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O Som e a Fúria [William Faulkner]

Faulkner - O Som e a Fúria

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O Som e a Fúria [William Faulkner]

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Colecção Mil Folhas PÚBLICO O SOM E A FÚRIA William Faulkner Título original: The Sound and the Fury =: Ana Maria Chaves (D Tradução: 1994, Publicações Dom Quixote Tradução publicada por acordo com a Random House, Inc. de Ana Maria Chaves 1984 Ji11 Faulkner Summers (D 2002 BIBLIOTEX, S.L. para esta edição @ 2002 M.E.D.I.A.S.A.T. e Prornoway Portugal Comércio de Produtos Multimédia, Ltda. para esta edição. Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A. Barcelona Data de impressão Outubro de 2002 ISBN 84-8130-557-X Depósito Legal B. 37 479-2002 PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL SA Rua João de Barros 265 4150-414 Porto Este livro é vendido exclusivamente com o jornal PÚBLICO. Todos os direitos reservados. WILLIAM FAULKNER O Som e a Fúria Tradução de Ana Maria Chaves COLECÇÃO MIL FOLHAS

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Sete de Abril de 1928 Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira e eu segui-os pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva. - Aqui, caddie. - E davam tacadas. Foram-se embora pelo prado. Eu fiquei agarrado à cerca a vê-los irem-se embora. - Vejam só - disse o Luster. - É mesmo muito engraçado; trinta e três anos e a portar-se dessa maneira. E eu que me dei ao trabalho de ir à cidade para lhe comprar o bolo. Vamos lá parar com choradeira. Então, não me ajuda a procurar os vinte e cinco cêntrimos para eu podê ir ao espectáculo logo à noite. Eles agora iam a dar poucas tacadas pelo prado fora. Voltei para trás ao longo da cerca até onde estava a bandeira, a adejar sobre a relva cintilante e as árvores. -Venha- disse o Luster. - Aí já procurámos. Tão depressa não aparecem mais. Vamos até lá abaixo ó riacho a vê s'achamos os vinte e cinco cêntimos antes qu'as negras os encontrem. Era vermelha e adejava sobre o prado. Nisto, um pássaro desceu em diagonal e empoleirou-se nela. O Luster atirou. A bandeira adejava sobre a relva cintilante e as árvores. Eu estava agarrado à cerca. - Vamos lá pará ca choradeira - disse o Luster. - Não os posso obrigá a vir, s'eles não querem vir, ou posso. Se não se cala, a'nha avó não lhe faz a festa de anos. Se não se cala, já sabe o qu'é qu'eu lhe faço. Como-lhe o bolo todo. E as velas tamém. As trinta e três velas todas duma vez. Vá, vamos té lá baixo é riacho. Tenho Xencontrá os meus vinte e cinco cêntímos. Pode sê qu'a gente encontre alguma bola. Lá tão. Lá tão eles. Ali a diante. Tá a vê. - Abeirou-se da cerca e estendeu o braço. - Tá a vê-los. já não voltam mais pr'aqui. Vá, venha daí. Fomos pela cerca fora até ao muro do jardim, onde as nossas sombras se encontraram. A minha sombra chegava mais alto que a do Luster. Fomos até ao sítio onde a cerca estava partida e passámos para o outro lado. - Tere aí - disse o Luster. - Lá ficou outra vez preso no prego. Será que não é capaz de passá por aqui sem ficá preso nesse prego. A Gaddy soltou-me epassámos degataspara o outro lado. O Tío Maury dissepara não deixarmos que ninguém nos visse e por isso é melhor irmos agachados, disse a Caddy. Agacha-te, Benjy. Assim, estás a ver. Agachámo-nos e atravessámos ojardim, com asflores a roçarem e a restolharem contra nós. O chão era duro. Saltámos a cerca no sítio onde os porcos grunhiam efossavam. Se calhar estão tristesporque um deles foi hoje para a matança, disse a Caddy. O chão era duro, todo revolto e aos altos e baixos. Mete as mãos nos bolsos, disse a Gaddy. Senão, ficas com elas congeladas. E tu não queres ficar com as mãos congeladas no Natal, pois não. - Tá muito frio lá fora - disse o Versh. - Nem apetece saí de casa. - Que se passa - disse a Mãe. - Ele quê ir lá pa fora - disse o Versh. - Deixa-o, ir - disse o Tio Maury@

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- Está muito frio - disse a Mãe. - É melhor ficar em casa. Vá, Benjamin, vamos lá parar com isso. - O frio não lhe faz mal nenhum - disse o Tio Maury. - Olha, Benjamin - disse a Mãe -, se não te portas bem, vais para a cozinha. - Mas a'nha mãe diz pa não o deixarmos ir hoje pá cozinha disse o Versh. - Diz que tem as comidas todas pa fazê. - Deixa-o ir, Caroline - disse o Tio Maury. - Ainda ficas doente de tanto te preocupares com ele. - Eu sei - disse a Mãe. - Às vezes penso que é castigo. - Eu sei, eu sei - disse o Tio Maury@ - Mas não te podes deixar ir abaixo. Olha, vou fazer-te um toddy.' - Isso ainda me vai pôr mais nervosa - disse a Mãe. Sabes bem que vai. - Vai é dar-te forças - disse o Tio Maury. - Agasalha-o bem, rapaz, e leva-o a dar uma volta. O Tio Maury continuou a falar. O Versh continuou a falar. - Cala-te, por favor - disse a Mãe. - Não podemos andar mais depressa. Não quero que depois fiques doente. O Versh calçou-me as galochas e vestiu-me o casacão. Pegámos no meu boné e saímos. O Tio Maury estava na casa de jantar a arrumar a garrafa no aparador. - Deixa-o andar lá por fora uma meia hora, rapaz - disse o Tio Maury. - Mas não o deixes sair do quintal. - Si, sinhô. - disse o Versh. - Nós não o deixamos sair daqui. Fomos lá para fora. O sol estava frio e brilhante. - Pa onde vai - disse o Versh. - Não tá a pensá ir té à cidade, poi não. - Passámos por cima de um monte de folhas secas, restolhantes. O portão estava frio. - É melhor deixá-se tá cas mãos nos bolsos - disse o Versh. - Fica co elas enregeladas se mexê nesse portão, veja lá o que faz. Por que não espera por elas dentro de casa. - Meteu-me as mãos nos bolsos. Ouvia-o pisar as folhas. Até sentia o cheiro do frio. O portão estava frio. Olhe, são nozes. luupi. Trepe lá à árvore. Olhe um esqui- lo, Benjy. Eu não sentia o portão, mas sentia o cheiro cristalino do frio. - É melhor voltá a metê as mãos nos bolsos. Primeiro a Caddy vinha a andar. Depois começou a correr, com a mochila às costas, a dar a dar. 1. Bebida revigorante à base de uísque e água quente. (N. da T) - Olá, Benjy - disse a Caddy. Abriu o portão, entrou e agachou-se. A Caddy cheirava corno as folhas. - Vieste ter comigo - disse ela. - Vieste esperar a Caddy. Por que o deixaste ficar com as mãos tão geladas, Versh. - Eu bem lhe disse qu'as metesse nos bolsos - disse o Versh. - Mas ele quis ficá agarrado ao raio do portão. - Vieste esperar a Caddy - disse ela, esfregando-me as mãos. - O que foi. O que é que estás a tentar dizer à Caddy. A Caddy cheirava como as árvores e como quando ela diz que estivemos a dormir. Não seipor que táp;ií a chorá, disse o Luster. Pode vê-las outra vez quando chegarmos ao riacho. Olhe. Pegue. È uma erva-do-diabo. Deu-me a flor. Saltámos a cerca para o " de dentro. - O que foi - disse a Caddy. - Julgaste que era Natal quando eu chegasse da escola. Foi isso que julgaste. O Dia de Natal é só depois de amanhã. O Pai Natal, Benjy. O Pai Natal Vá, toca a dar uma corrida até casa, para nos irmos aquecer. - Deu-me a mão e desatámos a correr por cima das folhas secas, restolhantes. Galgámos os degraus e fugimos ao frio brilhante lá de fora, para entrarmos no frio sombrio cá de dentro. O Tio Maury estava a arrumar a garrafa no aparador. Chamou a Caddy. A Caddy disse: - Leva-o para o lume, Versh. Vá, vai com o Versh - disse ela. - Eu já lá vou ter.

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Fomos para junto do fogão. A Mãe disse: - Ele tem frio, Versh. - Nã sinhô - disse o Versh. - Tira-lhe o casacão e as galochas - disse a Mãe. - Quantas vezes tenho de te dizer para não o trazeres cá para dentro com as galochas calçadas. - Sissiô - disse o Versh. - Agora fique queto. - Tirou-me as galochas e desabotoou-me o casacão. A Caddy disse: - Espera aí, Versh. Podemos sair outra vez, Mãe. Queria que ele viesse comigo. - É melhor deixá-lo ficar - disse o Tio Maury. - Hoje já anelou muito tempo lá fora. - Acho que é melhor ficarem os dois em casa - disse a Mãe. A Dilsey diz que ainda vai arrefecer mais. - Oh, Mãe - disse a Caddy. - Tolices - disse o Tio Maury. - Ela passou o dia todo na escola. Precisa de apanhar ar. Vá, põe-te a andar, Candace. - Deixe-o vir, Mãe - disse a Caddy. - Por favor. Ele vai ficar a chorar. - Então para que falaste nisso à frente dele - disse a Mãe. Por que vieste para aqui. Para lhe dares um pretexto para me arreliar outra vez. Hoje já andaste lá por fora tempo suficiente. Acho que o melhor é sentares-te aqui a brincar com ele, - Deixa-os ir, Caroline - disse o Tio Maury. - Um bocadinho de frio não lhes faz mal nenhum. Lembra-te de que não te podes cansar. - Eu sei - disse a Mãe. - Ninguém sabe como eu detesto o Natal. Ninguém. Não sou uma dessas mulheres que aguentam tudo. Bem gostava de ser mais forte. Pelo Jason e pelas crianças. - Deves fazer o melhor que podes e não deixares que eles te preocupem tanto - disse o Tio Maury. - Vá, toca a andar, vocês dois. Mas não se demorem. Senão, a vossa mãe fica preocupada. - Sim, senhor - disse a Caddy. - Anda, Benjy. Vamos sair outra vez. - Abotoou-me o casaco e dirigimo-nos para a porta. - Vais levar esse menino lá para fora sem as galochas - disse a Mãe. - Queres que ele fique doente, com a casa cheia de gente. - Esqueci-me - disse a Caddy. - Julguei que ainda as tinha calçadas. Voltámos para trás. - Tens de tomar tento no que fazes disse a Mãe. Deixe-se estar queto disse o Versh. E calçou-me as galochas. - Qualquer dia desapareço e vais ter tu de pensar por ele. Agora ponha-se a andar, disse o Versh. - Vem dar um beijo à tua mãe, Benjamin. A Caddy levou-me até à cadeira da Mãe e a Mãe agarrou-me a cara com as mãos e apertou-me contra o peito. - Meu pobre menino - disse ela. Largou-me. - Tu e o Versh tomem cuidado com ele, estás a ouvir, querida. - Sim, senhora - disse a Caddy. Saímos. A Caddy disse: - Tu não precisas de vir, Versh. Eu tomo conta dele. - Ainda bem - disse o Versh. - Com este frio tamém não m'apetecia nada ir lá para fora. - Fomos até à porta e parámos na entrada e a Caddy ajoelhou-se e abraçou-me e encostou a cara dela à minha. Tinha-a brilhante e fria. Cheirava como as árvores. - Tu não és um pobre menino. Não és, pois não. Tu tens a tua Caddy. Tens a tua Caddy, não tens. V,@a U sepára com tanta caramunha e choradeira, dísse o Luster. Não tem vergonha defazê todo esse chinfrim. Passámos pela cocheira, onde estava a caleche. Tinha uma roda nova. - Vá, suba e fique queto té a sua mãe chegá - disse a Dilsey. Ela gostava de me levar na caleche. O T. R estava a segurar nas rédeas. - Juro que não percebo por qu'é qu'o Jason não

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compra uma sege nova - disse a Dilsey. - Esta geringonça ainda um dia se desfaz com vocês cá dentro. Olha-me pa estas rodas. A Mãe saiu e puxou o véu para o rosto. Trazia um ramo de flores na mão. - Onde está o Roskus - disse ela. - Hoje o Roskus não pode mexê os braços - disse a Dilsey. Mas o T R dá conta do recado. - Tenho medo - disse a Mãe. - Parece-me que não é nada do outro mundo pedir que um de vocês me sirva de cocheiro uma vez por semana. Deus sabe que não é pedir muito. - Sabe tão bem como eu, Miss CAine, que o Roskus está com uma crise de reumatismo muito má e não pode fazê mais qu'o necessário - disse a Dilsey. - Vá, entre lá. O T. R conduz tão bem como o Roskus. - Tenho medo - disse a Mãe. - E com este menino. A Dilsey subiu os degraus. - Chamá a isto um menino.. . disse ela e agarrou no braço da Mãe. - Um homem tão grande como o T. R Vá lá, se é que quê vir. - Tenho medo - disse a Mãe. Desceram os degraus e a Dilsey ajudou a Mãe a entrar. - Talvez assim fosse melhor para todos - disse a Mãe. - Não tem vergonha de dizê uma coisa dessas - disse a Dilsey. - Não sabe qu'é preciso mais qu'um negro de dezoito anos ]o pa pô a Queenie à desfilada. Ela é mais velha do qu'ele e o Benjy juntos. E não te ponhas a atazaná a Queenie, 'tás a ouvi, T. R Se não conduzes a contento de Miss Ca'line, mando o Roskus dar-te uma surra. Pa isso ele tem força. - Sissiô - disse o T R - Vai acontecer alguma coisa, eu sei - disse a Mãe. Pronto, Ben)amin. - Dê-lhe uma flor - disse a Dilsey. É isso qu'ele quê. E estendeu a mão para as flores. - Não, não - disse a Mãe. - Vais espalhá-las todas. - Deixe-se tá a segurá-las - disse a Dilsey. - Eu tiro uma pa ele. - Deu-me a flor e a mão dela foi-se embora. - É melhor partirem já, antes qu@a Quentin vos veja e queira ir tzrdém - disse a Dilsey. - Onde está ela - disse a Mãe. - Está em casa a brincá co Luster - disse a Dilsey. - Vá, T. R Agora guia essa sege como o Roskus t'ensinou. - Sissiô - disse T. R - Toc'andá, Queenie. - A Quentin - disse a Mãe. - Não a deixes... - Claro que não - disse a Dilsey. A caleche ia ao solavancos pelo caminho empedrado abaixo. - Tenho medo de ir e deixar a Quentin - disse a Mãe. - O melhor é não ir, T P - Passámos o portão e a sege deixou de dar saltos. O T P chicoteou a Queenie. - Calma, T. R - disse a Mãe. - Tenho d'a espevitá - disse o T. R - É pá mantê acorda- da té voltá pó estábulo. - Volta para trás - disse a Mãe. - Tenho medo de ir e deixar a Quentin. - Aqui não posso - disse o T. R Mas mais adiante a estrada alargou. - E aqui, também não podes - disse a Mãe. - Tá bem - disse o T. R Começámos a dar a volta. - Devagar, T. P. - disse a Mãe, agarrando-me com força. - Então. Eu tenho de dá a volta - disse o T. P - Aí, Queenie. - Parámos. - Assim, ainda nos voltamos - disse a Mãe. 11 - Então o que quê qu'eu faça - disse o T. R - Tenho medo que dês a volta - disse a Mãe.

