentepor ter rito ditado por lei especial que lhe asseguraregras próprias, garantindo ao credor (Fisco) certosprivilégios.

Page 92: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

92

Conforme a LEF, a dívida ativa regularmenteinscrita goza de presunção de certeza e liquidez,somente podendo ser ilidida por prova inequívocaa cargo do executado. O despacho do juiz deferindoa inicial determina a citação do devedor e, nãosendo paga a dívida ou garantida a execução, estáautorizada a constrição patrimonial do executadopor meio de penhora ou arresto. Nessa linha,assevera Mazza (2015, p. 618) que:

No momento em que é proposta a execuçãopesa contra o devedor uma dupla presunçãode veracidade em favor do Fisco. Issoporque dois atos administrativos distintosabonam o entendimento, que ainda podeser revertido, no sentido de que a dívida élegítima e o valor, devido. [...] É por tal razãoque a LEF estabelece rigorosa exigênciapara que o devedor consiga suspender ocurso da execução por meio da oposiçãode embargos: a garantia do juízo (grifosoriginais).

Assim como na execução comum, aoexecutado é imposto o dever de colaborar com oprocesso de execução fiscal, seja indicando benspassíveis de penhora ou informando sua localizaçãoe seus respectivos valores, sob pena de seconsiderar ato atentatório à dignidade da Justiça.

Ressalta-se que a alienação ou oneração debens ou rendas após a inscrição do crédito tributáriona dívida ativa já se considera fraudulenta, nãohavendo necessidade de se ter uma execuçãofiscal em curso para que o devedor sofra aspenalidades inerentes à fraude à execução.

O que se verifica com tudo isso é asignificativa desproporção de garantias entre osujeito ativo (credor/Fisco) e o sujeito passivo(devedor/contribuinte) de um executivo fiscal.Enquanto a Fazenda Pública tem ao seu favorpresunções de veracidade e privilégios processuais,ao executado resta o dever de colaborar com oprocesso, eximindo-se de qualquer ato capaz deobstar a satisfação da pretensão executória – o

recebimento do crédito.Ainda, a execução fiscal não está sujeita ao

concurso de credores, isto é, o feito executivoprosseguirá independentemente da existência deum juízo universal.

Ocorre que, mesmo com todas as garantiase privilégios, inclusive processuais, facultados aoFisco, o processo de execução fiscal sofre asadversidades comuns a qualquer processo judicial,como a morosidade e os custos/despesasexpressivos com sua tramitação.

De acordo com a 9.ª edição do RelatórioJustiça em Números, apresentada pelo ConselhoNacional de Justiça (CNJ), o total de processosem tramitação no Poder Judiciário no ano de 2012atingiu a marca de 92,2 milhões, sendo que, destes,28,2 milhões (31%) foram casos novos e 64 milhões(69%) estavam pendentes de anos anteriores. Ogasto do Judiciário, nesse mesmo ano, foi deaproximadamente R$57,2 bilhões. O aumento naquantidade de novos casos no ano de 2011 gerou ocrescimento da carga de trabalho por magistrado(1,8%), tendo tramitado no ano seguinte cerca de5.618 processos por magistrado (BRASIL-CNJ,2013).

Do estudo realizado pelo CNJ concluiu-seque, dos 92,2 milhões de processos em trâmite noJudiciário no ano de 2012, um terço foi constituídode execuções fiscais – dentre casos pendentes enovos. Concluiu-se, ainda, que se fossem retiradostodos os processos de execução fiscal do PoderJudiciário, a taxa de congestionamento mensuradaem 69,9% cairia para 60,9%. O indicador deprocessos baixados também sofreria melhora,ultrapassando os 100%, que representa o patamarmínimo recomendável para se evitar o acúmulo deprocessos. Assim, com a retirada das execuçõesfiscais, a tramitação processual no ano estudadoseria reduzida de 92,2 milhões para 63 milhões deprocessos (BRASIL-CNJ, 2013). Confira-se oquadro sobre o impacto da execução fiscal nosindicadores de desempenho:

Impacto da Execução Fiscal nos indicadores de desempenho

Fonte: Relatório Justiça em Números 2013

Page 93: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

93

No ano de 2014, os números só aumentaram.Ao analisar o impacto que o processo de execuçãocausa no Judiciário, o Relatório Justiça em Números2015 (ano-base 2014) demonstrou que os processosde execução de título extrajudicial fiscal são osmaiores responsáveis pela morosidade dosprocessos de execução, representando cerca de79% do total de casos pendentes de execução etaxa de congestionamento de 91%. Conforme aestatística apresentada, de cada cem processos deexecução de título extrajudicial fiscal que tramitaramno ano de 2014, apenas nove foram baixados. Aodesconsiderar esses processos, tem-se que a taxade congestionamento da Justiça Estadual cairia de74,2% para 65,5% (BRASIL-CNJ, 2015).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea), por meio do Acordo de Cooperação Técnican.º 26/2008 realizado com o CNJ, divulgou, em 31de março de 2011, o Comunicado do Ipea n.º 83 –Custo unitário do processo de execução fiscalna Justiça Federal. Conforme a referidapesquisa, “a probabilidade do executivo fiscal obterêxito ou fracassar é quase idêntica.”. O tempomédio total de tramitação de uma ação deexecução fiscal na Justiça Federal é de oito anos,dois meses e nove dias, sendo que o custo médiototal provável do processo de execução fiscalmédio (PEFM)3 é de R$4.685,39 (IPEA, 2015a).

O Ipea constatou, também, que a probabilidadede recuperação integral do crédito é de 25,8%,sendo os mecanismos de defesa – exceção de pré--executividade e embargos à execução – poucoutilizados pelos executados, que preferem efetuar opagamento ou aguardar a prescrição do crédito. Emnota técnica, o Ipea afirmou que, ao considerar ocusto total da ação de execução fiscal e aprobabilidade de êxito na recuperação do crédito, oponto a partir do qual é economicamente justificávelpara a União ajuizar uma ação de execução fiscal éde R$21.735,45, eis que, nas ações de valor inferiora este, torna-se improvável a recuperação de valorigual ou superior ao custo do processamento judicial(IPEA, 2015b).

Como se vê, parcela considerável dosprocessos que tramitam no Judiciário são executivosfiscais que, por sua vez, mostram-se dispendiosos emorosos, ultrapassando, por não raras vezes, o valordo crédito cobrado. Nesse contexto, o Estado-credoriniciou a busca por meios alternativos de cobrançade seus créditos de baixo valor.

3 O PROTESTO COMO INSTRUMENTOPROBATÓRIO DE INADIMPLÊNCIAE ALTERNATIVO DE COBRANÇA

A atividade notarial acompanha ahumanidade desde os tempos mais remotos, sendoo documento escrito o corolário de uma evoluçãona manifestação de vontade dos contratantes.Esses registravam suas pretensões por meio desímbolos e, em momento posterior, de palavras, quequando empenhadas publicamente alcançavamproteção jurídica (SILVA, 2009).

Desde as mais antigas civilizações existiramregimes que tinham por objetivo desempenharfunções que hoje pertencem ao notariado.

Na civilização egípcia, existia um profissionaldenominado escriba, considerado o antecessor dosnotários, que desfrutava de grande importânciasocial, principalmente em razão do uso dalinguagem. Os documentos redigidos pelosescribas eram dotados de fé perante acomunidade. Assim, o escriba era considerado umfuncionário público, na medida em que eraindispensável para a organização estatal, bem comolhe era confiada a atividade paraestatal, naproporção que auxiliava a população em suasdiferentes necessidades de constatação dos fatosda vida privada (AVM Instituto, 2011, folhas 11/12).

No Direito Romano, várias pessoas exerciamfunções semelhantes às dos notários, destacando--se o tabelion, considerado o verdadeiro antecessordo notariado do tipo latino da atualidade. Otabelion se utilizava das tábuas enceradas paranelas escrever ou desenhar. Conforme o tamanhoe a necessidade do envio de uma tábua de um locala outro, realizavam a escrita ou as notas empequenas tábuas, que recebiam o nome de tabellas,o que deu origem ao nome. O tabellion tinhaconhecimento de Direito e se propunha a redigirdocumentos relacionados com a esfera privada,desempenhando, também, a atividade deassessoramento jurídico (AVM Instituto, 2011,folhas 14).

O Direito Notarial brasileiro, por sua vez, tevesua origem e influência na legislação portuguesa.Assim, como no tempo do Brasil Colônia, Portugalestava sob a égide das Ordenações Filipinas, suasregras acabaram por servir de fonte para o Direitobrasileiro até o início do século XX, inclusive no

3 O PEFM é um tipo ideal, representativo da média do conjunto de processos de execução fiscal com baixa definitiva na JustiçaFederal de primeiro grau, no ano de 2009 (Cf. Ipea. Nota Técnica. Custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pelaProcuradoria Geral da Fazenda Nacional. Brasília, 2011).

Page 94: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

94

tocante à função notarial. Segundo Machado eAmaral (2008):

Nas expedições que resultaram nodescobrimento da América e do Brasil, noséculo XV, em conseqüência, geravaexpansão comercial, marítima e colonial dePortugal, havia a presença do tabelião, quetinha papel importante no registro dos fatose nas formalidades que oficializavam aposse das terras descobertas. [...] Onavegador português Pero Vaz de Caminharelatou toda a descoberta do Brasil e a posseda terra, traduzindo-os em um únicodocumento oficial dos atos, e foi o primeirotabelião a pisar em solo brasileiro. [...] Asordenações que vigoravam em Portugaltornaram-se as principais fontes jurídicasdo Brasil, onde as Ordenações Filipinasforam aplicadas até o início do século XX.Eram as ordenações que regiam a forma e omodo que deveriam ser lavrados ostestamentos e escrituras, bem como cabiaao poder Real a nomeação dos tabeliães[...].

O que se percebe disso tudo é que,independentemente da civilização, a função notariale de registro sempre foi a de assegurar validade,eficácia e segurança aos negócios realizados pelosparticulares. Nesse sentido, nas palavras de Silva(2009):

[...] a atividade notarial foi criadaespontaneamente pela sociedade por forçadas necessidades comuns dos seusintegrantes e do Estado: este com o escopode dotar de autenticidade, de eficácia e depublicidade documentos para os quais taisatributos são exigidos por lei, e, aqueles,visando à obtenção de segurança nasrelações sociais.

Como profissional imparcial, o notário tempor principal função formalizar juridicamente avontade das partes, intervindo nos atos e negóciosa que essas pretendem dar forma legal ouautenticidade. Não interfere na vontade dosparticulares, apenas capta o que foi por elesexteriorizado em sua presença, garantindo, dessemodo, a observância dos requisitos legais e,consequentemente, a validade e eficácia do ato oudo negócio jurídico concretizado (LOUREIRO,2014, p. 620).

Além de garantir aos atos e negóciosparticulares a solenidade exigida pela lei, a função

notarial também se faz presente no momento emque um dos contratantes descumpre a prestaçãoconvencionada, gerando uma ruptura de confiançaentre as partes. Nesse instante torna-se necessárioum mecanismo capaz de comprovar ainadimplência ocorrida e, ao mesmo tempo,conservar o direito do credor. Tal mecanismoencontra-se presente na atividade do denominadoTabelião de Protestos.

O protesto de títulos é uma atividade muitoantiga do Direito Cambial, com origem no séculoXIV, cuja principal finalidade é a prova dodescumprimento de uma obrigação originada emum título, como o cheque, a letra de câmbio, aduplicata, a nota promissória, etc. (LIMA;MIRANDA, 2010).

De acordo com Abrão apud Amábile (2006):

[...] no século XVI, a caracterização dodescumprimento da obrigação traduzidapela relação do comércio, era realizadaperante testemunhas, sob a forma de“contestatio”, só mais tarde é que foi ganharforma através da letra de câmbio, quesimbolizava unicamente a falta do aceite.

O primeiro Tabelionato de Protesto do Brasilfoi criado por meio da Lei sem número, no Estadoda Bahia, em 15 de outubro de 1827, quando aindaestava em vigor o Alvará Português de 19 deoutubro de 1789, que regulamentava o termo dedenúncia dos protestos, conforme os usos docomércio da praça. Com o advento do CódigoComercial de 1850, passaram ter normas expressase bem definidas sobre esse instituto (MORAES,2010, p. 5). Especificamente sobre Letras deCâmbio, surgiu o Decreto n.º 2.044, de 31 dedezembro de 1908, também conhecido como LeiSaraiva, ainda vigente.

Pode-se afirmar, contudo, que o melhor textojá publicado disciplinando a matéria do protestonotarial foi a Lei n.º 9.492, de 10 de setembro de1997, que, no seu artigo 1.º, o define como sendo“o ato formal e solene pelo qual se prova ainadimplência e o descumprimento de obrigaçãooriginada em títulos e outros documentos dedívida.”.

O protesto mostra-se como um procedimentobastante eficaz para a satisfação creditória,principalmente em razão de sua celeridade,conforme Lei n.º 9.492, de 10 de setembro de 1997:“protocolizado o título ou documento de dívida”apresentados pelo credor, “o tabelião de protesto

Page 95: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

95

providenciará a imediata intimação do devedor”(art. 14), concedendo-lhe o prazo de 3 (três) diasúteis para comparecer ao cartório a fim de cumprircom a obrigação constante do título/documento dedívida ou apresentar justificativa para sua recusa(art. 12); esgotado o prazo sem que tenha havidoo pagamento, desistência ou sustação, o tabeliãolavrará e registrará em livro próprio o protesto (art.20), o que desencadeará uma série de efeitos como,por exemplo, a interrupção o prazo prescricionaldo título e a inscrição do devedor nos cadastros deinadimplentes.

A figura do protesto cartorário se faz presentecomo sendo, ao mesmo tempo, um instrumentocomprobatório de inadimplência e uma forma decoerção para que o devedor cumpra com aobrigação sem que seja necessário o ajuizamentode uma ação de cobrança (CAVALCANTE, 2013).

Acerca da evolução e da posição do protestocartorário no mercado econômico Lima e Miranda(2010) destacam que:

Historicamente, o Protesto tem sido umimportante fator na prevenção de litígios,uma vez que assegura a eficácia e asegurança dos negócios jurídicos e, ainda,levando-se em conta que uma parteconsiderável dos títulos são pagos emcartório em considerável beneficio para oscredores. Deve-se ressaltar que o Protestodo titulo ou do documento de dívida seprova a inadimplência e o descumprimentoda obrigação. [...] Sendo o Protesto um atoformal pelo qual se salvaguardam osdireitos cambiários, é, ele, o regulador dapontualidade dos negócios: serve de provacontra o insolvente, impede maioresprejuízos aos comerciantes e age como umareferência idônea sobre todo o mercadoeconômico.

Nessa linha, pode-se afirmar que o protestotem como função principal a comprovação dodescumprimento de obrigações constantes detítulos e documentos de dívida e como funçãosecundária – não menos importante – o combateà inadimplência mediante a coerção moral dodevedor, contribuindo, dessa maneira, para oprogresso do mercado de crédito e o consequentedesenvolvimento econômico (LOUREIRO, 2014,p. 788).

Por essa razão cresce a cada dia o númerode credores que se utilizam dos serviços detabelionato de protesto, a destacar as instituiçõesfinanceiras que, valendo-se cotidianamente desse

mecanismo, têm obtido relevante grau derecuperação de seus créditos (CAVALCANTE,2013).

A celeridade e a eficácia que o protestocartorário tem apresentado vêm contribuindosignificativamente para o fenômeno dadesjudicialização, na medida em que evita oajuizamento de inúmeras ações, desobstruindo oJudiciário do acúmulo de processos.

Assim, ao avistar no protesto extrajudicialum mecanismo mais eficiente do que a via judi-cial, o Estado passou a dele se utilizar no pro-cesso de resgate de seus créditos de baixo va-lor decorrentes de obrigação tributária, apresen-tando, para tanto, suas CDA’s ao Tabelionatode Protesto de Títulos.

Ocorre que, até o ano de 2012, a Lei deProtesto não fazia menção, de forma expressa, daCDA como sendo um título protestável, motivo peloqual os opositores dessa forma de cobrançaalegavam a completa ilegalidade e abuso de poderdo ente público. Inclusive, entendia o SuperiorTribunal de Justiça (STJ) pela ausência de interessejurídico por parte da Fazenda Pública em realizaro protesto de CDA’s, tendo em vista tratar-se detítulo executivo, sendo possível o imediatoajuizamento de execução fiscal (CAVALCANTE,2013).

Por sua vez, o CNJ se mostrou favorávelao protesto, recomendando, em sessão plenária,aos Tribunais de Justiça adotarem,administrativamente, uma conduta de incentivoà prática do protesto. Veja-se a ementa dasessão:

CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA. PROTESTOEXTRAJUDICIAL. CORREGEDORIAGERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DO RIODE JANEIRO. LEGALIDADE DO ATOEXPEDIDO. Inexiste qualquer dispositivolegal ou regra que vede ou desautorize oprotesto dos créditos inscritos em dívidaativa em momento prévio à propositura daação judicial de execução, desde queobservados os requisitos previstos nalegislação correlata. Reconhecimento dalegalidade do ato normativo expedido pelaCorregedoria Geral da Justiça do Estado doRio de Janeiro. (Conselho Nacional deJustiça, Pedido de Providência 0004537-54.2009.2.00.0000, Rel. Conselheira Morganade Almeida Richa).

Page 96: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

96

Em momento posterior, a alegação deausência de previsão legal restou-se frustrada como advento da Lei n.º 12.767, de 27 de dezembrode 2012, que acrescentou ao artigo 1.º da Lei deProtesto o parágrafo único com a seguinteredação:

Art. 1.º [...]Parágrafo único. Incluem-se entre ostítulos sujeitos a protesto as certidões dedívida ativa da União, dos Estados, doDistrito Federal, dos Municípios e dasrespectivas autarquias e fundaçõespúblicas.

A CDA passou, então, a possuir status detítulo protestável.

Por conseguinte, considerando a novaprevisão legal, o STJ modificou sua posiçãoreconhecendo a possibilidade de se levar as CDA’sao protesto de títulos.

Assim asseverou o Ministro HermanBenjamim no julgamento do Recurso Especial n.º1.126.515 – PR (2009/0042064-8):

Processual civil e administrativo. Protestode CDA. Lei 9.492/1997. Interpretaçãocontextual com a dinâmica moderna dasrelações sociais e o “impacto republicanode Estado por um sistema de justiça maisacessível, ágil e efetivo”. Superação dajurisprudência do STJ. Após muito refletirsobre o tema controvertido, posiciono-mefavoravelmente ao protesto da CDA [...].Com efeito, o art. 19 da Lei 9.492/1997disciplina o pagamento dos títulos oudocumentos de dívida levados a protesto.Assim, embora a disciplina do Código deProcesso Civil (art. 586, VIII, do CPC) e daLei 6.830/1980 atribua exequibilidade à CDA,qualificando-a como título executivoextrajudicial apto a viabilizar o imediatoajuizamento da Execução Fiscal (ainadimplência é presumida iuris tantum) –ou seja, sob esse restrito enfoqueefetivamente não haveria necessidade doprotesto – a Administração Pública, noâmbito federal, estadual e municipal, vemreiterando sua intenção de adotar o protestocomo meio alternativo para buscar,extrajudicialmente, a satisfação de suapretensão creditória (principalmentequanto a valores para os quais,paradoxalmente, o próprio Poder Judiciáriofecha as portas, haja vista a tendência –não acolhida no STJ, mas habitualmenteadotada nos Tribunais locais – de extinguir

Execuções Fiscais de “baixo valor”, porsuposta falta de interesse processual). Sobessa ótica, não vejo como legítima qualquermanifestação do Poder Judiciário tendentea suprimir, sob viés que se mostra político,a adoção do protesto da CDA. De fato, averificação quanto à utilidade ounecessidade do protesto da CDA, comopolítica pública para a recuperaçãoextrajudicial de crédito, cabe comexclusividade à Administração Pública. [...]Ao dizer que é desnecessário o protesto daCDA, sob o fundamento de que a lei prevêa utilização da Execução Fiscal, o PoderJudiciário rompe não somente com oprincípio da autonomia dos poderes (art.2.º da CF/1988), como também com oprincípio da imparcialidade, dado que,reitero, a ele institucionalmente não competequalificar as políticas públicas comonecessárias ou desnecessárias.

Em vista disso, o protesto cartorário deCDA’s se mostra cada vez mais presente naatividade financeira do Estado. Sob o fundamentoda eficiência administrativa, economicidade eresponsabilidade na gestão fiscal, a AdministraçãoPública tem se utilizado, constantemente, da viaextrajudicial a fim de assegurar uma maiorarrecadação de seus créditos. Atuação essa quetem provocado bastante inquietação entre os seusopositores.

4 A DESJUDICIALIZAÇÃO DA DÍVIDAATIVA COMO MEDIDA DE POLÍTICAPÚBLICA

O fenômeno da desjudicialização iniciou-seem Portugal e Espanha, apresentando-se,atualmente, como uma realidade no Brasil em faceda onerosa e demorada máquina judicial naresolução de conflitos, tendo em vista a atuaçãodos notários representar um mecanismo maisrápido e eficaz, conferindo segurança nas relaçõesjurídicas (RODRIGUES, 2014).

Contudo, não é unânime a admissão dessenovo mecanismo. Para os seus opositores, oprotesto cartorário constitui verdadeiro abuso dedireito por parte da Fazenda Pública,caracterizando-se como uma forma arbitráriautilizada pelo Estado para forçar o devedor acumprir com a obrigação jurídico-tributária, namedida em que torna público o seu status deinadimplente, configurando-se constrangimentototalmente desnecessário. Dentre os opositores,

Page 97: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

97

destaca-se Machado (2002), muito certamenteinfluenciado pela redação do art. 1.º da Lei 9.492,de 1997, que ainda não tinha o acréscimo doparágrafo único, afirmando que:

[...] o Estado administração quer semprearrecadar mais e mais, sem a mínimapreocupação com os limites que o Direitoestabelece, e busca sempre fórmulas paracompelir o contribuinte ao pagamento detributos, sejam devidos ou não, sendonotável a capacidade criativa de seusagentes, que amesquinham o Direito emdetrimento do cidadão, esquecidos de queautoridade são apenas alguns e só durantealgum tempo, enquanto cidadãos somostodos nós durante toda a vida.[...] a idéia de protestar Certidões de DívidaAtiva da Fazenda Nacional é realmente maisuma dessas “idéias brilhantes” postas aserviço do arbítrio. É um notável exemplodo uso artificioso ou distorcido deinstrumentos jurídicos para a violação doDireito.

Afirmam, ainda, os opositores (e, agora, comreferência a texto escrito após a Lei 12.767, de2012 ter acrescentado o parágrafo único ao art.1.º da Lei 9.402, de 1997, e deixado claro apossibilidade de protesto da CDA) que,considerando que a CDA tem presunção relativade certeza e liquidez, servindo-se como prova pré--constituída de que o contribuinte está em atrasocom suas obrigações tributárias, a utilização doprotesto configura-se em verdadeiro pleonasmo,ou seja, esse mecanismo estaria inserindo ocontribuinte em situação de inadimplência porduas vezes, situação vista como inaceitável peloordenamento jurídico vigente (BORGES;SIMINI; VEZZANI, 2014).

Por sua vez, repelindo as alegações de abusode direito por parte do Fisco e de constrangimentodesnecessário ao contribuinte, estão aqueles quedefendem ser o protesto cartorário uminstrumento de obediência aos princípios queregem a Administração Pública, se mostrandoplenamente válido e eficaz, especialmente emrazão do custo-benefício da cobrança. Além disso,para “os contribuintes realmente lesados em seudireito (não o de protelar, porque a isso não têmdireito) poderão sempre obstar o protesto pelosmeios processuais adequados”, conformesustenta Bueno (2013, p. 107).

É um dever do Administrador Público buscar

o melhor resultado em favor do Tesouro,procurando os recursos que mais bem atendamaos seus interesses. Não se pode dar ao PoderPúblico menos possibilidades do que se confereaos particulares. Se o credor particular pode seutilizar do protesto para satisfação de suaspretensões, não é nada coerente subtrair esta viaao Estado, sobretudo em face do princípio dasupremacia do interesse público (MORAES, 2010,p. 69).

Mais uma visão benéfica que é ressaltadapelos defensores do protesto extrajudicial de CDAestá na contribuição para o desafogamento doJudiciário, na medida em que se deixa de ajuizarexecuções fiscais que, na maioria das vezes, nãotem sucesso no cumprimento de seu mister e,apenas concorrem para a ineficiência da máquinajudiciária. Reduzindo a burocracia para o resgatedos créditos e aumentando a eficácia daarrecadação financeira dos entes federativos,estes, poderão, finalmente, implementar políticaspúblicas favoráveis a toda a coletividade (SILVA,2009).

Tomando por referência o Estado de MinasGerais, tem-se que os procedimentos para acobrança extrajudicial iniciou-se em 2011, com apublicação da Lei Estadual n.º 19.971, de 2011 –que introduziu a denominada “cobrança amigável”– bem como do Decreto Estadual n.º 45.989, de2012, que dispõe sobre a utilização de meiosalternativos de cobrança dos créditos.

A aposta do Estado mineiro na denominadadesjudicialização como política pública foiimpulsionada após um estudo realizado pelaAdvocacia-Geral do Estado de Minas Gerais(AGE/MG) em conjunto com a Fundação JoãoPinheiro – cujos resultados foram divulgados noartigo intitulado “Pagando para receber? Subsídiospara uma política de cobrança da dívida ativa nosetor público: resultados de pesquisa sobre o customédio de cobrança de uma execução fiscal emMinas Gerais”, publicado na Revista Jurídica daAGE/MG – pelo qual se procurou verificar ocusto-benefício de um executivo fiscal frente ànecessidade de se resgatar mais e gastar menos(MORAIS et al, 2008).

