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Índice 1. Fátima nunca mais! 2. No outro lado de Fátima, à procura de Maria de Nazaré. 3. Irmãzinhas de Jesus: com elas, entendemos melhor Maria de Nazaré e o evangelho dos pobres. 4. Fátima: privilégio ou responsabilidade? 5. Não será que também Fátima precisa de se converter ao evangelho de Jesus? 6. O que as crianças viram não foi nossa senhora 7. Fátima: um inferno de mau gosto

Fátima nunca mais

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Índice

1. Fátima nunca mais!

2. No outro lado de Fátima, à procura de Maria de Nazaré.

3. Irmãzinhas de Jesus: com elas, entendemos melhor Maria de Nazaré e o evangelho dos

pobres.

4. Fátima: privilégio ou responsabilidade?

5. Não será que também Fátima precisa de se converter ao evangelho de Jesus?

6. O que as crianças viram não foi nossa senhora

7. Fátima: um inferno de mau gosto

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8. Agora, com o comunismo derrotado, frei bento interroga-se: qual o papel de Fátima?

9. Deuses contra deus

10. Do deus de Fátima livra-nos, senhor!

11. Há anos que ele faz incomodas perguntas sobre "Fátima" e, em lugar de respostas

satisfatórias, recebe insultos.

12. Evangelizar a senhora de Fátima

13. Fia-te na virgem e não corras!

14. Eu, Maria, mãe de Jesus, não tenho nada a ver com a senhora de Fátima.

15. Não há nenhum segredo de Fátima

16. O culto a n. s. de Fátima afasta-nos do deus que se revelou em Maria de Nazaré. Muitas

conferências, nenhum debate.

18. O milagre da jacintinha

19. Aparições e visões: quem nos livra delas?

20. Manifestação de fé ou de paganismo? Fátima: a glória da nossa terra ou a nossa

vergonha? Teologicamente, um vomita lula.

23. No inferno, os pecadores uivam como cães danados.

24. Como brasas transparentes

25. E a imagem da senhora de Fátima chorou!...

26. Fátima: a grande ilusão

Observações (algumas erros na escrita deste livro são apenas decorrentes do processo de

cópia e da variação do idioma português) ignore o livro é o mesmo original do Autor.

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Fátima nunca mais!

1. Quando, há tempos, aceitei participar num debate promovido.

Pela sic e respondi abertamente "não!" à pergunta "acredita nas

Aparições de Fátima?”“, foi um escândalo (quase) nacional. nunca

Tal se ouvira na televisão, para mais, da boca de um padre.

Católico. Infelizmente, o debate abortou pouco depois de ter.

Começado, e quase não me foi possível apontar as razões do meu.

Não. O que terá deixado toda a gente mais ou menos frustrada. E

Até a pensar menos bem de mim.

Mas o impacto da minha resposta foi tal, que até o próprio.

Jornalista que conduzia o debate não conseguiu esconder o seu ar

De espanto. Apressei-me, por isso, a recordar tanto a ele como a.

Todas as portuguesas e portuguesas que, nessa hora, sintonizavam.

A sic - e deveriam ser milhões, tal o impacto do debate que, ao.

Contrário do que pensa a maior parte das pessoas, mesmo não.

Católicas, as aparições de Fátima não fazem parte do núcleo Da.

Fé cristã católica; o que quer dizer que se pode não acreditar.

Em Fátima e continuar a ser cristão católico romano.

Mesmo assim, e talvez porque não costuma ser esta a.

Mensagem-informação sobre as aparições de Fátima que passa nas

Pregações dos párocos e dos bispos, nem nas peregrinações que,

Um pouco de todo o país e de muitas partes do mundo, são.

Reiteradamente organizadas para lá, a verdade é que, se eu já.

Era um padre meio maldito, passei, desde então, a ser maldito de.

Todo, aos olhos de quase todos os meus irmãos e irmãs de fé.

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Católica.

Entretanto, se ainda me aflijo com isso, não é por mim que me.

Aflijo, mas por todos aqueles e aquelas que, preguiçosamente,

Preferem continuar a escandalizar-se com as minhas declarações,

Honestamente ditadas pela fé cristã que me anima e dá sentido à

Minha vida, em vez de interpelados por elas, apressar-se,

Elas e eles também, a meter mãos ao trabalho para investigarem.

Seriamente o que se passa à volta de Fátima.

É que, com posições assim preguiçosas e acomodadas,

Objetivamente tão contrárias à fé cristã, dificilmente.

Conseguiremos ir longe à liberdade e em responsabilidade

Humanas. i, em vez disso, manter-nos-emos, geração após geração,

Como uma espécie de Portugal dos pequeninos e uma igreja de

Críticas (não é verdade que na generalidade, todos os que nos

Confessamos católicos, fomos batizados poucos dias ou poucas.

Semanas depois de termos nascido e que nunca mais crescemos na

Fé nem nas razões dela?(), inevitavelmente à mercê de influentes.

Hierarquias políticas e eclesiásticas! Uma postura social e

Eclesial que, indubitavelmente, também a senhora de Fátima tem.

Ajudado, e muito, a programar. Não só em Portugal, mas também.

Um pouco por todo o mundo católico.

2. Entretanto, quando, na sic, respondi que não acreditava nas.

Aparição de Fátima mais não fez do que retomar hoje a mesma

Atitude que a igreja católica em Portugal tomou entre 1917 e

1930. Na verdade, durante 13 anos, também ela não acreditou nas.

Aparições de Fátima. E podia ter-se apressado a reconhecê-las,

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Porque, até então, eram já muitos os milhares de pessoas que.

Acorriam a Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro, de cada.

Ano. E, inclusive, havia já ocorrido o chamado "milagre do sol",

No dia 13 de outubro de 1917.

Porém, só em 1930 é que a igreja católica reconhece Fátima. Um

Reconhecimento oficial a que não terá sido alheio o fato de ter

Saído vitorioso o golpe militar de 28 de maio de 1926.

O novo regime, obscurantista católico, saído deste golpe militar.

E presidido pelo duplo Salazar cardeal cerejeira, carecia de uma.

Coisa assim para mais facilmente se implantar nas populações. A

Senhora de Fátima, com a mensagem retrógrada, moralista e.

Subserviente que lhe é atribuída e que, ainda hoje, vai tão ao.

Encontro da generalidade dos nossos funcionários eclesiásticos

Católicos e do paganismo religioso-católico das nossas

População vinha mesmo a matar. Nem sequer era preciso

--10-

Esforçar-se por arregimentar as populações à volta do clero.

Bastava ir ao seu encontro, todos os meses, em Fátima.

Vai daí, em lugar de continuar a demarcar-se do fenômeno e até hostilizá-

lo, a hierarquia maior da igreja católica, em 1930,.

Mudou radicalmente de estratégia e reconheceu-o e canonizou-o,

Como sobrenatural.

Terá percebido nessa altura que, se não adiasse mais esse

reconhecimento, os lucros seriam enormes, como, efetivamente,

Foram. Lucros financeiros, lucros políticos, lucros clericais.

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Lucros eclesiástico-católicos.

Algo assim como um verdadeiro "milagre", não de deus,

Evidentemente, que deus nunca faz milagres - com eles, faria de nós uns

súbditos assustados, em vez de filhas e filhos livres irresponsáveis-, mas

um "milagre" produzido por aquela vertente demoníaca que, sobretudo em

horas de maior aflição, sempre se manifesta no mais fundo dos seres

humanos e os leva a.

Prostrar-se de joelhos não só diante de imagens surdas e mudas,

Mas também diante dos representantes do idolatrado poder religioso e

eclesiástico, na ilusória esperança de que, assim,

As suas muitas aflições poderão encontrar qualquer mágica saída.

Por outro lado, esta nova atitude da hierarquia maior da igreja católica

veio revelar-se, igualmente, como um verdadeiro trunfo contra a república

de 1910. E contra a liberdade. Contra autonomia individual. E contra todas

as outras igrejas nãocatólicas. Contra a maçonaria. E contra a laicidade e a

cidadania, então incipientes.

Mas o pior - e parece que na igreja católica ainda ninguém,

Entre os mais responsáveis, deu por isso - é que essa surpreendente

mudança de estratégia da hierarquia maior católica, relativamente às

"aparições" de Fátima, materializava também uma histórica traição ao

evangelho de Jesus cristo. Uma traição que acabou por desfigurar

completamente o cristianismo,

Tal como o próprio Jesus cristo o inspirou com a sua prática e palavra, no

sentido de que ele materializasse, na história, avia de realização humana

integral, saudavelmente cômoda, como usar da terra,

E libertadoramente subversiva, como a luz do mundo (MT cinco). (

3. Só que Fátima e as suas pretensas aparições resumiam-se,

Nessa altura, praticamente a nada. Para cúmulo, das três crianças.

--11-

Que, em 1917, afirmaram a pés juntos que tinham visto nossa

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Senhora - uma delas, Francisco, nunca ouviu nada e tanto ele,

Como a sua irmã, jacinta, nunca disseram uma palavra que fosse à.

Senhora das "aparições", apenas Lúcia foi protagonista, o que.

Prova que até nas "aparições do céu" há discriminação!... - duas

Delas já tinham morrido, há uns dez onze anos, de pneumônica. E

Também em consequência do terror que a senhora de Fátima lhes

Incutiu (entenda-se, certas catequeses moralistas e terroristas.

(De grande parte do clero de então).

Na circunstância, valeu, por isso, ao regime e à sua poderosa.

Dupla, Salazar cardeal cerejeira, a existência de Lúcia, a mais.

Velha das três antigas crianças "videntes". Talvez, por ser mais.

Vigorosa e menos impressionável, conseguiu sobreviver a todo.

Aquele terror que a senhora de Fátima materializava e

Materializa ainda hoje.

Entretanto, alguns clérigos mais fanáticos do catolicismo.

Obscurantista e moralista de então - eles viam nas "aparições de

“Fátima” não a presença do demoníaco, como elas efetivamente.

São, mas sim a presença do divino, e até um verdadeiro milagre.

Do céu - haviam conseguido arrastar a pequenina Lúcia, poucos.

Anos depois de 1917, para fora da sua aldeia e encurralaram-na,

Primeiro, no asilo de Vilar, no porto, e, depois, num convento.

Da Gales. Foram ao ponto de lhe arrancar o nome (é o mesmo que

(Tirar-lhe a identidade) e passaram a chamar-lhe - imagine-se!

Irmã Maria das dores. Ao mesmo tempo, proibiram-lhe que alguma.

Vez falasse a alguém das "aparições".

O terreno estava, pois, mais do que preparado para obter desta.

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Antiga "vidente" uns relatos bem mais completos das "aparições",

Os quais, duma vez por todas, impusessem Fátima à igreja e ao.

Mundo. E, se bem o pensaram, melhor o fizeram.

Deram ordens à irmã dores (atualmente, ela é, de novo, Lúcia),

Sempre em nome, é claro, do voto de obediência, para que ela.

Escrevesse. E até lhe forneceram, antes de cada relato,

Orientações muito precisas sobre o que ela deveria escrever.

Finalmente, corrigiram-lhe os textos que ela manuscreveu, para.

Que pudessem ser publicados sem erros e com boa pontuação. Tudo

Muito isento como se vê!...

--12-

4. “Nasceu, assim, a memória da irmã Lúcia”, um livro.

Bizarro e delirante, mas imprescindível para se entender Fátima.

E a sua senhora.

Os relatos do livro surpreenderam tanto os críticos de Fátima que estes

passaram a chamar-lhes "Fátima ii",

Tão diferentes eles eram dos relatos primitivos de 1917, que,

Por isso, passaram a ser referidos como "Fátima i" e que não.

Passam estes últimos, de curtos depoimentos, mais ou menos.

Ingênuos, das três crianças ditas "videntes".

Quatro dessas cinco memórias foram escritas entre 1935 e 1941;

Mas a quinta e última memória foi escrita ainda muito mais

Recentemente-já em 1989! O livro que as contém encontra-se

Traduzido em várias línguas e tem conhecido sucessivas edições.

Quer isto dizer que são textos escritos muitos anos depois das

Pretensas "aparições", e apenas por uma das suas vítimas, a.

Qual, embora tenha conseguido sobreviver ao terrorismo que elas.

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Materializaram, nunca mais pôde ter, desde então, uma vida.

Normal e equilibradamente saudável no meio do mundo.

Violentamente sequestrada da sua aldeia, poucos anos depois das.

"aparições", encurralada mais ou menos à força num convento sob.

Um nome que nem sequer era o dela e acompanhada por confessores

Fanáticos e beatos que viam sobrenatural em tudo, ao mesmo tempo.

Que tinham uma histérica fobia por tudo o que fosse mundo e

República, laico e secular, liberdade de consciência e.

Cidadania, eis que a pobre rapariga de Fátima passou a ser um.

Joguete nas mãos deles, a cujos olhos, para cúmulo, todos os.

Processos a utilizar eram legítimos, desde que servissem para.

Ajudar a derrotar mais depressa e mais eficazmente a república e

Todos os outros supostos "inimigos" da igreja católica.

Pode, por isso, dizer-se que Lúcia nunca mais se encontrou a si.

Mesma, e, pelo que ela própria conta no livro das memórias,

Sobretudo, nos dois apêndices, vê-se que tem vivido em delírios.

Quase contínuos, com aparições de nossas senhoras e de nossos.

Senhores, a toda a hora e instante, que lhe confiam mensagens,

Para ela, por sua vez, confiar aos bispos e ao papa.

Enfim, uma verdadeira desgraça. Para não dizer um crime, que, em.

Vez de ser denunciado e julgado irá ser depois da morte de

Lúcia, provavelmente, canonizada, quando os sucessores dos.

--13-

Eclesiásticos que tanto a oprimiram e alienaram exigirem do

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Vaticano que a beatifique e declare santa dos altares!

5. Nestas circunstâncias, que valor probatório gozam essas.

Memórias da irmã Lucia? Que credibilidade merece? Tomar a sério

O que lá está escrito e edificar sobre estes relatos,

Manifestamente delirantes, a base da religião de Fátima não é.

Uma injúria à fé cristã e ao evangelho de Jesus cristo? Não é um

Insulto a deus, pelo menos, àquele deus que se nos revelou.

Plenamente em Jesus de Nazaré, e em Maria, sua mãe carnal e exemplar

discípula?

Mas a verdade é isto que continuamos hoje a ver em Fátima. Ou

Seja, vemos a senhora de Fátima ser cultuada, como a grande.

Deusa da serra d'abre, e, embora este culto tenha tudo de.

Demoníaco e nada de cristão e de humano são, sem dúvida, às.

Memórias da irmã Lúcia e aos suas demências delírios que se vai

Buscar todo o seu fundamento.

Por mim, tenho plena consciência do chocante que estas minhas.

Afirmações consubstanciam. Mesmo assim, não deixo de fazê-las.

Com serenidade. Em nome da liberdade. Em nome do bom senso. Em

Nome da sanidade mental. E, sobretudo, em nome do evangelho de.

Jesus, pelo menos, tal como eu o experimento e procuro viver,

Para cujo arníncio aos pobres fui constituído presbítero, por.

Causa do qual, antes dos 25 de abril de 74, fui duas vezes preso.

E, desde então, me vejo votado ao ostracismo eclesiástico,

Certamente por ter-me tornado demasiado incomodo na igreja.

Mas não se pense que é apenas de agora esta minha posição sobre

Fátima e a sua senhora. Quando fui pároco de macieira da lixa,

Entre 1969 e 1973, já então promovi com a paróquia uma séria.

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Reflexão teológica e cristo lógico sobre Maria de Nazaré. Foi

Durante todo o mês de maio de 1970 (cf. o meu livro "Maria de

“(Nazaré”, edições afrontamento, porto).

Em lugar de nos refugiarmos no templo paroquial a repetir, no.

Mínimo, cinquenta vezes por dia as mesmas palavras do terço,

Ocupamos o tempo a refletir e a aprofundar, a partir do.

Evangelho e de Jesus de Nazaré, quem era Maria, sua mãe.

--14-

Foi uma inesquecível experiência de libertação para a liberdade

E de fraterna alegria. Recordo-me que, no encontro.

Correspondente ao dia 12 de maio desse ano, uma das perguntas.

Que então soou no interior do templo paroquial, transformado por.

Nós em espaço de convívio e de busca comunitária da verdade foi

Esta: "a senhora de Fátima ainda será Maria?". E todos os dados,

Já então apresentados, levavam-nos a concluir que a senhora de.

Fátima não tinha nada a ver com Maria, mãe de Jesus, ainda que,

Oficialmente, a igreja católica persista, insensatamente, ainda.

Hoje, a dizer que sim, que são apenas dois nomes distintos para.

Nomear a mesma pessoa. Pura mentira!

6. Mas foi, sobretudo depois que assumi as funções de diretor do

jornal fraternizar que senti o apelo a voltar ao assunto senhora

de fátima, concretamente, na edição referente a cada um dos

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últimos meses de maio.

esta decisão levou-me a ler-analisar com mais atenção o livro

"memórias da irmã lúcia". e, se já não tinha qualquer fé na

senhora de fátima, nem nas chamadas aparições, a leitura crítica

deste livro, escrito com o manifesto objectivo de fundamentar as

aparições e impor definitivamente fátima à igreja e ao mundo,

fez de mim um convicto militante anti-fátima. também em nome de

maria. e do evangelho.

a leitura destes escritos deixou-me, evangélica e

teologicamente, horrorizado. nem a senhora de fátima da

"vidente" lúcia, tal como ela se lhe refere, corresponde a

maria, mãe carnal de jesus e a sua melhor e mais perfeita

discípula, nem o deus dos seus textos corresponde no deus que

nós, cristãos e cristãs, reconhecemos e proclamamos e que se

revelou definitivamente na pessoa de jesus de nazaré, o

ressuscitado que, antes, havia sido crucificado.

digamos que o deus das memórias da irmã lúcia tem tudo a ver com

o deus do templo de jerusalém, em nome do qual, o próprio jesus

foi condenado à morte e executado, por o ter posto em cheque, em

nome de outro deus, de misericórdia e de perdão, sem religião e

sem templo, a quem ele, numa intimidade ainda hoje

desconcertante para nós, tratava por "abbá", uma

--15--

expressão aramaica que diz mais, infinitamente mais, do que

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"pai" ou "paizinho", como os tradutores da bíblia costumam

traduzir para as diversas línguas hoje faladas.

tenho, por isso, para mim que fátima e a sua senhora, mais do

que toleradas, deverão ser teologicamente denunciadas e

desmascaradas. para que as populações tomem consciência do

veneno que ambas veiculam, sob o disfarce de grandiosas

manifestações de fé.

quem tiver dúvidas e achar exagerado isto que acabo de escrever

experimente ler-analisar criticamente as "memórias da irmã

lúcia" e os seus dois curtos apêndices. mesmo que conheça pouco

o evangélho de jesus e não seja muito profundo em teologia

cristã, poderá acabar por experimentar o mesmo que eu

experimentei. basta que tenha um mínimo de humanidade, de bom

senso e de sanidade mental, para logo se demarcar de tudo aquilo

que só uma mente que outros criminosamente perturbaram é capaz

de ver e ouvir e de apresentar aos outros como de deus.

7. aqui ficam, entretanto, alguns extractos dessas cinco

memórias da irmã lúcia, tais como as lemos na 6. edição, de

março de 1990, numa compilação do pe. luís kondor, svd, com

introdução e notas do pe. dr. joaquim m. alonso, smf, falecido

em 1981, e do pe. dr. luciano cristino. leiam e deixem-se

estarrecer.

vejam o ambiente de terror religioso em que viveram as três

crianças das "aparições". o tipo de catequese que lhes era

ministrado. vejam quem é a senhora de fátima. como fala e do que

fala. o que pretende. com o que mais se preocupa. como trata as

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crianças. que imagem lhes transmite de deus. que catequese

terrorista lhes ensina. ao que é que as chama. em nome de quê as

mobiliza.

verão, então, que até as crianças acabam por ser bem melhores do

que o próprio deus. se ele é capaz, por exemplo, de condenar os

"pecadores" ao lnferno eterno, as crianças, ao contrário dele,

são capazes de se sacrificar, para que tal não aconteça!...

leiam e concluirão, certamente, como eu concluí, que será muito

difícil alguém da igreja católica poder vir a criar uma imagem

mais monstruosa de deus, de jesus e de maria, do que esta imagem

que a irmã lúcia criou com as suas memórias.

--16-

8. primeira memória

a introdução esclarece que este é "o seu (de lúcia) primeiro

escrito extenso". e diz-nos como o livro nasceu. "no dia 12 de

setembro de 1935 eram trasladados, do cemitério de vila nova de

ourém para o de fátima, os restos mortais de jacinta. nesta

ocasião, tiraram-se diversas fotografias ao cadáver; algumas

delas foram enviadas pelo sr. bispo (de leiria) à irmã lúcia

que, então, se encontrava em pontevedra". lúcia agradeceu a

lembrança, em carta de 17 de novembro do mesmo ano.

as recordações que as fotografias suscitaram em lúcia "induziram

o sr. bispo a mandar-lhe escrever tudo o que se recordasse (da

sua primita jacinta)". a introdução esclarece ainda que "o

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escrito, começado na segunda semana de dezembro, estava

terminado no dia de natal de 1935".

o texto apresenta-se dirigido ao "ex." e rev." senhor bispo".

atentem no misticismo e servilismo da linguagem, logo a começar:

"depois de ter implorado a protecção dos santíssimos corações de

jesus e maria, nossa terna mãe, de ter pedido luz e graça aos

pés do sacrário, para não escrever nada que não seja única e

exclusivamente para glória de jesus e da santíssima virgem,

venho, apesar da minha repugnância, por não poder dizer quase

nada da jacinta sem directa ou indirectamente falar do meu

miserável ser. obedeço, no entanto, à vontade de v ex."a

reverência que, para mim, é a expressão da vontade de nosso bom

deus" (sic).

e acrescenta: "vou ver se dou começo à narração do que me lembro

da vida da jacinta. como não disponho de tempo livre, durante as

horas silenciosas de trabalho, num bocado de papel, com um lápis

escondido debaixo da costura, irei recordando e apontando o que

os santíssimos corações de jesus e maria quiserem fazer-me

recordar". eis alguns extractos.

"um dia, jogávamos isto (às prendinhas), em casa dos meus pais,

e tocou-me a mim mandá-la a ela. meu irmão estava sentado a

escrever junto duma mesa. mandei-a, então, dar-lhe um abraço e

um beijo, mas ela respondeu: - isso não! manda-me outra coisa.

--17-

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por que não me mandas beijar aquele nosso senhor que está ali?

(era um crucifixo que havia na parede)... a nosso senhor dou

todos quantos quiseres."

"a jacinta gostava muito de ouvir o eco da voz no fundo dos

vales. por isso, um dos nossos entretenimentos era, no cimo dos

montes, sentados no penedo maior, pronunciar nomes em alta voz.

o nome que melhor ecoava era o de maria. a jacinta dizia, às

vezes, assim, a avé-maria inteira, repetindo a palavra seguinte

só quando a precedente tinha acabado de ecoar.

gostávamos também de entoar cânticos. entre os vários profanos

que infelizmente sabíamos bastantes, a jacinta preferia o "salve

nobre padroeira, virgem pura, anjos cantai comigo."

"tinham-nos recomendado que, depois da merenda, rezássemos o

terço; mas, como todo o tempo nos parecia pouco para brincar,

arranjámos uma boa maneira de acabar breve: passávamos as

contas, dizendo somente: avé maria, avé maria, avé maria! quando

chegávamos ao fim do mistério, dizíamos, com muita pausa, a

simples palavra: padre nosso!"

- jacinta! por que não queres brincar? - porque estou a pensar.

aquela senhora disse-nos para rezarmos o terço e fazermos

sacrifícios pela conversão dos pecadores (...). o francisco

discorreu em breve um bom sacrifício: - demos a nossa merenda às

ovelhas e fazemos o sacrifício de não merendar! em poucos

minutos, estava todo o nosso farnel distribuído pelo rebanho. e

assim passámos um dia de jejum, que nem o do mais austero

cartuxo! a jacinta continuava sentada na sua pedra, com ar de

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pensativa e perguntou: -aquela senhora disse também que iam

muitas almas para o inferno. e o que é o inferno? - É uma cova

de bichos e uma fogueira muito grande (assim mo explicava minha

mãe) e vai para lá quem faz pecados e não se confessa e fica lá

sempre a arder. - e nunca mais de lá sai? - não. - depois de

muitos, muitos anos?! - não; o inferno nunca acaba. e o céu

também não. quem vai para o céu nunca mais de lá sai. e quem vai

para o inferno também não. (...)

--18-

mesmo brincando, de vez em quando (a jacìnta) perguntava: - e

aquela gente que lá está a arder não morre? e não se faz em

cinza? e se rezar muito pelos pecadores, nosso senhor livra-os

de lá? e com os sacrifícios também? coitadinhos! havemos de

rezar e fazer muitos sacrifícios por eles! depois, acrescentava:

que boa é aquela senhora! já nos prometeu levar para o céu!".

"a jacinta tomou tanto a peito os sacrifícios pela conversão dos

pecadores, que não deixava escapar ocasião alguma. (...) colhia

as bolotas dos carvalhos ou a azeitona das oliveiras. disse-lhe

um dia: - jacinta, não comas isso, que amarga muito. - pois é

por amargar que o como, para converter os pecadores. (...) a

jacinta parecia insaciável na prática do sacrifício (...). o dia

estava lindo, mas o sol era ardente (...) parecia querer abrasar

tudo. a sede fazia-se sentir e não havia pinga d'água para

beber. a princípio, oferecíamos o sacrifício com generosidade

pela conversão dos pecadores; mas passada a hora do meio dia,

não se resistia. propus então aos meus companheiros ir a um

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lugar,

à que ficava cerca pedir uma pouca de água. (...) em seguida,

dei a infusão ao francisco e disse-lhe que bebesse. - não quero

beber, respondeu. - porquê? - quero sofrer pela conversão dos

pecadores. - bebe tu, jacinta! - também quero oferecer o

sacrifício pelos pecadores! deitei, então, a água numa cova duma

pedra para que a bebessem as ovelhas e fui levar a infusa à sua

dona. o calor tornava-se cada vez mais intenso. as cigarras e os

grilos juntavam o seu cantar ao das rãs da lagoa vizinha e

faziam uma gritaria insuportável. a jacinta, debilitada pela

fraqueza e pela sede, disse-me, com aquela simplicidade que lhe

era habitual: diz aos grilos e às rãs que se calem! dói-me tanto

a minha cabeça!

então o francisco perguntou-lhe: - não queres sofrer isto pelos

pecadores?

a pobre criança, apertando a cabeça entre as mãozinhas,

respondeu: - sim, quero. deixa-as cantar".

"foram interrogar-nos dois sacerdotes que nos recomendaram que

rezássemos pelo santo padre. a jacinta perguntou quem era o

santo padre e os bons sacerdotes explicaram-nos quem era e como

precisava muito de orações. a jacinta ficou com tanto

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amor ao santo padre que sempre que oferecia os seus sacrifícios

a jesus, acrescentava: e pelo santo padre. no fim de rezar o

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terço, rezava sempre três ave-marias pelo santo padre e algumas

vezes dizia: -quem me dera ver o santo padre! vem cá tanta gente

e o santo padre nunca cá vem."

"passavam assim os dias da jacinta, quando nosso senhor mandou a

pneumónica, que a prostrou na cama, com seu irmãozinho. nas

vésperas de adoecer, dizia: - dói-me tanto a cabeça e tenho

tanta sede! mas não quero beber, para sofrer pelos pecadores!

(...)

um dia, sua mãe levou-lhe uma xícara de leite e disse-lhe que o

tomasse. - não quero, minha mãe, respondeu, afastando com a

mãozinha a xícara (...) logo que ficámos sós, perguntei-lhe: como

desobedeces assim a tua mãe e não ofereces este sacrifício

a nosso senhor? ao ouvir isto, deixou cair algumas lágrimas que

eu tive a felicidade de limpar e disse: - agora não me lembrei!

(...)

um dia, perguntei-lhe: - estás melhor? - já sabes que não

melhoro. e acrescentou: - tenho tantas dores no peito! mas não

digo nada; sofro pela conversão dos pecadores."

"de novo, a santíssima virgem se dignou visitar a jacinta, para

lhe anunciar novas cruzes e sacrifícios. deu-me a notícia e

dizia-me: - disse-me que vou para lisboa, para outro hospital;

que não te torno a ver, nem os meus pais; que depois de sofrer

muito, morro sozinha, mas que não tenha medo; que me vai lá ela

buscar para o céu."

9. segunda memória

a segunda memória começou a ser escrita no dia 7 de novembro de

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1937 e terminou no dia 21. como é que esta aparece? segundo o

texto da introdução, "o sr. bispo, posto de acordo com a madre

provincial das doroteias, madre maria do carmo corte-real, dá

ordem à lúcia". ela escreve, então, 20 anos depois de 1917, com

a intenção de "deixar ver a história de fátima tal qual ela é".

talvez dissesse melhor se escrevesse: deixar ver a história de

fátima como a minha fantasia hoje

--20-

mo diz e, sobretudo, como mais convém à hierarquia da igreja

católica!...

ela própria começa por reconhecer que "nem sequer a caligrafia

sei fazer capazmente", mas a verdade é que o texto final

apresenta-se muito bem concebido e escrito. será integralmente

dela? que mãozinha terá estado por trás?

eis alguns extractos mais significativos.

9.1. antes das "aparições"

"havia na igreja (paroquial) mais que uma imagem de nossa

senhora. "se calhar, tantas quantas ela depois "verá" nas

"aparições".... mas, como minhas irmãs arranjavam o altar de

nossa senhora do rosário [pelos vistos, na última "aparição", de

outubro, a senhora dirá que se chama a senhora do rosário! mas

que coincidência!...], estava por isso habituada a rezar diante

dessa e, por isso, lá fui também dessa vez. pedi-lhe, pois, com

todo o ardor de que fui capaz [tinha acabado de se confessar

Page 21: Fátima nunca mais

para a primeira comunhão, aos seis anos!...] que guardasse, para

deus só, o meu pobre coração. ao repetir várias vezes esta

humilde súplica, com os olhos fitos na imagem, pareceu-me que

ela se sorria e que, com um olhar e gesto de bondade, me dizia

que sim. fiquei tão inundada de gozo, que a custo conseguia

articular palavra".

imediatamente depois de ter comungado: "dirigi-lhe então as

minhas súplicas: - senhor, fazei-me uma santa, guardai o meu

coração sempre puro, para ti só.

aqui, pareceu-me que o nosso bom deus me disse, no fundo do meu

coração, estas distintas palavras: -a graça que hoje te é

concedida permanecerá viva em tua alma, produzindo frutos de

vida eterna. sentia-me de tal forma transformada em deus!"

9.2. as "aparições"

aos sete anos, lúcia é feita "pastora", em substituição da sua

irmã carolina, então com 12 anos. no dia seguinte, avança com

duas companheiras para "um monte chamado o cabeço. na encosta

deste monte, ao sul, ficam os valinhos, que v ex." rev."'

de nome, já deve conhecer. (...)

um pouco mais ou menos aí pelo meio-dia, comemos a nossa merenda

e, depois dela, convidei as minhas companheiras para

--21-

Page 22: Fátima nunca mais

rezarem comigo o terço, ao que elas anuíram [olhem só para esta

palavra tão pouco popular...] com gosto. mal tínhamos começado,

quando, diante de nossos olhos, vemos, como que suspensa no ar,

sobre o arvoredo, uma figura como se fosse uma estátua de neve

que os raios do sol tornavam algo transparente. - que é aquilo?,

perguntaram as minhas companheiras, meias assustadas. - não

sei!".

mais tarde, em casa, a mãe pergunta: "- ouve lá: dizem que viste

para aí não sei o quê. o que é que tu viste? (...) como não

sabia explicar, acrescentei: - parecia uma pessoa embrulhada num

lençol (...) não se lhe conheciam olhos nem mãos.

minha mãe rematou tudo com um gesto de desprezo, dizendo: tolices

de crianças".

9.3. "aparições" do anjo em 1916" passado algum tempo, voltámos

com os nossos rebanhos para esse mesmo sítio e repetiu-se o

mesmo, da mesma forma.(...) várias pessoas começaram por fazer

troça. e como eu, desde a minha primeira comunhão, me ficava por

algum tempo como que abstracta, recordando o que se tinha

passado, minhas irmãs, com algo de desprezo, perguntavam-me: estás

a ver algum embrulhado no lençol?"

entretanto, as primeiras companheiras de lúcia, pastora, foram

substituídas pelos primos, jacinta e francisco. até que "um belo

dia (...) eis que um vento forte sacode as árvores e faz-nos

levantar a vista. (...) vemos então que sobre o olival se

encaminha para nós a tal figura de que já falei (...) À maneira

que se aproximava, íamos divisando as feições: um jovem dos seus

Page 23: Fátima nunca mais

14 a 15 anos, mais branco que se fora de neve, que o sol tornava

transparente como se fora de cristal e duma grande beleza. ao

chegar junto de nós, disse: não temais! sou o anjo da paz. orai

comigo. e ajoelhando em terra, curvou a fronte até ao chão e

fez-nos repetir três vezes estas palavras: - meu deus! eu creio,

adoro, espero e amo-vos. peço-vos perdão para os que não crêem,

não adoram, não esperam e vos não amam. depois, erguendo-se

disse. - orai assim. os corações de jesus e maria estão atentos

à voz das vossas súplicas.

as suas palavras gravaram-se de tal forma na nossa mente, que

jamais nos esqueceram".

--22-

o relato prossegue. o anjo dirá, tempos depois, que é "o anjo de

portugal". ensina-lhes outra oração, enorme, nitidamente,

inventada por algum eclesiástico católico, dirigida à

"santíssima trindade" e que, bem analisada, não passa dum

disparate teológico. e até lhes dá a comunhão sob as duas

espécies!

"dá-me a sagrada hóstia a mim e o sangue do cálix divide-o pela

jacinta e o francisco, dizendo ao mesmo tempo: - tomai e bebei o

corpo e sangue de jesus cristo, horrivelmente ultrajado pelos

homens ingratos. [os republicanos?!...] reparai os seus crimes e

consolai o vosso deus."

o curioso é que a mesma lúcia, nas memórias que escreve sobre a

jacinta e o francisco, respectivamente, quase se "esquece" de

referir que eles viram o anjo de portugal, que lhes ensinou

Page 24: Fátima nunca mais

estas orações.

temos, pois, de dizer que todas estas "aparições" do "anjo", das

quais ninguém, nem mesmo os estudiosos de fátima, até 1937,

sequer suspeitaram, têm todo o ar de montagem. e de coisa

artificial. são relatos mais ou menos decalcados de certos

textos bíblicos do antigo e do novo testamento.

só que lúcia, ou quem está por detrás de tudo isto, teve, neste

ponto, um grande azar, porque os relatos bíblicos que podem ter

inspirado estes seus relatos não são históricos, mas teológicos,

isto é, não aconteceram tal e qual. e ela aqui conta as coisas

como se elas tivessem sido assim. e não foram. não podem ter

sido. porque anjos nunca ninguém os viu. nem verá. a não ser na

sua imaginação, mais ou menos delirante e doentia.

9.4. problemas familiares

"meu pai tinha-se deixado arrastar pelas más companhias e tinha

caído nos laços duma triste paixão, por causa da qual tínhamos

já perdido alguns dos nossos terrenos."

[em nota, no final do relato, lê-se, a propósito: "não se deve

exagerar, na vida do pai da lúcia, a sua "paixão pelo vinho".

ele não era um alcoólico. quanto aos seus deveres religiosos, é

certo que os não cumpriu, durante alguns anos, na paróquia de

fátima, por não se entender com o pároco. ia a vila nova de

ourém".]

"(...) tanto sofrimento começou por abalar a saúde de minha mãe.

(...) correram então quantos cirurgiões e médicos por ali

--23-

Page 25: Fátima nunca mais

havia. gastou-se uma infinidade de remédios, sem se obter

melhoras algumas (...).

eis o estado em que nos encontrávamos, quando chegou o dia 13 de

maio de 1917. meu irmão completava também por esse tempo, a

idade de assentar praça na vida militar. e, como gozava de

perfeita saúde, era de esperar que ficasse apurado. ademais,

estava-se em guerra e era difícil conseguir livrá-lo. com o

receio de ficar sem ter quem lhe cuidasse as terras, minha mãe

(...) meteu empenhos com o médico da inspecção e o nosso bom

deus dignou-se, por então, dar a minha mãe este alívio."

[mas que dizer de um deus assim, que livra uns, por meio de

ilícitos empenhos junto do médico da inspecção, e deixa que

outros avancem para a tropa e para a guerra?! de resto, será

muito elucidativo comparar esta alusão aos "problemas

familiares", com o que a mesma lúcia escreverá, muitos anos

depois, em 1989, na quinta e última memória sobre a sua família.

decididamente, não parece tratar-se da mesma família!...]

9.5. "aparições de nossa senhora"

"as palavras que a santíssima virgem nos disse em este dia (13

de maio de 1917) e que combinámos nunca revelar, foram: depois

de nos haver dito que íamos para o céu, perguntou: quereis

oferecer-vos a deus para suportar todos os sofrimentos que ele

quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que

ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores? - sim,

Page 26: Fátima nunca mais

queremos, foi a nossa resposta. - ides, pois, ter muito que

sofrer mas a graça de deus será o vosso conforto".

[de um deus assim, não há que ser vigorosamente ateu? e que

senhora é esta que, em vez de estimular as pessoas a combater o

sofrimento, vem catequizá-las para que sofram ainda mais?]

em agosto, a "aparição" teve de ser no dia 15, nos valinhos, já

que no dia 13, as crianças foram "desviadas" pelo administrador

de vila nova de ourém. "a santíssima virgem recomendou-nos, de

Novo, a prática da mortificação, dizendo, no fim de tudo: rezai,

Rezai muito, e fazei sacrifícios pelos pecadores, que vã.

o muitas almas para o inferno, por não haver quem se sacrifique

e peça por elas."

--24-

[até parece que deus é um monstro que criou o inferno e só nos

livra dele se houver muitas vítimas inocentes que se imolem. É

um deus intrinsecamente perverso, que só se satisfaz com sangue

humano, de preferência, de crianças inocentes! que teologia está

subjacente às "aparições"? uma teologia cristã é que não é!]

"passados alguns dias, íamos com as nossas ovelhinhas, por um

caminho, no qual encontrei um bocado duma corda dum carro.

peguei nela e, brincando, atei-a a um braço. não tardei a notar

que a corda me magoava. disse então para os meus primos: olhem:

isto faz doer. podíamos atá-la à cinta e oferecer a deus

este sacrifício. (...)

este instrumento fazia-nos por vezes sofrer horrivelmente. a

jacinta deixava às vezes cair algumas lágrimas com a força do

incómodo que lhe causava; e, dizendo-lhe eu, algumas vezes, para

a tirar, respondia: - não! quero oferecer este sacrifício a

Page 27: Fátima nunca mais

nosso senhor, em reparação e pela conversão dos pecadores".

"assim se aproximou o dia 13 de setembro. em este dia, a

santíssima virgem, depois do que tenho narrado, disse-nos: deus

está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que

durmais com a corda; trazei-a só durante o dia".

da "aparição" de 13 de outubro, "as palavras que mais se me

gravaram no coração foi o pedido da nossa santíssima mãe do céu:

-não ofendam mais a deus nosso senhor, que já está muito

ofendido. (...)

tinha-se espalhado o boato que as autoridades haviam decidido

fazer explodir uma bomba junto de nós, no momento da aparição.

não concebi, com isso, medo algum; e falando disto a meus

primos, dissemos: - mas que bom, se nos for concedida a graça de

subir dali com nossa senhora para o céu! (...)

em meio desta perplexidade, tive a felicidade de falar com o

senhor vigário do olival. (...) sobretudo, ensinou-nos o modo de

dar gosto a nosso senhor em tudo e a maneira de lhe oferecer um

sem-número de pequenos sacrifícios: - se vos apetecer comer uma

coisa, meus filhinhos, deixai-a e, em seu lugar, comeis outra

--25-

e ofereceis a deus um sacrifício; se vos apetece brincar, não

brincais e ofereceis a deus outro sacrifício; se vos

interrogarem e não vos puderdes escusar, é deus que assim o

quer; ofereceis-lhe mais este sacrifício. (...) ele tinha,

Page 28: Fátima nunca mais

então, a paciência de passar a sós comigo largas horas,

ensinando-me a praticar a virtude e guiando-me com os seus

sábios conselhos" [!!!].

9.6. depois das "aparições"

"um dia, a jacinta dizia-me: - quem me dera que os meus pais

fossem como os teus, para que esta gente também me pudesse

Page 29: Fátima nunca mais

bater, porque assim tinha mais sacrifícios para oferecer a nosso

senhor.

no entanto, ela sabia bem aproveitar as ocasiões de se

mortificar. tínhamos também por costume, de vez em quando,

oferecer a deus o sacrifício de passar uma novena ou um mês sem

beber. fizemos uma vez este sacrifício em pleno mês de agosto em

que o calor era sufocante. voltávamos, um dia, de haver ido

rezar o nosso terço à cova da iria e, ao chegar junto duma

lagoa, que fica à beira do caminho, diz-me a jacinta: -olha:

tenho tanta sede e dói-me tanto a cabeça! vou beber uma pouquita

desta água. - desta não, respondi. minha mãe não quer que

bebamos daqui, porque faz mal. vamos ali pedir uma pouquita à ti

maria dos anjos (...) - não! dessa água boa não quero. bebia

desta, porque, em vez de oferecer a nosso senhor a sede,

oferecia-lhe o sacrifício de beber desta água suja. (...)

outras vezes, dizia: - nosso senhor deve estar contente com os

nossos sacrifícios, porque eu tenho tanta, tanta sede! mas não

quero beber; quero sofrer por seu amor."