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- Toc'andá, Queenie. - disse o T. R - E lá continuámos. - Tenho a certeza de que a Dilsey vai deixar acontecer alguma coisa à Quentin enquanto eu estiver fora - disse a Mãe. Temos de voltar depressa para casa. - Vamos, Queenie - disse o T. P. E chicoteou a Queenie. - Calma, T. E - disse a Mãe, agarrando-me com toda a força. Eu ouvia os cascos da Queenie e, dum lado e doutro da estrada, via coisas luminosas a deslizarem e as sombras delas a ondularem de través sobre o lombo da Queenie. Continuavam a passar, brilhantes como o aro das rodas. Nisto, de um dos lados, as coisas pararam junto do grande poste branco onde estava o soldado. Mas do outro lado continuaram a deslizar sem parar, só que um pouco mais devagar. - O que é que quer - disse o Jason. Tinha as mãos nos bolsos e um lápis na orelha. - Vamos ao cemitério - disse a Mãe. - Está bem - disse o Jason. - Não se atrase por minha causa. É só isso que me quer. Só dizer-me isso. Eu já sei que não queres vir - disse a Mãe. - Mas ficava mais tranquila se viesses. - Mais tranquila porquê - disse o Jason. - Nem o Pai nem o Quentin lhe podem fazer mal nenhum. A Mãe meteu o lenço por baixo do véu. - Pare com isso, Mãe - disse o Jason. - Quer que esse imbecil se ponha a berrar no meio da praça. Põe-te a andar, T. R - Toc'andá, Queenie - disse o T. P. - Isto é castigo - disse a Mãe. - Mas já não falta muito para eu ir também. - Espere - disse o Jason. - Aíí - disse o T R E o Jason disse: - O Tio Maury passou um cheque de cinquenta dólares. O que é que pensa fazer, hem. - Para que perguntas - disse a Mãe. - Ninguém se importa com o que eu digo. Só não te quero apoquentar, nem a ti nem à Dilsey. E, depois, qualquer dia desapareço, e então tu... 12 - Põe-te a andar, T P disse o Jason. - Toc'andá, Queenie disse o T. P. As coisas passavam ondulantes. As do outro lado apareceram outra vez, brilhantes, velozes e suaves, como quando a Caddy diz que vamos adormecer. Seu chorão, disse o Luster. Não tem vergonha. Atravessámos o estábulo. As baías estavam todas abertas. Agorajá não tem nenhum póneí malhado pa montá, disse o Luster O chão estava seco e poeírento. O telhado estava a cair. Os buracos inclinados estavam cheios de remoinhos amarelos. Pa que quê irpr;ií. Quê apanhá com uma dessas bolas na cabeça. - Deixa-te estar com as mãos nos bolsos - disse a Caddy. - Senão, ficas com elas congeladas. E tu não queres ficar com a mãos congeladas no Natal, pois não. Contornámos os estábulos. A vaca grande estava à porta com a pequena e ouvimos lá dentro o Prince, a Queenie e a Fancy a baterem com os cascos. - Se não estivesse tanto frio, íamos dar uma volta na Fancy - disse a Caddy. - Mas hoje está muito frio para andar a cavalo. - Depois, vimos o riacho donde saía fumo. - É ali que estão a matar o porco - disse a Cadety. Podemos passar por lá no regresso, para ver. - Começámos a descer a colina. - Queres levar a carta - disse a Caddy. - Então leva-a. Tirou a carta do bolso dela e meteu-a no meu. - É um presente de Natal - disse a Caddy. - O Tio Maury vai mandá-la a Mrs. Patterson para lhe fazer uma surpresa. Temos de lha entregar sem

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que ninguém veja. Vê lá se agora deixas estar as mãos nos bolsos. - Chegámos ao riacho. - Está gelado - disse a Caddy. - Olha. - Quebrou a superfície da água e encostou-me um bocado à cara. - Gelo. Vês como está frio. - Ajudou-me a passar para o outro lado e começámos a subir a encosta. - Olha que não podemos dizer nada, nem à Mãe nem ao Pai. Sabes o que eu acho que é. Acho que é uma surpresa para a Mãe e para o Pai e também para Mr. Patterson, por Mr. Patterson te ter mandado rebuçados. Lembras-te quando Mr. Patterson te mandou rebuçados no Verão passado. 13 Havia uma cerca. A vinha estava seca e o vento restolhava por entre as vides. - Só não percebo porque é que o Tio Maury não mandou o Versh - disse a Caddy. - O Versh não ia contar nada. - Mrs. Patterson estava à janela. - Espera - disse a Caddy. - Agora não salas daqui. Eu não me demoro. Dá cá a carta. - Tirou-me a carta do bolso. - Deixa-te estar com as mãos nos bolsos. Saltou a cerca com a carta na mão e atravessou o canteiro de flores castanhas, ressequidas e restolhantes. Mrs. Patterson veio abrir a porta e ficou à espera. Mr. Fatterson andava a cortar asfiores verdes. Parou de cortar e olhou para mim. Mrs. Patterson atravessou o jardim a correr. Quando vi os olhos dela comecei a chorar. Idiota, disse Mrs. Patterson, já lhe dissepara não te voltar a mandar cá sozinho. Dá-ma cá. Depressa. Mr. Patterson veio a correr, com a enxada. Mrs, Patterson debruçou-se sobre a cerca, com a mão estendida. Estava a tentar passarpara o outro lado. Dá-ma cá, já disse, àW-ma cá. Mr Patterson saltou a cerca. Apanhou a carta. O vestido de Mrs. fatterson ficou preso na cerca. Vi-lhe novamente os olhos efugipela encosta abaixo. - Pr'àquele lado não há mais nada a não sê casas - disse o Luster. - Vamos ré lá baixo é riacho. Estavam a lavar no riacho. Uma delas estava a cantar. Eu sentia o cheiro da roupa a adejar ao vento e do fumo que pairava por cima do riacho. - Deixe-se ficá aqui em baixo - disse o Luster. - Não tem nada que fazê lá em cima. Eles inda lh'acertam, vai ver. - O qu'é qu'ele quê. - Ele não sabe o que quê - disse o Luster. - Pensa que quê ir lá pa cima onde andam a jogá à bola. Sente-se aqui a brincá ca sua erva-do-diabo. Se quê vê alguma coisa, veja os miúdos a brincarem no riacho. Por qu'é que não se há-de portá como toda a gente. - Sentei-me na margem, onde elas estavam a lavá e de onde subia um fumo azulado. - Alguém viu uma moeda de vinte e cinco cêntimos por aqui - disse o Luster. Que moeda. 14 - A que eu tinha esta manhã - disse o Luster. - Perdi-a por aqui. Caiu-me por este buraco do bolso. Se não a encontrá, não posso ir logo à noite ó espectáculo. - Onde é qu'arranjaste vinte e cinco cêntimos, rapaz. Nos bolsos d'algum branco quando ele não tava a vê. - Arranjei onde arranjei - disse o Luster. - E há muito mais donde estes vieram. Mas tenho d'os encontrá. Alguém os encontrou. - Eu cá não ando atrás de moedas. Tenho o meu trabalho pa fazê. - Venha cá - disse o Luster. - Ajude-me a procurá-los. - Ele, s'os visse, nem sabia qu'eram vinte e cinco cêntimos, poi não. - Mas mesmo assim quê procurá - disse o Luster. Então, vão todas é> espectáculo logo à noite.

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- Nem me fales em espectáculos. Quando sair deste lava- douro vou tão derreada que nem me posso mexê, quanto mais ir a algum lado. -Aposto que vais - disse o Luster. -Aposto qu@inda ontem lá estiveste. Aposto que vão tá lá todas quando a tenda abrir. -já lá há negros que cheguem. Ontem à noite havia. - O dinheiro dos negros é tão bom como o dos brancos, acho eu. - Os brancos dão dinheiro aos negros porque sabem qu'o apanham de volta outra vez mal aparece um branco a tocá c'uma banda, e depois os negros têm de ir trabalhá mais p'arranjarem mais dinheiro. - Então não há quem te convença a ires ao espectáculo. - Pa já, não. Mas vou pensá. - Que tens tu contra os brancos. - Não tenho nada contra eles. Eu sigo o meu caminho e os brancos que sigam o deles. Esse espectáculo não me interessa. - Há lá um homem que toca música com uma serra. Té parece que tá a tocá banjo. - Tu foste lá ontem - disse o Luster. - E eu vou lá hoje. Se descobrir onde perdi a minha moeda. - Vais levá-lo contigo, não. 15 - Quem, eu - disse o Luster. - Achas que tou pa sê visto por aí co ele, quand'ele se pusé a berrá. - Qu@é que fazes quand'ele começa a berrá. - Bato-lhe - disse o Luster. Sentou-se e enrolou as calças de ganga. Elas brincavam na água. - Então, têm visto algumas bolas por aqui disse o Luster. - Não digas palavrões. É melhor não dizeres isso o pé da tua avó. O Luster entrou no riacho onde elas estavam a brincar. Começou a procurar dentro de água, ao longo da margem. - Tinh`a comigo quando viemos pr'aqui esta manhã - dis- se o Luster. - Onde é qu@a perdeste. - Foi aqui por este buraco do bolso - disse o Luster. Andavam todos à procura. Depois, levantavam-se todos de repente e paravam e depois punham-se a chapinhar e a lutar dentro de água. O Luster encontrou-a e sentaram-se dentro de água a olhar para o alto da colina por entre os arbustos. - Onde tão eles - disse o Luster. - Inda não os vejo. O Luster meteu-a no bolso. Eles vinham pela encosta abaixo. - Viram cair aqui uma bola. - Deve estar na água. Nenhum de vocês a viu ou ouviu cair. - Eu cá não ouvi cair nada - disse o Luster. - Ouvi foi qualqué coisa batê além naquela árvore. Mas não sei onde foi pará. Eles começaram a procurar no riacho. - Cos diabos. Procurem bem no riacho. Ela veio para aqui, que eu vi. Procuraram no riacho. Depois voltaram pela encosta acima. - És tu que tens a bola - disse o rapaz. - Pa qu'é qu'eu a queria - disse o Luster. - Eu cá não vi bola nenhuma. O rapaz meteu-se na água. Continuou a procurar. Voltou-se e olhou outra vez para o Luster. Continuou a procurar pelo riacho abaixo. O homem gritou caddie do alto da colina. O rapaz saiu da água e subiu a encosta. 16 - Olhe só pa essa choradeira - disse o Luster. - Cale-se. - Por qu'é qu'ele se pôs a chorá agora. - Só Deus sabe - disse o Luster. - Dá-lhe p'ali e pronto. Tem tado assim toda a manhã. É porque faz anos, acho eu. - Quantos anos.

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- Trinta e três - disse o Luster. - Fez trinta e três esta manhã. - Então quê dizê qu' há trinta anos qu@ele tem três anos. - Eu guio-me pelo que diz a 'nha avó - disse o Luster. Eu cá não sei. Vamos pô trinta e três velas no bolo, isso é qu'eu sei. O bolo ré é pequeno. Se calhá nem vai chegá pa tantas velas. Veja se se cala. Vá, venha cá. - Veio ter comigo e puxou-me pelo braço. - Ah, seu pateta - disse ele. Quê q&eu lhe bata. - Aposto que lhe vais bater. - já tenho batido. Vá, agora cale-se disse o Luster. - já lhe disse que não pode ir lá pa cima. Eles arrancam-lhe a cabeça com uma daquelas bolas. Venha p'aqui. - Puxou-me para trás. - Sente-se. - Sentei-me e ele tirou-me os sapatos e enrolou-me as calças. - Agora, trate de brincá e veja s'acaba com esse berreiro. Eu calei-me e entrei na água e o Roskus veio e dissepara irmos cear e a Caddy disse, Ainda não são horas da ceia. Eu cá não vou. Estava toda molhada. Estávamos a brincar no riacho e a Caddy baixou-se e molhou o vestido e o Versh disse: - A sua mãe vai batê-lhe por tê molhado o vestido. - Não vai nada - disse a Caddy. - Como é que sabes - disse o Quentin. - Não interessa como é que sei - disse a Caddy. - E tu, como é que sabes. - Ela disse que te batia - disse o Quentin. - Além disso eu sou mais velho do que tu. - Eu tenho sete anos - disse a Caddy. - Sei muito bem. - Mas eu sou mais velho - disse o Quentin. - Eu já vou à escola. Não vou, Versh. - Sabe bem qu@ela lhe bate quando molha o vestido - disse o Versh. 17 - Não está molhado - disse a Caddy. Pôs-se em pé dentro de água a olhar para o vestido. - Vou tirá-lo e pô-lo a secar. - Aposto que não és capaz - disse o Quentin. - Aposto que sou - disse a Caddy. - Acho melhor não - disse o Quentin. A Caddy aproximou-se do Versh e de mim e virou as costas. - Desabotoa-mo, Versh - disse ela. - Não faças isso, Versh - disse o Quentin. - Não tenho nada a vê co isso - disse o Versh. - Desabotoa-me o vestido, Versh - disse a Caddy. - Se não, conto à Dilsey o que fizeste ontem. - E o Versh desabotoou-lho. - Tira o vestido - disse o Quentin. A Caddy tirou o vestido e atirou-o para a margem. Não tinha mais nada vestido além do corpete e dos culotes, e o Quentin deu-lhe uma bofetada e ela escorregou e caiu dentro de água. Quando se levantou começou a atirar chapadas de água ao Quentin e o Quentin começou a atirar chapadas de água à Caddy. O Versh e eu ainda apanhámos uns salpicos e o Versh pegou em mim e levou-me para a margem. Disse que ia fazer queixa da Caddy e do Quentin, e aí o Quentin e a Caddy começaram a atirar água ao Versh e ele escondeu-se atrás dum arbusto. - Vou fazê queixa à 'nha mãe de vocês todos - disse o Versh. O Quentin trepou pela margem acima para ver se apanhava o Versh, mas o Versh fugiu e o Quentin não conseguiu apanhá-lo. Quando o Quentin voltou para baixo, o Versh parou e disse aos gritos que ia contar tudo. A Caddy disse-lhe que, se ele não contasse, o deixavam voltar lá para baixo. Então o Versh disse que não ia contar e eles deixaram-no voltar. - Agora estás satisfeita, não estás - disse o Quentin. Agora vamos apanhar os dois. - Quero lá saber - disse a Caddy. - Eu fujo.

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- Isso é que era bom - disse o Quentin. - Isso é que fujo. E nunca mais volto - disse a Caddy. Comecei a chorar. A Caddy virou-se e disse Cala-te, e eu calei-me. Depois eles puseram-se a brincar no riacho. O Jason tam18 bém. Mas brincava sozinho um pouco mais afastado. O Versh veio por detrás do arbusto, pegou em mim e levou-me outra vez para a água. A Caddy tinha a parte de trás do vestido toda suja de lama, e eu comecei a chorar e ela veio ter comigo e sentou-se na água. - Vamos, cala-te - disse ela. - Eu não vou fugir. - E eu calei-me. A Caddy cheirava como as árvores quando apanham chuva. O qu'é quefoi, disse o Luster. Não é capaz d:@icabá com essa choradeira e brincá dentro d:ígua como toda agente. Por qu'é que não o levas pa casa. Não te disseram pa não o deixares sair de U. Elepensa qu esteprado ind.1 lhespertence, disse o Luster. E depois ld de casa ninguém o pode vê. Mas podemos nós. E ninguém gosta d`olhá para um pateta. Dá azar. O Rosicus veio chamar-nos para a ceia e a Caddy disse que ainda não eram horas. - São pois - disse o Rosicus. - E a Dilsey diz pa irem todos pa casa. Trá-los todos, Versh. - E subiu a encosta pelo sítio onde a vaca estava a mugir. - Talvez a gente consiga secar até chegar a casa - disse o Quentin. - A culpa foi toda tua - disse a Caddy. - Oxalá nos apanhem. - Vestiu o vestido e o Versh abotoou-lho. - Eles não vão percebê que se molhou - disse o Versh. Não se nota nada. Só s'eu ou o Jason formos contar. - Vais contar, Jason - disse a Caddy. - Contá o quê - disse o Jason. - Ele não vai contar nada - disse o Quentin. - Não vais, pois não, Jason. -Aposto que vai - disse a Caddy. - Ele vai contar à Vóvó. - Ele não vai fazer isso - disse o Quentin. - Ela está doente. Se formos devagar, quando chegarmos já vai estar escuro de mais para eles notarem. - Tanto se me dá que notem como não - disse a Caddy. Eu mesma vou contar. Trá-lo pa cima, Versh. 19 - O Jason não vai dizer nada - disse o Quentin. - Lembras-te daquele arco com flecha que eu te fiz, Jason. -já está partido - disse o Jason. - Deixa-o contar - disse a Caddy. - Estou-me nas tintas. Traz o Maury pa cima, Versh. - O Versh agachou-se e eu trepei-lhe para as costas. A gente encontr'ós logo no espectáculo, disse o Luster. Vá lá, temos d'encontrá a moeda. - Se formos devagarinho, já vai ser noite quando lá chegarmos - disse o Quentin. - Eu cá não vou devagar - disse a Caddy. Começámos a subir a encosta, mas o Quentin não veio connosco. Ainda estava lá em baixo no riacho quando chegámos ao sítio onde podíamos sentir o cheiro dos porcos. Estavam a grunhir e a fossar na gamela a um canto da pocilga. O Jason vinha atrás de nós com as mãos nos bolsos. O Roskus estava a ordenhar a vaca à porta do estábulo. As vacas saíram aospinotes do estábulo. - Vamos - disse o T. E - O quê, já tá a chorá outra vez. Olhe qu@eu tamém choro. Uáá Uáá. - O Quentin deu um pontapé ao T. E e atirou o T P para dentro da gamela onde os porcos estavam a comer e o T. P. ficou lá metido. - Caramba disse o T. R - Desta vez é que foi. Viu o qu'esse branco me fez. luuupi.