Tendo como base o ano de 2006, o estudoanalisou o custo médio de um executivo fiscalpara o Poder Judiciário Estadual e para a AGE/MG, bem como verificou o tempo médio deduração da tramitação do processo de execuçãofiscal. Os resultados foram os seguintes:

Page 98: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

98

Considerando os dados verificados, concluiu--se que o custo médio anual de um processo deexecução fiscal para o Judiciário corresponde aaproximadamente R$473,60 e, para a AGE/MG,corresponde a aproximadamente R$382,71.Somando-se os custos chegou-se ao custo anualaproximado de R$853,31 (MORAIS et al, 2008,p. 90).

Quanto ao tempo médio do executivo fiscal,concluiu-se que se aproxima dos 126 meses, ouseja, dez anos e meio. Assim, ao considerar oconjunto de informações custo/tempo médio anual,constatou-se que um processo judicial de execuçãofiscal, possuía, à época, o custo médio deR$8.959,76 (MORAIS et al, 2008, p. 90).

A partir dos resultados obtidos a AGE/MGpassou, então, a apostar cada vez mais nos meiosalternativos de cobrança, desencadeando noconstante encaminhamento das suas CDA’s paraos tabelionatos de protestos, mecanismo que vemcontribuindo significativamente no resgate doscréditos do Estado.

De acordo com o informativo n.º 8 daAPEMINAS – Associação dos Procuradores doEstado de Minas Gerais, estudos recentesrealizados pela AGE/MG comprovaram que um“volume imenso” de execuções fiscais em trâmiteno Poder Judiciário (52,18%) se destina à cobrançade créditos de baixos valores, sendo resgatadossomente 1,12% do estoque da dívida ativa. Ainda,segundo dados da AGE/MG, de janeiro até outubrodo ano de 2014, foram encaminhados para protestomais de 25 mil CDA’s, obtendo recuperação de13,26% dos títulos encaminhados, o que significaque o Estado de Minas Gerais deixou de gastarmais de trinta e sete milhões de reais em virtudedo não ajuizamento de mais de 25 mil novasexecuções fiscais (RESPUBLICA, 2015).

Salientando a eficiência da adoção doprotesto extrajudicial em Minas Gerais e suacontribuição para o resgate da dívida ativa, o

procurador do Estado, Gustavo Enoque (2015)destacou que:

Hoje, a “desjudicialização da dívida ativade menor do Estado de Minas Gerais” épolítica pública consolidada e motivo deorgulho para a advocacia pública. OProcurador do Estado deixou de atuar no“varejinho” e, consequentemente, tem maistempo para formular melhores teses nadefesa do Estado nos grandes processos.Paralelamente a isso, embora o Estado deMinas Gerais seja o segundo da Federaçãoem termos de eficiência quanto ao resgateda sua dívida ativa, com a adoção doprotesto extrajudicial, saltou-se de quase2% para quase 30% no percentual de êxitona arrecadação, sem contar a economiaobtida para os cofres públicos decorrentedo não ajuizamento de centenas de milharesde novas ações de execução fiscal.

A jurisprudência mineira também reconhecea legalidade/constitucionalidade do protestoextrajudicial de CDA, seguindo o entendimento jáconsolidado do STJ no sentido de que não competeao Poder Judiciário definir a melhor maneira parao Estado resgatar os seus créditos. ADesembargadora do Tribunal de Justiça do Estadode Minas Gerais, Hilda Teixeira da Costa, nojulgamento do agravo de instrumento n.º1.0024.14.084608-0/001, concluiu, no seu voto nointeiro teor, que “não há que se falar em falta deinteresse do ente público em levar a CDA emprotesto, em virtude de procedimento específicopara tanto quer seja, execução fiscal, embasandotal afirmação na inconstitucionalidade e ilegalidadedo § único do art. 1ª da Lei nº 9.492/97 [...]”. Eis aíntegra do Acórdão:

Agravo de instrumento. Medida cautelarinominada. Protesto de CDA. Possibilidade.Entendimento STJ. Sustação dos efeitos doprotesto. Caução idônea. Requisitos neces-

Fonte: MORAIS et al, 2008.

Page 99: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

99

sários presentes. Recurso provido. O STJ jápacificou entendimento acerca da possibili-dade do protesto de CDA, razão pela qualnão há que se falar em irregularidade no pro-cedimento do credor. Para concessão liminarde sustação de protesto é necessário o pre-enchimento cumulativo da presença defumus boni iuris e periculum in mora, e casodetermine o magistrado, deve o impetranteprestar caução idônea. Presentes tais requi-sitos não há que se falar em reforma da r.Decisão. (TJMG. Agravo de instrumento n.º1.0024.14.084608-0/001. Segunda CâmaraCível. Relatora Desembargadora HildaTeixeira da Costa).

A discussão sobre a constitucionalidade doprotesto extrajudicial de CDA chegou ao SupremoTribunal Federal por meio da Ação Direta deInconstitucionalidade (ADI) n.º 5.135/DF, propostapela Confederação Nacional da Indústria (CNI),em junho de 2014, cujo objeto é o parágrafo únicodo artigo 1.º, da Lei de Protestos (Lei n.º 9.492/1997). Em síntese, a CNI alega a ausência dejustificativa ética e jurídica para o manejo doprotesto pelo Fisco, traduzindo-se em uma sançãopolítica, sendo meio indireto de cobrança quecontraria o devido processo legal, além de afrontara livre iniciativa, a liberdade profissional einviabilizar a concessão de créditos para a atividadeempresarial.

Em seu parecer, o Procurador-Geral daRepública opinou pelo não conhecimento da ADIe pela improcedência do pedido. Asseverou que oprotesto de CDA’s constitui medida necessária àrecuperação do crédito público, cumprindo com osprincípios da eficiência e da economicidade naatuação da Administração Pública, bem comocontribuindo para evitar que se amplie ocongestionamento do Judiciário. Os autos da ADIencontram-se conclusos para o Relator, MinistroRoberto Barroso.

Como visto, o fenômeno da desjudicializaçãoestá conquistando cada vez mais adeptos. Osresultados das pesquisas revelam maiorarrecadação em menor espaço de tempo e embaixos custos, aumentando a esperança de retornosmais expressivos para a coletividade,especialmente com relação aos direitos básicoscomo a saúde, a educação e a segurança.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se observa, há uma significativatendência favorável à adoção, definitiva, do protesto

extrajudicial como meio alternativo de cobrançados débitos inscritos em dívida ativa. Estatísticasrevelam que a substituição dos executivos fiscaispela cobrança extrajudicial tem se mostrado cadavez mais eficiente no resgate dos créditos públicos,colaborando, expressivamente, para ofuncionamento da máquina judiciária.

Embora os opositores desse mecanismo decobrança sustentem abuso de direito por parte daFazenda Pública, pode-se perceber que osfundamentos para a não adoção do protesto deCDA’s mostram-se um tanto quanto frágeis frenteàs estatísticas/resultados estudados e os própriosprincípios que regem a atuação estatal.

A chamada “desjudicialização” é hoje políticapública que precisa ser tratada com prioridade.Como visto pelos estudos realizados pelo Ipea, osprocessos de execução de título extrajudicial fiscalsão os maiores responsáveis pela morosidade dosprocessos de execução em trâmite no Judiciário,sendo que, na maioria dos casos, os mecanismosde defesa dos devedores fiscais não são por elesutilizados, vez que optam pelo pagamento do créditoou aguardam a sua prescrição.

Além disso, em se tratando de crédito debaixo valor, verifica-se que não raras vezes o custodo processo ultrapassa o valor executado, razãopela qual o próprio Judiciário vem extinguindo exofficio tais execuções com fundamento na faltade interesse processual.

Quanto ao constrangimento causado aocontribuinte em virtude do protesto notarial, sabe--se que a publicidade oferecida pelo processojudicial de execução fiscal é idêntica ou até maior,além da existência dos cadastros de devedores dadívida ativa das Fazendas Públicas que divulgamainda mais a inadimplência, a exemplo do CadastroInformativo dos Créditos não Quitados de Órgãose Entidades Estaduais (CADIN). Ademais, paraaquele cidadão-contribuinte que sofrer o protestoe se sentir lesado terão assegurados todos os meiosprocessuais possíveis para impugná-lo.

Os princípios que norteiam as atividadesestatais, como o da responsabilidade na gestãofiscal, da eficiência e da economicidade exigemmaior arrecadação com o menor gasto possívelpara os cofres públicos. Como abordado duranteo presente estudo, o Estado depende de recursospara sua manutenção e para a satisfação se seusfins, encontrando na tributação a principal fontearrecadadora de receita. Ainda, como destacou oSTJ, a análise acerca da utilidade e necessidadedo protesto como política pública para a

Page 100: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

100

recuperação do crédito cabe exclusivamente àAdministração Pública, responsável por gerir eaplicar as receitas auferidas.

Ao longo do presente trabalho observou-seuma significativa diferença entre a eficácia doresgate dos créditos públicos via protesto e viaexecução fiscal. As pesquisas realizadasdemonstraram os efeitos que a adoção do protestoextrajudicial de CDA’s pode refletir para asociedade em geral.

Sem desconsiderar a posição do cidadão--contribuinte frente às forças do Estado, constata--se que a utilização do protesto extrajudicial deCDA’s como instrumento alternativo de cobrançados créditos públicos de menor valor tem trazidoresultados bastante positivos do ponto de vistaeconômico para o Poder Público o que, a médio elongo prazos, poderá traduzir em melhoriasexpressivas na prestação dos serviços públicosbásicos para a população, como saúde, educação,segurança, transporte, etc..

Desse modo, a partir da análise realizadapercebe-se uma expectativa otimista para autilização desse meio alternativo de cobrança pelaAdministração Pública, na medida em que, comuma arrecadação mais eficiente e uma aplicaçãoefetiva e responsável, o administrador poderá,enfim, assegurar uma maior atenção ao interessecoletivo.

REFERÊNCIAS

AMÁBILE, Taís Abreu. Protesto de títulos decrédito. 2006. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/Tais%20Abreu%20Amabile.pdf>. Acesso em:19 set 2015.

AVM INSTITUTO. História do direito notarial eregistral. 2011. Disponível em: <http://lms.ead1.com.br/webfolio/Mod1270/mod_historia_do_direito_notarial_v2.pdf>.Acesso em: 19 set 2015.

BORGES, Alexandre Walmott; SIMINI, DaniloGarnica; VEZZANI, Camila Saran. O protestoextrajudicial de certidões de dívida ativa e avedação de sanções políticas em matériatributária: uma análise à luz da jurisprudência dosuperior tribunal de justiça. 2014. Disponível em:<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/direitopub/article/viewFile/18138/14916> Acessoem: 26 ago 2015.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiçaem números 2013: ano-base 2012/ ConselhoNacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2013.Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf>. Acesso em: 27 ago 2015.

______. Conselho Nacional de Justiça. Justiçaem números 2015: ano-base 2014/ConselhoNacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2015.Disponível em: <ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2015.zip>.Acesso em: 25 set 2015.

______. Conselho Nacional de Justiça. Pedidode Providência n.º 0004537-54.2009.2.00.0000.Relatora Conselheira Morgana de AlmeidaRicha. Diário da Justiça, 6 abr. 2010, sessão102.

______. Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de1966. Dispõe sobre o Sistema TributárioNacional e institui normas gerais de direitotributário aplicáveis à União, Estados eMunicípios. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 26 out. 1966e retificado no Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 31 out.1966.

______. Lei n.º 6.830, de 22 de setembro de1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da DívidaAtiva da Fazenda Pública, e dá outrasprovidências. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 24 set. 1980.

______. Lei n.º 9.492, de 10 de setembro de1997. Define competência, regulamenta osserviços concernentes ao protesto de títulos eoutros documentos de dívida e dá outrasprovidências. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 11 set. 1997.

______. Lei n.º 12.767, de 27 de dezembro de2012. Dispõe sobre a extinção das concessõesde serviço público de energia elétrica e aprestação temporária do serviço e sobre aintervenção para adequação do serviço públicode energia elétrica; altera as Leis nos 8.987, de13 de fevereiro de 1995, 11.508, de 20 de julhode 2007, 11.484, de 31 de maio de 2007, 9.028,de 12 de abril de 1995, 9.492, de 10 de setembrode 1997, 10.931, de 2 de agosto de 2004, 12.024,de 27 de agosto de 2009, e 10.833, de 29 de

Page 101: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

101

dezembro de 2003; e dá outras providências.Diário Oficial [da] República Federativa doBrasil, Brasília, DF, 28 dez. 2012.

______. Lei n.º 13.105, de 16 de março de2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial[da] República Federativa do Brasil, Brasília,DF, 17 mar. 2015.

______. Superior Tribunal de Justiça. REsp.1126515/PR (2009/0042064-8). Relator MinistroHerman Benjamin, Segunda Turma. Brasília,Diário Oficial [da] República Federativa doBrasil, Diário da Justiça, Brasília, DF, 3 dez.2013.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Diretade Inconstitucionalidade – ADI n.º 5.135/DF.Relator Ministro Roberto Barroso. DecisãoMonocrática, Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Diário da Justiça,Brasília, DF, 8 set. 2014.

BUENO, Sérgio Luís José. Tabelionato deprotesto. São Paulo: Saraiva, 2013. 3.ª tiragemem 2014. (Coleção Cartórios).

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A lei n.º12.767/2012 prevê expressamente apossibilidade de protesto das certidões de dívidaativa (CDA). 2013. Disponível em: <http://www.dizerodireito.com.br>. Acesso em: 19 set2015.

ENOQUE, Gustavo. Desjudicialização: soluçãopara eficiência administrativa. 2015. Disponívelem: <http://apeminas.org.br/desjudicializacao--solucao-para-eficiencia-administrativa/>.Acesso em: 17 out 2015.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICAAPLICADA (IPEA). Comunicado do Ipea n.º83 – Custo unitário do processo de execuçãofiscal na Justiça Federal. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110331_comunicadoipea83.pdf>.Acesso em: 27 ago 2015a.

_______. Nota Técnica. Custo e tempo doprocesso de execução fiscal promovido pelaProcuradoria Geral da Fazenda Nacional.Brasília, 2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/nota_tecnica/111230_notatecnicadiest1.pdf>.

Acesso em: 27 ago 2015b.

LIMA, Marcelo Cordeiro de; MIRANDA,Maria Bernadete. Protesto de títulosextrajudiciais. 2010. Disponível em: <http://www.direitobrasil.adv.br/arquivospdf/revista/revistav42/alunos/Mar20102.pdf>. Acesso em:19 set 2015.

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registrospúblicos: teoria e prática. 5. ed. rev. atual. eampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:Método, 2014.

MACHADO, Ana Amélia Marquezi;AMARAL, Sérgio Tibiriçá. Evolução históricado direito notarial. 2008. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1619/1543>. Acesso em: 19 set2015.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direitotributário. 30. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:Malheiros, 2009.

_______. Protesto de certidão de dívida ativa.2002. Disponível em: <http://www.idtl.com.br/artigos/148.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2015.

MAZZA, Alexandre. Manual de direitotributário. São Paulo: Saraiva, 2015.

MINAS GERAIS. Decreto 45.989, de 13 dejunho de 2012. Dispõe sobre o não ajuizamentode execução fiscal e a instituição de novasformas de cobrança dos créditos do estado e desuas autarquias e fundações. Diário Oficial[do] Estado de Minas Gerais, Diário doExecutivo, 14 jun. 2012, pág. 2, coluna 1, erepublicado no Diário Oficial [do] Estado deMinas Gerais, Diário do Executivo, 15 jun.2012, pág. 2, coluna 1.

______. Lei n.º 19.971, de 27 de dezembro de2011. Altera as Leis n.° 15.424, de 30 dedezembro de 2004, e n° 6.763, de 26 dedezembro de 1975, autoriza o não ajuizamento deexecução fiscal, institui formas alternativas decobrança e dá outras providências. DiárioOficial [do] Estado de Minas Gerais, Diáriodo Executivo, 28 dez. 2011, pág. 1, coluna 2.

______. Tribunal de Justiça do Estado de MinasGerais. Agravo de instrumento n.º

Page 102: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

102

1.0024.14.084608-0/001. Segunda Câmara Cível.Relatora Desembargadora Hilda Teixeira daCosta. Diário Oficial [do] Estado de MinasGerais, Diário da Justiça, 3 dez. 2014.

MORAES, Macabu Emanoel. Protestonotarial: títulos de crédito e documentos dedívida. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

MORAIS, Reinaldo Carvalho de et al. Pagandopara receber? Subsídios para uma política decobrança da dívida ativa no setor público:resultados de pesquisa sobre o custo médio decobrança de uma execução fiscal em MinasGerais. In. Direito Público: Revista Jurídica daAdvocacia Geral do Estado de Minas Gerais.Belo Horizonte, Imprensa Oficial de MinasGerais, v. 5, n. 1, 2, 2008. Disponível em: <http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/revistajuridica/revistajuridica2008/revistajuridica2008.pdf>. Acesso em: 17 out 2015.

PAULSEN, Leandro. Curso de direitotributário: completo. 6. ed. rev. atual. e ampl.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

RESPUBLICA. Eficiência que gera economia.AGE/MG adota os protestos extrajudiciais emseus atos e obtém resultados altamente positivos.Respublica. Informativo da Associação dosProcuradores do Estado de Minas Gerais –APEMINAS, Belo Horizonte, ano 8, n. 23, jan.-fev.-mar 2015.

RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado deregistros públicos e direito notarial. SãoPaulo: Atlas, 2014.

SILVA, Aurélio Passos. O protesto da certidãode dívida como corolário do princípio daeficiência. In: Direito Público: Revista Jurídicada Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais.Belo Horizonte, Imprensa Oficial de MinasGerais, v. 6, n. 1, 2, 2009. Disponível em: <http://www.advocaciageral.mg.gov.br/images/stories/downloads/revistajuridica/revistajuridica2008/revistajuridica2009.pdf>. Acesso em: 19 set2015.

Page 103: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

103

RESUMO

Com o advento da Resolução n.º 125 do ConselhoNacional de Justiça, e da Lei 13.105/2015 (Códigode Processo Civil), a conciliação e mediaçãopassaram a ser a primeira alternativa e a maisestimulada para a solução de conflitos no âmbitodo Poder Judiciário, tendo em vista o grandepotencial que possuem para a pacificação social eredução da litigiosidade. Nesse sentido, o presentetrabalho busca, sobretudo, analisar a visão que aspartes e advogados têm do Poder Judiciário apósa implantação do Centro Judiciário de Solução deConflitos e Cidadania (CEJUSC) na Comarca deMontes Claros, principalmente por meio dolevantamento dos benefícios oportunizados pelaconciliação ou mediação de conflitos.

Palavras-chave: Conciliação. Mediação. Soluçãode conflitos. Cidadania. Poder Judiciário. NovoCódigo de Processo Civil.

ABSTRACT

With the advent of Resolution nº. 125 of the NationalCouncil of Justice and Law 13.105/2015 (Code ofCivil Procedure), conciliation and mediationbecame the first alternative and more stimulatedto solve conflicts within the judiciary, owing to thegreat potential they have for social peace and toreduce litigation. In this sense, this paper seeks,above all, to analyze the view that parties andlawyers have about the judiciary after theimplementation of Judicial Center for ConflictResolution and Citizenship (Centro Judiciário deSolução de Conflitos e Cidadania - CEJUSC) inthe District of Montes Claros, mainly through the

A EFICÁCIA DO CENTRO JUDICIÁRIO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS ECIDADANIA NA COMARCA DE MONTES CLAROS/MINAS GERAIS:

uma nova visão do Judiciário

Danilo Marques Evangelista1

Eduardo Vinícius Pereira Barbosa2

Heloise Lisboa Fonseca3

lifting of benefits performed by conciliation ormediation of conflicts.

Keywords: Conciliation. Mediation. Conflictresolution. Citizenship. Judiciary. New Code ofCivil Procedure.

1 INTRODUÇÃO

A Resolução n.º 125, do Conselho Nacionalde Justiça (CNJ), instituiu políticas públicas detratamento adequado dos conflitos jurídicos pormeio da autocomposição, tendo em vista a curtaduração da controvérsia, restauração oumanutenção da paz social, baixo custo ao Estadoe obtenção de solução satisfatória às partes.

Inicialmente, cumpre salientar que aResolução n.º 125 estabelece a criação, pelosTribunais, dos Centros Judiciários de Solução deConflitos e Cidadania (CEJUSC), além deregulamentar a atuação dos mediadores econciliadores, criando, inclusive, Código de Éticadesses profissionais, já que, agora, são enquadradoscomo auxiliares da Justiça.

Em consonância com o disposto, a Lei 13.105,de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil- CPC) prima pela solução negocial, que não éapenas uma forma econômica de resolver o litígio,mas o momento em que os interessados podemconstruir uma decisão que regula a sua relaçãojurídica.

O CPC/2015 disciplina questões ligadas aosmétodos alternativos de resolução de conflitos emdiversos dispositivos, em especial nos artigos 165a 175, com especial enfoque para a realização deaudiência de tentativa de autocomposição antesdo oferecimento da defesa pelo réu.

1 Acadêmico do 7.º Período do Curso de Direito da Unimontes.2 Acadêmico do 9.º Período do Curso de Direito da Unimontes.3 Acadêmica do 9.º Período do Curso de Direito da Unimontes.

Page 104: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

104

Ressalta-se que o Tribunal de Justiça deMinas Gerais (TJMG) instalou o CEJUSC naComarca de Montes Claros em 10 de fevereiro de2015, integrado pelos setores de cidadania,processual e pré-processual. O CEJUSC, emMontes Claros, funciona no prédio do FórumGonçalves Chaves e é composto por um JuizCoordenador, servidores, conciliadores emediadores. Os processos encaminhados àtentativa conciliação ou mediação são selecionadospor servidores que conhecem os meios alternativosde solução de controvérsias e identificam, no casoconcreto, as vantagens do procedimento aoconflito.

Assim, este trabalho se dá por meio da análisedo formulário de avaliação do usuário, que éfornecido pelo TJMG e aplicado às partes ao fimde cada sessão de mediação ou de conciliação.

O estudo das técnicas de mediação econciliação se enquadra na metodologia qualitativae se utiliza do método de abordagem dedutivo, dométodo de procedimento monográfico e técnicade pesquisa do tipo revisão de literatura, uma vezque tem como base doutrinas jurídicasespecializadas, artigos e outras produçõescientíficas pertinentes à compreensão do temaanalisado.

2 CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO:ASPECTOS TEÓRICOS

A mediação e a conciliação são mecanismosde solução alternativa de conflitos, em que terceiroalheio aos interesses controvertidos auxilia aspartes para possível resolução autocompositiva.Importante salientar que esse terceiro não decideou arbitra o conflito, mas presta auxílio naresolução, podendo ser considerado uma espéciede “catalisador da solução”.

Os métodos alternativos de conflitosencontram fundamentos nos princípios daimparcialidade, confidencialidade, oralidade,informalidade, autonomia da vontade e decisãoinformada (DIDIER JÚNIOR, 2015).

Os procedimentos de mediação e conciliaçãovisam maior participação dos interessados, destaforma intensificam a cooperação popular naresolução de conflitos. A divulgação dos métodosalternativos para solucionar conflitos representauma ascensão da população ao exercício do poderde controlar os resultados de controvérsias,apresentando caráter democrático (WATANABE,2015).

A conciliação surge como o caminho diversopara uma maior celeridade na conclusão e no fimdos conflitos. É o mecanismo utilizado para anegociação entre indivíduos, em que não hácomplexidade nas relações discutidas. Busca-seevitar a interferência do Estado em questões maissimplórias e, para isto, leva os interessados a umasolução consensual. Na conciliação, verifica-se apresença de terceiro, o conciliador, alheio aosassuntos, exercendo a função de “guia” para aresolução da demanda. O conciliador é figura ativaneste procedimento, haja vista que formulaquestões, hipóteses e até propõe soluções aoconflito (BACELLAR, 2012).

Por seu turno, a mediação é um procedimentode maior complexidade e lida com indivíduos quepossuem maior número de vínculos. Como se sabe,é também meio alternativo para findar ascontrovérsias. Entretanto, apresenta um grau maiorde participação dos interessados na persecuçãoda solução, que são orientados por terceiro, omediador, e, por iniciativa e debate próprio,alcançam a resolução pacífica disputa(BACELLAR, 2012).

Em suma, a conciliação e a mediaçãooferecem maior agilidade no desenrolar da relaçãoconflituosa. Um acordo composto comparticipação direta dos interessados e, na maioriados casos, alcançado com celeridade, resulta emmaiores benefícios e satisfação daqueles quebuscam a assistência jurídica, seja esta antes oudurante o desenrolar processual.

2.1 Breves Aspectos Históricos dosMétodos Alternativos de Solução deConflitos

Os denominados meios de solução alternativade conflitos nada mais são do que comportamentoshumanos que surgiram como as primeiras formaspara solucionar litígios (COULANGES, 2009).

Nos primórdios da convivência humana, aprimeira figura para resolução de conflitos era aautotutela, cuja força bruta era o instrumento queresolveria o conflito entre dois indivíduos,imperando a lei do mais forte. Conforme ascivilizações se desenvolviam, a autotutela ouvingança privada não se mostrava mais adequadacedendo lugar aos métodos de solução de conflitosatravés de terceiros. E por fim, com o crescimentodos Estados, nasceu a jurisdição, em que a entidadeestatal concentra em si os poderes para solucionarimpasses (BACELLAR, 2012).

Page 105: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

105

No Brasil, a figura da conciliação surgiu naConstituição do Império de 1824, que estabeleciaa obrigatoriedade da via conciliatória antes do iníciode qualquer procedimento judicial. Todavia, aindaque obrigatória, a tentativa de conciliação eraprática pouco utilizada e desestimulada. Com aProclamação da República e o Decreto n.º 359/1890, o movimento conciliatório sofreu grandegolpe, pois a conciliação prévia deixou de serobrigatória. Sob os argumentos de que tal medidaera onerosa e inútil na composição de conflitos,aqueles que desejassem compor o poderiam fazersem a necessidade da obrigatoriedade(BACELLAR 2012).