"o senhor devia comprazer-se em ver-me sofrer, pois me preparava

agora um cálix bem mais amargo que dentro em pouco me dará a

beber. minha mãe cai gravemente enferma (...). as minhas duas

irmãs mais velhas, vendo o caso perdido, voltam junto de mim e

dizem-me: - lúcia, se é certo que tu viste nossa senhora, vai

agora à cova da iria, pede-lhe que cure a nossa mãe. promete-lhe

o que quiseres, que o faremos; e então acreditaremos.

sem me deter nem um momento, pus-me a caminho (...) rezando até

Page 30: Fátima nunca mais

lá o rosário. fiz à santíssima virgem o meu pedido

--26-

(...) e voltei para casa confortada com a esperança de que a

minha querida mãe do céu me daria a saúde da da terra. (...)

eu tinha prometido à santíssima virgem, se ela me concedesse o

que eu lhe pedia, ir aí, durante nove dias seguidos, acompanhada

de minhas irmãs, rezar o rosário e ir, de joelhos, desde o cimo

da estrada até ao pé da carrasqueira; e, no último dia, levar

nove crianças pobres e dar-lhes, no fim, um jantar. fomos, pois,

cumprir a minha promessa, acompanhadas de minha mãe que dizia: que

coisa! nossa senhora curou-me e eu parece que ainda não

acredito! não sei como isto é!"

[pelo que aqui escreve, lúcia teria procedido, não como "a

vidente", que, noutras ocasiões, se autoapresenta a tratar com a

senhora de fátima quase num tu-cá-tu-lá, mas sim como uma

qualquer devota, ainda não evangelizada, da senhora de fátima. o

que deixa perceber claramente que as três crianças, mais do que

protagonistas de fátima, se viram progressivamente envolvidas

num certo tipo de catolicismo religioso-pagão de fátima,

totalmente estranho ao evangelho de jesus. duas delas, jacinta e

francisco, morreram também em consequência de tudo isso. lúcia

resistiu e foi promovida a "messias" deste tipo de catolicismo.

quando, do que ela precisava, era de ser libertada dele quanto

antes. mas, se o tivesse sido, nunca a igreja católica teria

tido esta autêntica "mina de ouro" que é o santuário de fátima,

nem este púlpito moralista antilibertação que é o seu altar.]

Page 31: Fátima nunca mais

"nosso bom deus deu-me esta consolação, mas de novo me batia à

porta com outro sacrifício, nada mais pequeno. meu pai era um

homem sadio, robusto, que dizia não saber que coisa era uma dor

de cabeça. e, em menos de 24 horas, quase de repente, uma

pneumonia dupla levava-o para a eternidade. foi tal a minha dor,

que julguei morrer também."

[aqui, pelos vistos, já nem a senhora de fátima lhe valeu.

talvez não goste muito de homens casados, apenas dos "virgens" e

dos clérigos celibatários à força]

"por este tempo, a jacinta e o francisco começaram também a

piorar. (...) um dia, (jacinta) deu-me a corda, de que já falei

e disse-me: - toma; leva-a, antes que minha mãe a veja.

--27-

agora já não sou capaz de a ter à cinta. (...) esta corda tinha

três nós e estava algo manchada de sangue. conservei-a escondida

até saír definitivamente de casa de minha mãe. depois, não

sabendo o que lhe fazer, queimei-a, com a de seu irmãozinho."

o relato conta, finalmente, como foi a saída da adolescente

lúcia da casa dos pais.

"na verdade, quando vos vi, ex. e rev." senhor, receber-me com

tanta bondade (...) interessando-vos apenas pelo bem da minha

alma e prontificando-vos a tomar conta da pobre ovelhinha que o

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senhor acabava de vos confiar, fiquei, mais do que nunca, crente

que v. ex." rev." tudo sabia; e não hesitei um momento em me

abandonar nas vossas mãos. as condições impostas por v ex."

rev." para o conseguir, para o meu natural, eram fáceis: guardar

perfeito segredo de tudo que v. ex. rev." me tinha dito e ser

boa. lá me fui guardando para mim o meu segredo, até ao dia em

que v. ex. rev. mandou pedir o consentimento da minha mãe. (...)

sem me despedir de ninguém, no dia seguinte, às duas da manhã,

acompanhada de minha mãe e dum pobre trabalhador que vinha para

leiria, chamado manuel correia, pus-me a caminho, levando

inviolável o meu segredo. (...)

chegámos a leiria, aí pelas nove horas da manhã. (...) o combóio

partia às duas da tarde."

[em nota, pode ler-se: "lúcia deixou aljustrel na madrugada de

16 de junho de 1921 e chegou a leiria algumas horas depois. de

lá continuou a viagem até ao colégio do porto, onde chegou na manhã

seguinte".]

10. terceira memória

a introdução informa que esta memória foi concluída em 31 de

agosto de 1941. como as anteriores, foi escrita em obediência a

uma ordem do bispo de leiria. escreveu-a em tui. a temática

principal que lhe sugerem volta a ser a jacinta. querem mais

pormenores. se calhar, já a pensar na sua canonização por roma.

e lúcia presta-se. recorre à sua memória. parece que quanto mais

distante está dos factos, mais se lembra dos pormenores. ou, se

não se lembra, inventa-os nos seus delírios. factos

--28-

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reais, ou imaginários, que importa, se, com isso, o deus de

fátima é glorificado e os "inimigos" da igreja católica são

esmagados?!... eis alguns extractos.

o "segredo"

"bem; o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais

vou revelar. a primeira foi, pois, a vista do inferno!

nossa senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia

estar debaixo da terra. mergulhados em esse fogo, os demónios e

as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou

bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas

pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de

fumo, caíndo para todos os lados, semelhante ao caír das faúlhas

em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e

gemidos de dor e desespero que horrorizavam e faziam estremecer

de pavor. os demónios distinguiam-se por formas horríveis e

asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas

transparentes e negros. esta vista foi um momento, e graças à

nossa boa mãe do céu, que antes nos tinha prevenido com a

promessa de nos levar para o céu (na primeira aparição)! se

assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.

em seguida, levantámos os olhos para nossa senhora, que nos

disse com bondade e tristeza: - vistes o inferno, para onde vão

as almas dos pobres pecadores; para as salvar, deus quer

estabelecer no mundo a devoção a meu imaculado coração. se

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fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão

paz. a guerra vai acabar. mas se não deixarem de ofender a deus,

no reinado de pio xi começará outra pior. quando virdes uma

noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande

sinal que deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes,

por meio da guerra, da fome e de perseguições à igreja e ao

santo padre. para a impedir virei pedir a consagração da rússia

a meu imaculado coração e a comunhão reparadora nos primeiros

sábados. se atenderem a meus pedidos, a rússia se converterá e

terão paz; senão, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo

guerras e perseguições à igreja; os bons serão martirizados, o

santo padre terá muito que sofrer, várias nações serão

aniquiladas, por fim o meu imaculado coração triunfará. o santo

padre

--29-

consagrar-me-á a rússia, que se converterá; e será concedido ao

mundo algum tempo de paz."

"a segunda (parte do segredo) refere-se à devoção do imaculado

coração de maria. já disse, no segundo escrito, que nossa

senhora, a 13 de junho de 1917, me disse que nunca me deixaria e

que seu imaculado coração seria o meu refúgio e o caminho que me

conduziria a deus."

a propósito da aurora boreal, registada pelos astrónomos, na

noite de 25 para 26 de janeiro de 1938, que lúcia tomou como o

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"sinal do céu" anunciador da 2. guerra mundial (não esqueçamos

que lúcia está a escrever esta memória depois dos factos, em

1941; por isso, é fácil acertar nas previsões...), escreve no

seu relato esta coisa teologicamente asquerosa: "deus serviu-se

disso para me fazer compreender que a sua justiça estava prestes

adescarregar o golpe sobre as nações culpadas e comecei, por

isso, a pedir, com insistência, a comunhão reparadora nos

primeiros sábados e a consagração da rússia. o meu fim era não

só conseguir misericórdia e perdão de todo o mundo, mas em

especial para a europa".

mas será que deus é mais dos europeus?!

11. quarta memória

a introdução esclarece que esta quarta memória foi escrita em

dois cadernos. o primeiro foi concluído e enviado ao bispo (de

leiria) no dia 25 de novembro de 1941. o segundo caderno estava

terminado em 8 de dezembro do mesmo ano.

desta vez, o que o bispo lhe manda é muito mais do que até aqui.

parece que era preciso inventar coisas (ainda) mais

maravilhosas. o que lúcia havia relatado antes continuava a ser

insuficiente para "impor" fátima à igreja e ao mundo.

vai daí, a ordem agora é: "escrever tudo o que recordasse sobre

o francisco, como tinha feito para a jacinta. escrever, com mais

pormenores, as aparições do anjo. uma nova história das

aparições (sic). tudo o que ainda pudesse recordar sobre a

jacinta. os versos profanos que cantava. ler o livro do pe.

fonseca e anotar tudo o que lhe parecesse menos exacto".

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--30-

o relato abre com uns preâmbulos, com um misticismo de manifesto

mau gosto, que emprestam ao relato todo o ar de coisa artificial

e postiça. têm, contudo, a vantagem de nos deixar perceber que o

relato é mais ou menos mítico, onde o que mais terá funcionado,

para a sua elaboração, foi a imaginação delirante de lúcia.

eis alguns extractos.

"antes de começar quis abrir o novo testamento, único livro que

quero ter aqui diante de mim (...). volto ao que deus me

deparou, ao abrir o novo testamento, uma carta de s. paulo aos

fil 2, 5-8. (...) na verdade não sou mais que o pobre e

miserável instrumento de que ele se quer servir (...)."

11. 1. "retrato do francisco"

"na aparição do anjo, prostrou-se como sua irmã e eu, levado por

uma força sobrenatural que a isso nos movia; mas a oração

aprendeu-a, ouvindo-nos repeti-la, pois ao anjo dizia não ter

ouvido nada. (...)

- eu não sou capaz de estar assim (prostrado) tanto tempo como

vocês. doem-me as costas tanto que não posso.(...)

- gosto muito de ver o anjo; mas o pior é que, depois, não somos

capazes de nada. eu nem andar podia, não sei o que tinha."

depois da primeira aparição, "contámos, em seguida, ao

francisco, tudo quanto nossa senhora tinha dito. e ele,

manifestando o contentamento que sentia, na promessa de ir para

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o céu, cruzando as mãos sobre o peito, dizia: - Ó minha nossa

senhora, terços, rezo todos quantos vós quiserdes.

e, desde aí, tomou o costume de se afastar de nós, como que

passeando; e, se chamava por ele e lhe perguntava que andava a

fazer, levantava o braço e mostrava-me o terço. se lhe dizia que

viesse brincar, que depois rezava connosco, respondia: - depois

também rezo. não te lembras que nossa senhora disse que tinha de

rezar muitos terços? (...)

por vezes, dizia: - nossa senhora disse que íamos ter muito que

sofrer! não me importo; sofro tudo quanto ela quiser! o que eu

quero é ir para o céu. (...)"

--31--

francisco, tu não bebeste a água-mel! a madrinha chamou tantas

vezes por ti, mas não apareceste! - quando peguei no copo,

lembrei-me de repente de fazer aquele sacrifício para consolar a

nosso senhor e, enquanto vocês bebiam, fugi para aqui. (...)"

"quando ia à escola, por vezes, ao chegar a fátima, dizia-me: olha:

tu vai à escola. eu fico aqui na igreja, junto de jesus

escondido. não me vale a pena aprender a ler; daqui a pouco vou

para o céu. quando voltares, vem por cá chamar-me. (...)"

"um dia (já francisco estava doente), ao chegar junto de sua

casa, despedi-me dum grupo de crianças da escola que vinham

comigo e entrei, para lhe fazer uma visita e à sua irmã. como

tinha sentido o barulho, perguntou-me: - tu vinhas com todos

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esses? - vinha. - não andes com eles, que podes aprender a fazer

pecados. quando saíres da escola, vai um bocado para o pé de

jesus escondido e depois vem sozinha. (...)"

"outro dia, ao chegar, encontrei-o muito contente. - estás

melhor? - não. sinto-me muito pior. já me falta pouco para ir

para o céu. lá vou consolar muito a nosso senhor e a nossa

senhora (...)".

"bem diferente é um facto que agora me está a lembrar. um dia,

num sítio chamado a pedreira (...), ouvimo-lo gritar e chamar

por nós e por nossa senhora. (...) por fim, lá demos com ele, a

tremer de medo, ainda de joelhos, que, aflito, nem arte tinha

para se pôr de pé. - que tens? que foi? com a voz meia sufocada

pelo susto, lá disse: - era um daqueles bichos grandes, que

estavam no inferno (que a senhora nos mostrou), que estava aqui

a deitar lume. (...)"

"um outro dia, ao saír de casa, notei que o francisco andava

muito devagar. - que tens?, perguntei-lhe. parece que não podes

andar! - dói-me muito a cabeça e parece que vou caír. - então

não venhas; fica em casa. - não fico! quero antes ficar na

igreja, com jesus escondido, enquanto tu vais à escola".

--32-

11. 2. "história das aparições"

nesta segunda parte, o relato adianta mais pormenores

maravilhosos a propósito das "aparições do anjo". e, depois,

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passa a referir a "nova história das aparições" da senhora de

fátima. com pormenores macabros. que, se fossem verdade,

justificariam, só por si, o ateísmo, já que nos dão a imagem de

um deus carrasco, que parece alimentar-se de sofrimento e de

sangue de crianças. por este relato, temos ainda de concluir

que, afinal, também no céu, as nossas senhoras são mais do que

muitas. e até jesus estará lá em duplicado. por um lado, como

menino com s. josé e, por outro, como homem já adulto! tanto

disparate junto, nunca se viu!

mesmo assim, a este e outros escritos, atribuídos à irmã lúcia,

a sagrada congregação para a doutrina da fé, do cardeal

ratzinger, nunca os declarou perigosos para a fé cristã. pelo

contrário. até veio, há tempos, a fátima, dar a entender que o

segredo de fátima é coisa para tomar a sério. francamente,

senhores eclesiásticos!...

atentemos, também, nos diálogos entre lúcia e a senhora de

fátima. lúcia fala como se fosse sozinha. pergunta: que é que

vossemecê me quer? e não, que é que vossemecê nos quer? ela é "a

vidente" e "a intermediária", "a medianeira". os primitos, os

ajudantes que se limitam a estar e a ouvir calados. aliás, o

francisco nem sequer ouvia alguma coisa! mas que senhora de

fátima tão insensível. que pecador seria o miúdo, aos olhos

dela, para ser castigado por ela desta maneira!... É mesmo de

bradar aos céus! eis.

13 de maio

- não tenhais medo. eu não vos faço mal. - de onde é vossemecê?,

Page 40: Fátima nunca mais

lhe perguntei. - sou do céu. - e que é que vossemecê me quer? vim

para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia

13 a esta mesma hora. depois vos direi quem sou e o que quero.

depois voltarei ainda aqui uma sétima vez. (...) - a maria das

neves já está no céu? - sim, está. parece-me que devia ter uns

16 anos. - e a amélia? - estará no purgatório até ao fim do

mundo [neste caso, pelos vistos, nem a reza de muitos terços nem

as missas que, porventura, mandassem

--33-

celebrar por ela lhe valerão de nada. mas que deus este e que

mensageira de deus esta!!!]. parece-me que devia ter de 18 a 20

anos. - quereis oferecer-vos a deus para suportar todos os

sofrimentos que ele quiser enviar-vos, em acto de reparação

pelos pecados com que foi é é ofendido e de súplica pela

conversão dos pecadores? - sim, queremos. - ides, pois, ter

muito que sofrer, mas a graça de deus será o vosso conforto.

(...) passados os primeiros momentos, nossa senhora acrescentou:

-rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o mundo

e o fim da guerra."

13 de junho

- vossemecê que me quer?, perguntei. - quero que venhais aqui no

dia 13 do mês que vem, que rezeis o terço todos os dias e que

aprendam a ler. depois direi o que quero.

pedi a cura dum doente. - se se converter, curar-se-á durante o

Page 41: Fátima nunca mais

ano. - queria pedir-lhe para nos levar para o céu. - sim; a

jacinta e o francisco levo-os em breve. mas tu ficas cá mais

algum tempo. jesus quer servir-se de ti para me fazer conhecer e

amar; ele quer estabelecer no mundo a devoção a meu imaculado

coração".

13 de julho

- vossemecê que me quer?, perguntei. - quero que venham aqui no

dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o terço todos os

dias, em honra de nossa senhora do rosário. para obter a paz do

mundo e o fim da guerra, porque só ela lhes poderá valer. [mas

então não era a própria que estava ali a falar com lúcia?!]

- queria pedir-lhe para nos dizer quem é, para fazer um milagre

com que todos acreditem que vossemecê nos aparece. - continuem a

vir aqui todos os meses. em outubro direi quem sou, o que quero

e farei um milagre que todos hão-de ver, para acreditar. (...)

sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes, em especial

sempre que fizerdes algum sacrifício: Ó jesus é por vosso amor,

pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados

cometidos contra o imaculado coração de maria."

o relato prossegue com a "visão" do inferno, já divulgada

anteriormente. e acrescenta mais este pormenor: "quando rezais

--34-

o terço, dizei, depois de cada mistério: Ó meu jesus,

perdoai-nos, e livrai-nos do fogo do inferno; levai as alminhas

todas para o céu, ! principalmente aquelas que mais precisarem".

Page 42: Fátima nunca mais

13 de agosto

- que é que vossemecê me quer? - quero que continueis a ir

à cova da iria no dia 13, que continueis a rezar o terço todos

os dias. no último mês, farei o milagre, para que todos

acreditem. que

é que vossemecê quer que se faça ao dinheiro que o povo

deixa na cova da iria? - façam dois andores: um, leva-o tu com

a jacinta e mais duas meninas vestidas de branco; o outro, que o

leve o francisco com mais três meninos. o dinheiro dos andores é

para a festa de nossa senhora do rosário e o que sobrar é para a

ajuda duma capela que hão-de mandar fazer. (...) e tomando um

aspecto mais triste: - rezai, rezai muito e fazei sacrifícios

por os pecadores, que vão muitas almas para o inferno por não

haver quem se sacrifique por elas".

13 de setembro

-continuem a rezar o terço, para alcançarem o fim da guerra. em

outubro virá também nosso senhor, nossa senhora das dores e do

carmo, s. josé com o menino jesus para abençoarem o mundo. deus

está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que

durmais com a corda; trazei-a só durante o dia. - têm-me pedido

para lhe pedir muitas coisas: a cura de alguns doentes, dum

surdo-mudo. - sim, alguns curarei; outros não. em outubro farei

o milagre, para que todos acreditem."

13 de outubro

- que é que vossemecê me quer? - quero dizer-te que façam aqui

uma capela em minha honra, que sou a senhora do rosário, que

continuem sempre a rezar o terço todos os dias. a guerra vai

acabar e os militares voltarão em breve para suas casas. - eu

Page 43: Fátima nunca mais

tinha muitas coisas para lhe pedir; se curava uns doentes e se

convertia uns pecadores, etc. - uns, sim; outros, não. É preciso

que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.

e tomando um ar mais triste: - não ofendam mais a deus nosso

senhor que já está muito ofendido. (...)

--35-

desaparecida nossa senhora, na imensa distância do firmamento,

vimos, ao lado do sol, s. josé com o menino e nossa senhora

vestida de branco, com um manto azul. s. josé com o menino,

parecia abençoar o mundo com uns gestos que fazia com a mão em

forma de cruz. pouco depois, desvanecida esta aparição, vi nosso

senhor e nossa senhora que me dava a ideia de ser nossa senhora

das dores. nosso senhor parecia abençoar o mundo da mesma forma

que s. josé. desvaneceu-se esta aparição e pareceu-me ver ainda

nossa senhora do carmo."

12. quinta memória

a introdução esclarece que esta memória "tem como origem um

pedido do rev. reitor do santuário de fátima, mons. luciano

guerra". em concreto, "pediu-se à irmã lúcia que completasse, na

medida do possível, as recordações da sua infância e da vida da

sua família, nomeadamente, a respeito do pai". o relato

"principia com uma carta endereçada ao reitor do santuário, à

maneira de prólogo, datada de 12 de fevereiro de 1989; segue-se

texto datado do dia 23 do mesmo mês e ano, e a concluir,

juntou-se mais uma carta do mesmo dia".

eis alguns extractos. poucos. porque é um relato manifestamente

Page 44: Fátima nunca mais

canonizador da família, como se ela fosse uma nova sagrada

família, predestinada para nela nascer a "messias" da senhora de

fátima. tanta santidade e tanta bondade nem na família de

nazaré. lá, pelo menos, o filho saíu dos trilhos e acabou

crucificado às ordens dos chefes religiosos, a hierarquia de

então. ao contrário de lúcia, que não poderia ser mais

subserviente, do que foi e é, em relação à hierarquia católica.

"recebi a carta de v rev.", com data de 23 de novembro de 1988,

na qual me pede para eu precisar melhor a imagem de meu pai, por

a que dou nas memórias resultar muito deficiente, e querer pôr

na nossa casa um lugar de reflexão sobre a família. (...)

as respostas ao seu questionário ficarão para depois, mas, desde

já, advirto que a algumas - as que se referem às aparições - eu

não posso responder sem a autorização da santa sé, a não ser que

v. rev. queira pedir esta licença e a obtenha. (...)

--36-

a narração sobre o meu pai, vou iniciá-la, respondendo pergunta

n. 16 do seu questionário. (...).

o pai era de natural pacífico, condescendente e alegre; gostava

de música, festas e bailes. (...)

- que coisas tu ensinas à pequena! se lhe ensinasses a doutrina!

então o pai dizia: - vamos lá fazer a vontade à tua mãe! e

pegava-me na mãozita tão pequena, para ensinar-me a traçar na

fronte, boca e peito, o sinal da cruz. depois ensinava-me a rezar o pai-

nosso, ave-maria, credo, confissão, acto de contrição, mandamentos da lei

de deus, etc. depois (...)

voltava-se para a minha mãe e dizia: - vês? fui eu quem a

Page 45: Fátima nunca mais

ensinou. a mãe, sorrindo respondia: - É que és um homem muito

bom! hás-de continuar sempre assim! o pai respondia: - deu-me

deus a melhor mulher do mundo! isto fazia-me crer que a mãe era

a melhor do mundo e, quando vinham as outras crianças para o

nosso pátio brincar comigo, eu perguntava-lhes: - a tua mãe é

boa? a minha é a melhor do mundo!

(depois das aparições), por motivo de um rebuliço que houve na

freguesia contra o pároco, no qual meu pai não quis meter-se,

mas que lhe fez muito má impressão, deixou por isso de

comparecer à desobriga como costumava e afastou-se do pároco,

deixando de confessar-se com ele. mas não se afastou da igreja:

continuou a ir todos os domingos e dias santos de preceito à

santa missa. ia, de vez em quando, a vila nova de ourém

confessar-se (...)."

13. apêndices

dos dois apêndices, apenas alguns extractos do primeiro, já que

o segundo a própria introdução reconhece ser um texto

transcrito, "directa e literalmente, dos apontamentos da

vidente", pelo director espiritual de lúcia, em 1929, o pe.

jesuíta josé bernardo gonçalves.

a introdução diz que o texto "é um documento escrito pela irmã

lúcia, em fins de 1927, por ordem do seu director espiritual, o

rev. aparício, e acrescenta este pormenor: "pouco tempo depois

de ter tido esta aparição, no dia 10 de dezembro de 1925, na sua

cela, redigiu um primeiro escrito que foi destruído pela própria

irmã lúcia. este documento constitui, portanto, a

Page 46: Fátima nunca mais

--37-

segunda redacção, exactamente igual à primeira; apenas lhe

acrescentou o parágrafo introdutório referente à data de 17 de

dezembro de 1927. nele, a vidente explica como recebeu

autorização do céu, para dar a conhecer parte do segredo.

a introdução adianta ainda: "a este documento chamamos: texto da

grande promessa do coração de maria". efectivamente, é expressão

da misericordiosa e gratuita vontade divina, dando-nos um meio

de salvação fácil e seguro, visto que se apoia na tradição

católica mais sã, sobre a eficácia salvadora da intercessão

mariana.

e termina com este naco de prosa teológica, absolutamente

incrível, à luz do evangelho de jesus: "neste texto, podem

ler-se as condições necessárias para corresponder ao apelo dos

cinco primeiros sábados do mês, em reparação das injúrias feitas

ao coração de maria. e não pode esquecer-se nunca a sua intenção

mais profunda: a reparação ao coração de maria".

o texto abre assim:

"no dia 17-12-1927, (lúcia) foi junto do sacrário perguntar a

jesus como satisfaria o pedido que lhe era feito, se a origem da

devoção ao imaculado coração de maria estava encerrada no

segredo que a ss. virgem lhe tinha confiado.

jesus, com voz clara, fez-lhe ouvir estas palavras:

- minha filha, escreve o que te pedem; e tudo o que te revelou a

ss. virgem, na aparição em que falou desta devoção, escreve-o

também; quanto ao resto do segredo, continua o silêncio".

Page 47: Fátima nunca mais

mais adiante:

"dia 10-12-1925, apareceu-lhe (à lúcia) a ss. virgem e, ao lado,

suspenso em uma nuvem luminosa, um menino. a ss. virgem,

pondo-lhe no ombro a mão e mostrando, ao mesmo tempo, um coração

que tinha na outra mão, cercado de espinhos.

ao mesmo tempo, disse o menino:

- tem pena do coração de tua ss. mãe, que está coberto de

espinhos que os homens ingratos a todos os momentos lhe cravam,

sem haver quem faça um acto de reparação para os tirar.

em seguida, disse a ss. virgem:

- olha, minha filha, o meu coração cercado de espinhos que os

homens ingratos a todos os momentos me cravam, com

--38-

blasfémias e ingratidões. tu, ao menos, vê de me consolar e diz

que todos aqueles que durante cinco meses, ao primeiro sábado,

se confessarem, recebendo a sagrada comunhão, rezarem um terço e

me fizerem 15 minutos de companhia, meditando nos 15 mistérios

do rosário, com o fim de me desagravar, eu prometo

assistir-lhes, na hora da morte, com todas as graças necessárias

para a salvação dessas almas.

no dia 15-2-1926, apareceu-lhe, de novo, o menino jesus.

perguntou se já tinha espalhado a devoção a sua ss. mãe. ela

expôs-lhe as dificuldades que tinha o confessor e que a madre

superiora estava pronta a propagá-la, mas que o confessor tinha

dito que ela, só, nada podia. jesus respondeu: É verdade que a

tua superiora, só, nada pode, mas, com a minha graça, pode tudo.

Page 48: Fátima nunca mais

apresentou a jesus a dificuldade que tinham algumas pessoas em

se confessar ao sábado e pediu para ser válida a confissão de

oito dias. jesus respondeu:

- sim, pode ser de muitos mais ainda, contanto que, quando me

receberem, estejam em graça e que tenham a intenção de

desagravar o imaculado coração de maria.

ela perguntou: - meu jesus, e as que se esquecerem de formar

essa intenção?

jesus respondeu: - podem formá-la na outra confissão seguinte,

aproveitando a primeira ocasião que tiverem de se confessar."

e, já agora, saboreiem mais este naco de prosa e digam lá se

alguém pode tomar a sério o que lúcia tem andado a dizer desde

criança:

"no dia 15 (de fevereiro de 1926) andava eu muito ocupada com o

meu ofício e quase nem disso me lembrava. e indo eu deitar um

apanhador de lixo fora do quintal, onde, alguns meses atrasados,

tinha encontrado uma criança, à qual tinha perguntado se ela

sabia a ave-maria e, respondendo-me que sim, lhe mandei que a

dissesse, para eu ouvir. mas, como ela não se resolvia a dizê-la

só, disse-a eu com ela, três vezes; e, ao fim das três

ave-marias, pedi-lhe que a dissesse só. mas, como ela se calou e

não foi capaz de dizer, só, a ave-maria, perguntei-lhe se ela

sabia qual era a igreja de santa maria. respondeu-me que sim.

disse-lhe que fosse lá todos os dias e que dissesse assim: Ó

minha mãe do

Page 49: Fátima nunca mais

--39-

céu, dai-me o vosso menino jesus! ensinei-lhe isto e vim-me

embora.

no dia 15-2-1926, voltando eu lá, como é de costume, encontrei

ali uma criança que me parecia ser a mesma e perguntei-lhe

então: - tens pedido o menino jesus à mãe do céu?

a criança volta-se para mim e diz: - e tu tens espalhado, pelo

mundo, aquilo que a mãe do céu te pediu?

e, nisto, transforma-se num menino resplandecente. conhecendo

então que era jesus, disse: meu jesus! vós bem sabeis o que o

meu confessor me disse na carta que vos li. dizia que era

preciso que aquela visão se repetisse, que houvesse factos para

que ela fosse acreditada, e a madre superiora, só, a espalhar

este facto, nada podia.

- É verdade que a madre superiora, só, nada pode; mas, com a

minha graça, pode tudo. e basta que o teu confessor te dê

licença e a tua superiora o diga, para que seja acreditado, até

sem se saber a quem foi revelado.

- mas o meu confessor dizia na carta que esta devoção não fazia

falta no mundo, porque já havia muitas almas que vos recebiam,

aus primeiros sábados, em honra de nossa senhora e dos 15

mistérios do rosário.

- É verdade, minha filha, que muitas almas os começam, mas

Page 50: Fátima nunca mais

poucas os acabam e as que os terminam é com o fim de receberem

as graças que aí estão prometidas; e me agradam mais as que

fizerem os cinco com fervor e com o fim de desagravar o coração

da tua mãe do céu, que as que fizerem os 15, frios e

indiferentes..."

comentários, para quê?! É isto fátima, mai la sua senhora. o

descrédito do cristianismo e da igreja. a nossa vergonha! por

isso digo com redobrada convicção: fátima nunca mais!

nota: os capítulos que se seguem são textos sucessivamente

escritos e publicados no jornal "fraternizar", ao longo dos

últimos anos. ao lê-los, um após outro, facilmente se percebe

que há um crescendo na minha consciência acerca da perversidade

de fátima. por isso tudo desagua no capítulo final, titulado:

"fátima: a grande ilusão".

--40-

2

no outro lado de fátima iii ,

à procura de maria de nazaré

"olhei para si e lembrei-me de nossa senhora!" foi assim que o

jornal fraternizar fez parar, em pleno caminho, a senhora alda

alves correia, residente há 32 anos, no lugar da moita de cima,

freguesia de fátima. caminhava devagar carrego à cabeça, em

direcção a casa, num dos primeiros dias de abril passado. foi

como se, de repente, víssemos maria de nazaré, em carne e osso.

era à procura dela que andávamvs, à semelhança do sábio da

Page 51: Fátima nunca mais

antiguidade, de quem se conta que, um dia, de lanterna na mão,

em pleno dia, dizia andar à procura de um homem.

propositadamente, não fomos por ela, nem na capelinha das

aparições, nem no santuário, erguido em sua honra. deixamo-nos

guiar pelo espírito. e ele levou-nos para a moita de cima.

quando nos cruzámos com esta mulher, primeiro, passámos adiante.

mas logo o espírito nos fez correr atrás, ao seu encontro. se

queríamos estar com maria, em fátima, ela estava ali à mão de

semear, carrego à cabeça, pobremente vestida, corpo de muito

trabalhar, mulher simplesmente. uma barbaridade

assustou-se a senhora alda, com as palavras com que a saudámos.

e disse, naquele jeito dos pobres, "credo!". mas logo se tornou

acolhedora. atirou o carrego ao chão e falou sobre fátima e a

vida do seu povo, aquele que, como maria de nazaré, tem sabido

resistir à sedução da riqueza e continua a manter-se pobre, como

ela.

--41-

"vivo de andar a trabalhar. como a gente precisa de trabalhar,

não tem vagar para apreciar certas coisas. ir às peregrinações

de cada mês? não costumo ir, porque tenho de trabalhar. e mesmo

o pessoal de cá é raro, só se for no inverno; de contrário,

vivem do comércio, não assistem a nada disso, para atenderem os

peregrinos nas lojas."

a senhora alda tem dois filhos emigrantes na suíça e mais três

cá, um trabalha nas obras, outro é deficiente e o mais novo

frequenta as aulas no colégio dos padres. veio de castelo de

Page 52: Fátima nunca mais

paiva para fátima. trabalhar.

"a pessoa trabalha muito e quase não ganha para comer. faço de

tudo, só da parte de tarde. de manhã, tenho de fazer o comer

para os filhos. as minhas mãos agarram-se a tudo. vim para cá

trabalhar e cá fiquei."

- e como vê nossa senhora no meio de tudo isto?

- eu acho cá para mim que isto é uma barbaridade, porque vêm

estas pessoas com as suas promessas e, aqui, muitos só não lhes

tiram o calçado, nem a roupa que trazem vestida, porque não

podem. aluga-se uma cama por dois, três contos, acho isso uma

barbaridade.

precisou depois: "há muitos que vêm a pé, durante oito dias, até

um mÊs, chegam cá, então é que o dinheiro se vai. não acho isto

bem. está bem que vivessem, explorassem, até, mas nem tanto. eu

acho demasiado. perante nossa senhora, eu, cá no meu

conhecimento, acho que isto não deve estar certo. aconteceu,

noutros tempos, que eu deixei dormir em colchões no chão, mas

não levava nada, aceitava o que me quisessem dar. assim, como

agora fazem, até tiram a fé às pessoas".

"nunca andei na escola"

a senhora alda lá voltou a colocar o carrego à cabeça, rumo a

casa. como maria de nazaré, outrora, terá feito. como sempre têm

feito os pobres, através dos tempos. mas nós, que com ela

havíamos estado, é que já sentíamos o nosso coração mais

aquecido, confortado. a verdade sempre nos deixa assim, quando

nos deixamos encontrar por ela.

--42-

Page 53: Fátima nunca mais

mais adiante, lá estava à porta outra mulher. e o espírito

fez-nos ir até ela, corpo já carregado de anos, dois carros

deles, pois nasceu em 1909. rosário é o seu nome. criada de

servir era a sua condição, ao tempo das chamadas aparições. mas

também companheira de lúcia, na doutrina e missa aos domingos.

"nunca andei na escola. andei a servir até casar. a minha vida

não se alterou com isto de fátima. ganhava pouquinho, era só o

que queriam dar. filhos? tenho sim, mas são emigrantes."

fala, depois, do ano de 1917. "tinha oito anos e já andava a

servir. vinham as pessoas a correr para fátima, apanhavam

arregaçadas de ramos de azinheira e levavam para fazer chá.

dizia-se que curava doenças. também havia muitas perseguições.

vinha a cavalaria para correr com essas pessoas para fora. as

pessoas abalavam, mas vinham logo outra vez. e as crianças

(pastorinhos) andavam ao colo das pessoas. mas a nossa senhora

nunca a vi."

terrenos que valem milhões

o nosso jornal tinha ouvido dizer que, hoje, há pessoas de

fátima que choram, por terem vendido quase ao preço da chuva os

terrenos que, agora, valem uma fortuna. pusemos a questão à

senhora rosário.

"hoje, é quase tudo dos padres e das freiras." riu-se, com olhos

marotos, ao dizer isto. e prosseguiu: "os nossos, de cá, não

compravam, porque não tinham posses. mal dava para sustentar a

família. e vendiam o que tinham. os pobres foram afastados das

Page 54: Fátima nunca mais

terras e, agora, é essa gente grande que vem de fora que se

governa..."

no mesmo sentido, pronunciou-se o ancião, josé dos reis, corpo

alquebrado pela doença, e que o nosso jornal foi encontrar a

viver sozinho, no seus 75 anos, numa casa pequenina e pobre,

também na moita de cima.

"ui! credo!", começou por dizer, a propósito do preço dos

terrenos, ontem e hoje. "o meu pai - contou - vendeu lá um

terreno por 16 contos, era muito grande e hoje vale milhões."

--43-

mas as suas palavras, poucas, iam insistentemente quase todas

para a doença que o ataca e para a solidão-abandono em que vive

todos os dias. porque, conforme testemunhou o nosso jornal

confirmou depois junto de outras fontes, na freguesia de fátima,

ainda não funciona um serviço de apoio a idosos e acamados ao

domicílio! outra barbaridade, poderia dizer a senhora alda, numa

tradução actualizada do cântico do magnificat, posto pelo

evangelho de lucas na boca de maria de nazaré.

disfarçada de pedinte

o espírito colocou outra mulher no nosso caminho, outro corpo a

fazer lembrar maria, a pobre de nazaré, capaz de alegria, por

descobrir que deus, ao contrário do que muitos pretendem fazer

crer à gente, só o é, na medida em que está activamente

solidário com os pobres do mundo. de outro jeito, não seria

Page 55: Fátima nunca mais

deus, mas um faraó, ou uma multinacional do nosso tempo.

desta vez, eis que nossa senhora se nos apresenta disfarçada de

pedinte, ali mesmo à saída do terreno, propriedade do santuário,

da banda sul. o terreno que, outrora, antes de 1917, foi das

famílias pobres de fátima, antes de elas o terem vendido por dez

réis de mel coado.

parámos. e o espírito disse: procurais maria de nazaré? ei-la

nesta mulher pobre!

sentimos sagrado aquele corpo, de 82 anos, mão estendida, boca

habituada a pronunciar as palavras da esmola. não havia raios de

sol, nem frondosas azinheiras, nesta aparição de maria. mas que

era ela, era, naquele corpo trémulo, suplicante.

"o meu nome? chamo-me maria da glória, dê-me uma esmolinha!"

estremecemos de comoção. maria, a pobre de nazaré, é também esta

mulher. infinitamente desafiadora. porque ela é todas as

mulheres e homens empobrecidos à força. infinitamente

desafiadores. pedintes de uma terra outra, de um mundo outro,

uma terra de pobres sem pobreza, de companheiros, numa palavra,

uma terra de fraternidade.

no passado dela, lá está, ainda vivo, o ano de 1917. "sim, falei

com a lúcia, tinha eu então dez anos. aqui era só mato, hoje,

está tudo muito mudado."

--44-

mas lá está, mais vivo ainda do que esta recordação da infância,

Page 56: Fátima nunca mais

o calvário imposto por uma sociedade edificada sem o jeito de

maria: "tive de ir servir, desde os sete anos, e nunca aprendi a

ler nem a escrever."

eis! a epopeia dos pobres que nunca enriquecem, porque nunca se

atrevem a explorar seja quem for! mas também o drama duma vida

inteira a pedir para sobreviver, só porque sempre tem havido

quem faça tudo, mesmo explorar os mais débeis, para enriquecer,

em vez de tudo fazer para que floresça uma terra de justiça. daí

a conclusão, ao mesmo tempo espantosa e confiante, da senhora

maria da glória: "temos de ir indo, até que nosso senhor nos

chame".

e chamará, porque os pobres assim, que nunca enriquecem, são

misteriosamente também parte sua, corpo seu, são ele mesmo, o

filho colectivo de maria, juiz da história (cf. mt 25, 31-46).

--45-

3 irmãzinhas de jesus: com elas entendemos melhor maria de

nazaré e o evangelho dos pobres,

quase não se dá por elas e, no entanto, elas são na sociedade

como os pulmões para o corpo. autodefinem-se "contemplativas no

meio do mundo" e vivem em pequenas fraternidades, vestidas

daquela simplicidade que caracteriza os pobres, os quais, na sua

espantosa sabedoria, sempre recusam seguir o exemplo dos ricos e

grandes deste mundo e, em vez disso, teimosamente, preferem a

prática dos mil e um pequenos-grandes gestos diários da

solidariedade sem reservas. quem alguma vez as encontrou, depois

sempre se há-de lembrar delas, as irmãzinhas de jesus, como,

Page 57: Fátima nunca mais

infalivelmente, se apresentam em qualquer dos 60 países do

mundo, onde hoje habitam.

fomos respirar com elas em fátima e assim melhor escutar e

entender a vida e, sobretudo, o que maria de nazaré ainda agora

andará a querer dizer aos homens e mulheres, também aos homens e

mulheres que fazem a igreja em portugal e que, em fátima, estão

tão visivelmente presentes - pelo menos, nas 45 casas de

institutos religiosos femininos e nos 13 institutos religiosos

masculinos lá existentes, a acreditar na estimativa de um irmão

de s. joão de deus.

gente de vida dura

impressionam qualquer pessoa os milhares de peregrinos que, de

maio a outubro, deixam as suas casas e vão a pé, estrada fora,

rumo à montanha de fátima. não procuram o alto do monte. têm

fome de encontro, daquele tipo de encontro que retempera

--47-

a vida dura de todos os dias e nos deixa mais aptos a

prosseguir, apesar das contrariedades de toda a ordem,

nomeadamente, as resultantes de políticas que, em vez de

concretizarem projectos de vida para todos, apenas favorecem os

interesses de alguns.

impressionam os gestos que muitos assumem, em cumprimento de

promessas que os ricos e os tidos por cultos habitualmente não

fazem, mas que os pobres, de geração em geração, continuam a

Page 58: Fátima nunca mais

realizar, mesmo à revelia das orientações das igrejas

institucionais e dos seus mais altos dirigentes, o clero.

que tem maria de nazaré a ver com isto? o que pensam de tudo

isto as irmãzinhas de jesus, há mais de 30 anos, em fátima, elas

que, cada mês, lá estão no serviço de acolhimento aos

peregrinos, com a mesma ternura que teriam pelo próprio jesus?