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- Eu não estava a chorar, mas não podia parar. Eu não estava a chorar, mas o chão não estava quieto, e eu comecei a chorar. O chão continuou a subir e as vacas a correr pela encosta acima. O T. P. tentou levantar-se. Mas caiu outra vez e as vacas desataram a correr pela encosta abaixo. O Quentin agarrou-me por um braço e fomos para o estábulo. Mas o estábulo não estava lá e tivemos de esperar que ele voltasse. Não o vi chegar. Veio por detrás de nós e o Quentin sentou-me na manjedoura das vacas. Agarrei-me a ela. Mas ela também ia a fugir e eu agarrado a ela. Desta vez as vacas correram outra vez pela encosta abaixo, e pela porta adentro. Eu não era capaz de parar. O Quentin e o T. P. vinham a lutar pela encosta acima. O T. P. caía pela encosta abaixo e o Quentin puxava-o peI@ 20 encosta acima. O Quentin batia no T. P. E eu não era capaz de parar. - Levanta-te - disse o Quentin. - Não saias daqui. Não te vás embora enquanto eu não voltar. - Eu e o Benjy vamos voltá para a boda - disse o T P. 1uupi. O Quentin bateu outra vez no T. P. Depois começou a atirar o T. P. de encontro à parede. O T. P. ria-se. De cada vez que o Quentin o atirava de encontro à parede, ele tentava dizer Iuupi, mas o riso não o deixava. Eu deixei de chorar, mas não conseguia parar. O T. R caiu em cima de mim e a porta do estábulo desapareceu. Rolou pela encosta abaixo e o T. P. começou a lutar sozinho e caiu outra vez. Ele continuava a rir e eu não conseguia parar, e tentei levantar-me, mas caí e não conseguia parar. O Versh disse: - Agora é qu'à arranjou bonita. Está a ver. Veja lá s'acaba com essa gritaria. O T. P não conseguia parar de rir. Caiu por cima da porta, e sempre a rir. - 1uupi - disse ele. - Eu e o Benjy vamos voltá pá boda. Salsaparrilha - disse o T P - Cala-te - disse o Vérsh. - Onde é qu'àrranjaste. - Na adega - disse o T P. - 1uupi. - Cala-te, já disse - disse o Vérsh. - N'adega, aonde? - Por lá - disse o T P Pôs-se a rir outra vez. - Inda há lá mais de cem garrafas. Mais de mil. Cuidado, negro. Olha qu'eu grito. E o Quentin disse: Ajuda-o a levantar-se. E o Versh ajudou-me a levantar. - Bebe isto, Benjy - disse o Quentin. O copo estava quente. - Agora, cala-te - disse o Quentin. - Vá, bebe. - Salsaparrilha - disse o T. P. - Deixe-me bebé, Mr. Quentin. - Cala a boca - disse o Vérsh. - Olha que Mr. Quentin dá-te uma surra. - Agarra-o, Versh - disse o Quentin. Eles agarraram-me. O meu queixo e a camisa estavam quentes. - Bebe - disse o Quentin. Seguraram-me na cabe21 ça. Sentia-me quente por dentro e comecei outra vez a chorar. Chorava e passava-se qualquer coisa dentro de mim e eu ainda chorava mais, e eles seguraram-me até a tal coisa parar. Depois calei-me. Ainda estava a andar à roda e foi então que comecei a ver as coisas outra vez a passar. Abre a manjedoura, Versh. Agora passavam devagar. Estende esses sacos vazios no chão. Mas depois passavam mais depressa, depressa de mais. Agora. Pega-lhe nos pés. As coisas continuavam a passar, suaves e brilhantes. Ouvia o T. P. a rir-se. Fui com eles pela encosta luminosa acima. Ao chegarmos ao cimo, o Vershpousou-me no chão. - Venha, Quentin - chamou ele, olhando para trás. Mas o Quentin ainda estava lá em baixo ao pé da água. Ia a entrar nas sombras, junto ao riacho. - Esse casmurro que fique lá em baixo - disse a Caddy. Pegou-me na mão e depois de passarmos pelo estábulo entrámos pelo portão. Estava uma

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rã no caminho empedrado, mesmo no meio. A Caddy passou-lhe por cima e levou-me atrás. - Anda, Maury - disse ela. Ela ainda lá estava quando o Jason lhe deu um pontapé. - Isto faz verrugas - disse o Versh. A rã foi-se embora aos saltos. - Anda, Maury - disse a Caddy. - Esta noite têm visitas - disse o Versh. - Como é que sabes - disse a Caddy. - As luzes estão todas acesas - disse o Versh. - Em todas as janelas. - Eu cá acho que se podem acender as luzes todas mesmo sem ter visitas - disse a Caddy. - Aposto que são visitas - disse o Versh. - O melhor é entrarem todos pelas traseiras e irem logo pa cima. - Quero lá saber - disse a Caddy. - Eu cá entro pela sala onde eles estão. - Aposto qu'o seu pai lhe bate se fizé isso - disse o Versh. - Quero lá saber - disse a Caddy. - Eu cá entro pela sala. E vou comer a ceia para a casa de jantar. - E onde é que se senta - disse o Versh. 22 - Sento-me na cadeira da Vóvó - disse a Caddy. - Ela come na cama. - Tenho fome - disse o Jason. Passou por nós a correr pelo carreiro acima. Ia com as mãos nos bolsos e caiu. O Versh foi levantá-lo. - Se fosse com as mãos fora dos bolsos, não caía disse o Versh. - Gordo como é, nem teve tempo pa tirá-las pa fora pa s'agarrar. O Pai estava cá fora perto dos degraus da cozinha. - Onde está o Quentin - disse ele. - Vem aí - disse o Versh. O Quentin vinha muito devagar. A camisa dele era uma mancha branca esborratada. - Oh - disse o Pai. A luz que vinha pelos degraus abaixo bateu-lhe em cheio. - A Caddy e o Quentin andaram a atirar água um ao outro - disse o Jason. Ficámos à espera. - Ai andaram - disse o Pai. O Quentin chegou e o Pai disse: - Hoje têm de cear na cozinha. - Baixou-se e pegou-me ao colo, e a luz que vinha pelos degraus abaixo bateu-me também em cheio e eu olhei para baixo e vi a Caddy e o Jason e o Quentin e o Versh. O Pai aproximou-se dos degraus. - Têm de ficar calados, ouviram - disse ele. - Temos de ficar calados porquê, Pai - disse a Caddy. Temos visitas. - Temos - disse o Pai. - Eu bem disse qu@erarri visitas - disse o Versh. - Não disseste nada - disse a Caddy. - Eu é que disse que eram. Até disse que... - Calem-se - disse o Pai. Calaram-se. O Pai abriu a porta, atravessámos a varanda e entrámos na cozinha. A Dilsey estava lá dentro e o Pai sentou-me na cadeira e baixou o tabuleiro e empurrou-me até à mesa onde já estava a ceia. Deitava muito fumo. - Agora, façam o que a Dilsey mandar - disse o Pai. Não os deixes fazer muito barulho, Dilsey. - Si, sinhô - disse a Dilsey. O Pai foi-se embora. - Não se esqueçam de que têm de fazer o que a Dilsey man23 dar - disse o Pai por detrás de nós. Debrucei-me sobre a mesa. O fumo bateu-me na cara. - Esta noite diga-lhes para fazerem o que eu mandar, Pai disse a Caddy. - Eu cá não - disse o jason. - Eu cá só faço o que a Dilsey mandar. - Vais ter de fazer, se o Pai disser - disse a Caddy. - Diga-lhes para

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fazerem o que eu mandar, Pai. - Eu cá não - disse o jason. - Eu cá não faço o que tu mandares. - Calem-se - disse o Pai. - Pronto, façam todos o que a Caddy mandar. Quando acabarem, leva-os para cima pela escada das traseiras, Dilsey. - Si, sinhô - disse a Dilsey. - Pronto - disse a Caddy. - Agora têm de fazer todos o que eu mandar. - Calem-se - disse a Dilsey. - Esta noite têm de tá sossegados. - Por que é que temos de estar sossegados esta noite bichanou a Caddy. - Isso não é da vossa conta - disse a Dilsey. - Hão-de sabê quando for da vontade do Sinhô. - Pôs-me a tigela à frente. O vapor que dela saía fazia-me cócegas na cara. - Vem cá, Versh disse a Dilsey. - Quando for da vontade do Senhor, Dilsey - disse a Caddy. - Então isso é no domingo - disse o Quentin. - Não percebes mesmo nada. - Calem-se - disse a Dilsey. - Não ouviram Mr. Jason dizê-lhes pa tarem calados. Vá, toc'à comê. Vem cá, Versh. Pega na colhé dele. - A mão do Versh avançou para a tigela com a colher e meteu-a lá dentro. A colher subiu até à minha boca. O vapor fazia-me cócegas dentro da boca. Depois parámos de comer e ficámos calados a olhar uns para os outros e então ouvimos aquilo outra vez e eu comecei chorar. - O que era aquilo - disse a Caddy. E pôs a mão dela em cima da minha. 24 - Era a Mãe - disse o Quentin. A colher voltou a subir e eu abri a boca e depois pus-me a chorar outra vez. - Cala-te - disse a Caddy. Mas eu não me calei e ela veio e abraçou-me. A Dilsey foi fechar ambas as portas e assim nós já não ouvíamos nada. - Agora cala-te - disse a Caddy. Calei-me e comi. O Quentin é que não estava a comer. Mas o Jason estava. - Era a Mãe - disse o Quentin. Levantou-se. - Sente-se imediatamente - disse a Dilsey. - Eles lá dentro com visitas e o menino co essa roupa toda enlameada. Sente-se também, Caddy, e acabe de comer. - Ela estava a chorar - disse o Quentin. - Era mas era alguém a cantar - disse a Caddy. - Era, não era, Dilsey. - Vá, toc'à comê, como Mr. Jason mandou - disse a Dilsey. - Vão sabê o qu'é quando for da vontade do Sinhô. - A Caddy voltou para o lugar dela. - Já disse que é uma festa - disse ela. E o Versh disse: - Ele já comeu tudo. - Traz-me a tigela dele - disse a Dilsey. A tigela desapareceu. Dilsey - disse a Caddy. - O Quentin não está a comer a cela. Então ele não tem de fazer o que eu mandar. - Coma a ceia, Quentin - disse a Dilsey. - Têm todos de comê tudo pa depois saírem da cozinha. - Eu não quero mais - disse o Quentin. - Tens de comer tudo, se eu mandar - disse a Caddy. Tem, não tem, Dilsey. A tigela deitava-me vapor para a cara e a mão do Versh metia a colher lá dentro e o vapor fazia-me cócegas na boca. - Não quero mais - disse o Quentin. - Como é que eles podem dar uma festa com a Vóvó doente. - A festa é cá em baixo - disse a Caddy. - Ela pode vir para o patamar e ficar a assistir. É o que eu vou fazer depois de vestir a camisa de dormir. - A Mãe estava a chorar - disse o Quentin. - Estava a chorar, não estava, Dilsey. 25

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- Não me venWatentá - disse a Dilsey. - Tenho de fazê a ceia p'àquela gente toda assim que vocês acabarem de comê. Daí a pouco, até o Jason já tinha acabado de comer, e começou a chorar. - Pronto, agora tinha de sê este - disse a Dilsey. - Ele faz sempre isto desde que a Vóvó adoeceu e ele deixou de poder dormir com ela - disse a Caddy. - Bebé chorão. - Vou fazer queixa de ti - disse o Jason. Continuou a chorar. - já fizeste - disse a Caddy. - Agora, já não tens mais nada para contar. - O qu'os meninos precisam é de ir pá cama - disse a Dilsey. Aproximou-se de mim, tirou-me da cadeira, pôs-me no chão e limpou-me a cara e as mãos com um pano quente. - Versh, és capaz de os levar lá pa cima pela escada das traseiras, sem fazê barulho. Vá, Jason, pare lá co essa choradeira. - Ainda é muito cedo para irmos para a cama - disse a Caddy. - Nunca temos de ir para a cama tão cedo. - Mas hoje têm - disse a Dilsey - O vosso pai disse pa irem direitinhos lá pa cima quando acabassem de comê. Bem ouviram. - Ele disse para fazerem o que eu mandasse - disse a Caddy. - Eu não faço o que tu mandares - disse o Jason. - Tens de fazer - disse a Caddy. - Vá, têm de fazer todos o que eu disser. - Fá-los calá, Versh - disse a Dilsey. - Vocês vão ficá todos calados, não vão. - Por que é que temos de estar tão calados esta noite - disse a Caddy. - A sua mãe não se sente bem - disse a Dilsey. - Vá, agora vão todos co Versh. - Eu bem vos disse que a Mãe estava a chorar - disse o Quentin. O Versh pegou-me ao colo e abriu a porta das traseiras. Saímos e o Versh voltou a fechar a porta. Eu sentia o cheiro do Versh e podia tocar-lhe. Agora, fiquem todos calados. Nós não vamos ainda lá para cima. Mr. Jason disse pa irem direitinhos lá pa cima. O que ele disse foi para fazerem o que eu man26 dasse. Eu cá não vou fazer o que tu mandares. Mas ele disse para fazermos todos. Disse, não disse, Quentin. Eu sentia a cabeça do Vérsh. E ouvia as nossas vozes. Disse, não disse, Versh. Tá bem, disse. Por isso eu digo para irmos lá para fora um bocadinho. Vamos. O Versh abriu a porta e saímos todos. Descemos os degraus. - Acho que o melhor é irmos para casa do Vérsh, para não fazermos barulho - disse a Caddy. O Versh pôs-me no chão e a Caddy deu-me a mão e fomos todos por ali fora encostados ao muro de tijolo. - Anda - disse a Caddy. - A rã já se foi embora. A estas horas já fugiu para o jardim. Pode ser que a gente veja outra. O Roskus passou com os baldes do leite e seguiu o seu caminho. O Quentin não veio connosco. Ficou sentado nos degraus da cozinha. Nós fomos até à casa do Vérsh. Gosto do cheiro da casa do Versh. A lareira estava acesa e o T P estava de cócoras diante do lume, emfralda de camisa, a atiçar as brasas. Então eu levantei-me e o T. P. vestiu-me e fomos comer para a cozinha. A Dilsey estava a cantar e eu comecei a chorar e ela parou. - Não o deixes vir cá pa casa agora - disse a Dilsey. - Mas não podemos ir p'ali - disse o T. P. Fomos brincar para o riacho. - Por ali não podemos ir - disse o T. R - Não sabem que a'nha mãe disse que não podemos. A Dilsey estava a cantar na cozinha e eu comecei a chorar. - Cale-se - disse o T. P - Vá, vamos té ao estábulo. O Rosicus estava no estábulo a ordenhar as vacas. Estava a ordenhar só

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com uma mão e a resmungar. Estavam uns pássaros empoleirados na porta do estábulo a olhar para ele. Um deles voou para o chão e veio comer com as vacas. Fiquei a ver o Roskus a ordenhar as vacas enquanto o T. P. foi dar de comer à Queenie e ao Prince. A vitela estava na pocilga. Dava focinhadas na rede e berrava. - T. P. - disse o Roskus. - O T. P. disse Estou aqui no estábulo. A Fancy esticava a cabeça por cima da porta porque o T. P. ainda não lhe tinha dado de comer. - Despacha-te - dis27 se o Roskus. - Tens de vir rirá o leite. já não consigo mexê a mão direita. O T P foi acabar de tirar o leite. - Por que não chama o médico - disse o T. R - O médico não adianta nada - disse o Roskus. - Não aqui, neste lugá. - O qu'é que tem este lugá - disse o T P - Este lugá traz má sorte - disse o Roskus. - Traz a vitela pá dentro quando acabares. Este lugá traz má sorte, disse o Roskus. Afogueira subia e descia por trás dele e do Versh, deslizando pela cara dele epela do Versh. A Dilsey meteu-me na cama. A cama cheirava como o T P Eu gostava daquele cheiro. - Que sabes tu disso - disse a Dilsey. - Tiveste alguma visão. - Não preciso de tê visões - disse o Roskus. - Pois então não está ali uma prova deitada naquela cama. Pois então não tem havido provas de há quinze anos pá cá, pá que todos vejam. - Talvez - disse a Dilsey. - Mas não te aconteceu mal nenhum, nem a ti nem è@s teus, pois não. O Versh arranjou trabalho, a Frony casou-se e já não te pesa e o T. P. já tá capaz d'ocupá o teu lugá quando o reumático tomá conta de ti. - Té agora aconteceram duas coisas - disse o Roskus. - E vem outra por aí. Eu vi o sinal. E tu também. - Esta noite ouvi piá o mocho - disse o T. P. - E o Dan não queria vir comer. Não passava do estábulo. E desatou a uivá assim que anoiteceu. O Versh ouviu-o. - E não vai ficá por aqui - disse a Dilsey. - Mostra-me um homem que não vá morrer, Deus seja louvado. - Morrê não é o pior - disse o Roskus. - Eu sei no que tu tás a pensá - disse a Dilsey. - E não traz boa sorte dizeres esse nome, a menos que te queiras havê com ele quando desatá a chorar. - Este lugá traz má sorte - disse o Roskus. - Soube disso logo no princípio, mas quando lhe mudaram o nome, então é qu'eu acreditei friesmo. Cala essa boca - disse a Dilsey. Puxou-me os cobertores 28 para cima. Cheiravam como o T. E - Agora, fiquem calados ré ele adormecer. - Eu vi o sinal - disse o Roskus. - Só se for sinal qu'o T. P. tem de fazê todo o trabalho por ti disse a Dilsey. Lev'o'pa casa, a ele e à Quentin, T P, e deix'o's brincá co Luster onde a Frony ospossa vigiã, e tu vai aju,@U o teupai. Acabámos de comer. O T. P pegou na Quentin e fomos para casa do T P. O Luster estava a brincar na terra. O T. P. pôs a Quentin no chão e ela pôs-se também a brincar na terra. O Luster tinha umas bobinas e ele e a Quentin começaram a lutar e o Quentin ficou com as bobinas. O Luster pôs-se a gritar e a Frony veio e deu uma lata ao Luster para ele brincar, e então eu peguei nas bobinas e a Quentin começou a lutar comigo e eu desatei a gritar. - Cale-se - disse a Frony. - Não tem vergonha de tirá os brinquedos a