A Constituição de 1891 desestruturou osistema existente que apoiava a conciliação,embora não explicitasse rejeição à autocomposição,possibilitando que cada Estado criasse a próprialei processual, o que resultou em códigos estaduaisque seguiam o estabelecido na Constituição de1824. Importante ressaltar que, embora existentea figura dos Juízes de Paz responsáveis pelaconciliação, era ressalvada a competência dosjuízes togados. Com o Golpe Militar, a figura dosJuízes de Paz, como auxiliares da justiça, noprocedimento de conciliação, foi desprestigiada.Por consequência, suas funções foram reduzidasà habilitação e celebração de casamento(BACELLAR, 2012).

Com a redemocratização, a Constituição daRepública Federativa do Brasil, de 1988 (CRFB/1988), tratou da solução alternativa de conflitos:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nosTerritórios, e os Estados criarão:I - juizados especiais, providos por juízestogados, ou togados e leigos, competentespara a conciliação, o julgamento e aexecução de causas cíveis de menorcomplexidade e infrações penais de menorpotencial ofensivo, mediante osprocedimentos oral e sumaríssimo,permitidos, nas hipóteses previstas em lei,a transação e o julgamento de recursos porturmas de juízes de primeiro grau;II - justiça de paz, remunerada, compostade cidadãos eleitos pelo voto direto,universal e secreto, com mandato de quatroanos e competência para, na forma da lei,celebrar casamentos, verificar, de ofício ouem face de impugnação apresentada, oprocesso de habilitação e exerceratribuições conciliatórias, sem caráterjurisdicional, além de outras previstas nalegislação.

Assim, os mecanismos de solução pacíficade conflitos ganharam força novamente, sendoreestruturados e restabelecidos pela CRFB/1988.

2.2 Distinções e Semelhanças dosInstitutos: Conceitos de Ordem Prática

Inicialmente, a distinção entre mediação econciliação é tímida e, se observadas de maneiramais rigorosa e analítica, seria quase queinexistente. As diferenças encontram relação comos seguintes determinantes: a natureza da relação,atuação do terceiro auxiliar, finalidade e foco doprocedimento.

Na conciliação, o conciliador aplica a técnicaadotando uma postura interventiva, haja vista queapresenta soluções para o litígio, isto é, por meioda análise dos fatos o profissional sugere formasde resolução. Observa-se que a conciliação éindicada para casos em que não havia vínculoanterior entre as partes, busca relações menoscomplexas, com menos vínculos. O conciliador visaà transação entre as partes e, consequentemente,o fim do processo com a resolução do mérito(DIDIER JÚNIOR, 2015).

Já na mediação, o mediador é um facilitadorque busca restabelecer a comunicação entre aspartes e guiá-las para a resolução da demanda.Busca-se na mediação a atuação conjunta daspartes, auxiliadas pelo mediador, para construçãode um acordo. É técnica indicada para os conflitosentre indivíduos que possuíam vínculos, em que hácomplexidade nas relações envolvidas. Dentre asprincipais vantagens da mediação, destaca-se avalorização da cidadania, o reforço à cultura da paze do diálogo, prevenção à violência e rapidez nostratamentos dos conflitos (DIDIER JÚNIOR, 2015).

Embora possuam diferenças, a mediação e aconciliação devem ser entendidas comomecanismos construtivos, visando possibilitar aintegração das partes para construção das condiçõesque guiaram a solução e fim do conflito. É umaprática importante e que desperta o interesse dasmais diversas áreas acadêmicas, em destaque parao âmbito legal, pois expõe possibilidades de carreirae atuação, ao passo que representa atividade deimportante função pública, cidadã e social.

3 DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS

Basicamente, o Estado é responsável pelatutela jurisdicional que visa à eliminação dosconflitos trazidos pelas partes, em que pode

Page 106: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

106

declarar, condenar ou aplicar um direito conformenecessidade e adequação ao caso concreto. Acultura processual no Brasil baseia-se quase queintegralmente na litigiosidade e, não raras vezes,as partes não saem satisfeitas com a decisão doórgão julgador, ensejando maior demora na soluçãodo litígio e acumulando processos indefinidamentena máquina judiciária (TOALDO, 2011).

Todavia, sabe-se que a jurisdição “é uma dasfunções do Estado, mediante a qual este se substituiaos titulares dos interesses em conflito para,imparcialmente, buscar a pacificação do conflitoque os envolve, com justiça.” (CINTRA;DINAMARCO; GRINOVER, 2010, p. 149).

Assim, a efetividade da pacificação social aojurisdicionado dentro do Ordenamento Jurídicodepende do emprego de critérios justos e éticos deexercício da jurisdição. Faz-se necessária aparticipação popular no enfrentamento da lide,reforçando, o caráter democrático e cidadão donovo prisma da jurisdição.

Nessa perspectiva,

É do senso comum que uma das finalidadesdo Poder Judiciário é a pacificação social,portanto, incumbe-lhe utilizar mecanismose técnicas que aproximem o cidadão daverdadeira Justiça. E, muitas vezes, averdadeira justiça só será alcançada seaquela demanda for solucionada medianteconciliação, porque nessa forma deresolução de conflito há efetiva e realpossibilidade de se resolver todas as “lides”que porventura possam existir. A busca dapaz é a razão de existência do PoderJudiciário. E, não menos certo que oJudiciário não deve ser o lugar somenteonde as causas começam, mas também ondeelas terminam, em outras palavras: que oprocesso seja de resultados (SENA, 2007,p. 99-100, passim).

Em outro tom, diz a doutrina:

O princípio de acesso à justiça, inscrito non. XXXV do art. 5.º da Constituição Federal,não assegura apenas acesso formal aosórgãos judiciários, e sim um acessoqualificado que propicie aos indivíduos oacesso à ordem jurídica justa, no sentidode que cabe a todos que tenham qualquerproblema jurídico, não necessariamente umconflito de interesses, uma atenção porparte do Poder Público, em especial doPoder Judiciário. Assim, cabe ao Judiciárionão somente organizar os serviços que sãoprestados por meio de processos judiciais,

como também aqueles que socorram oscidadãos de modo mais abrangente, desolução por vezes de simples problemasjurídicos, como a obtenção de documentosessenciais para o exercício da cidadania, eaté mesmo de simples palavras deorientação jurídica. Mas é, certamente, nasolução dos conflitos de interesses quereside a sua função primordial, e paradesempenhá-la cabe-lhe organizar nãoapenas os serviços processuais comotambém, e com grande ênfase, os serviçosde solução dos conflitos pelos mecanismosalternativos à solução adjudicada por meiode sentença, em especial dos meiosconsensuais, isto é, da mediação e daconciliação (WATANABE, 2015).

Os meios consensuais de resolução deconflitos de interesses foram institucionalizadospela Resolução n.º 125 e pelo CPC/2015, de formapermanente, norteando a atuação de todos osórgãos que integram o Poder Judiciário eviabilizando o acesso à Justiça e a cidadania aosusuários.

3.1 Da Resolução n.º 125, do ConselhoNacional de Justiça

Pode-se afirmar que a política pública desolução negocial de conflitos por meio de técnicasautocompositivas surgiu no Brasil a partir daResolução n.º 125, de 29 de novembro de 2010,editada pelo CNJ.

Didier Júnior (2015, p. 274) enumera suasprincipais regulamentações:

Esta Resolução, por exemplo: a) institui aPolítica Pública de tratamento adequadodos conflitos de interesses (art. 1.º); b)define o papel do Conselho Nacional deJustiça com o organizador desta políticapública no âmbito do Poder Judiciário (art.4.º); c) impõe a criação, pelos tribunais, doscentros de solução de conflitos e cidadania(art. 7.º); d) regulamenta a atuação domediador e do conciliador (art. 12), inclusivecriando o seu Código de Ética (anexo daResolução); e) imputa aos tribunais o deverde criar, manter e dar publicidade ao bancode estatísticas de seus centros de soluçãode conflitos e cidadania (art. 13); f) define ocurrículo mínimo para o curso decapacitação dos mediadores e conciliado-res.

Na mesma esteira, o “Guia de Conciliação eMediação” preconiza:

Page 107: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

107

Pode-se afirmar que o Conselho Nacionalde Justiça tem envidado esforços paramudar a forma com que o Poder Judiciáriose apresenta. Não apenas de forma maiságil e como solucionador de conflitos, masprincipalmente como um centro de soluçõesefetivas do ponto de vista dojurisdicionado. Em suma, busca-se mudaro “rosto” do Poder Judiciário (BRASIL,2012).

Nota-se que a partir da edição da Resolução,o CNJ estabeleceu as necessidades de que os juízese tribunais brasileiros sejam solucionadores deconflitos, indo muito mais além da “cultura dasentença”. Devem-se orientar pela busca deeficiência e satisfação do jurisdicionado em tempohábil, haja vista que, na contemporaneidade, ooperador do direito passa a ser visto como umpacificador social (BRASIL, 2015a).

Verifica-se pela Resolução que o CNJcomprometeu-se a auxiliar os Tribunais naorganização dos serviços necessários àconcretização das políticas públicas negociais,organizando programas com objetivo de promoverações de incentivo à autocomposição de litígios eà pacificação social por meio da conciliação e damediação

Outro ponto forte da Resolução é acapacitação constante em conciliação e mediaçãodos profissionais que atuarão na área, por meio deencontros e fóruns de discussões acerca do tema,com a participação de juízes, servidores,conciliadores e mediadores, nos quais há ocompartilhamento de técnicas e experiências,promovendo assim a uniformização dosprocedimentos, consoante determina o artigo 9.º,§ 2.º, da Resolução.

Tem-se, também, a capacitação externa, queocorre com realização de eventos voltados àsinstituições que atuam em parceria com o PoderJudiciário, a exemplo da Ordem dos Advogadosdo Brasil, Ministério Público, Defensorias Públicas,Câmaras Privadas de Arbitragem e Instituições deEnsino.

3.2 Da Conciliação e Mediação à Luz doNovo Código de Processo Civil

O CPC/2015 disciplinou a mediação,conciliação e a arbitragem em várias passagens,fortalecendo a utilização dos meios alternativos deresolução de conflitos. Demonstra um marco denovos horizontes para a cultura jurídica do Brasil.

O artigo 3.º do referido diploma deixa expresso odever de juízes, advogados, defensores públicos emembros do Ministério Público estimularem aconciliação, a mediação e outros métodosalternativos de solução de conflitos, inclusive nocurso do processo judicial.

Como novidade, introduziu os mediadores econciliações como auxiliares da Justiça (art. 149),sujeitando-os aos motivos de suspeição eimpedimento (art. 148, II).

Na seção V, do Capítulo III, o CPC/2015 tratada instalação dos CEJUSC’s, dos seus princípiosinformadores, do cadastro e capacitação dosmediadores e conciliadores, formas deremuneração, hipóteses de impossibilidadetemporária do exercício da função, dentre outrasregulamentações.

Logo, para viabilizar a eficácia dos institutosde conciliação e mediação, os Tribunais têmimplantado o CEJUSC e oferecido cursos decapacitação aos profissionais do Direito e de áreasafins, por meio do Núcleo Permanente de MétodosConsensuais de Solução de Conflitos(NUPEMEC), pois, somente em casosexcepcionais, esta audiência se realizará na sededo juízo.

Ressalta-se que dentre as tratativas maisimportantes do CPC/2015 a respeito do tema, tem--se a criação da audiência de mediação ouconciliação como ato inicial do procedimentocomum ordinário.

A audiência é de conciliação ou mediação,pois vai depender do tipo de técnica queserá aplicada – e o tipo de técnica dependedo tipo de conflito. De acordo com o §§ 2.ºe 3.º do art. 165 do CPC, será de conciliação“nos casos em que não houver vínculoanterior entre as partes”; será de mediação,“nos casos em que houver vínculo anteriorentre as partes.” (DIDIER JÚNIOR, 2015, p.623).

Conforme o artigo 334 do CPC/2015, o réuserá citado para comparecer à audiência deconciliação ou mediação e, somente com oencerramento do ato e não tendo havido acordo,terá início o prazo para apresentação da resposta.

Além disso, esta audiência somente poderáser dispensada pelo juiz se ambas as partesmanifestarem, de forma expressa, o desinteressena composição amigável ou se o caso não admitirautocomposição, vedando, inclusive, a dispensa porapenas uma das partes (art. 334, § 4.º).

Page 108: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

108

Não se pode confundir “não admitirautocomposição”, situação que autoriza adispensa da audiência, com ser“indisponível o direito litigioso”. Em muitoscasos, o direito litigioso é indisponível, masé possível haver autocomposição. Em açãode alimentos, é possível haverreconhecimento da procedência do pedidopelo réu e acordo quanto ao valor e formade pagamento; em processos coletivos, emque o direito litioso também é indisponível,é possível celebrar compromisso deajustamento de conduta (art. 5º, §5º, Lei nº.7.347/1985) (DIDIER JÚNIOR, 2015, p. 625)

Por fim, mesmo demandas já em andamentopodem ser encaminhadas para os Centros com oobjetivo de apoiar os Juízos, Juizados e Varas nassuas conciliações e mediações.

4 DO CENTRO JUDICIÁRIO DESOLUÇÃO DE CONFLITOS ECIDADANIA - CEJUS

As Centrais de Conciliação, como é oCEJUSC, através da realização de sessões deconciliação ou mediação, representam um passona busca para maior interação entre o PoderJudiciário e a população em geral. A participaçãoativa na solução da lide está apresentando àsociedade uma nova visão do Judiciário,dinamizando as relações jurídicas.

A criação das Centrais passou a ocorrer dediversas maneiras, respeitando a realidade localde cada unidade da Federação. Muitos Tribunaisconsolidaram o CEJUSC exclusivamente comrecursos próprios e, muito embora não teremconseguido implantar esses centros em todo o País,colheram resultados proveitosos sinalizadores deredução do número de demandas distribuídas econtribuíram para uma mudança de percepção dousuário jurisdicionado, no sentido de que a justiçapode ser mais rápida e simples (BRASIL, 2012).

Destaca-se a importância do papel dasentidades, como Faculdades de Direito, Faculdadesde Psicologia, Prefeituras e Organização Não--Governamentais (ONG’s), que contribuem parao bom funcionamento dos CEJUSC, inclusivealgumas tendo uma participação importante parainauguração de alguns Centros, que se deu comrecursos dos próprios parceiros. Depreende-seaqui a função social da proximidade do Judiciáriopara com a sociedade, difundindo de forma maisacessível à cultura do diálogo e do consenso comfinalidade de fomentar uma solução alternativa dos

conflitos (BRASIL, 2012).De acordo com o artigo 10 da Resolução n.º

125 do CNJ, o CEJUSC deve necessariamenteabranger os setores de solução de conflitos pré--processual, processual e setor de cidadania,devendo ser composto de uma estrutura funcionalmínima de um Juiz Coordenador e, eventualmente,de um adjunto, devidamente capacitados, quedeverão administrar e fiscalizar o serviço deconciliadores e mediadores, assim como servidoresde dedicação exclusiva, todos devidamentecapacitados em métodos consensuais de solução deconflitos e pelo menos um deles treinado ecapacitado para triagem e encaminhamento decasos.

As sessões de conciliação no CEJUSC,portanto, são realizadas com o objetivo de tentarchegar a um acordo consensual entre as partes,antes do ajuizamento de uma ação ou mesmodurante um processo judicial e, por força daResolução n.º 125 do CNJ, pode-se discutir, porexemplo, questões cíveis que versarem sobredireitos disponíveis – inclusive em matéria defamília –, previdenciárias, e de competência dosJuizados Especiais Cíveis.

Não obstante, deve ocorrer a capacitaçãoespecífica e constante de juízes e dos serventuáriosda justiça que atuam no CEJUSC, os quais orientama correta aplicação dos métodos de solução deconflitos. Ademais, não resta dúvida que para atuarno CEJUSC o servidor deve ter perfil sociável,comunicativo e educado.

4.1 A Relevância do CEJUS no Tribunal deJustiça de Minas Gerais

O processo como uma ferramentajurisdicional para solucionar litígios tem dado espaçoaos métodos autocompositivos. A iniciativa dolegislador de tornar obrigatória essa práticacomprova o interesse público em difundir a culturado diálogo em situações de conflitos de interesse,em que o acordo judicial, além de ser mais célere,é a própria “sentença” construída pelas partesdurante as sessões de conciliação ou mediação noCEJUSC.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais(TJMG), ao instalar o CEJUSC, demonstra àcomunidade maior interesse na resoluçãoalternativa de conflitos e, consequentemente, maiorceleridade na prestação dos serviços judiciais,adquirindo, dessa forma, maior confiança ecredibilidade para com os advogados e as partesque se utilizam dos serviços disponibilizados.

Page 109: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

109

Ademais, a satisfação dos usuários com odevido processo legal depende fortemente dapercepção de que o procedimento foi justo e que aparticipação do jurisdicionado na seleção dosprocessos a serem utilizados para dirimir suasquestões aumenta significativamente a percepçãode justiça.

4.2 A Eficácia do CEJUSC na Comarca deMontes Claros: análise de dados

O CEJUSC da Comarca de Montes Clarosrecebe, no setor processual, ações Cíveis e dasVaras de Fazenda Pública, que retornam sempreà Vara de origem, obtido ou não acordo, paraextinção, por meio da homologação judicial, ouprosseguimento do feito. No setor pré-processual,o interessado comparece ao CEJUSC com osdados da parte contrária para elaboração peloservidor de uma carta-convite informando a horae local da sessão de conciliação ou mediação.Comparecendo os interessados e obtido acordo,este é homologado pelo Juiz Coordenador e valecomo título executivo judicial. Não havendo, a parteé orientada a procurar a Justiça Comum ou oJuizado Especial, a depender do caso concreto.Quanto ao setor de cidadania, são prestadasinformações e orientações jurídicas (BRASIL,2012).

Em pesquisa no CEJUSC da Comarca deMontes Claros, foram analisados 164 formuláriosde avaliação do usuário, com perguntas elaboradaspelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuaisde Solução de Conflitos (NUPEMEC) do Tribunalde Justiça de Minas Gerais, no períodocompreendido entre 15 de julho e 31 de outubro de2015.

As partes que compareceram às sessões deconciliação/mediação foram questionadas acercade sua visão do Poder Judiciário, após participarda sessão.

Nesse sentido, avaliou-se que 71participantes responderam que a visão permanecea mesma e 93 avaliaram que mudou para melhor.Nenhum dos entrevistados respondeu que a visãoque tinha do Judiciário mudou para pior.

Em outro questionamento, agora a respeitodos benefícios que os métodos de resolução deconflitos podem trazer, 42 pessoas responderamque não obtiveram benefícios diretos com as ses-sões de conciliação e mediação. Entretanto, aoserem indagados sobre a nova visão do Poder

Judiciário, avaliaram a questão de forma positi-va, independentemente de ter ocorridoautocomposição, o que demonstra a satisfaçãodos usuários com relação à iniciativa do Tribunal.

Por outro lado, 122 participantes responderamque obtiveram benefícios diretos com as sessõesde mediação e conciliação, e que, a partir doCEJUSC, têm uma visão melhor do PoderJudiciário.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho, com o objetivo de demonstrarmudanças de paradigma quanto ao Judiciário,especialmente na Comarca de Montes Claros,aponta benefícios alcançados pelas partes após aparticipação nas sessões de mediação econciliação.

Na atual conjuntura jurídica do Brasil,estimula-se a solução por autocomposição, queorienta políticas públicas de resolução de conflitosnão só do Judiciário como também do Legislativoe do Executivo. A criação do CEJUSC representaum marco na trajetória evolutiva do Acesso àJustiça e vale-se, primordialmente, do diálogo entreas partes em conflito.

A iniciativa do Poder Judiciário fomenta umaresolução lógica do conflito, pois a autocomposiçãotem o condão de harmonizar os interesses opostose possibilita chegar a um acordo de vontades, aindaque não se tenha iniciado um processo judicial. Afinalidade das técnicas de mediação e conciliaçãonão é o desafogar o Judiciário ou uma aceleraçãodos processos, mas a construção de uma decisãojurídica pelas partes.

Constata-se pela análise estatística doformulário de avaliação do usuário que aimplementação do CEJUSC e a realização dassessões refletiram positivamente na opinião dosusuários sobre o Judiciário.

Destarte, os números mostram que para aspartes, a possibilidade de conjuntamente entraremem acordo e por fim a uma demanda é oportunidadeaceita prontamente, pois permite que seestabeleçam as condições e resultados satisfatóriose igualitários para ambos os lados. Depreende-sedos dados um impacto promissor causado pelasatividades desenvolvidas no CEJUSC, em MontesClaros. É uma iniciativa nova e em crescimento,mas que já apresenta influência direta nocontentamento dos usuários.

Page 110: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

110

REFERÊNCIAS

BACELLAR, Roberto Portugal. Mediação earbitragem. São Paulo: Saraiva, 2012. (ColeçãoSaberes do Direito, 53).

BECKER, Carmem. Vade mecum acadêmicode direito. Niterói: Impetrus, 2013.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Guiade conciliação e mediação judicial: orientaçãopara instalação de CEJUSC. Brasília: ConselhoNacional de Justiça, 2015b.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça.Manual de mediação judicial. Brasília:Ministério da Justiça, 2012.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça.Resolução n.º 125, de 29 novembro de 2010.Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional detratamento adequado dos conflitos de interessesno âmbito do Poder Judiciário e dá outrasprovidências. Brasília: Conselho Nacional deJustiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2579>. Acesso em:8 ago. 2015a.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.

BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.Código de Processo Civil. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,17 mar. 2015.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant.Acesso à justiça. Tradução de Ellen GracieNorthfleet. Porto Alegre: Safe, 1988.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo;DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER,Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 26.

ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. SãoPaulo: Martin Claret, 2009.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direitoprocessual civil: introdução ao direitoprocessual civil, parte geral e processo deconhecimento. v. I. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

SENA, Adriana Goulart de. Formas de resoluçãode conflitos e acesso à Justiça. In: RevistaTribunal Regional do Trabalho 3.ª Região,Belo Horizonte, v. 46, n.º 76, , p. 93-114, 2007.

SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLERNETO, Theobaldo (Org.). Mediação enquantopolítica pública: o conflito, a crise da jurisdiçãoe as práticas mediativas. Santa Cruz do Sul(RS): Edunisc, 2012.

TOALDO, Adriane Medianeira. A cultura dolitígio x a cultura da mediação. In: ÂmbitoJurídico, Rio Grande, XIV, n. 95, dez 2011.Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/erro.htmln_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10859&revista_caderno=21>. Acessoem: 19 jan. 2016.

TRENTIN, Fernanda. Métodos alternativos deresolução de conflito: um enfoque pluralista dodireito. In: Revista Âmbito Jurídico. Disponívelem: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11252&revista_caderno=24>. Acesso em: 13 ago. 2015.

WATANABE, Kazuo. Política pública do poderjudiciário nacional para tratamento adequado dosconflitos de interesse. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/Download/Conciliacao/Nucleo/ParecerDesKazuoWatanabe.pdf>. Acesso em:29 nov. 2015.

Page 111: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

111

RESUMO

Hodiernamente, o encargo probatório estático nãoconcretiza os princípios basilares de um processojusto, não atenta à condição concreta das parteslitigantes, o que enseja o surgimento da teoria dadistribuição dinâmica do ônus da prova, queflexibiliza a rigidez da teoria disciplinada pelo art.333 do CPC de 1973, mitigando-a em determinadoscasos, atentando e efetivando os modernosprincípios inerentes a um processo justo eequânime. O presente trabalho busca analisar aTeoria da Distribuição Dinâmica do ÔnusProbatório, em quatro ópticas, seu surgimento,adequação, aplicação e previsão legal, buscandonão só expor o aspecto teórico, mas auxiliar naaplicação prática do referido instituto.

Palavras-chave: Ônus da Prova. Processo Civil.Distribuição Estática e Dinâmica.

THEORY OF DYNAMIC DISTRIBUTIONOF CHARGE PROBATION

ABSTRACT

In our times, the static evidentiary burden not finishthe basic principles of due process, not attentive tothe concrete condition of the disputing parties,which entails the emergence of the theory ofdynamic distribution of the burden of proof, whicheases the stiffness of disciplined theory by art. 333of the 1973 CPC, mitigating it in some cases, payingattention and making effective the modernprinciples inherent in a fair and equitable process.This study seeks to analyze the Theory ofDistribution Dynamics of Evidentiary Burden infour optics, its appearance, suitability, applicationand legal provision, seeking not only expose thetheoretical aspect, but assist in the practical

TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS PROBATÓRIO

Pedro Fernandes Martins Cardoso1

Maria Fernanda Soares Fonseca2

implementation of this institute.

Keywords: Burden of Proof. Civil lawsuit. Staticand Dynamic distribution.

1 INTRODUÇÃO

O Novo Código de Processo Civil (Lei n.º13.105, de 16 de março de 2015), contém em seubojo a Teoria da Distribuição Dinâmica do encargoprobatório, oriunda da insuficiência da Teoria daDistribuição Estática, prevista no Código deProcesso Civil instituído pela Lei n.o 5.869, de 11de janeiro de 1973, desde sua promulgação, e queteve vigor até março de 2016.

Com isso em mente, o presente trabalho temcomo objetivo analisar a Teoria da DistribuiçãoDinâmica do ônus probatório, em quatro óticas, seu(1) surgimento, (2) adequação, (3) aplicação e (4)previsão legal, buscando não só expor o aspectoteórico, mas auxiliar na aplicação prática doreferido instituto.

Neste prisma, o presente trabalho foi dividido,em quatro seções. Na seção I, houve aconceituação de prova e ônus da prova, e adescrição acerca da Teoria Estática do ônus daprova, demonstrando o surgimento da Dinâmica.Na seção II, adentrou-se na teoria da DistribuiçãoDinâmica, analisando sua adequação aoordenamento jurídico brasileiro e o que vem a ser“prova diabólica”. Na III seção, buscou-sedemonstrar a aplicação da Teoria Dinâmica,descrevendo suas condicionantes, colacionando ecomentando precedentes oriundos do SuperiorTribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul (TJRS), analisando omomento de aplicação e os recursos cabíveis. Porfim, na seção IV, como o Novo Código de ProcessoCivil (NCPC) dispôs sobre o tema.