"respiramos maria nos próprios peregrinos, na simplicidade e na

fé deles. acreditar é ver para além do que se vê. vemo-los

chegar e expressar a fé de maneira diferente da que, por vezes,

gostaríamos de ver. mas não há dúvida de que lá está a fé. pode

chocar a gente, mas aquilo vem do fundo do coração das pessoas e

merece-nos muito respeito."

recordam que se trata de "gente que está habituada a uma vida

dura e sente necessidade de traduzir com o próprio corpo a sua

experiência do divino". como quem diz: os pobres, também nestas

alturas, falam. a linguagem com que sempre comunicam a sua

experiência, o que vivem, no mais fundo deles mesmos.

um caso exemplar

contam depois ao nosso jornal alguns casos que mais as

impressionam. entre estes, o caso daquela mulher, visivelmente

empobrecida, a quem um padre tentava convencer a guardar o

dinheiro que havia prometido a nossa senhora, com o argumento de

que lhe faria falta, lá em casa. e a reacção, imediata e

impressionante, que deixa qualquer um sem fala: "o senhor padre

só aceita dinheiro dos ricos? pois este dinheiro é para nossa

senhora e não será para mais nada".

mesmo à distância, no tempo, o impacto do relato deste caso foi

tão grande, que nos deixou, por momentos, sem fala. só algum

Page 59: Fátima nunca mais

tempo depois, ousámos balbuciar um comentário. e foi este: que

--48-

responsabilidade, então, a daqueles que receberem um dinheiro

entregue com esta força, com esta generosidade, com este

despojamento e também com este destino!

outro comentário não nos ocorreu, de momento. seria mais tarde,

já depois de termos deixado a casa das irmãzinhas, mas bem na

comunhão contemplativa com elas, que percebemos a violência

deste "evangelho" que os pobres sempre vivem e proclamam, na

eloquência dos gestos desta natureza. um evangelho que até nós,

os cristãos e respectivas igrejas, corremos o risco de continuar

a não captar e, por isso, também a não viver.

aqui o formulamos, então, para que muitos e muitas de nós

beneficiemos e mudemos de vida. eis:

felizes os que, como os pobres, se despojam de tudo, até do que

lhes pode fazer falta. felizes os que sabem ser e fazer como

aquela pobre viúva, louvada por jesus, que, no templo de

jerusalém, deu tudo o que possuía, ao contrário de outros que,

embora dessem mais, davam apenas do que lhes sobejava.

mas ai de quem se aproveita do produto deste despojamento dos

pobres e concebe e realiza projectos de acumulação, de

enriquecimento, de grandeza, de aumento do património, de

construção de palácios que têm mais a ver com a vaidade dos

grandes deste mundo, do que com as preocupações e os anseios de

Page 60: Fátima nunca mais

maria, nossa senhora. ai daquele que, diante do despojamento dos

pobres, não lhe captou o apelo a despojar-se de igual jeito,

para que, assim, a vida possa ser cada vez em maior abundância

em todos, a partir dos próprios pobres que tão generosamente se

despojaram.

o maior milagre foi, porém, mais longe a revelação que ao nosso

jornal foi dado ouvir, horas depois de termos saído de junto das

irmãzinhas. eis o que ouvimos:

não é em vão que, desde há anos, o nome de maria é pronunciado

em fátima, e cantado e chorado por milhares e milhares de

pobres. não é em vão que estes, com uma persistência a toda a

prova, continuam a despojar-se até do que lhes faz falta.

--49-

não é em vão que este "evangelho dos pobres" é teimosamente

praticado e mostrado por muitos deles, em gestos e atitudes que

os bem-pensantes têm por "primitivos" e "bárbaros".

quem sabe se, com tudo isto, não estará a chegar a hora de

muitos dos que, um dia, escolheram fátima para morar,

nomeadamente, as congregações religiosas femininas e masculinas,

assim como os bispos e todo o clero que regularmente lá se

deslocam de maio a outubro? não estarão à beira de captar este

evangelho para o praticarem como já os pobres fazem? quem sabe

Page 61: Fátima nunca mais

se as congregações religiosas não acabarão por converter-se aos

pobres contra a pobreza, não acabarão por despojar-se como os

pobres de todos os bens, até ficarem reduzidos ao essencial?

quem sabe se não acabarão por perceber que, como os pobres,

devem despojar-se de todo o património que acumularam, também em

fátima, a partir de terrenos comprados ao desbarato? quem sabe

se não estão para concluir, aliás, em coerência com o voto de

pobreza que fazem, que devem restituir e partilhar tudo o que

possuem, para que a vida, finalmente, seja em abundância para

todos?

um sonho? não, antes o maior milagre que maria de nazaré, a mãe

dos pobres, deseja realizar em fátima e que, quando deixarmos

que aconteça, bem poderá mudar a face de portugal e do mundo.

--50-

4

fátima: privilégio ou responsabilidade?

É uma responsabilidade. mas nós, os portugueses em geral e a

igreja em especial, temos olhado para fátima como um privilégio.

e, levados por um impulso egoísta que, à partida pode inquinar

os melhores projectos e os melhores ideais, comportamo-nos,

perante fátima e perante aquela que, desde 1917, aprendemos,

mundialmente, a chamar "senhora de fátima", como crianças

Page 62: Fátima nunca mais

mimadas. quase sempre pensamos nela, não para sermos como ela,

mas para nosso próprio proveito. e a prova é que a momtanha de

fátima tem sido simultaneamente uma montanha de pedidos de todo

o género, de cunhas, e comércio com o divino, de desenfreada

exploração do próximo, de discursos

eclesiásticos esvaziados de evangelho libertador, de orações sem

espírito, de promessas, as mais bizarras e exóticas, com muito

de degradação moral e espiritual, onde multidões e multídões,

enganadas e iludidas, acorrem a deixar muitas das suas parcas

economias, ou mesmo todas as suas parcas economias, na

expectativa de serem curadas, ou, ao menos, aliviadas de males

que está nas mãos de todos nós remediar, mediante uma

inteligente e aturada acção política libertadora e humanizadora

a desenvolver nas diversas áreas que fazem a nossa vida

individual e colectiva, nomeadamente, as áreas da saúde, da

educação, da habitação, do trabalho, do ambiente e, sobretudo,

da economia.

e assim, depois de 75 anos de existência de fátima, não se pode

dizer que todos tenhamos crescido mais em humanidade, que

estamos todos, hoje, mais libertos e responsáveis, que somos

mais criadores de fraternidade, que já não sabemos outra coisa

--51-

Page 63: Fátima nunca mais

que ser solidários, numa terra feita por nós cada vez mais à

imagem e semelhança de maria, que um dia nos "apareceu", na sua

qualidade de mãe e de discípula plenamente conseguida de jesus

de nazaré, e também na sua qualidade de única criatura em quem,

até hoje, o deus da vida e da fraternidade melhor se reviu como

pai-mãe que é, ou seja, gerador e criador de seres que, livre e

festivamente, se descobrem, uns perante os outros e uns com os

outros, como irmãos, companheiros de jornada, amigos de peito.

fátima, infelizmente, tem sido para os portugueses e para o

mundo em geral, e para a igreja católica, em particular, mais

pedra de tropeço do que graça. temos tropeçado nela e feito

muitos outros, do país e do estrangeiro, tropeçar também. a

exemplo do que historicamente aconteceu, outrora, com outro povo

que, por ter sido "visitado" pelo deus da vida e da

fraternidade, logo se pensou, levado pelo egoísmo - sempre

redutor do homem/mulher e dos povos em quem assenta arraiais -,

que era o único que o tinha sido e, por isso mesmo, também logo

se pensou "eleito" relativamente aos outros povos que o não

seriam, e a si mesmo passou, até, a chamar-se "povo de deus",

como se os restantes povos da terra o não fossem também.

É sabido como, ao fim de pouco tempo, já se sentia um povo

orgulhoso do seu grandioso templo em jerusalém (uma espécie de

fátima de então), construído por suas próprias mãos, mas à

revelia desse mesmo deus que, entretanto, quando "apareceu" a

abraão e a moisés (cada povo tem também os seus e, se calhar, a

maior parte ainda nem deu por isso, tão dominados todos temos

sido pelo que sempre se teve na conta de "eleito", judeu

primeiro, eclesiástico depois), fê-lo, não em templos levantados

Page 64: Fátima nunca mais

por mão humana, mas nos sítios mais profanos, onde a vida está a

acontecer e, sobretudo, onde a vida corre perigo. ou ele não

fosse o deus da vida e do amor, o deus pai-mãe, gerador e

criador de fraternidade.

fátima é uma responsabilidade, mas nós apressamo-nos a fazer

dela um privilégio. apressamo-nos a pensar que, a partir da

"aparição" de maria, todos os nossos problemas estavam

--52-

resolvidos. para todas as dificuldades, individuais e

colectivas, tínhamos, ali, à mão, a "senhora de fátima", a quem

sempre poderíamos recorrer, com quem sempre poderíamos negociar.

os governantes do país, nomeadamente, ao tempo da guerra

colonial, aproveitaram-se dela, para justificar o que é sempre

injustificável, como é toda e qualquer guerra. e os governantes

de hoje também não perdem oportunidades de "aparecerem" por lá,

nos momentos de mais gente, em hipócritas e repugnantes atitudes

de devoção mariana, eles que, entretanto, fazem da política uma

actividade ao contrário da "política" do deus de maria, pois

possibilitam que os ricos sejam cada vez mais ricos e os pobres

sejam cada vez mais despojados dos bens indispensáveis à vida, e

possibilitam que os poderosos reforcem o "peso" nacional e

internacional das suas multinacionais, enquanto os pequenos são

obrigados a permanecer no medo e na humilhação, mediante o

recurso à repressão policial e à publicação-aplicação de leis

Page 65: Fátima nunca mais

injustas.

também a igreja em portugal tem vivido à sombra de fátima. e a

prova é que quase se tem limitado a ser uma empresa de serviços

religiosos, apoiada por um enorme e, ainda por cima, generoso

corpo de funcionários, e facilmente se dispensa do que lhe é

específico, ou seja, anunciar o evangelho da libertação e, desse

jeito, qual parteira, ajudar a dar à luz pequenas

comunidades-fraternidades de serviço libertador a favor do resto

da humanidade.

pensa que tem do seu lado a "senhora de fátima" e isso lhe

basta. mesmo que não faça mais nada, que se limite a manter,

ali, na montanha de fátima, aquele "altar do mundo", é garantido

que as multidões, famintas de pão e de dignidade, de saúde e de

justiça, de trabalho e de participação, de estabilidade e de

paz, sempre correrão para ela, mesmo que, entretanto, estruturem

as suas vidas à revelia dos valores alternativos do evangelho de

jesus que, aliás, quase fazem gala de nem conhecer.

É tempo de todos acordarmos. porque, se maria, mãe de jesus e de

todos os empobrecidos e humilhados e crucificados do mundo,

"apareceu" em fátima, não foi para, egoistamente, nos

--53-

aproveitarmos dela, mas para nos tornarmos, cada vez mais,

homens e mulheres libertos como ela, subversivos como ela,

ousados como ela, intervenientes e participativos como ela,

criadores de fraternidade e de solidariedade como ela, em vez

de, idolatricamente, nos plantarmos de rastos diante dela, a

Page 66: Fátima nunca mais

fazê-la crescer a ela, à custa de nos diminuirmos a nós.

porque a glória de deus, do deus da vida e da fraternidade, é

que o homem/mulher e os povos vivam! e não pode ser outra a

glória de maria, a "senhora de fátima".

--54-

5

não será que também fátima precisa de se converter ao

evangelho de jesus?

completam-se, este mês de maio, 75 anos sobre as chamadas

aparições de fátima. com o desmantelamento da urss e a

subsequente "conversão" da rússia à nato e às multinacionais do

dinheiro que, hoje, se movimentam à vontade no seio da

comunidade europeia e noutras zonas do globo, parece que fátima

deveria encerrar as suas portas. porque, como se sabe, ela

nasceu sob o signo do anticomunismo e, durante estes 75 anos,

sempre apostou na "conversão da rússia", para que ela não

continuasse a espalhar os seus "males" pelo mundo. e

estranhamente, ou talvez não, sempre se esqueceu do capitalismo,

apesar de ele ser, à luz do evangelho de jesus, intrinsecamente

perverso e, neste momento, ser, até, o principal responsável

pela degradação da natureza e do meio ambiente, e o assassino,

pela fome e por doenças facilmente curáveis, de muitos milhões

de pessoas empobrecidas, em cada ano. mas não é isso que está

para acontecer.

Page 67: Fátima nunca mais

pelo contrário. fátima prepara-se para prosseguir. agora, já não

com a bandeira do anticomunismo, mas com a da paz. e a prova

disso é o congresso internacional que decorrerá, entre os dias 8

e 12 deste mês, promovido pelo santuário, e cuja organização foi

confiada à faculdade de teologia da universidade católica

portuguesa. um congresso - "fátima e a paz" - que vai trazer à

serra d'aire, especialistas reconhecidos, entre os quais, o

sempre tido como "bispo vermelho" hélder câmara, o teólogo da

libertação josé comblin e o prof. jean ladrière, da universidade

de lovaina.

o jornal fraternizar não quis deixar passar em claro esta data.

e marcou encontro com o padre dominicano, frei bento domingues,

57 anos de idade, autor, entre outras obras, do livro "a

religião dos portugueses", onde o fenómeno fátima é também

dissecado. colocou-lhe algumas questões, polémicas, entre muitas

possíveis. e registou a sua reflexão.

frei bento, na conversa que, durante quase duas horas, manteve

com o jornal fraternizar, não teve a preocupação de responder às

questões, uma por uma. muito menos cuidou em esgotar o assunto.

também formulou algumas outras, que ele próprio transporta

consigo e falou, até, da existência de dois volumes, já

publicados por um confrade seu, o pe. joão de oliveira, feitos imagine-

se! - só de perguntas, à volta do fenómeno fátima. tão

"embrulhado" ele se mantém, ao fim destes 75 anos!

as perguntas que formulámos ao frei bento aqui ficam. para que

também os leitores e leitoras se enfrentem com elas. porque,

Page 68: Fátima nunca mais

também neste particular, se calhar, valem mais umas quantas

perguntas, do que muitas respostas.

de resto, do que é preciso é que a gente se habitue a pensar. e

perca de vez o medo de o fazer em voz alta. até porque quem vive

subjugado pelo medo, ainda não é homem/mulher. muito menos

cristão. ou não fosse verdade que foi para a liberdade que

cristo nos libertou (gálatas 5, 1). também e, sobretudo, para

nos libertar do medo!

perguntas pertinentes

1. fátima e a paz. fica a impressão de que a paz no mundo está,

desde há 75 anos, dependente, não da prática da justiça, mas da

reza de muitos terços. se rezarem, há paz. se não rezarem,

haverá guerra. são assim as coisas, à luz da revelação

bíblico-cristã?

2. ainda fátima e a paz. aconteceu a guerra do golfo, curta no

tempo, mas terrível na execução e nas consequências. foi uma

guerra total. e muitos milhões e milhões de terços se têm rezado

em fátima e por esse mundo fora. em que ficamos?

--56-

3. aparições. será que houve aparições de verdade? os fenómenos

da parapsicologia não explicam a experiência religiosa por que

terão passado as três crianças de fátima? a pregação assustadora

e de cores dantescas que os padres faziam nas chamadas missões

populares, pelas paróquias do país, não podem ter impressionado

Page 69: Fátima nunca mais

tanto as crianças, que elas acabaram por ver e ouvir tudo aquilo

que viam e ouviam, quando ouviam os pregadores, ou o próprio

pároco, na missa dominical e na catequese?

4. a mensagem transmitida. está conforme à boa nova libertadora

de jesus, ou tem mais a ver com a pregação de joão baptista e do

antigo testamento? e aquele "rezai pela conversão dos pecadores"

é evangélico? não é sobretudo moralista e farisaico, enquanto

pressupõe que os pecadores são sempre os outros? e o mote

"oração e penitência" tem alguma coisa a ver com o essencial do

kerigmn proclamado por jesus e pelas primeiras comunidades

cristãs? tem alguma coisa a ver por exemplo, com a proclamação

de jesus, na sinagoga de nazaré, do ano da graça do senhor, e

com a metanoia (mudança) provocada pelo feliz anúncio de que o

reino de deus já está entre nós?

5. senhora de fátima. a senhora de fátima ainda será maria de

nazaré, tal como as narrativas evangélicas nos falam dela e que,

concretamente, o evangelho de lucas nos deixa perceber, naquele

subversivo cântico do magnificct, posto nos lábios dela?

6. o deus de fátima. É o deus pai-mãe, revelado por jesus de

nazaré e cantado por maria? não andaremos todos a laborar num

grande equívoco?

7. ainda as aparições. não serão uma hábil montagem pastoral,

uma espécie de parábola pastoral da época, bem ao gosto popular,

com a finalidade de, através dela, catequizar uma população que,

de outro modo, não o chegaria a ser? não é assim uma espécie de

missão popular concreta em acção, ou, como hoje se diz, uma

Page 70: Fátima nunca mais

dramatização?

8. fátima, hoje. não será que todo aquele negócio, toda aquela

religiosidade, todo aquele dolorismo, toda aquela febre de

--57-

milagrisnu, todas aquelas idas a pé, todo aquele andar de

rastos, todas aquelas velas a arder, dia e noite, no crematório,

todo aquele dinheiro que se junta e que ninguém sabe quanto é e

para que é, todo aquele secretismo-, não têm mais a ver com o

templo-banco de jerusalém, no tempo de jesus de nazaré, e que

ele combateu até à morte, do que com a boa nova libertadora que

ele anunciou aos pobres e realizou na pessoa deles?

9. fátima e a rússia. agora que não há mais urss e que o

comunismo internacional parece ter-se convertido ao capitalismo

que futuro para fátima?

10. fátima e a igreja. que balanço, ao fim de todos estes anos,

do modelo moralista e anticomunista de igreja que fátima

veiculou? positivo? negativo? contribuiu para a libertação do

nosso povo, ou oprimiu? favoreceu o desenvolvimento do reino de

deus, aqui, ou foi, está a ser, mais pedra de tropeço? não será

que também fátima precisa de se converter ao evangelho de

libertação de jesus?

11. lúcia é a única sobrevivente das três crianças de fátima. as

outras duas morreram antes de tempo. É caso para dizer que nem a

senhora de fátima lhes valeu. ela, a quem, mensalmente, muitas

Page 71: Fátima nunca mais

pessoas continuam a pedir a cura dos seus males, deixou morrer

antes de tempo as duas crianças. que pensar de tudo isto,

sobretudo, se, como já santo ireneu defendeu e o evangelho não

deixa de o revelar, a glória de deus é que as pessoas vivam? e

que pensar do estilo de vida a que lúcia, em todos estes anos,

parece ter sido condenada? pode servir de modelo de cristã, na

linha do verdadeiro discípulo de jesus, para alguém?

--58-

o que as crianÇas viram não foi nossa senhora

- disse ao jornal fraternizar o padre e teólogo dominicano frei

bento domingues

"o que apareceu em fátima foi uma voz. o que aquelas crianças

viram, em 1917, não foi nossa senhora, foi uma imagem. o

santeiro de braga pôde fazê-la." assim disse ao jornal

fraternizar, frei bento domingues. as palavras deste padre

católico podem parecer chocantes aos ouvidos de muitos, mas não

deixam de ser teologicamente correctas. porque "todas as

experiências religiosas do transcendente nunca são directas, mas

mediatizadas. também o que as crianças podem ter visto foi uma

representação de maria de nazaré, não maria de nazaré".

e esta representação de maria, desde então conhecida sob a

designação de "senhora de fátima", como todas as representações,

tão pouco saíu fora do imaginário religioso predominante naquela

época. "fátima, em 1917, não trouxe nada de novo. apenas edita o

que existe então. fátima foi o aproveitamento bem feito do

Page 72: Fátima nunca mais

catolicismo popular existente nas paróquias, numa conjuntura

entre as dioceses de lisboa e leiria, dois meios industriais

anticlericais, num tempo de perseguição à igreja, mas também já

de uma certa abertura. podemos dizer que em fátima se catalisou

a resposta do catolicismo que havia. o papel das três crianças é

esse, serem as catalisadoras da catequese, dos sermões, de tudo

o que ouviam. de resto, a descrição que fazem, por exemplo, da

ida de nossa senhora para o céu é igual a qualquer procissão que

há lá na terra."

frei bento diz não ter dúvidas de que "houve uma experiência

religiosa por parte das crianças". mas, para ele, "a questão

está toda em estudar a natureza dessa experiência". o que, até

agora,

--59-

nunca se fez. aliás, essa foi até a primeira coisa que o teólogo

dominicano começou por dizer ao jornal fraternizar: "fátima

nunca foi estudada".

portanto, "pedir àquelas crianças que elas fossem o catolicismo

evangélico, que não era o que se respirava na sua terra, seria

pedir o milagre. exigir daquelas crianças o reencontro com a boa

nova libertadora de lucas 4 seria exigir o milagre. mas as

crianças limitam-se a repetir o que ouvem e o que vêem. e

projectam isso em nossa senhora e no imaculado coração de maria,

que era, então, uma devoção muito divulgada, assim como a

Page 73: Fátima nunca mais

devoção do rosário. conseguir que estas crianças peguem nisso

que existia e lhe dêem toda aquela força, ao dizerem que isto

que ouvimos é do céu que vem, essa foi a novidade catalisadora

de fátima. mas não é uma redescoberta da novidade libertadora do

evangelho. fátima é feita do que há no sítio e na época. e

depois, há ainda os desenvolvimentos posteriores. lúcia continua

a escrever, faz reelaborações sobre reelaborações da experiência

religiosa inicial, de acordo com quem a tem ajudado. e tudo isso

está publicado".

questão tabu?

frei bento entende que o problema maior de fátima é, pois, ela

nunca ter sido estudada a fundo. parece que ninguém tem coragem

para o fazer. nem mesmo a universidade católica. e referiu que,

há poucos meses, aqueles que são responsáveis no santuário

estiveram num programa televisivo, e a impresão que deixaram aos

telespectadores é que "aquilo, em 1917, não passou de um

fenómeno ovni". o que, em seu entender, diz muito. ou seja,

"quem é responsável por fátima, não sabe dizer nada de

convincente sobre fátima". o que leva frei bento a concluir que

"fátima é importante, como fenómeno social da igreja católica,

mas não é nada que lhe dê que pensar, só dá que fazer a situação

é grave neste ponto".

É verdade que estão já agendados congressos internacionais, como

o que vai ter lugar este mês. contudo, "deve-se observar que

nada disso estuda o pressuposto de que o que é que,aconteceu em

fátima. deixa absolutamente em branco a questão sobre as origens

Page 74: Fátima nunca mais

do fenómeno fátima". de modo que esta mais parece uma questão

tabu.

--60-

um comportamento assim tão estranho e perturbador leva as

pessoas, sobretudo, as que reflectem e procuram ser

intelectualmente honestas, a concluir que os responsáveis de

fátima pensarão que, agora, "a empresa está montada, saudável, e

com capacidade de expansão assegurada, pelo que não vale a pena

estar a reflectir sobre as suas origens".

e, tal como as coisas se apresentam, hoje, com a auto-estrada a

passar ali ao lado, com as ordens religiosas todas com casa

própria em fátima, com a indústria hoteleira em franco

desenvolvimento, com espaços para encontros de todo o tipo,

religiosos e laicos, pode até dizer-se que "fátima já não

precisa que lá tenha acontecido nada" para se aguentar. "ela é,

hoje, humanamente indestrutível". aquilo agora é sobretudo "uma

estrutura turística e económica", por sinal, extraordinariamente

rentável, mesmo ao nível eclesiástico, e em que o "substracto

religioso serve apenas para a montagem dessa estrutura. É muito

possível que, daqui a umas centenas de anos, haja gente que se

pergunte como é que é precisa tanta igreja, tanta capela, em

cada rua. como já acontece no alentejo, onde há três ou quatro

igrejas na mesma praça, a maior parte delas fechadas, ou

abertas, mas apenas para meia dúzia de pessoas".

tudo isto, porém, levanta muitas questões. também jerusalém, com

Page 75: Fátima nunca mais

o seu grandioso templo, era, no tempo de jesus, algo assim,

centro de peregrinação obrigatória para judeus de todo o mundo,

e centro económico e financeiro. casa de oração e banco-mercado

nacional, ou covil de ladrões, como os profetas preferiam

chamar-lhe. lugar onde deus era, oficialmente, mais invocado,

mas onde, em seu nome, também mais se oprimia e enganava o povo.

e sabe-se - frei bento teve: o cuidado de o recordar nesta

conversa com o jornal fraternizar - que "todo o trabalho de

jesus consistiu em libertar jerusalém". o que lhe custou a vida.

porque os que se aproveitam das movimentações religiosas das

multidões do povo, quase sempre ditadas pelo ainda não

devidamente estudado inconsciente colectivo, nunca perdoam ao

profeta, quando ele, por amor da verdade e do povo, desmascara

todos esses negócios sujos.

--61-

e, porque nunca foi estudada a sério, mas cada vez mais se impõe

ao país e ao mundo, como o templo de jerusalém se impôs aos

judeus da palestina e da diáspora, também "fátima, neste

momento, ao ser a concentração de tudo, corre o perigo de ser

também a concentração de todos os vícios religiosos e laicos. É

um risco, não digo que é um facto. por isso, a maneira como vejo

fátima é muito interrogativa. acho que, em muitos aspectos, há

um franco progresso, o centro paulo vi, por exemplo, é um bom

centro, houve já uma certa higienização da liturgia, mas os

motivos de fundo que fizeram de fátima um lugar de obscurantismo

Page 76: Fátima nunca mais

reaccionário, estão todos de pé. em síntese, direi que fátima é

uma graça com muitas desgraças, é um conjunto de muitas

desgraças com muita graça".

--62-

fátima: um inferno de mau gosto

- reconhece frei bento ao jornal fraternizar

"conseguiu-se fazer de fátima o maior concentrado do mau gosto

do imaginário católico que alguma vez já se tinha feito por

aqui. e que continua, impunemente, em expansão enorme. não são

só variações do mesmo, mas o mesmo sem variações. quer dizer, o

que se conseguiu em fátima é uma aflição, uma espécie de horror,

de campo de concentração do horror religioso, um inferno de mau

gosto. o que, a meu ver, é muito grave."

frei bento, saudavelmente cáustico e profundamente evangélico,

caracteriza assim, para o jornal fraternizar, o modelo

predominante de cristianismo e de igreja que "aparece" em

fátima. e vai mais além: "o problema que, neste particular, hoje

se põe, já não é se fátima fala o evangelho, mas se ainda é

possível evangelizar fátima".

para frei bento domingues, dizer que aconteceu alguma coisa em

fátima não diz que, agora, fátima é lugar sagrado. quem é que

garante isso? então, se fátima é lugar sagrado, agora, ali, o

Page 77: Fátima nunca mais

dinheiro é sagrado? aquele mau gosto é sagrado? aquele

engana-tudo-e-todos é sagrado? aquele ganhar lucros de mil por

cento é sagrado?

e, a propósito do mau gosto de fátima, fala sem papas na língua.

"dizem que ali se mostrou um inferno, mas há um inferno que foi

montado, que é o inferno do mau gosto religioso. creio bem que,

em igreja, ainda se não viu a gravidade pastoral daquilo."

porque, afinal, "o visual religioso de fátima está para além do

que se pode imaginar de mais perverso. se quiserem torturar

--63-

uma pessoa que tenha o mínimo de bom gosto artístico,

obriguem-na a estar em fátima. podem fazer lá campos de

concentração, de castigo, para artistas".

para este padre dominicano, "fátima conseguiu construir, peça a

peça, a inestética da fé". mas há uma excepção. "há uma coisa em

fátima que julgo notável, que é o museu da consolata. aí,

conseguiu-se realizar algo de verdadeiramente novo, ao nível

estético, da imagem, da missão, da recolha da arte popular. É um

esforço que saúdo e me parece exemplar."

religião sacrificial

frei bento salta, depois, para outros aspectos, que ele chama

"manifestações sacrificiais" da religião e frente às quais a sua

sensibilidade de cristão especializado em assuntos de

cristologia não pode deixar de reagir.

Page 78: Fátima nunca mais

"creio que há aí muito sofrimento acumulado, mas que também é

doseado pela sabedoria portuguesa popular; há, é verdade, uma

utilização da liturgia sacrificial que é, a meu ver a vitoriosa

em fátima. É sinal de que as pessoas que lá vão e cuja

sinceridade a gente nunca pode pôr em dúvida, com os dramas

enormes que levam, ainda não encontraram - na pastoral das

igrejas paroquiais, dos movimentos católicos, substituto para as

suas dores, para o seu sofrimento - nem um sentido para tudo

isso. vão lá e, dessa maneira, conseguem não entrar no

desespero. de certo modo, depois da promessa cumprida, há uma

suspensão. não há cura, mas suspensão. o que é melhor do que

nada. e, se isso ajuda as pessoas a viver, é melhor isso do que

elas ficarem amarradas à sua loucura."

entretanto - adverte logo frei bento - "coisa completamente

diferente é quem meteu e continua a meter isto, esta religião

sacrificial, na cabeça das pessoas". e refere-se, a propósito,

ao que ele chama "o programa sacrificial do catolicismo

português" ao tempo das "aparições". concretamente, fala dos

padres da vinagreira, ao norte do país, em cujo seio, nos

começos do século, surgiu e se divulgou o livro "missão

abreviada", porventura, o modelo mais acabado de um "catolicismo

ameaçador".

À luz desse catolicismo (ainda hoje é esse o catolicismo de

muita gente praticante e não praticante), que tanta influência

teve

--64-

Page 79: Fátima nunca mais

na geração de católicos, em que se integravam as três crianças

de fátima e suas famílias, "não se sabe revelar nada, sem a

ameaça". uma mentalidade e uma visão das coisas que, por sinal,

não tem nada a ver com o deus revelado em e por jesus de nazaré,

nomeadamente, no evangelho de lucas 4, quando jesus, em plena

sinagoga de nazaré, deixa as pessoas todas irritadas, porque, ao

ler o texto de isaías, não leu a passagem que se referia à ira

de javé (deus), como quem proclama, de uma vez por todas, "ira

de javé, nunca mais!".

"ora, o problema é que, em fátima, tudo está montado sobre a ira

de deus. se não fazem, vão ver o que lhes acontece. É a religião

de um deus sacrificador, apresentado por nossa senhora às

crianças, e que era a religião própria da época. um deus em que,

agora, se inspirou saramago, no seu "evangelho". um deus que

malha com as pessoas no inferno. É um terror. quando, no

evangelho cristão, ao contrário, o que há é o triunfo da

revelação do deus do amor, do deus da pura graça, que não sabe

falar senão da graça de deus. e onde os carimbados de pecadores

pelos fariseus hipócritas (e são fariseus todos os que rezam

pela conversão dos pecadores, como se só os outros o fossem e

eles não) são os comensais, os companheiros (a palavra à letra

quer dizer os que comem do mesmo pão) com quem jesus faz questão

de sentar-se à mesma mesa."

a verdade, porém, é que a mensagem proclamada pelas crianças de

fátima, em 1917, como escutada da boca de nossa senhora, não

teve em conta nada desta boa nova libertadora de jesus. frei

Page 80: Fátima nunca mais

bento reconhece-o sem dificuldade. "ali, o catolicismo pregado

era em nome de jesus, mas quem ganhou foi o catolicismo

sacrificial", mais próprio de joão baptista e da corrente

sacerdotal-levítica do antigo testamento. totoloto sobrenatural

e que dizer sobre a febre do milagrismo, em fátima? "em fátima,

não há milagres. quando é que houve?" frei bento tem razão,

porque, em boa verdade, o que há são aqueles gritos, estilo

"senhor, fazei que eu veja; senhor, fazei que eu ouça; senhor,

fazei que eu ande; senhor, se quiserdes, podeis curar-me". "mas

--65-

isso é um ritual", comenta o frei dominicano. "É como se todos,

à partida, estivessem de acordo que não vai acontecer nada. como

ocorria com os doentes à volta da piscina de siloê, no tempo do

evangelho de joão".

frei bento salienta, ainda a este propósito, que "no movimento

religioso, as pessoas andam sempre à espera do milagre. mas o

que eu acho é que, em fátima, se reflecte bem a maneira de ser

português. as pessoas, pelo sim, pelo não, vão. não vão com a

certeza absoluta de que pode acontecer o milagre. para elas,

fátima é, neste aspecto, o totoloto do sobrenatural. mas ninguém

investe a vida toda nisso".

e, no entanto, era bem preciso que acontecesse o milagre em

fátima. mas o milagre, tal como o entende o novo testamento. "no

novo testamento, o milagre tem a função de dizer que tudo pode e

Page 81: Fátima nunca mais

deve ser diferente. e, assim, mobiliza as pessoas para que façam

um mundo diferente. não é uma receita. nem uma técnica.

infelizmente, em fátima, nem sequer aparece esta pedrada no

charco, para dizer às pessoas que lá vão que tudo pode e deve

ser diferente, e que cabe a elas fazê-lo, cabe a elas ser os

obreiros duma terra que seja para todos nós, como o céu é para

deus. assim na terra, como no céu, ensina-nos jesus a

pedir-fazer."

e porque as coisas, infelizmente, não são assim ali, frei bento

não hesita em concluir então que, também neste particular, "a

imagem que se tem de fátima é deprimente". e deixa no ar uma

pergunta, bem pertinente, dirigida, nomeadamente, à universidade

católica portuguesa: "como fazer para que, em muitas zonas da

vida de fátima, apareçam fragmentos de salvação? como é que aí

podem ser injectados fermentos transformadores de toda aquela

realidade?"

--66-

agora, com o comunismo derrotado, frei bento interroga-se:

qual o papel de fátima?

"qual vai ser o papel de fátima, agora que o inimigo principal

(o comunismo de leste), que ela se propôs combater, foi

vencido?" para frei bento que, na conversa com o jornal

fraternizar, formulou a pergunta nestes termos, esta poderia ser

uma boa altura para "desactivar fátima", tal como se diz por aí

Page 82: Fátima nunca mais

que "é preciso desactivar aquelas ogivas todas que estavam

apontadas para os, agora, derrotados países de leste", e que o

ocidente capitalista e cristão(?), até há pouco, sempre

considerou como os únicos "maus" do mundo. mas, descansem os

portugueses católicos e comerciantes, que não é isso que irá

acontecer. o próprio frei bento é o primeiro a reconhecer que,

em vez disso, hoje, "fátima está a ser bem activada e

reactivada". e permite-se, até, apontar-lhe "um emprego muito

menos farisaico do que aquele que ela teve até há pouco": que

fátima se assuma "como lugar de oração pela paz e de estudos dos

caminhos da paz".

antes, porém, frei bento defende que seja realizado um estudo

profundo sobre o fenómeno fátima, que ponha em confronto as suas

narrativas fmndadoras com as narrativas do novo testamento, e

investigue sobre os arquétipos religiosos conscientes e

inconscientes, a partir dos quais as populações, nomeadamente,

as camadas mais populares fazem as suas interpretações da

realidade, um estudo que envolva especialistas crentes,

agnósticos e ateus, de ciências humanas e também teólogos de

diversas sensibilidades, e que melhor nos faça "perceber o que

leva, de facto, as pessoas a fátima, não simplesmente o que elas

dizem que as leva".

--67-

um estudo assim tão em grande e em tamanha profundidade é

Page 83: Fátima nunca mais

necessariamente prolongado no tempo e muito dispendioso. mas, no

santuário, dinheiro é coisa que sempre superabundou. "fátima tem

recursos económicos para meter ombros a esta obra. e, se não

tem, que apresente as contas, pois são contas do dinheiro do

povo."

e, a propósito do novo papel de fátima, frei bento pensa também

nos bispos portugueses, a quem, publicamente, pede que ousem

"fazer de fátima um lugar plural da expressão da fé cristã e

eclesial", pois, "ao ser, como até aqui, sempre a reprodução do

mesmo, ela está numa linha que não condiz com o que joão paulo

ii chama a nova evangelização". efectivamente, "fátima, quanto

aos métodos, objectivos e formas de os realizar, não é nova; tem

sido sempre a mesma coisa".

frei bento está consciente de que esta opção pastoral, que

significa "introduzir a possibilidade da diferença", no interior

da igreja, "tem um preço a pagar" e "tão-pouco pode ser feita

por decreto". trata-se, segundo este teólogo dominicano, de

"possibilitar que, em fátima, venha ao de cima a originalidade

de cada um dos múltiplos movimentos eclesiais cristãos e

comunidades". sem anátemas, nem exclusões. com bom senso e

alegria eucarística. num imenso espírito ecuménico que sabe

ultrapassar as fronteiras das igrejas e estender-se até ao

limite das fronteiras do reino de deus.

para frei bento, há ainda outros campos que podiam e deviam ser

objecto de estudos académicos e de séria investigação

científica. sugere, por exemplo, "o estudo do simbolismo

católico devocional, combinado com os simbolismos do

nacionalismo português". pensa, depois, nas inexistentes,

Page 84: Fátima nunca mais

acríticas e piedosas "peregrinações" do papa a fátima e, a

propósito, sugere que se faça uma outra investigação sobre "a

relação de fátima-roma". É que, "todo este vaivém contínuo do

papa pode dar uma ideia de que há uma espécie de canonização de

fátima, sem ainda sequer se saber bem o que fátima é".

no sempre lúcido dizer de frei bento, "não calibrar

adequadamente o sentido e o alcance das presenças de roma em

fátima, pode contribuir para que haja mais uma dificuldade a

juntar às que já havia acerca de fátima, que é aumentar o arsenal

--68-

do não pensado". com a agravante de poder induzir muitas

pessoas, teologicamente não esclarecidas, num erro gravíssimo,

como seria, por exemplo, levá-las a pensar que "a versão

católica de fátima corresponde à versão do evangelho" (se até o

papa lá vai e não levanta qualquer crítica evangélica àquilo que

lá se faz!...), ou que "fátima é o evangelho" e, como tal, já

"nem tem que ser confrontada com ele, nem com as outras

narrativas do novo testamento".

investigações assim, até agora, nunca realizadas,

constituiria, certamente, uma espécie de "pedrada no charco",

pois viriam pôr em causa o que lá se faz. mas, em vez de serem

temidas, devem ser fomentadas. em nome da verdade que

Page 85: Fátima nunca mais

liberta.

e do respeito que as pessoas, todas as pessoas, mas ainda mais

as multidões do povo que para lá correm carregadas de aflições e

de esperança. frei bento não tem dúvidas que esta seria uma

prática saudável e, porventura, a única que poderá contribuir

para afastar, de vez, as "questões perturbantes" que fátima,

ainda hoje, não resolveu, as quais têm a ver, até com as

próprias narrativas do que se diz ter ocorrido lá, em 1917.

por outro lado, só depois deste trabalho sério e consequente é

que fátima poderia transformar-se num "lugar de pregação

evangélica, em sintonia com o mundo que estamos a viver em

toda a sua complexidade". de contrário, continuará, como até

aqui, a ser guarida de "um movimento religioso, transformado

em slogans, em lugares comuns, uma das coisas que jesus de

nazaré mais combateu. porque o que mais oprime as pessoas é

um conjunto de lugares-comuns que as dispensa de pensar, de

se confrontar, e jamais lhes permite o acesso à palavra, à

intervenção directa, à movimentação a favor dos outros".

--69-

deuses contra deus

em fátima, como em qualquer outro santuário ou templo, não basta

invocar deus para se concluir que estamos perante uma

manifestação de fé. pelo menos de fé cristã. quando muito,

estamos perante uma manifestação religiosa. o que não é a mesma

Page 86: Fátima nunca mais

coisa. de resto, o cristianismo, no início, nem sequer quis

aparecer como uma religião. os textos fundadores do novo

testamento, do que falam, não é duma nova religião, mas duma via

ou caminho. via ou caminho que nos há-de levar, não a deus, sem

mais, mas ao outro, aos outros, aos que não são da nossa carne e

sangue, e até aos que temos como "inimigos". para que entre nós

e eles, entre todos e todas, se estabeleça, progressivamente,

uma relação de fratermidade/solidarieadade. pois só quando esta

relação de fraternidade/solidariedade se toma efectiva é que o

deus de jesus é honrado e cultuado. e a fé cristã

verdadeiramente acontece.

i "nem todo o que me diz senhor, senhor, entrará no reino dos

céus, mas sim aquele que fizer a vontade de meu pai que está nos

céus" (mt 7, 21). o evangelho é assim. não admite fugas,

porventura, muito religiosas, mas também muito alienantes,

desumanizadoras e desfraternizadoras.

em fátima, como em qualquer outro santuário ou templo, é preciso

inquirir, com humildade e a toda a hora, que deus é que lá está

a ser invocado e cultuado. que deus é que atrai as pessoas e as

faz movimentar. porque, ao contrário do que habitualmente se

pensa, não há apenas um único deus. sempre houve, através dos

tempos, muitos deuses. e a dificuldade em poder discernir, entre

tantos deuses, qual o verdadeiro, aquele que progressivamente

nos humaniza e fraterniza (e só um deus que nos

--71-

Page 87: Fátima nunca mais

humaniza e fraterniza é que é boa notícia para os humanos),

sempre foi muito grande. e, hoje, parece ser ainda maior do que

no passado. porque os deuses são muitos e qual deles o mais

atraente e sedutor.

sabemos que caim, por exemplo, já nos alvores da humanidade - é

a primeira carta de joão que o lembra, nos alvores do cristianismo-e

segundo reza o mito bíblico do génesis (4, 1-16),

também invocava deus, cumpria com todos os ritos religiosos,

frequentava, regularmente, a liturgia da época. isso, porém, não

o impediu de, na maior das calmas, e com a mais sossegada das

consciências, matar o irmão abel. o deus que invocava e cultuava

e ao qual, generosamente, oferecia as primícias das suas

colheitas não era incompatível com uma acção fratricida. pelo

contrário, até lha terá sugerido ou inspirado. no momento do

culto.

a narrativa foi escrita, não como um conto para nos distraír,

mas para nos edificar. para nos alertar. para nos ajudar a

discernir. para nos revelar que não basta admitir a existência

de deus, ser deísta, ser religioso, frequentar actos de culto, a

horas certas e em locais tidos como sagrados, para sermos,

automaticamente, homens e mulheres humanos, humanizados,

fraternos, numa palavra, cristãos. podemos fazer tudo isso e

muito mais, por exemplo, contribuir com chorudas ofertas para a

construção de templos e santuários, fazer difíceis e dolorosas

promessas, e cumpri-las escrupulosamente, manter até um bom

entendimento com os sacerdotes de alguma das múltiplas religiões

Page 88: Fátima nunca mais

que por aí existem e, ao mesmo tempo, alimentar sentimentos de

ódio e vingança, de ciúme e de morte contra o outro e os outros.

pior ainda, podemos até passar a vias de facto e matar o outro,

matar os outros, os "inimigos", os que não pensam como nós, os

que não são da nossa religião, nem aceitam fazer o nosso jogo. e

tudo isto, sem chegarmos a perder a tranquilidade de

consciência. pelo contrário, com todo o ar de quem cumpre um

dever, de quem pensa que, assim, é que está a ser religioso.

escrever e dizer estas coisas pode ser eventualmente chocante

para muitos e muitas, crentes em deus ou ateus, mas não devia

sê-lo, pelo menos, para os cristãos e cristãs e respectivas

igrejas.