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um bebé. - Tirou-me as bobinas da mão e deu-as de novo à Quentin. - Cale-se - disse a Frony. - Tá mesmo a pedi-Ias. Ai isso é que tá. - Pegou no Luster e na Quentin. - Venha daí - disse ela. Fomos até ao estábulo. O T. R estava a ordenhar a vaca. O Roskus estava sentado num caixote. - O qu'é qu@eIe tem agora - disse o Roskus. - Não o pode deixá sair daqui - disse a Frony. - Anda outra vez à bulha cas crianças. Tira-lhes as coisas. Fique aqui co T. P. e veja se se cala um bocadinho. - Limpa-me bem esse úbere - disse o Roskus. - O Inverno passado tanto ordenhaste a novilha qu'a secaste. Se secas esta, adeus leite. A Dilsey estava a cantar. - Por ali não - disse o T. R - Não sabe qu'a'nha mãe disse pa não passarmos por ali. Eles estavam a cantar. - Venha - disse o T. R - Vamos brincá ca Quentin e co Luster. Venha daí. - A Quentin e o Luster estavam a brincar no chão em frente à casa do T. R Lá dentro estava uma fogueira acesa, a subir e a descer, e a figura do Roskus, toda preta, desenhava-se em frente do lume. 29 - E vão três, o Sinhô seja louvado - disse o Roskus. Disse-to há dois anos. Esta casa traz má sorte. - Então por qu'é que não te vais embora - disse a Dilsey. Despiu-me. - Foram essas tuas histórias sobre a má sorte que meteram na cabeça do Versh a ideia de ir pa Memphis. Deves tá satisfeito. - Se tudo o que acontecê de mal ao Versh for isso - disse o Roskus. A Frony entrou. - já acabaram - disse a Dilsey. - O T. R está quase despachado - disse a Frony. - Miss Ca'line quê que vossemecê vá deitá a Quentin. - Vou assim que pudé - disse a Dilsey. - Ela já devia sabê qu'eu não tenWasas. - É o qu'eu te digo - disse o Roskus. - Não dá sorte ficá num lugá onde o nome dum dos filhos nunca é pronunciado. - Cala-te - disse a Dilsey. - Queres qu'ele comece outra vez. - Criá uma criança sem lhe dizê o nome da própria mãe disse o Roskus. - Não te preocupes com ela - disse a Dilsey. - Eu criei-os a todos e acho que posso criá mais esta. E agora cala-te. Vamos vê s'ele consegue adormecer. - Dizê o nome - disse a Frony. - Ele não conhece o nome de ninguém. - Experimenta dizê-lo e verás se não conhece - disse a Dilsey. - Experimenta dizê-lho quando ele tivé a dormi e aposto que te ouve. - Ele sabe muito mais do qu'a gente pensa - disse o Roskus. - Ele sabia qu'a hora deles tinha chegado, como esse cão também sabia. E, se pudesse falar, era capaz de dizê quando vai chegá a hora dele. Ou a tua. Ou a minha. - Tire o Luster dessa cama, mãe - disse a Frony. - Esse aí é capaz de lhe deitá mau olhado. - Cal'à boca - disse a Dilsey. - É só essa a tua esperteza. Pa que dás ouvidos ao Roskus. Meta-se na cama, Benjy_ A Dilsey empurrou-me e eu meti-me na cama, onde já estava 30 o Luster. Estava a dormir. A Dilsey pegou numa tábua comprida e meteu-a entre mim e o Luster. - Agora, deixe-se tá do seu lado - disse a Dilsey. - O Luster é pequenino e não o quê magoá, poi não. Ainda não pode ir, disse o T P Pere aí. Olhámos para lá da esquina da casa e vimos as caleches a afastarem-se. - Agora - disse o T. P. Pegou na Quentin e corremos até à esquina da

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cerca e ficámos a vê-Ias passar. - Lá vai ele - disse o T. P - Vêem aquela envidraçada. Olhem pa ele. Lá vai ele deitado. Vêem. Vamos, disse o Luster, vou levá esta bolapa casa, pa onde não a perca. Não sínhô, não podeficã co ela. S;iqueles homens o vêem co ela, vão dizê qu:i roubou. Agora, cale-se. Não podeficá co ela. Epa qu éque a quer. Não podejogá à bola. A Frony e o T. P estavam a brincar na terra do lado de fora da porta. O T. R tinha metido pirilampos numa garrafa. - Como é que vocês já estão aqui outra vez - disse Frony. - Temos visitas - disse a Caddy. - O Pai disse para todos fazerem o que eu mandasse. Acho que tu e o T. P. também. - Eu cá não faço - disse o Jason. - E a Frony e o T. P. também não têm de fazer. - Se eu quiser, têm - disse a Caddy. - Mas sou capaz de não os obrigar. - O T R não faz o que ninguém manda - disse a Frony. Sabem se o funeral já começou. - O que é um funeral - disse o Jason. - A nossa mãe não te disse pa não lhes dizês nada - disse o Versh. - Onde vai sê o pranto - disse a Frony. - Quando foi da Irmã Beulah Clay, o pranto durou dois dias. Oprantofoi em casa da Dilsey. A Dilsey estava a chorar. Quando ela estava a chorar o Luster disse Calem-se e nós caumo-nos, e então eu comecei a chorar e o Bluepôs-se a uivar no vão da escada da cozinha. Então a Dilseyparou e nósparámos. - Oh - disse a Caddy. - Isso é os negros. Os brancos não fazem prantos. 31 - A nossa mãe disse-nos pa não lhes dizermos nada, Frony disse o Versh. - Dizer o quê - disse a Caddy. A Dilsey estava a chorar e quando o choro se ouviu U em casa eu comecei também a chorar e o Bluepôs-se a uivar debaixo das escadas. Luster, disse a Frony da janela. Lev'O's pb estábulo. Não posso fazê a comida com toda esta barulheira. E esse cão tamém. Lev,O's daquípajora. Eu não querir, disse o Luster. Posso encontrá o vô. Vi-o ontem à noite no estábulo, a esbracíjar. - Sempre gostava de sabê porquê - disse a Frony. - Os brancos tarn@ém. morrem. A sua avó tá tão morta como qualqué negra pode tá, acho eu. - Os cães é que estão mortos - disse a Caddy. - E a Nancy, quando caiu na vala e o Roskus lhe deu um tiro e os abutres vieram e a despiram toda. Os ossos saíam da vala a toda a volta, onde os galhos tisnados estavam metidos na cova preta a brilharem ao luar como se algumas das tais coisas tivessem parado. Depois, as coisas pararam todas e ficou tudo escuro e, quando eu parei para começar outra vez, ouvi a Mãe e passos a afastarem-se depressa, e eu sentia-lhe o cheiro. Depois o quarto chegou, mas os meus olhos fecharam-se. Eu não parei. Sentia-lhe o cheiro. O T. P. tirou os alfinetes que prendiam os lençóis. - Cale-se - disse ele. - Chhhhh. Mas eu sentia-lhe o cheiro. O T. P. pegou-me ao colo e vestiu-me num instante. - Cale-se, Benjy - disse ele. - Vamos pa minha casa. Quê ir pa nossa casa, onde tá a Frony. Vá, cale-se. Chhhhh. Atou-me os sapatos, pôs-me o boné na cabeça e saímos. Havia uma luz acesa no vestíbulo. Ouvimos a Mãe lá dentro. - Chhhhh, Benjy - disse o T. R - Vamos já sair. Uma porta abriu-se e eu senti-lhe o cheiro mais do que nunca. Apareceu uma cabeça. Não era o Pai. O Pai estava doente lá dentro. Por que não o levas lá para fora. É lá pa fora que vamos - disse o T.

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P. A Dilsey vinha a subir as escadas. 32 - Cale-se - disse ela. - Cale-se. Leva-o lá pa casa, T. P. A Frony tá a fazê-lhe a cama. Agora, tomem vocês conta dele. Cale-se, Benjy. Vá co T. P. Ela entrou para o sítio donde vinha a voz da Mãe. - É melhor deixá-lo lá ficar. - Não era a voz do Pai. Ele fechou a porta, mas eu mesmo assim sentia-lhe o cheiro. Descemos os degraus onde estavam as nossas sombras. Esqueci-me do seu casacão - disse o T P. - Era melhor trazê-lo. Mas agora não volto pa trás. O Dan estava a uivar. - Agora, cale-se - disse o T R As nossas sombras moviam-se, mas a sombra do Dan não se movia senão quando ele uivava. Não o posso levá lá pa casa a berrá dessa maneira - disse o T P. - já berrava que chegasse mesmo antes de tê arranjado esse vozeirão. Vá, vamos lá. Seguimos rentes à parede de tijolo seguidos pelas nossas sombras. A pocilga cheirava a porcos. A vaca estava no estábulo a ruminar e a olhar para nós. O Dan uivava. - Vai acordá a cidade inteira - disse o T. R - Vej a se se cala. Vimos a Fancy a pastar junto ao riacho. A lua brilhava na água quando lá chegámos. - Não, sinhô - disse o T. R - Ainda estamos muito perto. Não podemos pará aqui. Vamos. Olhe só pó que fez. Molhou a perna toda. Venha por aqui. - O Dan estava a uivar. A vala surgiu de repente no meio da erva sussurrante. Os ossos saíam a toda a volta entre os galhos negros. - Agora - disse o T. P. - grite p'aí quanto quiser. Tem a noite toda à sua frente e este pasto todo pa gritá à vontade. O T. P. deitou-se na vala e eu sentei-me a olhar para os ossos no sítio onde os abutres comeram a Nancy, saindo depois a esvoaçar, negros e pesados, batendo as asas devagar. Eu tinha-a comigo quando aqui tivemos antes, disse o Luster. Té lha mostrei. Não a viu. Tirei-a do bolso aqui mesmo e mostrei-lha. - Se julgas que os abutres vão despir a Vóvó - disse a Caddy -, deves ser maluco. - E tu és uma grande burra - disse o Jason. E começou a chorar. - E tu és um bucha - disse a Caddy. O Jason chorava. Tinha as mãos nos bolsos. - O Jason há-de sê um homem muito rico - disse o Versh. Tá sempre a agarrá o dinheiro. O Jason chorava. - Agora puseste-o a chorar - disse a Caddy. - Cala-te, Jason. Como é que os abutres podem entrar no sítio onde a Vóvó está. O Pai não ia deixar. Tu não deixavas que um abutre me despisse, pois não? Agora cala-te. O Jason calou-se. - A Frony disse que era um funeral disse ele. - Mas não é - disse a Caddy. - É uma festa. A Frony não sabe nada de nada. Ele quer os teus pirilampos, T. P. Deixa-o pegar neles um bocadinho. O T P. deu-me a garrafa com os pirilampos. - Aposto que se formos até à janela da sala conseguimos ver alguma coisa - disse a Caddy. - E então já acreditam em mim. - Eu já sei o qu'é - disse a Frony. - Eu cá não preciso d'ir vê. - É melhor calares a boca, Frony - disse o Versh. - Olha qu'a mãe vai-te batê. - O que é que foi - disse a Caddy. - Eu sei aquilo que sei - disse a Frony.

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- Vamos - disse a Caddy. - Vamos para a parte da frente. E lá fomos. - O T. R quê os pirilampos de volta - disse a Frony. - Deixa-o ficar com eles mais um bocadinho, T P. - disse a Caddy. - Nós já tos trazemos de volta. - Não foram vocês qu'os apanharam - disse a Frony. - Se eu disser que tu e o T. P. também podem vir, deixa-lo ficar com a garrafa mais um bocadinho - disse a Caddy. Ninguém disse que eu e o T. R tínhamos de IWobedecê - disse a Frony. - E, se eu disser que não têm, deixam-no ficar com ela disse a Caddy. - Tá bem - disse a Frony. - Deix'è ficá com ela, T. P. Anda vê !o.- chorar. 34 Eles não estão a chorar - disse a Caddy. - já vos disse que e uma festa. Eles não estão a chorar, pois não, Versh. - Se aqui ficarmos, não vamos descobrir o qu'é qu'eles tão a fazê - disse o Versh. - Vamos - disse a Caddy. - A Frony e o T. P. não têm de fazer o que eu mando. Mas vocês têm. É melhor seres tu a levá-lo, Versh. Está a ficar escuro. O Versh pegou em mim e contornámos a cozinha pelo lado de fora. Quando chegámos à esquina e olhámos, vimos as luzes a virpelo caminho acima. O T P voltou para trás para a porta da adega e abríu-a. Sabem o que qu'há lá em baixo, disse o T P Gasosa. Vi Mr. Jason sair de U cas mãos cheias de garrafas. Esperem aí u m bocadinho. O T Pfoi espreitar à porta da cozinha. A Dilsey disse, Ta qu'é que tás a espreitá. Onde tá o Benjy. Nós tamos aqui, disse o T P Vai tomá conta dele, disse a Dilsey. Não o deixes virpa dentro de casa. Sissiô, disse o T P Elesjá começaram. Vaí-te embora e não me deixes esse rapaz vírp:2qui, disse a Díls£y já tenho trabalho que chegue. Uma cobra saiu a rastejar de debaixo da casa. O Jason disse que não tinha medo das cobras e a Caddy disse que ele tinha, mas que ela não, e o Versh disse que tinham os dois e a Caddy disse-lhe que se calasse, como o Pai tinha mandado. Agora não comece a berrá, disse o T P Quê salsaparrilha. A salsaparrilhafez-me cócegas no nari .z e nos olhos. Se não vai bebê-la, (iè cá, disse o T P Pronto, tome,4@. O melhor é irmos buscá outra garrafa enquanto não aparece ninguém. Agora fique calado. Parámos debaixo da árvore junto à janela da sala. O Versh sentou-me na relva molhada. Estava fria. As janelas estavam todas iluminadas. - É ali que está a Vóvó - disse a Caddy. - Ela agora está doente todos os dias. Quando ficar boa vamos fazer um piquenique. 35 - Eu sei aquilo que sei - disse a Frony. As árvores sussurravam. E a relva também. - O outro quarto ao lado é para onde vamos quando temos sarampo - disse a Caddy. - Para onde é que tu e o T. P. vão quando têm sarampo, Frony. - Ficamos no sítio onde tamos, acho eu - disse a Frony. - Eles ainda não começaram - disse a Caddy. Tão a prepará-sepa começa, disse o T P Agorafiquem aqui enquanto eu vou buscá aquele caixotepa podermos chegá àjanela. Tomem, tocà bebé a salsaparrilha toda. A mimfaz-me sentir como se tivesse um mocho na barríga. Bebemos a salsaparrilha toda e o T. P. enfiou a garrafa pela persiana, empurrou-a para debaixo da casa e foi-se embora. Eu ouvia-os na sala e agarrei-me à parede. O T. E trazia o caixote de rastos. Caiu e pôs-se a rir. Estava deitado na relva a rir. Levantou-se e puxou o caixote

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para debaixo da janela, fazendo esforços para não se rir. -Acho que vou desatá a rir às gargalhadas - disse o T R Ponha-s'em cima do caixote pa vê se já começaram. - Ainda não começaram porque a música ainda não chegou disse a Caddy. - Não vai havê música nenhuma - disse a Frony. - Como é que sabes - disse a Caddy. - Sei porque sei - disse a Frony. - Tu não sabes nada de nada - disse a Caddy. E foi para junto da árvore. - Ajuda-me a subir, Versh. - O seu pai disse pa não trepá a essa árvore - disse o Versh. - Isso foi há muito tempo - disse a Caddy. -já se deve ter esquecido. E depois ele disse que esta noite tinham de fazer o que eu mandasse. Disse ou não disse. - Eu não vou fazer - disse o Jason. - E a Frony e o T. R também não. - Aj uda-me a subir, Versh - disse a Caddy. - Tá bem - disse o Versh. - Não sou eu que vou apanhá. Pegou na Caddy e levantou-a até ela chegar ao ramo mais baixo. Víamos-lhe a traseira dos culotes toda suja de lama. Depois deixámos de a ver. Só ouvíamos os ramos a abanar. 36 - Mr. jason disse que lhe bate se partir a árvore - disse o Versh. - Eu cá também vou fazer queixa - disse o jason. A árvore deixou de abanar. Olhámos todos para cima para os ramos imóveis. - O qu'é que tá a vê - bichanou a Frony. Eu via-os. E então vi a Gaddy comflores no cabelo e um véu longo e brilhante como o vento. - Chhhh - disse o T. P. - São capazes de a ouvir. Desça daí. - Puxou-me. Caddy. Agarrei-me à parede com unhas e dentes Caddy. O T P. puxou-me. - Chhl-ih - disse ele. Cale-se, Benjy. Quê qu'o oiçam. Venha daí. Vamos bebé mais salsaparrilha, e depois voltamos p'aqui se prometê ficá calado. É melhor irmos buscá mais uma garrafa, senão 'Irida acabamos os dois à bulha. Podemos dizê que foi o Dan qu'a bebeu. Mr. Quentin está sempre a dizê qu@ele é tão esperto que nós podemos dizê qu'ele tamém gosta de salsaparrilha. O luar descia pelas escadas da adega. Bebemos mais salsapar- rilha. - Sabe o qu@é qu'eu queria - disse o T. P - Queria q'um urso entrasse naquela adega. Sabe o qu'é qu'eu lhe fazia. Chegava-me a ele e cuspia-lhe num olho. Dê cá essa garrafa pa vê s'eu lhe meto alguma coisa na boca antes de começá a gritar. O 1 E caiu. Desatou a rir e a porta da adega e o luar desapareceram de repente e eu senti qualquer coisa bater-me. - Cale-se - disse o T. P., fazendo esforços para não se rir. Santo Deus, assim toda a gente nos vai ouvir. Levante-se disse o T. P. - Depressa, Benjy, levante-se. - Ele rebolava-se no chão a rir às gargalhadas e eu tentei levantar-me. Os degraus da adega subiam até ao luar, e o T. P. correu aos tropeções por ali acima até sair para a luz e eu corri até chocar com a cerca e o T P. atrás de mim a dizer "Cale-se. Cale-se". Depois caiu por cima das flores a rir e eu corri para o caixote. Mas quando tentei trepar-lhe para cima ele deu um salto e fúgiu-me e bateu-me na nuca e da minha garganta saiu um som. Depois voltou a fazer o mesmo e eu desisti de me levantar e o som saiu outra vez e eu comecei a chorar. Mas a minha gar37 ganta não parava de fazer barulho enquanto o T. P. me arrastava. O barulho não parava e eu já não sabia se estava a chorar ou não, e o T. P. caiu por cima de mim às gargalhadas, e a garganta sempre a fazer o mesmo barulho, e o Quentin deu um pontapé no T. R e a Caddy pôs-me os braços à volta do pescoço, e o seu véu luminoso, e eu já não sentia o cheiro das árvores e comecei a chorar.