1 Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas (Funorte) da cidade de Montes Claros/MG.2 Mestranda em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros-MG. Docente dos cursos de Direito e

Serviço Social das Faculdades Integradas do Norte de Minas (Funorte) da cidade de Montes Claros/MG. Advogada.

Page 112: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

112

Por oportuno, importante mencionar que opresente artigo se pautou na pesquisa bibliográfica,analisando a lei, doutrina e jurisprudência, comode costume nos esboços jurídicos. Além disso, nãotem-se a pretensão de se esgotar o tema, mas decontribuir com seu aprendizado.

2 TEORIA DA DISTRIBUIÇÃOESTÁTICA E O SURGIMENTO DADINÂMICA

Prova é um meio, não um fim em si mesmo,retórico, argumentação e fundamentação racional,persuasivo, busca convencer o órgão julgador.Consoante lição doutrinária,

Mais especificamente, pode-se compreen-dê-lo como meio retórico, regulado pelalegislação, destinado a convencer o Estadoda validade de proposições controversasno processo dentro de parâmetros fixadospelo direito e de critérios racionais”(MARINONI; MITIDIERO, 2011, p. 334).

Em termos simples, prova é o meio pelo qualse convence o órgão julgador da verdade do quese alega no processo. Porém, como se depreendedo conceito descrito, este meio não é livre, deveser exercido consoante os parâmetros fixados pelodireito e dos critérios racionais.

Ligado umbilicalmente à prova está o ônusda prova, que nada mais é a incumbência às partespela lei, de comprovar os fatos do seu interesse,na busca de uma decisão favorável. Nesse sentido,Dinamarco (2004, p. 71) conceitua ônus da provacomo “[...] encargo, atribuído pela lei a cada umadas partes, de demonstrar a ocorrência dos fatosde seu próprio interesse para as decisões a seremproferidas no processo.”.

Cumpre ressaltar aqui, que o ônus da provanão é um dever jurídico ou uma obrigação a sercumprida sob pena de ilicitude ou de sanção, comoera entendido tempos atrás. A compreensão doexato significado do ônus da prova se faz por meiode duas ópticas, do Juiz (óptica objetiva) e dasPartes (óptica subjetiva).

Com efeito, ao fim do processo, mesmocumprido todo o procedimento, o magistrado podenão estar convicto de sua decisão (dúvida). E comoo ordenamento jurídico veda a sentença non liquet

(problema sem solução), o ônus da prova setransforma numa regra de julgamento, onde o juizpode analisar a atividade probatória das partes –quem não se desincumbiu de seu ônus, e proferirum julgamento – em seu desfavor.

Por outro lado, o ônus da prova assume umaregra de conduta para as partes, um interessepróprio de comprovar as alegações por elastecidas. Assim, a parte, ao desincumbir de seuencargo probatório, atuará em seu próprio interesseque é o de ver suas alegações prosperar. Acontrário sensu, a parte que não cumpre seuencargo tem o risco de ver suas pretensõesnegadas.

Nesse sentido, cabe colacionar trechos dovoto proferido pelo Ministro Relator MauroCampbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça,no Recurso Especial 840.690/DF, que concretizaas facetas do ônus da prova, vejamos:

O chamado “ônus da prova” é instituto dedireito processual que busca, acima detudo, viabilizar a consecução da vedaçãoao non liquet, uma vez que, por meio doart. 333, inc. I, do CPC3, garante-se ao juiz omodo de julgar quando qualquer doslitigantes não se desincumbir da cargaprobatória definida legalmente, apesar depermanecer dúvidas razoáveis sobre adinâmica dos fatos. – Faceta objetiva doônus da provaPor tudo isso, se o autor não demonstra(ou não se interessa em demonstrar), deplano ou durante o processo, os fatosconstitutivos de seu direito, mesmo tendo--lhe sido oportunizados momentos paratanto, compete ao magistrado encerrar oprocesso com resolução do mérito, pelaimprocedência do pedido [...]. –Facetasubjetiva do ônus da prova.

2.1 Da Teoria da Distribuição Estática

Assim se acha descrito no Código deProcesso Civil de 2015:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:I - ao autor, quanto ao fato constitutivo doseu direito;II - ao réu, quanto à existência de fatoimpeditivo, modificativo ou extintivo dodireito do autor.[...]

3 Dispositivo contido no Código de Processo Civil (CPC) de 1973. No CPC de 2015, o teor do art. 333, inciso I, tem correspon-dência no art. 373, inciso I.

Page 113: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

113

Insculpida no art. 373 do atual Código deProcesso Civil, está a teoria da DistribuiçãoEstática do ônus da prova, segunda a qual a lei,valendo-se da posição das partes (autor/réu),preestabelece o ônus probatório. Assim, o autordeve demonstrar o fato constitutivo de seu direitoe o réu os fatos impeditivos, modificativos eextintivos do direito do autor.

Exemplificando, se o autor adentra em juízobuscando o cumprimento de determinadaobrigação, cabe a ele comprovar a existência destaobrigação (fato constitutivo de seu direito) – porexemplo: o contrato assinado pelas partes. Cabeao réu demonstrar os fatos que impedem (porexemplo: não houve o vencimento do contrato),modifica (por exemplo: há parcelas parcialmenteadimplidas) ou extinguem o direito do autor (porexemplo: o réu adimpliu toda a obrigação).

Portanto, primeiramente cabe ao Autorcomprovar os fatos que “dão vida” ao seu direito,os fatos que dão concretude às suas pretensões,suporte a seus pedidos. Já o réu, segundo a regrageral, só necessita desincumbir-se de seu encargoprobatório quando o autor já comprovou os fatosconstitutivos de seu direito.

Com efeito, após o autor constituir seu direito,ao réu cabe o ônus consistente nos fatosimpeditivos, modificativos e extintivos do direitodo autor, meio de defesa indireta.

A seguir, o conceito de cada um:

São fatos impeditivos aqueles queobstaculizam a pretensão deduzida peloautor, como, por exemplo, a exceptio onadimpleti contractus ou a exceptio non riteadimpleti contractus, o comportamentocontraditório (vinire contra factumproprium) [...]. Esclarecimentos: exceptioon adimpleti contractus ou exceptio nonrite adimpleti contractus, significa aexceção do contrato não cumprido (art. 476e 477 do CC), ocorre, em síntese, quando ocredor não cumpre sua parte na obrigação,mas exige que o devedor cumpra a sua. [...]São fatos modificativos do direito do autoros que alteram a substância do pedido,como por exemplo, o pagamento parcial, anovação etc. [...]. São fatos extintivos dapretensão do autor a decadência, aprescrição, o pagamento (NERY JÚNIOR;NERY, 2015, p. 996).

A regra estática de distribuição do ônus daprova remonta ao Imperador Justiniano, que, naoportunidade de seu “Corpus Juris Civilis” (ou

Código Justinianeu), afirmou “o encargo da provafica com aquele que afirma e não com o que nega.”.Buscou o Imperador evitar falsas acusações,exigindo provas de eventuais afirmações(FERREIRA; SOARES; SILVA, 2015, f. 95).

Ante a essa premissa, evoluiu a TeoriaEstática, para impor ao réu a prova dos fatosnegativos (impeditivos, modificativos e extintivos),porém só após do autor constituir seu direito.Percebe-se a situação de conforto do réu, que sónecessita agir por contraprova (prova que contrariauma anterior).

2.2 Do Surgimento da Teoria da DistribuiçãoDinâmica

Como foi demonstrado, o Brasil adotou aTeoria da Distribuição Estática, que tem comocritério a posição das partes no processo (autor eréu) e não a verdadeira situação das partes emconcreto, preestabelecendo o encargo probatório.

Imagine a seguinte hipótese: em uma açãode alimentos, a mãe e o filho (autores) exigempensão alimentícia, no montante de R$2.000,00,tendo em vista a “necessidade” (ausência de bense meios suficientes) dos autores e a “possibilidade”(sem desfalque do necessário ao seu sustento) dopai (réu). Para tanto, a mãe junta demonstrativoda referida “necessidade”, mas não juntademonstrativo de renda do pai (réu), algoextremamente importante para se auferir amencionada “possibilidade”, por não ter acesso atais documentos.

Pela teoria estática, o réu só necessita agirapós o autor constituir seu direito. Se o autor afirmaque necessita de R$2.000,00 de pensão alimentíciae que o réu tem capacidade de fornecer este valor,ele deve comprovar, “o encargo da prova fica comaquele que afirma e não com o que nega”, comojá disse o Código Justiniano.

Não obstante, percebe-se, claramente, queo réu tem melhores condições de comprovar suarenda, até porque é ele quem a aufere. Emcontrapartida, ao autor, em alguns casos, éimpossível ou muito difícil produzir esta prova.

Em casos similares, a Teoria da DistribuiçãoEstática se mostrou insuficiente, por ser rígida enão admitir modulações, não abrangendo asdiversas peculiaridades oriundas do caso concreto.

A sociedade e o direito material encontram--se em intensa transformação (cf. comentárioao art. 1.°), razão pela qual a regra geral

Page 114: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

114

disposta no art. 373 [do CPC de 2015](distribuição estática do ônus de provar) nãopode ser aplicada de modo inflexível, aqualquer hipótese (MEDINA, 2015, p. 629).

Com efeito, existem situações nas quais umaparte, onerada com a produção da prova, não temcondições concretas de produzi-la, e a outra, aprincípio desonerada, possui melhores condiçõesprovar, como no caso visto anteriormente. Nessescasos, a Teoria Estática se mostra insuficiente.

Dessa forma, surge a teoria da DistribuiçãoDinâmica do encargo probatório, tendo sido JorgeW. Peyrano, jurista argentino, quem a desenvolveu,a partir de um caso de erro médico em que a vítimado erro não tinha condições de desincumbir de seuônus probatório, pois o réu era quem detinha todosos documentos essenciais para a solução do litígio(prontuário e demais documentos).

Neste caso, julgado pelo próprio Jorge W.Peyrano, lançou-se mão da Teoria Dinâmica parasolucionar a controvérsia, atribuindo o ônus daprova que era da vítima, para o médico, pois eletinha melhores condições de produzi-la(PEIXOTO; MACEDO, 2014, p. 151-153).

Em suma, a teoria da Distribuição Dinâmicapermite ao Juiz, no caso concreto, analisando averdadeira situação das partes no processo,mediante uma decisão fundamentada, distribuir oencargo probatório para quem tem melhorescondições de produzir a prova.

3 ADEQUAÇÃO DA DISTRIBUIÇÃODINÂMICA NO ORDENAMENTOJURÍDICO BRASILEIRO

A noção do Devido Processo Legal comoum derivado do Princípio da Legalidade, em que oEstado e as partes devem observar as formas eprescrições legais, é incompleta. Com efeito, amoderna visão do Devido Processo Legal éassimilada a ideia do Processo Justo.

Faz-se modernamente uma assimilação daideia de devido processo legal à de processojusto. [...] A par da regularidade formal, oprocesso deve adequar-se a realizar o melhorresultado concreto, em face dos desígniosdo direito material. Entrevê-se, nessaperspectiva, também um aspectosubstancial na garantia do devido processolegal (THEODORO JÚNIOR, 2014, p. 85)

A ideia do Devido Processo Legal deve ser

refletida como uma conjugação e harmonizaçãode todos os princípios processuais constitucionais,efetivando um provimento jurisdicional compatívelcom a constituição e a noção de “justiça”, esta,medida pelos padrões objetivos do direito.

Com efeito, não se busca efetivar uma justiçasubjetiva e moral, mas a objetiva, que se traduz naefetivação dos direitos e garantias fundamentais,assegurando-se um tratamento isonômico àspessoas e conjugando, na ideia do Devido ProcessoLegal, outros princípios processuais.

Diante dessas ideias, o processo justo, emque se transformou o antigo devidoprocesso legal, é o meio concreto depraticar o processo judicial delineado pelaConstituição para assegurar o pleno acessoà Justiça e a realização das garantiasfundamentais traduzidas nos princípios dalegalidade, liberdade e igualdade. Nestaordem de ideias, o processo, para ser justo,nos moldes constitucionais do EstadoDemocrático de Direito, terá de consagrar,no plano procedimental: [...] a) o direito deacesso à Justiça; b) o direito de defesa; c) ocontraditório e a paridade de armas(processuais) entre as partes; d) aindependência e a imparcialidade do juiz;e) a obrigatoriedade da motivação dosprovimentos judiciais decisórios; f) agarantia de uma duração razoável, queproporcione uma tempestiva tutelajurisdicional. [...]. A justiça que se buscaalcançar no processo não é, naturalmente,aquela que a moral visualiza no planosubjetivo. É, isto sim, a que objetivamentecorresponde à prática efetiva das garantiasfundamentais previstas na ordem jurídicaconstitucional, e que, de maneira concretase manifesta como o dever estatal de“assegurar tratamento isonômico àspessoas, na esfera das suas atividadesprivadas e públicas”. Proporcionar justiça,em juízo, consiste, nada mais nada menos,que (i) distribuir igualmente “as limitaçõesda liberdade”, para que todos tenhamprotegida a própria liberdade; e (ii) fazercom que, sem privilégios e discriminações,seja dispensado tratamento igual a todosperante a lei [...] (THEODORO JÚNIOR,2014, p. 88).

É neste prisma, observando o princípio daIsonomia, Paridade de Armas e Acesso à Justiça,conjugando com a noção do Devido ProcessoLegal, que a teoria da Distribuição Dinâmica temlugar no Direito brasileiro.

Page 115: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

115

Com efeito, existem situações peculiares econcretas em que uma parte detém uma maiorcapacidade de produzir a prova necessária parasolucionar a controvérsia, enquanto, quase sempre,a outra tem diante de si uma prova de difícil ouimpossível produção (prova diabólica).

Apesar da adoção da distribuição estáticado ônus da prova tanto no direitoprocessual brasileiro, quanto em diversosordenamentos jurídicos estrangeiros, hámuito se tem percebido sua deficiência parasolucionar situações concretas de direitosubstancial, em especial, quando se estádiante da conhecida prova diabólica (STJ.REsp. 1364707/PE, Rel. Ministra NancyAndrighi).

Portanto, ora a Teoria da DistribuiçãoDinâmica irá estabelecer no caso concreto aIsonomia, por meio da Paridade de Armas, igualandoas partes em litígio; ora o Acesso à Justiça, poisimpor a uma parte um ônus probatório difícil ouimpossível, quando a outra parte tem melhorescondições, é o mesmo que lhe negar justiça.

De outro lado, o ônus da prova pode seratribuído de maneira dinâmica, a partir docaso concreto pelo juiz da causa, a fim deatender à paridade de armas entre oslitigantes e às especificidades do direitomaterial afirmado em juízo [...]. Providênciadessa corte visa superar a probatiodiabolica, possibilitando um efetivoacesso à justiça (MARINONI; MITIDIERO,2011, p. 337).

Outro prisma em que a Teoria Dinâmica temlugar no ordenamento jurídico brasileiro, é namoderna concepção do Princípio da Cooperação,fruto de uma análise constitucional do processo,quando os envolvidos (Juiz e Partes) sãocoadjuvantes na busca da justa prestaçãojurisdicional.

Neste sentido:

[...] sob influência da constitucionalizaçãodo processo, retirando o magistrado, nacondução do processo, de uma posiçãoacentuadamente assimétrica em relação àspartes para torná-los mais próximos:destarte, possibilita-se o diálogo, criandouma comunidade de trabalho entre as partese o magistrado para a obtenção de umadecisão adequada e mais condizente comuma democracia participativa (PEIXOTO;MACEDO, 2014, p. 28).

Não se trata de revogar o sistema do direitopositivo, mas de complementá-lo à luz deprincípios inspirados no ideal de umprocesso justo, comprometido sobretudocom a verdade real e com os deveres deboa-fé e lealdade que transformam oslitigantes em cooperadores do juiz noaprimoramento da boa prestaçãojurisdicional (THEODORO JÚNIOR, 2014,p. 601)

Sendo assim, pode-se afirmar que a TeoriaDinâmica é adequada ao ordenamento jurídicopátrio. Nesse sentido, preconizou a Ministra NancyAndrighi, do Superior Tribunal de Justiça, nojulgamento do Recurso Especial 1.286.704/ SP,oportunidade em que atuou como relatora:

[...] Embora não tenha sido expressamentecontemplada no CPC, uma interpretaçãosistemática da nossa legislação processual,inclusive em bases constitucionais, confereampla legitimidade à aplicação da teoria dadistribuição dinâmica do ônus da prova,segundo a qual esse ônus recai sobre quemtiver melhores condições de produzir aprova, conforme as circunstâncias fáticasde cada caso.

3.1 Compreensão da Noção de “ProvaDiabólica”

Quando se pensa na aplicação da teoriadinâmica, quase sempre se está diante de uma“prova diabólica”, expressão esta que traduz asituação em que a produção probatória seja difícilou impossível a uma das partes.

Ocorre, por exemplo, quando uma parte,desincumbida de produzir a prova, detém osdocumentos necessários para solucionar acontrovérsia, e a outra, incumbida de provar, nãotem acesso (ou o acesso é difícil) a tais documentos.

Assim, sempre que se está diante de um ônusprobatório difícil ou impossível, fala-se de uma“prova diabólica”, e quase sempre, pode-se aplicara Teoria Dinâmica, desde que haja uma parte commelhores condições de provar.

[...] Percebe-se a ocorrência da sinédoque,eis que se emprega a probatio diabolicapara descrever qualquer situação onde ainstrução seja muito difícil ou impossível.[...] vislumbrado pelo magistrado caso emque a prova se revela de muito difícil ouimpossível produção a uma das partes,enquanto para a outra há maior facilidade,

Page 116: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

116

deve proceder – em cumprimento ao direitode acesso à justiça, e aos princípios daisonomia e da cooperação intersubjetiva –à adequação do procedimento,estruturando a atividade probatória a partirda dinamização da carga da prova [...](PEIXOTO; MACEDO, 2014, p. 165).

4 APLICAÇÃO PRÁTICA DA TEORIADA DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA

Inicialmente, cumpre salientar, que a TeoriaDinâmica tem aplicação subsidiária ou excepcional,isto é, só tem lugar quando não cabe regra estática(prevista hoje no art. 373 do CPC).

Isto porque a regra estática, na qual o autordeve constituir seu direito e o réu, após o autorconstituir o direito, comprovar os fatosmodificativos, extintivos e impeditivos do direitoautor, além de traduzir segurança jurídica, denota“justiça” ao não admitir afirmações vazias e nãofundamentadas.

Não obstante, como se viu, existem situaçõesem que há uma desigualdade processual, estandouma parte em melhores condições de produzir aprova objeto da controvérsia.

Só então, verificada a situação concreta oraexposta é que tem lugar a Teoria da DistribuiçãoDinâmica, que vem não substituir a Teoria Estática,mas complementá-la, materializando os Direitos eGarantias Fundamentais (como isonomia, paridadede armas e acesso à justiça) no caso concreto.

Imperativo apontar que a aplicação datécnica processual da dinamização do ônusprobatório só deve ser utilizada in extremis,ou seja, quando for medida necessária àprestação adequada da tutela do direitomaterial, fora isso, sua aplicação noprocesso civil é ilícita (PEIXOTO;MACEDO, 2014, p. 162).

Com isso em mente, existem algumascondicionantes da aplicação da Teoria daDistribuição Dinâmica no caso concreto, até porqueo uso desmedido da referida teoria gera ilicitude.

4.1 Das Condicionantes da DistribuiçãoDinâmica

A primeira condicionante é a necessidade defundamentação ou motivação da decisão, que

advém da própria natureza subsidiária do institutoda Distribuição Dinâmica.

Com efeito, o Juiz deve demonstrarconcretamente, não genericamente, a necessidadede aplicação da Distribuição Dinâmica,oportunizando às partes verificar a necessidade eadequação de tal decisão, pois modificar o ônusprobatório influência diretamente na esfera jurídicadelas.

A fundamentação da decisão a propósitoda dinamização do ônus da prova tem deestar expressa nos autos, indicando, a uma,a razão pela qual não incide o art. 3334, CPC,e, a duas, os motivos que levaram o órgãojulgador a considerar que a parte a princípiodesonerada da prova em maior facilidadeprobatória diante do caso concreto.(MARINONI; MITIDIERO, 2011, p. 338).

Outra condicionante, ligada à primeira, é anecessidade de delimitação da decisão, que nãopode ser genérica. Deve o Juiz identificar a partecontroversa a ser esclarecida pela parte, atéporque, como se viu, a Teoria Dinâmica visacomplementar a Estática; não, substituí-la.

[...] a parte que suporta o redirecionamentonão fica encarregada de provar o fatoconstitutivo do direito do adversário; suamissão é a de esclarecer o fatocontrovertido apontado pelo juiz, o qualjá deve achar-se parcial ou indiciariamentedemonstrado nos autos, de modo que adiligência ordenada tanto pode confirmar atese de um como de outro dos litigantes;mas, se o novo encarregado do ônus daprova não se desempenhar a contento datarefa esclarecedora, sairá vitorioso aqueleque foi aliviado, pelo juiz, da prova completado fato controvertido; (THEODOROJÚNIOR, 2014, p. 602).

Realmente, o magistrado, na decisão quedinamiza o ônus da prova, deve especificarque a carga modificada é referente adeterminado fato probando, padecendo deerror in procedendo, por vício defundamentação, a decisão que se limita agenericamente inverter os ônus probatórios(PEIXOTO; MACEDO, 2014, p. 164).

E, por fim, é necessário, no caso concreto,haver a presença de uma parte em melhores

4 Dispositivo contido no Código de Processo Civil (CPC) de 1973. No CPC de 2015, o teor do art. 333, tem correspondência noart. 373.

Page 117: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

117

condições de se produzir a prova. Ou seja, umaparte que tenha capacidade de provar, não podendoa dinamização ensejar numa prova diabolicareversa:

Logo em seguida, deve-se aferir se a outraparte, a princípio desincumbida do encargoprobatório, encontra-se em uma posiçãoprivilegiada diante das alegações de fato aprovar [...] não poderá, de modo nenhum,dinamizar o ônus da prova se a atribuiçãodo encargo de provar acarretar umaprobatio diabolica reversa, isto é, incumbira parte contrária, a princípio desonerada,de uma prova diabólica (MARINONI;MITIDIERO, 2011, p. 338).

4.2 Precedentes nos quais se Aplicou aTeoria da Distribuição Dinâmica

Passar-se-á a analisar alguns precedentes emque se aplicou, concretamente, a Teoria Dinâmica,a começar, um oriundo do Superior Tribunal deJustiça (STJ).

PROCESSUAL CIVIL. PENHORA.DEPÓSITOS EM CONTAS CORRENTES.NATUREZA SALARIAL. IMPENHORA-BILIDADE. ÔNUS DA PROVA QUE CABEAO TITULAR. 1. Sendo direito doexequente a penhora preferencialmente emdinheiro (art. 655, inciso I, do CPC), aimpenhorabilidade dos depósitos em contascorrentes, ao argumento de tratar-se deverba salarial, consubstancia fatoimpeditivo do direito do autor (art. 333,inciso II, do CPC), recaindo sobre o réu oônus de prová-lo. 2. Ademais, à luz da teoriada carga dinâmica da prova, não se concebedistribuir o ônus probatório de modo aretirar tal incumbência de quem poderiafazê-lo mais facilmente e atribuí-la a quem,por impossibilidade lógica e natural, não oconseguiria. 3. Recurso especial conhecidoe parcialmente provido (STJ. REsp 619.148/MG, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão).5

Esclarecendo, houve uma decisão em queindeferiu o bloqueio de saldo bancário, tendo emvista a ausência de prova de que o valor aliencontrado não era proveniente de salário. Foiinterposto agravo de instrumento, por meio do qualse chegou ao STJ por via de Recurso Especial,em que se decidiu que a) o ônus de comprovar a

impenhorabilidade é de quem alega, in casu, doréu; b) pela teoria da distribuição dinâmica, o titulardos valores bloqueados possui maior facilidade emse comprovar sua natureza (se salarial ou não),tendo a outra parte uma “prova diabólica”,justificando assim a distribuição do ônus a “quem,poderia fazê-lo mais facilmente.”

Segundo, um caso de responsabilidade civilpor erro médico, julgado pelo Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul (TJRS).

EMBARGOS INFRINGENTES.RESPONSABILIDADE CIVIL. ERROMÉDICO. TEORIA DA CARGAPROBATÓRIA DINÂMICA.APLICABILIDADE DIANTE DOPECULIAR E ESCASSO MATERIALPROBATÓRIO. 1. A utilização da técnicade distribuição dinâmica da prova, que sevale de atribuir maior carga àquele litiganteque reúne melhores condições paraoferecer o meio de prova ao destinatárioque é o juiz, não se limita, no caso, apenasàs questões documentais, comoprontuários e exames, que se alegapertencem ao hospital, mas à prova do fatocomo um conjunto, ou seja, não se duvidaque ao médico é muito mais fácil decomprovar que não agiu negligentementeou com imperícia, porque aplicou a técnicaadequada, do que ao leigo demonstrar queesta mesma técnica não foiconvenientemente observada. 2. Quando aaplicação dos contornos tradicionais doônus probatório na legislação processualcivil não socorre a formação de um juízo deconvencimento sobre a formação da culpado médico, a teoria da carga dinâmica daprova, importada da Alemanha e daArgentina, prevê a possibilidade de atribuirao médico a prova da sua não-culpa, isto é,não incumbe à vítima demonstrar aimperícia, a imprudência ou a negligênciado profissional, mas a este, diante daspeculiaridades casuísticas, a sua diligênciaprofissional e o emprego da técnicaaprovada pela literatura médica. Destarte, aaplicação de dita teoria não corresponde auma inversão do ônus da prova, masavaliação sobre o ônus que competia a cadauma das partes. Incumbe, pois, ao médicoespecialista o ônus de reconstituir oprocedimento adotado, para evidenciar quenão deu causa ao ocorrido. 3. No caso dosautos, não se encontra justificativa razoável

5 Dispositivos contidos no Código de Processo Civil (CPC) de 1973. No CPC de 2015, o teor do art. 655, inciso I, temcorrespondência no art. 835, I; e o art. 333, inciso I, tem correspondência no art. 373, inciso I.