--72-

o cristianismo que, no início, nunca quis ser uma religião mais,

entre as múltiplas existentes no império romano, mas apenas uma

via ou caminho que, teimosamente, nos há-de levar ao outro, aos

outros, mesmo aos que uma certa educação cívica e religiosa nos

aponta como "inimigos" nossos, para com todos e todas fazermos a

descoberta e a experiência da fraternidade/solidariedade e da

comunhão cada vez maior, nasceu, como se sabe, desta revelação

definitiva, a mais radicalmente libertadora da humanidade e

também a mais humanizadora e fraternizadora.

jesus de nazaré, reconhecido e proclamado pelos primeiros

aderentes e seguidores como o cristo, por força da ressurreição

que, inesperadamente, lhe aconteceu, havia sido, até então, o

Page 89: Fátima nunca mais

mais odiado dos homens, condenado à morte como blasfemo e

subversivo, e executado na cruz. ora, quem está por trás de todo

este crime maior da história da humanidade, quem conduz todo o

processo, até que seja consumado, são homens religiosos,

profundamente crentes em deus, postos à frente de instituições,

as mais sagradas. mas quando assim procedem, os príncipes dos

sacerdotes e o sinédrio, juntamente com os teólogos de serviço,

fizeram-no na convicção de que, dessa maneira, davam glória a

deus, ao deus cultuado e adorado, também por eles, no grandioso

templo de jerusalém. tanto assim que, mesmo depois de terem

cometido tão horrendo crime, continuaram, de consciência

tranquila, a frequentar o templo e a promover o culto em honra

do seu deus, em dias e horas certos.

ora, o que se passou com jesus de nazaré, chamado o cristo,

tornou-se, pelo menos, para os cristãos e cristãs e respectivas

igrejas, no acontecimento mais revelador da história, a luz que

ilumina todo o homem que vem a este numdo. o novo e definitivo

big-bang da criação da humanidade e do mundo. o novo e

definitivo começo. nele e com ele, a humanidade nasceu de novo,

nasceu definitivamente fraterna e solidária.

sabemos, por isso, e de maneira definitiva, a partir de jesus

crucificado, que o pai ressuscitou, que, de facto, deus não é,

nunca foi, uma realidade unívoca. há muitos deuses. há deus e

deuses. e há até uma luta dos deuses contra deus. há deuses

altamente perigosos, assassinos e opressores, que não estão bem

sem vítimas inocentes, cujo sangue reclamam insaciavelunente.

deuses sádicos

Page 90: Fátima nunca mais

--73-

que devoram os seus adoradores, os escravizam e degradam. numa

palavra, os desumanizam e, finalmente, matam. e que assim como

são, fazem ser os seus adoradores que, por isso, podem ser muito

religiosos, como caim, mas também assassinos. À imagem e

semelhança dos deuses que invocam e cultuam.

e há o deus das vítimas, ele próprio vítima dos deuses

todo-poderosos e assassinos, que ressuscitou jesus dos mortos.

este é o deus de jesus e dos homens e mulheres que prosseguem a

sua causa (cristãos e cristãs e outros de boa vontade), o deus

vivo que vive e faz viver, o deus que não quer outro culto senão

a promoção da vida e vida em abundância para todos, o deus que

não só não quer nem faz vítimas, como trabalha sempre para as

tirar da cruz, o deus que está presente e se manifesta no olhar

e no corpo das vítimas da história, a partir das quais lança

aquela mais perturbante e desafiadora pergunta, também a mais

potencialmente criadora de fraternidade, dirigida a todos os que

o invocam como caim, mas que, como este, matam os irmãos: "onde

está o teu irmão? que fizeste do teu irmão?" ou esta outra,

actualizadora daquela: "por que me persegues?" (at 9, 4).

--74-

Page 91: Fátima nunca mais

do deus de fátima, livranos senhor!

duas crianças que morrem e uma terceira que sobrevive, mas é

retirada da sua terra e para sempre impedida de levar uma vida

em tudo semelhante à das outras pessoas (primeiro,

internaram-na, secretamente, no asilo de vilar, no porto, e,

depois, mandaram-na para espanha e fizeram dela freira de

clausura para o resto da vida, situação que, 76 anos após os

acontecimentos de 1917, ainda se mantém!), eis o principal

balanço das chamadas aparições de fátima. provavelmente, nunca

ninguém da igreja católica ousou olhar as aparições sob este

ângulo. o jornal fraternizar, porém, embora corra o risco de

perder alguns dos seus assinantes, não pode deixar de o fazer,

nesta edição de maio de 93.

não pensem que o fazemos para alinhar com os chamados "inimigos"

de fátima. o que nos move é a fidelidade ao evangelho e ao deus

de jesus que maria de nazaré, melhor do que ninguém, cantou,

como libertador e salvador da humanidade, particularmente, dos

pobres e excluídos.

a leitura que fizemos do livro mais importante sobre fátima,

"memórias da irmã lúcia", a isso nos obriga. É que o deus que aí

i é anunciado e revelado não tem nada a ver com o deus revelado

em jesus de nazaré. tem tudo a ver com um deus sanguinário, que

se compraz no sofrimento de inocentes, um deus criador de

infernos para castigar aqueles que deixam de ir à missa aos

domingos, ou dizem palavras feias, um deus ainda pior do que

algumas das suas criaturas.

Page 92: Fátima nunca mais

aos leitores e leitoras, pedimos que, em vez de se

escandalizarem, experimentem ler também o livro da irmã lúcia.

--75-

porque, se o fizerem, mas à luz do evangelho de jesus, acabarão,

provavelmente, a rezar também connosco "do deus de fátima,

livra-nos, senhor!".

ambiente de terror

o livro de lúcia faz-nos recuar no tempo e mergulhar no ambiente

religioso e eclesiástico em que também as crianças de fátima

tiveram de viver, por volta de 1917. foram os tempos da primeira

grande guerra. mas o terror que se respirava, nomeadamente, nos

meios populares e rurais, não vinha apenas daí. a catequese

familiar e paroquial, mais as pregações dominicais e outras,

então, muito frequentes, constituíam um género de terror não

menos intenso e, também, não menos nefasto e assassino. porque

incidia sobre a consciência das pessoas, especialmente, das

crianças, pequeninos seres indefesos e carregados de

sensibilidade, prontos a acreditar em tudo quanto lhes dissessem

os adultos, pais e mães, e ainda mais, bispos e párocos, cuja

palavra era, miticamente, escutada e seguida, como se fosse a

própria vontade de deus, presente no meio do povo. (o livro de

lúcia mostra, à sociedade, que ela própria, ainda hoje, tantos

Page 93: Fátima nunca mais

anos depois, se mantém nesta visão mítica da realidade, também

da realidade eclesial, embora uma tal visão seja completamente

estranha à libertadora mensagem do evangelho.)

jacinta e francisco, mai-la lúcia, respiram um ambiente assim. o

livro não deixa dúvidas a quem o souber ler nas entrelinhas,

criticamente, sem se deixar envolver no misticismo religioso,

quase doentio, em que ele nos aparece escrito.

percebe-se bem que o terror é uma constante nas vidas destas

três crianças. vivem apavoradas com o pecado, com o inferno e

com os pecadores que vão, aos magotes, para o inferno. tudo para

elas é pecado. até dar um beijo a outra criança, no jogo das

prendinhas.

dar um beijo, para a jacinta, por exemplo, só se for a nosso

senhor, na ima gem do crucificado. como se uma outra criança,

companheira de brincadeira, não fosse muito mais imagem dele,

mas apenas e só ocasião de pecado. (quem despertou uma visão tão

moralista, na pequenina e angelical jacinta? que satânica

--76-

catequese lhe distorceu tão gravemente o olhar? quem lhe tirou,

tão precocemente, a naturalidade?)

depois, tudo pode levar ao inferno. deus, aos olhos destas

crianças, está já tão cansado com os pecados das suas humanas

criaturas, que a sua ira está a ponto de atingir os limites. e

só não o fará, se elas aceitarem sofrer, sofrer, sofrer, fazer

Page 94: Fátima nunca mais

toda a espécie de sacrifícios por amor dele e pela conversão dos

pecadores e, ao mesmo tempo, rezarem muitos terços.

ora, como não podia deixar de ser, as crianças que recebem toda

esta informação - sensíveis e indefesas como só elas são sofrem,

choram, têm pena de nosso senhor. e começam a pensar em

assumir-se como vítimas, até à morte, para desagravarem a deus

e, de alguma maneira, o forçarem a perdoar os pecadores. ficam

completamente possuídas por uma mística de morte, uma mística

sacrificial, que diz bem com um deus que se alimenta de gente,

em vez duma mística de vida, a única que o deus de jesus pode

inspirar aos seus filhos e filhas, já que ele próprio é um deus

que trabalha continuamente para que todos tenhamos vida e vida

em abundância.

verdadeira tortura viver, num clima de religiosidade assim, tornou-se uma

verdadeira tortura. pelo menos, para estas três crianças

aterrorizadas, que sempre levam tudo tão a sério. tornou-se

também um terrível risco. o risco de vir a ser condenado ao

inferno. bastava fazer algum pecado. e o pecado, para elas, era,

por exemplo, dizer palavras feias ou cometer pequenas

traquinices. o bastante para poder ser condenado ao inferno,

descrito por elas próprias em imagens, as mais terríficas. nunca

mais, então, estas crianças puderam deixar de sentir vontade e

disposição de fazer sacrifícios pelos pecadores. o inferno era,

afinal, a grande ameaça para todos. e o que, com mais

probabilidade, poderia acontecer a qualquer um. e, para os

pecadores, mais do que ameaça, era já uma certeza.

num clima assim, de religiosidade verdadeiramente esvaziada de

evangelho, pior, contra o evangelho, não é de estranhar que o

Page 95: Fátima nunca mais

desejo maior destas três crianças fosse ir para o céu.

--77-

porque essa seria a única maneira de não chegarem a caír no

inferno, onde quem lá caísse ficaria, para sempre, a arder na

imensa fornalha de fogo que ele era, e na companhia de animais,

os mais asquerosos e horrendos.

pelo que conta lúcia, neste seu livro, os dois irmãos, jacinta e

francisco, viviam aterrorizados com o inferno. outra coisa nem

era de esperar. a mãe, nas frequentes catequeses familiares que

lhes ministrava, carregava bem nas cores do terror. e os

pregadores de missões paroquiais que seguiam, com fidelidade, o

livro "missão abreviada", não lhe ficavam atrás.

por isso é que, num ambiente assim, de verdadeiro terror

teológico, o que mais espanta e escandaliza a quem, hoje,

procura ser discípulo de jesus e deixar-se fazer pelos valores

do seu evangelho libertador, é que aquela senhora que as

crianças dizem ver e ouvir, aos dias 13 dos meses de maio a

outubro de 1917, apesar de se dizer vinda do céu, isto é, de

deus, não tenha aparecido para as libertar do medo e convidá-las

à alegria de viver. pelo contrário, começa por lhes anunciar, às

duas mais novinhas e também mais aterrorizadas, que brevemente

as vai levar para o céu, maneira eufemista de dizer que elas vão

morrer antes do tempo.

catequese terrorista

Page 96: Fátima nunca mais

em lugar da boa notícia libertadora de que deus quer que elas

vivam e vivam em abundância, anuncia-lhes que vão morrer

brevemente. no fundo, limita-se a reproduzir e a autenticar a

catequese terrorista e negadora do evangelho que as crianças

constantemente ouviam em casa e no templo paroquial.

mas o mais chocante estava ainda para acontecer. É a própria

aparição que, em julho, durante a conversa que mantém com elas,

mostra às três crianças o inferno. e a impressão que lhes causa

é tal, sobretudo, à jacinta e ao francisco, que bem se pode

dizer que os dois irmãozinhos, de tenra idade e de saúde

manifestamente debilitada, nunca mais se recompuseram desta

visão terrífica, acabando por morrer de susto. também da

fraqueza que, entretanto, se apoderou irreversivelmente dos seus

corpos, uma vez que tanto ela como ele, desde então, nunca mais

conseguiram

--78-

ser crianças como as outras, nunca mais conseguiram brincar

descontraídas, nunca mais conseguiram encarar a vida como

crianças saudáveis (o francisco, por exemplo, até deixou de ir à

escola; em vez disso, preferia esconder-se na igreja, a rezar

pelos pecadores!) e nunca mais se alimentaram convenientemente.

em todos os momentos, a partir daquele dia, a visão do inferno

persegue as duas crianças, aterroriza-as, obriga-as a rezar

pelos pecadores e força-as a fazer sacrifícios pela conversão

Page 97: Fátima nunca mais

dos pecadores. o livro das "memórias" de lúcia testemunha que os

dois irmãozinhos eram capazes de passar dias inteiros sem comer,

davam a merenda às ovelhas, não bebiam ponta de água, mesmo em

pleno mês de agosto, andavam todo o dia, e mesmo durante o sono

da noite, com uma corda permanentemente amarrada à cinta, até

fazerem sangue.

masoquismo religioso

com estas atitudes, carregadas de masoquismo religioso e

sacrificial, pretendiam, numa ingenuidade e inocência que

confrange, e de que, pessoalmente, não são responsáveis mas

vítimas, consolar nosso senhor e o papa (as preocupações pelo

papa surgem depois que em certa ocasião um sacerdote lhes terá

falado dele e informado de que ele estava a ser muito perseguido

pelos "inimigos" da igreja).

chegou-se, assim, à total inversão da boa notícia que é a

revelação de deus na história da humanidade e que culminou em

jesus de nazaré, a maior e mais libertadora boa notícia que os

empobrecidos do mundo e todos os que, oficialmente, são tidos

como pecadores, alguma vez puderam ouvir.

neste caso de fátima, em vez de deus ser aquele que vem, como

companheiro e pai com coração de mãe, consolar as crianças e

libertá-las do terror e do sofrimento em que uma catequese

sacrificial e sádica as condenou a viver, são as crianças que o

consolam a ele e se imolam para conseguir que ele, à vista do

sofrimento delas, vítimas inocentes, contenha a sua ira e desista de dar

cabo das humanas e pecadoras criaturas. ou seja,

reduzem-se, para que ele cresça, numa liturgia tipicamente

sacrificial, mas também verdadeiramente repugnante que, quando

acontece,

Page 98: Fátima nunca mais

--79-

é sempre um insulto ao deus de jesus e, simultaneamente, uma das

principais causas que explicam o desenvolvimento do ateísmo no

mundo.

urge evangelizar fátima

pode, pois, dizer-se que o livro "memórias da irmã lúcia",

onde ela escreve tudo o que recorda dos seus tempos de criança,

em fátima, e o faz por obediência a alguns homens da igreja que,

estranhamente, se arrogam de uma tal autoridade sobre ela,

até lhe darem ordens dessas irrecusáveis -, contém e veicula uma

teologia (reflexão sobre deus) nos antípodas da teologia cristã.

trata-se duma teologia sobre um deus que ainda continua aí

como o deus de muita gente, mas que tem tudo a ver com um

ídolo devorador de pobres, bem pior do que algumas das suas

criaturas; um deus à imagem e semelhança dos verdugos que só

sossega a sua ira castigadora e destruidora, diante do sangue,

muito sangue, de vítimas inocentes; um deus justiceiro, verdugo,

sanguinário; um deus contra o homem/mulher e sem entranhas de

misericórdia, tirano e déspota; um deus intrinsecamente

perverso, a quem é preciso apaziguar e cujo braço justiceiro

está aí pronto a caír sobre a humanidade, o que só não aconteceu

ainda, porque, felizmente, temos junto dele uma criatura, a mais

santa de todas e, ao que parece, mais misericordiosa do que ele,

a senhora do rosário, de seu nome, que tem conseguido sustê-lo.

Page 99: Fátima nunca mais

mas ela própria está a ponto de não poder aguentar mais a

fúria e o ódio dele contra a humanidade pecadora e, por isso,

decidiu saír do céu até à terra, mais concretamente, a portugal,

onde alguns anos antes, por coincidência, se instaurou uma

república maçónica e ateia, para pedir a três inocentes crianças

que a ajudem nesta ingente tarefa.

"quereis - disse-lhes, logo na primeira aparição que lhes fez

- oferecer-vos a deus, para suportar todos os sofrimentos que

ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com

que ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?"

as crianças, educadas numa catequese sacrificial e terrorista,

disseram que sim. e, como elas, ainda hoje muita gente continua

a dizer o mesmo a um deus assim. só quem não queira ver é que

--80-

pode ignorar que, em fátima, o deus que mais é procurado pelas

pessoas que sofrem doenças e aflições de toda a ordem, é um deus

assim. um deus que nos apavora, nos inspira medo, nos castiga,

nos dá e tira a vida, conforme o humor de momento. um deus que

exige sacrifícios humanos, que todo se compraz em ver os pobres

autoflagelarem-se, numa imolação que pode ir até ao limite das

forças e da vida. um deus à revelia do evangelho, com mais de

demónio do que de deus, que, desde os alvores da humanidade, tem

habitado o nosso inconsciente colectivo e onde, manifestamente,

ainda não chegou a boa nova libertadora de todo o medo, que é o

Page 100: Fátima nunca mais

evangelho de jesus.

a igreja católica que, desde a primeira hora, tem gerido fátima,

ainda não foi capaz de evangelizar fátima. a valer. pelo

contrário, tem parecido mais interessada em aproveitar-se

sacrilegamente do fenómeno. talvez porque ele, como diz a

publicidade do totoloto, é fácil, é barato, dá milhões. e

garante elevadas estatísticas, na hora de contabilizar os

católicos portugueses, o que dá muito mais poder reivindicativo

à respectiva hierarquia, frente ao poder instituído.

o jornal fraternizar entende que é chegada a hora de mudar.

desde raíz. É arriscado? sem dúvida. mas é também imperioso e

urgente. está em causa o nome de deus, do deus revelado em jesus

de nazaré. está em causa a fé cristã. e, sobretudo, está em

causa a humanidade, particularmente, a maioria empobrecida e

oprimida, também em nome de um certo deus que, em fátima,

continua a ditar, impunemente, a sua sacrificial lei.

os teólogos cristãos têm, pois, uma palavra a dizer. com lucidez

e coragem. com discernimento. na luta de deuses em que vive a

humanidade, a palavra dos teólogos cristãos é insubstituível.

pode ser, para alguns, martirial, como tem sido para outros

companheiros nossos, na américa latina. mas não podem os

teólogos deixar de a dizer. assim como as comunidades cristãs

onde eles se inserem. pactuar nem que seja com o silêncio, é um

pecado contra os pobres e comtra o espírito santo.

É que deus, o deus de jesus, em vez de criar infernos para os

pecadores (e quem o não é?), acolhe-os e come com eles. por pura

Page 101: Fátima nunca mais

--81-

graça. em vez de fazer vítimas, tira-as da cruz. e está

empenhado, como criador que é, em fazer desta terra, ainda com

muito de inferno, uma nova terra, onde ele viva connosco e entre

nós, para sempre, como em mel.

e maria, a mãe de jesus, longe de andar por aí a pedir

sacrifícios e a reza de muitos terÇos pela conversão dos

pecadores, é a maior poetisa celeste deus totalmente ocupado na

libertação e salvação da humanidade: e apostado em levar ao seu

termo a criação do mundo, iniciada há nuitos milhões de anos.

uma criação demorada, porque ele não a quer fazer sem nós, mas

connosco. e também porque respeita infiniitamente a nossa

liberdade. sem jamais perder a paciência, apesar dos inúmeros

disparates que cometemos contra nós próprios, contra os outros e

contra a natureza que nos serve de berço. e isto, porque nos ama

infinitamente. pois nem pode fazer outra coisa.

--82-

11

há anos que ele faz incómodas perguntas sobre "fátima e, em

lugar de respostas satisfatórias , recebe insultos"

em 1917, o livro "missão abreviada" era a bíblia de toda a gente

em ourém - reconheceu ao jornal fraternizar o padre dominicano

Page 102: Fátima nunca mais

joão oliveira faria "o livro "missão abreviada" era, em 1917, a

bíblia de toda a gente de ourém e fátima." quem o garante é o

pe. joão oliveira faria, um dominicano residente no porto, e

nascido em ourém, um ano antes das chamadas aparições de fátima.

na conversa que manteve com o jornal fraternizar, aquele

discípulo de s. domingos, que já publicou dois livros de

perguntas sobre fátima, as quais continuam ainda sem respostas

convincentes, mostra muitas reservas, relativamente ao que ele

chama, juntamente com outros estudiosos do fenómeno, fátima 2,

ou seja, o relato das aparições, feito por escrito, muitos anos

depois dos acontecimentos, pela única vidente sobrevivente, e

genericamente conhecido por "memórias da irmã lúcia".

"pode haver nestes escritos, muita imaginação da lúcia adulta,

a viver como religiosa num convento", adverte.

este testemunho do p. joão oliveira faria é precioso, porque, sópor si,

ajuda a compreender e a explicar muitos pormenoresligados às chamadas

aparições de fátima, os quais só ultimamentevieram a ser conhecidos,

graças à publicação daquelas"memórias". para ele, enquanto "fátima 1, ou

seja a fátima dastrês criancinhas, *é uma coisa maravilhosa+ e contém

*uma

mensagem lindíssima+, o mesmo já se não poderá dizer, de fátima2, onde

há muita coisa que não concorda com o cristianismo dejesus.

***

--83-

daí as muitas perguntas que ele, publicamente, formula à igreja

e às quais ninguém tem querido responder a sério. em lugar das

Page 103: Fátima nunca mais

respostas solicitadas, o que o pe. joão tem recebido são muitos

insultos e acusações de todo o tipo, reveladores de que, afinal,

pode ser-se muito fanático de fátima, mas pouco discípulo de

jesus e seguidor consequente do seu evangelho.

a uma conclusão, entretanto, o pe. oliveira faria já chegou e é

esta: para certas pessoas, "fátima é um tabu". como tal, não

pode nem deve ser estudado, nem discutido, apenas aceite sem

mais. como se as chamadas aparições constituíssem a última e

definitiva palavra reveladora de deus à humanidade, mais

importante ainda do que o próprio evangelho. quando, como se

sabe, o que a própria igreja católica sempre tem ensinado é bem

outra coisa. e o que ela tem ensinado e ensina, ainda hoje, é

que tanto fátima como todas as outras revelações particulares

que por aí se reclamam de tais podem ser liminarmente negadas,

sem que a fé cristã católica fique minimamente prejudicada.

isto é o que ensina, oficialmente, a igreja católica, ao nível

dos princípios. mas todos sabemos que, depois, na prática de

todos os dias e, particularmente, em fátima, quase ninguém se

atreve a dizê-lo. continuamos a preferir enterrar a cabeça na

areia, como a avestruz, e apostamos na ambiguidade, ou no

silêncio, como quem parece ter medo de tocar no tabu. o que diz

bem do infantilismo de muitas das nossas posições. por sinal,

muito pouco conformes à boa notícia libertadora e humanizadora

que é o evangelho de jesus, que nos chama a sermos pessoas com

discernimento, sempre posicionadas no "sim, sim", ou "não, não".

um desastre

Page 104: Fátima nunca mais

o pe. oliveira faria, hoje com 77 anos de idade, vividos como um

recoveiro do evangelho libertador, junto dos mais pobres e mais

sofredores da sociedade, começou por confessar ao jornal

fraternizar que, ainda hoje, "o nosso povo é muito religioso,

mas, sob o aspecto evangélico, é um desastre".

e deu um exemplo muito pertinente. "ando pelo país todo, em

contacto com a gente mais marginalizada e oiço expressões da

boca de muitos que me arrepiam. encontro cegos, estropiados,

acamados

--84-

incuráveis e da boca de quase todos saem infalivelmente

expressões como estas, "deus assim quis", ou "deus assim manda,

ele é que mandou esta doença, eu era tão feliz, quando tinha

saúde, quando tinha vista, quando podia andar e, agora, sou um

desgraçado". falam-me de deus como se ele tivesse um armazém de

doenças, lá em cima, para mandar cá para baixo. quando isto

oiço, pergunto de imediato: olhe lá, mas deus não é pai? eles

respondem: Ééé! e eu insisto: mas você também é pai (mãe)? eles

respondem: souuu! e eu volto a perguntar: e você gosta de ver os

seus filhos sofrer? aí eles respondem: nãooo! e eu concluo com

outra pergunta: mas então deus é pior pai do que você? e eles

ficam calados."

"julgo - sublinha, depois o padre - que o deus da maior parte do

nosso povo ainda é do antigo testamento. mas o nosso povo não

tem culpa disso. o catecismo que recebeu, feito à base do livro

"missão abreviada", era, ao tempo das aparições de fátima,

Page 105: Fátima nunca mais

praticamente a única bíblia que andava nas mãos do povo, lá na

minha terra, em ourém e em fátima".

aterrorizar o povo

o p. oliveira faria recorda, então, os anos da sua infância e o

que era a pregação das missões, nas paróquias, também elas

concebidas para aterrorizar o povo e anunciar-lhe um deus

castigador, cheio de furor. já de machado apontado à raíz da

árvore, muito ao gosto e ao estilo de joão baptista, mas

infnitamente distante do deus de jesus, cujo evangelho anunciado

aos pobres e aos oficialmente apontados como pecadores, tanto

escandalizou os religiosos do templo de jerusalém, que não

suportaram o seu enviado e filho Único e depressa o condenaram à

morte e o mataram. certamente, para poderem, mais à vontade,

prosseguir com a religião comercializada e sacrificial, de que

viviam e com que até enriqueciam.

À sua memória de lúcido ancião, acode, no correr da conversa, o

nome de um desses pregadores do terror, um tal pe. campos,

jesuíta, que, como os mais, se inspirava no livro "missão

abreviada". e o pe. oliveira faria conta, a propósito, a

impressão terrível que lhe causou uma missão pregada, andava ele

na escola primária, na "sé de ourém", para onde todo o povo

confluía como

--85-

um rio para u mar, totalmente dominado pelo medo, subjugado e

Page 106: Fátima nunca mais

resignado. refere, concretamente, que quando terminava a

pregação, a maior parte das pessoas via-se obrigada a passar o

resto da noite na igreja. ali ficavam deitadas e apertadas no

chão, como animais, sempre a coçar-se das pulgas que as ferravam

sem dó nem piedade. um rebanho de ovelhas entrava, de manhã, no

templo vazio, para que as pulgas lá deixadas pelo povo saltassem

para elas.

era assim a vida do povo, então. um inferno de sofrimento que o

autor da "missão abreviada" e os respectivos pregadores, pelos

jeitos, ainda achavam demasiado leve, pois o ameaçavam, em nome

de deus, com outro bem pior, para depois da morte.

no seu livro "perguntas sobre fátima" o pe. oliveira faria não

pode deixar de mostrar a sua estranheza pela quase coincidência

entre a descrição que a "missão abreviada" faz do inferno e a

"visão" que dele tiveram os três pastorinhos, na aparição de 13

de julho de 1917.

descreve lúcia: e vimos como que um mar de fogo: mergulhado

nese fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas

transparentes e negras ou bronzeadas, em forma humana, que

flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas

saíam, juntamente com nuvens de fumo caíndo para todos os lados,

semelhante ao caír das faúlhas nos grandes incêndios, sem peso

nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que

horrorizava e fazia estremecer de pavor. (devia ter sido ao

deparar-me com esta vista, que dei esse "ai!" que dizem ter-me

ouvido.) os demónios distinguiam-se por formas horríveis e

asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas

transparentes como negros carvões em brasa. assustadas e como

Page 107: Fátima nunca mais

que a pedir socorro, levantámos a vista para nossa senhora que

nos disse com bondade e tristeza: vistes o inferno, para onde

vão as almas dos pobres pecadores".

por sua vez, o livro "missão abreviada" descreve assim o

inferno: "i~ uma lus ar no centro da terra; numa caverna

profundíssima cheia de escuridão, de tristeza e horror, cheia de

labaredas de fogo e nuvens de espesso fumo; lá estão os

pecadores atormentados com os demcínios, bramindo e uivando como

cães danados. são atormentados por um fogo o mais devorante".

--86-

entretanto, o livro do pe. joão oliveira faria acrescenta, de

imediato que "a mãe de lúcia costumava dizer aos filhos (na

catequese familiar, antes das aparições): "o inferno é uma cova

de bichos e uma fogueira muito grande e quem faz pecados e não

se confessa vai para lá e fica sempre a arder, sem nunca de lá

saír ".

depois disto, ninguém estranhará, certamente, que o pe. oliveira

faria diga que "as crianças de fátima foram vítimas duma

catequese um bocado forçada. a "missão abreviada" era o livro

que se lia mais, era a bíblia daquela gente, dem ter influído

bastante nela. temos por isso de andar muito alerta". acrescenta

ainda que "a igreja devia pensar muito nisto e há que fazer um

estudo teológico muito sério da mensagem de fátima".

teologia cristã

Page 108: Fátima nunca mais

o jornal fraternizar não póde deixar de concordar com ele. e

disse-lho com toda a convicção. apenas acrescentou que esse

estudo seja de teologia cristã e não de uma outra qualquer

teologia, porque teologias há muitas, conforme os deuses. que o

diga o próprio jesus de nazaré, que foi crucificado em nome de

um certo deus e condenado com o aval de uma certa teologia e

respectivos teólogos.

o nosso jornal foi mesmo um pouco mais além, pois reclama que

esse estudo teológico se estenda também ao núcleo central da

mensagen de "fátima", tido por muitos, entre os quais o próprio

pe. joão oliveira, como uma reformulação do evangelho de jesus,

apresentado por maria ao povo da época dos pastorinhos.

É que, para o jornal fraternizar, até aí a teologia cristã

deverá levantar suspeitas. porque, para as coisas estarem,

evangelicamente, certas, não basta dizer, por exemplo, que a

mensagem de fátima se resume a "oração e penitência". e

acrescentar, com alguma ingenuidade, que também disso fala o i

evangelho. porque a verdade é que, quando inicia o seu

ministério, jesus não prega a penitência ao povo, como fez joão

baptista, por exemplo. o mais surpreendente em jesus, que terá

começado por ser discípulo, ou, pelo menos, simpatizante e

--87-

Page 109: Fátima nunca mais

admirador de joão baptista, é que ele não começa a pregar o

arrependimento e a necessidade da penitência e da oração para as

pessoas se salvarem. ele prega a boa notícia de que a salvação

está perto; que o perdão de deus está aí; que deus é o amor e

quer que todos os homens se salvem; que para isso enviou o

próprio filho ao mundo, não para o condenar, sim, para o salvar.

a penitência de que, depois, também fala tem a ver,

essencialmente, com a mudança do modo de estar na vida, para

poder acolher esta boa notícia e alegrar-se com ela. não é, de

modo algum, uma penitência para conquistar a salvação, ou para a

merecer, pois esta é dada por deus a todos, totalmente de graça!

o pe. joão oliveira ouviu e ficou a pensar. para lá das muitas

perguntas que formulou sobre "fátima ii", terá percebido que as

coisas, afinal, podem ser ainda muito mais profundas. e que

precisamos de muita coragem para chegarmos a tocar na raíz das

coisas, isto é, para nos deixarmos evangelizar integralmente.

coisa que, se calhar, nunca foi realizada a valer em portugal,

nem mesmo na europa.

uma outra questão que o jornal fraternizar também frisou,

durante a conversa com o pe. joão oliveira, e que precisa de ser

bem iluminada pela teologia cristã, tem a ver com o que

aconteceu aos irmãos pastorinhos, jacinta e francisco. como se

sabe, ambos morreram sem terem tido oportunidade de crescer em

idade, estatura, sabedoria e graça, como se diz de jesus que

crescia, quando tinha a idade em que eles morreram, vítimas da

pneumónica, e no meio de terríveis dores.

Page 110: Fátima nunca mais

a questão pode ser assim formulada: que deus é esse que, para

não condenar mais pecadores ao lnferno, exige em troca a

imolação até à morte de crianças inocentes? É que o deus de

jesus não é, de certeza!

--88-

evangelizar a senhora de fátima

evangelizar a senhora de fátima. pode ser chocante, mas é isso

que nunca foi feito, desde 1917, e que urge fazer sem mais

adiamentos. abandoná-la, pura e simplesmente, está visto que não

resulta. com bispos ou sem eles, com padres ou sem eles, as

pessoas continuarão a caminhar para fátima e a recorrer à

senhora de fátima. continuarão a fazer promessas. continuarão a

despejar lá muito do seu dinheiro e do seu oiro. continuarão a

autoflagelar-se sem dó nem piedade.

porque sim. porque têm necessidade disso. porque enquanto

continuarem a não ser acolhidas e escutadas e atendidas por

ninguém na terra, nomeadamente, pelos políticos e respectivos

governos, pelas igrejas e respectivos pastores, jamais deixarão

de procurar que alguém as acolha e escute e atenda nos céus.

e se não conseguem saír da terra e chegar aos céus, fazem-se

transportar imaginativamente até lá. e nem é assim difícil.

basta determinar, por convenção, que certas zonas da terra não

são mais terra, mas pedaços de céu na terra, zona privada da

divindade, terra sagrada, santuários ou casas de deus, basílicas

e quejandos, onde deus e os seus exércitos celestes estão à

disposição dos humanos em aflição. depois é só começar a

caminhar, mais ou menos regularmente para esses sítios. ou, pelo

Page 111: Fátima nunca mais

menos, sempre que a necessidade aperta. e o desespero do

quotidiano começa a ser insuportável.

o curioso é que, ao proceder-se assim, fica, depois, a ilusão de

que as coisas até resultam. mas é só a ilusão. porque os

problemas de fundo mantêm-se, quando não até aumentam, de

ano para ano, de geração para geração. tanto que só são

--89-

suportáveis com doses e mais doses de ópio. também este ópio

religioso que, em portugal, dá pelo nome de senhora de fátima.

está visto que, no nosso país, nenhum pedaço de terra é,

actualmente, mais coutada da divindade e dos seus exércitos

celestes do que fátima. e ninguém é mais mensageiro dessa

divindade sem rosto e distante, do que a senhora de fátima. por

isso, sempre haverá quem se assuma como nômada, nem que seja por

uns dias, e caminhe para lá, a pé. ou de transporte colectivo,

alugado para esse fim. ou de carro familiar com orações

murmuradas. com aflições sem conta nem medida, com desesperos

insuportáveis.

todos se dizem movidos por uma fé religiosa que vem dos

antepassados. dos antepassados dos antepassados. o que é uma fé

religiosa que nunca foi evangelizada. que tem ainda tudo a ver

com um inconsciente pessoal e colectivo mais ou menos animista,

onde, até hoje, nunca chegou a penetrar a boa nova libertadora

de jesus de nazaré, o cristo, que foi crucificado, entre outras razões, por

ter revelado com a sua palavra e a sua vida

Page 112: Fátima nunca mais

militante, que mesmo o templo de jerusalém não era casa de deus,

mas covil de ladrões, e que deus não mora em templos feitos pela

mão do homem, mas no mais íntimo de cada um/cada uma de nós,

sempre à espera que nos decidamos a escutá-lo, a acolhê-lo e a

atendê-lo como filhas e filhos seus, mais do que pedir-lhe que

nos escute, nos aculha e nos atenda.

a igreja que está em portugal não pode ignorar estas coisas. e

não tem ignorado. mas, infelizmente, tem-no feito da pior

maneira. em lugar de evangelizar fátima e a senhora de fátima,

tem-se aproveitado do fenómeno. não rema contra a corrente do

inconsciente colectivo animista das populações que recorrem à

senhora de fátima, numa confrangedora manifestação de alienação

religiosa que desumaniza quem a protagoniza. ao contrário,

procura manter-se na corrente e aproveitar-se dela. até

financeiramente. sobretudo, financeiramente. o que é um pecado

que brada aos céus.

são milhares e milhares de contos, porventura, milhões e milhões

de contos que todos os anos a senhora de fátima entrega

--90-

à igreja católica, de bandeja. e totalnente isentos de impostos.

inclusivamente, com dispensa de alguma vez ela ter de declarar

publicamente qualquer quantitativo. e também com a dispensa de

alguma vez ela ter de informar o que é que faz, depois, a tanto

dinheiro.

Page 113: Fátima nunca mais

evangelizar a senhora de fátima. eis a prioridade das

prioridades pastorais da igreja que está em portugal. não é

fácil. É mesno martirial. talvez por isso nunca tenha sido

verdadeiramente tentado. pois exige da igreja; de quantos e

quantas a constituímos - a começar, pelos bispos, presbíteros,

religiosas e religiosos -, radical conversão ao reinado de deus,

misteriosamente, actuante no mundo, por força e instigação do

sempre subversivo e desordeiro espírito santo, incansável

criador de fraternidade e de igualdade e, por isso, o maior

desestabilizador das hierarquias e dos privilégios que teimamos

em construir, sem nos darmos conta de que umas e outros são

pecado, e pecado que mata.

mas não é só a conversão ao reinado de deus que é evangelizar a

senhora de fátima exige de nnós. também exige fé. não

evidentemente aquela fé religiosa, mais ou menos animista, que

nasce com cada homem/mulher que vem a este mundo, mas fé no

evangelho ou boa notícia de jesus de nazaré, o ressuscitado que

antes foi crucificado, exactamente por não se ter aproveitado da

religião - como faziam os príncipes dos sacerdotes e outros

dirigentes de então -, mas por ter tido a lucidez e a audácia

bastantes para revelar que a religião é um demónio que

desumaniza quem se deixa ir por ela, um dmónio que transforma em

demoníaco quem se deixa ir por ela, a ponto de uma tal pessoa

nem hesitar em matar - como numa santa e orgiástica cruzada, os

seus irmãos e irmãs - em nome do deus a quem presta culto.

evangelizar a senhora de fátima. com a igreja, na realização

desta prioridade pastoral, estará também maria de nazaré, a mãe

de jesus e sua primeira discípula já ressuscitada. que se tornou

Page 114: Fátima nunca mais

na primeira de todas as criaturas, não por ter dado à luz,

fisicamente, jesus, mas por ter escutado a palavra de deus e por

ter vivido de acordo com ela, isto é, por ter passado da fé

religiosa

--91-

mais ou menos animista, para a fé no evangelho ou boa notícia de

jesus, o surpreendente filho do espírito que lhe saíu das

entranhas.

maria de nazaré, que de mãe carnal de jesus, passou a sua

primeira e exemplar discípula, não tem nada a ver com a senhora

de fátima. É mesmo antípoda dela. e é a primeira interessada na

sua evangelização. para que, de senhora de fátima passe a maria

de nazaré, isto é, de fonte de alienação popular e de ópio

popular passe a companheira do povo aflito e empobrecido. mas

companheira no jeito divino de jesus, seu filho: a companheira

que, em vez de anestesiar consciências e corpos em aflição,

desperta e liberta umas e outros para projectos concretos,

pessoais e colectivos, de construção de fraternidade e de

igualdade, de liberdade e de solidariedade, bem alicerçados na

justiça.

evangelizar a senhora de fátima. a tarefa é ciclópica.

martirial. mas inadiável. se, por alturas de 1917, a igreja em

portugal tivesse vivido verdadeiramente ocupada a evangelizar à

maneira de jesus de nazaré, as populações; se a catequese que

Page 115: Fátima nunca mais

ministrava às crianças e as pregações que fazia nas paróquias

tivessem sido uma catequese e umas pregações evangelizadas, de

certeza que não teria sequer aparecido a senhora de fátima aos

pastorinhos.

a senhora que eles viram não era maria de nazaré, a mulher que,

de forma exemplar, escutou a palavra de deus e a pôs em prática,

a ponto de até engravidar dela. era uma espécie de deusa mais ou

menos mítica, nos antípodas do evangelho de jesus, que os

perseguia com ameaças e com anúmcio de castigos. e que falava de

um deus sem entranhas de misericórdia que, evidentemente, não

era, não podia ser, não pode ser, o deus de jesus, pai/mãe nosso

muito querido, e que muito nos quer.

--92-

fia-te na virgem e não corras!

"fia-te na virgem e não corras, verás o tombo que levas." o

ditado é popular e encerra uma sabedoria teológica que faz

inveja à própria teologia (mariana) da libertação. deveria, por

isso, ser esculpido à entrada de todas as igrejas e capelas

dedicadas a nossa senhora, a começar, evidentemente, pela

chamada capelinha das aparições, em fátima, e pelo soberbo

santuário que domina todo aquele recinto, pretensamente sagrado,

mas que, se calhar, é hoje dos mais sacrílegos recintos do

mundo, onde os nomes de deus e da virgem são sistematicamente

maltratados e vilipendiados por uma religião e um culto, cujos

responsáveis maiores não só os invocam em vão, como até os

Page 116: Fátima nunca mais

invocam de forma teologicamente desviada e enganadora.

É sem dúvida muito doloroso ter de escrever-dizer isto. e muito

mais doloroso ainda ter de o reconhecer, sobretudo, de forma

pública. mas, se pensarmos bem, à luz do evangelho e da prática

exemplar e alternativa de maria, a mãe de jesus, veremos que é,

sobretudo, em fátima que, hoje, os nomes de deus e da virgem são

mais maltratados e vilipendiados, porque são invocados por

pessoas que o fazem, sem, ao mesmo tempo, se empenharem a sério

na consciencialização-libertação das populações empobrecidas, as

quais, às centenas de milhares, todos os anos lá se dirigem com

expectativa de milagres que, afinal, pertence a todos nós, seres

humanos, realizar; milagres que essas mesmas populações

empobrecidas, na sua ingenuidade e boa-fé, continuam a pensar

que pertence a deus e à virgem realizar.