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Benjy, disse a Caddy, Benjy. Pôs-me outra vez os braços à volta do pescoço, mas eu esquívei-me. - O que foi, Benjy - disse ela. - Foi este chapéu. - Tirou o chapéu e aproximou-se outra vez, e eu afastei-me. - Benjy - disse ela. - O que foi, Benjy, o que foi que a Caddy fez. - Ele não gosta desse vestido todo triques - disse o Jason. Julgas-te muito crescida, não julgas. Julgas que és melhor que os outros todos, não julgas. - Cala-te, Benjy - disse a Caddy. - Olha que incomodas a Mãe. Cala-te. Mas eu não me calei e quando ela se foi embora fui atrás dela e ela parou nas escadas e ficou à espera e eu também parei. - O que queres, Benjy - disse a Caddy. - Pede à Caddy. Ela faz. Experimenta. - Candace - disse a Mãe. - Sim - disse a Caddy. - Por que estás a arreliá-lo - disse a Mãe. - Trá-lo para aqui. Fomos para o quarto da Mãe, onde ela estava deitada com a doença metida num pano que tinha na cabeça. - O que é que foi desta vez, Benjamin - disse a Mãe. - Benjy - disse a Caddy. Velo ter comigo outra vez, mas eu virei-lhe as costas. - Alguma tu lhe fizeste - disse a Mãe. - Por que não o deixas em paz, para eu poder ter um pouco de sossego. Dá-lhe a caixa e Poi: favor vai-te embora e deixa-o em paz. A Caddy foi buscar a caixa, pousou-a no chão e abriu-a. Estava cheia de estrelas. Quando eu estava quieto, elas estavam quietas. Quando eu me mexia, elas brilhavam e cintilavam. Calei-me. Nisto, ouvi os passos da Caddy e comecei outra vez. 38 - Benjamin - disse a Mãe. - Vem cá. - Fui até à entrada da porta. - Ai, ai, Benjamin - disse a Mãe. - O que foi agora - disse o Pai. - Onde vais. - Leva-o lá para baixo e arranja alguém para tomar conta dele, Jason - disse a Mãe. - Sabes que estou doente, mas mesmo assim Saímos do quarto e o Pai fechou a porta. - T. P - disse ele. - Siô - disse o T P lá de baixo. - O Benjy vai descer - disse o Pai. - Vai ter com o T P., Benjy. Fui até à porta da casa de banho. Ouvia a água lá dentro. - Benjy - disse o T P de lá de baixo. Eu ouvia a água. Pus-me à escuta. - Benjy - disse o T. R de lá de baixo. Eu estava a ouvir a água. Deixei de ouvir a água e a Caddy abriu a porta. - Oli, Benjy - disse ela. Pôs-se a olhar para mim e eu fui ter com ela e ela abraçou-me. - Encontraste a Caddy outra vez - disse ela. - Julgavas que a Caddy tinha fugido. - A Caddy cheirava como as árvores. Fomos para o quarto da Caddy. Ela sentou-se ao espelho. Parou de mexer com as mãos e olhou para mim. - Que tens Benjy - disse ela. - Não chores. A Caddy não se vai embora. Queres ver - disse ela. Pegou no frasco, tirou a rolha e aproximou-mo do nariz. É bom. Cheira. Que bom. Eu fui-me embora, mas não me calei, e ela ficou com o frasco na mão a olhar para mim. - Oh - disse ela. Pousou o frasco, velo ter comigo e abraçou-me. - Então era isso que tu querias dizer à Caddy e não eras capaz. Querias, mas não eras capaz, pois não. Claro que a Caddy não vai fazer uma coisa dessas. Claro que não. Espera só até eu me vestir. A Caddy vestiu-se, pegou outra vez no frasco e fomos para a cozinha. Dilsey - disse a Caddy -, o Benjy tem um presente para

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39 ti. - Baixou-se e pôs-me o frasco na mão. - Agora dá-o à Dilsey. - A Caddy pegou-me na mão, estendeu-a e a Dilsey pegou no frasco. - Si, sinhô - disse a Dilsey. - Não é que o meu menino deu à Dilsey um frasco de perfume. Olha só pa isto, Roskus. A Caddy cheirava como as árvores. - Nós não gostamos de perfume - disse a Caddy. Ela cheirava como as árvores. - Então, então - disse a Dilsey. - já tá muito crescido pa dormir acompanhado. Já tá um homenzinho. Treze anos. já tem idade pa dormir sozinho no quarto do Tio Maury - disse a Dilsey. O Tio Maury estava doente. Tinha um olho doente e a boca também. O Versh levou-lhe a ceia ao quarto num tabuleiro. - O Maury diz que dá um tiro naquele patife que o mata disse o Pai. - Disse-lhe que por enquanto o melhor era não falar nisso ao Patterson. - Bebeu um gole. - jason - disse a Mãe. - Ele vai matar quem, Pai - disse o Quentin. - Por que é que o Tio Maury lhe quer dar um tiro. - Porque não foi capaz de encaixar uma piada - disse o Pai. - jason - disse a Mãe. - Como podes dizer uma coisa dessas. Eras bem capaz de ficar a ver o Maury cair numa emboscada, e ainda te rias por cima. - Então é melhor que o Maury não cala numa emboscada disse o Pai. - Dar um tiro em quem, Pai - disse o Quentin. - Em quem é que o Tio Maury vai dar um tiro. - Em ninguém - disse o Pai. - Eu nem pistola tenho. A Mãe começou a chorar. - Se é de má vontade que o sustentas, por que não tens a coragem de lho dizer na cara. Agora, francamente, rires-te dele em frente das crianças, sem ele estar presente, - Mas eu não faço isso - disse o Pai. - Eu até admiro o Maury. É inestimável para o meu sentido de superioridade racial. Não trocava o Maury por uma parelha de puros-sangues. E sabes porquê, Quentin. 40 - Não senhor - disse o Quentin. - Et ego in arcadia esqueci-me de como se diz feno em latim disse o Pai. - Pronto. Pronto - disse ele. - Estava só a brincar. - Acabou de beber, pousou o copo e pôs a mão no ombro da Mãe. - Isto não é brincadeira nenhuma - disse a Mãe. - A minha família é tão bem nascida quanto a tua. Lá por o Maury ter pouca saúde. - Claro - disse o Pai. - A pouca saúde é a razão principal da vida. Criado pela doença, na putrefacção, até à decomposição. Vérsh. - Siô - disse o Versh por detrás da minha cadeira. - Vai encher a garrafa outra vez. - E diz à Dilsey que venha buscar o Benjamin para o levar para a cama - disse a Mãe. - já tá um rapagão - disse a Dilsey. - A Caddy tá cansada de dormir consigo. Vá, agora cale-se, senão não adormece. O quarto desapareceu, mas eu não me calei, e o quarto voltou e a Dilsey veio sentar-se na cama a olhar para mim. - Vá lá, seja um menino bonito e fique caladinho - disse a Dilsey. - já vi que não vai sê, pois não. Então espere um bocadinho. Foi-se embora. Não havia nada na porta. Depois apareceu a Cadety. - Chhhh - disse a Caddy. -Já aqui estou. Calei-me e a Dilsey puxou a colcha para baixo e a Caddy meteu-se entre a colcha e o cobertor, sem tirar o roupão de banho. - Pronto - disse ela - Já aqui estou. - A Dilsey trouxe um cobertor e deitou-o por cima dela, aconchegando-a. - Ele adormece num instante - disse a Dilsey. - Vou deixá a luz do seu

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quarto acesa. - Está bem - disse a Caddy. Deitou a cabeça na almofada, encostada à minha. - Boa-noite, Dilsey. - Boa-noite meu amô - disse a Dilsey. O quarto ficou à escuras. A Gaddy cheirava a árvores. Ficámos a olhar para a árvore onde ela estava empoleirada. Que tá ela a vê, Versh - bichanou a Frony. 41 - Chhhhhl-ih - disse a Caddy da árvore. E a Dilsey disse: - Venham já p'aqui. - Vinha a dobrar a esquina da casa. Porqu'é que não vão todos lá pa cima como o vosso pai mandou, em vez de ry@apanharem de costas e fugirem p'aqui. Onde tá a Caddy, e o Quentin. - Eu bem lhe disse para não trepar à árvore - disse o Jason. Vou fazer queixa dela. - Quem tá em que árvore - disse a Dilsey. Aproximou-se e olhou para cima. - Caddy - disse ela. Os ramos começaram a abanar outra vez. - Sua atrevida - disse a Dilsey. - Desça já daí. - Fala baixo - disse a Caddy. - Não sabes que o Pai disse para não fazermos barulho. - As pernas dela apareceram e a Dilsey esticou-se e tirou-a da árvore. - O que tens tu na cabeça pr'ós deixares vir p 1aqui - disse a Dilsey. - Não consegui fazê nada dela - disse o Vérsh. - O que tão vocês todos a fazê aqui - disse a Dilsey. Quem vos mandou vir p'aqui rondá a casa. - Foi ela - disse a Frony. - Foi ela que disse pa virmos. - E quem vos disse pa fazerem o que ela diz - disse a Dilsey. - Toca a ir pa casa. E já. - A Frony e o T P. foram à frente. já não os víamos apesar de ainda irem perto. - Aqui fora no meio da noite - disse a Dilsey. Agarrou em mim e fomos para a cozinha. - A fugir pela calada - disse a Dilsey. - Quando sabia que já tinha passado a hora de se deitá. - Chhhhh, Dilsey - disse a Caddy. - Não fales tão alto. Não podemos fazer barulho. - Então veja se cala a boca e fica quieta - disse a Dilsey. Onde tá o Quentin. - O Quentin está furioso porque esta noite quem mandava era eu - disse a Caddy. - Ele ainda tem o frasco dos pirilampos do T P. - O T R passa bem sem ele - disse a Dilsey. Vai procurá o Quentin, Versh. O Roskus diz que o viu ir pó estábulo. - O Versh foi-se embora. já não o víamos. 42 - Eles não estão a fazer nada lá dentro - disse a Caddy. Estão só sentados a olhar. - E não precisam da vossa ajuda pa nada - disse a Dilsey. Fomos de volta até à cozinha. Onde é que quê ir agora, disse o Luster. Vai voltápa tráspós vê a jogá à bola outra vez. Fartámo-nos de aprocuràpor,@W. Deixe-seficá aqui. Pere um bocadinho. Fíque aqui à espera queu vou @W e trago a bola. Tive uma ideia. A cozinha estava escura. As árvores projectavam-se negras no céu. O Dan saiu do vão da escada todo lampeiro e mordiscou-me o tornozelo. Fui de volta pela cozinha até onde estava a lua. O Dan veio atrás de mim rasteiro, para o meio do luar. - Benjy - disse o T R de dentro de casa. A árvore das flores junto à janela da sala não estava escura, mas as árvores grandes estavam. A relva zumbia ao luar quando a minha sombra caminhava sobre ela.

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- Eh, Benjy - disse o T. P. de dentro de casa. - Onde é que se meteu. Tá a rabiá, eu sei. O Luster voltou. Pere, disse ele. Aqui. Não váp@Ilí. Miss Quentin tá acoU co noivo na rede. Venhapor aqui. Voltejáp:2quí, Ben]y'. Estava escuro debaixo das árvores. O Dan não quis ir para lá. Deixou-se ficar ao luar. Nisto vi a rede e comecei a chorar. Saia daí, Benjy, disse o Luster. Sabe que Miss Quentín se vai zangá consigo. Primeiro eram dois e depois era só um na rede. A Caddy veio a correr, toda branca na escuridão. - Benjy - disse ela. - Como é que te escapaste. Onde está o Versh. Abraçou-me e eu calei-me e agarrei-me ao vestido dela e tentei puxá-la dali para fora. - Porquê, Benjy - disse ela. - O que foi. T R - chamou ela. O que estava na rede saiu de lá e veio ter connosco, e eu comecei a chorar e a puxar pelo vestido da Caddy. - Benjy - disse a Caddy. -É só o Charlie. Tu conheces o Charlie. - Onde está o negro dele - disse o Charlie. - Por que é que o deixam andar cá fora. 43 - Está caladinho, Benjy - disse a Caddy. - Vai-te embora, Charlie. Ele não gosta de ti. - O Charlie afastou-se e eu calei-me. Puxei pelo vestido da Caddy. - Porquê, Benjy - disse a Caddy. - Então não me deixas ficar aqui a conversar um bocadinho com o Charlie. - Chama lá esse negro - disse o Charlie. Voltou para ao pé de nós. E eu desatei a chorar ainda com mais força e a puxar pelo vestido da Caddy. - Vai-te embora, Charlie - disse a Caddy. O Charlie aproximou-se e pôs as mãos em cima da Caddy e eu gritei ainda mais. Gritava que me fartava. - Não, não - disse a Caddy. - Não, não. - Ele não fala - disse o Charlie. - Caddy. - Estás louco ou quê - disse a Caddy. E começou a respirar muito depressa. - Mas ele não é cego. Não. Não faças isso. - A Caddy lutava. Respiravam os dois muito depressa. - Por favor. Por favor - sussurrava a Caddy. - Manda-o embora - disse o Charlie. - Vou mandar - disse a Caddy. - Larga-me. - Então, vais mandá-lo embora ou não - Charlie. - Vou - disse a Caddy. - Larga-me. - O Charlie foi-se embora. - Cala-te - disse a Caddy. - Ele já se foi embora. Calei-me. Ouvia-lhe a respiração e sentia-lhe o peito a arfar. - Tenho de o levar para casa - disse ela. Pegou-me na mão. Não demoro - sussurrou ela. - Espera - disse o Charlie. - Chama o negro. - Não - disse a Caddy. - Eu volto já. Anda, Benjy. - Caddy - disse o Charlie, num murmúrio bastante audível. Mas nós continuámos. - É melhor que voltes. Vais voltar, não vais. - A Caddy e eu desatámos a correr. - Caddy - disse o Charlie. Corremos até à cozinha iluminados pelo luar. - Caddy - disse o Charlie. A Caddy e eu continuámos a correr. Galgámos os degraus da cozinha e, quando chegámos ao alpendre, a Caddy ajoelhou-se no escuro e abraçou-me. Podia ouvi-la respirar e sentir o seu peito a arfar. - Não volto a fazer isto - disse ela. - Nunca mais, Benjy. Benjy. - Nisto, começou a chorar e eu pus-me a chorar 44 também e abraçámo-nos um ao outro. - Cala-te - disse ela.

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- Cala-te. Eu prometo. - Calei-me e a Caddy levantou-se e fomos para a cozinha e acendemos a luz e a Caddy pegou no sabão da cozinha e foi para o lava-loiças lavar a boca com toda a força. A Cadety cheirava como as árvores. Já estouJarto de lhe dízêpa não írp@dí, disse o Luster. Elesforam pá rede, depressa. A Quentin segurava o cabelo com as mãos. Ele tinha uma gravata vermelha. Sabes que mais, meu parvalhão, disse a Quentín, vou dizer à Dílsey que tu o deixas vir atrás de mimpara todo o lado. Vou dizer-lhe que te dê uma boa surra. - Não pude fazê nada - disse o Luster. - Venha cá, Benjy. - Podias sim - disse a Quentin. - Mas nem tentaste. Estavam os dois a espiar-me. Foi a Avó que vos mandou a todos para aqui para me espiarem. - Saltou da rede. - Se não o levares já daqui para fora ou se o deixares voltar para aqui, digo ao Jason que te dê uma surra. - Eu não consigo fazê nada dele - disse o Luster. - Tente a Miss Quentin s'acha qu'é capaz. - Cala a boca - disse a Quentin. - Vais ou não vais tirá-lo daqui. - Ora, deixa-o ficar - disse ele. Tinha uma gravata vermelha. O sol enchia-a de reflexos vermelhos. - Ouve lá, Jack. - Nisto ele acendeu um fósforo e meteu-o na boca. Depois tirou o fósforo da boca. Ainda estava a arder. - Queres experimentar - disse ele. Fui até lá. - Abre a boca - disse ele. Abri a boca. A Quentin deu uma sapatada no fósforo e o fósforo foi-se embora. - Vai para o diabo - disse a Quentin. - Queres que ele comece. Não sabes que depois nunca mais se cala. Vou fazer queixa de ti à Dilsey. - E foi-se embora a correr. - Anda cá, miúda - disse ele. - Eh. Volta para aqui. Eu não me meto mais com ele. A Quentin correu para casa. Deu a volta e entrou pela porta da cozinha. - Agora é que a fizeste bonita, Jack - disse ele. - Olá se fizeste. 45 - Ele não ouve o que vossemecê tá a dizê - disse o Luster. - É surdo-mudo. - Ah, é - disse ele. - Há quanto tempo tá ele assim. - Tá assim faz hoje trinta e três anos - disse o Luster. Nasceu pateta. Vossemecê faz parte dessa gente do espectáculo. - Porquê - disse ele. - Não m'alembra d'o vê por cá antes - disse o Luster. - Sim, e depois - disse ele. - Nada - disse o Luster. - Vou lá esta noite. Ele olhou para mim. - Vôssernecê não será aquele que toca música c'uma serra - disse o Luster. - Se quiseres saber tens de gastar vinte e cinco cêntimos disse ele. Olhou para mim. Por que é que eles não o fecham dentro de casa - disse ele. Para que é que o trazes cá para fora. - Não me pergunte a mim - disse o Luster. - Eu não posso fazê nada. Só vim ré aqui pa vê s'acho a moeda que perdi pa podê ir logo é espectáculo. E parece que não vou podê ir. - O Luster procurava no chão. - Por acaso vossemecê não tem uma moedita a mais, poi não - disse o Luster. - Não - disse ele. - Não tenho. - Tá visto que tenho Xencontrá a outra - disse o Luster. Meteu a mão no bolso. - Por acaso tam'ém não quê comprá uma bola de golfe, poi não - disse o Luster. - Que espécie de bola - disse ele. - Uma bola de golfe - disse o Luster. - Só peço vinte e cinco cêntimos por ela.