Page 118: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

118

para uma fratura no braço culminar com asua amputação, a não ser a culpa do médicoque nada fez a respeito, a despeito dossintomas indicativos da falta de melhora doautor ao longo da via crucis percorrida atédescobrir, em Porto Alegre, que a dificuldadede circulação do sangue, devido à mácolocação do gesso, conduziria à perda domembro. O resultado da omissão médicapossui maior peso, constituindo-se, dentrodesse quadro, em evidência suficiente parasua condenação, não se concebendo, semexplicação plausível, que uma fratura semgravidade venha a causar a perda de ummembro. EMBARGOS INFRINGENTESDESACOLHIDOS, POR MAIORIA DEVOTOS. (TJRS. Embargos Infringentes n.º70017662487, Relator Odone Sanguiné).

Esclarecendo, no presente caso o autor sofreuuma fratura no braço esquerdo em decorrência deuma queda, levado ao hospital onde o réu(embargante no precedente transcrito) engessouseu braço. Posteriormente, em razão de sintomas,demonstrando a falta de melhora, o autor foiencaminhado a outro hospital, onde constatou anecessidade de amputar seu braço, devido àcolocação apertada do gesso, que gerou umadificuldade de circulação sanguínea. Diante destecaso, à época do dano não se encontrava em vigoro CDC, foi aplicada a Teoria da DistribuiçãoDinâmica, como se verifica pela ementa acima,retirada do voto do Desembargador OdoneSanguiné, atribuindo ao réu (médico) o ônus decomprovar sua “não-culpa”, pois detinha maiorescondições para tanto.

Aqui, é interessante destacar umadiferenciação da Teoria da Distribuição Dinâmicada Técnica da Inversão do Ônus da Prova, feitapelo eminente desembargador citado, “a aplicaçãode dita teoria não corresponde a uma inversão doônus da prova, mas avaliação sobre o ônus quecompetia a cada uma das partes.”. Percebe-senessa afirmativa uma característica importante: aTeoria Dinâmica não analisa a posição das partesem juízo, mas sua situação.

Com efeito, a Teoria Dinâmica é mais amplaque a Inversão do Ônus da Prova, pois não importase a distribuição será em favor do autor ou réu(consumidor ou fornecedor), se analisa quem, nocaso concreto, está em melhores condições deprovar, “avaliando o ônus que compete a cada umadas partes.”.

Um interessante exemplo, que evidencia estadiferença, é o seguinte, oriundo novamente no

Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,que utilizou a Teoria Dinâmica para impedir que aTécnica de Inversão prevista no CDC (art. 6.º,inciso III) imponha uma “prova diabólica” reversa.

APELAÇÃO CÍVEL. DANO MORAL.CONTRATO DE FINANCIAMENTO COMALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. LIGAÇÕESTELEFÔNICAS DE COBRANÇA.INEXISTÊNCIA DE ABALO MORAL.ÔNUS DA PROVA. PROVA NEGATIVA.IMPOSSIBILIDADE. DANO MORAL.Ligações telefônicas de cobrança semprova de repercussão no meio social, nãotem o condão de gerar dano moralconfigurador do dever de indenizar. Cabível,excepcionalmente, quando atinge direito dapersonalidade. INVERSÃO DO ÔNUS DAPROVA. Não se pode incumbir à parte ré,em tese, a prova de fato negativo, nemmesmo em se tratando de relação deconsumo, quando a sua produção éimpossível. Diz-se em tese porque, pelateoria da carga dinâmica da prova, épossível que se atribua à parte o ônus defazer a prova do fato negativo, quando,diante das especificidades da relação e daviabilidade concreta de sua produção, umadas partes detenha condições de produzi--la, o que não é o caso dos autos. APELODESPROVIDO. (TJRS. Apelação Cível n.º70037339751, Relator Dorval BráulioMarques).

Como esclareceram Peixoto e Macedo(2014, p. 174)

[...] tendo em vista a utilidade pragmáticadessa teoria como forma de proporcionaruma instrução – e portanto, um julgamento– mais equânime, a teoria da distribuiçãodinâmica do ônus probandi vem sendoutilizada para obstar a inversão do encargoprobatório pelo art. 6.°, inciso VIII, doCódigo de Defesa do Consumidor, quandoessa inversão der ensejo a uma hipótese depobatio diabolica.

Por fim, este último julgado oriundo doSuperior Tribunal de Justiça (STJ),

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVOREGIMENTAL NO AGRAVO EMRECURSO ESPECIAL. EMPRÉSTIMOCOMPULSÓRIO SOBRE ENERGIAELÉTRICA. EXIBIÇÃO DEDOCUMENTOS PARA A VERIFICAÇÃODOS VALORES RECOLHIDOS NASCONTAS DE ENERGIA ELÉTRICA.

Page 119: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

119

RESPONSABILIDADE DA ELETROBRÁS.1. Pode o juiz ordenar que a Eletrobrás exibadocumento que se ache em seu poder, a fimde permitir-se que sejam efetuadoscorretamente os cálculos dos valoresdevidos em razão da correção monetária dosvalores recolhidos a título de empréstimocompulsório. [...] 2. Não há qualquerilegalidade na determinação judicial paraque a Eletrobrás, ora recorrente, apresenteos documentos mencionados. Isso porquea teoria de distribuição dinâmica do encargoprobatório propicia a flexibilização dosistema, e permite ao juiz que, diante dainsuficiência da regra geral prevista no art.333 do CPC, possa modificar o ônus daprova, atribuindo-o à parte que tenha melhorcondições de produzi-la. Logo, não há quese falar em contrariedade aos arts. 283, 333,I, e 396 do CPC. 3. Agravo regimental nãoprovido. (STJ. AgRg no AREsp 216.315/RS,Rel. Ministro Mauro Campbell Marques).6

Neste caso, o Ministro Mauro Campbellinvocou a Teoria Dinâmica para respaldar oentendimento do Juízo que determinou à Eletrobrásexibir os documentos, necessários para solucionara controvérsia, que se achavam em seu poder.Veja-se que uma das partes (Eletrobrás) estavaem melhores condições de se produzir a prova (poisdetinha os referidos documentos), enquanto a outraestava diante de uma “prova diabólica” (não detinhaos documentos), configurando a necessidade deflexibilizar o ônus da prova.

4.3 Do Momento de Aplicação da Teoria edos Recursos Cabíveis

Finalizando a parte de aplicação prática daTeoria Dinâmica, faz-se necessário analisar omomento processual da dinamização e os recursoscabíveis de tal decisão.

Primeiramente, o Juiz, ao dinamizar o ônusprobante deve instaurar o contraditório, ou seja,dar oportunidade à parte se desincumbir do novoencargo probatório ou, se desejar, recorrer.

a redistribuição não pode representarsurpresa para a parte, de modo que adeliberação deverá ser tomada pelo juiz,com intimação do novo encarregado doônus da prova esclarecedora, a tempo deproporcionar-lhe oportunidade de se

desincumbir a contento do encargo; nãose tolera que o juiz, de surpresa, decidaaplicar a dinamização no momento desentenciar; o processo justo é aquele quese desenvolve às claras, segundo osditames do contraditório e ampla defesa,em constante cooperação entre as partes eo juiz e, também, entre o juiz e as partes [...].(THEODORO JÚNIOR, 2014, p. 602)

Como já descrito, a Distribuição Dinâmica éum instituto subsidiário e excepcional, sendo assim,caso seja aplicado, não pode representar umasurpresa à parte onerada com a eventual produçãoprobatória. Como descrito no trecho anterior, oprocesso deve se desenvolver “às claras”,obedecendo ao contraditório e à ampla defesa.

Sendo assim, o momento adequado de sedinamizar o ônus da prova seria na fase desaneamento do processo, momento em que o Juizdeverá “I - resolver as questões processuaispendentes, se houver; II - delimitar as questões defato sobre as quais recairá a atividade probatória,especificando os meios de provas admitidos; III -definir a distribuição do ônus da prova, observadoo art. 373; IV - delimitar as questões de direitorelevantes para a decisão do mérito; V - designar,se necessário, audiência de instrução ejulgamento.” (art. 357 do CPC de 2015), dandooportunidade à parte para se desincumbir do ônusprobatório. Sendo posterior, deve-se reabrir à parteoportunidade de se produzir as provas.

Em termos simples, o momento ideal seriana fase de saneamento, porém, notando anecessidade de se dinamizar o ônus probatórioposteriormente, nada impede que o Juiz assim ofaça, desde que abra à parte nova oportunidadede produzir as provas.

Esse entendimento encontra respaldo naJurisprudência do STJ, como se verifica, mutatismutandis, pelo julgado abaixo:

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR.RESPONSABILIDADE POR VÍCIO NOPRODUTO (ART. 18 DO CDC). ÔNUS DAPROVA. INVERSÃO ‘OPE JUDICIS’ (ART.6.º, VIII, DO CDC). MOMENTO DAINVERSÃO. PREFERENCIALMENTE NAFASE DE SANEAMENTO DO PROCESSO.[...] Se o modo como distribuído o ônus daprova influi no comportamento processualdas partes (aspecto subjetivo), não pode a

6 Dispositivos contidos no Código de Processo Civil (CPC) de 1973. No CPC de 2015, o teor do art. 333 tem correspondênciano art. 373; o art. 283 tem correspondência no art. 320; e o art. 396 tem correspondência no art. 434.

Page 120: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

120

inversão ‘ope judicis’ ocorrer quando dojulgamento da causa pelo juiz (sentença)ou pelo tribunal (acórdão). A inversão ‘opejudicis’ do ônus probatório deve ocorrerpreferencialmente na fase de saneamentodo processo ou, pelo menos, assegurando--se à parte a quem não incumbia inicialmenteo encargo, a reabertura de oportunidadepara apresentação de provas. Divergênciajurisprudencial entre a Terceira e a QuartaTurma desta Corte. RECURSO ESPECIALDESPROVIDO. (STJ. REsp 802.832/MG, Rel.Ministro Paulo de Tarso Sanseverino).

Nesse mesmo sentido, observa José GarciaMedina

Solução diversa, por surpreender a parte,implicaria em violação ao princípio docontraditório [...] Por isso, caso a inversãonão tenha sido determinada na fase desaneamento do processo, deverá serreaberta à parte a oportunidade de seproduzir provas [...] (MEDINA, 2015, p. 632).

Por outro lado, a parte interessada, diante dadecisão que determina a dinamização probatória,tem, logicamente, oportunidade de se insurgir,momento em que poderá desafiar tal decisão pormeio do agravo de instrumento, pois se trata de“decisão suscetível de causar à parte lesão gravee de difícil reparação [...].” (art. 527, II, do CPCde 1973, sem correspondência no CPC de 2015).

Nesse sentido,

Em decisões que, por economia processuale pelo direito à prestação jurisdicionalcélere, se faz imprescindível que, para evitarimpertinentes dilações futuras, agrave-sede instrumento, possibilitando a análiseimediata pelo tribunal de matéria preliminara correição de todo o restante do processo.[...] e a mesma ratio deve ser compartilhadacom a técnica da dinamização, porquantotem relação de preliminariedade com a faseinstrutória, sem dúvida a mais custosa detodo o processo (PEIXOTO; MACEDO,2014, p. 203/204).

Cumpre informar que, com a previsão daTeoria Dinâmica no Novo CPC, como será visto àfrente, perfeitamente cabível também o RecursoEspecial, com base no art. 105, III, alínea “a”, CF/88 “julgar, em recurso especial, as causasdecididas, em única ou última instância, pelosTribunais Regionais Federais ou Tribunais dosEstados [...] quando a decisão recorrida: [...] a)

contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhesvigência.”.

E, por fim, há quem também defenda ocabimento do Recurso Extraordinário, em virtudedos Princípios Constitucionais que circundam aTeoria Dinâmica, verbis:

[...] É dizer, no Recurso Extraordinário épossível discutir se houve corretaconcretização dos princípios e aplicação dadinamização a partir dos fatos X ou Y, tidospor existentes pela decisão recorrida(PEIXOTO; MACEDO, 2014, p. 205).

5 DA PREVISÃO DA TEORIA DINÂMICANO NOVO CPC

O Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015, contém em seu bojo a Teoria da DistribuiçãoDinâmica, verbis:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:I - ao autor, quanto ao fato constitutivo deseu direito;II - ao réu, quanto à existência de fatoimpeditivo, modificativo ou extintivo dodireito do autor.§ 1.º Nos casos previstos em lei ou diantede peculiaridades da causa relacionadas àimpossibilidade ou à excessiva dificuldadede cumprir o encargo nos termos do caputou à maior facilidade de obtenção da provado fato contrário, poderá o juiz atribuir oônus da prova de modo diverso, desde queo faça por decisão fundamentada, caso emque deverá dar à parte a oportunidade dese desincumbir do ônus que lhe foiatribuído.§ 2.º A decisão prevista no § 1.º deste artigonão pode gerar situação em que adesincumbência do encargo pela parte sejaimpossível ou excessivamente difícil.

Com efeito, no art. 373, I e II, do NCPC,tem-se a previsão da Teoria Estática como regra,ou seja, ao autor cumpre constituir seu direito e aoréu comprovar os fatos modificativos, impeditivose extintivos do direito do autor, até aqui, está igualao art. 333, do CPC de 1973. Não obstante, no §1.º têm-se exceções à regra anterior, passando aser possível a fixação do ônus de maneira diversa,“Nos casos previstos em lei ou diante depeculiaridades da causa relacionadas àimpossibilidade ou à excessiva dificuldade decumprir o encargo nos termos do caput ou à maiorfacilidade de obtenção da prova do fato contrário,

Page 121: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

121

poderá o juiz atribuir o ônus da prova de mododiverso [...]”. Têm-se, aqui, as hipóteses deinversão do ônus da prova previstas em lei, comoa inversão prevista no art. 6.º, VIII, do Código deDefesa do Consumidor (CDC), e a possibilidadede se aplicar a Teoria da Distribuição Dinâmica.

Primeiramente, pode-se destacar asubsidiariedade da Teoria Dinâmica, que, como jáse afirmou, não veio substituir a Teoria Estática,mas complementá-la, nos casos em que ela(Estática) se mostrou insuficiente.

Assim, no caso concreto (“diante daspeculiaridades da causa”) se uma das partes estiverdiante de uma uma “prova diabólica”(impossibilidade ou excessiva dificuldade decumprir o encargo) ou a outra parte, maiorescondições de se produzir a prova (à maiorfacilidade de obtenção da prova do fato contrário),o juiz poderá se valer da Teoria da DistribuiçãoDinâmica (“atribuir o ônus da prova de mododiverso”).

Tal disposição está em consonância com odisposto até aqui, pois se viu que a Teoria Dinâmicapermite que, no caso concreto, analisando averdadeira situação das partes no processo e as“peculiaridades” da causa posta em juízo, distribuiro encargo probatório para quem tem melhorescondições de produzir a prova, efetivando assim aisonômica processual, paridade de armas, o acessoà Justiça e a cooperação processual, que aliás,quanto a última, tem previsão expressa no novoCPC, verbis:

Art. 6.º Todos os sujeitos do processodevem cooperar entre si para que seobtenha, em tempo razoável, decisão demérito justa e efetiva.

Outrossim, em todos os casos práticos quese viu até aqui, nos quais se aplicou a TeoriaDinâmica, estava presente a “prova diabólica”, ouseja, uma prova de difícil ou impossíveldemonstração a uma das partes, traduzindo ainsuficiência da Teoria Estática, como bempreconizou a Ministra Nancy Andrighi, do STJ(REsp 1364707/PE) em seu voto, neste jácolacionado julgado:

Apesar da adoção da distribuição estáticado ônus da prova tanto no direitoprocessual brasileiro, quanto em diversosordenamentos jurídicos estrangeiros, hámuito se tem percebido sua deficiência parasolucionar situações concretas de direito

substancial, em especial, quando se estádiante da conhecida prova diabólica.

Além disso, preocupou-se o novo CPC coma prova diabólica reversa, ao conceber no § 2.º domesmo artigo 373 que a “decisão prevista no § 1.ºdeste artigo não pode gerar situação em que adesincumbência do encargo pela parte sejaimpossível ou excessivamente difícil.”.

Assim, não pode o Juiz distribuir o ônus daprova de forma que gere à outra parte, a princípiodesobrigada, uma prova diabólica, ou seja, a parteonerada com o distribuição dinâmica, deve tercondições de produzir a prova. Cumpre novamentecolacionar a seguinte lição:

Logo em seguida, deve-se aferir se a outraparte, a princípio desincumbida do encargoprobatório, encontra-se em uma posiçãoprivilegiada diante das alegações de fato aprovar[...] não poderá, de modo nenhum,dinamizar o ônus da prova se a atribuiçãodo encargo de provar acarretar umaprobatio diabólica reversa, isto é, incumbira parte contrária, a princípio desonerada,de uma prova diabólica (MARINONI;MITIDIERO, 2011, p. 338).

Nesta esteira de consonância, constata-se anecessidade de fundamentação da decisão quedistribuir diversamente o ônus probante, algo quenem precisava estar positivado, e a proibição dasurpresa, art. 373, §1.º, “ [...] poderá o juiz atribuiro ônus da prova de modo diverso, desde que ofaça por decisão fundamentada, caso em quedeverá dar à parte a oportunidade de sedesincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”.

Remete-se o leitor à leitura do item 4.1, noqual se falou acerca das “condicionantes da TeoriaDinâmica”, afirmando a necessidade de umadecisão fundamenta concretamente, nãogenericamente, identificando a parte controversaa ser esclarecida.

Complementando, remete-se o leitor tambémao item 4.3, quando se falou do momento deaplicação da Teoria Dinâmica, demonstrando quea decisão que distribui diversamente o ônus nãopode representar surpresa à parte, devendo ela ter“oportunidade de se desincumbir do ônus que lhefoi atribuído.”.

Por isso, que o momento adequado de sedinamizar o ônus da prova é na fase de saneamentodo processo, momento em que o Juiz agirá

Page 122: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

122

conforme o art. 357 do CPC de 20157, dandooportunidade a parte desincumbir de seu ônusprobatório. É o que se vê, a seguir:

Art. 357. Não ocorrendo nenhuma dashipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, emdecisão de saneamento e de organizaçãodo processo[...]III - definir a distribuição do ônus da prova,observado o art. 373;

Em suma, o novo CPC respeitou todas ascondicionantes da Teoria Dinâmica (tema do item4.1 deste texto), inclusive a temporal (item 4.3),além de observar a subsidiariedade e segurançajurídica, notadamente ao exigir decisãofundamentada e ao proibir a “prova diabólica”reversa, estando rente com a doutrina ejurisprudência utilizada neste esboço.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisou-se a Teoria da DistribuiçãoDinâmica em quatro ópticas, seu surgimento (item2), adequação (item 3), aplicação (item 4) e previsãolegal (item 5).

Em síntese, o surgimento da Teoria daDistribuição Dinâmica se deu diante dainsuficiência da Teoria Estática, que por serinflexível, não abrange todas as peculiaridadesoriundas do caso concreto. A adequação aoordenamento jurídico brasileiro tem origem nosPrincípios da Isonomia, Paridade de Armas, Acessoà Justiça, Devido Processo Legal e CooperaçãoProcessual. Já quanto à sua aplicação, constou-seque deve se dar observando certas condicionantes(motivação, delimitação e condição), além dasubsidiariedade, proibição da surpresa e ocabimento do agravo de instrumento da decisãoque dinamizar o ônus da prova. Além disso, foicolacionado precedentes onde se aplicouconcretamente a Teoria Dinâmica, demonstrandosua utilidade prática em diversas situações fáticas.

Por último, foi analisado o art. 373 do novo Códigode Processo Civil (Lei 13.105/2015), que positivoua Teoria Dinâmica, e constatou sua consonânciacom o disposto no presente esboço.

Por oportuno, cumpre salientar que houvediversos momentos que seria, no mínimo,interessante alongar o diálogo e tecerconsiderações de maneira mais aprofundada, comopor exemplo no que toca aos princípios processuaisque circundam a Teoria Dinâmica, na análise deoutros julgados, análise da referida teoria na searatributária (ante as presunções que militam em favordos créditos públicos), etc.

Não obstante, ante a via restrita do artigocientífico, não foi possível alongar o diálogo comodisposto acima, nem enfrentar as críticas à TeoriaDinâmica, que, embora minoritárias (o STJ, comose demonstrou, já pacificou o entendimento de quea Teoria Dinâmica é adequada ao ordenamentojurídico brasileiro, nos moldes dispostos nestetrabalho), bem fundamentadas (NERY JÚNIOR;NERY, 2015, p. 997).

Com efeito, quanto às referidas críticas àTeoria Dinâmica, cumpre salientar que não seprocurou fazer do presente esboço jurídico umringue de ideias, colocando, como ocorregeralmente, uma de um lado e outra ideia contráriaem lado oposto para, ao fim, prolatar umaconclusão de qual seria mais adequada. Pois, alémde ser reducionista o pensamento de que artigos,monografias, etc. servem para colocar correntescontrárias em plano, para simplesmente escolheruma ao fim, este nunca foi o objetivo.

Enfim, cumpre ressaltar que, não se teve apretensão de esgotar o tema, mas de contribuircom seu entendimento e aplicação, reservando, aofuturo, a oportunidade de manifestar-se de formamais abrangente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.

7 No CPC de 1973, constava: “Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causasobre direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a qualserão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir.§ 1.º Obtida a conciliação, será reduzida a termo e homologada por sentença. § 2.º Se, por qualquer motivo, não for obtida aconciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a seremproduzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário. § 3.º Se o direito em litígio não admitir transação, ouse as circunstâncias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde logo, sanear o processo e ordenara produção da prova, nos termos do § 2.º”.

Page 123: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

123

BRASIL. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973.Institui o Código de Processo Civil. DiárioOficial [da] República Federativa do Brasil,Brasília, DF, 17 jan. 1973.

BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990.Dispõe sobre a proteção do consumidor e dáoutras providências. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,12 set. 1990, e retificado no Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,10 jan. 2007.

BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.Código de Processo Civil. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,17 mar. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg noAREsp 216.315/RS. Relator Ministro MauroCampbell Marques. Segunda Turma. Julgamentoem 23 out. 2012. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,Diário da Justiça Eletrônico, 6 nov. 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RecursoEspecial 422.778/SP. Relator Ministro CastroFilho. Terceira Turma. Julgamento em 19 jun.2007. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, Diário daJustiça Eletrônico, 27 ago. 2007, p. 220.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RecursoEspecial 619.148/MG. Relator Ministro LuísFelipe Salomão. Quarta Turma. Julgamento em20 maio 2010. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, Diário daJustiça Eletrônico, 1 jun. 2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RecursoEspecial 802.832/MG. Relator Ministro Paulo deTarso Sanseverino. Segunda Seção. Julgamentoem 13 abr. 2011. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,Diário da Justiça Eletrônico, 21 set. 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RecursoEspecial 840.690/DF. Relator Ministro MauroCampbell Marques. Segunda Turma. Julgamentoem 19 ago. 2010. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,

Diário da Justiça Eletrônico, 28 ago. 2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RecursoEspecial 1.286.704/SP. Relatora Ministra NancyAndrighi. Terceira Turma. Julgamento em 22out. 2013. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, Diário daJustiça Eletrônico, 28 out. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RecursoEspecial 1.364.707/PE. Relatora Ministra NancyAndrighi. Terceira Turma. Julgamento em 25fev. 2014. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, Diário daJustiça Eletrônico, 10 mar. 2014.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituiçõesde direito processual civil. v. III. 4. ed. SãoPaulo: Malheiros, 2004.

FERREIRA, Mary Vânia Nogueira; SOARES,Meline Lopes; SILVA, Rafael Moreira da.Regras do corpus iuris civilis em comparação aoatual ordenamento jurídico brasileiro. Disponívelem: <https://periodicos.set.edu.br/index.php/fitshumanas/article/view/580/384>. Acesso em:15 out. 2015.

MARINONI, Luiz; MITIDIERO, Daniel.Código de processo civil: comentado artigo porartigo. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2011.

MEDINA, José Miguel Garcia. Novo códigode processo civil comentado. 3. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2015.

NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria deAndrade. Comentários ao código de processocivil. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2015.

PEIXOTO, Ravi; MACEDO, Lucas. Ônus daprova e sua dinamização. Salvador:JusPodivm, 2014.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul. Agravo de Instrumento70036390433. Décima Primeira Câmara Cível.Relator Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil.Julgamento em 30 jun. 2010. Diário Oficial[do] Estado do Rio Grande do Sul, Diário daJustiça, 7 jul. 2010.

Page 124: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

124

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul. Apelação Cível70037339751. Décima Quarta Câmara Cível.Relator Dorval Bráulio Marques. Julgamento em26 ago. 2010. Diário Oficial [do] Estado doRio Grande do Sul, Diário da Justiça, 16 set.2010.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul. Embargos Infringentes

70017662487. Quinto Grupo de CâmarasCíveis. Relator Odone Sanguiné. Julgamentoem 31 ago. 2007. Diário Oficial [do] Estadodo Rio Grande do Sul, Diário da Justiça, 8out. 2007.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso dedireito processual civil: teoria geral do direitoprocessual civil e processo de conhecimento. v.1. 55. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

Page 125: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

125

AUTOR CONVIDADO

Page 126: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

126

Page 127: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

127

RESUMO

O discurso jurídico não é um fenômeno ilimitado,tampouco simples, demandando a incidência decritérios que busquem primordialmente a correçãodas atividades promovidas no seu âmbito, sobretudodas decisões jurídicas enquanto práticaspacificadores de conflitos. É neste contexto quesurge a Teoria da Argumentação Jurídica deRobert Alexy, que propôs critérios justificadorespara garantir a racionalidade do discurso jurídico,estancando eventuais malefícios causados porsubjetivismos formadores de arbitrariedades.