--93-

com as coisas neste pé, é mais do que evidente que nem aquele

ditado popular esculpido à entrada das igrejas e capelas

dedicadas a nossa senhora (nunca mais o dinheiro das populações,

finalmente, consciencializadas, entrava nos mealheiros-caixas de

esmolas e nos cofres que todas elas têm dentro, em lugares de

destaque!), nem a libertadora teologia mariana que ele contém e

divulga é pregada e difundida por entre as populações católicas

que regularmente as frequentam, mormente, as de mais nomeada e

também de mais rendimento comercial. pelo contrário, esta

Page 117: Fátima nunca mais

libertadora teologia mariana é aí sistematicamente silenciada e,

porventura, olhada até como blasfémia.

em seu lugar, os responsáveis por todos os santuários marianos

preferem cultivar e promover uma outra teologia mariana, que,

por sinal, dá milhões aos seus mais directos patrocinadores,

embora, ao mesmo tempo, represente a desgraça maior que, alguma

vez, pode ocorrer às pessoas e aos povos que continuem a

deixar-se fazer por ela.

podemos chamar a esta outra teologia a teologia do "valha-me

nossa senhora" ou, em versão mais portuguesa, "valha-me nossa

senhora de fátima". É uma teologia que, qual ópio do povo, leva

as populações mais empobrecidas a suportarem, como fatalidade

intransponível, o mundo em que vivem e que, pelo menos, para

elas, tem tudo o que é preciso para ser um tremendo "vale de

lágrimas" e um autêntico "desterro". mas não só. para cúmulo,

leva-as também a permanecer nesse mesmo mundo, geração após

geração, escandalosamente resignadas, apenas "gemendo e

chorando", em vez de tudo fazerem para lhe porem termo e o

transformarem num mundo com o máximo de condições de dignidade

para todos.

estamos, assim, perante duas teologias marianas distintas, mas

só uma delas é verdadeira. e é preciso discernimento para

acertar na verdadeira, o que nem é tão difícil assim, se, é

claro, atentarmos nos frutos que uma e outra produzem; porque,

se em vez de atentarmos nos frutos de uma e de outra, nos

deixarmos levar pela roupagem com que cada uma delas se nos

apresenta, corremos o risco de tomar por verdadeira a falsa, só

porque ela

Page 118: Fátima nunca mais

--94-

veste roupa piedosa, quando, afinal, a verdadeira é a que

ostenta uma certa cor ateísta, ou, pelo menos, arreligiosa.

optar por uma ou por outra não é indiferente para as pessoas e

os povos. porque, também aqui, pode-se dizer, com total

propriedade, "diz-me qual é a tua teologia (qual é o teu deus) e

dir-te-ei quem és e qual é a tua qualidade de vida".

ora, só quem quiser ser cego é que não vê que, tanto em portugal

como no mundo católico em geral, a teologia mariana que até hoje

as populações mais empobrecidas têm seguido e aplicado nas suas

vidas não é, infelizmente, a verdadeira, sintetizada no "fia-te

na virgem e não corras, verás o tombo que levas", mas a outra, a

teologia mariana falsa, sintetizada no "valha-me nossa senhora

(de fátima)".

as consequências estão à vista, tanto no nosso país, como no

resto do mundo católico. basta ver que é nestes países que as

populações católicas mais praticantes desta teologia desviada e

heterodoxa são também, duma maneira geral, as mais culturalmente

subdesenvolvidas, as mais socialmente empobrecidas, as mais

politicamente desorganizadas e as que, geralmente, votam mais à

direita contra as grandes reformas de fundo.

precisamente, o contrário do que gosta de cantar a virgem de

nazaré, e mãe de jesus, para quem o deus que a fez a ela é um

Page 119: Fátima nunca mais

Deus politicamente interveniente e subversivo, pois sempre"derruba os

poderosos dos seus tronos e levanta os humilhados,

enche de coisas boas os que têm fome e manda embora os ricosde mãos

vazias" (lc 1, 52-53). i (i É impossível negar que aprincipal

responsabilidade deste desastre, com foros deautêntico genocídio

espiritual, vai inteira para a igrejacatólica. concretamente, para todos nós,

os cristãos e cristãsque a constituímos. mas, de modo muito especial, para

asteólogas e os teólogos cristãos e todos os pastores - bispos

epresbíteros - que têm estado à frente de cada uma das múltiplasigrejas

locais, em que ela historicamente acontece e se realiza.

entretanto, porque também no nosso país sempre fomoscatequizados

como povo para seguirmos e praticarmos a teologiamariana do "valha-me

nossa senhora (de fátima)", em vez da

--95-

libertadora teologia do "fia-te na virgem e não corras, verás o

tombo que levas", acabamos naturalmente por ser um povo que

ainda hoje, nas dificuldades e nas aflições que nos batem à

porta, começamos logo a pensar a que santo ou santa nos havemos

de apegar e que promessa poderemos fazer, para que ele ou ela

nos livre delas.

depois, quando as santas e os santos dos altares não nos

protegem (na nossa cegueira, nem sequer nos damos conta de que

são santos e santas de madeira ou de caco, que não comem nem

bebem, não falam nem ouvem e nem sequer se sabem defender quando

algum ladrão lhes deita a mão para com eles fazer bom dinheiro

no mercado de santos), viramo-nos, então, para os "santos" e as

"santas" deste mundo, isto é, aqueles e aquelas que temos por

mais fortes e mais poderosos do que nós, junto dos quais vamos,

de chapéu na mão e de mão estendida pedir favores, a troco de

Page 120: Fátima nunca mais

presentes, ou pelo menos a troco de reverência e de

subserviência. uma operação, vezes sem conta repetida, que, por

ser intrinsecamente idolátrica, nos devora a alma e jamais nos

deixarÁ chegar a ser pessoas de corpo inteiro, libertas,

autónomas, independentes, criadoras, responsáveis e donas do

próprio destino.

tornamo-nos, por isso, num povo que ainda hoje, apesar de contar

com mais de oito séculos de história, continua a não ser capaz

de contar consigo próprio, com o seu próprio esforço, com a sua

imaginação, com a sua criatividade, com o seu engenho e arte,

com as suas capacidades, para fazer frente às dificuldades e às

aflições (o desemprego, por exemplo) que, com frequência, para

não dizer ininterruptamente, lhe batem à porta.

pelo contrário, sempre contamos com os de fora, seja nossa

senhora de fátima, nossa senhora da saúde, nossa senhora das

dores, nossa senhora do leite, ou s. bentinho da porta aberta,

seja o senhor fulano de tal, a senhora fulana de tal, o deputado

a, o deputado b, o empresário amigo do padre, o sr. doutor, a

caixa de previdência, a cee-união europeia, no estilo, "dá-me um

subsídio, que eu dou-te a minha liberdade".

pois bem, só a libertadora teologia mariana do "fia-te na virgem

e não corras, verás o tombo que levas" fará de nós um

--96-

povo outro, liberto para a liberdade, audaz, criativo,

Page 121: Fátima nunca mais

imaginativo, alegre, solidário, sem deuses nem chefes. porque é

uma teologia que, em vez de nos pôr na dependência de deus,

algures fora de nós, ou de outros senhores e senhoras que lhe

fazem as vezes, abre-nos à misteriosa presença do deus que fez

de maria de nazaré uma mulher para os demais, serva do senhor e

dos pobres, e não senhora de ninguém, e que está também no mais

íntimo de cada um e cada uma de nós, a potenciar-nos para

sermos, como ela foi, homens e mulheres para os demais, irmãos e

irmãs, alegremente disponíveis para dar até a própria vida pela

vida do mundo.

--97-

14.

eu, maria, mãe de jesus, não tenho nada a ver com

a senhora de fátima

o que é que maria de nazaré, a mãe de jesus, pensará de

fátima? mais concretamente, o que é que ela pensará da senhora

de fátima? e do culto que em fátima lhe é prestado? será que

também ela acha que fátima é o altar do mundo? nesse caso, de

que deus? e como é que ela vê as peregrinações que todos os dias

13, de maio a outubro, ali têm lugar, com centenas de milhares

de pessoas juntas numa esplanada, de pé ou de joelhos, ao sol ou

à chuva? e que terá ela a dizer das promessas que os pobres, em

momento de grande aflição, lhe fazem e que, depois, ainda por

cima, cumprem fielmente, com medo de que ela os castigue? que

Page 122: Fátima nunca mais

dirá, igualmente, ao ver tantas e tantas pessoas de joelhos, até

sangrar, ou a rastejar que nem bichos, entre a cruz alta e a

chamada capelinha das aparições? e de tantas e tantas outras

pessoas que, durante 10-15 dias, vão, a pé, pelos caminhos e

estradas de portugal, até fátima? será que se sente honrada com

tudo isto? e será que vê em todos estes comportamentos

manifestações de fé cristã ou, pelo contrário, vê em tudo isso

manifestações de medo, de subdesenvolvimento, de crueldade, numa

palavra, de paganismo, que resiste à influência libertadora do

evangelho de jesus?

jornal fraternizar sentou-se, um dia destes, a reflectir estas e

outras questões semelhantes, com vistas ao destaque para este

mês de maio. tinha consciência do melindre que elas representam,

mas nem por isso as evitou. invocou, também, o espírito santo,

aquele que fez de maria de nazaré, a mãe de jesus e a mãe de

toda a humanidade, mas especialmente da mais

empobrecida. ficou depois longo tempo à escuta em silêncio,

como quem espera uma revelação.

até que escutou, com toda a nitidez, esta boa notícia que

interessa a todo o povo: eu, maria de nazaré, mãe de jesus, não

tenho nada a ver com a senhora de fátima, nem com nada do que em

fátima se realiza, a coberto do meu nome. e o deus que lá é

invocado também não tem nada a ver com o deus de jesus, meu

filho.

por isso - prosseguiu - avisada andará a igreja, em portugal,

se, em vez de continuar a promover fátima, a abandonar

definitivamente. e avisados andarão os institutos religiosos se

se desfizerem, quanto antes, das casas que construíram em fátima

Page 123: Fátima nunca mais

e forem, com toda a simplicidade, morar entre as populações

empobrecidas do país e com elas, tanto as populações das aldeias

do interior como as populações dos bairros degradados, que

crescem nas periferias das grandes cidades.

hiperinflação de maria

há, hoje, na vida da igreja católica, uma hiperinflação de

maria, o que não é saudável. e dá origem a aberrações como as de

fátima. porque a pedra angular da humanidade nova que está em

construção na história, e da qual a igreja deverá ser o

principal sacramento, é jesus cristo, o crucificado que

ressuscitou, não é maria.

maria também é importante na chamada economia da salvação. É até

decisiva. não tanto por ser a mãe carnal de jesus, mas sim por

ser a sua primeira discípula, tornada, por isso, discípula

exemplar, modelo de todas as discípulas e de todos os

discípulos. ou, como reconhece a mais antiga das quatro

narrativas evangélicas, marcos (3, 31-35), por ter sido aquela

criatura humana que, mais e melhor do que nenhuma outra, foi

capaz de ouvir a palavra de deus e realizá-la na sua vida, sem

desvios, até ao fim.

em maria de nazaré, a palavra de deus conseguiu fazer-se carne e

habitar entre nós e connosco, para sempre. ou seja, o que deus

mais deseja realizar com todo o ser humano, mulher e homem, já

aconteceu em maria de nazaré. conhecê-la é, por isso, conhecer o

que todas e todos havemos de ser também.

--100-

Page 124: Fátima nunca mais

Ela tornou-se, então, a primeira criatura duma humanidade nova,

aquela em quem o espírito criador de deus habitou como num

templo e com quem pôde trabalhar sem interregnos. por isso o

filho que lhe nasceu é filho de deus, ainda que possa e deva ter

sido concebido e gerado no decurso de um processo natural, em

tudo idêntico ao de todas as outras crianças.

virgem e mãe

já todos deveríamos saber que a virgindade de maria, de que

falam os evangelhos de mateus e de lucas, e de que tanto se tem

falado ao longo destes vinte séculos de cristianismo, não há-de

ser entendida em chave sexual-genital, mas em chave teológica.

a grandeza de maria, como aliás a de qualquer outra mulher ou de

qualquer outro homem, não consiste em não ter ou em ter

actividade sexual-genital, mas sim em sintonizar ou não

sintonizar com o deus criador, que está continuamente ocupado na

criação de mulheres e de homens à sua imagem e semelhança, até

poder tê-los, finalmente, como interlocutores à sua altura.

dizer que maria é virgem, no sentido teológico, é reconhecer

que, com ela, o deus criador conseguiu o que pretende vir a

conseguir com todas as outras mulheres e com todos os outros

homens. conseguiu encontrar nela uma interlocutora à altura.

isto é, maria de nazaré, por pura graça, à qual foi

espantosamente fiel e da qual se não afastou nem um momento

sequer, sempre protagonizou com o deus criador um diálogo de

amor e de intimidade sem desvios, sem interrupções.

por outras palavras, nunca os deuses da religião, inventados por

medos ancestrais, de que a humanidade ainda se não libertou de

raíz, nem os deuses do dinheiro e do poder, aos quais a

Page 125: Fátima nunca mais

humanidade tantas vezes recorre, na sua impotência e diante dos

quais se ajoelha e logo deles fica escrava, alguma vez

conseguiram atraír a atenção de maria de nazaré. a todos eles,

ela resistiu, com eles jamais colaborou, nunca fez seus os

projectos deles, nem os projectos de quantos se deixam seduzir

por eles, os exploradores e poderosos.

neste sentido teologicamente profundo é que maria de nazaré foi

e é virgem. o que não a impediu, evidentemente, de

--101-

ser mulher casada e mãe. e, como ela é virgem, toda a humanidade

está também chamada a ser. a única maneira, aliás, de chegarmos

a ser humanidade liberta para a liberdade e chegarmos a ser

humanidade humanizada, se assim se pode dizer, bem nos antípodas

da humanidade selvagem que, hoje, duma maneira geral, ainda

continuamos a ser.

sobriedade evangélica

diante da hiperinflação de maria, na actual igreja de jesus,

nomeadamente, na igreja católica romana, não pode deixar de

espantar a sobriedade das narrativas evangélicas, escritas pelas

primitivas comunidades cristãs.

apenas as narrativas de mateus e de lucas falam expressamente do

nascimento de jesus e fazem "reportagens" sobre as

circunstâncias em que ele nasceu de maria.

mas ao contrário do que, ainda hoje, muita gente continua a

Page 126: Fátima nunca mais

pensar, aquelas não são reportagens jornalísticas, mas

reportagens teológicas. o que, aliás, ajuda a compreender por

que são tão diferentes entre si, como diferentes eram os

objectivos teológicos de cada um dos evangelistas.

por sua vez, o evangelho de marcos, que está mais próximo do

acontecimento histórico protagonizado por jesus de nazaré, não

diz nada sobre o nascimento dele, nem sobre a sua mãe, nessa

altura. para este evangelista, tudo decorreu, pelo menos

aparentemente, como costumam decorrer a concepção e o nascimento

de qualquer criança. o extraordinário não era de ordem física;

era de outra dimensão, invisível aos olhos.

e, segundo esta narrativa, foi o próprio jesus de nazaré, o

carpinteiro, filho de maria (mc 6, 3), quem revelou onde estava

o extraordinário, por parte daquela que o havia dado à luz. É

que, em toda a sua vida de mulher, maria foi capaz de

ouvir-seguir, exclusivamente, o deus criador e nunca se deixou

seduzir pelos deuses da religião, do dinheiro e do poder; isto

é, toda ela é a concretização do projecto de deus criador; toda

ela é, por antonomásia, a mulher acabada, a mulher perfeita, a

criação sem defeito, sem desvio, toda ela é o ser humano tal

como esse mesmo deus criador o pensou e o quer. por outras

palavras, diante de

--102-

maria, o deus criador pôde exultar, dançar de alegria, fazer

Page 127: Fátima nunca mais

aliança, verdadeiras núpcias.

nesta mesma linha vai o evangelho de joão, também um dos mais

antigos, juntamente com o de marcos.

maria é aí apresentada, primeiro, como a mulher fiel da antiga

aliança, que - desde o princípio e muito antes da hora (jo 2,

1-11), definitivamente reveladora, que veio a ser, para toda a

humanidade, a morte-ressurreição do seu filho jesus - soube

abrir-se à nova aliança, protagonizada por ele. este facto fez

de maria a primeira e a mais perfeita discípula de jesus, a

ponto de ele a apontar e reconhecer no momento da sua morte na

cruz, como a primeira mulher que, ao mesmo tempo que o gerou a

ele também gerou a comunidade cristã, como primícias, um e

outra, da humanidade nova em construção na história (jo 19,

26-27).

A grande deusa ora, quem alguma vez passou por fátima, com olhos de

ver, e conhece minimamente a boa notícia libertadora e salvadora que

jesus cristo é para a humanidade, a começar pela humanidade mais

empobrecida, depressa tem de concluir que a senhora de fátima lá

invocada não é, não pode ser, maria de nazaré.

É preciso que se diga sem ambiguidades: maria, a mãe de jesus,

das narrativas evangélicas, não tem nada a ver com a senhora de

fátima. está até nos seus antípodas.

o seu culto, mais do que ser promovido, deve ser desmascarado,

porque envenena a vida das populações. mesmo que, em

determinadas ocasiões, ajude a atenuar-lhes as dores, é como

ópio que o faz; não é como fermento libertador, nem como luz que

consciencializa, menos ainda como graça que humaniza e

Page 128: Fátima nunca mais

fraterniza.

a senhora de fátima tem tudo a ver com a grande deusa dos povos

primitivos, e o culto que se lhe presta no alto da serra d'aire

tem tudo a ver com os ancestrais cultos que então se lhe

prestavam. com a agravante de que, hoje, nem sequer são cultos

genuinamente matriarcais, como terão sido nos tempos mais

primitivos.

--103-

pelo contrário, são cultos habilmente manipulados por solitários

homens do poder, no caso, certos clérigos que, desde cedo, se

puseram à frente de tudo para melhor levarem a água ao seu

moinho e, assim, manterem privilégios sem conta, só possíveis

enquanto na sociedade continuarem a vigorar sistemas violentos e

discriminatórios que impedem a radical igualdade entre os

indivíduos e os povos e, em última instância, atentam contra a

vida e vida em abundância, em todos os indivíduos e povos.

basta ver que, em fátima, tudo está sob férreo controlo do

clero. até o reitor do santuário é um clérigo todo-poderoso. o

santuário é da senhora de fátima, mas só de nome. porque na

realidade é o santuário do senhor reitor que, no cargo,

representa a hierarquia eclesiástica, esse pretenso poder

sagrado que, em última instância, explora monopolisticamente

todo aquele negócio religioso, escandalosamente isento de

impostos e sem que ninguém saiba quanto rende e em que é

aplicado.

igualmente, nas chamadas peregrinações de cada mês, quem sempre

Page 129: Fátima nunca mais

aparece em grande plano e com direito à palavra pública e às

decisões, nunca são mulheres, como seria legítimo ver acontecer,

numa terra que se diz ser da senhora de fátima, mas sim,

exclusivamente, clérigos e dos mais altos dessa estranha

pirâmide anti-evangélica que dá pelo nome de hierarquia eclesiástica.

e os discursos que eles então produzem são, geralmente,

discursos sem a inspiração do espírito do deus que ressuscitou,

jesus crucificado e que dançou no corpo de maria de nazaré e fez

dela a mãe de deus. são discursos que têm tudo a ver com uma

visão moralista da vida, o mesmo é dizer, não libertam, nem

promovem a libertação das populações que, de boa-fé e

ingenuamente, continuam a correr para fátima, desesperadas que

vivem com problemas e dramas que os políticos deveriam

equacionar e resolver, mas que, infelizmente, não têm estado

para isso.

deus terrorista

É, pois, manifesto, e só quem quiser ser cego é que não vê; que

a senhora de fátima não é maria, a mãe de jesus. nunca foi.

--104-

nenhum teólogo cristão, de boa-fé, pode dizer que é. porque

entre ela e maria de nazaré, a mulher de que nos falam as

narrativas evangélicas, não há nenhum ponto comum. por exemplo,

a mensagem que, desde 1917, é atribuída à

senhora de fátima, não tem nada em comum com a boa notícia

Page 130: Fátima nunca mais

daquele deus que o carpinteiro de nazaré, o filho de maria, nos

revelou e anunciou: um deus que incondicionalmente nos ama e

perdoa, que nos quer bem, que caminha connosco, que é solidário

connosco até ao extremo, que é amigo de publicanos e pecadores !

e come com eles, que não se agrada de sacrifícios humanos; pelo

contrário, está totalmente comprometido na promoção da nossa

libertação, até nos guindar à estatura de filhas suas e filhos

seus.

aquela é, isso sim, uma mensagem que tem tudo a ver com um deus

terrorista, que promove o sofrimento dos pobres e nele,

doentiamente, se compraz; é uma mensagem que nos leva a pensar

que deus é um deus que se alimenta do sangue e do dinheiro dos

pobres e, ainda por cima, lhes mete medo, os escraviza e oprime;

é uma mensagem que nos leva a pensar que deus é um deus que não

dá nada de graça a ninguém, nem sequer a graça, e que só entende

a linguagem dos cifrões e do negócio (concedo-te este favor, se

me deres o teu cordão de ouro ou o teu dinheiro), e nela

catequiza quem se deixa ir por ele.

terço, oração pagã

igualmente, a reza do terço, em que tanto insiste a senhora de

fátima, é outro exemplo flagrante de que ela não é maria, a mãe

de jesus. em lugar nenhum do evangelho consta que, alguma vez,

jesus tenha ensinado as discípulas e os discípulos a rezar o

terço.

e os actos dos apóstolos (1, 14) noticiam a presença de maria,

no seio da primeira comunidade cristã de jerusalém, mas não

dizem que ela estava aí a ensinar as outras discípulas e os

Page 131: Fátima nunca mais

outros discípulos de jesus, seu filho, a rezarem o terço.

a oração que então faziam só podia ser a oração que jesus

ensinou às suas discípulas e aos seus discípulos. e esta em que

consiste?

--105-

consiste, não em repetir até à exaustão, as mesmas palavras,

como quem, por esse truque, consegue adormecer mais depressa,

mas sim em estarmos vigilantes, de olhos bem abertos, para

discernirmos os sinais dos tempos e, assim, descobrirmos por

onde é que, em concreto, está continuamente a passar o espírito

do deus criador, a fim de nos colarmos incondicionalmente a ele,

até nos experimentarmos, de dentro para fora, tão filhas e tão

filhos dele que, com indizível alegria e gozo, nos vejamos, sem

nunca sabermos bem como, a chamar-lhe, como jesus chamava,

"abbá", pai nosso/mãe nossa.

a esta luz, está visto que o terço da senhora de fátima não é,

não pode ser, uma oração cristã; é, isso sim, uma oração pagã,

ainda que tecida com algumas expressões constantes nos

evangelhos cristãos.

de resto, o próprio evangelho de mateus não pode ser mais

esclarecedor a este respeito: "quando orarem, não sejam como as

pessoas fingidas que gostam de rezar, de pé, nas sinagogas e às

esquinas das ruas, para toda a gente as ver" (6, 5). e ainda:

"quando orarem, não façam como os pagãos, que usam de vãs

Page 132: Fátima nunca mais

repetições [o terço não é uma cansativa repetição?], porque

pensam que, por muito falarem, serão atendidos. não sejam como

eles. o vosso pai sabe muito bem do que vocês precisam, antes de

lho pedirem" (mt 6, 7-8).

na guerra colonial

e que dizer do papel de fátima e do papel da senhora de fátima,

nos tristes e amargurados anos da ditadura e da pide, em

portugal, e, sobretudo, nos dolorosos anos da guerra colonial em

África? teria sido possível suportar, durante tantos anos, e sem

nenhuma revolta popular, três frentes duma guerra dessas, sem a

senhora de fátima, sem as peregrinações nacionais a fátima, sem

as promessas à senhora de fátima? quantos cordões de ouro,

quantos anéis e pulseiras, quantas velas compradas e queimadas

estupidamente, quantos milhares e milhares de contos em ofertas

de promessas religiosamente cumpridas por militares e suas

famílias é que, durante esses trágicos anos de guerra colonial,

não entraram nos cofres do santuário de fátima?

--106-

E não há em tudo isto muito daquele crime de lesa-humanidade e

de lesa-pobres que levou o profeta jeremias, primeiro, e jesus

de nazaré, depois, a classificar como "covil de ladrões" o

próprio templo de jerusalém? não há, no santuário de fátima,

muito deste crime também e, por isso, muito de "covil de

ladrões?"

entretanto, nem a senhora de fátima, nem a sua vidente ainda

viva alguma vez foram capazes de dizer uma palavra que fosse

Page 133: Fátima nunca mais

contra o verdadeiro genocídio que era a guerra colonial, nem

sequer uma palavra de solidariedade e de verdadeira simpatia

pelos povos africanos que lutavam pelo mais que legítimo direito

à sua autonomia e independência.

pelo contrário, sempre fátima, em todo esse tempo, deixou nos

militares portugueses e seus familiares a ideia de que maria de

nazaré, a mãe de jesus, era também a mãe dos portugueses, mas,

de maneira nenhuma, era igualmente a mãe dos africanos.

e, por isso, ali estava ela em fátima, para defender e proteger

os portugueses, mas já não estava em angola, nem em moçambique,

nem na guiné-bissau, para defender e proteger os respectivos

povos, apesar de serem eles as maiores vítimas duma guerra que o

regime ditatorial e colonialista de salazar lhes impunha e nos

impunha.

muitas outras coisas típicas de fátima e que lá se promovem,

regularmente, como actos de culto, revelam à sociedade que maria

de nazaré, a mãe de jesus, não tem nada a ver com a senhora de

fátima. porém, o que fica dito basta, até ver.

resta, pois, esperar que a igreja católica que está em portugal,

em vez de continuar a enterrar a cabeça na areia, como a

avestruz, passe a ter a audácia e a humildade de aprender com

maria de nazaré a ser verdadeira discípula de jesus.

de modo que, em vez de prosseguir na exploração da ingenuidade

religiosa e da boa-fé das populações, se disponha corajosamente

e já, a esclarecê-las, a evangelizá-las/libertá-las, nem que,

nesse serviço profético, perca a vida. nunca, como então, será

tão igreja e tão fecunda.

Page 134: Fátima nunca mais

--107-

não há nenhum segredo de fátima

a vinda a portugal do cardeal ratzinger, por ocasião das

cerimónias religiosas do 13 de outubro último, em fátima, deu

pretexto à comunicação social portuguesa para voltar a falar do

chamado "terceiro segredo de fátima". mas o mais estranho é que

o próprio cardeal ratzinger, em vez de desfazer, duma assentada,

todos os equívocos que por aí proliferam, deitou mais algumas

achas para a fogueira e, assim, alimentou ainda mais esta

espécie de delírio generalizado em que alguns, pelos vistos,

insistem em fazer-nos viver.

como teólogo que também é - depois que foi para a cúria romana,

perdeu, infelizmente, a audácia profética que antes havia feito

dele uma referência esperamçosa para os pobres e suas lutas de

libertação -, ratzinger tinha obrigação de, sem papas na língua,

dizer aos jornalistas e à população em geral que não há nenhum

segredo de fátima a desvendar. e que tudo o que, a este

propósito, por aí se tem dito e escrito não passa de doentia

fantasia e de preocupante infantilismo que mais e mais

contribuem para manter as populações amedrontadas e oprimidas,

quando é imperioso e urgente libertá-las do medo em que têm

vivido, para que elas, finalmente, possam assumnir com alegria e

nas próprias mãos, os seus destinos.

Page 135: Fátima nunca mais

na verdade, ratzinger, como teólogo que é, tem obrigação de

saber que nem deus, nosso pai e mãe, nem maria, a mãe de jesus e

nossa companheira e irmã, existem para andar por aí a brincar às

aparições e aos segredos com certas pessoas mais ou menos

neuróticas e sexualmente reprimidas.

--109-

pelo contrário, a paixão de deus sempre foi dar-se inteiramente

a conhecer aos seres humanos, para que todos eles, mulheres e

homens, tomem consciência de que são filhos seus e filhas suas,

chamados, por isso, a viver em radical igualdade uns com os

outros e em fecunda e universal fraternidade, tanto económica,

como social e política.

para tanto, nem hesitou em fazer-se, um dia, deus entre nós e

connosco, na pessoa do seu filho, jesus de nazaré, o cristo.

há infelizmente por aí uma certa igreja que nunca se deu a jeito

com homens e mulheres livres, autónomos, criadores e

responsáveis. prefere, em seu lugar, homens e mulheres

amedrontados, tímidos, submissos, ignorantes, analfabetos em

tudo o que diz respeito à vida, inclusive, à vida cristã.

essa igreja sabe que é muito mais fácil lidar com súbditos do

que com mulheres e homens livres e responsáveis. e, por isso, o

que mais promove, com a sua prática pastoral, não é a liberdade,

mas o medo. medo que começa por ser medo de deus, e acaba a ser

medo dos chefes, sejam eles do poder político e económico,

Page 136: Fátima nunca mais

militar e judicial, sejam do poder religioso.

ao longo dos séculos, sempre essa igreja acolheu e realizou uma

catequese com laivos de terrorismo. e, sempre que invocou e

invoca o santo nome de deus, não é tanto para comunicar boas

novas às populações, cuja consciência ela controla, mas

sobretudo para lhes anunciar castigos, cada qual o mais

aterrador.

É também essa igreja que está sempre disposta a acreditar em

visões e aparições de santos e santas, do coração de jesus e de

nossas senhoras a criancinhas e a outras pessoas totalmente

despojadas, como elas, de qualquer sentido crítico. muito

especialmente, quando tais visões e aparições se apresentam com

um tipo de discurso moralista e catastrófico, e a recomendar

mais orações nos templos, onde o clero dessa igreja é rei e

senhor, assim como mais frequência e fervor nas devoções que ele

aí regularmente promove.

essa igreja sabe que, assim, o sucesso é garantido. os templos

voltam a ser procurados, as caixas das esmolas ou cofres que lá

existem voltam a encher-se, certas obras eclesiásticas que não

havia maneira de serem concluídas, por falta de verba, podem

--110-

ser acabadas e outras obras de maior vulto podem ser projectadas

e realizadas, porque dinheiro é coisa que não faltará, lá, onde

se diz que houve uma visão ou aparição.

Page 137: Fátima nunca mais

mas é por demais manifesto que uma igreja que não tem escrúpulos

em recorrer a meios destes para alcançar os seus fins é uma

igreja demoníaca, como tal, bem nos antípodas do que deve ser a

igreja que se reivindica da memória subversiva e perigosa de

jesus de nazaré, o crucificado que ressuscitou.

mas é uma igreja muito assim que, no nosso país, tem dado

guarida às chamadas "aparições de fátima" e quejandas. e,

ultimamente, tem alimentado esse delírio mais ou menos

generalizado, que dá pelo nome de "segredo de fátima". um

delírio que inevitavelmente se desenvolve entre populações ainda

oprimidas e sacrilegamente mantidas no medo e na ignorância a

todos os níveis, também e sobretudo ao nível teológico.

manda, porém, a verdade que se diga, sem rodeios e com toda a

frontalidade, que uma igreja assim não só é vomitada por deus,

nosso pai e mãe. também as próprias populações, à medida que se

libertam da ignorância e do medo, lançam-na fora das suas vidas,

como aprenderam a fazer ao sal que perdeu a força de salgar.

--111-

o culto a n.a s.a de fátima afasta-nos do deus que se revelou

em maria de nazaré

e se a actual devoção a nossa senhora é um tremendo desvio

teológico que nos afasta de deus, nomeadamente, do deus revelado

em jesus e maria de nazaré? e se o seu culto-hiperdolia é como

lhe chamam os especialistas marianos, para o distinguir do dos

Page 138: Fátima nunca mais

santos, a que chamam simplesmente culto de dolia - tem muito de

idolatria? não é, realmente, um culto que fomenta a religião,

mais do que a criatividade humana? que alimenta a alienação,

mais do que a militância libertadora e solidária? que promove a

resignação, mais do que o esforço individual e colectivo? que

desenvolve o egoísmo, mais do que a entrega da própria vida pela

vida do mundo? e não é verdade que, lá, onde mais cresceu a

devoção a nossa senhora, a humanidade ficou mais atrasada e

subdesenvolvida, analfabeta e em situação de imerecida pobreza e

até miséria? não é verdade que a devoção a nossa senhora serviu,

sobretudo, para perpetuar, sem revolta popular, um mundo que tem

mais de "vale de lágrimas", do que de terra de justiça e de

fraternidade, mas onde, mesmo assim, as suas devotas e devotos

se têm limitado a "gemer e a chorar", em vez de lutarem com

todas as forças contra os males que as afligem e suas

respectivas causas? não é verdade que a devoção a nossa senhora

tem sido sobretudo freio que atrasou e até impediu o

protagonismo das mulheres, tanto na sociedade como na igreja,

especialmente na igreja? não se pode dizer de nossa senhora que

ela cresceu e as mulheres diminuíram? e não deveria ter sido o

contrário, isto é, que as mulheres crescessem e ela diminuísse?

aliás, não foi para que nós, os seres humanos, mulheres e

homens, crescêssemos em estatura e em idade, em sabedoria e em

graça,

--113-

Page 139: Fátima nunca mais

que deus nos deu jesus e maria de nazaré? mas ao falar tanto de

nossa senhora, em lugar de falar simplesmente de maria de

nazaré, a igreja católica não cometeu uma traição de tremendas

consequências? não criou um modelo cultural de dominação e de

resignação, nos antípodas da boa notícia libertadora de deus,

que é o evangelho de jesus, e do qual maria faz parte? mas,

afinal, maria é para ser idolatrada ou é um modelo vivo, em quem

nós, mulheres e homens, havemos de pôr os olhos? É uma

privilegiada de deus, ou a nossa irmã e companheira mais velha,

na qual vemos por antecipação, o que haveremos de ser também?

ser da família não conta

nos primeiros tempos da igreja, maria começa por aparecer

associada a jesus de nazaré, como sua mãe carnal, mas essa não

é, de modo algum, a dimensão que mais interessa às comunidades

cristãs primitivas.

aliás, o evangelho de marcos (3, 31-35), o mais antigo dos

quatro, chega a apresentar maria, juntamente com os demais

familiares de sangue de jesus, como exemplo paradigmático de

resistência activa e de não-adesão à sua via de libertação e de

misericórdia. um homem que faz o que jesus faz e ensina o que

jesus ensina, tão diametralmente oposto ao que faziam e

ensinavam os chefes religiosos e políticos do templo de

jerusalém e do sinédrio judaico, só pode ser, nos critérios

culturais e religiosos dominantes da época, um louco, um

possesso do demónio, como, aliás, passam a dizer dele todos os

seus opositores e inimigos (ver, por exemplo, mc 3, 22).

como se vê, marcos nem a mãe de jesus excluiu desta atitude

Page 140: Fátima nunca mais

hostil, por parte da sua família de sangue. de tal modo quis

proclamar que, à luz de deus criador, não são a carne e o sangue

que contam nestas coisas da salvação da humanidade, mas apenas a

gratuidade do amor de deus, que não hesitou em dizer que até

maria, enquanto mãe carnal de jesus, esteve entre aqueles e

aquelas que não o entenderam e não o acolheram.

com isso, quer simplesmente dizer que ser ou não ser da família

carnal de jesus, ser ou não ser do seu sangue, é coisa que

--114-

não tem qualquer valor para deus e para a salvação que deus dá

gratuitamente a todos os seres humanos. de maneira nenhuma

marcos quis dizer que maria de nazaré não aderiu a jesus, seu

filho, ou que não se fez discípula dele, que não o entendeu e

acolheu. o que ele, com este episódio, proclama aos quatro

ventos é que a carne e o sangue não contam para nada, nestas

coisas da graça e da salvação de deus.

pelo que maria e todos os demais familiares de jesus estiveram,

em relação à salvação de deus, no mesmo pé de igualdade que a

humanidade em geral. porventura até com dificuldades acrescidas,

já que a tendência natural dos familiares do profeta de deus

será sempre tentar tirar proveito dele, sem terem de fazer

qualquer esforço pessoal, sem aceitarem passar por uma

verdadeira metanóia, isto é, sem terem de passar por uma

verdadeira mudança de ser e de viver. como se, alguma vez, deus

Page 141: Fátima nunca mais

fosse fonte de privilégios para alguém, para alguma família ou

para algum povo ou nação. ou como se, diante de deus, alguém,

alguma vez, pudesse invocar direitos adquiridos, que o

dispensasse de reconhecer, como maria reconheceu, a total

liberdade e a total gratuidade da sua iniciativa.

maria, como todas as outras mulheres e homens de todos os tempos

e lugares, teve de dar a sua adesão a jesus cristo, crer na sua

palavra e deixar-se conduzir pelo mesmo espírito que o conduziu

a ele. e isso ela fez, mais do que nenhuma outra criatura, desde

a primeira hora.

esse, e apenas esse, é o seu valor, no dizer teológico das

primitivas comunidades cristãs. não o facto histórico de ter

sido a mãe carnal de jesus, mas o ter escutado a palavra de

deus, que ele historicamente é, e tê-la posto em prática (mc 3,

35).

e maria fê-lo em grau tal, que, para sempre, ficou associada à

boa notícia de deus, lado a lado com jesus de nazaré. de tal

modo que as comunidades cristãs primitivas vêem em jesus e

maria, não tanto o filho e a mãe, simplesmente, mas o novo par

humano, o novo adão e a nova eva, em quem deus, pela vez

primeira, conseguiu realizar, integralmente, a sua criação. por

isso, jesus e maria de nazaré ficam, para todo o sempre, como o

modelo acabado do que toda a humanidade há-de chegar também

--115-

Page 142: Fátima nunca mais

a ser, à medida que toda ela se abrir ao espírito de deus e se

deixar conduzir por ele, como ele e ela deixaram.

primeira discípula

esta boa notícia, proclamada pelas primeiras comunidades

cristãs, faz de maria de nazaré a primeira e maior discípula de

jesus, o cristo. ainda ele não havia sido historicamente

concebido, e já maria se lhe abria sem reservas. foi até o seu

"faça-se em mim", que tornou possível a encarnação do verbo ou

palavra de deus entre nós e connosco (lc 1, 26-38).

e, quando maria de nazaré acolheu esta palavra ou verbo de deus,

na sua vida e no seu seio, é que se experimentou mulher outra,

radicalmente liberta e salva, por pura graça. a palavra de deus

que ela acolheu e que, depois, recebeu o nome histórico de

jesus, é que a salvou a ela. e salvará a todos os seres humanos

como ela, na medida em que nós, mulheres e homens, fizermos como

ela fez, dissermos também o nosso "faça-se em mim", como ela

disse.

maria de nazaré não é, então, como equivocadamente nos têm

ensinado as catequeses católicas, uma privilegiada,

relativamente ao resto da humanidade. o que deus fez com ela é o

que está sempre a tentar fazer connosco, assim nós lhe demos a

mesma oportunidade que ela lhe deu.

aliás, seria inconcebível e até blasfemo pensar deus a conceder

privilégios a alguém. como diz a revelação bíblica, deus não faz

excepção de pessoas (rm 2, 11). todos os seres humanos, mulheres

e homens, são filhos seus e filhas suas. e, se alguém é objecto

de especial atenção, por parte de deus, são precisamente os

menos capazes, os pobres e oprimidos, os excluídos, os

Page 143: Fátima nunca mais

rejeitados, os marginalizados, os considerados pecadores pelos

sistemas religiosos dominantes.

aliás, o evangelho de lucas, por exemplo, é isso que proclama

relativamente a maria de nazaré. não hesita em pôr na boca dela

a proclamação de que deus olhou para a humilhação da sua serva esta

palavra "humilhação" diz muito mais que a palavra

"humildade", como gostam de traduzir quase todas as bíblias e

fez grandes coisas nela, por pura graça (lc 2, 48-49).

---116-

dizê-lo assim não é um privilégio que se anuncia, mas a boa

notícia que a humanidade jamais havia escutado. na verdade, as

religiões sempre haviam ensinado, e ainda hoje continuam a

ensinar, contra a revelação bíblica e sobretudo cristológica de

deus, que deus gosta dos bons e rejeita os maus. que salva os

que se portam bem e castiga os que se portam mal.

e não é nada assim. maria de nazaré faz parte da boa notícia de

deus, ao lado de jesus e graças a jesus, precisamente, porque

também ela foi capaz de se dar conta de que deus nos salva por

pura graça e não pelos nossos méritos. como tal, não temos nada

que passar a vida a tentar comprar os favores de deus e as

graças de deus. como se ele fosse um negociante ou o dono duma

multinacional religiosa que vende a salvação por dinheiro, ou a

troco do nosso bom comportamento.

maria de nazaré, ao contrário dos chefes religiosos do templo de

jerusalém e de todos os templos do mundo, deu-se conta de que

deus nos salva por pura graça e proclamou-o aos quatro ventos.

com alegria e num poema ainda hoje altamente subversivo e

Page 144: Fátima nunca mais

polémico - o magnificat -, como subversivo e polémico é todo o

evangelho de jesus, de que esse poema é uma espécie de

frontispício.

deusa das deusas

infelizmente, com o passar dos anos e à medida que a igreja de

jesus começou a transformar-se numa religião mais do império

romano, com os seus sacerdotes e os seus ritos, com os seus

cultos e as suas liturgias levíticas nos templos, tudo se

alterou.

e a boa notícia de que deus nos salva por pura graça - numa

iniciativa, ainda hoje, impensável para a generalidade dos seres

humanos e que é fruto do infinito amor criador e libertador que

ele tem a todas as mulheres e homens, por igual - deu lugar à má

notícia que todas as religiões anunciam e que, em síntese, diz:

se queres salvar-te, frequenta os nossos cultos, paga os teus

dízimos aos sacerdotes e pastores, obedece a todas as normas que

as nossas catequeses ensinam, vem regularmente aos nossos

templos e esforça-te por cumprir tudo o que te dizem os pastores

e sacerdotes.