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- Para quê - disse ele. - Para que é que eu quero isso. - Também não me pareceu que quisesse - disse o Luster. Venha p'aqui, seu cabeça de burro. Venha p'aqui vê-los batê na bola. Aqui. Tome lá isto, é pa j untá à sua erva-do-diabo. - E o Luster apanhou uma coisa e deu-ma. Era brilhante. - Onde é que arranjaste isso - disse ele. Quando ele andava, a gravata ficava toda vermelha ao sol. - Encontrei isto aqui debaixo do arbusto - disse o Luster. - Primeiro ré pensei qu'era a moeda. 46 Ele aproximou-se e tirou-me a tal coisa da mão. - Cale-se - disse o Luster. - Ele já lhe dá isso outra vez assim que vir o que é. - Olha um Agnes Mabel Becky1 - disse ele, olhando para a fachada da casa. - Cale-se - disse o Luster. - Ele já lhe dá isso outra vez. Ele deu-mo e eu calei-me. - Quem é que velo ter com ela ontem à noite - disse ele. - Não sei - disse o Luster. - Eles vêm sempre qu'ela consegue descê pela árvore pó lado de lá. Não lhes peço pa deixarem a assinatura. - Pois raios me partam se um deles não deixou a assinatura - disse ele. Olhou para a casa. Depois foi deitar-se na rede. Vai-te embora - disse ele. - Não me incomodes. - Venha cá - disse o Luster. - Agora é qu'a fez bonita. Miss Quentin já deve tê ido fazê queixa de si. Fomos até à cerca e pusemo-nos a espreitar pelos intervalos entre as pétalas encaracoladas das flores. O Luster continuava à cata na relva. - Eu tinha-a quando aqui tava - disse ele. Eu via a bandeira a adejar e o sol a inclinar-se sobre o prado. - Daqui a nada elas aparecem - disse o Luster. -já se vêem algumas, mas vão-se logo embora. Venha ajudar-me a procurá-la. Fomos pela cerca fora. - Cale-se - disse o Luster. - Como é qu'as hei-de obriga a vir p1aqui s'elas não querem vir. Pere um bocadinho. Não tarda tão a aparecê por aí. Olhe p'ali. Lá vêem elas. Fui pela cerca fora até ao portão, por onde passavam as raparigas com as sacolas. - Oh, Benjy - disse o Luster. - Volte p aqui. Não lhe serve de nada ir espreitá ao portão, disse o T P Míss Gaddyjá sefoipa muito longe. Casou-se e deixou-oficar Não lhe serve de nadaficã agarrado ao portão a chorá. Ela não o ouve. O que é que ele quer, T P, disse a Mãe. Não és capaz de brincares com elepara verse elefica calado. 1. Preservativo cuja marca era A. M. B. (N. da T) 47 Ele quéír@ápa baixopóportão, disse o TP Está bem, mas isso não pode ser, disse a Mãe. Está a chover. Tens deficar a brincar com elepara ele estar calado. Oh, Benjamin. Não há nada qu`ofaça caU, disse o T P Elejulga que sejorpó portão, Miss Caddy vai voltá. Tolices, disse a Mãe. Não conseguia ouvir o que diziam. Saí lá para fora e não os conseguia ouvir, e fui até ao portão, por onde passavam as raparigas com as sacolas. Elas voltavam a cabeça e ficavam a olhar para rnim quando passavam apressadas. Eu tentava falar-lhes, mas elas iam-se embora, e eu ia pela cerca fora a tentar falar-lhes, e elas punham-se a andar mais depressa. Depois punham-se a correr e eu ia até à esquina da cerca e já não podia avançar mais, e ficava agarrado à cerca a olhar para elas e a tentar falar- -lhes.

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- Oh, Benjy - disse o T R - O que tá a fazê, a fugir dessa maneira. Não sabe qu'a Dilsey lhe vai batê. Não lhe serve de nada ficá p'aí a gemê e a chorá agarrado à cerca - disse o T. P Assusta as miúdas. Olhe pa elas, atravessaram pó outro lado. Como é que ele conseguiu sair, disse o Pai. Deixaste o portão aberto quando entwte, Jason. Claro que não, disse ojason. Não sou assim tão estúpido. Acha-me capaz de uma coisa dessas. Deus sabe que estajamíliajá tem problemas que cheguem. Eujá opodia teravisado. Acho que édesta que o vai mandarparajackson. Se Mr. Burgess não lhe der um tiro primeiro. Cala-te, disse o Pai. já opodia ter avisado há muito tempo, disse ojason. Estava aberto quando lhe toquei, e fiquei ali, agarrado a ele, à luz do entardecer. Eu não estava a chorar e tentei parar, para ver Qs raparigas aproximarem-se ao lusco-fusco. Eu não estava a chotar. - Lá está ele. @araram. - Ele não pode sair dali. E mesmo que saia também não faz mal a ninguém. Anda daí. 48 - Ele não pode sair. Eu não estava a chorar. - Não sejas medricas. Anda daí. Elas aproximavam-se ao lusco-fusco. Eu não estava a chorar e estava agarrado ao portão. Elas aproximavam-se devagar. - Tenho medo. - Ele não te faz mal. Passo aqui todos os dias. Põe-se só a correr pela cerca fora. Elas aproximaram-se. Abri o portão e elas pararam e deram meia volta. Eu tentava falar-lhe, e agarrei-a, e tentava falar-lhe, e ela gritava e eu tentava falar-lhe, eu tentava, e as formas brilhantes começaram a parar e eu tentei sair. Tentei tirá-las da minha cara, mas as formas brilhantes começaram outra vez a passar. Elas iam pela encosta acima, para onde ela caía para o outro lado, e eu tentei gritar. Mas quando metia ar, não conseguia fazê-lo sair para gritar, e tentava a todo o custo não cair da colina, mas caí da colina abaixo para o meio das formas brilhantes que não paravam de rodopiar. Eh, idiota, disse o Luster. Lá vêm uns. Veja sepára de chorá e de berrá. Vieram até à bandeira. Ele tirou-a e eles bateram, e ele voltou a colocar a bandeira. - Sinhô - disse o Luster. Ele olhou em volta. - O que é - disse ele. - Quê comprá uma bola de golfe - disse o Luster. - Vamos ver - disse ele. Chegou-se à cerca e o Luster passou a bola para o outro lado. - Onde a arranjaste - disse ele. - Encontrei-a - disse o Luster. - Isso sei eu - disse ele. - Mas onde. Talvez dentro de algum saco de equipamento. - Encontrei-a aqui caída no chão - disse o Luster. - Só quero vinte e cinco cêntimos por ela. - E por que dizes que é tua - disse ele. - Porque a encontrei - disse o Luster. - Pois então trata de ir procurar outra - disse ele. Meteu a bola no bolso e foi-se embora. 49 - Tenho de ir logo à noite b espectáculo - disse o Luster. - Ah, ele é isso - disse ele. Foi até à tabela. - Cá vai, caddie - disse ele. E deu uma tacada. - Ora esta - disse o Luster. - Barafustam se não as encontram e barafustam s'as encontram. Veja se tá calado. Não percebe qu'as

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pessoas ficam cansadas de o ouvir. Olhe. Deixou cair a sua erva-do-diabo. Apanhou-a e deu-ma outra vez. - Precisa duma nova. Essa já tá toda desfeita. - Ficámos a vê-los da cerca. - Aquele branco não é pa graças - disse o Luster. - Viu corno ele me tirou a bola. - Eles foram-se afastando e nós fomos andando pela cerca fora. Chegámos ao jardim e daí já não pudemos passar. Agarrei-me à cerca e espreitei pelos intervalos das flores. Eles foram-se embora. - Agora não tem razão pa chorá - disse o Luster. - Cale-se. Quem tem razão de queixa sou eu, não é vossernecê. Olhe. Por qu'é que não s'entretém co esta flor. Daqui a nada tá a chorá por causa dela. - Deu-me a flor. - Pa onde vai agora. As nossas sombras estavam na relva. E chegaram às árvores antes de nós. A minha foi a primeira a chegar. Depois chegámos nós, mas as sombras já se tinham ido embora. Havia uma flor dentro da garrafa. Meti lá a outra flor. Agora)á é um homem crescido - disse o Luster. - A brincá com duas flores dentro duma garrafa. Sabe o qu'é que lhe vão fazê quando Miss CaIine morrê. Vão mandá-lo pa Jackson, que lá é qu@é o seu lugá. É o que diz Mr. Jason. Lá pode passá os dias todos a chorá agarrado à grades cos outros maluquinhos. Que tal. O Luster roubou-me as flores. - É isto que lhe fazem em Jackson quando começá a berrá. Tentei apanhar as flores. O Luster apanhou-as primeiro e elas desapareceram. Comecei a chorar. - Isso, berre - disse o Luster. - Berre à vontade. Quê que lhe dê uma razão pa berrá. Então tá bem. Caddy - disse ele baixinho. - Caddy. Agora já pode berrá. Caddy. - Luster - disse a Dilsey da cozinha. As flores voltaram a aparecer. 50 - Cale-se - disse o Luster. - Vamos pa dentro. Hoje pintou a manta. Vá, levante-se. - Puxou-me pelo braço e levantei- -Me. Saímos de debaixo das árvores. As nossas sombras tinham desaparecido. - Cale-se - disse o Luster. - Olhe p'àquela gente toda a olhá pa si. Cale-se. - Trá-lo p'aqui - disse a Dilsey. - Fizeste-lhe alguma. Onde é que estiveram. - Além, debaixo dos cedros - disse o Luster. - Só pa irritares a Quentin - disse a Dilsey. - Por que não o levas pa longe dela. Não sabes qu'ela não gosta qu'ele ande por ond'ela anda. - Ela tem tanto tempo pa cuidá dele como eu - disse o Luster. - Ele não é meu tio. - Não me provoques, negro atrevido - disse a Dilsey. - Eu não lhe fiz nada - disse o Luster. - Ele estava ali a brincá e de repente começou a berrá. - Foste-lhe bulir co cemitério - disse a Dilsey. - Não lhe toquei no cemitério - disse o Luster. - Não mintas, rapaz - disse a Dilsey. Subimos os degraus e entrámos na cozinha. A Dilsey abriu a porta do fogão, foi buscar uma cadeira, pô-la à frente da lareira e eu sentei-me. Calado. Queres qu'ela comece, disse a Dilsey. Pa quo deixaste írp@í Ele estava só a olharpara afogueíra, disse a Gaddy. A Mãe estava a ensinar-lhe o seu novo nome. Não a queriamosfazer chorar. Sei que não, disse a Dílsey. Ele estava num extremo da casa e ela no outro. Deixa as minhas coisas em paz, ouviste. Não mexas em nada até eu voltar. - Não tem vergonha - disse a Dilsey. - A arreliá-lo dessa maneira. - Pôs o bolo em cima da mesa. - Eu não tava a arreliá-lo - disse o Luster. - Ele tava a brincá co aquela garrafa cheia de ervas e de repente começou a berrá. Vossemecê bem ouviu.

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- Não lhe tocaste nas flores - disse a Dilsey. - Não lhe toquei no cemitério não - disse o Luster. - Pa que quero eu as ervas dele. Andava só à procura dos meus vinte e cinco cêntimos. 51 - Perdeste-os, não foi - disse a Dilsey. Acendeu as velas. Umas eram pequenas. Outras eram grandes cortadas aos bocadinhos. - Disse-te pó guardares. já sei, agora queres qu'eu vá pedir outra moeda à Frony. - Tenho de ir é> espectáculo e o Berijy que s'arranje - dissee o Luster. - Não vou passá a vida toda atrás dele, de dia e de noite. - Tu vais fazê exactamente o que ele te mandá, tás a ouvir negrinho duma figa - disse a Dilsey. - Não foi o qu'eu fiz sempre - disse o Luster. - Faço sem- pre o qtiele quê. Faço, não faço, Benjy. - Pois tens de continuá a fazê - disse a Dilsey. - Trazê-lo p'aqui a chorá e pô-la a chorá também. Vá, agora vão todos comê o bolo antes que chegue o jason. Não quero qu'ele se ponha a ralhá comigo por causa dum bolo qu'eu comprei co meu dinheiro. Havia de sê bonito, fazê o bolo aqui em casa, co ele a contá cada ovo qt@entra na cozinha. E agora vê s'o deixas em paz, a não sê que não queiras ir logo à noite é> espectáculo. A Dilsey foi-se embora. - Já que não é capaz d'apagá as velas - disse o Luster veja como eu as apago. - Baixou-se para o bolo e soprou com toda a força. As velas apagaram-se. Comecei a chorar. - Cale-se - disse o Luster. - Olhe. Fique aqui a olhá pé, lume enquant'eu corto o bolo. Ouvia o relógio e ouvia a Caddy de pé atrás de mim, e ouvi .a o -. Ainda está a chover, dísse a Caddy. Detesto a chuva. Detesto tudo. E então a cabeça dela veio ter ao meu colo e ela estava a chorar abraçada a mim e eu comecei a chorar. Depois olheipara o lume outra vez e asformas brilhantes e suaves reapareceram. Ouvia o reldgio e o - e a Gaddy. Comi um bocado de bolo. A mão do Luster apareceu e tirou outro bocado. Ouvia-o mastigar. Pus-me a olhar para o lume. Um arame comprido passou-me por cima do ombro. Ia até à porta e o fogo desapareceu. Comecei a chorar. - Por qtié que tá a gritá agora - disse o Luster. - Olhe p'ali. - O lume estava lá outra vez. Calei-me. - Veja se fica sentado a olhá pó fogo como a'nha mãe mandou - disse o Luster. Devia tê vergonha. Tome. Coma mais um bocado de bolo. 52 - O que foi que lhe fizeste agora - disse a Dilsey. - Não serás capaz d'o deixares sossegado. - Estava só a vê s'ele se calava, e não incomodava Miss Ca'line - disse o Luster. - Mas alguma coisa o irritou. - E essa coisa tem nome - disse a Dilsey. - Vou mandá o Versh dar-te umas boas vergastadas quando chegá. Tás só a vê té onde podes ir. Passaste o dia todo nisso. Levaste-o ré ao riacho. - Nã sinhô - disse o Luster. - Passámos o dia todo aqui mesmo no quintal, como nos disse pa fazê. A mão dele veio buscar mais uma fatia de bolo. A Dilsey deu-lhe uma palmada. - Mete lá a mão outra vez e corto-ta rente co esta faca - disse a Dilsey. - Aposto que ele inda não comeu nada. - Isso é que comeu - disse o Luster. - já comeu o dobro de mim. Ora pergunte-lhe. - Experimenta ires lá outra vez ca mão - disse a Dilsey. Experimenta só. É isso mesmo, disse a Dilsey. Acho que chegou a minha vez de chorá.

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Acho que o Maury também me vaifazê chorápor ele. O nome dele agora é Benjy, disse a Caddy. -Essa agora, disse a Dilsey. Ele inda não gastou o nome com que nasceu, pois não. Benjamin é um nome tirado da Bíblia, disse a Caddy. Assenta-lhe melhor do que lhe assentava Maury. Essa agora. Porquê, disse a Dilsey. Porque a Mãe diz que sim, disse a Caddy. Ora, ora, disse a Dilsey. Não é o nome que o vai ajudá. Mas também não lhe vaifazê mal. Não dá sorte mudd de nome. O meu nome é Dilsey desde que me conhep ejá era antes disso e há-de continuá a sê Dílsey quandojá ninguém se lembrá de mim. Como é que vão saber que é Dílsey quandojá não se lembrarem de ti, disse a Caddy. Está no livro, meu amâ, disse a Dilsey. Escrito com todas as letras. E consegues ZÊ-lo, disse a Caddy. Não vai sêpreciso, disse a Diluy. Eles Mem-no por mim. Tudo o qu eu tenho afazê é dizê que estou aqui. 53 O arame comprido passou-me pelo ombro e o lume desapareceu. Comecei a chorar. A Dilsey e o Luster continuaram a discutir. - Eu bem te vi - disse a Dilsey. - Olá se vi. - Puxou o Luster do canto para fora e abanou-o. - Com que então não estavas a arreliá-lo, pois não. Espera só ré o teu pai chegá. Quem me dera sê nova como noutros tempos e ias vê como elas mordiam. Só me dá vontade de te fechá na adega e não te deixá ir 6 espectáculo logo à noite. Podes crê. - Oh, vó - disse o Luster. - Oh, vó. Estendi a mão para o sítio onde tinha estado o fogo. - Agarra-o - disse a Dilsey. - Não o deixes lá chegar. A minha mão saltou para trás e meti-a na boca e a Dilsey agarrou-me. Ainda conseguia ouvir o relógio misturado com a minha voz. A Dilsey estendeu o braço e bateu na cabeça do Luster. A minha voz soava cada vez mais alto. - Dá cá essa gasosa - disse a Dilsey. Tirou-me a mão da boca. Pus-me a chorar ainda mais alto e a minha mão tentava voltar para a boca, mas a Dilsey segurou-a. A minha voz ouvia-se ainda mais alto. Ela salpicou-me a mão com gasosa. - Vai à despensa e rasga um bocado do pano que está pendurado no prego - disse ela. - Agora cale-se. Não quê qu'a sua mãe fique doente outra vez, pois não. Pronto. Olhe pó lume. A Dilsey vai já fazê a mão pará de doê. Olhe pé lume. - Ela abriu a porta da fornalha. Pus-me a olhar para o lume, mas a minha mão não parava de doer e eu não parava de chorar. A mão queria vir para a minha boca, mas a Dilsey estava a segurá-la. Atou-lhe o pano à volta. A Mãe disse: - O que foi desta vez. Será que nem quando estou doente posso ter paz. Será que tenho de sair da cama e ir ter com ele aí abaixo, com dois negros adultos para tomar conta dele. - Ele já tá bem - disse a Dilsey. - Ele cala-se já. Foi só uma queimadela na mão. - Dois negros desse tamanho e tinham de o trazer para dentro de casa a chorar - disse a Mãe. - Fizeram-no chorar de propósito porque sabem que estou doente. - Veio para junto de mim. Está calado - disse ela. - já calado. Vocês deram-lhe este bolo. 54 - Fui eu qu@o comprei - disse a Dilsey. - Não veio da despensa do Jason. Foi pó aniversário dele. - Queres envenená-lo com esse bolo de terceira categoria disse a Mãe. - É isso que queres, não é. Será que não consigo ter paz nem por um momento.