Palavras-chave: Teoria Geral do DiscursoRacional Prático. Teoria da ArgumentaçãoJurídica. Formas de Argumentação. Justificação.Justificação Interna. Justificação Externa.

ABSTRACT

The legal discourse is not an unlimited phenomenon,either simple, requiring the incidence of criteria thatprimarily seek correction of activities promotedunder it, especially the legal decisions aspeacemakers conflict practices. It is in this contextthat the Theory of Legal Argumentation of RobertAlexy, who proposed justifiers criteria to ensurethe rationality of legal discourse, halting any harmcaused by subjectivism makers arbitrariness.

Keywords: General Theory of Rational DiscoursePractical. Theory of Legal Argumentation. Formsof argumentation. Justification. Internal

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA DE ROBERT ALEXY:análise das bases teórico-filosóficas e estudo de suas regras formadoras

Givanildo Nogueira Constantinov1

justification. External justification.

1 INTRODUÇÃO

Fundadas na importante posição ocupada pelaatividade jurídica na preservação do equilíbriopolítico e social e até mesmo impulsionadas pelatraumática experiência de um sistema judicialinquisitorial, em que toda a prestação jurisdicional,invocada para resolver toda a sorte de conflitos,era dotada de decisões injustificadas ou maljustificadas, resultado de arbitrariedades, as ciênciasmodernas (Ciências Sociais, Filosofia do Direito eoutras) buscaram entender o processo discursivojurídico e, conhecendo-o, estabelecer critérios cujaobservação impusesse limites à inevitávelpropensão ao subjetivismo.

Foi neste cenário que, a partir de umminucioso estudo da realidade jurídica e social edas soluções que várias correntes ofereciam paraa problemática, Robert Alexy procurou expor osdefeitos crônicos da decisão jurídica ilimitada,passando a propor uma metodologia que, por meioda observação de critérios justificadores, fossesuficiente para mitigar os efeitos deletérios dosubjetivismo e direcionar o decisum aoracionalismo. Procurou-se a propensão à correção.

Com isso, Alexy promoveu uma verdadeiramatematização da metodologia de criação dedecisões judiciais ao equacionar vários critériosjustificadores de atenção obrigatória pelointérprete, tornando, de certa forma, rígida aobservância da argumentação a que o julgador deve

1 Doutorando em Direito pela FADISP – Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo, Mestre em Direito pela UniversidadeEstadual de Maringá (UEM) e, Especialista em Direito Ambiental pela mesma Universidade. Assina a obra “Biossegurança &patrimônio genético: tutelas de urgência, responsabilidade civil, responsabilidade social, proteção do patrimônio genético”(2007), além de diversos artigos. É autor do capítulo denominado “Novos paradigmas do crédito ambiental” na obra “Direitoambiental: o meio ambiente e os desafios da contemporaneidade” (2010), do capítulo “A defesa em juízo do meio ambiente:aspectos das ações e do processo”, na obra “Tutela jurídica do meio ambiente e desenvolvimento” e também do capítulo “Ocrime de violação de direito autoral: reflexões sobre o acesso à justiça e estudo à luz do princípio constitucional da intervençãomínima”, na obra “A constitucionalização do direito: seus reflexos e o acesso à justiça” (2015). É Magistrado de carreira noEstado do Paraná.

Page 128: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

128

se prestar. Ofereceu-se, com a argumentaçãojurídica de Alexy, meios objetivos de majoritáriocunho de inferência lógico-normativa para legitimara decisão judicial, ante a racionalidade que agoralhe seria reinante.

A Teoria da Argumentação Jurídica, em razãoda demonstrada importância de seu objetivoprimordial e em virtude da essencialidade ecomplexidade das regras que a compõe, mereceestudo atencioso e adequado para que seja possíveldecifrar todas as formas de argumento a seremempregadas na decisão, sem que existam lacunasou imprecisões justificativas. É o que se tem emfoco.

Desta forma, visando à escorreita exibiçãoda matéria abordada, em consonância com a ordemapresentada na obra de Alexy, a exposição, nãosem antes tecer breves considerações sobre ainfluência habermasiana, partirá da Teoria Geraldo Discurso Racional Prático e de suas regrasnorteadoras, com especial atenção à transição dodiscurso prático geral para o jurídico, e, após aapresentação da visão geral sobre o discursojurídico, discorrer-se-á sobre as regras dejustificação inerentes à argumentação jurídica deAlexy.

2 A INFLUÊNCIA DA TEORIACONSENSUAL DA VERDADE DEHABERMAS E A TEORIA GERAL DODISCURSO RACIONAL PRÁTICOCOMO ALICERCE PRINCIPAL DATEORIA DA ARGUMENTAÇÃOJURÍDICA

A Teoria Consensual da Verdade deHabermas2 é um dos pilares a partir do qual Alexyprocurou desenvolver um método para potencializara busca da correção no discurso jurídico, exprimidana construção da Teoria da Argumentação Jurídica.Nesse estádio, avaliou-se a posição da verdade nodiscurso de uma maneira geral e a suaincongruência teórica com a racionalidade, namedida em que, conforme sintetiza Alexy,Habermas afirmava que a condição para a verdadedas afirmações é o acordo potencial de todas asoutras pessoas. Deste modo, a concordânciapessoal de todos seria, nas afirmações não-

-normativas, condição para a verdade e, nasafirmações normativas, condição para a correção.Surgem, de imediato, dois problemas: aconcordância de todos é inatingível, eis que nãosão todos que podem ser partes integrantes dodiscurso (nesse ponto Alexy menciona os mortos)e podem existir vícios que comprometam eventualacordo entre os partícipes, como o erro ou aimposição.

Na tentativa de enfrentar tais deficiências,Habermas traz a força da fundamentação à suateoria e define que a verdade, ou o consenso sobrea verdade, deve ser calcada no consenso bemfundamentado. A partir dessa definição, tem-seque a verdade não mais depende da efetivaçãodesse consenso – tido como a concordância detodos –, mas é perseguida pela potencialidade deexistência deste consenso, o que é ilustrado pelaideia de que sempre que se entrar em um discurso,sejam quais forem as condições, pode-se chegar aum consenso, provando-se ser um consenso bemfundamentado – ante, repita-se, a suapotencialidade de sê-lo. A verdade seria aquilo queé socialmente difundido e aceito.

A evolução natural desta teoria e daidentificação e tentativa de solução dos seusproblemas se revelou como, pode-se dizer, embriãodo que buscava Alexy, porquanto Habermasperseguiu uma lógica do discurso para esclarecertodo esse contexto. E, no cerne dessa lógica,identificou o argumento como meio justificador deafirmações. Assim, argumento e justificação seentrelaçaram. Tal é o grau de congruência entre aTeoria Consensual da Verdade de Habermas e aTeoria da Argumentação Jurídica de Alexy que háquem diga que elas se mesclam. Em tempo: podeser feita referência a esta construção de Habermascomo, de certa forma, fase embrionária para acriação de Alexy porque houve a necessidadepremente de se encontrar o argumento como formade conceder validade ao discurso, o que na teoriade Alexy será atingido com a correção econsequente racionalização.

Sem se desprezar a fundamental contribuiçãodos ensaios de Habermas sobre o consenso daverdade para o estudo de Alexy, foi a Teoria Geraldo Discurso Racional Prático a protagonista, comoalicerce inicial, para a criação de Alexy. Segundo

2 Contrastando conceitos existentes na Teoria da Correspondência da Verdade – que afirmava, conforme sintetizou Alexy, que averdade pode ser definida como uma correspondência entre a sentença e o fato, sem, contudo, explicar suficientemente o quevem a ser o fato – e procurando superá-los, Habermas distinguiu fatos (que ocupam posição central na Teoria da Correspondên-cia da Verdade) e objetos.

Page 129: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

129

o filósofo, a teoria do discurso racional é uma teorianormativa do discurso cujas regras podem serentendidas como normas para a justificação denormas, o que, como bem definiu, tem comodeficiência teórica crônica a propensão àjustificação infinita, eis que as regras que justificamoutras regras precisariam de um terceiro grupo deregras para, por sua vez, justificá-las; e assim pordiante. Para contornar essa aparência dejustificação normativa do discurso contínua eilimitada, Alexy apresenta, alertando para o fatode que é concebível que existam outros métodos,quatro caminhos: a definição das regras de discursocomo regras técnicas; a demonstração de quecertas regras de fato têm validade; o jogo delinguagem; e, por último, a demonstração de que avalidade de certas regras é uma condição dapossibilidade de comunicação linguística.

As regras que sustentam a racionalidade dodiscurso prático, por sua vez, são qualificadas porAlexy como regras básicas (ou fundamentais),regras da racionalidade, regras para partilhar acarga de argumentação, regras de justificaçãoe regras de transição. A inexistência de tais regrasfatalmente afasta a correção do discurso,comprometendo a racionalidade.

O primeiro grupo de regras (regras básicas)é apresentado como condição prévia para quediscussões sobre a verdade e sobre a correçãosejam válidas; nele estão contidas as seguintesregras:

a) nenhum orador pode se contradizer (é oprincípio da não-contradição, como expressãode regra da lógica);b) todo orador apenas pode afirmar aquiloem que crê;

Esta regra exprime um critério de forteinfluência de Habermas e sua pretensão deveracidade. Aqui, Alexy faz duas importantesobservações: a ausência de uma regra que exijasinceridade impossibilita até mesmo a mentira, jáque não há uma regra paradigmática de veracidadea ser seguida, impedindo a decepção; além disso,a fixação de uma determinação de que o falantedeve apenas dizer aquilo em que ele mesmoacredita não impede que ele conjecture, apenasexige que ele, no discurso, identifique a conjecturacomo tal.

c) todo orador que aplique determinadopredicado a um objeto tem que estarpreparado para aplicá-lo em outros objetos

semelhantes nos aspectos importantes;

Simboliza a expressão da autoconsistência aque deve estar afeto o falante e é a formulação doprincípio de Hare da universalizabilidade. NoDireito, este princípio é regra expressa refletidanos vetores da isonomia (como mandamentootimizador) e da analogia (como método deintegração).

d) diferentes oradores podem não usar amesma expressão com diferentessignificados.

A partir desta regra de discurso, exige-se ouso comum da linguagem, ou seja, uma identidadeno uso da linguagem pelos oradores. Chamada dediscurso linguístico analítico, essa regra tem afunção de assegurar que o discurso seja claro esignificativo.

O segundo grupo formado pelas regras darazão destina-se à justificação das afirmaçõesrealizadas pelo orador, pois a pessoa que diz algoem que crê tem que estar preparada para justificartal afirmação, demonstrando ser ela verdadeira oucorreta (é a demonstração do “porquê” dedeterminada asserção tomada pelo falante). Taisregras dizem respeito à justificação das sentençasnormativas. Na mesma medida, as regras da razãonão impedem que o orador se negue a prestarjustificação sobre o que afirmou, mas obriga queele justifique esta recusa. As regras daracionalidade são assim dispostas por Alexy:

a) todo orador tem de dar razões para o queafirma quando lhe pedem para fazê-lo, amenos que possa citar razões que justifiquemuma recusa em dar uma justificação;

Esta regra é definida pelo filósofo como“regra geral da justificação”, pois representa asíntese ontológica desse grupo de regras.

A partir da definição retroexposta, Alexyidentifica três outras regras que correspondem àscondições de discurso ideal estabelecidas porHabermas; são elas:

a.1) qualquer pessoa que possa falar podeparticipar de um discurso (essa é a regra deadmissão no discurso);a.2) todos podem transformar uma afirmaçãonum problema; todos podem introduzirqualquer afirmação no discurso; todos podemexpressar suas atitudes, desejos enecessidades; é importante particularmente

Page 130: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

130

no discurso prático (tais regras são aexpressão da liberdade na discussão);a.3) nenhum orador pode ser impedido deexercer os direitos de entrada no discurso ede liberdade no discurso por qualquer tipo decoerção interna ou externa ao discurso (estaregra tem como fim proteger, da coerção, odiscurso).

O terceiro grupo de regras é composto pelasregras sobre a carga de argumentação, que nadamais são do que a distribuição entre os partícipesda discussão das prerrogativas firmadas nos doisgrupos anteriores (regras básicas e regras darazão). Na definição das regras que compõem estegrupo, Alexy busca amparo nos estudos de Singersobre o princípio da generalização (que proíbe adiscriminação injustificada de um participante dodiscurso), no diálogo lógico de Lorenzen (calcadona obrigação de justificação individual quando seatribui determinada asserção genérica a um grupo)e, sobretudo, no princípio da inércia de Perelman(um ponto de vista previamente aceito não deveser abandonado sem alguma razão), estruturando--as da seguinte forma:

a) quem se propõe a tratar a pessoa “A”diferentemente da pessoa “B” é obrigado adar justificação por fazer isso;

Este mandamento discursivo é ratio supremada construção do discurso prático garantindo otratamento isonômico dos oradores, havendo umapresunção de igualdade que exige a apresentaçãode razões para que essa presunção seja mitigadaou afastada.

b) quem ataca uma afirmação ou norma quenão é sujeito da discussão precisa apresentaruma razão para fazer isso;

Exige-se que o orador que ataque umaafirmação tida como verdadeira ou válida nacomunidade em que estão os oradores, ainda queela não esteja sendo expressamente afirmada oudiscutida, apresente fundadas razões para fazê-lo.

c) quem apresentou um argumento só éobrigado a apresentar outros no caso de surgiremargumentos contrários;

Inicialmente, a obrigação do orador se esgotacom a justificação – as razões – da afirmação feitapor ele, sendo obrigado a prestar mais justificações

apenas no caso de haver argumentos contrários àsua afirmação (contra-argumentos). Essa regraimpede que a necessidade de justificação por partedo orador tenda ao infinito, mesmo sabendo-se quemuito antes disso ele ficaria sem razões.

d) quem introduz uma afirmação ou faz umamanifestação sobre suas atitudes, desejos enecessidades num discurso, que não valecomo um argumento em relação a umamanifestação anterior, precisa justificar ainterjeição quando lhe pedirem para fazê-lo.

Esta regra permite que os oradoresintroduzam na discussão qualquer espécie deargumento, ainda que em nada se identifiquem como tema central do debate; não é tarefa da teoria dodiscurso definir quais assuntos detêm relevância,mas problema das partes.

Para a formulação das regras – chamadasde “regras de justificação” em virtude doimpacto fundamental que exercem sobre asafirmações (asserções do orador) e regras (normasdo discurso) a serem justificadas – que integram oquarto grupo, Alexy considerou os princípios dageneralizabilidade de Hare, Habermas e Baier,propondo as regras a seguir:

a) quem fizer uma afirmação normativa quepressuponha uma regra com certasconsequências para a satisfação dosinteresses de outras pessoas deve ser capazde aceitar essas consequências, mesmo nasituação hipotética em que esteja na posiçãodessas pessoas (Hare);

Alexy resume esta regra na afirmação deque todos têm de ser capazes de concordar comas consequências das regras que pressupõem ouafirmam para os demais.

b) as consequências de cada regra parasatisfação dos interesses de cada um e detodos indivíduos precisam ser aceitáveis paratodos (Habermas);

Aqui, o filósofo sintetiza que todos têm deser capazes de concordar com a regra.

c) toda regra tem de ser aberta e deve poderser universalmente ensinada;

É desdobramento do princípio de Baier, quereflete abertura e sinceridade, exigências que

Page 131: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

131

norteiam o discurso. Para Alexy, esta regra significaa concretização da regra básica expressada nopredicado da sinceridade no discurso (“todo oradorapenas pode afirmar aquilo em que crê”).

Ainda sob a égide deste grupo, Alexyapresenta uma regra final que é resultado datransição daquilo que é eminentemente teórico paraaquilo que é empírico, factível. Segundo Alexy, odiscurso realizado apenas pelo prazer de fazê-lo épossível, mas condenável, razão pela qual, deve odiscurso perseguir o propósito de resolver questõespráticas, ou seja, de ser realizável. Tal definiçãovem assim expressa em sua teoria:

d) os limites realmente dados de possibilidadede realização devem ser levados em conta.

Por último, as regras de transiçãoidentificadas por Alexy são responsáveis porpossibilitar certa especialização do discurso quandoo discurso prático for insuficiente, seja pordeficiências relativas à predicação deconsequências, seja por problemas linguísticos, seja,ainda, em decorrência de questões relativas àprópria discussão prática. Destarte, esse últimogrupo de regras permite que os participantesvençam obstáculos impostos pela limitação dageneralidade do discurso prático (por mais que talafirmação pareça paradoxal, a generalidade acabapor não comportar problemas que demandamespecialidade; é dizer: nem tudo está contido nogeral) e utilizem-se do discurso empírico, de análiseda linguagem ou da teoria do discurso, conformese depreende das regras a seguir expressas:

a) é possível que cada orador, a qualquertempo, faça uma transição para um discursoteórico (empírico);b) é possível que cada orador, a qualquertempo, faça uma transição para um discursolinguístico analítico;c) é possível que cada orador, a qualquertempo, faça uma transição para um discurso--teórico-discurso.

3 AS REGRAS DE TRANSIÇÃO DATEORIA GERAL DO DISCURSORACIONAL PRÁTICO: PORTA DEENTRADA PARA O DISCURSOJURÍDICO

O arremate da exposição de motivosjustificadores inerentes ao grupo de regras detransição é realizado por Alexy com a

demonstração de exemplo que ilustraperfeitamente a limitação do discurso prático geral.Segundo o jurisconsulto, muitas vezes existeconcordância entre os falantes sobre as premissasnormativas, mas completa discordância sobre osfatos, isto é, os oradores acordam sobre a validadeou correção de determinada afirmação (sentençanormativa), mas discordam sobre o caso prático, oque avoca a aplicação do conhecimento empírico.

É importante observar, neste ponto, que aproblemática justificadora da existência das regrasde transição é a porta de entrada para a existênciado discurso jurídico, principalmente quando se tomaconsciência do que o exemplo acima mencionadoexpressa no trânsito entre as teorias. Ora, fica fácilidentificar a dificuldade de solução, por meio dodiscurso prático geral, de uma lide cuja controvérsiaresida de forma precípua nos fatos, por exemplo,se houve ou não esbulho em determinadapropriedade, em determinado período de tempo,pois, ainda que se saiba que a regra aplicável seráa concernente à reintegração da posse, o discursoestá completamente desprovido de meios hábeis àperquirição empírica. Por outro lado, o discursojurídico, estabelecido o direito, tem meios paraperseguir a solução fática.

Essa conclusão é consequência da própriaforma como foi dissecada por Alexy a Teoria Geraldo Discurso Racional Prático, pois a lógica da suasistematização leva a este fim, evidenciado com aafirmação, ao debruçar-se sobre os limites dodiscurso prático geral, que tais limites são as razõesjustificativas para a necessidade de regras jurídicas,o que acaba por realizar a transição para o discursojurídico.

Com a exposição da base teórica do discursoprático geral, é possível identificar dupla função –uma positiva e uma negativa – da Teoria Geral doDiscurso Racional Prático para com a Teoria daArgumentação Jurídica: ela fornece regrasbasilares que devem ser observadas para apossibilidade de existência de qualquer discurso,seja sob o viés da validade, seja sob o âmbito daverdade e da correção (positiva); e ela não ésuficiente para satisfazer discursos que exigemdebates especiais, tornando imperiosa a construçãode teorias específicas, como é o discurso jurídico,e, concomitantemente, de teorias que, por sua vez,concedam a este possibilidade de materialização ede propensão à correção.

Page 132: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

132

4 A FORMATAÇÃO INICIAL DODISCURSO JURÍDICO COMO CASOESPECIAL DA TEORIA GERAL DODISCURSO RACIONAL PRÁTICO

Conquanto reste evidente, diante do que jáfoi exposto, que algumas deficiências do discursoprático geral, na busca da verdade ou correção,demandam transição para o caso especial,exigindo, por sua vez, a atuação de uma teoriadiscursiva específica habilitada a resolver o vácuodeixado por essas deficiências, a necessidadedessa transição, isoladamente considerada, não temo condão de legitimar a criação de um novoprocesso (ou método) discursivo. Em verdade, paraque seja legítima – e, por que não, verdadeira – acriação de um caso especial, devem ser afirmadosparâmetros que o justifiquem.

No contexto dessa necessidade dedemonstração da pertinência de um discursojurídico específico e de sua consequente aceitação,Alexy detectou três predicados que permitemidentificar o discurso jurídico como caso especialdo discurso prático geral, dando contornos maismarcantes à transição do discurso prático geralpara o discurso jurídico ao revelar seus traçosfundamentais. Os mencionados predicados estãorepresentados nas seguintes sentenças: a) asdiscussões jurídicas se preocupam com questõespráticas, isto é, com o que deve ou não ser feito oudeixado de fazer; b) essas questões são discutidascom a exigência de correção; e c) as discussõesjurídicas acontecem sob limites do tipo descrito.

A avaliação desses predicados demonstra, noentanto, que, prima facie, eles seriam insuficientespara a legitimação da criação do discurso jurídicocomo caso especial, pois todos eles podem ser alvosde contundentes objeções. Explica-se: no primeirocaso, poder-se-ia afirmar que não são apenas asdiscussões jurídicas que se preocupam comquestões práticas, fragilizando sua premência comocaso especial; no segundo caso, é inferência naturaldo estudo das regras do discurso prático geral queeste também se presta à busca da correção,sobretudo nas sentenças normativas; no terceirocaso, não é difícil de se enxergar que a existênciade um tipo descrito limitador, por si só, não aja emprol da existência de um caso especial, até mesmoporque poderiam ser realizados esforços paraencaixá-lo no discurso prático geral, respeitando--se esses limites.

A análise isolada, como se viu, não contribuipara a tese do caso especial, mas, alcançando-

-se a maturação analítica por meio de exameconglobado, torna-se possível compreender que areunião dos três predicados cria o apotegma docaso especial. Dispensando-se uma carga cognitivamaior, é possível, até mesmo, identificar ummovimento de autopoiese do discurso jurídico,nascido de uma gênese própria, a reunião dospredicados, que cria a condição ideal para a suaexistência ao mesmo tempo que a tornaindispensável, ou seja, a sua existência se fundaem bases quase próprias, de tão particulares;esclarecendo melhor, não fosse afundamentalidade das regras do discurso práticogeral, seria permitido dizer que em se ultrapassandoa rigidez da análise estrutural isolada dos elementosque compõem a teoria da discussão jurídica, épossível vislumbrar, a partir da observação dainteração dos seus elementos, que ela produziu asi própria. De todo modo, vale ser observado quea importância desse destaque se reduz àdemonstração da força da teoria do discursojurídico, porquanto não é permitido (a não ser porconjecturas, assim identificadas) ignorar aimprescindibilidade do discurso prático geral comoprecursor do discurso jurídico.

Com isso, percebe-se que não é anecessidade de solução de um caso prático, decorreção, de racionalidade, ou de limitaçãoisoladamente considerados que ensejam aexistência do caso especial, mas o todo formadocom a sua reunião, já que o discurso jurídico édemandado a agir em situação (caso prático) emque se exige uma argumentação racionalmentejustificada (correção) no âmbito do ordenamentojurídico válido (limite). A racionalidade comum aodiscurso prático geral não se confunde com aaplicada no discurso jurídico (embora não sejamincompatíveis uma com a outra), porque neste casoespera-se que os expectadores (aqueles que nãoestão no processo, por exemplo) aceitem a decisãotomada por ser “medida de justiça” e que as partesno processo, por sua vez, a aceitem, mesmoquando for contrária aos seus interesses, porqueela está racionalmente justificada na lei, nalimitação imposta pelo ordenamento jurídico;naquele caso, qualquer argumento racional, porvezes ilimitado, seria potencialmente aceito.

Conforme se vê, o ônus de justificaçãoracional da decisão judicial exige que sejamimpostas regras para que a decisão nela estejacalcada, apresentando, então, uma propensão àcorreção. É justamente esta propensão à correçãoque legitima a existência de regras especiais que

Page 133: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

133

estruturam o discurso jurídico como modalidadede caso especial. Com efeito, é na construçãodesse procedimento para a busca da correção nasdecisões judiciais – e no discurso jurídico comoum todo – que Alexy criou a Teoria daArgumentação Jurídica.

5 A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃOJURÍDICA

Ao estabelecer que os discursos jurídicos ea justificação de um caso especial de afirmaçõesnormativas (aquelas que expressam julgamentosjurídicos) se inter-relacionam, Alexy distingue doisaspectos da justificação: a justificação interna ea justificação externa. Estes dois aspectos dajustificação são os dois polos centrais da Teoria daArgumentação Jurídica, apresentando-se comoatos componentes de um procedimento que buscao acerto, a correção, a racionalidade e, por tudoisso, a justiça e a segurança jurídica. Isto porque,a imposição de certas medidas a serem observadasna criação de uma decisão judicial é meio limitadorde arbitrariedades e, em amplo espectro, éelemento fundamental para a existência emanutenção do Estado Democrático de Direito.

É fundamental, a esta altura, que sejarealizada uma breve exposição das vertentes dadiscussão jurídica, porquanto a identificação delas– e mais, o foco em uma delas – facilitará acompreensão do que está por vir. Pois bem. Adiscussão jurídica se apresenta nas formas dedogmática legal (ciência jurídica), deliberaçãojudicial, debates em Tribunais, tratamentos jurídicosde questões legais, discussões acadêmicas, debatesjurídicos midiáticos (importante vetor quando seestá em pauta a atuação da imprensa hoje em dia,com a veiculação de argumentos legais emdeterminada notícia), etc. Nas decisões judiciais éque se concentrará a presente exposição, em razãoda sua importância na manutenção de um saudávelstatus político e social e também em virtude deuma maior facilidade para visualizar a aplicabilidadeda teoria de Alexy.