--117-

foi depois desta traição que maria de nazaré perdeu a

dimensão teológica que as primeiras comunidades cristãs

Page 145: Fátima nunca mais

viram nela e que proclamaram como parte integrante da boa

notícia de deus, que é o evangelho de jesus, o cristo, e passou

a ser olhada como uma espécie de deusa das deusas, raínha das

raínhas, senhora das senhoras, igual ou mesmo acima do próprio

deus e sempre bem melhor do que ele.

(segundo esta teologia blasfematória, deus seria o

castigador dos pecadores e maria, o manto de misericórdia, junto

da qual os humilhados e ofendidos do mundo, as vítimas de todos

os sistemas, também dos sistemas religiosos, poderiam

acolher-se, para pedir a sua protecção e a salvação que os

grandes deste mundo, sistematicamente, lhes recusam, com as suas

sádicas economias e políticas sem justiça e sem fraternidade

solidária.)

ao mesmo tempo, nasceu e desenvolveu-se, como nunca, a

chamada mariologia, em lugar da teologia, e até contra a

teologia.

maria, e não deus, é que passou a ser decisiva para a

salvação da humanidade. de tal modo que hoje parece que a

humanidade pode muito bem passar sem deus, mas o que não pode é

passar sem maria (há lá aberração teológica maior?!).

Page 146: Fátima nunca mais

este desvio teológico, de consequências tremendas para

a humanidade e para a credibilidade da revelação de deus,

continua ainda hoje a fazer-se sentir nas vidas das populações

empobrecidas.

sem que a igreja católica, mesmo depois da revolução

teológica e pastoral que foi o vaticano ii, tenha coragem para o

denunciar.

em vez disso, o que os responsáveis maiores da igreja

católica fazem é continuar a canonizar, sem reservas, festas e

romarias populares em honra de nossa senhora, como se entre esta

e maria de nazaré não houvesse qualquer diferença e ambas fossem

a mesma pessoa. e não são.

nem sequer o facto de essa nossa senhora das festas e

romarias populares ser invocada sob múltiplos e variados

nomes, desde os mais ternos aos mais agressivos ("senhora

das vitórias", por exemplo), tem levado os responsáveis maiores

da igreja católica a suspeitar de que as coisas podem não estar

teologicamente correctas.

Page 147: Fátima nunca mais

aliás, é por demais manifesto que tais festas e

romarias populares em honra de nossa senhora, de modo algum têm

--118-

contribuído para a consciencialização e libertação das

populações que nelas se envolvem, com mais ou menos entusiasmo.

pelo contrário, cada vez mais as populações que as fazem se vêem

atrozmente desamparadas, sem dignidade e sem cultura, sem

participação e sem voz. ou seja, exactamente numa situação

diametralmente oposta àquela que deus quer e que nos revelou,

paradigmaticamente, em maria de nazaré.

Dor de alma entretanto, é uma dor de alma ver as multidões que acorrem

aos santuários ditos marianos e que se envolvem nos festejos e nos

cultos religiosos que certas comissões de festas, habilmente,

promovem, quase sempre com inconfessados fins, que estão nos

antípodas dos fins que deus, revelado nas atitudes e na vida de

jesus e maria, busca para a humanidade.

são multidões e multidões com fome de pão e sede de justiça, a

quem impunemente continuam a roubar a alma e o protagonismo, por

isso, populações aflitivamente subdesenvolvidas, que chegam a

rastejar como bichos do monte e que se desfazem do que têm e do

que não têm, para encher os cofres dos santuários da "senhora"

ou da "santa" da sua devoção, sem se darem conta de que, desse

modo, todos eles se engrandecem e enriquecem à custa do seu

empequenecimento e empobrecimento. exactamente o contrário do

que deus fez com maria de nazaré e que é a revelação do que ele

Page 148: Fátima nunca mais

está empenhado em fazer com todos e cada um dos seres humanos.

assim nós lhe demos oportunidade, como ela deu.

e o mais doloroso é que ninguém dos eclesiásticos, pastoralmente

responsáveis por esses santuários, alguma vez levante a voz para

dizer às populações que estes comportamentos não podem estar

certos, que constituem uma injúria ao nome de maria e muito mais

ao nome de deus, que fez dela o modelo acabado da humanidade que

ele quer criar até ao fim. e que é uma humanidade liberta para a

liberdade, saudável e fraterna, de irmãos e irmãs, desenvolvida

e protagonista, na qual não possa haver mais lugar para abutres

e vampiros que roubem e suguem as populações empobrecidas, sem

que ninguém lhes vá à mão.

--119-

práticas idolátricas

É preciso que se diga, duma vez por todas, que todas estas

práticas pastorais, por mais religiosas que sejam, são práticas

essencialmente idolátricas, nas quais o ídolo se apresenta

disfarçado sob o nome de nossa senhora disto e nossa senhora

daquilo, como se todas essas nossas senhoras fossem a própria

maria de nazaré, quando, bem vistas as coisas e pelos frutos que

produzem os seus cultos, não passam de antigas e míticas deusas

inventadas e imagw adas que se alimentam da vida e do dinheiro,

da saúde e do tempo das populações empobrecidas e oprimidas.

populações que, assim, cada vez mais se encontram

Page 149: Fátima nunca mais

alienadas-desconciencializadas da força libertadora e da

capacidade criadora e transformadora que o verdadeiro deus

colocou nelas, para que elas, em comunhão com ele, mudem a face

da terra.

Tem também que se dizer que toda a mariologia que está

subjacente a estes cultos marianos e que, de algum modo, os

justifica, não tem nada de teologia cristã. É fruto do paganismo

que, em lugar de ter sido evangelizado pelas igrejas, as

paganizou.

muita gente desconhece, a este propósito, que antes do

cristianismo, o império romano foi terreno fértil em mitologia

pagã, na qual eram múltiplas as deusas invocadas e adoradas, sob

os mais variados nomes.

com a transformação do cristianismo em religião, e em religião

oficial e única do império, todas essas deusas e respectivos

cultos foram banidos. e os seus santuários passaram, quase

automaticamente, a santuários marianos, agora, sob a invocação

do nome de nossa senhora disto, nossa senhora daquilo. mas, em

muitos casos, a única mudança que se operou foi mesmo só a

mudança do nome. porque tudo o mais se manteve, até as festas e

as formas rituais, assim como as imagens da deusa ou da virgem.

está provado, por exemplo, que no século v um santuário dedicado

à deusa artémis de Éfeso, já conhecida no tempo de paulo (at 19,

23-40j e contra cujo culto idolátrico ele se insurgiu, foi

simplesmente convertido num santuário dedicado a nossa senhora.

igualmente, a famosa catedral de chartres, em frança, dedicada à

virgem mãe, foi construída sobre o primitivo templo

Page 150: Fátima nunca mais

--120-

da "virgem parturiente", uma deusa cultuada pelos povos celtas.

aliás, ainda hoje, se conserva no subsolo da catedral a estátua

da antiga deusa.

sabe-se também que a actual igreja de santa maria antíqua, em

roma, foi edificada sobre o templo da deusa "vesta mater". e a

igreja de santa maria do capitólio ocupa o lugar que foi

dedicado ao deus juno. e tantos outros casos semelhantes.

elucidativo é também o que se passou com a famosa deusa Ísis do

egipto, venerada como a grande deusa criadora do céu e da terra,

dos deuses e dos seres humanos. pois bem, muitas estátuas negras

desta deusa, com hórus, seu filho, ao colo, foram veneradas

(leia-se, adoradas, idolatradas) em templos cristãos, como se

representassem a própria virgem maria com o menino jesus!

abrir-se ao espírito

estes são factos históricos irrefutáveis, que não podemos

ignorar. tão-pouco podemos enterrar a cabeça na areia.

os tempos que vivemos, com o terceiro milénio já a espreitar,

exigem-nos, às crístãs e cristãos e às igrejas que se

reivindicam do nome de jesus e de maria de nazaré, que

reneguemos as atitudes idolátricas e nos abramos ao espírito de

deus a quem tanto ele como ela, no seu tempo histórico, deram

carta branca para realizar nos seus corpos o projecto criador e

libertador de deus.

por isso é que tanto ele como ela, indissoluvelmente unidos, se

tornaram o grande sacramento ou revelação de deus entre nós e

Page 151: Fátima nunca mais

connosco, cada qual à sua medida, mas ambos integralmente.

mas nem jesus, nem maria nos foram dados para que, agora,

passemos o tempo a adorá-los, a gastar com eles o nosso

dinheiro, na construção de templos e catedrais e basílicas, e em

liturgias mais ou menos alienantes que têm o triste condão de

nos desviar da militância libertadora e solidária, em prol duma

humanidade outra, de irmãs e irmãos, em radical igualdade e em

progressiva comunhão de bens e de vida.

jesus e maria de nazaré foram-nos dados para que ponhamos neles

os olhos e mais rapidamente tomemos consciência de que aquilo

que deus fez neles e com eles é o que está empenhado em fazer em

cada uma e cada um de nós também. assim a gente

--121-

consinta, como eles consentiram e, só por isso, é que deus os

constituiu, cada qual à sua maneira e medida, em modelos de vida

humanamente correcta, que havemos de actualizar, em fidelidade

ao mesmo espírito.

deixemos, pois, de pensar e de dizer que maria de nazaré foi uma

privilegiada de deus. o facto de ser mãe carnal de jesus não lhe

deu qualquer vantagem, sobre o resto dos seres humanos, na via

da salvação.

deixemos de pensar e de dizer que apenas ela foi concebida sem

pecado. essa afirmação teológica, a respeito de maria, quer

simplesmente revelar-proclamar que todos os seres humanos,

Page 152: Fátima nunca mais

mulheres e homens, foram concebidos em graça e por pura graça.

aliás, o sacramento do baptismo, mais do que dar-nos a graça de

filhas e de filhos de deus, é uma outra maneira de

revelar-proclamar a boa notícia de que deus nos fez a todas e

todos, sem discriminação, filhos seus e filhas suas.

deixemos igualmente de pensar e de dizer que apenas maria foi

virgem. o que esta afirmação teológica revela-proclama é que,

como ela, todos nós, seres humanos, somos resultado do amor

criador e libertador de deus, e como tal, havemos de tudo fazer

para permanecermos fiéis a este amor, sem nunca nos passarmos

para o campo do adversário ou inimigo de deus, o anti-deus ou

ídolo - hoje, o deus dinheiro -, e, muito menos, obedecer às

suas leis e mandamentos.

finalmente, deixemos de pensar e de dizer que apenas maria foi

elevada ao Çéu em corpo e alma. esta afirmação teológica, a

respeito de maria, revela-proclama que, como ela, todos nós,

seres humanos, crentes ou não, trazemos dentro de nós o espírito

ou impulso criador e libertador de deus que faz de nós mulheres

e homens em contínua transformação-ressurreição, até nos

tornarmos, finalmente, seres-em-deus para sempre. sobre quem a

morte, ao contrário do que parece, não tem já qualquer poder

definitivo. e revela-proclama também que até esta nossa terra

está a ser transformada gradualmente em céu, isto é, uma terra

com deus e em deus.

À luz desta teologia genuinamente cristã, deixemos de vez todas

as nossas senhoras que por aí proliferam, a começar pela

Page 153: Fátima nunca mais

--122-

de fátima, e alegremo-nos com maria de nazaré e com a boa

notícia que, através dela, deus nos deu e continua a dar. e

aprendamos com ela a cooperar com deus criador de filhos e

filhas, irmãs e irmãos, numa aliançl de amor que fará de nós,

mulheres e homens realizados e felizes. para sempre.

--123-

17

muitas conferências ,

nenhum debate

anunciou-se um congresso sobre "fenomenologia e teologia das

aparições", mas o que aconteceu, entre os dias 9 e 12 de outubro

de 97, no centro paulo vi, em fátima, foi, porventura, a maior

desonestidade intelectual católica deste século. promovido por

uma autodenominada comissão científica, presidida pelo actual

reitor da universidade católica portuguesa, e pelo santuário de

fátima - que também financiou todas as despesas e é o mais

beneficiado com o tipo de metodologia nele adoptada -, o

encontro reuniu um significativo número de intelectuais

católicos portugueses, na sua maioria, professores na respectiva

universidade e por ela financiados, mais alguns intelectuais

católicos estrangeiros, uns e outros, expressamente, convidados

Page 154: Fátima nunca mais

com antecedência, para nele intervir, cada qual com uma

comunicação previamente escrita, sem que, entretanto, nenhum

deles pudesse, naturalmente, saber o que iriam dizer os demais.

depois, ao longo dos quatro dias que durou o evento, todos estes

senhores - apenas dois temas foram confiados a outras tantas

professoras universitárias, uma da faculdade de letras de

lisboa, outra da faculdade de teologia da universidade católica

proferiram um total de 45 conferências para um público

proveniente de vários países, composto por mulheres e homens

fanaticamente entusiastas de fátima e da sua senhora, por sinal,

em número bastante reduzido, não muito mais de seis centenas, no

total. mas debate aberto e livre foi coisa proibida neste congresso, pelo

menos, não desejada, já que nunca se lhe dedicou

um minuto que fosse.

--125-

críticos ausentes

por outro lado, intelectuais católicos ou não, mas

publicamente assumidos como críticos de fátima e do típico

cristianismo à portuguesa que fátima promove, a tempo e fora de

tempo, e que é um cristianismo praticamente nos antípodas do

evangelho de jesus e de maria de nazaré, nenhum deles foi

visto por lá.

Page 155: Fátima nunca mais

mas o pior ainda foi verificar que, no decorrer da

última sessão plenária do congresso, um dos conferencistas de

mais responsabilidade na sua condução, o prof. josé jacinto

farias, em comunicação não distribuída aos jornalistas

presentes, permitiu-se nomear explicitamente alguns desses

críticos portugueses mais conhecidos, mas como quem pareceu

querer insinuar que, devido a essas suas posições, eles não

passam de notórios inimigos de fátima, e pessoas de craveira

intelectual pouco relevante.

claro que, entre as várias dezenas de convidados que

intervieram no congresso, alguns deles serão, porventura,

críticos de fátima, mas a verdade é que, se o são, ninguém

chegou a saber.

É o caso, por exemplo, do dominicano português

francolino gonçalves, biblista famoso em jerusalém e companheiro

do célebre crítico de fátima, pe. oliveira faria, cujos dois

livros "perguntas sobre fátima" e "pergunta, sobre fátima ii"

continuam, desde há bastantes anos e mesmo depois deste

congresso, ainda sem convincente resposta.

frei francolino limitou-se, habilmente, a dissertar

sobre o tema que lhe propuseram - "os videntes e os visionários

no profetismo do antigo testamento" - sem, contudo, dizer uma

única palavra sobre fátima, os seus videntes e suas aparições.

Page 156: Fátima nunca mais

o mesmo sucedeu com Émile puech, também professor da

escola bíblica e arqueológica francesa de jerusalém, que

dissertou sobre "as aparições na literatura peritestamentária" e

igualmente não disse uma única palavra sobre fátima, nem as suas

aparições, nem a sua literatura. (ou seja, dois silêncios de

outros tantos especialistas, tremendamente eloquentes que, é

claro, urge saber interpretar.)

za

lve nenhum confronto

também deveras espantoso foi verificar que os próprios

conferencistas convidados a intervir directamente com uma

comunicação, em momento algum do congresso foram chamados a

confrontar uns com os outros os respectivos pontos de vista

sobre o fenómeno de fátima.

terá sido, até, esta ausência de debate entre os diferentes

conferencistas que impossibilitou a formulação de um documento

de conclusões, aprovadas pelo congresso. assim, simplesmente,

não houve conclusões!

qualquer tentativa nesse sentido seria, naturalmente, foco de

tensões e de divisões, e lá se ia por água abaixo tanto

unanimismo e tanta harmonia. o "milagre" da construção e

manutenção desta opressiva torre de babel portuguesa que é,

hoje, fátima e o seu santuário, ter-se-ia convertido então num

verdadeiro pentecostes, com todas as línguas soltas a falar

livremente. só que, neste caso, é quase certo que, do empório

religioso e comercial que fátima materializa não ficaria pedra

Page 157: Fátima nunca mais

sobre pedra. e isto é o que querem evitar a todo o custo todos

aqueles que, actualmente, tiram proveito de fátima, desde os

comerciantes ao turismo, desde a hierarquia eclesiástica às

ordens religiosas lá estabelecidas também com os seus negócios,

isentos de impostos.

pecado contra o espírito santo

perante tudo isto e porque, como por aí se diz, e bem, mesmo

fora das universidades, é da discussão que nasce a luz, pode

concluir-se, com toda a propriedade, que a comissão científica e

o santuário de fátima não quiseram, com a promoção deste

congresso, que se fizesse luz sobre as chamadas "aparições de

fátima".

apenas terão querido canonizar definitivamente fátima e o tipo

de cristianismo à portuguesa que aí se realiza, e dar-lhes um ar

de autenticidade indiscutível, numa cega e interesseira

tentativa de que uma e outro possam prosseguir, terceiro milénio

além, sem percalços de maior, pois assim também os privilégios

deles estão automaticamente salvaguardados.

--127-

porém, um comportamento assim é tudo menos científico e, do

ponto de vista da teologia cristã, materializa mesmo um pecado

contra o espírito santo, do tipo daqueles pecados que o

evangelho de jesus chega a nomear como imperdoáveis (mc 3, 29).

Page 158: Fátima nunca mais

o que, só por si - é com dor que o dizemos, mas não podemos

deixar de o dizer -, faz de fátima, não um lugar teológico

cristão e de fé cristã, mas um lugar de religião e de idolatria,

com quase tudo de demoníaco e praticamente nada de deus, pelo

menos, do deus revelado em jesus de nazaré, o cristo, e em

maria, sua mãe, que veio a ser também a primeira e a mais

perfeita das suas discípulas e discípulos.

pode, por isso, dizer-se que a paz que se viveu, durante todo o

congresso, foi tudo menos a paz, fruto directo do espírito

santo. e tem tudo a ver com a paz castradora e genocida que se

respira no interior dos sistemas autoritários e teocráticos,

como aquele em que a nossa igreja católica, infelizmente, se

tornou, pelo menos, até ao concílio vaticano ii, e que ainda

hoje continua interiorizado no inconsciente de grande parte dos

nossos católicos, professores catedráticos que sejam.

uma voz houve, em todo este unanimismo cinzento e necrófilo,

que, sem cortar radicalmente com fátima - e foi pena soube,

contudo, ser sadiamente lúcida, e terá soado aos ouvidos dos

mais atentos e prevenidos, como uma pedrada no charco.

foi a comunicação do actual bispo do porto, por sinal, a última

intervenção que se ouviu, imediatamente antes da sessão de

encerramento.

pelo menos no entender-interpretar do jornal fraternizar, cujo

director acompanhou os trabalhos do congresso, do primeiro ao

último momento, d. armindo lopes coelho demarcou-se nitidamente

daquela fátima e daquele cristianismo à portuguesa que, ao longo

destes 80 anos de peregrinações, o país conheceu e conhece e que

Page 159: Fátima nunca mais

são a vergonha da nossa igreja católica, ao mesmo tempo que são

também os responsáveis maiores por muito do ateísmo e do

agnosticismo que vemos por aí crescer a olhos vistos na nossa

sociedade portuguesa e ocidental.

em alternativa, o bispo do porto apontou para uma outra fátima

que, se calhar, nem a comissão científica nem os

--128-

responsáveis do santuário que promoveram este congresso estarão

minimamente interessados que venha a materializar-se no futuro.

pelo que a sua voz, apesar de lúcida, dificilmente passará duma

voz a clamar neste confrangedor deserto povoado de multidões que

tem sido fátima, sobretudo, nos dias 12 e 13 de maio a outubro

de cada ano, e que são multidões possessas de medos ancestrais

que lhes roubam toda a capacidade de liberdade e de inicia tiva

pessoal, e que fazem delas gato-sapato, à semelhança do que

acontecia ao doente de gerasa, de que falam os evangelhos

sinópticos (mt 8, 28-34; mc 5, 1-20; lc 8, 26-39), até ao ponto

de levarem muitos que as integram a protagonizarem, lá e nas

estradas do país, demenciais delírios de autoflagelação e de

autodegradação, com a agravante de pensarem que, com esses

demenciais delírios, estão a dar glória a deus.

jornalismo crítico

o jornal fraternizar escutou todas as conferências proferidas,

durante as manhãs, nas sessões plenárias que decorreram no

Page 160: Fátima nunca mais

anfiteatro do centro pastoral paulo vi. ouviu, num dos quatro

grupos, as conferências que, durante as tardes, eram proferidas

em outras tantas salas do mesmo centro. e aquelas que não pòde

uuvir pôde lê-las nas cópias integrais previamente entregues aos

profissionais da comunicação social. mas não vai, evidentemente,

reproduzir aqui extractos delas, como certamente terão feito os

outros "media" de grande informação diária.

ao jornalismo mais ou menos acrítico que se limita a dizer o que

disseram os oradores, preferimos o jornalismo crítico que escuta

também e sobretudo o que não foi dito pelos oradores e que

deveria ter sido dito. porque só a verdade liberta e nos faz

livres, não a reprodução pura e simples do que disseram os

oradores.

de resto, está visto que, em iniciativas como esta, sem

manifesta busca da verdade, esta quase nunca está no que é dito,

mas no que é silenciado, interesseiramente silenciado.

corporativamente silenciado.

--129-

já são paulo, na carta aos romanos (1, 18), advertiu para este

grau de impiedade máxima em que podemos caír, só para garantir,

até inconscientemente, privilégios adquiridos. essa

impiedade traduz-se, segundo o apóstolo, em reter a verdade

Page 161: Fátima nunca mais

cativa na injustiça. quando o imperioso e urgente é acabarmos

com a injustiça para, assim, resgatarmos e libertarmos a

verdade, de modo que esta, por sua vez, nos resgate e liberte

também a nós e a humanidade inteira, única maneira, aliás, de

fazermos teologia cristã e de darmos glória a deus.

ora, é por aqui que procuramos ir, conscientes dos riscos que

esta postura acarreta. mas não queremos saber outro jornalismo,

pois não estamos na disposição de ser caixa de ressonância da

voz dominante, por mais que ela se vista de democrática, na

política, e de hierárquica, nas igrejas.

a verdade salta quase sempre das vítimas silenciadas da

história, as quais, século após século, continuam aí sem voz e

sem vez, condenadas a ter de ouvir e a ter de obedecer à voz

dominante, seja do poder de turno, seja das hierarquias

eclesiásticas ou religiosas - as vítimas das novas seitas que o

digam -, cujos membros, enquanto tais, nunca são capazes de se

fazer próximos do seu próximo, muito menos irmãos dos outros

homens e mulheres; apenas pretendem ser reconhecidos como

superiores a todos e todas.

mas não tenham pena de não saberem por nós o que disseram os

oradores do congresso. todas as conferências serão publicadas em

volume nas chamadas "actas do congresso". e valerá a pena

adquiri-lo, para logo se concluir, como nós concluímos, que tudo

aquilo não passou duma floresta de palavras mais ou menos

eruditas, com as quais nos tentam impedir de ver a árvore que

dá pelo nome de fátima e que é uma árvore, cujos frutos são

cílllsm de grave alienação no país e no mundo católico, de modo

especial, nas pessoas que lá se dirigem com regularidade.

Page 162: Fátima nunca mais

aparições? impossível!

nenhum dos teólogos que intervieram no congresso teve a lucidez

e a coragem de dizer que, pelo menos, para a teologia cristã, é

absolutamente impossível, alguma vez, haver aparições

--130-

e visões de deus, de nossas senhoras e de santos.

consequentemente, também em fátima, elas não podem ter

acontecido.

cabe à ciência e aos cientistas a tarefa de explicar e desmontar

todos esses fenómenos, habitualmente designados por visões e

aparições. e que, objectivamente, não são nem uma coisa nem

outra.

entretanto, até que essa explicação científica chegue, o que a

teologia cristã jamais poderá fazer é dizer que esses fenómenos

são manifestações de deus. o que ela tem de dizer, oportuna e

inoportunamente, é que deus jamais recorreu ou recorrerá a esses

truques, para levar a humanidade a reconhecê-lo e a cooperar com

ele.

admitir uma tal possibilidade seria reduzir deus à medida dos

nossos cálculos e das nossas ambições, fazer dele um deus à

nossa imagem e semelhança, pior ainda, à imagem e semelhança dos

nossos fantasmas e dos nossos medos.

dirão - e o congresso também não se cansou de o repetir mas até

a bíblia está cheia de relatos desses!... e têm razão, embora a

Page 163: Fátima nunca mais

mesma bíblia também esteja cheia de outros relatos que afirmam

exactamente o contrário, ou seja, a radical impossibilidade de

alguém poder ver a deus.

por isso, não devemos pensar que os relatos bíblicos que falam

de visões e aparições de deus são relatos jornalísticos, isto é,

que as coisas sucederam tal e qual como são relatadas. não

sucederam.

esses relatos são simplesmente maneiras literárias e míticas,

próprias de contextos densamente religiosos e não científicos,

às quais os autores humanos da bíblia também recorrem, sempre

que pretendem testemunhar sobre certas pessoas, em cujas vidas

deus terá conseguido passar e permanecer invulgarmente activo,

coisa que veio a ser experimentada, pelo menos, por alguns dos

contemporâneos dessas pessoas, como coisa boa e bela, não só

para eles, mas também para toda a humanidade. e, por isso,

acharam que esse acontecimento tinha de ser relatado e

divulgado. o que fizeram, com recurso aos meios de comunicação

então em uso para vivências do género.

mas quem escreve estes relatos nunca são as próprias pessoas, em

cujas vidas deus conseguiu passar e permanecer especialmente

activo. estas, provavelmente, nem chegaram a saber que

--131-

deus passou e esteve mais intensamente presente e activo nas

suas vidas. até porque, quase sempre, os chefes religiosos, seus

Page 164: Fátima nunca mais

contemporâneos, as olharam com desconfiança e, muitas vezes, as

perseguiram e até mataram como blasfemas e irreligiosas. ou elas

não fossem pessoas muito críticas da religião que eles promoviam

e alimentavam nos templos, e que se traduzia quase sempre numa

sacrílega exploração dos póbres.

foi depois que essas pessoas passaram a ser invisíveis aos

nossos olhos, mediante a morte-ressurreição, que os escritores

da bíblia - inspirados pelo mesmo deus que havia conseguido

passar e permanecer activo nelas - escreveram esses relatos que

hoje conhecemos.

mas, atenção! deles, o que é verdade é essa boa notícia de que

deus conseguiu passar e permanecer activo na vida das pessoas em

causa. já os pormenores literários de que os escritores

inspirados lançaram mão phra dizer esta boa notícia são apenas

isso. não devemos, pois, tomá-los à letra e ficar a pensar que

deus verdadeiramente apareceu e falou a certas pessoas, tal e

qual como os relatos dizem. de modo nenhum. tudo na vida dessas

pessoas sucedeu como suced.e com cada uma e cada um de nós, hoje.

aliás, os próprios relatos das chamadas aparições de jesus

ressuscitado às suas discípulas e discípulos, se repararmos bem,

é também para aqui que apontam. no conhecido episódio do

apóstolo tomé (jo 20, 19-29), que dizia só acreditar depois de

ver, o evangelista fecha o relato com o próprio jesus

ressuscitado a dizer estas reveladoras palavras: "felizes os que

não viram e creram". ou seja, porque acreditamos é que podemos

chegar a dar pela misteriosa e sempre invisível presença-acção

de deus em nós e no mundo e colaborar conscientemente com ela.

numa palavra, não acreditamos porque vimos - exigir ver para

Page 165: Fátima nunca mais

crer é tentação demoníaca -, mas, porque acreditamos, vemos

(não, evidentemente, fora de nós, mas no mais dentro da nossa

consciência). tudo o que vai além disto é fantasia e delírio

demencial.

por isso, quando hoje aparecem por aí pessoas a dizer que deus,

ou nossa senhora, ou este e aquele santo ou santa lhes apareceu,

ou que viram deus desta maneira ou daquela, que

--132-

Nossa senhora vinha assim vestida e que deixou este ou aquele

recado, a igreja de jesus que vive neste tempo de

desenvolvimento científico tem a obrigação pastoral de,

imediatamente, dizer que tais aparições e visões não passam de

pura reprodução do mesmo, isto é, são reprodução, mais ou menos

fiel e adaptada a cada circunstância, de relatos ancestrais que

a própria bíblia conserva e que, sem disso termos consciência,

continuam gravados, como em cassete, no inconsciente dos povos e

dos indivíduos, apenas à espera duma oportunidade para saltarem

cá para fora, o que pode acontecer em momentos de graves crises

na marcha, quer da humanidade, quer de um país concreto, e que,

porventura,

nos afectem, individual ou colectivamente.

fantasmas

não pode ter sido outra coisa o que aconteceu, no ano de 1917,

em fátima, com as três crianças assustadas, quer por catequeses

terroristas que os pregadores da missão abreviada se fartavam de

produzir nos púlpitos das igrejas paroquiais do país, quer pelas

Page 166: Fátima nunca mais

terríveis notícias que chegavam da primeira guerra mundial, e na

qual o nosso país, precisamente nesse ano, acabou por entrar

também.

essas catequeses terroristas mais não eram do que uma

obscurantista e moralista reacção contra o que os pregadores da

missão chamavam de laicismo e secularismo da república

recém-implantada, a qual, aos olhos deles, representava não a

mão de deus a intervir na história, como certamente foi, mas pasme-

se! - a encarnação do próprio diabo. e isto, só porque a

república havia desapropriado a igreja católica dos privilégios

que ela, indevidamente, usufruía, nos tempos da monarquia

(clero, nobreza e povo, lembram-se?!).

neste contexto, as crianças da aldeia de fátima viram e ouviram,

sim senhor, mas apenas os fantasmas que o seu inconsciente e o

inconsciente das populações católicas e não católicas

portuguesas carregavam. mais tarde, chamaram senhora de fátima a

esses fantasmas. e nunca mais as peregrinações deixaram de

acontecer, desde então para cá. não porque deus ou a virgem

maria, mãe de jesus, aí tivessem aparecido - é

--133-

absolutamente impossível, à luz da teologia cristã -, mas porque

as populações, ainda possessas desses ancestrais fantasmas

religiosos e míticos, assim o exigiam e exigem.

no "vale de lágrimas" em que então viviam e ainda hoje vivem as

Page 167: Fátima nunca mais

populações oprimidas e amedrontadas do país e de grande parte do

mundo, e no "desterro" que continua a ser a sua vida, a senhora

de fátima aparece aos seus olhos, como um refúgio, uma necessidade,

algo de que não podem dispensar. mas apenas como o

toxicodependente não dispensa a droga e como o deficiente motor

não dispensa as canadianas ou a cadeira de rodas em que se

desloca.

na cegueira em que são mantidas, essas mesmas populações nem

sequer se apercebem que até a "salve-raínha"que são levadas a

repetir durante toda a vida como oração, não passa, afinal, de

um insulto à virgem maria e ao deus que ela cantou no

magnificat, o qual, em vez de manter os pobres e pequenos em

"vales de lágrimas" e em "desterros", os exalta, e, em vez de os

empobrecer ainda mais, os enche de bens (lc 1, 52-53).

ao correr para fátima, onde deixam o seu dinheiro sem saberem

para quem e para quê - a senhora de fátima só existe na sua

imaginação, como tal, não come nem bebe nem habita em basílicas

construídas em seu nome -, as populações não dão prova de fé

cristã, como insistentemente diz certo jornalismo acrítico e não

científico, mas de notória falta dela.

porque em vez da libertação para a liberdade e da alegria de

passarem a assumir a vida nas próprias mãos, o que as populações

procuram e encontram em fátima e na sua senhora - que não tem

nada a ver com a virgem maria, mãe de jesus - é o ópio de que

carecem para poderem continuar a suportar a vida sem sentido e

sem dignidade que os senhores do mundo nos impõem a todos, e que

é de privilégios para alguns poucos e de desgraça para a maioria da

humanidade.

fátima, novo sinal?

Page 168: Fátima nunca mais

a nossa igreja, em vez de ter tido a audácia de ver e

compreender as coisas nesta direcção libertadora -bastaria, para

tanto, que permanecesse aberta ao espírito santo e sempre se

--134-

confrontasse com a prática radicalmente libertadora de jesus de

nazaré, o cristo, que passou a sua curta vida a expulsar

demónios, isto é, a libertar as pessoas de tudo aquilo que as

impede de serem elas próprias com dignidade, liberdade e

responsabilidade, em vez de correr a aliar-se aos

demónios-poderes deste mundo, para partilhar dos privilégios que

eles habitualmente garantem a quem lhes fizer o jogo -, acabou

por reconhecer, em 1930, fátima e a serra d'aire como uma

espécie de novo sinal, e lúcia, a sua profeta, ou seja, o novo

moisés, ou até o novo cristo!

e desde essa data, não se cansa de repetir uma frase do cardeal

cerejeira, o pai de fátima - também o congresso não teve

vergonha de a repetir, como se o antigo patriarca de lisboa que

sempre esteve casado com o fascismo, de repente, virasse profeta

-, que não foi a igreja que impôs fátima, mas fátima que se impôs à igreja .

(francamente, senhores!)

depois, na febre de buscar relatos fundantes que impusessem

definitivamente fátima a toda a igreja católica e ao mundo, em

vez de, com coragem martirial, a desmascarar, a hierarquia

católica portuguesa, na pessoa do então bispo de leiria, mandou,

sob obediência, a lúcia que escrevesse as memórias de tudo o que

Page 169: Fátima nunca mais

havia ocorrido naqueles meses de 1917, na cova da iria.

nasceram assim as chamadas "memórias da irmã lúcia" - escritas

muitos anos depois, precisamente entre 1935 e 1941, já o

comunismo soviético, na voz da hierarquia católica portuguesa e

do próprio vaticano, era o papão que comia criancinhas, e o

ditador salazar era o messias salvador da pátria! -, as quais o

congresso aceitou acriticamente como relatos fundadores de

fátima, e às quais pareceu atribuir, para a fé cristã católica,

hoje, um valor superior ao que atribuiu às narrativas

evangélicas do novo testamento, uma vez que nunca teve a audácia

de confrontar o deus da irmã lúcia com o deus de jesus, e a

senhora de fátima com a virgem maria, mãe de jesus e a sua mais

perfeita discípula.

É o que se pode classificar de magna operação demoníaca, para

fazer passar por verdade o que não é mais do que delírio

demencial corporativo, por sua vez, gerador de mais e mais

delírio e generalizada demência.

--135-

mas não há que nos deixarmos enganar porque, como diz o

evangelho de jesus, é pelos frutos que se conhece a árvore (mt

12, 33). e a árvore de fátima não pode ser boa, a julgar pelos

frutos que directamente produziu nas próprias crianças que

protagonizaram o respectivo fenómeno.

basta lembrar que as duas mais novinhas - jacinta e francisco morreram

Page 170: Fátima nunca mais

pouco depois, de fome e de medo, e a delirar com o céu.

e a sobrevivente lúcia é, desde então, uma espécie de

morta-viva, pois foi sempre impedida pelo clero mais fanático da

senhora de fátima de levar uma vida como as demais crianças e

adolescentes da sua aldeia, e acabou por ter de entrar num

convento de total clausura, onde ainda vive em delírios

demenciais quase contínuos, com visões e aparições a toda a hora

e momento, que lhe deixam mensagens tão infantis e tão fora da

realidade actual, que só pessoas mais crédulas do que crentes no

deus de jesus e de maria de nazaré podem acolher, tomar a sério

e gastar tempo e dinheiro a divulgar.

--136-

o milagre da jacintinha

quem lê as "memórias da irmã lúcia", nomeadamente, a primeira, a

terceira e a quarta, nas quais ela nos faz o retrato da

pequenina jacinta e do pequenino francisco, seus primos e

companheiros nas chamadas aparições de fátima, não pode deixar

de ficar horrorizado. os testemunhos foram escritos, bastantes

anos depois da morte das duas crianças, respectivamente, em 1935

e 1941, e em obediência ao bispo de leiria de então.

(há certos homens e certas mulheres que têm destas coisas:

mandam na consciência dos outros, como se fossem ainda mais do

que deus, já que mandar na consciência de alguém é coisa que nem

o próprio deus faz. mas é preciso que se diga, sem hesitações,

que comportamentos destes têm mais a ver com fascismo religioso

do que com espiritualidade cristã. por isso, nunca será de mais

Page 171: Fátima nunca mais

denunciá-los e prevenir as pessoas, para que estejam em guarda.

porque, quando alguém manda na nossa consciência, pode fazer de

nós gato-sapato e ir-nos ao bolso ou à conta bancária com a

maior das facilidades. até em nome de deus! mas não há coisa que

mais ofenda a nossa dignidade humana e cristã, e que também mais

ofenda o santo nome de deus.)

de tudo quanto escreve lúcia sobre jacinta e francisco (quem

ainda não leu o livro não deveria deixar de o fazer, porque ele

é, provavelmente, o mais vigoroso testemunho contra a veracidade

das chamadas aparições de fátima, embora ela, ao escrevê-lo, o

fizesse, evidentemente, com a manifesta intenção de lhes dar

completa autenticidade e fundamento!), uma conclusão salta de

imediato à vista: as duas crianças terão morrido de terror, de

fome e de sede. não porque a família não tivesse os recursos

materiais

--137-

mínimos, que felizmente tinha, mas porque ambas foram

catequizadas para se privar de tudo o que lhes fazia falta, como

forma de sacrifício pela conversão dos pecadores. o que é

objectivamente terrorismo. e um crime contra a vida de duas

crianças indefesas, ainda sem capacidade de resistência crítica.

É de presumir que ninguém individualmente planeou tão grave

crime a frio. mas nem por isso deixa de haver responsáveis

morais, que deverão ser apurados e trazidos à luz do dia. para

evitar que, pelo menos, outras crianças e pessoas adultas,

psiquicamente mais fragilizadas e espiritualmente mais

Page 172: Fátima nunca mais

influenciáveis, venham a ser vítimas, como estes dois irmãos

foram. e que nem tempo tiveram de chegar a ser meninos.

estas memórias da irmã lúcia testemunham um tipo de catolicismo

que tem tudo de terror religioso, e nada, mesmo nada, de boa

notícia ou de evangelho. É o que se pode chamar um catolicismo

anticristão. e terá sido certamente esse tipo de catolicismo um

dos príncipais responsáveis, porventura, até o maior

responsável, pela morte antes de tempo da pequenina jacinta e do

francisco.

É manifesto, nas páginas do livro, que a menina e seu irmão

nasceram e cresceram no seio de um catolicismo assim. foram

obrigados a beber no leite materno uma catequese terrorista que

só falava de castigos de deus, de inferno e de pecadores que vão

para o inferno por causa dos pecados que cometeram, do género imagine-

se! - não ìr à missa ao domingo, falar mal, dizer

asneiras, fazer pequenos furtos, atirar pedras, jurar.

[vejam só este diálogo entre jacinta e lúcia, p. 30: jacinta:

"aquela senhora disse também que iam muitas almas para o

inferno. e o que é o inferno?" lúcia: "É uma cova de bichos e

uma fogueira muito grande (assim mo explicava minha mãe) e vai

para lá quem faz pecados e não se confessa e fica lá sempre a

arder . jacinta: "e nunca mais sai de lá?" lúcia: "não".

jacinta: "e depois de muitos, muitos anos?!" lúcia: "não; o

inferno nunca acaba. e o céu também não. quem vai para o céu

nunca mais de lá sai. e quem vai para o inferno também não. não

vês que são eternos, que nunca acabam?". jacinta: "mas olha,

Page 173: Fátima nunca mais

então depois de muitos, muitos anos, o inferno ainda não acaba?

e aquela gente que lá

--138-

está a arder não morre? e não se faz em cinza? e se a gente

rezar muito pelos pecadores, nosso senhor livra-os de lá? e com

os sacrifícios também? coitadinhos! havemos de rezar e fazer

muitos sacrifícios por eles!"].

por sua vez, os pregadores da chamada "santa missão", então

muito em voga, não faziam as coisas por menos. subiam aos

púlpitos das igrejas paroquiais e arengavam sobre um povo

menorizado, condenado a viver na ignorância e no medo. e o que

diziam destinava-se a deixá-lo ainda mais assustado, mais

aterrorizado, mais oprimido e mais ignorante. porque não era com

cristã teologia, com evangelho e com a palavra de deus, que os

pregadores da "santa missão" construíam os seus sermões, mas com

terrorismo espiritual e moralismo do pior. sem que ninguém,

entretanto, lhes saísse ao caminho e tivesse mão neles. pelo

contrário, valia tudo para garantir igrejas cheias, para ter

populações dominadas, numa palavra, para reforçar o poder

clerical e eclesiástico sobre uma sociedade que só muito a custo

conseguia tornar-se autónoma, relativamente à igreja católica.

aliás, o povo era educado e catequizado pela generalidade do

clero (excepções houve que pagaram caro tamanha audácia

profética e evangélica!) para tudo suportar, tudo sofrer com paciência e

resignação, em desconto dos seus próprios pecados e

Page 174: Fátima nunca mais

dos pecados alheios, na esperança, não de melhores dias na

terra, mas apenas de escapar, depois de morrer, ao fogo do

inferno.

as três crianças-pastores de rebanhos, lúcia, jacinta e

francisco, respiraram este a mbiente agressivamente religioso,

mas sem deus. ou melhor, de anti-deus, já que o deus revelado em

jesus e maria de nazaré, como a mais espantosa e feliz boa

notícia para a humanidade, jamais lhes foi apresentado, nem na

catequese familiar, nem na catequese paroquial, nem nas chamadas

aparições da senhora de fátima, que lúcia garante ter-lhes

acontecido.

de deus, os três apenas sabiam que metia no inferno os pecadores

que não se confessassem, pelo menos, antes de morrer. e sabiam

também que a úmica coisa que o poderia levar a não castigar tão

terrivelmente era eles disporem-se a fazer muitos sacrifícios

pela conversão dos pecadores! (há lá terrorismo maior?)