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- Volte pá cima e vá-se deitá - disse a Dilsey. - Isto passa num instante e ele cala-se já. Vá, vá pá cima. - E deixá-lo aqui para vocês lhe fazerem mais alguma - disse a Mãe. - Como posso eu estar lá em cima deitada, com ele a gritar cá em baixo desta maneira. Benjamin. Cala-te imediatamente. - Não há outro sítio pá onde o levá - disse a Dilsey. - já não temos o quarto que tínhamos antigamente. E ele não pode ficá lá fora a chorá onde todos os vizinhos o vejam. - Eu sei, eu sei - disse a Mãe. - A culpa é toda minha. Mas qualquer dia desapareço, e tu e o Jason já se vão sentir mais à vontade. - E começou a chorar. - Veja se pára com isso - disse a Dilsey. - Assim vai piorá outra vez. Volte pá cima. O Luster vai levá-lo pá biblioteca e fica lá com ele ré eu tê a ceia pronta. A Dilsey e Mãe saíram. - Cale-se - disse o Luster. - Cale-se, já disse. Ou quê que lhe queime a outra mão. Isso já não lhe tá a doê. Cale-se. - Pronto - disse a Dilsey. -Agora pare de chorá. - Deu-me o chinelo e eu calei-me. - Leva-o pá biblioteca - disse ela. - E s'o voltá a ouvir, sou eu mesma que te dou uma surra. Fomos para a biblioteca. O Luster acendeu a luz. As janelas ficaram pretas e o sítio alto e escuro da parede veio direito a mim e eu avancei e toquei-lhe. Era como uma porta, mas não era uma porta. O fogo veio por detrás de mim e eu avancei para o fogo, com o chinelo na mão. O fogo era mais alto. Chegava à almofada da cadeira da Mãe. - Cale-se - disse o Luster. - Será que não é capaz de pará nem por um momento. Olhe, fiz-lhe uma fogueira, e nem sequé olha pá ela. O teu nome é Benjy, disse a Gaddy. Estás a ouvir Benjy. Benjy. Não lhe digas isso, disse a Mãe. Trá-lo cá. 55 A Caddypegou-mepor baixo dos braços e ajudou-me a levantar. Levanta-te Maur.. quero dizer, Benjy, disse ela. Não tentespegar-lhe, disse a Mãe. Podes ajwU-1o a vir atéaqui, nãopodes. Ou serápedír muito. Eu posso levá-lo, disse a Caddy. - Deixe-me levá-lo pa cima. Dilsey. - Então vá lá. Um momento - disse a Dilsey. - Não pode nem com uma gata pelo rabo. Vá e fique queta como Mr. Jason mandou. Estava uma luz acesa ao cimo das escadas. O Pai estava lá em cima em mangas de camisa. A cara dele era como se dissesse Cala-te. A Caddy murmurou: -A Mãe está doente. O Vershpousou-me no chão efomos ao quarto da Mãe. Havia umafogueira. Subia e desciapelasparedes. Havia outrajogueira no espelho. Eu sentia o cheiro da doença. Estava numpano que a Mãe tinha enrolado à cabeça. O cabelo dela estava na almofada. Ofogo não chegava U, mas brilhava na mão dela, cheia de anéis a saltarem dos dedos. - Vem dar as boas-noites à Mãe - disse a Caddy. Aproximámo-nos da cama. O fogo desapareceu do espelho. O Pai levantou-se da cama e pegou-me ao colo e a Mãe pôs-me a mão na cabeça. - Que horas são - disse a Mãe. Os olhos dela estavam fechados. Dez para as sete - disse o Pai. É muito cedo para ele ir para a cama - disse a Mãe. Depois acorda ao nascer do sol, e eu não vou aguentar um outro dia como o de hoje. - Então, então - disse o Pai. E acariciou o rosto da Mãe. - Sei bem que para ti não passo de um fardo - disse a Mãe. Mas já falta pouco para desaparecer. E então ficarás livre das minhas lamentações. - Está caladinha - disse o Pai. - Eu levo-o lá para baixo um bocadinho. - Pegou-me ao colo. - Vamos, meu velho. Vamos um bocadinho

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lá para baixo. Não podemos fazer barulho enquanto o Quentin está a estudar. 56 A Caddy aproximou-se da cama, inclinou-se e a mão da Mãe surgiu à luz da fogueira. Os anéis dela saltavam nas costas da Caddy. A Mãe está doente, disse o,[al. A Dilsey vai deítar-te. Onde está o Quentin. * Vershfoi buscá-lo, disse a Dilsey. * Pai ficou a olhar para nós quando passámos por ele. Ouvíamos a Mãe no quarto dela. A Caddy disse: - Cala-te. O Jason vinha a subir as escadas. Vinha de mãos nos bolsos. - Hoje têm de se portar todos muito bem - disse o Pai. E não façam barulho, para não incomodarem a Mãe. - Nós ficamos calados - disse a Caddy. - Cala-te, Jason disse ela. Começámos a andar em bicos dos pés. Ouvíamos o telhado. Eu via também ofogo no espelho. A Gaddy pegou em mim outra vez. -Vá, vamos embora - disse ela. - Depois, já podes voltar para o fogo. E agora cala-te. - Candace - disse a Mãe. - Cala-te, Benjy - disse a Caddy. - A Mãe quer ver-te só por um instante. Porta-te bem. Depois podes voltar para aqui, Benjy. A Caddy pousou-me no chão, e eu calei-me. - Deixe-o ficar aqui, Mãe. Quando ele se cansar de olhar para o fogo, então pode chamá-lo. - Candace - disse a Mãe. A Caddy baixou-se e pegou em mim. Desequilibrámo-nos. - Candace - disse a Mãe. - Cala-te - disse a Caddy. - Ainda o consegues ver. Vá, cala-te. - Trá-lo cá - disse a Mãe. - Ele é muito grande para tu lhe pegares. Não estejas para aí a tentar. Ainda dás algum mau-jeito às costas. Todas as nossas mulheres sempre se orgulharam do seu porte. Vê lá se queres parecer uma lavadeira. - Ele não pesa assim tanto - disse a Caddy. - Eu consigo levá-lo. - Bem, então sou eu que não quero que ele passe dum lado para o outro - disse a Mãe. - Uma criança de cinco anos. Não, não. No meu colo não. Deixa-o estar de pé. 57 - Se o abraçar, ele cala-se logo - disse a Caddy. - Chhhh disse ela. - Vais voltar para lá agora. Então. Toma a tua almofada. Olha. - Não faças isso, Candace - disse a Mãe. - Deixe-o olhar para ela e ele cala-se logo - disse a Caddy. Levanta-se um bocadinho, para eu a tirar. Pronto, Benjy, olha. Olhei para a almofada e calei-me. - Fazem-lhe vontades de mais - disse a Mãe. - Tu e o teu pai. E não percebem que depois quem sofre com isso sou eu. A Vóvó estragou o Jason da maneira que se viu e foram precisos dois anos para ele recuperar, e eu não estou com forças para passar pelo mesmo com o Benjamin. - Não se preocupe com ele - disse a Caddy. - Eu gosto de tomar conta dele. Não gosto, Benjy. - Candace - disse a Mãe. -já te disse para não o chamares assim. já foi uma complicação quando o teu pai se lembrou de te tratar por aquele diminutivo idiota, e não quero ouvi-lo a mais ninguém. Os diminutivos são urna coisa grosseira. Só a gente do povo é que os usa. Benjamin é que é - disse ela. - Olha para mim - disse a Mãe. - Benjamin - disse ela. Agarrou-me a cara com as mãos e virou-a para ela. - Benjamin -disse ela. - Leva daqui essa almofada, Candace. - Ele vai chorar - disse a Caddy. - Leva daqui a almofada, já disse - disse a Mãe. - Ele tem de aprender

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a obedecer. A almofada foi-se embora. - Cala-te, Benjy - disse a Caddy. - Vai para ali e deixa-te estar sentada - disse a Mãe. Benjamin. - Encostou a minha cara à dela. - Pára com isso - disse ela. - Pára com isso. Mas eu não parava e a Mãe apertou-me nos braços e começou a chorar, e eu ainda chorava mais. Nisto, a almofada voltou e a Caddy segurou-a por cima da cabeça da Mãe. Ela encostou a Mãe para trás na cadeira e a Mãe ficou a chorar com a cara na almofada vermelha e amarela. 58 - Pronto, Mãe - disse a Caddy. - Vá para cima deitar-se, senão fica pior. Eu vou chamar a Dilsey. - Ela levou-me para ao pé do fogo e eu fiquei a olhar para as formas suaves e brilhantes. Ouvia o fogo e o telhado. O Pai pegou-me ao colo. Cheirava como a chuva. - Então, Benjy - disse ele. - Portaste-te bem hoje. A Caddy e o Jason estavam a lutar no espelho. - Então, Caddy - disse o Pai. Continuaran-i a lutar. O Jason começou a chorar. - Caddy - disse o Pai. O Jason estava a chorar. já não estava a lutar, mas víamos a Caddy a lutar no espelho e o Pai pousou-me no chão e entrou no espelho e começou a lutar também. Pegou na Caddy. Ela continuou a lutar. O Jason estava caído no chão a chorar. Tinha uma tesoura na mão. O Pai agarrou a Caddy. - Ele cortou todos os bonecos de papel do Benjy - disse a Caddy. - Vou cortar-lhe as tripas. - Candace - disse o Pai. - Isso é que eu vou - disse a Caddy. - Vou e vou mesmo. - Continuava a lutar. O Pai estava a segurá-la. Ela deu um pontapé no Jason. Ele rebolou para o canto, para fora do espelho. O Pai trouxe a Caddy para junto do lume. já tinham saído todos do espelho. Só lá ficou o lume. Tal como também estava na porta. - Pára com isso - disse o pai. - Queres que a Mãe oiça e fique pior. A Caddy parou. - Ele cortou todos os bonecos que eu e o Maur .. 1 digo, o Benjy fizemos - disse a Caddy. - Só por maldade. - Não foi por maldade - disse o Jason. Estava sentado no chão, a chorar. - Não sabia que eram dele. julguei que eram só papéis velhos. - Tinhas de saber - disse a Caddy. - Fizeste isso só por... - Cala-te - disse o Pa 1. - Jason - disse ele. - Amanhã faço-te mais - disse a Caddy. - Vamos fazer um monte deles. Toma, podes olhar para a almofada. Ojason entrou. Fartei-me de lhe dizêpa se calá, disse o Luster. 59 Que sepassa agora, disse ojason. - Está insuportável - disse o Luster. - Tem estado assim todo o dia. - Então por que não o deixas em paz - disse o Jason. - Se não o consegues calar, tens de o levar para a cozinha. Nós não nos podemos fechar num quarto como faz a Mãe. - A'nha avó diz pa não o deixarmos ir pá cozinha'té ela tê a ceia pronta - disse o Luster. - Então brinca com ele e vê se ele fica calado - disse o Jason. Será que tenho de trabalhar o dia inteiro para chegar a casa e encontrar este manicómio. - Abriu o jornal e começou a ler. Podes olharpara o lume epara o espelho epara a almofada, disse a Caddy. Agora, já não tens de esperar até aofim da ceiapara olharespara a almofada. Ouvíamos o telhado. Ouvíamos também o Jason a chorar muito do outro lado daparede.

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A Dilsey disse: - Venha Jason. Não te tás a metê co ele, pois não. - Nã sinhô - disse o Luster. - Onde tá a Quentin - disse a Dilsey. - A ceia tá quase pronta. - Eu cá não sei - disse o Luster. - Não a vi. A Dilsey foi-se embora. - Quentin - chamou do meio do corredor. - Quentin. A ceia tá pronta. Ouvíamos o telhado. O Quentin também cheirava como a chuva. O q u e é q u e o Jaso n fez, disse ele. Cortou todos os bonecos do Benjy, disse a Caddy. A Mãe disse para não o chamares Benjy, disse o Quentin. Sentou-se no tapete ao pé de nós. Quem dera que a chuvaparasse, disse ele. Assim não sepodefazer nada. Andaste a lutar, não andaste, disse a Gaddy. Coisa sem importância, disse o Quentin. Po&s contar, disse a Gaddy. O Pai vaiperceber. Quero U saber, disse o Quentin. Quem dera queparasse de chover A Quentin disse: - Então a Dilsey não disse que a ceia estava pronta. - Disse sissiô - disse o Luster. O Jason olhou para a Quentin. Depois continuou a ler o jornal. A Quentin entrou. - Diz 60 que está quase pronta - disse o Luster. A Quentin saltou para a cadeira da Mãe. E o Luster disse: - Mr. Jason. - O que é - disse o Jason. - Dê-me duas moedas - disse o Luster. - Para quê - disse o Jason. - Pa ir logo é espectáculo - disse o Luster. - Julguei que a Dilsey ia pedir vinte e cinco cêntimos à Frony para tos dar - disse o Jason. - E pediu - disse o Luster. - Mas eu perdi-os. Eu e o Benjy passámos o dia à procura da moeda. Pode perguntar-lhe. - Então pede-lhe outra emprestada - disse o Jason. - Eu tenho de trabalhar para conseguir ganhar o meu. - E continuou a ler o jornal. A Quentin estava a olhar para o fogo. O fogo estava nos seus olhos e na sua boca. A boca dela era vermelha. - Tentei evitar que ele fosse para lá - disse o Luster. - Cala a boca - disse a Quentin. O Jason olhou para ela. - Lembras-te do que eu disse que te fazia se te tornasse a ver com esse tipo do espectáculo - disse ele. A Quentin continuou a olhar para o fogo. - Estás a ouvir - disse o Jason. - Ouvi, sim - disse a Quentin. - E então por que não faz. - Não te preocupes, que faço - disse o Jason. - Não estou preocupada - disse a Quentin. O Jason continuou a ler o jornal. Eu ouvia o telhado. O Pai inclinou-separa afrente e olhoupara o Quentin. OU, disse ele. Quem ganhou. - Ninguém - disse o Quentin. - Vieram apartar-nos. Os professores. - Quem era ele - disse o Pai. - Não me queres dizer. - Não teve problema - disse o Quentin. - Ele era do meu tamanho. - Ainda bem - disse o Pai. - E podes ao menos dizer por que começou. - Por nada de especial - disse o Quentin. - Ele disse que punha uma rã na carteira dela e que ela não tinha coragem para lhe bater. 61 - Ah - disse o Pai. - Ela. E depois. - Pois foi - disse o Quentin. - E eu então bati-lhe. Ouvíamos o telhado e o lume, e umas fungadelas do lado de fora da porta. - Onde ia ele arranjar uma rã em Novembro - disse o Pai. - Isso não sei - disse o Quentin. Ouvíamos ruídos. - Jason - disse o Pai. Ouvíamos o Jason. - Jason - disse o Pai. - Vem para aqui e pára com isso. Ouvíamos o telhado e o lume e o Jason.

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- Pára com isso imediatamente - disse o Pai. - Vê lá se queres que te bata outra vez. - O Pai pegou no Jason e sentou-o na cadeira ao seu lado. O Jason continuou a fungar. Ouvíamos o lume e o telhado. O Jason começou a fungar com mais força. - Vá, continua - disse o Pai. Ouvíamos o lume e o telhado. A Dilsey disse, Pronto, jápodem vir todos cear. O Versh cheirava como a chuva. Cheirava como um cão, iambém. Ouvíamos o lume e o telhado. Ouvimos a Caddy a andar muito depressa. O Pai e a Mãe olharam para a porta. A Caddy passou muito apressada. Nem olhou. Ia muito depressa. - Candace - disse a Mãe. A Caddy parou. - Sim, Mãe - disse ela. - Cala-te, Caroline - disse o Pai. - Vem cá - disse a Mãe. - Cala-te, Caroline - disse o Pai. - Deixa-a em paz. A Caddy veio até à porta e ficou parada a olhar para o Pai e para a Mãe. Os seus olhos pousaram em mim e foram-se embora. Comecei a chorar. Chorava com toda a força e levantei-me. A Caddy entrou e ficou de pé encostada à parede a olhar para mim. Fui ter com ela, a chorar, e ela encostou-se mais à parede e eu vi os olhos dela e comecei a chorar com mais força e a puxar-lhe pelo vestido. Ela estendeu as mãos, mas eu continuei a puxar-lhe pelo vestido. Os olhos dela fugiram. O Versb disse, Oseu nomeagora éBenjamin. Sabeporqu'é qu:lgora se chama Benjamin. Porqu'o querem transformá num gengí62 vas azuis.' A 'nha mãe diz que há muito tempo o seu avô mudou o nome dum negro, e que depois seJezpastor, e que quando olharam pa ele, ele tinha também as gengivas azuis. E nunca as tinha tido assim. E quando uma mulherprenha olhavapós olhos dele numa noite de lua cheia, a criança nacia cas gengivas azuis. E uma noite, quandojá havia perto d`uma dúzia de crianças de gengivas azuis a correrem por ali, ele não voltou pa casa. Foram uns caçadores de opóssuns que o encontraram nafloresta todo comido. Esabe quem o comeu. Foram as crianças de gengivas azuis. Estávamos no vestíbulo. A Caddy continuava a olhar para Mim. Tinha a mão a tapar a boca e eu olhei para os olhos dela e pus-me a chorar. Fomos para cima. Ela encostou-se outra vez à parede a olhar para mim, e eu sempre a chorar, e ela continuou a andar e eu fui atrás dela a chora-r, e ela encolheu-se contra a parede a olhar para mim. Abriu a porta do quarto, mas eu puxei-lhe o vestido e fomos à casa de banho e ela ficou encostada à parede a olhar para mim. Depois tapou os olhos com o braço e eu encostei-me a ela a chorar. Que estás tu afazer-lhe, disse ojason. Por que não o deixas em Paz. Não lhe tou a tocá, disse o Luster. Ele tem tado assim todo o dia. Precisa d@ípanhá. Precisa é que o mandem parajackson, disse a Quentin. Como é que alguém pode viver numa casa como esta. Olha, menina, se não te ag", vai-te embora, disse ojason. * é que vou mesmo, disse a Quentin. Não tepreocupes. * Versh disse: - Chegue-se pa lá um bocadinho, pa eu secá as minhas pernas, - E empurrou-me. - Não comece a berrá outra vez. Daí inda consegue vê o lume. É tudo o que pode fazê. Não teve de andá lá por fora à chuva como eu. Nasceu cheio de sorte c nem se dá conta. - Deitou-se de costas diante do lume. - Sabe por qu'é qu'o seu nome agora é Benjamin - disse o Versh. Porqu'a sua mãe tem vergonha de si. É o que a'nha mãe diz. - Fique aí quero e deixe-me secá as pernas - disse o Versh. - Senão, já sabe o qu'eu lhe faço. Pélo-lh`o olho do cu. 1. Os Bluegum negroes (negros de gengivas azuis) eram tradicionalmente famosos pela sua ferocidade. (N. da T)