Voltando a atenção para os dois aspectos dajustificação, salutar é esclarecer que a justificação

interna é ponto de partida na construção dadecisão judicial, constituindo-se como elementoinicial que detém o julgador para validar a decisãopor meio da correção das premissas que ele utilizará(o que será obtido apenas com a justificaçãoexterna). Para ser mais preciso, cumpre afirmarque esta primeira etapa de justificação consisteem identificar quais premissas serão utilizadas nadecisão judicial, valendo-se não só do silogismo queexerce papel de predominância nessa fase, mastambém na identificação de tantas premissasuniversais quanto for possível, exaurindo-se aanálise das nuances compreendidas no fatoapresentando ao julgador e, por sua vez, acompatibilidade da lei positiva, quando, então,encontrar-se-á a subsunção do fato à norma. Hánesse momento um perfeito movimento entre fatoe norma, em que o intérprete transita paraencontrar o substrato justificador de sua decisão(ou argumento)3.

Em seguida, deve o intérprete se ater àjustificação das premissas formadoras dajustificação interna, o que fará com o emprego dajustificação externa. Antes da exposiçãopormenorizada do que é a justificação externa,importa destacar o alerta realizado por Alexy deque as premissas utilizadas na justificação internapodem ser: a) regras da lei positiva; b) afirmaçõesempíricas; e c) premissas que não são nemafirmações empíricas nem regras da lei positiva(argumentos laterais4, por exemplo). Conformealertou o filósofo, é nessa última espécie depremissas em que reside a importância daexistência de regras de argumentação jurídica parajustificá-las.

A justificação externa é composta por regrase formas de argumento classificadas em seis grupospor Alexy: a) interpretação; b) argumentaçãodogmática; c) uso de precedentes; d) argumentaçãogeral prática; e) argumentação empírica; f) eformas especiais de argumentos jurídicos.

As regras de argumentação empírica sãosintetizadas por Alexy na palavra fatos e, por óbvio,dizem respeito às conjunturas fáticas circunscritasa determinada discussão. Ao considerar aargumentação empírica, Alexy assinalou a

3 Alexy se referiu a este fenômeno afirmando que “as regras a serem apresentadas na justificação interna, que lançam uma pontesobre a falha entre uma norma e uma descrição dos fatos, podem, se assim o quisermos, serem vista como resultado do processocaracterizado pela metáfora de andar para frente e para trás” (ALEXY, 2001).

4 Lembra-se que afirmações que não estão diretamente ligadas à discussão central, segundo a regra sobre a carga de argumentaçãoda Teoria Geral do Discurso Racional Prático, podem perfeitamente a ela serem introduzidas, mas, merecerão, sobretudo nadiscussão jurídica, justificação.

Page 134: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

134

importância do papel desempenhado no discursojurídico, principalmente ao exemplificar que aapreciação dos fatos tem papel decisivo na grandemaioria das demandas judiciais. Apossando-sedessa compreensão, é permitido visualizar aargumentação empírica como regra de transição(exercendo a mesma função no discurso práticogeral e no discurso jurídico) e como meiojustificador da exposição do conteúdo fáticoincluído na decisão judicial naquele primeiromomento (justificação interna).

As regras de interpretação são chamadaspor Alexy de Cânones de Interpretação erepresentam um conjunto formador dahermenêutica jurídica, sendo fundamental para ajustificação do discurso jurídico, principalmentequando se leva em conta que os contextos nos quaisas leis positivas são criadas ou aplicadasapresentam considerável dinamismo, emdecorrência da mutabilidade das conjunturas einteresses de um povo ao longo do tempo. Sãoformas de interpretação (ou cânones) a semântica,a genética, a histórica, a comparada, a sistemáticae a teleológica.

Na interpretação semântica (tambémchamada de gramatical ou literal), o que se levaem conta é rigorosamente o que está disposto notermo normativo, ou seja, o significado da lei éextraído de sua letra, é o significado léxico daspalavras constantes do texto legal (ALEXANDRE,2014, p. 242), é uma exegese.

A interpretação genética preocupa-se com aintenção do legislador incutida na lei; com essecânone busca-se decifrar a vontade do legisladorno processo de criação das leis.

Ao descrever essas formas de interpretação,Alexy, após indicar algumas de suas fragilidades(frequentemente debatidas na dogmática moderna),houve por bem ressalvar que se resumiria aassinalar que “ambas estabelecem a intenção dosparticipantes no processo legislativo e estabelecerum uso particular da linguagem implica emestabelecer fatos.” (ALEXY, 2001, p. 231),concluindo, por conseguinte, que estas duas formassão casos especiais da argumentação empírica.

Outra particularidade essencial para o corretouso da interpretação semântica ou genética nadecisão judicial, conforme cautelosamenteafirmado por Alexy, consiste na “exigência desaturação”. O uso dessas duas modalidades deinterpretação pode dar azo a argumentações vazias,na medida em que o prolator de determinadadecisão ou orador em uma discussão pode afirmar

que “determinada coisa é”, porque a “lei quisassim” ou porque o “legislador quis assim”. Essaimprecisão na argumentação, que beira àinexistência de justificação, colide frontalmentecom as regras mais fundamentais do discurso,comprometendo a correção; por isso se exige queo intérprete argumente à exaustão quando laçarmão desses cânones. Depois de realizar aexposição dos cânones e tratando do seu papel nodiscurso jurídico, Alexy ressalta que o uso de todaforma de interpretação requer a saturação:

A exigência de saturação assegura aracionalidade da aplicação dos cânones. Elaexclui a possibilidade do argumento pelorecurso da asserção ao efeito de que umainterpretação particular resulta do texto ouda origem histórica ou do propósito danorma. Sempre é necessário apresentar oupremissas empíricas ou normativas cujaverdade ou correção não possam emnenhum tempo ser tema de nova discussão.A regra seguinte impede o recurso aasserções vazias: saturação – isto é, umaplena afirmação de razões – é exigida emtodo argumento que pertença aos cânonesde interpretação (ALEXY, 2001, p. 231).

Dentro da teoria de Alexy, o argumentohistórico considera problemas e soluções jurídicasanteriores e suas consequências, mostrando-seaptos ou não e indicáveis ou não a serem aplicadasno caso presente. Conforme definiu Alexy, a istodá-se o nome de “aprender com a história”,exigindo-se conhecimento histórico, sociológico eeconômico. Quando se aplica a interpretaçãohistórica exclusivamente sobre a lei positiva,considera-se o momento político, social, econômicoe cultural em que ela foi criada para alcançar oseu sentido.

Os argumentos comparativos, por sua vez,relacionam-se, segundo Alexy, com os argumentoshistóricos, indicando que eles se predispõem,inicialmente, a uma comparação entre fatorespassados e presentes. A máxima utilização destaforma de interpretação se funda, no entanto, nacomparação entre situações de diferentessociedades, bem definida na síntese de que ainterpretação comparada ou comparativa se dedicaà comparação de normas de ordenamentosjurídicos de diferentes países.

A interpretação sistemática preocupa-secom o sistema normativo a que a norma estáinserta, analisando a norma em conjunto com asdemais que formam o ordenamento jurídico, de

Page 135: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

135

modo a conferir a este harmonia e unicidade. ParaAlexy, o argumento sistemático considera aposição da norma no texto jurídico e a sua relaçãológica e teleológica com outras normas e princípios(é na relação da norma com os princípios que ofilósofo foca sua análise quando da exposição desua teoria).

Por fim, a interpretação teleológica procuradescobrir o sentido da norma por meio dadescoberta do objetivo da sua inclusão noordenamento jurídico; procura-se entender avontade abstrata da lei e aplicá-la no mundo dosfatos. Para Alexy, o argumento teleológico avocaum exame minucioso dos conceitos de fins e meios,desejo, intenção, necessidade prática e objetivo.

Vale, aqui, fazer um parêntese. O exercícioda interpretação segundo os ditames propostos nateoria da argumentação jurídica abrange, semdúvida, a temática da ponderação, compreendidacomo fórmula de resolução de conflitos entreprincípios, porquanto nesta tarefa haveráconsiderável dispêndio de esforço interpretativo,sobretudo com o uso da teoria semântica. Oproblema teórico que surge do uso da ponderaçãoestá na raiz que originou toda a teoria em comentocomo forma de limitar o subjetivismo, uma vez queinevitavelmente tal forma de resolução de conflitosprincipiológicos apresenta forte carga subjetiva.

Neste diapasão, evidenciando a colisão frontaldessa faceta da ponderação com o desígnio maiorda argumentação jurídica, os Professores DoutoresGeroges Abboud, Henrique Garbellini Carnio eRafael Tomaz de Oliveira fazem pertinente críticana obra à Teoria e à Filosofia do Direito e apontamalgumas inconsistências da teoria alexyana no quediz respeito à ponderação5:

Não deixa de ser curioso que é justamenteo contexto de descoberta que tornaproblemática toda estrutura da ponderaçãona forma como desenvolve Alexy. Além doproblema de ‘quem’ elege os princípios emconflito – o que por si só já aponta para umelemento discricional não tematizado peloautor – podemos elencar também como umaquestão problemática a seguinte pergunta:por que a saúde pública, que constatextualmente na Constituição, é umprincípio e não uma regra? Por que aliberdade profissional, que consta

textualmente na Constituição, é umprincípio e não uma regra? Ou seja, o quefaz um princípio ser um princípio? Fora docontexto justificador da ponderação –ressalta-se abstrato e artificial – não hácomo assegurar, com uma precisão mínima,o conceito de princípio proposto pela teoriada argumentação jurídica alexyana. Afinal,o simples fato de compor o textoconstitucional faz com que um enunciadojurídico goze de caráter de princípio. Ou seráa determinação da otimização que deve serencarada como fator determinante para queum princípio se manifeste como umprincípio. Evidentemente que esta últimaalternativa parece ser mais coerente com ateoria de Alexy. Todavia, ainda nestestermos, temos um problema na definição deotimização como característica específicados princípios: a discricionariedade queemana da avaliação de até que ponto umprincípio deve ser efetivado (ABBOUD,CARNIO, OLIVEIRA, 2015, p. 41).

Prosseguindo com a incursão nas regras quecompõem a justificação externa, a argumentaçãodogmática apresenta posição fundamental najustificação do discurso jurídico, principalmentequando se tem em mente a confecção atual dedecisões judiciais, em que, por força constitucional,exige-se celeridade. A dogmática pode serencarada, em seu sentido mais estreito eapropriado, como ciência jurídica, composta portrês atividades principais: descrever a lei em vigor;sujeitá-la à uma análise conceitual e sistemática; eelaborar propostas sobre a solução própria doproblema jurídico.

À parte de constituir uma ciência que norteiaa atividade jurídica (onde estão contidas as decisõesjudiciais), as funções da dogmática representampapel de predominância na atividade do intérpretejulgador; são elas: função de estabilização, dedesenvolvimento, redutora de encargo, técnica,controladora e heurística. É possível identificar nasfunções de estabilização, redutora de encargo eheurística os principais alicerces nos quais se fundaa decisão judicial no âmbito da justificaçãodogmática, pois com a estabilização é possível afixação de certos modos de decidir e a suareutilização em determinado período de tempo.Com a redução do encargo mitiga-se o encargo

5 Deve ser destacado que a ponderação mencionada no excerto transcrito foi utilizada, por Alexy, para avaliar a colidência dodireito à saúde pública com o direito à liberdade profissional no contexto da imposição de obrigação de que a indústria tabagistaveiculasse avisos informando os malefícios de seus produtos.

Page 136: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

136

do processo justificativo por meio da adoção demodelos previamente examinados e aceitos, desdeque não haja nenhuma motivação especial que oafaste. E, por fim, a heurística faz com que odebate contínuo sobre a problemática jurídica, coma consequente descoberta de soluções e de outrosproblemas, promova um campo fértil e estimulantede novas descobertas, blindando, assim, asdecisões jurídicas, de carência de solução, eis quea ciência jurídica estará sempre em busca desoluções que se relacionem ao maior número decasos práticos possíveis.

O próximo passo a ser seguido na explanaçãoapresenta correlação intrínseca com a dogmática,pois a ciência jurídica usa os precedentes paraformular suas definições e as decisões judiciais,formadoras do que se tem por precedentes,incorporam o conteúdo dogmático. O uso deprecedentes como forma de justificação estácalcado na necessidade de conferir confiança esegurança jurídica na tomada de resoluçõesjudiciais, posto que seria inadmissível, mesmo queapenas na seara teórica, admitir-se decisõesdiferentes para casos semelhantes (lembra-se queesta é uma regra do discurso prático geral,inclusive). Portanto, os precedentes se apresentamna decisão judicial como elementos justificadoresa serviço da busca da correção, tornandoisonômica, em amplo sentido, a atividadejurisdicional.

Cumpre observar, neste particular, que Alexyformula duas regras básicas para a utilização doprecedente: a) se um precedente pode ser citadoa favor ou contra uma decisão, ele deve ser citado(corresponde ao princípio da universalidade, àigualdade formal); e b) quem desejar partir de umprecedente fica com o encargo do argumento(enlace das já expostas regras da inércia e depossibilidade de abertura para novas decisões). Em“a” tem-se a obrigatoriedade do uso do precedentequando ele se encaixar positiva ou negativamente

ao caso que impulsiona a decisão judicial, o que sedeve ao fato de ser uma forma de justificação queassegura a isonomia, como dito; em “b” há, pode--se dizer, um compêndio das regras mais puras dodiscurso prático geral, eis que resguarda o direitode início e livre desenvolvimento do discurso eobriga a justificação (fundamentação) da afirmação(precedente).

Por sua vez, Alexy apresenta como formasespeciais de argumento jurídico a analogia, oargumentum a contrario, o argumentum afortiori e o argumentum ad absurdum. Emapertada síntese, o argumentum a contrariosignifica a realização de uma interpretação inversa(contrario sensu), muito bem ilustrada naassertiva recorrente em Direito de que “aquilo quea lei não proíbe, é permitido”, é um argumentoobtido a partir do raciocínio inverso de outroargumento. Já no argumentum a fortiori tem-sea presença da máxima “quem pode o mais, pode omenos”. Nele, a expressão de um predicadoautoriza a aceitação “com muito mais razão” deoutro. Por seu turno, a analogia é considerada umcaso especial do princípio da universalizabilidadee o argumentum ad absurdum uma expressãojurídica do princípio da não-contradição6.

No plano das formas especiais, Alexy voltaa afirmar a regra da saturação, isto é, a exigênciada exaustão plena de razões para que o argumentoseja racionalmente válido e destituído de asserçõesvazia

Finalizando a exposição da questão queenvolve a justificação externa, observa-se que aanálise da argumentação geral prática já foirealizada no início deste trabalho, devendo seraplicadas aqui as noções que definem as regrasdo discurso prático geral como alicerces dodiscurso jurídico, seu caso especial. Cabe apenasapresentar a ressalva apontada por Alexy de queem determinadas ocasiões as regras da justificaçãoexterna (o filósofo menciona a dogmática jurídica)

6 Diante da propriedade e lucidez é fundamental a transcrição de breve excerto sobre as considerações de Bustamante (2015) sobrea posição do argumentum ad absurdum no discurso jurídico: “O argumentum ad absurdum pode ser entendido em doissentidos. Como um argumento estritamente lógico, ele pode ser descrito como uma clássica reductio ad absurdum, de acordocom a qual uma conclusão pode ser rejeitada quando quer que o seu proponente esteja comprometido com visões contraditórias.Nesse caso, o argumento é internamente defeituoso, no sentido de que a conclusão não pode ser suportada por suas premissas.A reductio ad absurdum é um argumento válido que pode levar a uma demonstração indireta desse defeito. 2. Ademais, oargumento ad absurdum pode ser entendido também como um argumento pragmático. Um argumento pragmático é umargumento sobre a desejabilidade ou a não desejabilidade de uma dada consequência. No raciocínio jurídico, entretanto, oargumentum ad absurdum é um caso especial de argumento pragmático cujo traço distintivo é que ele pressupõe uma avaliaçãoforte contra a interpretação rejeitada por tal argumento. Na argumentação jurídica, juristas tendem a entender o argumentum adabsurdum nesse segundo sentido, já que a clássica reductio ad absurdum se torna trivial e desnecessária, pois as regraselementares da lógica são suficientes para rejeitar a conclusão considerada pelo falante.”.

Page 137: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

137

e a aplicação da lei casual serão insuficientes comomeio de justificação, avocando a necessidade deaplicação das formas de argumentação práticageral.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o estudo minucioso da Teoria daArgumentação Jurídica de Robert Alexy, percebe--se claramente o anseio em se buscar, por meio daargumentação jurídica, a mitigação do subjetivismoempregado no processo de criação do decisumjudicial, erigindo-se um modelo de refutação dearbitrariedades e, concomitantemente, demaximização da racionalidade.

De acordo com o jusfilósofo, há umatendência primitiva em se submeter à decisãojurídica julgamentos de valores próprios dedeterminadas classes, como a dos juízes, sem quehaja critérios de aferição bastantes para que sepossa reconhecê-los como universais, quando, sóentão, começar-se-ia a conferir-lhe contornos decorreção. Segundo Alexy, a sua teoria daargumentação, de um lado, oferece um modelo paraconglobar as convicções comumente aceitas e osresultados de prévias discussões jurídicas e, deoutro, deixa espaço aberto para a ação dos critériosde correção.

Este aspecto – o da correção – é o pontofundamental de toda a Teoria da Argumentação,pois ele se apresenta como meio e fim e seentremeia em todas as instâncias e fases doprocesso criativo da discussão jurídica. Diz-se“meio e fim”, porque desde logo é possível perceberque a argumentação como pregada pela teoria, éum instrumento em busca do fim que resplandecena correção da decisão, no acerto da decisãosegundo critérios de julgamentos universais. Mas,não é só isso: este aspecto é, também, meio – desi mesmo – porque em todos os critérios dejustificação, em todas as fases de análise e criaçãoda decisão judicial, deve-se, separadamente,empregar justificações fortemente carregadas decorreção, ou seja, também os atos (precedente,interpretação, etc.) formadores do procedimento(argumentação) devem estar impregnados decorreção para que, ao fim, atinja-se a correção dadecisão.

É importante notar, neste contexto, que acorreção não pode ser encarada como algo cujopreenchimento se mostra absoluto – apenas suapresença o é –, porquanto dificilmente se alcançaráum nível tal que se possa dizer, universalmente,

que determinada decisão foi plenamente acertada,justamente porque existirão outros critérios dejustificação que, em certa medida derrotados poraqueles predominantemente usados na decisão(resultado, por exemplo, da ponderação), deporãoem contrário. Destarte, a ponderação é umapotencialidade, é algo que existe em potencialem toda decisão jurídica e que será efetivada, emgraus variáveis, com o emprego dos critérios deargumentação jurídica.

Atendendo a este anseio, a Teoria daArgumentação parte de um regramento básico egeral do discurso (discurso prático geral) eapresenta para o discurso jurídico critérios dejustificação divididos em dois grupos: a justificaçãointerna e a justificação externa.

Como visto, a justificação interna pode sercompreendida como a reunião de premissas queservem ao caso, que a ele estão, segundo o Direitopositivo, atreladas. A justificação externa, por suavez, age como amálgama dos elementosformadores da justificação interna, aglutinando-osde forma a lhes conferir coesão, sentido e validade,sobretudo na sua instrumentalização que servirácomo meio de materialização da pretensão àcorreção.

Assim, a metodologia apresentada na Teoriada Argumentação Jurídica traz a base fundamentalde toda a discussão existente no âmbito jurídico,conferindo segurança e equilíbrio político e social,na medida em que garante decisões blindadas daarbitrariedade, característica do subjetivismodesenfreado, por meio da aplicação de regras quepressupõem, em um primeiro momento. Eefetivam, em um segundo, a racionalidade dodiscurso, sustentado, principalmente, na igualdadee na não-contradição.

REFERÊNCIAS

ABBOUD, Georges; CARNIO, HenriqueGarbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de.Introdução à teoria e à filosofia do direito. 3.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dosTribunais, 2015.

ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributárioesquematizado. 8. ed. rev., atual. e ampl. Rio deJaneiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

ALEXY, Robert, Teoria da argumentaçãojurídica. Tradução de Zilda Hutchinson SchildSilva. São Paulo: Landy, 2001.

Page 138: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

138

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de.Argumentação contra legem: a teoria dodiscurso e a justificação jurídica nos casos maisdifíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Oargumento ad absurdum na interpretação dodireito. Disponível em: <http://http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496612/000967045.pdf?sequence=1>. Acessoem: 20 set. 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição daRepública Federativa do Brasil. Brasília, DF:Senado, 1988.

COELHO, Luiz Fernando. Aula de introduçãoao direito. Barueri: Manole, 2004.

HABERMAS, Jürgen. The theory ofcommunicative action: reason and the

rationalization of society. v. 1. Boston: Beacon,1984.

HART, Herbert L. A. O conceito de direito.Tradução de A. Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa:Calouste Gulbenkian, 2007.

MAZOTTI, Marcelo. As escolashermenêuticas e os métodos de interpretaçãoda lei. Barueri: Minha Editora, 2010.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo dodireito. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: anova retórica. Tradução de Maria ErmantinaGalvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,1996. Título original: Traité de l’argumentation: lanouvelle rhetorique.

Page 139: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

139

RESENHA

Page 140: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

140

Page 141: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

141

RESUMO

A abordagem acerca do Poder feita por MichelFoucault no livro Microfísica do Poder perpassao caminho entre soberania e disciplina, para permitirque o leitor possa desvincular o poder da entidadeestatal e vislumbrá-lo na figura do corpo social.Para tanto, o autor trava debates acerca deconceitos essenciais das diversas ciências, dentreelas a Ciência Jurídica, delimitando o campo jurídicodo Poder, debates importantes para um acadêmicode Direito, pois permitem o desenvolvimento eamadurecimento teórico. Para alcançar seusobjetivos Foucault apresenta esboços históricos ecrítica a alguns clássicos da Filosofia. Estabeleceo caminho necessário para construir umentendimento acerca do poder desvinculado de pré--concepções, porém construído a partir delas.Deste modo, através de um estudo bibliográfico ede um referencial teórico embasado na CiênciaPolítica, Sociologia e Filosofia, áreas doconhecimento humano, essenciais ao estudante deDireito, foi possível delimitar o campo jurídico doPoder e da soberania no pensamento de Foucault.

Palavras-chave: soberania, disciplina, poder,direito, verdade.

ABSTRACT

The approach about the power made by MichelFoucault in Microphysics Power book runs throughthe path between sovereignty and discipline, toallow the reader to unlink the power of the stateentity and glimpse it in the figure of the social body.Therefore, the author leads discussions aboutessential concepts of the various sciences, amongthem the Legal Science, delimiting the legal fieldof power, important debates to an academic of lawbecause they enable the development andtheoretical maturity. To achieve its goals Foucaultpresents historical sketches and critical few classics

MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina

Hortência Dias Silva Neta1

of Philosophy. Establishing the way needed to buildan understanding about the unbound power ofpreconceptions, but built from them. Thus, througha literature study and a theoretical frameworkgrounded in Political Science, Sociology andPhilosophy, areas of hum an knowledge, essentialto the law student, it was possible to define thelegal field of power and sovereignty in Foucault’sthought.

Keywords: sovereignty, discipline, power, law,truth.

O presente trabalho objetiva apresentar umestudo acerca dos conceitos de soberania edisciplina sob o olhar de Michel Foucault. Optou--se por fazer um recorte na obra, apresentandoconsiderações sobre o capítulo XII do livro“Microfísica do Poder”. De início, faz-seinteressante ilustrar o caráter peculiar de tal obra,uma vez que se trata de uma coletânea de artigos,cursos, entrevistas e debates em que Foucaultanalisa questões sobre o Poder.

Publicado no Brasil pela Edições Graal, a 22.ªedição é do ano de 2006 e conta com 295 páginase uma tradução feita por Roberto Machado,Professor titular do Instituto de Filosofia e CiênciasSociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.O capítulo em estudo teve origem em um cursoministrado pelo autor no Collège de France, emjaneiro de 1976. Em tal parte, o autor começa porapresentar uma relação tríplice formada pelo poder,o direito e a verdade.

Logo nos primeiros parágrafos, o autorproblematiza questões como a produção daverdade e o entendimento social do que seriacorreto. Nas palavras de Michel Foucault,”o podernão para de nos interrogar, de indagar, registrar einstitucionalizar a busca da verdade, profissionaliza--a e a recompensa.” (FOUCAULT, 2006, p. 186).Percebe-se aqui a relação com o Direito, em

1 Acadêmica do Quinto Período do Curso de Direito da Faculdade de Direito Santo Agostinho.

Page 142: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

142

especial o Direito Penal, que cria tipos penais pormeio de previsões legislativas e constrói verdadesao estabelecer punições paradeterminadascondutas. Se “A” mata “B” é certo que “A” serápunido, assim como qualquer outro que mataralguém.

O princípio geral que norteia o autor em seupercurso de estabelecer as relações entre direitoe poder é a figura do soberano desde a IdadeMédia nas sociedades ocidentais, o poder real, queé nada mais do que aquele que pertence ao rei. Odireito, aqui entendido como o pensamento jurídico,centrado na figura do soberano, elaborado paraservir de instrumento ou justificativa para o poderreal, principalmente com a reconstituição do DireitoRomano e o seu jus civile, que em suma, era odireito que assegurava poder a poucos.

Neste texto, o autor trabalhou a personagemdo rei como centro de construção do direitoocidental. A figura do poder no contexto seapresenta de duas maneiras antagônicas, por viada figura do jurista: a soberania e a limitação. Paraa soberania do poder real, os juristas seriam osservidores do rei. Por outro lado, para a limitaçãodo poder real, os juristas seriam os responsáveispor estabelecer o seu limite.

Essa Teoria do Direito presente na IdadeMédia teve o papel de construir a legitimidade dopoder. Foucault conclui que “A teoria do direito,da Idade Média em diante, tem essencialmente opapel de fixar a legitimidade do poder; isto é, oproblema maior em torno do qual se organiza todaa teoria do direito é o da soberania.” (FOUCAULT,2006, p. 181).