--139-

mas é o que sobretudo jacinta e francisco, os mais novinhos dos

três, passam a fazer, nomeadamente, depois das chamadas

aparições. aterrorizados com o inferno que, segundo o relato de

lúcia, teria sido mostrado aos três, numa dessas aparições (a

senhora de fátima que isto fez não tem, não pode ter nada a ver

com maria de nazaré, a mãe de jesus, cujo filho, quando menino,

ela ajudou, com desmedida ternura, a crescer em idade, estatura,

Page 175: Fátima nunca mais

sabedoria e graça, e de modo algum cuidou em aterrorizá-lo com

visões doentias e sadomasoquistas de infernos, como a que nos é

descrita pela irmã lúcía nestas suas memórias. mas descansem,

que o inferno que as crianças dizem ter visto nunca existiu.

mais não era do que o inferno das catequeses e das pregações

terroristas, reiteradamente escutadas por elas na casa dos pais

e no templo paroquial).

infelizmente, tais catequeses e pregações terroristas ainda não

morreram de todo. pelo menos, no inconsciente de grande parte do

nosso povo, que, por isso, continua aterrorizado com deus, e se

mostra incapaz de confiar nele como as meninas e os meninos

confiam uns nos outros.

exemplo disto mesmo é o caso daquela nossa concidadã que, por

ocasião do dia mundial do doente, de 1997, realizado, há poucas

semanas, em fátima, as televisões nos mostraram. durante muitos

anos, esteve paralisada numa cama. e agora consegue andar. ao

que diz, "por milagre da jacintinha de fátima".

na sua boca, nem os médicos que, ao longo destes anos a

acompanharam, serviram para nada. nem os medicamentos que sempre

tomou valeram alguma coisa. nem os cuidados dos familiares e

outras pessoas tiveram qualquer valor. nem a enorme vontade dela

própria em voltar a andar representa qualquer força. apenas a

intervenção da "jacintinha" junto de deus.

(mas que deus é este que só atende os clamores dos pobres e dos

doentes, se estes arranjarem bons advogados junto dele, ou boas

cunhas, sempre acompanhadas de avultadas quantias de dinheiro

para os santuários de nomeada, onde as imagens de tais advogados

são cultuadas? então é um deus demoníaco?)

Page 176: Fátima nunca mais

uma coisa, porém, fica ainda por explicar: como é que a

jacintinha, que as catequeses e as pregações terroristas do seu

tempo aliciaram a cometer graves atentados à sua saúde, a ponto

de ela, coitada, acabar por morrer antes de tempo, agora se

mostra tão empenhada em que uma senhora já bem entrada em anos,

volte de novo a andar, depois de anos e anos paralisada numa

cama? e como é que lhe deu a ordem, que ela diz ter escutado.

"levanta-te, que já podes andar", em vez de lhe dizer, como

outrora lhe disseram a ela, "sofre tudo com paciência pela

conversão dos pecadores e para evitar que deus os meta no

inferno"?

(mas ainda bem que, hoje, a jacinta ressuscitada já trocou a

catequese terrorista da senhora de fátima pela catequese

libertadora de maria de nazaré, mãe de jesus, o cristo!)

mas o mais chocante no caso é que todas estas coisas são ditas e

exibidas nos telejornais, sem que a nossa igreja católica, ao

nível dos seus responsáveis maiores, apareça com uma palavra de

sabedoria e de consciencialização-libertação colectiva. até

parece que, depois de ter contribuído decisivamente para a morte

antes de tempo dos dois pastorinhos da aldeia de fátima, através

de catequeses e de pregações terroristas que, naquele tempo,

foram manifestamente as que eles receberam, a nossa igreja agora

nada mais deseja do que poder apresentar ao mundo estas duas

crianças como santas. talvez porque, assim, os chorudos lucros

que o santuário de fátima lhe garante, sem qualquer esforço da

parte dela, e sem quaisquer impostos ao estado, fiquem

definitivamente assegurados. mas então é caso para dizer que

também neste tipo de catolicismo que brada aos céus, o crime

Page 177: Fátima nunca mais

compensa!

--141-

aparições e visões: quem nos livra delas?

mais do que fazer aqui, na universidade nova de lisboa, uma

comunicação de fundo, optei por lançar umas quantas provocações,

para um inevitável debate, sobre o tema que me foi proposto:

"aparições e visões: quem nos livra delas?". eis.

1. se alguma vez virem deus, matem-no de imediato! porque ,

se o não matarem, depressa estão a adorar o fantasma que viram e

que tomaram por deus, e isso é pura idolatria.

se, depois, esse culto se torna público, estão a enganar as

populações teologicamente menos esclarecidas e a torná-las

idólatras e alienadas. o que é uma indignidade de todo o tamanho.

mesmo que, mais tarde, os jornais e as tv apareçam e digam, em

parangonas, que se trata de grandiosas manifestações de fé

(cristã), não acreditem. são grandes manifestações religiosas e,

como tal, manifestações mais ou menos idolátricas. aliás, todas

as religiões, com os seus cultos, têm muito de idolatria.

2. os jornais e as tv que temos em portugal e no mundo em geral,

padecem de enorme défice de teologia cristã. percebem bastante

Page 178: Fátima nunca mais

de futebol e um pouco menos de certo tipo de economia - a

neoliberal - mas de teologia cristã, nada. há honrosas

excepções, evidentemente.

mais parecem cassetes que reproduzem o mesmo, ou seja, o

discurso oficial dos governantes, dos partidos, das

multinacionais ganhadoras e das hierarquias religiosas e

eclesiásticas, nomeadamente, as hierarquias das igrejas que têm

muitos adeptos.

--143-

(pelos vistos, a quantidade, hoje, é que está a dar. mas que

longe se está, por isso, de jesus cristo, para quem, em seu

sábio e fecundo entender, bastará um pouco de fermento para

levedar toda a massa)

os "media", actualmente, são também caixa de ressonância dos

nossos medos colectivos. em vez de serem meios de

consciencialização e de libertação, são o que se pode dizer meio

de comunicação em heresia. perderam a vertente profética que os

caracterizou na origem, praticamente já não denunciam. e muito

menos anunciam alternativas ao estabelecido e dominante.

veiculam o que os promotores dos eventos, dos acontecimentos

encenados, querem que seja dito.

não cuidam, nos acontecimentos que noticiam e como deveria fazer

todo o jornalista que se preza, de apurar a verdade (às vezes, a

verdade é o que os eventos mais escondem; às vezes, os eventos

até são promovidos com o objectivo de esconder a verdade, como

aconteceu, recentemente, com o congresso sobre fenomenologia e

Page 179: Fátima nunca mais

teologia das aparições, em fátima, numa iniciativa da

universidade católica e do santuário local).

são jornalistas com uma grande dose de ingenuidade. ainda não

foram alfabetizados pela modernidade. não lhes nasceu ainda a

consciência crítica. ou então fizeram-lhe o manguito e vendem-se

por um prato de lentilhas.

num e noutro caso, tais jornalistas são um perigo público.

(volto a repetir: há abençoadas e honrosas excepções,

infelizmente, quase sempre na "prateleira" das redacções dos

grandes "media" ! )

3. a deus nunca ninguém o viu. nem verá. É uma impossibilidade

teológica. apareça o primeiro teólogo cristão a desmenti-lo.

só vemos os fantasmas que imaginamos, que criamos nas nossas

imaginações mais ou menos delirantes e demenciais. nem jesus,

filho de maria e de josé, alguma vez viu a deus!

na hora da verdade maior que foi a da sua morte na cruz (a sua

hora, como ele sempre se lhe refere!), o que jesus vê é o

abandono total, a ausência total de deus. daí o seu grito,

eventualmente

--144-

chocante para ouvidos pios, "meu deus, meu deus, por que me

abandonaste?".

gostemos ou não, é esta a nossa condição humana.

a deus podemos chegar apenas pela fé. por sinais. por pegadas na

Page 180: Fátima nunca mais

areia. que nunca são ele. por isso, quem disser que viu a deus é

mentiroso. ou está a delirar. em vez de ser tratado como vidente

(há sempre organizações religiosas que se aproveitam, senão a

igreja católica romana, a igreja ortodoxa, como no caso da

ladeira do pinheiro, ou, agora, as novas igrejas, mais

conhecidas por seitas), deve ser tratado no psiquiatra. ou, se é

inofensivo, deve ser tratado com tolerância e muita compreensão.

mas nunca é para ser levado a sério.

(vejam, a este propósito, a vergonha que os nossos bispos têm

feito com a lúcia de fátima. desde que perdeu os primitos,

jacinta e francisco - é caso para dizer que nem a senhora de

fátima lhes valeu! -, foi sequestrada e nunca mais pôde fazer

uma vida vulgar e comum. não é de estranhar por isso, que ainda

hoje ela viva em delírios quase permanentes. o mais espantoso é

que até o papa em roma, cardeais e quase todos os bispos da

nossa igreja católica a tomam a sério. sinal de que há grandes

interesses em jogo, interesses ideológicos, moralistas, de

influência religiosa e, sobretudo, interesses financeiros).

nem jesus vê deus. e, quando um dos doze, filipe, lhe pede

"mostra-nos o pai" (jo 14, 8), ele não lho mostra, porque não

podia. dá-lhe então a volta e aponta-lhe o caminho correcto:

"filipe, quem me vê, vê o pai". isto é, não há outra maneira de

ver a deus, senão no corpo, no rosto do outro, mulher ou homem.

e podemos até dizer que, quando no rosto do outro, cigano que

seja, e nomeadamente no rosto desfigurado das vítimas humanas,

vemos uma irmã, um irmão, deus está aí presente, como sarça

ardente; mas a ele nunca o vemos.

da visão de deus, temos de dizer o que joão, discípulo de jesus,

Page 181: Fátima nunca mais

diz do amor a deus. "se alguém disser que ama a deus, a quem não

vê, e não ama o irmão a quem vê, é mentiroso e a verdade não

está nele" (ljo 4, 20). igualmente, se alguém diz que vê a deus,

que jamais pode ser visto com estes nossos olhos humanos (1jo 4,

20, E não vê o irmão que tem diante dos olhos, é mentiroso. ou

está a delirar.

--145-

(o que aqui se diz de deus, vale, por maioria de razão, para as

visões ou aparições de todas as nossas senhoras, de todos os

santos e de todos os anjos e arcanjos...)

tudo é fantasia e delírio, reprodução do mesmo. ou seja, o que

os chamados videntes (quase sempre, as videntes!) vêem é o que

têm gravado no seu inconsciente e que lhes entrou pelos olhos

(imagens), pelos ouvidos (narrativas de hierofanias e

teofanias), ou que herdaram nos cromossomas da mãe e do pai que,

por sua vez, os herdaram dos seus pais e assim sucessivamente.

quando há uma ruptura no cérebro (acontece com mais frequência

nos tempos de crise individual ou colectiva, e nas mudanças de

século e de milénio), o que estava lá armazenado, adormecido,

silenciado, salta cá para fora e a pessoa torna-se uma espécie

de gravador- vivo ou um vídeo vivo. ouve e reproduz sons e vê

imagens, mas sons e imagens que fazem parte do seu próprio

inconsciente; não estão fora dessa pessoa, como coisa real.

Page 182: Fátima nunca mais

a pessoa que se diz vidente pode ser sincera (geralmente, é o

que sucede), mas o que ela vê e ouve não está fora dela, mas

dentro dela, no seu inconsciente. por isso, as igrejas façam o

favor de nos poupar e não venham a correr dizer-nos que estamos

perante uma manifestação/aparição/visão de deus ou de nossa

senhora. não estamos.

4. em nome da sanidade mental dos indivíduos e dos povos,

precisamos urgentemente de ter coragem para queimar as nossas

bíblias todas. elas, mais do que tudo, são responsáveis por

todos os delírios demenciais que, ao longo dos tempos, também

hoje, têm atacado certas pessoas autopromovidas a videntes.

as suas páginas estão cheias de narrativas, exegeticamente,

chamadas hierofanias e teofanias, aparições de deus em locais

que são logo promovidos a espaços sagrados e onde, depois, se

levantam templos, nos quais as populações são roubadas,

enganadas, sacrificadas, mantidas na menoridade, passivas,

dependentes de sacerdotes (homens do sagrado) e de hierarquias

(homens do poder sagrado) e drogadas com overdoses de ópio que

as mantêm resignadas e submissas.

o que seria do mundo, com tantos e tantos milhões de

empobrecidos e de excluídos, a sobreviver em condições de

Page 183: Fátima nunca mais

--146-

indignidade, no lixo, enquanto minorias privilegiadas morrem

afogadas no luxo, se não fossem as religiões a anestesiar/

/domesticar/resignar as populações? não seria um mundo

ingovernável?

ora, as nossas bíblias, tal como estão redigidas, com uma

linguagem quase sempre simbólica, poética, teológica, são

responsáveis, involuntariamente embora, pelos delírios

demenciais dos que, através dos tempos, se têm por videntes.

se o hebreu moisés viu a deus, por que não havemos de o ver nós

também? se deus falou a abraão, por que não há-de falar também a

nós? se um anjo apareceu e falou a maria e a josé, em sonhos que

seja, como se diz que aconteceu com este, por que não há-de

aparecer também, por exemplo, a três pastorinhos de fátima?

dirão: mas aquelas narrativas bíblicas, é preciso saber

interpretá-las. É verdade. no entanto, está visto que elas

marcam as pessoas que as lêem ou ouvem ler, impressionam, como

ferro em brasa, a imaginação de crianças e adultos mais ou menos

criançados. e qual o resultado?

ainda hoje, até intelectuais da nossa praça, ateus que sejam,

mesmo depois do novo pentecostes cristão que foi a modernidade,

continuam a referir-se a essas narrltivas, como se elas fossem

relatos jornalísticos... quanto mais as populações iletradas ou

quase, ou que só lêem jornais desportivos ou revistas de

coração!...

urge pois queimar as nossas bíblias! não temos coragem? também

Page 184: Fátima nunca mais

não é isso, à letra, que eu pretendo, evidentemente. mas

dizê-lo, assim, com esta crueza toda, é preciso para que todos

nos apercebamos de que temos de abordar todas as suas narrativas

com cautela.

a verdade bíblica não são os fios com que se tecem as suas

narrativas, por sinal, verdadeiras jóias literárias, mas o que,

com esses tecidos ( textos) se quer dizer-revelar. as narrativas

apenas pretendem introduzir-nos no mistério, chamar a nossa

atenção para a presença invisível e gratuita, mas não supérflua

(de deus), mistério e presença que nos fazem ser cada vez mais

humanos, solidários e fraternos.

as narrativas bíblicas são o dedo que aponta para a lua, não são

a lua! apontam para o mistério, não são o mistério!

--147-

despertam-nos para a presença que nos acompanha e nos potencia

para sermos integralmente nós próprios, não são a presença.

5. a terminar fica a pergunta: aparições e visões, quem nos

livra delas?

Deveriam ser as igrejas, mas estas, convertidas em empresas

multinacionais de religião (não há nenhuma que não faça negócio

em nome de deus; e então as chamadas novas igrejas, nem se

fala!...), preferem aproveitar-se das visões e aparições.

Page 185: Fátima nunca mais

algumas até se apresentam à gente autenticadas por uma

aparição/visão que teria acontecido - tinha que ser! - ao seu

fundador (geralmente, alguém com queda para o negócio...).

ora, se as igrejas falham e, em vez de nos livrarem das visões e

aparições, ainda procuram aproveitar-se delas, agarremo-nos ao

bom senso. e resistamos por nós próprias e nós próprios. em nome

do bom senso e da sanidade mental.

por outro lado, é legítimo esperar que teólogas e teólogos

cristãos que não comem à mesa das hierarquias eclesiásticas

(infelizmente, são sempre poucos, sobretudo, em tempos de

generalizada crise e de instabilidade, como são estes nossos

tempos de fim de século e de milénio), e outras e outros

intelectuais honestos, saltem corajosamente para a frente de

batalha da libertação para a liberdade. em nome do mesmo bom

senso e da mesma sanidade mental. também em nome da inteligência

e da dignidade humana. e, sobretudo, em nome dos empobrecidos e

iletrados que, no meio de tudo isto, são sempre os mais

"comidos" pelas visões e aparições (já não lhes bastava ser

pobres e mantidos em estado de subdesenvolvimento, há-de

aparecer sempre quem se aproveite da sua condição de imerecida

miséria e imerecida ignorância, para os empobrecer ainda mais e

para os manter ainda mais no obscurantismo. e tudo isto, que é

objectivamente crime e dos maiores, fica sempre impune, a

pretexto de que se trata de religião!).

este combate pode ser martirial, isto é, pode custar-nos a

própria vida. mas que importa se é libertador para nós e para

toda a humanidade? por outro lado, se formos por esta via ou

caminho, não estaremos nunca sozinhos. nem sequer somos os

Page 186: Fátima nunca mais

--148-

primeiros. os profetas bíblicos e, sobretudo, jesus, o cristo, e

tantas outras e outros, até ateus, já nos precederam neste mesmo

combate e neste martírio. entremos então corajosamente nele, com

alegria e esperança.

--149-

manifestação de fé ou de paganismo?

com a chegada do mês de maio, volta às estradas portuguesas o

triste e vergonhoso espectáculo dos chamados peregrinos de

fátima. das mais diversas aldeias do país, com destaque para as

aldeias que integram paróquias das dioceses de coimbra, aveiro,

porto, braga e viana do castelo, ei-los, aos grupos, de todas as

idades e de ambos os sexos, a percorrer, a pé, os muitos

quilómetros que os separam de fátima.

se se cumprìr o ritual dos anos anteriores, lá teremos, pelas

proximidades do dia 13, algumas e alguns destes muitos

peregrinos a testemunhar, nos telejornais, os motivos que os

levaram a meter pés a caminho até fátima. e voltaremos a ouvir

da boca de jornalistas sem qualquer formação teológica

ilustrada, que todas estas mulheres e todos estes homens, nossos

conterrâneos, vão ali movidos pela fé.

entretanto, da parte das igrejas locais a que tais peregrinos

Page 187: Fátima nunca mais

pertencem, nomeadamente, da parte dos respectivos bispos e

párocos, ninguém costuma aparecer a dar a cara, para dizer

desassombradamente que este fenómeno pode ter muito a ver com

rituais de velhas e novas religiões do paganismo, que incitavam

e incitam os seus fiéis a práticas sacrificiais em honra de

míticas deusas e deuses, mas que não tem nada a ver com a fé

cristã, nem sequer com a fé simplesmente humana.

É um fenómeno que envolve apenas mulheres e homens,

universitários que sejam, cujo inconsciente continua possesso ou

prisioneiro de ancestrais medos, os quais, enquanto não forem

radicalmente expulsos pela verdade que liberta - "eu sou a

verdade", diz jesus, no evangelho de joão (14, 6) -, continuarão

--151-

a fazer daquelas e daqueles em quem permanecerem alojados

gato-sapato, concretamente, levando-os a realizar práticas

religiosas sacrificiais, as mais aberrantes e desumanas.

É verdade que desde o princípio, ou seja, desde abraão, a fé

cristã sempre se assumiu como via ou caminho - deixa a tua

terra, os teus parentes e a casa de teu pai, e vai para a terra

que eu te vou mostrar (gn 12, 1) -, e o próprio jesus de nazaré,

Page 188: Fátima nunca mais

o homem de fé por antonomásia, chegou a proclamar que, ao

contrário das raposas que têm tocas e das aves do céu que têm

ninhos, ele não tinha onde reclinar a cabeça (mt 8, 20); sinal

inequívoco de que a fé cristã nunca se deu bem com vidas

instaladas e autistas, que só se ouvem a si próprias; pelo

contrário, tem tudo a ver com aquele movimento que nos faz saír

de nós próprios, até fazer de nós mulheres e homens em contínua

relação-comunhão.

mas é também claro que o caminho que a fé cristã percorre, na

pessoa das mulheres e dos homens que por ela estão possuídos e

animados, nunca é o que leva das suas casas aos templos e dos

templos a suas casas, muito menos o que, hoje, leva das aldeias

e cidades do nosso país e do mundo ao santuário da senhora de

Fátima, e deste às mesmas aldeias e cidades, mas apenas o

caminho que leva de cada uma e de cada um de nós aos demais,

nomeadamente, aos mais empobrecidos e excluídos, aos mais

marginalizados e desprezados pela sociedade, a começar pelos

seus membros mais fanaticamente religiosos, estilo fariseus do

tempo de jesus de nazaré.

quer isto dizer que a fé cristã, onde existir, anima cada homem

e cada mulher a saír de si mesmo, do seu egoísmo ou torre de

marfim, para que se atreva a fazer-se próxima e próximo dos

demais. É a grande força-dom de deus, mas daquele deus da vida

revelado em jesus de nazaré, que sempre nos pergunta "onde está

o teu irmão? que fizeste do teu irmão?" (gn 4, 9), e que, por

isso, leva quem dela estiver animado a criar pontes entre todos

Page 189: Fátima nunca mais

os homens e todas as mulheres, seja qual for a cor da sua pele,

credo, nacionalidade, condição social ou comportamento moral,

numa cada vez mais alargada rede de relações fraternas e

solidárias, com vista à edificação duma terra/sociedade cada vez

mais humana e solidária, o mesmo é dizer, bem à altura de

--152-

satisfazer todas as legítimas aspirações e necessidades reais da

humanidade, no seu todo.

mas não faz falta grande engenho e arte, para se perceber por

que é que nem os bispos nem os párocos de portugal têm saído

alguma vez, a terreiro com estes e outros desassombrados

esclarecimentos sobre fátima e sobre as múltiplas e sucessivas

peregrinações, a pé ou de carro, que, desde 1917, para lá se

fazem, e que configurariam uma pastoral evangélica, de cariz

fecundamente conscientizador e libertador.

É que eles próprios são parte interessada em fátima, no seu

santuário e na senhora que lá pontifica, como a mais recente

metamorfose da ancestral grande mãe dos deuses do paganismo

pré-cristão e que, pelos vistos, dois mil anos depois de cristo,

ainda não morreu de todo; pelo contrário, sempre renasce numa

variada gama de nossas senhoras disto, nossas senhoras daquilo,

uma espécie de pronto-a-vestir de nossas senhoras para todos os

gostos, feitios e necessidades, as quais, em lugar de servirem a

humanidade mais desfavorecida, exigem dela, a tempo e fora de

tempo, cultos religiosos, os mais exóticos e extravagantes,

práticas sacrificiais, as mais absurdas e sádicas, e, acima de

Page 190: Fátima nunca mais

tudo, dinheiro, muito dinheiro.

para assumirem, até às últimas consequências, o ministério

profético de evangelizar os pobres, missão primeira de um bispo

e de um pároco que explicitamente façam referência a jesus

cristo - é sabido que jesus acabou crucificado, por ter nascido

e vindo ao mundo para dar testemunho da verdade e por jamais, em

momento algum da sua vida, ter traído esta missão que lhe fora

confiada pelo deus da vida e que ele, uma vez ressuscitado,

confiou também a todo o homem e mulher que nele cressem e com

ele estivessem dispostos a cooperar activamente -, os bispos e

os párocos terão, primeiro, de demarcar-se de fátima, do seu

santuário e da senhora que lá pontifica, como deusa que se

alimenta de gente, particularmente, de gente empobrecida,

oprimida, assustada, subdesenvolvida e confrangedoramente

ignorante nas coisas de deus, pelo menos, do espantoso e

misericordioso deus da vida, já que do deus da religião ou do

deus da senhora de fátima, ela, para seu mal, conhece bem de

mais.

--153-

ora, é notório que não é por aí que, hoje, avançam os bispos e

os párocos católicos portugueses. pelo contrário, é ver como

todos, à uma, com mais ou menos entusiasmo, e com mais ou menos

ignorância teológica e alguma ingenuidade, aceitam fátima e o

tipo de cristianismo católico que lá se realiza, totalmente à

Page 191: Fátima nunca mais

revelia do evangelho ou boa notícia de deus que jesus foi e

continua a ser entre nós e connosco, e também à revelia do que

de melhor trouxe à nossa igreja católica romana o concílio

vaticano ii, e que, bem vistas as coisas, mais não é do que uma

reprodução dos cultos sacrificiais que, antes de cristo, as

populações oprimidas eram levadas a realizar em honra de deusas

e deuses e, através dos quais, eram mais facilmente mantidas na

resignação e na apatia, mesmo que o seu dia-a-dia fosse um

rosário de frustrações e um vale de lágrimas.

mas, é claro, não foi para alimentar estes cultos idolátricos e

sacrificiais - desde o princípio, segundo o relato do génesis

(3, 1-7), a grande tentação que sempre tem afectado a humanidade

e a tem impedido de ser, como deus quer, uma humanidade liberta

para a liberdade e uma humanidade responsávelmente protagonista

na história - que, há dois mil anos nasceu o movimento de jesus,

do qual veio depois a nascer a igreja.

tal como jesus cristo, também a igreja que se reivindica do seu

nome está aí, enquanto durar a história, não para fazer religião

e, com ela, servir doses e doses de espiritualismo-ópio que

ajude a humanidade a suportar o vale de lágrimas em que a ordem

mundial dominante a condena a viver, mas sim para, a tempo e

fora de tempo, evangelizar os pobres, o mesmo é dizer, libertar,

pelo diálogo maiêutico, todas as potencialidades fraternas e

solidárias, mais ou menos adormecidas e alienadas em todos e

cada um dos seres humanos, de modo que eles se descubram irmãs e

irmãos uns dos outros, no mesmo acto em que se descobrem filhas

e filhos de deus, que os criou e que, por isso mesmo, só pode

ser o deus da vida.

Page 192: Fátima nunca mais

se ela o fizer, teremos então a incontida alegria de vermos essa

mesma humanidade, de que a igreja sempre deveria ser a parcela

mais consciente, a crescer na audácia de ser, progressivamente,

uma humanidade livre e protagonista, fraterna e solidária, cada

vez mais igual àquela que o mundo pôde ver

--154-

plenamente realizada em jesus de nazaré, o cristo de deus. e,

por ele, nele e com ele, também em maria, sua mãe e discípula,

mulher de carne e osso já ressuscitada, que, felizmente, não tem

nada a ver com a mítica senhora de fátima, nem com o culto

idolátrico e sacrificial que as populações desesperadas lhe

promovem. e que, objectivamente, constitui um insulto à memória

da mãe de jesus e ao deus da vida que ela tão belamente cantou

no seu magnificat (lc l, 46-55).

--155-

21- Fátima: a glória da nossa terra ou a nossa vergonha?

Fátima, com a sua cruz alta, a convidar simbolicamente o povo ao

sofrimento e à sua aceitação resignada; com o seu espaçoso

recinto, por onde continuamente rastejam penitentes-pagadores de

Page 193: Fátima nunca mais

promessas; com as suas bocas de mealheiro-cofre, disfarçadas de

caixas de esmolas, por onde entram rios de dinheiro oferecido

por milhares de peregrinos, cultural e teologicamente,

subdesenvolvidos; com o seu grandioso e esmagador santuário,

servido, no exterior, por uma soberba escadaria e um enorme

altar, onde, todos os dias 13, de maio a outubro, pontifica a

hierarquia eclesiástica católica, constituída exclusivamente por

homens celibatários; com a sua capelinha das aparições,

ferozmente anticomunista, antiprotestante e antifestiva; e,

sobretudo, com a sua senhora toda branca, sempre de mãos postas,

vestida até ao chão, e que não ouve, não fala, não come, não ri,

não chora, não se comove, não caminha, não acena a ninguém, não

tem coração nem entranhas de misericórdia, e que até para saír

da capela exige que alguns seres humanos se metam por debaixo do

seu andor e a carreguem aos ombros, numa postura que,

simbolicamente, tem tudo de indignidade e de escravidão-é um

local de graça, ou pedra de tropeço? É epifania de deus, ou uma

bem concebida e bem montada multinacional de religião que,

habilmente, sabe tirar partido, sobretudo, financeiro, da

situação de pessoas e populações carregadas de aflições e

problemas sem solução à vista? É ocasião de encontro com deus e

com os outros ou ocasião de alienação individual e colectiva? É

centro de espiritualidade libertadora e geradora de fraternidade

solidária ou uma espécie de grande superfície de

--157-

Page 194: Fátima nunca mais

comércio religioso e de espiritualisnw desencarnado, feito de

devoções, de terços recitados em diferentes línguas,

de missas em série e sem eucaristia, de assustadas confissões

individuais sem consequente conversão ao evangelho de jesus, de

cânticos sem poesia e sem mensagem, numa palavra, um

espiritualismo sem espírito santo? É uma experiência que ajuda a

despertar a fé cristã, e, consequentemente, promove a

libertação, o desenvolvimento e a dignificação das pessoas e das

populações ou é um sítio onde a fé cristã é devorada pela

religião e pela idolatria? É a glória da nossa terra ou a nossa

vergonha?

o jornal fraternizar tem consciência do melindre das

questões, mas não pode deixar de as formular. fá-lo

animado de um grande amor à igreja e à verdade do evangelho de

jesus cristo. não com a leviandade de quem ridiculariza, mas com

a seriedade de quem procura viver, permanentemente, à escuta dos

sinais dos tempos e do que o espírito está a dizer às igrejas.

usa da nossa vergonha ca desde os tempos do cardeal cerejeira e do seu

amigo salazar, tem-se dito e repetido que foi fátima que se impôs à

igreja (a igreja católica romana, já se vê, uma vez que as

outras igrejas cristãs, como tais, não têm lá entrada!) e não a

igreja que impôs fátima. a afirmação, se calhar, até é

Page 195: Fátima nunca mais

verdadeira, pelo menos, em parte.

mas, ao dizer e repetir isso, não nos damos conta de que é

precisamente esse facto a principal causa da nossa vergonha.

porque a igreja deveria ter sido capaz de resistir a fátima e à

sua matriarcal senhora ou grande deusa. deveria, em nome da fé

cristã e do evangelho, por cujo anúncio é institucionalmente

responsável, ter recusado liminarmente as chamadas aparições aos

pastorinhos, bem como a mensagem de terror e manifestamente

anti-evangélica que lhes é atribuída.

em lugar de consentir que fátima se lhe impusesse e, agora, até

se orgulhar desse facto, deveria ter-lhe resistido com todas as

forças, mesmo que, por via disso, portugal deixasse de ser, como

é, um país maioritariamente católico.

--158-

porque não o fez (pelo contrário, acabou, em 1930 - quatro anos

depois da implantação do famigerado estado novo de salazar - por

aceitar/fomentar fátima e reconhecer como autênticas as suas

aparições), continuamos, hoje, a ser um país maioritariamente

católico, sim senhor, mas muito pouco cristão; por isso, um país

subdesenvolvido, uma espécie de portugal de pequeninos, sempre

de mão estendida aos santos e à "senhora" europa, à espera de

milagres e de subsídios, muito devotos da senhora de fátima, mas

confrangedoramente despojados de conhecimento bíblico-teológico,

campeões em romarias religiosas, onde não faltam foguetes, fogo

Page 196: Fátima nunca mais

de artifício, música pimba, comes e bebes, mas manifestamente

incapazes de saciarmos alguma das verdadeiras fomes que nos

devoram por dentro, nomeadamente, as fomes de afecto, de

ternura, de companhia, de beleza, de cultura, de liberdade, de

participação e de autêntica festa.

fátima, a tentação

infelizmente, só há bem pouco tempo é que a maior parte da

população portuguesa começou a ouvir dizer - as catequeses

paroquiais sempre lho silenciaram! -que se pode ser

cristã/cristão católico romano e não acreditar nas chamadas

aparições de fátima. aliás, o jornal fraternizar tem sido, neste

particular, um dos portadores desta boa notícia.

mas, agora, é preciso, imperioso e urgentemente, dar um passo

mais, e passar a proclamar com audácia, que fátima e a sua

senhora não só não fazem parte da fé cristã, como até constituem

uma tentação e são, porventura, o maior perigo e o maior

obstáculo ao despertar e ao desenvolvimento da genuína fé cristã

no nosso país e no mundo.

É verdade que muita gente, quase em desespero de causa,

contra-argumenta: mas: e o milagre do sol? não prova nada? não

foi a confirmação da verdade das aparições de fátima?

para o jornal fraternizar, o milagre do sol é uma narrativa em

tudo idêntica às narrativas de milagres que os fanáticos dos

cultos em honra das deusas das religiões agrárias e pré-cristãs

do paganismo não se cansavam de proclamar aos quatro ventos, na

esperança de, assim, conseguirem novos adeptos.

Page 197: Fátima nunca mais

--159-

felizmente, não é por aí que vai a fé cristã. nos milagres, a

fé cristã vê manifestação de poder demoníaco, que oprime e

aliena as pessoas, desperta e alimenta medos, tolhe movimentos

libertadores e reivindicativos, fomenta submissão e gera

passividade.

basta ver o que, a propósito, escreve o livro do apocalipse, no

capítulo 13, sobre os milagres que a "fera", controlada pelo

"dragão" - uma espécie de anti-deus - realiza no império

izomano, para mais facilmente subjugar as populações.

ora, o deus que se nos revelou em jesus cristo e em maria, sua

mãe, recusa a autoria dos milagres, o que, só por si explica por

que as populações não evangelizadas estão sempre prontas a

correr para as deusas e os deuses do paganismo, estilo senhora

de fátima, mais do que a acolher deus e o seu espírito, no mais

dentro da sua consciência.

mas deus, ao contrário dos deuses e das deusas, recusa os

milagres, pela simples razão de que a sua glória não consiste na

subjugação/humilhação do ser humano, mas na sua integral

libertação/exaltação e plena autogestão. por sinal, duas coisas

que a senhora branca de fátima jamais conseguiu fomentar nas

multidões subdesenvolvidas e tolhidas por medos ancestrais que,

infantilmente, se lhe dirigem.

por isso, tem de se concluir que, por maiores e numerosos que

possam ser os milagres atribuídos à senhora de fátima, ela não

tem a inconfundível marca de deus - e que, historicamente, não é

Page 198: Fátima nunca mais

outra senão a libertação da alienação para a liberdade fraternal

e solidária (cf. mt 12, 28 e gálatas 5, 1) -, pelo menos, do

deus de jesus e de maria. tem, isso sim, tudo a ver com a "fera"

manipulada pelo "dragão" (ou anti-deus), de que fala o

apocalipse, capítulo 13.

--160-

22

teologicamente, um vómito .

os dois textos que o jornal fraternizar apresenta a seguir são

não só eventualmente chocantes, mas sobretudo, eventualmente

repugnantes, asquerosos, repelentes. e, do ponto de vista da

teologia cristã, são um vómito. um escarro.

apesar disso, nunca foram denunciados pela nossa igreja

católica. nem pela respectiva universidade. tão-pouco pela sua

faculdade de teologia. pelo contrário, sempre contaram com o

canónico aval da hierarquia da nossa igreja. e, ainda hoje, são

apresentados por ela, como se fossem a melhor actualização do

próprio evangelho de deus que a humanidade, um dia, pôde

conhecer, de forma plena e definitiva, em jesus de nazaré, o

cristo. quando, afinal, bem vistas as coisas, tanto um como

outro são a sua negação pura e simples.

urge, por isso, denunciá-los. combatê-los. desautorizá-los. e

ter a audácia de apresentar, em seu lugar, o autêntico evangelho

de deus que ajude a libertar de raíz o inconsciente colectivo

Page 199: Fátima nunca mais

das populações do mundo, nomeadamente, das populações

portuguesas e ocidentais que, durante gerações e gerações, foram

sistematicamente massacradas por uma catequese clérical

terrorista, como a que estes dois textos veiculam, e da qual

muitas e muitos de nós continuamos, ainda hoje, infelizmente,

mais ou menos prisioneiros. pior tolhidos. vítimas, por isso, de

ancestrais medos que nos levam a comportamentos religiosos/sacrificiais,

os mais aberrantes em santuários e

recintos, como os da senhora de fátima, por exemplo, que temos

como casas de oração, mas que não passam de covis de ladrões,

onde, em nome de deus, as populações mais oprimidas e assustadas

são, descaradamente,

--161-

Roubadas dos seus bens materiais e - o que é pior - da própria

alma, isto é, da própria identidade.

Ambos os textos são de autores portugueses. O primeiro, intitulado "sobre

o inferno", é a 12. meditação de um

livro que no século passado e nas primeiras décadas deste

século, foi sucessivamente reeditado, lido e pregado até à

exaustão, nas paróquias católicas do país.

chama-se "a missão abreviada" e foi escrito pelo

pe. manoel josé gonçalves couto, nascido a 1 de agosto de 1819,

na freguesia de telões, concelho de chaves, e falecido a 1 de

setembro de 1897.

Page 200: Fátima nunca mais

a obra estava há muito esgotada, mas a comissão

de festas daquela freguesia, referente ao ano de 1995,

reeditou-a tal e qual - até com a mesma grafia - como ela saíu

das mãos do autor, e onde não falta sequer o "aditamento" que o

próprio pe. manoel do couto havia já introduzido nas últimas

edições.

o segundo texto, bem mais recente, é oficialmente

atribuído à irmã lúcia, a única sobrevivente das chamadas

"aparições de fátima", em 1917. tem por título "terceira

memória" e faz parte do livro "memórias da irmã lúcia".

trata-se duma carta que ela dirige ao então bispo

de leiria, d. josé alves correia da silva, na qual, a pretexto

de lhe contar certos pormenores sobre a pequenina jacinta,

aproveita para relatar a chamada visão do inferno que teria

ocorrido durante a chamada terceira aparição da senhora de

fátima. fala também da devoção ao imaculado coração de maria, da

qual, pelos jeitos, estará dependente a paz no mundo e a

salvação "dos pobres pecadores"!.

cristianismo terrorista

com a publicação destes dois textos, o jornal

fraternizar pretende mostrar que o cristianismo das chamadas

Page 201: Fátima nunca mais

aparições de fátima mais não é do que a reprodução do

cristianismo terrorista veiculado pelo livro "a missão

abreviada" e pelas pregações da

chamada santa missão que, durante décadas,

nomeadamente a seguir à implantação da república, por estas

nossas paróquias de portugal fora, não só reproduziram à letra e

ao vivo a doutrina

--162-

desse livro, como até ampliaram em muito e de forma mais ou

menos dramatizada e teatralizada as múltiplas expressões de

terror nele contidas.

quem, hoje, lê a meditação sobre o inferno, apresentada pelo pe.

manoel do couto, na sua "missão abreviada", e depois, sem

solução de continuidade, lê o relato da visão do inferno que é

suposto ter sido escrito, em 1941, pela irmã lúcia, numa altura

em que ela se encontrava, há anos, enclausurada num convento

fora de portugal, mais concretamente, na cidade de tui (galiza),

não pode deixar de reparar nas semelhanças entre uma e outra

visão. as semelhanças são tantas que pode dizer-se que o texto

sobre a visão do inferno atribuído à irmã lúcia mais não é do

que uma reprodução, em poucas palavras, da meditação do pe.

manoel do couto.

temos, igualmente, de dizer que a visão do inferno que a senhora

Page 202: Fátima nunca mais

de fátima teve o mau gosto de apresentar às crianças, na chamada

aparição de julho de 1917, não tem qualquer originalidade; pelo

contrário, coincide em tudo com a visão que, largas dezenas de

anos antes, o pe. manoel do couto, sem precisar de qualquer

"aparição", já havia apresentado às freiras do convento de

chaves, onde, durante toda a sua vida de padre, foi capelão, e

que, depois, através do livro que escreveu e das pregações da

santa missão que fanaticamente também ajudou a promover, acabou

por se espalhar por todo o país.

mas não é só a visão do inferno que coincide num e noutro

relato. também coincide a insistência que num e noutro se faz

sobre os "pecadores" e o tipo de "pecados" que levam fatalmente

ao inferno, se quem os cometer deles se não arrepender a tempo,

com verdadeira contrição.

assim como coincide a importância que um e outro texto atribuem

à "senhora", para que os pecadores, já condenados ao inferno,

por simplesmente terem faltado à missa ao domingo, ou por terem

pronunciado palavras feias, ou por terem tido alguma vida sexual

- até namorar era perigoso! -, possam ainda alcançar a graça do

perdão e, assim, escapar do seu fogo "devorante".

a única diferença, aqui, é que o texto do pe. manoel do couto

fala da senhora como "mãe das graças", ao passo que o relato

--163-

atribuído à irmã lúcia fala tão-só do "imaculado coração de

Page 203: Fátima nunca mais

maria" (é como se, com o tempo, o resto do corpo da "senhora"

tivesse perdido importância salvífica!).

basta-lhes fátima

como o livro do pe. manoel do couto é que está na origem do tipo

de cristianismo que, mais tarde, as chamadas aparições de fátima

vieram, definitivamente, canonizar e fazer difundir por toda a

europa e até por muitas outras partes do mundo, é ele que mais

precisa de ser criticamente estudado e aprofundado.

espanta, por isso, que, até hoje, ninguém tenha saltado a

terreiro, por parte da hierarquia católica e da própria

universidade católica, para desmascarar o tipo de cristianismo

manifestamente anti-evangélico e desumano que o referido livro

difunde e que, ainda hoje, é o que mais "faz" o nosso

inconsciente colectivo católico. pelo contrário, tanto uma como

outra parecem até apostadas em contribuir para a sua

perpetuação, terceiro milénio além. .

É certo que, hoje, nem os nossos bispos, nem a universidade

católica aparecem aí empenhados na difusão do livro do pe.

manoel do couto. tão-pouco estão empenhados na promoção, no

terreno paroquial católico, da pregação das suas terríficas

santas missões. caíriam no ridículo, se o fizessem.

mas também é certo que não precisam de o fazer, para alcançarem

o mesmo resultado. basta-lhes estar, como infelizmente estão, de

corpo e alma com a senhora de fátima que, desde 1917, fez seu o

cristianismo terrorista da "missão abreviada", mediante o

recurso a um hábil contexto popular e mítico de aparições, que

Page 204: Fátima nunca mais

mais não são do que macabras reproduções das encenações

teatralizadas pelos pregadores da santa missão, nas paróquias

católicas do país.

além disso, tudo o que de verdadeiramente substancial é hoje

atribuído às míticas aparições de fátima só veio a ser

conhecido, mais de vinte anos depois, através das chamadas

"memórias da irmã lúcia", a única das três crianças que

sobreviveu à catequese terrorista da senhora de fátima, mas a

quem, entretanto, certos eclesiásticos, manifestamente

interessados na "verdade" das

--164-

"aparições", nunca mais deixaram que levasse uma vida como as

outras raparigas da sua aldeia. e, por isso, acabaram por fazer

dela uma freira quase analfabeta - tem apenas a quarta classe do

ensino primário, talvez, porque a senhora de fátima, que

prometeu levá-la para o céu, esqueceu-se de lhe recomendar que

estudasse, abrisse os olhos e se desenvolvesse! - num convento

de clausura total; por isso, sem mais qualquer contacto com o

mundo, sob o nome de irmã lúcia de jesus e do coração imaculado.

ora, foi a esta mulher, completamente sequestrada e manipulada

por alguns eclesiásticos, a quem, para cúmulo, ela pensa que

deve voto de obediência - entre eles, estava, na altura, o pe.

josé bernardo gonçalves, um dos seus directores espirituais,

falecido em 1966 -, que, a partir de 1935, foi dada a ordem, em

nome da "santa obediência", para que escrevesse as suas

"memórias" da infância, das quais também faz parte,

Page 205: Fátima nunca mais

evidentemente, a "terceira memória" que o jornal fraternizar

reproduz mais adiante, quase integralmente.

entretanto, como se tudo isto não fosse já bastante perturbador,

para a "verdade" das "aparições" de fátima, ainda há um outro

dado não menos perturbador a ter em conta, e que ressalta dos

próprios textos das "memórias" e de outros escritos conhecidos e

oficialmente atribuídos à irmã lúcia.

É que, a fazer fé em todos estes escritos, teremos de concluir

que a antiga "vidente" estará a viver, desde as "aparições" de

1917, num infantil e doentio tu-cá-tu-lá com a senhora de fátima

e o seu imaculado coração (!), com visões a todas as horas e em

todos os cantos e esquinas, o que, só por si, parece configurar

um tipo de vida alienada em sucessivos delírios demenciais, sem

nada de saudavelmente espiritual e humano. uma hipótese que não

pode deixar de ser manifestamente preocupante, sobretudo, se

tivermos em conta que, mesmo assim, a nossa igreja, com o papa

joão paulo ii à cabeça, insiste em fazer desta enclausurada

religiosa, a quem criminosamente impediram de ser mulher como as

demais, uma especial interlocutora de deus, para o nosso hoje e

aqui!...

--165-

falam por si os textos que se seguem falam por si. ninguém deixe de os

ler

com atenção e sentido crítico. sem infantilismos.nem

ingenuidades. facilmente concluiremos que o deus que neles é

Page 206: Fátima nunca mais

apresentado não tem nada a ver com a boa notícia que jesus de

nazaré nos deu dele e a propósito de quem maria, sua mãe e

discípula, tão entusiasticamente cantou.

como veremos, o deus da "missão abreviada" não passa dum

terrorista, dos piores, e dum sádico. parece que nos criou só

para nos torturar nesta vida e, não satisfeito com isso, também

para nos torturar por toda a eternidade sem fim. nem sequer se

limita, como os outros terroristas da história, a torturar-nos

até ao limite de nos tirar a vida; faz-nos viver para lá da

morte, só para ter o sádico prazer de poder continuar a

torturar-nos para sempre!

igualmente, o deus da senhora de fátima e das "memórias da irmã

lúcia" não fica nada atrás do deus da "missão abreviada". dá-se

ao luxo de aterrorizar três crianças-era nitidamente um caso

policial -duas das quais, precisamente, as mais novinhas e

também as mais fragilizadas, não conseguiram resistir a tão

terrível pedagogia e, por isso, morreram antes do tempo, na

ilusão de que as suas vidas, assim precocemente interrompidas,

valiam para a "conversão dos pecadores".

É, por isso, um deus que se alimenta de criancinhas, como os

antigos deuses do paganismo, que só se deixavam aplacar na sua

fúria contra os humanos, se estes os apaziguassem com o

sacrifício de inocentes crianças. (que mãe, que pai, podem

aceitar um deus assim?!)

mas o mais caricato da teologia subjacentes às "memórias da irmã

lúcia" é a afirmação da senhora de fátima, de que o próprio deus

está empenhado em "estabelecer no mundo a devoção ao meu

imaculado coração", para, com isso, garantir a salvação "das

Page 207: Fátima nunca mais

almas dos pobres pecadores".

do ponto de vista da teologia cristã- como é que a hierarquia da

igreja e a universidade católica não conseguem ver isso? esta

afirmação não é apenas caricata. É cretina. e, só por si,

provoca o total descrédito das "aparições", da sua "senhora" e

da sua "vidente".

--166-

por outro lado, afirmar que passaremos a viver no melhor

dos mundos, se o santo padre consagrar a rússia ao imaculado

coração (da senhora de fátima) e se as igrejas passarem a fazer

a comunhão reparadora nos primeiros sábados (por que não nos

últimos, ou nos intermédios?!), é dum infantilismo e duma

ingenuidade atrozes. e também dum anticomunismo primário

verdadeiramente preocupante.

até porque toda a revelação bíblica nunca se afligiu por aí além

com a proliferação do ateísmo no mundo, mas, sim com a

proliferação da idolatria. porque só esta, e não aquele, é que

faz dos seres humanos, escravos e súbditos, alienados e

dependentes.

o ateísmo, pelo contrário, é, em si mesmo, uma implícita

afirmação de fé cristã, na medida em que é a recusa de todas as

imagens de deus que as religiões por aí fazem proliferar e com

Page 208: Fátima nunca mais

as quais, quem habilmente as manipula, também manipula as

populações que, nos seus medos, correm aos templos

concretamente, ao santuário de fátima, em portugal, onde tais

imagens de deus são descaradamente promovidas e cultuadas para

aí mendigarem a satisfação de múltiplas e legitimas aspirações

que, bem vistas as coisas, pertence a todos nós, seres humanos

organizados, e não a deus, satisfazer sempre com muito trabalho,

muita criatividade, muita generosidade e muita solidariedade.

os textos aí ficam. leiam-nos. e tirem as vossas conclusões.

quem sabe se, depois de tudo isto, não acabaremos todas e todos

a dizer como, em 1917, começou por dizer a senhora maria rosa,

mãe de lúcia, a propósito das chamadas aparições de fátima:

"tolices de miúdas". e quem sabe também se depois não nos vamos

decidir, finalmente, a ser cristãs e cristãos à maneira de

maria, mãe de jesus, e nunca mais à maneira da mítica senhora de

fátima que, qual vampiro, não tem escrúpulos em sugar o dinheiro

e até o sangue dos seus assustados e perturbados adoradores.

--167-

23 -No inferno, os pecadores uivam como cães danados

12. meditação do livro "a missão abreviada"

no inferno, os pecadores uivam como cães danados

considera, pecador, que o inferno é um lugar no centro da terra;

é uma caverna profundíssìma cheia de escuridão, de tristeza e

Page 209: Fátima nunca mais

horror; é uma caverna cheia de labaredas de fogo e de nuvens de

espesso fumo. lá são atormentados os pecadores na companhia dos

demónios; lá estão bramindo e uivando como cães danados,

proferindo terríveis blasfémias contra deus. lá são atormentados

os pecadores com a pena de dano, isto é, por terem perdido

tantos e tão grandes bens que poderiam alcançar. oh! quanto

perderam aqueles infelizes! pois perderam a companhia

amabilíssima de jesus cristo e de sua mãe santíssima; perderam

também a companhia dos anjos e dos santos; perderam os deleites

inefáveis de todos os sentidos que no reino dos céus logram os

bem-aventurados; perderam a paz interior; perderam as virtudes

todas e dons da graça divina; perderam a honra de serem filhos e

herdeiros do mesmo deus; perderam a vista clara de deus;

perderam o seu último fim, o sumo bem, para que foram criados;

finalmente, perderam a felicidade eterna, e com ela tudo

perderam; só não perderam a vida para sentirem tantas e tão

grandes perdas por toda a eternidade!...

É possível, poderá exclamar o reprovado lá no inferno

desesperado; é possível que por minha culpa e própria vontade,

tenha perdido para sempre o meu deus, o meu sumo bem! por via de

coisas de sonho, por coisas passageiras perder o reino dos céus,

que era a minha eterna bem-aventurança, para me sepultar para

sempre, para sempre aqui. no inferno! antes escolher o tormento

eterno do que a glória eterna! antes escolher a maldição de deus

do que a sua bênção! antes a companhia dos demónios

--169-

Page 210: Fátima nunca mais

do que a de jesus cristo, dos santos e anjos! e então tendo eu

perfeito juízo e entendimento! sendo eu cristão, e tantas vezes

avisado e chamado por deus, e esperando-me deus tantos anos,

para que fizesse uma verdadeira penitência! ai de mim! infeliz

de mim, que fui um louco e um insensato! de que me aproveitaram

as riquezas e os prazeres do mundo? de que me aproveitaram os

regalos e os divertimentos? de que me serviram os amigos e as

amizades? tudo se dissipou como fumo; tudo desapareceu como

sombra; tudo, finalmente, foi loucura e vaidade, porque agora me

vejo com tudo perdido, e condenado! oh! quão grande foi a minha

cegueira!...

além disto, os pecadores lá no inferno também sofrem a pena dos

sentidos, isto é, também são atormentados por um fogo o mais

devorante. os demónios, que são os executores da justiça divina,

lançarão suas garras aos pecadores reprovados e atirarão com

eles a esse poço de incêndios devoradores, onde ficarão

sepultados em camas de fogo por toda a eternidade, não

respirando senão fogo, não tocando senão fogo, não sentindo

senão fogo, não comendo senão fogo, não bebendo senão fogo... de

todo ficarão convertidos em fogo; nos olhos, nos ouvidos, na

língua, na garganta, no peito, no coração, nas entranhas, nos

pés, nas mãos; finalmente, em tudo fogo; e então um fogo, não

como este que na terra vemos, mas sim um fogo escuro, fétido e

abrasador; ainda mais horroroso que o do metal derretido; é um

tal fogo, que com as suas línguas ata e prende os membros dos

condenados, como uma serpente com as suas roscas; é um fogo que

faz um tal ruído, como se fora uma tempestade de furiosos

ventos... talvez alguém dirá: ora isso nem tanto. nem tanto!

Page 211: Fátima nunca mais

pois desengana-te; tudo isto é uma fraca pintura, é uma ligeira

sombra, é um sonho, é nada (deixem-me dizer assim) em comparação

da verdade; para o quê, lê as sagradas escrituras.

de duas uma: ou hás-de negar a fé que professas ou admitir esta

verdade do fogo do inferno. se eu agora (deve considerar um

pecador) não posso sofrer a luz de um candeeiro, ou uma faísca

de fogo, como hei-de sofrer para sempre e para sempre, este fogo

abrasador do inferno? como hei-de habitar eternamente enterrado

em uma cama de fogo tão devorante?

--170-

vem cá, ó néscio, ó louco; tu, que ainda vives no pecado, e

alegre vais caminhando para o fogo eterno, diz-me: que há-de ser

de ti, quando te vires lá no fogo do inferno? quem te há-de

valer? porventura, tens algum remédio para apagar esse fogo? ou

podes duvidar das sagradas escrituras? ou cuidas tu que podes

andar a fazer pecados e, sem emenda, nem penitência, escapar do

fogo do inferno? se assim o pensas, oh, quanto vives enganado!...

além disto, os pecadores do inferno padecem todos os tormentos e

todos eternos, todos em sumo grau e sem esperança de alívio. lá

no inferno cada sentido tem seu próprio tormento: esses olhos

lascivos e desonestos lá são atormentados com a visão horrível

dos demónios; esses ouvidos, que se empregaram em ouvir as

murmurações, as palavras torpes e desonestas lá são atormentados

com perpétuas maldições, blasfémias e alaridos; o gosto, que se

Page 212: Fátima nunca mais

regalava com manjares proibidos, lá é atormentado da sede e da

fome; essa língua maldita, que rogava pragas que fazia juras,

que proferia maldições e que murmurava, lá é atormentada com fel

de dragões.

também são atormentados os pecadores lá no inferno com dores

presentes, com a recordação dos prazeres passados, com a

representação dos males futuros, e com grandes iras e raivas

contra o mesmo deus; iras e raivas contra si próprios; iras e

raivas para os demónios; iras e raivas para os outros condenados

seus companheiros; finalmente, por toda a eternidade se estarão

despedaçando, cortando e mordendo uns aos outros... homem

desonesto, desengana-te; lá hás-de encontrar no inferno, talvez,

essa criatura desgraçada com quem ofendes a deus; se lá estiver,

por não se ter convertido, ela será um dos teus tormentos

eternos; ainda há-de atormentar-te mais que todos os demónios;

por toda a eternidade vos estareis mordendo e despedaçando um ao

outro... os vossos amores criminosos se converterão em iras e

raivas para sempre, enquanto deus for deus e o inferno durar...

e como são os cânticos do condenado lá no inferno? qualquer

condenado lá no inferno, raivoso e desesperado, gritará:

malditos!... malditos sejam os meus pais, porque me não deram a

verdadeira educação! maldito seja aquele confessor que me

absolveu, sem eu dar provas de emenda; seja ele maldito, porque

me enganou; foi ele a minha condenação, e guia para este inferno!

--171-

Page 213: Fátima nunca mais

maldito seja aquele ímpio, que me perverteu; aquele escandaloso,

que me ensinou a pecar com o seu escândalo e mau exemplo!

maldito seja o anjo da minha guarda, porque me não guardou!

malditos sejam os santos e os anjos, porque me não valeram!

malditos sejam os sacramentos, porque me não aproveitaram!

maldito seja deus!... maldita seja... -cala-te, desgraçado. -não

posso. maldita seja a mãe de deus, maria santíssima, porque não

pediu por mim!...

que me dizes, pecador? queres uma sorte destas lá na eternidade?

se queres, continua na tua vida criminosa, em que tens vivido;

porque infalivelmente lá vais ter sem remédio. mas não seja

assim; emenda o pecado, e cuida em fazer uma verdadeira

penitência. a penitência mortifica-te, é verdade, mas ainda mais

te há-de mortificar o fogo do inferno por toda a eternidade, se

lá caíres. a penitência custa-te, mas ainda mais te há-de custar

um só momento no meio desse fogo devorador. não digas que não

podes, porque tu bem valente tens sido para ofender a deus.

paga, porque deves; paga agora com pouco, o que depois não podes

pagar nem ainda com tormentos eternos. e então volta-te deveras

para deus; e como nada podes sem a graça, recorre à mãe das

graças, dizendo: Ó minha mãe, ajudai-me, senhora, eu não sabia

que coisa era o inferno; estava cego de todo; vivia as maiores

misérias; porém agora estou desenganado, estou resolvido, e

quero salvar-me, minha mãe; antes quero morrer, antes caír no

inferno, do que tornar a ofender o meu deus. ajudai-me, pois,

senhora, e não permitais que eu chegue a odiar-vos e a

maldizer-vos para sempre no inferno; salvai-me, esperança minha,

Page 214: Fátima nunca mais

salvai-me do inferno; e antes disso livrai-me de todo o pecado,

que só ele me pode condenar ao inferno; de vós espero as graças

que me são necessárias para fazer uma boa confissão, emendar

toda a culpa e dar-me todo a deus.

--172-

24

Texto (quase) integral da terceira memória da irmã lúcia

como brasas transparentes em obediência à ordem que v. ex. rev. me dá,

na carta de 26 de julho 1941, de pensar e apontar alguma coisa mais que

da jacinta

me possa lembrar, pensei e pareceu-me que, por essa ordem, deus

falava, e era chegado o momento de responder a dois pontos de

interrogação que várias vezes me têm sido enviados e aos quais

tenho diferido a resposta.

parece-me que seria do agrado de deus e do imaculado coração de

maria que no livro "jacinta" se dedicasse um capítulo a falar do

inferno e outro do imaculado coração de maria. v ex. vai decerto

achar esquisito e fora de jeito este parecer, mas ele não é meu;

e deus fará ver a v. ex. rev. que aí vai a sua glória e o bem

das almas. terei, para isso, que falar algo do segredo e

responder ao primeiro ponto de interrogação.

1. o que é o segredo

Page 215: Fátima nunca mais

o que é o segredo? parece-me que o posso dizer, pois que do céu

tenho já a licença. os representantes de deus na terra têm-me

autorizado a isso várias vezes e em várias cartas, uma das

quais, julgo que conserva v. ex. rev., do senhor pe. josé

bernardo gonçalves, em que me manda escrever ao santo padre. um

dos pontos que me indica é a revelação do segredo. algo disse;

mas, para não alongar mais esse escrito, que devia ser breve,

limitei-me ao indispensável, deixando a deus a oportunidade dum

momento mais favorável.

expus já, no segundo escrito, a dúvida que de 13 de junho a 13

de julho me atormentou e que nessa aparição tudo se desvaneceu.

--173-

2. visão do inferno

bem; o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais

vou revelar. a primeira foi, pois, a vista do inferno!

nossa senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia

estar debaixo da terra. mergulhados em esse fogo, os demónios e

as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou

bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas

pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de

fumo, caíndo para todos os lados, semelhantes ao caír das

faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre

gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia

estremecer de pavor. os demónios distinguiam-se por formas

Page 216: Fátima nunca mais

horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos,

mas transparentes e negros. esta vista foi um momento, e graças

à nossa boa mãe do céu, que antes nos tinha prevenido com a

promessa de nos levar para o céu (na primeira aparição)! se

assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.

em seguida, levantámos os olhos para nossa senhora que nos disse

com bondade e tristeza:

viste o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores;

para as salvar, deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu

imaculado coração. se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão

muitas almas e terão paz. a guerra vai acabar. mas, se não

deixarem de ofender a deus, no reinado de pio xi começará outra

pior. quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida,

sabei que é o grande sinal que deus vos dá de que vai a punir o

mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de

perseguições à igreja e ao santo padre. para a impedir, virei

pedir a consagração da rússia a meu imaculado coração e a

comunhão reparadora nos primeiros sábados. se atenderem a meus

pedidos, a rússia se converterá e terão paz; senão, espalhará

seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à

igreja; os bons serão martirizados, o santo padre terá muito que

sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu imaculado

coração triunfará. o santo padre consagrar-me-á a rússia, que se

converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.

--174-

3. forte impressão para a jacinta

Page 217: Fátima nunca mais

excelentíssimo e reverendíssimo senhor bispo: disse já a v. ex.

rev. em os apontamentos que enviei depois de ler o livro

"jacinta", que ela se impressionava muito com algumas coisas

reveladas no segredo. realmente, assim era. a vista do inferno

tinha-a horrorizado a tal ponto, que todas as penitências e

mortificações lhe pareciam nada, para conseguir livrar de lá

algumas almas.

bem; agora respondo já ao segundo ponto de interrogação que, de

várias partes, aqui me tem chegado. como é que a jacinta, tão

pequenina, se deixou possuir e compreendeu um tal espírito de

mortificação e penitência?

parece-me que foi: primeiro, por uma graça especial que deus,

por meio do imaculado coração de maria, lhe quis conceder;

segundo, olhando para o inferno e desgraça das almas que aí caem.

algumas pessoas, mesmo piedosas, não querem falar às crianças do

inferno, para não as assustar; mas deus não hesitou em mostrá-lo

a três, e uma de 6 anos apenas, e que ele sabia se havia de

horrorizar a ponto de, quase me atrevia a dizer, de susto se

definhar.

com frequência, se sentava no chão ou em alguma pedra e,

pensativa, começava a dizer: o inferno! o inferno! que pena eu

tenho das almas que vão para o infernno! e as pessoas lá vivas a

arder como a lenha no fogo! e meio trémula ajoelhava, de mãos

postas, a rezar a oração que nossa senhora nos tinha ensinado: Ó

meu jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as

alminhas todas para o céu, principalmente as que mais precisarem.

Page 218: Fátima nunca mais

agora, ex. e rev. senhor bispo, já v. ex. rev. compreenderá por

que a mim me ficou a impressão de que as últimas palavras desta

oração se referiam às almas que se encontram em maior perigo ou

mais iminente de condenação.

e ela permanecia assim, por grandes espaços de tempo, de

joelhos, repetindo a mesma oração. de vez em quando, chamava por

mim ou pelo irmão (como que acordando dum sono): francisco,

francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito,

para livrar as almas do inferno. vão para lá tantas! tantas!

--175-

outras vezes, perguntava: por que é que nossa senhora não mostra

o inferno aos pecadores? se eles o vissem, já não pecavam, para

não irem para lá! hás-de dizer àquela senhora que mostre o

inferno a toda aquela gente (referia-se aos que se encontravam

na cova da iria, no momento da aparição). verás como se

convértem.

depois, meio descontente, perguntava-me: por que não disseste a

nossa senhora que mostrasse o inferno àquela gente? esqueci-

me, respondia. - também não me lembrei!, dizia com ar

triste.

às vezes, perguntava ainda: que pecados são os que essa gente

faz, para ir para o inferno? - não sei. talvez o pecado de não

Page 219: Fátima nunca mais

ir à missa ao domingo, de roubar, de dizer palavras feias, rogar

pragas, jurar. - e só assim por uma palavra vão para o inferno?!

- pois! É pecado! - que lhes custava estar calados e ir à

missa?! que pena eu tenho dos pecadores! se eu pudesse mostrar-lhes o

inferno!

repentinamente, às vezes, agarrava-se a mim e dizia: eu vou para

o céu; mas tu ficas cá; se nossa senhora te deixar, diz a toda a

gente como é o inferno, para que não façam mais pecados e não

vão para lá.

outras vezes, depois de estar um pouco de tempo a pensar, dizia:

não tenhas medo; tu vais para o céu. - pois vou, dizia com paz,

mas eu queria que toda aquela gente para lá fosse também.

quando ela, por mortificação, não queria comer dizia-lhe:

jacinta! anda, agora come. - não. ofereço este sacrifício pelos

pecadores que comem de mais.

quando já na doença, ia algum dia à missa, dizia-lhe: jacinta,

não venhas; tu não podes. hoje não é domingo! - não importa. vou

por os pecadores que nem ao domingo vão.

se calhava de ouvir algumas dessas palavras que alguma gente

parece fazer alarde de pronunciar, encobria a cara com as mãos e

dizia: Ó meu deus! esta gente não saberá que por dizer estas

coisas pode ir para o inferno? perdoa-lhes, meu jesus, e

converte-os. decerto não sabem que, com isto, ofendem a deus.

que pena, meu jesus! eu rezo por eles. e lá repetia a oração

ensinada por nossa senhora: Ó meu jesus, perdoai-nos...

--176-

4. olhar retrospectivo de lúcìa

Page 220: Fátima nunca mais

aqui, ex. e rev. senhor bispo, me vem à mente uma reflexão.

por vezes me têm perguntado se nossa senhora, em alguma das

aparições, nos indicou que classe de pecados ofendiam mais a

deus, pois, segundo dizem, a jacinta, em lisboa, nomeou o da

carne. talvez, penso eu agora, como era uma das perguntas que às

vezes me fazia a mim, lhe ocorresse fazê-la, em lisboa, a nossa

senhora e que, então, lhe fosse indicado esse.

5. o coração imaculado de maria

bem, ex. e rev. senhor bispo, parece-me ter já manifestado a

primeira parte do segredo. a segunda refere-se à devoção do

imaculado coração de maria. já disse, no segundo escrito, que

nossa senhora, a 13 de junho 1917, me disse que nunca me

deixaria e que seu imaculado coração seria o meu refúgio e o

caminho que me conduziria a deus. que foi a dizer estas palavras

que abriu as mãos, fazendo-nos penetrar no peito o reflexo que

delas expedia. parece-me que, em este dia, este reflexo teve por

fim principal infundir em nós um conhecimento e amor especial

pelo coração imaculado de maria; assim como das outras duas

vezes o teve, me parece, a respeito de deus e do mistério da

santíssima trindade. desde esse dia, sentimos no coração um amor

mais ardente pelo coração imaculado de maria.

a jacinta dizia-me, de vez em quando: aquela senhora disse que o

seu imaculado coração será o teu refúgio e o caminho que te

conduzirá a deus. não gostas tanto? e gosto tanto do seu

coração! É tão bom!

depois que, em julho, no segredo, como já deixo exposto, nos

Page 221: Fátima nunca mais

disse que deus queria estabelecer no mundo a devoção a seu

imaculado coração; que, para impedir a futura guerra, viria

pedir a consagração da rússia a seu imaculado coração e a

comunhão reparadora nos primeiros sábados, falando disto entre

nós, a jacinta dizia: tenho tanta pena de não poder comungar em

reparação dos pecados cometidos contra o imaculado coração de

maria!

já disse também como a jacinta escolheu, entre a ladaínha de

jaculatórias que o senhor pe. cruz nos sugeriu, a de: doce

coração de maria sede a minha salvação! às vezes, depois de a

dizer,

--177-

acrescentava, com aquela simplicidade que lhe era natural: gosto

tanto do coração imaculado de maria! É o coração da nossa

mãezinha do céu! tu não gostas tanto de dizer muitas vezes: doce

coração de maria! imaculado coração de maria? eu gosto tanto,

tanto!

às vezes, andava a apanhar as flores do campo e a cantar com uma

música arranjada por ela no mesmo momento: doce coração de

maria, sede a minha salvação! imaculado coração de maria,

converte os pecadores, livra as almas do inferno!

6. visões da guerra

Page 222: Fátima nunca mais

um dia fui a sua casa, para estar um pouco com ela. encontrei-a

na cama muito pensativa. - jacinta, que estás a pensar? - na

guerra que há-de vir. há-de morrer tanta gente! e vai quase toda

a gente para o inferno! hão-de ser arrasadas muitas casas e

mortos muitos padres. olha: eu vou para o céu. e tu, quando

vires de noite essa luz que aquela senhora disse que vem antes,

foge para lá também. - não vês que para o céu não se pode fugir?

- É verdade! não podes. mas não tenhas medo! eu no céu hei-de

pedir muito por ti, por o santo padre, por portugal, para que a

guerra não venha para cá e por todos os sacerdotes.

ex. e rev. senhor bispo! v. ex. não ignora como há alguns anos

deus manifestou esse sinal que os astrólogos quiseram designar

com o nome de aurora boreal. não sei. parece-me que, se

examinarem bem, verão que não foi nem podia ser, da forma que se

apresentou, tal aurora. mas seja o que quiserem. deus serviu-se

disso para me fazer compreender que a sua justiça estava prestes

a descarregar um golpe sobre as nações culpadas, e comecei, por

isso, a pedir, com insistência, a comunhão reparadora nos

primeiros sábados e a consagração da rússia. o meu fim era não

só conseguir misericórdia e perdão de todo o mundo, mas em

especial para a europa. deus, na sua infinita misericórdia,

foi-me fazendo sentir como esse terrível momento se aproximava,

e v. ex. rev. não ignora como, nas ocasiões oportunas, o fui

indicando. e digo ainda que a oração e penitência que se tem

feito em portugal não aplacou ainda a divina justiça, porque não

tem sido acompanhada de contrição nem emenda. espero que a

Page 223: Fátima nunca mais

jacinta interceda por nós no céu.

--178-

25

E a imagem da senhora de fátima chorou!...

está visto que maio continua a ser o mês propício a aparições e

a outros fenómenos de cariz religioso. depois das cada vez mais

remotas aparições da senhora de fátima - um delírio demencial

que, pelos vistos, resultou em cheio e, 81 anos depois, continua

ainda a trazer chorudos lucros financeiros e outros aos

responsáveis do santuário local e à hierarquia da igreja

católica -, eis que a moda parece ter pegado e a verdade é que,

um pouco por todo o lado, tanto no nosso país, como no

estrangeiro, múltiplas outras pessoas, geralmente mulheres pouco

escolarizadas e com ar manifestamente perturbado, têm-se

reivindicado de idênticos favores celestiais, protagonizados por

nossas senhoras qualquer coisa. por outro lado, sempre tem

havido quem deixe logo tudo e vá a correr ver para crer, sempre

na esperança de poder beneficiar de algum milagre. que a vida

dos pobres não está para folias. e um milagre faz sempre um

jeito do caraças.

desta vez, voltou a ser em portugal que ocorreu mais um

fenómeno, relacionado com a senhora de fátima. ou nós não

fôssemos um país onde a devoção à "senhora" sempre gozou de

grande aceitação, por parte das populações mais carenciadas e

oprimidas, em busca, não da indispensável e desejável

libertação, mas do ópio, com o qual, mais facilmente, possam

Page 224: Fátima nunca mais

continuar, de geração em geração, a sobreviver no vale de

lágrimas que é a sua vida, e, durante a qual, não se cansam de

repetir, todos os dias e muitas vezes ao dia, aquela demoníaca

oração de arrepiar, que certas catequeses eclesiásticas lhe

ensinaram: "Ó meu jesus

--179-

perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas

todas para o céu, principalmente as que mais precisarem".

os jornais e alguns telejornais informaram que o estranho

fenómeno celestial aconteceu, no primeiro domingo de maio

último, agora crismado pelos donos-sacerdotes dos grandes e

pequenos centros comerciais, como o "dia da mãe". o local

escolhido foi uma desconhecida capela de um colégio, que dá pelo

nome de colégio do sagrado coração de jesus, em oleiros,

distrito de castelo branco.

a capela é do coração de jesus, mas desenganem-se os que

poderiam ser levados a pensar que foi a imagem dele que resolveu

dar espectáculo e aparecer de lágrimas nos olhos e de rosto

pintalgado de sangue. nada disso. a capela é do coração de

jesus, mas quem chorou lágrimas de sangue foi ela, a senhora de

fátima, que lá se encontra a fazer-lhe concorrência e, pelos

vistos, o deixa a léguas de distância, no que respeita a

popularidade e a fama de poder milagroso.

mas é claro que só podia ser mesmo a senhora de fátima a

Page 225: Fátima nunca mais

protagonizar este "fenómeno celestial". porque, como por aí se

costuma dizer à boca cheia que um homem nunca chora, de modo

algum ficaria bem que o sagrado coração de jesus chorasse. isso

de chorar tem a ver, no dizer popular com o coração das

mulheres, não com o dos homens. menos ainda com o coração de

jesus.

É verdade que o evangelho de joão tem o desplante de afirmar que

jesus, no seu tempo histórico, chegou a chorar junto do túmulo

do amigo lázaro. mas essas foram lágrimas sentidamente

solidárias e, por isso, libertadoras e cheias de força

insurreccional, capazes até de levantar mortos daqueles túmulos

em que minorias privilegiadas nos querem condenar a viver; não

foram lágrimas de crocodilo, hipócritas quanto baste e que mais

não são do que lágrimas estéreis, próprias de quem faz de conta

que pretende consolar populações em desgraça, mas o que

verdadeiramente pretende é ajudar a mantê-las por todo o sempre,

na vergonhosa postura de mão estendida.

o mais chocante, porém, foi verificar que tanto o frade fundador

do colégio do sagrado coração de jesus, como o pároco onde esse

colégiv se situa, logo apareceram a tentar aproveitar-se do

--180-

disparate, ou seja, a insinuar que se poderia estar em presença

de um fenómeno sobrenatural, portador duma mensagem da "mãe do

céu" dirigida a todas as mães da terra, e uma pública

manifestação da sua tristeza pela lei de despenalização do

Page 226: Fátima nunca mais

aborto, recentemente aprovada pelo parlamento português, e que,

este mês de junho, vai ser sujeita a referendo nacional.

É preciso não ter um pingo de vergonha na cara. nem ter o mínimo

de bom senso e de inteligência. mas, se calhar, até foi melhor

assim. porque trata-se de um disparate tão grande e tão mal

cozinhado, que acabou por redundar num tiro que sai pela culatra

e um tiro no próprio pé.

mesmo assim, houve de imediato movimentação de populações, tão

crédulas, quanto incultas e quanto assustadas, cujas vidas mais

parecem becos sem saída, e para as quais continua a não haver

ministérios da cultura e da cìência, da educação e da saúde que

lhes valham.

o jornal fraternizar regista o facto e, mais uma vez, lamenta

que a nossa igreja católica teime em recorrer a processos deste

calibre, para levar a água ao seu moìnho. com pedagogias destas,

nos antípodas do evangelho de jesus e do evangelho de maria, sua

mãe e discípula, a nossa igreja pode continuar a contar, entre

as suas fileiras, com grande número de populações

subdesenvolvidas e aterrorizadas, que nem por isso deixa de ser

uma igreja em vertiginosa queda para o descrédito total.

"ide contar a joão baptista o que vistes e ouvistes: cegos vêem,

paralíticos andam, leprosos são purificados e surdos ouvem,

mortos ressuscitam e pobres são evangelizados. e feliz daquele

que não se escandalizar comigo" (lc 7, 22-23).

era também assim que, como igreja que se reclama do nome de

jesus cristo crucificado-ressuscitado, sempre havíamos de ser e

Page 227: Fátima nunca mais

proceder, ou seja, sermos uma presença misericordiosa e

companheira, junto das populações roubadas de tudo, até da

consciência da própria dignidade, para, qual parteira, as

ajudarmos a saír da miséria, do subdesenvolvimento, da

consciência ingénua e do atraso cultural em que vegetam.

em vez disso, teimamos em aproveitar-nos da sua desgraça e do

seu subdesenvolvimento, ao ponto de mandarmos instalar

--181-

mealheiros-cofre em tudo quanto é local de culto, especialmente,

em fátima e noutros grandes santuários ditos marianos, para

neles recebermos as "esmolas" e as "promessas" que nos

enriquecem a nós e as empobrecem a elas. em troca,

fornecemo-lhes overdoses de religião que têm tudo a ver com o

ópio do povo e com o medo dos deuses que as escravizam e matam.

e jamais lhes anunciamos o evangelho da libertação, que as faria

nascer de novo e ser gente de pé e protagonista.

--182-

fátima: a grande ilusão

são ainda muitos os portugueses, mais elas do que eles, que

continuam a correr para fátima, de olhos postos na respectiva

senhora branca, surda e muda. vão na esperança de um milagre

que, felizmente, nunca aconteceu nem poderá alguma vez

Page 228: Fátima nunca mais

acontecer, a não ser na imaginação mais ou menos delirante e

demencial das pessoas carenciadas (as carências levam as pessoas

a ver coisas e a ouvir mensagens, cuja realidade é apenas

virtual, à semelhança de quem avança pelo deserto e, a cada

passo, é atacado por miragens).

mesmo assim, tais pessoas não desistem. tão pouco dão sinais de

frustração. e a prova é que, no ano seguinte, com a chegada do

mês de maio, lá voltam de novo à estrada, muitos deles e delas a

pé, rumo ao recinto de fátima, onde desaguam, mais mortos do que

vivos, pelo menos, os que provêm de mais longe.

pode, por isso, dizer-se que fátima e a sua senhora branca ,

surda e muda, são a última grande ilusão das mulheres e dos

homens mais carenciados de portugal. (; não só. também do mundo.

uma ilusão dm:, no que nos diz respeito, tem muito a ver com um

certo messianismo português, politicamente centrado na figura do

adolescente rei d. sebastião, o desejado. o qual, segundo a

lenda, ainda há-de aparecer por aí, um dia, numa confusa manhã

de nevoeiro. para, finalmente, portugal ser o que até hoje não

foi capaz de ser. (nem será, enquanto nos mantivermos,

infantilmente, à espera de um qualquer messias. em vez de

ousarmos, cada dia, fazermo-nos a nós próprios, com muito suor,

muita inteligência, muita imaginação, muita alegria. e,

evidentemente, também com algum sofrimento.)

--183-

A alimentar toda esta ilusão nacional e internacional, sem

Page 229: Fátima nunca mais

dúvida a maior deste nosso século xx, agora a chegar ao fim, lá

estão ininterruptamente no terreno, e com a auréola de

autoridade eclesial, o reitor do santuário e o bispo de

leiria-fátima.

para cúmulo, não estão sozinhos, neste serviço, manifestamente,

obscurantista e alienante, por isso, de sinal diametralmente

oposto ao do evangelho libertador de jesus cristo que ambos

deveriam anunciar a tempo e fora de tempo.

contam ambos com a presença regular de todos os outros bispos

católicos do país, duma grande parte dos párocos portugueses, de

muitos bispos católicos do resto do mundo e do próprio papa joão

paulo ii!... para não falar já das múltiplas ordens religiosas

femininas e masculinas de portugal que, salvo raras excepções,

estrategicamente, se estabeleceram em fátima, com casas que mais

parecem hotéis, tantos são os quartos de que dispõem, a pensar,

certamente, no chorudo negócio que através delas podem

desenvolver no decorrer dos meses, nomeadamente, entre maio e

outubro.

mas há mais. para dar uma credibilidade ainda maior a esta

ilusão, financeira e politicamente tão rentável para um graúdo

sector da nossa igreja católica, alguns clérigos, mais ou menosbeatos e

fanáticos, têm andado, desde há bastantes anos, a fazertudo por tudo para

que duas das infelizes crianças das chamadas"aparições de fátima" - o

francisco e a jacinta -, que nuncapuderam chegar à idade adulta, também

por culpa da senhorabranca, surda e muda, venham finalmente a ser

beatificadas e,

depois, canonizadas pelo papa.

o mais trágico é que nem o reitor do santuário de fátima, nem obispo de

leiria-fátima, nem nenhum dos outros bispos católicosportugueses, nem

nenhum cardeal da cúria do vaticano têm tido obom senso de, em nome do

evangelho de jesus e da mais elementarsanidade mental, colocarem um

travão em toda esta histeriacatólica.

Page 230: Fátima nunca mais

pelo contrário, e a fazer fé no que, nestas últimas semanas ( de

verão, a generalidade dos "media" portugueses se fartou dedizer, de forma

mais ou menos sensacionalista, todos parecemembarcar nessa hísteria

generalizada, e até chegam a juntar assuas às muitas pressões, oriundas

de todo o mundo católico,

--184-

para que o actual papa avance na beatificação dessas duas

infelizes crianças.

(mas que credibilidade podem ter estes pronunciamentos

canónicos, no actual contexto duma sociedade como a nossa

sociedade ocidental, felizmente, cada vez mais independente do

clero e a reger-se por critérios de vida saudavelmente

diferentes dos moralistas critérios eclesiásticos?)

ora, é preciso que se diga, sem rodeios e sem subterfúgios que,

com a beatificação destas duas crianças ou sem ela, fátima é,

hoje, com tudo o que, real e simbolicamente, lá se realiza, o

que temos de mais contrário ao evangelho de jesus cristo, em

portugal.

os bispos da nossa igreja católica e todo o seu clero, bem como

os teólogos da respectiva universidade, sabem que esta

afirmação-denúncia, apesar de soar eventualmente chocante aos

ouvidos de muita gente, nomeadamente, da gente menos ilustrada e

cristãmente menos guarnecida, não deixa de ser, teológica e

evangelicamente, irrefutável.

se, entretanto, não a fazem sua, com esta mesma frontalidade com

que ela aqui acaba de ser publicamente assumida, e tão-pouco são

pastoralmente consequentes, é porque lhes faltarão lucidez e

Page 231: Fátima nunca mais

audácia bastantes. apareça, porém, o primeiro a desmenti-la de

forma, teológica e evangelicamente, fundamentada. fica aqui o

desafio.

nem nos impressione, a este propósito, tão elevado e tão variado

número de pessoas que, de todo país e de todo o mundo, corre

para fátima. nunca o envolvimento das multidões foi, só por si,

sinal automático de verdade. muito pelo contrário.

também no tempo histórico de jesus, jerusalém e o seu grandioso

templo eram objecto de regulares peregrinações, que envolviam

muitos milhares de judeus, oriundos das terras da palestina e

dos países da diáspora; e nem por isso jesus embarca na onda ,

quando, na sua missão de evangelizador enviado por deus, acaba

por ter de enfrentar toda aquela movimentação religiosa e

comercial. pelo contrário, tem a lucidez e a audácia bastantes

para denunciar tudo aquilo como demoníaco e inumano, pois,

embora fosse feito a coberto do nome de deus, não

--185-

passava de iníquo negócio religioso, manipulação e opressão das

multidões carenciadas, numa palavra, blasfémia e sacrilégio.

a denúncia custou-lhe a vida, mas ficou, para sempre, como a

verdade feita gesto histórico que, qual espada de dois gumes,

tem, desde então, atravessado libertadoramente os séculos e,

onde quer que seja proclamado, continua a derrubar as mesas de

todos os cambistas e de todos os comerciantes religiosos,

Page 232: Fátima nunca mais

clérigos ou não, os quais, a coberto do nome de deus, sempre se

governam, reforçam privilégios, consolidam posições de prestígio

e de poder; numa palavra, comportam-se, diante das massas

humanas, como se fossem infalíveis e poderosos deuses, e não

simples mortais como elas. e tanto assim é, que estas mesmas

massas humanas, apesar de (quase) não terem onde caír mortas,

ainda são levadas por eles a pensar que têm de os revemnciar. e

sustentar, nem que seja com o próprio sangue!

o que, objectivamente, materializa um crime de lesa-humanidade e

de lesa-nome de deus. um crime que fátima e a sua senhora

branca, surda e muda, continuam, hoje, a fomentar. impunemente.

pelo menos, até ver.

--186-