Para Dallari, em seu livro Elementos deTeoria Geral do Estado, a soberania pode serentendida sob múltiplas teorias; porém, tais teoriassempre têm em comum o fato de ligarem asoberania ao poder. Ainda em Dallari, encontra--se: “procedendo a uma síntese de todas as teoriasformuladas, o que se verifica é que a noção desoberania está sempre ligada a uma concepção depoder, pois mesmo quando concebida como ocentro unificador de uma ordem está implícita aideia de poder de unificação.” (DALLARI, 2013,p. 86). A questão que Foucault coloca então é: sea soberania traz a ideia de unificação e construçãode legitimidade do poder, como se podecompreender o poder como algo fragmentado?

Apresentado o norte de seus estudos, queculminaram nesse texto, Foucault define um projetogeral. Este projeto seria fazer o caminho inversoda análise do Direito, sobressaindo o fato da

dominação em sua brutalidade e íntimo, delimitandoe dando forma a essa dominação. Para Foucault,o essencial é entender o limite dessa dominaçãoem vez de dar ênfase aos meios utilizados paratal. O entendimento do autor por dominação nãose define em dominação global, ou dominação deum sobre os demais, mas as múltiplas formasexistentes e que podem ser exercidas na sociedade,não o governante (soberania) no centro e sim ossúditos (corpo social) em suas diversas relaçõesde reciprocidade que existem, funcionam e sãomúltiplas sujeições.

Um exemplo prático é o do chefe queconstantemente humilha o empregado por estar emposição hierárquica superior. Por outro lado e comigual destaque para o estudo é o empregado quese sujeita ao assédio moral, que para oordenamento jurídico brasileiro é crime. Essasmúltiplas sujeições tem como canal permanentede transmissão o campo judiciário.Desta forma odireito não deve ser visto como meio de estabelecerlegitimidade, mas sim como um procedimento desujeição e dominação, Foucault esclarece:

O sistema do direito, o campo judiciário sãocanais permanentes de relações dedominação e técnicas de sujeiçãopolimorfas. O direito deve ser visto comoum procedimento de sujeição, que eledesencadeia, e não como uma legitimidadea ser estabelecida. Para mim, o problema éevitar a questão – central para o direito –da soberania e da obediência dosindivíduos que lhe são submetidos e fazeraparecer em seu lugar o problema dadominação e da sujeição (FOUCAULT,2006, p. 181).

O próximo passo de Michel Foucault nocapítulo Soberania e Disciplina trata deprecauções que devem ser tomadas ao estudar oPoder. A primeira delas seria não buscar afundamentação do direito de punir na soberaniatal como ela é definida e sim buscar compreendera materialização das instituições locais e regionaisde punir. Independente do direito de punir sematerializar no suplício (em que o sofrimento físicodo condenado era um verdadeiro espetáculo) ouencarceramento (quando a punição é um atoprocedimental administrativo), captar o poder nosextremos, é cada vez menos jurídico seu exercício.E sua legitimação não se encontra na soberania e,sim, na violência.

A segunda precaução apresentada é aquestão equívoca de abordar o lado interno do

Page 143: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

143

poder, a formulação de perguntas que não podemser respondidas, não perguntar porque algunsquerem dominar e sim como funciona essadominação, procurar saber como se constituem osseres do corpo social. Foucault defende aqui umafastamento da ideia de Hobbes do Leviatã: emvez de procurar as respostas na alma central, oEstado, buscar as respostas no nos múltiploscorpos que compõem a sociedade.

Entendimento trabalhado por Santos,“Foucault afirma que, desde o século XVIII, aforma mais importante de poder que circula nasociedade é produzida pela própria sociedade, enão pelo Estado.” (SANTOS, 2011, p. 264). Santos,em seguida, não deixa de fazer uma crítica a essaideia trazida por Foucault:

Em primeiro lugar, embora Foucault tenharazão em salientar a existência de formas depoder fora do Estado e considerá-las denatureza tão política quanto a do poderestatal também vai demasiado longe naafirmação da dispersão, do acentrismo e dafragmentação delas. [...] Assim, paraFoucault, dar poder significa em últimaanálise, desarmar. Aplicando ao meu quadroanalítico, isto significa pressupor que a lutapela emancipação não é mais que umaafirmação de vontade de regulação(SANTOS, 2011, p. 265).

Jürgen Habermas, em sua obra O DiscursoFilosófico da Modernidade (2000), tambémcritica a ideia trazida por Foucault. Segundo ele talponto de vista traz limitações:

Se se admite, como Foucault, apenas omodelo de processos de sujeição, deconfrontações mediadas pelo corpo e decontexto de ações estratégicas mais oumenos conscientes; se se exclui umaestabilização de domínios de ação por meiode valores, normas e processos deentendimento recíproco e não se assinalapara esses mecanismos de integração socialnenhum equivalente conhecidoproveniente das teorias do sistema ou datroca; então torna-se difícil de explicar comoas lutas locais permanentes poderiamconsolidar-se em poder institucionalizado(HABERMAS, 2000, p. 401).

Ademais, ambos os autores ressaltam ascontribuições de Foucault para o estudo do Poderna atualidade. Santos esclarece que “não obstanteestas críticas, o contributo de Foucault para acompreensão do poder nas sociedades

contemporâneas foi inestimável.” (SANTOS, 2011,p.265). Habermas (2000), por sua vez, asseveraque a filosofia da consciência de Foucault fezdesaparecer os problemas que teriam levado estaao fracasso. Em suma, a segunda precauçãoconsiste em dar foco ao corpo social e não ao enteestatal.

A terceira ressalva apresentada por Foucaulttrata do equívoco que ocorre quando ao estudar oPoder, acreditar que se trata de um instrumentode controle que permite a submissão daqueles quenão o possuem, diminui sua abrangência eimportância, e limita sua análise. EsclareceFoucault:

não tomar o poder como um fenômeno dedominação maciço e homogêneo de umindivíduo sobre os outros, de uma classesobre as outras; mas ter bem presente queo poder – desde que não seja consideradode muito longe – não é algo que se possadividir entre aqueles que possuem e o detêmexclusivamente e aqueles que não opossuem e lhe são submetidos. O poderdeve ser analisado como algo que circula,ou melhor, como algo que só funciona emcadeia (FOUCAULT, 2006, p. 183).

Ainda em Santos, encontra-se a análise docitado “o poder nunca é exercido numa forma purae exclusiva, mas sim como uma formação depoderes, isto é, como uma constelação, dediferentes formas de poder combinadas de maneiraespecíficas.” (SANTOS, 2011, p. 264-265). Oindivíduo aqui é um efeito do poder, seu centro detransmissão, o poder transita no indivíduo por eleconstituído, exemplificando, somente se reconheceum indivíduo como capaz de dar voz de prisão aalguém porque o poder constituiu este indivíduocomo policial, ao mesmo tempo em que o poder doEstado transita nele e seus atos são reflexos dosefeitos do poder.

A quarta precaução apresentada é afastar adedução do poder visto do centro até onde terminae, em vez disso, começar por uma análise comofenômeno, com uso das técnicas e procedimentosque atuam nos níveis mais baixos do poder. A críticada dedução consiste no fato de ela ser semprepossível e fácil. Pode-se deduzir sobre qualquerfato e, em cima disso, construir uma tese, inclusivesobre a questão da dominação burguesa.

Foucault apresenta aqui deduções possíveisque classifica como falsas e verdadeiras ao mesmotempo: a questão da exclusão dos loucos e darepressão da sexualidade infantil. Esses são fatos

Page 144: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

144

que ocorreram e esta é a dedução verdadeira,porém os motivos apresentados pela burguesia parajustificar tais fatos são as deduções falsas. O autorentende que estes acontecimentos foramproduzidos unicamente para ocasionar certautilidade política e econômica, a burguesia não seinteressa pelos loucos, muito menos pelasexualidade infantil e, sim, pelo poder. Por isso, eleconclui que deve se estudar o poder a partir dosníveis mais baixos.

A quinta precaução trata das ideologiasconstruídas pelas grandes máquinas do poder. Deacordo com Foucault, em determinado momentotais máquinas foram acompanhadas de diversasideologias: ideologia da educação, ideologia dopoder monárquico, ideologia da democraciaparlamentar. Esta é a precaução trazida demaneira mais sucinta: o poder para ser exercidonos mecanismos sutis precisa formar ideias,organizar e circular aparelhos de saber, porém abase dessas ideias e desses aparelhos não sãoideologias, são dados, técnicas, registros,instrumentos reais de produção e acúmulo do saber.

Um acadêmico de Direito, ao estudar o podersob a perspectiva de Foucault, irá compreenderquais os seus limites jurídicos. Aqui, deve-seentender, ainda sob a perspectiva do autor, limitesjurídicos não como os limites da legislação, massim onde o poder para de ser exercido pelasinstituições do Direito e começa a ser exercidopela sociedade. Esse poder, que se concentra nocorpo social, possui maior efetividade, pois vai alémdo limite alcançado pelo poder jurídico, sobretudoem razão das limitações impostas pelos conceitosexplanados nesse trabalho. O poder exercido pelasinstituições jurídicas recebe uma limitação própriado direito, enquanto que o poder exercido pelocorpo social não é limitado pelas instituiçõesmencionadas, pois estas não podem alcançá-lo emsuas múltiplas formas de manifestação.

Portanto, a contribuição mais valiosa desteestudo para o acadêmico de Direito reside nadesconstrução da ingênua ideia do Direito comomeio mais eficaz de controle social. Para odesapontamento de muitos, estudando o poder soba perspectiva de Foucault, depara-se com umcenário no qual o poder a-jurídico é um meio maisefetivo de controle e limitação social do que aqueleexercido pelas instituições jurídicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As precauções metodológicas apresentadaspor Foucault no texto em estudo levam aoreconhecimento de um fato histórico que o autordiz ser o “jurídico-política da soberania”. Se sepensar a soberania em seu sentido jurídico, deacordo com Dallari, caracteriza-se por “o poderde decidir em última instância sobre a atributividadedas normas, vale dizer sobre a eficácia do direito.”(DALLARI, 2013, p. 86). Ela se torna ummecanismo de poder efetivo que permite formasde imposição e dominação, como a coerção socialprovocada pela Ciência do Direito enquantocontrole social.

De acordo com Foucault, a teoria dasoberania enquanto poder de unificação sempreestá presente nos códigos jurídicos de maiorrelevância, exemplo é a Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil, que possui como fundamento,positivado em seu artigo 1.°, inciso I, a soberania,por dois motivos: o direito de soberania é um direitode disciplina e como instrumento crítico dodespotismo monárquico. Foucault ainda defendeque o estudo da soberania e disciplina e suacorrelação com o poder foi desenvolvido com ointuito de esclarecer acerca da repressãolegitimada na teoria da soberania e dos direitossoberanos do indivíduo, uma vez que a própria ideiade repressão é uma ideia jurídico-disciplinar.

Ademais, é importante ressaltar a tese doautor de poder para além daquela concepçãohierárquica de opressor e oprimido, ou ainda aconcepção hobbesiana do Leviatã (Estado) quepossui e exerce todo o poder de forma opressora.Mas, sim compreender o poder nas relaçõesmútuas do dia a dia, de indivíduos que são ao mesmotempo opressores e oprimidos.

Para a Ciência do Direito, os estudos deFoucault contribuem para desconstruir o euforismoacadêmico acerca do controle social exercido comuso do Direito e de suas instituições jurídicas,pensamentos que levam ao equívoco de que o poderjurídico é o poder central e de maior peso nasrelações sociais e a proposta do autor é desconstruirtal concepção e demonstrar o poder nos seusextremos, poder exercido pela sociedade e nãopelas instituições de Direito.

Page 145: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

145

REFERÊNCIAS

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos deteoria geral do estado. 32. ed. São Paulo:Saraiva, 2013.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.Tradução de Roberto Machado. 22. ed. Rio deJaneiro: Graal, 2006.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosóficoda modernidade. Tradução de Luís CarlosRepa e Rodnei Nascimento. São Paulo: MartinsFontes, 2000. (Coleção Trópicos).

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica darazão indolente: contra o desperdício daexperiência: para um novo senso comum: aciência, o direito e a política na transiçãoparadigmática. São Paulo: Cortez, 2011.

Page 146: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

146

Page 147: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

147

ISSN eletrônico: 2179-8222

Área: Direito

Editor: Prof. Ms. Waldir de Pinho Veloso

Endereço eletrônico

(e-mail): [email protected]

Periodicidade: semestral

Idioma: Português

Forma de distribuição: eletrônica, constante napágina eletrônica direito.fasa.edu.br, com acessolivre. O formato é copiável, mas pede-se a citaçãode autor e fonte.

1 INFORMAÇÕES INICIAIS ETÉCNICAS SOBRE A REVISTA

A Revista Eletrônica Fas@Jus é uma publicaçãosemestral do Curso de Direito da Faculdade deDireito Santo Agostinho. Tal Faculdade tem sedeem Montes Claros, Minas Gerais, na Av. DonatoQuintino, 90, Shopping Center, CEP 39400-546. Ostelefones são (38) 3224-7905 (Coordenação), 3224-7901 (recepção) e 3224-7900 (geral).

A e-Revista Fas@Jus é uma publicação eletrônicae, em algumas oportunidades, são impressos algunsexemplares, com o fim de divulgação. É compostadas seguintes seções fixas:

ENTREVISTA – destinada a divulgar assuntosrelacionados ao Direito, orientação profissional etemas ligados aos órgãos nos quais atuam osoperadores do Direito;

ARTIGOS DO CORPO DOCENTE – espaçodestinado a publicar artigos científicos de autoriade Professores do Curso de Direito da Faculdadede Direito Santo Agostinho (FADISA). Nesteponto, uma explicação. A Fas@Jus não publicaartigos e resenhas envolvendo parceria deProfessores e Acadêmicos porque:

e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho

há seção exclusiva para publicação detextos dos Acadêmicos da Casa;

é forma de incentivar aos Acadêmicos apublicarem de forma isolada;

é forma de evitar que Professores exijamque seus Alunos façam artigos científicos eincluam os seus (dos Professores) nomes;

parcerias, normalmente, não valempontuação, para os Acadêmicos, emconcursos públicos de provas e títulos;

no caso específico da FADISA, somente apublicação individual pode levar o Acadêmicoautor a ser dispensado de feitura eapresentação de monografia como Trabalhode Curso;

ARTIGOS DO CORPO DISCENTE – espaçodestinado a publicar artigos científicos de autoriade Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdadede Direito Santo Agostinho (FADISA). São aceitasparcerias entre Acadêmicos, embora não sendoaconselhável porque tais publicações com mais deum autor, normalmente, não resultam em pontuaçãoem concursos públicos de provas e títulos e, nocaso da FADISA, somente a publicação individualpode levar o Acadêmico autor a ser dispensado defeitura e apresentação de monografia comoTrabalho de Curso;

ARTIGOS DE EGRESSOS – seção destinadaaos ex-alunos do Curso de Direito da Faculdadede Direito Santo Agostinho;

ELO COM OUTRAS IES – espaço apropriadopara publicação de artigos científicos de autoria de:

Acadêmicos de outras Instituições de EnsinoSuperior de todo o Brasil;

Egressos de outras Instituições de EnsinoSuperior de todo o Brasil;

Professores de outras Instituições deEnsino Superior de todo o Brasil;

AUTOR CONVIDADO – seção destinada aconter artigos científicos de autoria de pessoas que

Page 148: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

148

o Editor ou os componentes do Conselho Editorialconvidam a colaborar;

RESENHA – espaço destinado a publicação deresumo crítico, comparativo ou contendo emissãode juízo de valor por parte do autor sobre obrasartísticas que são da área do Direito ou são a talárea inter-relacionados. São exemplos: livros,filmes, peças teatrais, músicas e outras atividadesartísticas que tocam no tema dos segmentos doDireito.

2 NORMAS GERAIS E INICIAIS PARAQUAISQUER TIPOS DE MATERIALSUBMETIDO À ANÁLISE,APRECIAÇÃO E PUBLICAÇÃO

I – somente serão analisados, pelo ConselhoEditorial, materiais inéditos, entendo como inéditoo texto que tenha sido motivo de, em forma deresumo, eventuais apresentações orais, em eventoscientíficos;

II – a submissão de texto científico a ser analisadoe, se aprovado, publicado, importa em ciência deque há originalidade, não há plágios, fraude oucópias e que o material é inédito em termos depublicação, afirmações sob a responsabilidade, nassearas penais e civis, do autor;

III – a submissão dos trabalhos implica:

a) aceitação e autorização da publicação, seaprovado pelo Conselho Editorial, com cessão dosdireitos autorais de colaboração autoral inédita;

b) ciência de que o material, se aprovado parapublicação, poderá ser submetido a correçãolinguística, metodológica, de formatação epadronização;

c) ciência de que a não aprovação, por parte doConselho Editorial, não implica em responsabilidadede informar em que partes do texto foram notadasdeficiências (a reprovação do texto não se traduzpor oferta de correção ou sugestões);

d) ciência de que somente em casos excepcionaiso Conselho Editorial devolverá o material ao autor,para melhoramentos, adequações e adaptações,sendo a regra a reprovação do que não se encaixarnas regras ora fixadas.

3 NORMAS PARAPUBLICAÇÃO DE ARTIGOS

A Revista Eletrônica Fas@Jus, do Curso de Direitoda Faculdade de Direito Santo Agostinho aceitaanalisar artigos científicos que lhe sejamsubmetidos, com as seguintes condições.

PRIMEIRA. TEMA

Os artigos científicos submetidos dever conter, aprincípio, exclusivamente temas de Direito. Mas,há como mesclar Direito e outros segmentos dosaber (Direito e Economia, Direito e Psicologia,Odontologia Legal, Medicina Legal, por exemplos)assim como são aceitos textos envolvendo, tambémcomo exemplo, Educação Superior.

SEGUNDA. FORMATO DO DOCUMENTO

O artigo científico submetido:

I – deve ser enviado exclusivamente em textodigitado, redigido em Língua Portuguesa, sem enviode material impresso;

II – deve estar digitado com tipos Times NewRoman (preferencialmente) ou arial;

III – exceto as citações longas, o texto deve tertipos tamanho 12, com espaço 1,5 entre linhas;

IV – as citações curtas, de até três linhas, devemvir dentro do texto, entre aspas;

V – as citações longas devem:

a) ser digitadas em tipos de tamanho 11;

b) ser recuadas em 2,5cm (duas vezes o espaço1,25cm do parágrafo normal);

c) ter espaço simples (espaço 1) entre linhas;

d) ter referência a autor – apenas pelo sobrenomee em letras maiúsculas – data e número da página;

VI – ter, no mínimo, dez páginas, incluindobibliografia e notas de rodapé;

VII – estar redigido em formato word (não seadmitindo arquivo em PDF ou outro formato), comas seguintes especificações:

Page 149: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

149

a) a página deverá ser padronizada com margenssuperiores e esquerda com 3cm e margenssuperiores e direita com 2cm;

b) os recuos de parágrafos devem ter 1,25cm, e aseparação entre parágrafos deve ser feita comutilização de espaço normal entre linhas;

VIII – o título do artigo deve ser digitado emtamanho 14 ou 16, com efeito negrito e centralizado;

IX – se houver subtítulo do artigo, deve vir tododigitado em letras minúsculas – exceto em setratando de nomes próprios – e após o título, tendodois pontos imediatamente após a última letra dotítulo e antes do subtítulo;

X – o nome completo do autor do texto deve serdigitado em tamanho 12, alinhado à direita, comnota de rodapé contendo a qualificação resumidado autor (títulos e Instituições de Ensino às quaisse acha ligado ou nas quais obteve os títulos);

XI – o Resumo deve:

a) ter o máximo de 200 palavras, em únicoparágrafo;

b) estar digitado em espaço simples (espaço 1);

c) ser redigido em Língua Portuguesa;

d) conter até cinco palavras-chave, estas escritasna última linha;

XII – o Resumo deve ser traduzido,preferencialmente em inglês, na mesma condiçãodo Resumo, sob a forma de ABSTRACT, inclusiveas cinco correspondentes keywords;

XIII – os destaques devem ser feitosexclusivamente com utilização de tipos itálicos, nãose admitindo negrito e sublinhado;

XIV – a Bibliografia deve:

a) ser inserta ao fim do texto, exclusivamente;

b) ter o subtítulo como, apenas, REFERÊNCIAS;

c) ter espaço simples entre as linhas;

d) estar alinhada à esquerda;

e) conter:

1) nome de família do autor, em letras maiúsculas,seguido de vírgula;

2) restante do nome do autor somente com iniciais

maiúsculas, exceto partículas de ligação que ficamescritas em minúsculas (exemplos: de, da, e),seguido de ponto final;

2) título da obra somente com a primeira inicialmaiúscula, exceto em se tratando de nomespróprios, com efeito itálico; seguido de dois pontosse houver subtítulo ou ponto final quando nãohouver subtítulo;

3) se houver, subtítulo da obra somente com iniciaisminúsculas, exceto em se tratando de nomespróprios, sem efeitos;

4) nome do tradutor, se houver, seguindo de pontofinal;

5) número da edição indicada apenas peloalgarismo arábico seguido de ponto final e somenteem sendo da segunda edição em diante, e seguidoda palavra “ed.”, em letras minúsculas seguidasde ponto final, como forma de abreviar “edição”;

6) o nome da cidade em que houve a publicação,seguido de dois pontos;

7) o ano da edição, seguindo de ponto final;

8) notas esclarecedoras como título original ou aqual coleção pertence, se houver;

XV – o material gráfico e ilustrações devem:

a) ter largura entre 8,5cm e 16cm;

b) ser numeradas sequencialmente em algarismosarábicos;

c) estar localizados(as) dentro do texto, quandotratado do assunto em que a ilustração, quadro,tabela ou outra forma de ilustração se referir;

d) ter legendas escritas em tipos Times NewRoman, tamanho 8, logo abaixo da figura.

TERCEIRA. O TEXTO E OS SUBTÍTULOS

O texto deve ser apresentado em estilo“justificado” (de um lado ao outro da página) eseparado por subtítulos, precedidos de algarismosarábicos.

Quando se tratar de numeração primária(exemplos: 1, 2, etc.), o subtítulo dever vir todoescrito em letras maiúsculas, com efeito negrito.Quando se tratar de numeração secundária(exemplos: 1.1; 1.2; 2.1; 2.2, etc.), o subtítulo deveter somente as iniciais maiúsculas, exceto partículas

Page 150: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

150

de ligação e palavras monossilábicas (exemplos:de, para, por, as), com efeito negrito. Subtítulo comnumeração terciária (exemplos: 1.1.1; 1.1.2, etc.)deve conter apenas a primeira inicial maiúscula, esem efeito negrito.

QUARTA. NOTAS DE RODAPÉSomente são admitidas notas de rodapé paraidentificação resumida do autor (inciso X da notaSEGUNDA) e para notas explicativas. Não sãoadmitidas referências bibliográficas como nota derodapé. Os tipos das notas de rodapé devem serde números 9 ou 10.

QUINTA. ABREVIATURAS,ABREVIAÇÕES E SIGLASA primeira utilização de iniciais, abreviatura e siglasomente será admitida após o nome por extensoda sequência abreviada, e entre parênteses. A partirda primeira utilização de iniciais, abreviaturas esiglas, pode-se utilizar, opcionalmente, todo o nomeou a forma diminuída. Não se admite o uso deabreviações (exemplos: cine, fone).

Notar que não há pontos finais em iniciais ou siglas.

Exemplos de siglas: Faculdade de Direito SantoAgostinho (FADISA) ou Faculdade de DireitoSanto Agostinho (Fadisa) (nos exemplos, a palavraformada tem mais de quatro letras e, por isso, podeaparecer em caixa-alta ou somente com a primeiraletra em maiúscula; se fosse composta de atéquatro letras, o uso seria, exclusivamente,exclusivamente com letras maiúsculas).

Exemplos de iniciais: Fundo Monetário Internacional(FMI); Núcleo Docente Estruturante (NDE).

SEXTA. NUMERAISNo texto, os numerais são escritos por extenso

entre um e vinte e a cada vez que a indicação forem números pronunciados com única palavra(exemplos: trinta, cem, quinhentos, mil) e emalgarismos nos demais casos (exemplos: 21, 45,135, 1.011). Deve-se notar que a partir de mil, háponto final entre o milhar e a centena. Não se usaponto final entre o milhar e a centena é em datas.Exemplos: 2015, 1968, 2045.

4 NORMAS ESPECÍFICAS PARAPUBLICAÇÃO DE RESENHAS

A Revista Eletrônica Fas@Jus, do Curso de Direitoda Faculdade de Direito Santo Agostinho aceitaanalisar resenhas que lhe sejam submetidas. Aelaboração de resenhas deve obedecer, em tudo,as normas para publicações de artigos, exceto asseguintes particularidades:

I – admite-se texto sem subtítulos ou com subtítulosem numeração;

II – o texto deve ter, no mínimo, cinco páginas;

III – não há resumo e/ou abstract;IV – as obras resenhadas devem, obrigatoriamente,envolver o Direito, não se fixando quais asmodalidades intelectuais em que a arte analisadaé apresentada (exemplos: filmes, livros literário,peças teatrais e outras).

V – admite-se Referência com apenas dados daobra resenhada.

5 NORMAS DA ABNTEm quaisquer textos submetidos à análise doConselho Editorial da Fas@Jus, a e-Revista doCurso de Direito da Faculdade de Direito SantoAgostinho, devem ser observadas as normas daAssociação Brasileira de Normas Técnicas(ABNT) em tudo que não ficou descrito nas regrasanteriormente descritas.

Page 151: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

151

Page 152: FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo ...direito.fasa.edu.br/k/fasajus/1022898.pdf · RESENHA MICROFÍSICA DO PODER: Capítulo XII – soberania e disciplina Hortência

FAS@JUS - e-Revista da Faculdade de Direito Santo Agostinho, v. 6, n. 1/2016

152