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63 Ouvíamos o lume, o telhado e o Versh. O Versh levantou-se de repente e esticou as pernas. O Pai disse: - Então, Versh. - Hoje dou-lhe eu de comer - disse a Caddy. - Ele às vezes chora quando o Versh lhe dá de comer. - Leva este tabuleiro lá 'cima - disse a Dilsey. - E volta depressa pa dares de comê ao Benjy- Queres que a Caddy te dê de comer, não queres - disse a Caddy. Como ele nunca mais tirava o chinelo nojento de cima da mesa, a Quentin disse, Por que não lhe dás de comer na cozinha. É o mesmo que estar à mesa com um porco. Se não gostas da maneira como nós comemos, o melhor é não virespara a mesa, disse ojason. O Roskus deitava fumo. Estava sentado em frente do fogão. A porta do forno estava aberta e o Roskus tinha lá metido os pés. Saía muito vapor da tigela. A Caddy meteu-me a colher na boca devagarinho. Havia uma marca preta no interior da tigela. Pronto, pronto, disse a Dilsey. Elejá não o incomoda mais. Passei para baixo da marca. Daí a pouco a tigela estava vazia. E foi-se embora. - Ele hoje está com fome - disse a Caddy. A tigela voltou. já não conseguia ver a marca. Mas depois voltei a vê-Ia. - Ele hoje está esfomeado - disse a Caddy. - Vejam só o que ele comeu. Pudera, disse a Quentin. Vocês mandam-no todos espiar-me. Odeio esta casa. Voupôr-me a andar daquiparafora. O Roskus disse: - Vai chover toda a noite. Gostas muito de andarpor aí, mas é só até chegar a hora das refeições, disse o Jaso n. Espera e verás, dísse a Quentin. - Não sei con@istc, vai sê - disse a Dilsey. - Apanhou-me a anca duma maneira que mal me posso mexê. É de passá a noite a subir as escadas. Não me admirava nada, disse o Jason. A mim já não me espanta nada que tufaças. A Quentín atirou o guardanapopara cima da mesa. Cale a boca, Jason, disse a Dílsey. Aproxímou-se da Quentin e 64 pôs-lhe o braço por cima das costas. Senta-te, minha linda disse a Dibey. Ele devia tê vergonha. A atirar-lhe à cara com coisas de que não tem culpa- Tá outra vez amuada, não tá - disse o Rosicus. - Cala a boca - disse a Dilsey. A Quentin empurrou a Dilsey. Olhou para o Jason. Tinha a boca toda vermelha. Pegou no copo de água e esticou o braço para trás sem tirar os olhos do jason. A Dilsey segurou-lhe o braço. Lutaram. O copo partiu-se em cima da mesa e a água correu pela mesa fora. A Quentin desatou a correr -A Mãe está doente outra vez - disse a Caddy. - Claro que tá - disse a Dilsey. - Cum tempo destes toda a gente fica doente. Veja s'acaba de comê. Diabos te levem, disse a Quentin. Diabos te levem. Ouvíamo-la a correrpela escada acima. Fomospara a biblioteca. A Caddy deu-me a almofada, e eu podia olhar para a almofada, para o espelho e para o lume. - Não podemos fazer barulho enquanto a Quentin estiver a estudar - disse o Pai. - Que estás a fazer, jason. - Nada - disse o jason. - E se viesses fazer isso para aqui - disse o Pai. O jason saiu do canto. - O que estás tu para aí a chupar - disse o Pai. - Nada - disse o jason. - Ele anda outra vez a comer papel - disse a Caddy.

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- Vem cá, jason - disse o Pai. O Jason cuspiu o papel para a lareira. O papel assobiou, desenrolou-se e pôs-se negro. Depois cinzento. Depois desapareceu. A Caddy, o Pai e o jason estavam na poltrona da Mãe. Os olhos do jason estavam fechados e a boca dele inexia-se como se estivesse a provar alguma coisa. A cabeça da Caddy estava encostada ao ombro do Pai. O cabelo dela era como o fogo, e dos seus olhos saíam pontas de fogo, e eu aproximei-me e o Pai puxou-me também para a cadeira, e a Caddy segurou-me. Cheirava como as árvores. Ela cheirava como as árvores. No canto estava escuro, mas eu via ajanela. Deixei-me Ulficar agachado, com o chinelo na mão. Não 65 o conseguia ver, mas as minhas mãos viam-no, e ouvia a noite a aproximar-se, e as minhas mãos viam o chinelo, mas eu não me via, mas as minhas mãos viam o chinelo, e eu estava ali agachado a ouvir a noite chegar. Com qu`então tá aqui, disse o Luster. Olhe o qu @u arranjei. Sabe onde é qu`os arranjei. Foi Miss Quentin que mos deu. Eu bem sabia que não iaficá sem ir. O que tá afazê aqui. Jájulgava que se tinha escapado Z@paJora. Inda não chorou hoje que chegue, sem tê de se vi.r escondê aqui nesta sala vazia, com as suas choradeiras. Venhapà cama, pa vê se consigo chegá Zd antes daquilo começá. Hoje não possoficá a aturá-lo toda a noite. Assim qu ouvir o primeiro toque, vou-me embora. Não fomos para o nosso quarto. - Aqui é onde temos o sarampo - disse a Caddy. - Por que é que temos de dormir aqui esta noite. - Qu'lmportâ-ncia tem o sítio onde dormem - disse a Dilsey. Fechou a porta, sentou-se e começou a despir-me. O Jason começou a chorar. - Cale-se - disse a Dilsey. - Quero dormir com a Vóvó - disse o Jason. - Ela está doente - disse a Caddy. - Podes dormir com ela quando melhorar. Pode, não pode, Dilsey. - Agora tej a caladinho - disse a Dilsey. O Jason calou-se. - As nossas camisas estão aqui e tudo - disse a Caddy. como se mudássemos de casa. - É melhor vestirem-nas - disse a Dilsey. - Desabotoe a roupa do Jason. A Caddy desabotoou as roupas do Jason. Ele começou a chorar. - Veja lá se quê apanhá - disse a Dilsey. O Jason calou-se. Quentin, disse a Mãe do corredor. O que é, disse a Quentin através da parede. Ouvimos a Mãe fechar a porta à chave. Abriu a nossa porta, entrou, debruçou-se sobre a cama e deu-me um beijo na testa. Depois de o deitares vai dizer à Dilsey se não se importa de me arranjar o saco de água quente, disse a Mãe. Diz-lhe que se lhe der muita maçada, @W terei depassar sem ela. Diz-lhe que sópergunto porperguntar. 66 Sissiô, disse o Luster. Vamos. Tocà tirá as calças. O Quentin e o Versh entraram. O Quentin vinha a esconder a cara. - Estás a chorar porquê - disse a Caddy. - Cale-se - disse a Dilsey. - Vá, dispam-se todos. Tu podes ir pa casa, Vérsh. Despi-me, olhei para o meu corpo e comecei a chorar Cale-se, disse o Luster. Não serve de nada andá à procura deles. Foram-se embora. Se continua a portar-se dessa maneira, nunca mais lhe fazemosfesta de anos. Vestiu-me a camisa de dormir. Galei-me, e nisto o Lusterparou a olharpara ajanela. Depoisfoi até àjanela e olhou Uparajora. Voltoupara dentro epegou-me no braço. Lá vai ela,

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disse ele. Agora fique calado. Fomos até à janela e olhámos lá parafora. O vulto saiu dajanela do quarto da Quentin e empoleirou-se na árvore. Vimos a árvore a abanar Ouvimos o vulto a descerpela árvore e depois vimo-lo saltar da árvore e ir-se embora pela relvaJora. Depois deixámos de o ver. Venha, disse o Luster. Pronto. Tá a ouvir as cornetas. Meta-se na cama queu vou,5U bpé. Havia duas camas. O Quentin meteu-se na outra. Virou a cara para a parede. A Dilsey deitou o Jason ao lado do Quentin. A Caddy despiu o vestido. - Olhe só para os seus culotes - disse a Dilsey. - Dê-se por muito contente de a sua mãe não a tê visto. - Eu já fiz queixa dela - disse o Jason. - Isso já era d'esperá - disse a Dilsey. - E vê lá o que ganhaste corri isso - disse a Caddy. - Queixinhas. - O que é que eu ganhei com isso - disse o Jason. - Por que não veste a camisa de dormir - disse a Dilsey. Ajudou a Caddy a despir o corpete e os culotes. - Olhe só pó estado em que tá - disse Dilsey. Pegou nos culotes e esfregou corri eles o rabo da Caddy. - Ficou toda suja - disse ela. Mas esta noite não lhe vou dá banho. - Véstiu-lhe a camisa de dormir e a Caddy subiu para a cama e a Dilsey dirigiu-se para a porta e disse, com a mão na luz: - Agora fiquem todos caladinhos, estão a ouvir. - Está bem - disse a Caddy. - Hoje a Mãe não vem cá disse ela. - Por isso ainda têm de fazer o que eu mandar. 611 - Pois têm - ffisse a Dilsey. - Vá, toca a dormi. - A Mãe está doente - disse a Caddy. - Ela e a Vóvó estão ambas doentes. - Calem-se - disse a Dilsey. - Toc'à dormi. O quarto ficou todo preto menos a porta. Depois a porta também ficou preta. A Caddy disse: - Está caladinho, Maury - e pôs-me a mão em cima. E eu calei-me. Nós ouvíamos as nossas vozes, e ouvíamos a escuridão. A escuridão foí-se embora e o Pai estava a olhar para nós. Olhou para o Quentin e para o Jason, depois veio dar um beijo à Caddy e fez-me uma festa na cabeça. - A Mãe está muito doente - disse a Caddy. - Não - disse o Pai. - És capaz de tomares conta do Maury@ - Sou - disse a Caddy. O Pai foi até à porta e olhou para nós outra vez. Depois a escuridão voltou, e ele ficou todo preto à porta, e depois a porta ficou preta outra vez. A Caddy abraçou-me e eu ouvia-nos a todos nós e à escuridão, e uma coisa que eu podia cheirar. Depois já conseguia ver as janelas onde as árvores estavam a zumbir. Então a escuridão começou a girar com formas suaves e brilhantes, como sempre acontece, mesmo quando a Caddy diz que eu estive a dormir. Doís dejunho de 1910 Foi entre as sete e as oito que a sombra dos caixilhos apareceu nos cortinados e eu entrei outra vez no tempo, ao som do despertador. Era do Avô, e quando o Pai mo deu disse dou-te o mausoléu da esperança e do desejo; chega a ser dolorosamente justo que o uses para alcançares o reducto absurdum de toda a experiência humana, que responderá às tuas necessidades individuais tão bem como respondeu às do teu avô ou às do pai dele. Dou-to, não para que te lembres constantemente do tempo, mas para que te possas esquecer dele de vez em quando, sem depois te esfalfares na ânsia de o recuperares. Porque, como ele dizia, nenhuma

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batalha se pode considerar ganha. Nem sequer travada. O campo de batalha apenas revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos. Estava encostado à caixa dos colarinhos e eu deitado a escutá-lo. Isto é, apenas a ouvi-lo. Não creio que haja alguém que deliberadamente escute um relógio ou um despertador. Nem é preciso. Podemos abstrair-nos do som por largo tempo, e nisto, num segundo de atenção, ele recria na nossa mente o longo período de tempo que não ouvimos. Tal como o Pai dizia que se podia ver Jesus a caminhar nos longos e solitários raios de luz. E o bom São Francisco de Assis, que dizia Irmãzinha Morte, ele que nunca teve uma irmã. Através da parede ouvi as molas do colchão do Shreve e depois os seus chinelos a arrastarem pelo chão. Levantei-me, fui até à cómoda e percorri-a com a mão até tocar no despertador; virei-o com o mostrador para baixo e voltei para a cama. Mas a sombra dos caixilhos ainda lá estava e eu tinha aprendido a deci69 frá-la quase até ao minuto, pelo que tive de lhe virar as costas, acometido de uma comichão como se tivesse os olhos que os animais tinham antigamente na parte de trás da cabeça, quando a traziam erguida. Arrependemo-nos dos hábitos ociosos que adquirimos. Era o que o Pai dizia. E que Cristo não foi crucificado: foi-se esgotando no ínfimo tic-tac de máltiplas rodinhas. Ele que não tinha irmã. E quando percebi que não o podia ver, comecei a tentar des- cobrir que horas seriam. O Pai dizia que a especulação constante sobre a posição de uns ponteiros ligados a um mecanismo sobre um mostrador arbitrário é sintoma de actividade mental. Um excremento, dizia o Pai, como o suor. E eu dizia Esta Dem. Tenta descobrir. Tenta sempre descobrir. Se o dia tivesse amanhecido nublado, podia ter olhado para a janela a pensar no que ele costumava dizer sobre os hábitos ociosos. A pensar como devia ser bom para eles lá em New London, se o tempo se conservasse assim. E por que não havia de conservar? O mês das noivas, a voz que sussurrava. Ela saiu a correr do espelho, dos aromas concentrados. Rosas. Rosas. Mr. e Mrs. Jason Ríchmond Compson têm o prazer de anunciar o casamento de. Rosas. Mas virgens, não como as flores de laranjeira e de cerejeira-brava. Eu disse que tinha cometido incesto, Pai, eu disse. Rosas. Astuto e sereno. Andar um a-no em Harvard e não ver a regata devia dar direito a reembolso. O Jason que fique com ele. Mande o Jason um ano para Harvard. O Shreve apareceu à porta, a abotoar o colarinho, com os óculos a brilharem rosáceos, como se ele os tivesse lavado juntamente com a cara. - Vais baldar-te esta manhã? - Já é assim tão tarde? Olhou para o relógio. - A campainha toca daqui a dois minutos. - Não reparei que já era tão tarde. - Ele continuava a olhar para o relógio, de boca à banda. - Tenho de me apressar. Não posso apanhar outra falta. O deão já me avisou a semana passada... - Voltou a meter o relógio no bolso. Calei-me. - O melhor era enfiares as calças e dares uma corrida - disse ele. Saiu do quarto. 70 Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro a ouvi-lo através da parede. Ouvi-o na nossa sala comum a dirigir-se para a porta. - Ainda não estás pronto? - Ainda não. Despacha-te. Eu vou já. Saiu. A porta fechou-se. Ouvi-lhe os passos no corredor. Nisto, outra vez o relógio. Parei de andar de um lado para o outro, fui até à janela, afastei as cortinas e fiquei a vê-los correrem para a capela, os mesmos de sempre, a debaterem-se com aquelas enormes mangas de sempre, os livros de sempre e os colarinhos

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de sempre, a esvoaçar, passando velozes diante dos meus olhos como detritos levados pela torrente, e o Spoade. Dizer que o Shreve é meu marido. Não lhe ligues, disse o Shreve, se ele não tem mais que fazer do que andar atrás dessas porcas desavergonhadas, que temos nós com isso. No Sul é vergonha ser virgem. Os rapazes. Os homens. Até mentem a esse respeito. Com as mulheres já não é assim, disse o Pai. Disse que foram os homens que inventaram a virgindade, não as mulheres. O Pai disse que é como a morte - apenas um estado em que os outros se encontram, e eu disse: Mas não importa acreditar nisso ou não, e ele disse: É isso que é triste, em relação ao que quer que seja: não apenas à virgindade, e eu disse: Por que é que não podia ser eu e não ela a ser desvirginado, e ele disse: É também por isso que é tão triste; nem sequer vale a pena mudar nada, e o Shreve disse se ele não teria mais nada que fazer do que andar atrás daquelas porcas desavergonhadas e eu disse já tiveste uma irmã? já? já? No meio deles, o Spoade parecia um cágado numa rua coberta de folhas secas arrastadas pelo vento, com o colarinho a chegar-lhe às orelhas, avançando no seu passo paulatino do costume. Era finalista e vinha da Carolina do Sul. No clube vangloriava-se de nunca ter tido de correr para chegar a tempo ao serviço religioso, nem ter chegado mesmo em cima da hora, nem ter faltado uma só vez em quatro anos, nem ter chegado nunca à capela ou à primeira aula da manhã com a camisa vestida ou as meias calçadas. Entrava no Thompson por volta das dez horas, pedia duas chávenas de café, sentava-se, tirava as meias do bolso e descalçava os sapatos e calçava as meias enquanto o café arrefecia. Por volta do meio-dia já andava de camisa e colarinho como toda a gente. Os outros passavam por ele a correr, mas ele nunca acelerava o passo. Daí a pouco o pátio ficou deserto. Um pardal cruzou o ar pela frente do sol, veio pousar no peitoril da janela e pôs-se a olhar para mim. O olho dele era redondo e brilhante. Primeiro observou-me só com um olho, depois, zás! e era o outro que me observava, enquanto a garganta palpitava mais célere que qualquer pulso. Começaram a dar horas. O pardal desistiu de trocar de olhos e fitou-me intensamente com o mesmo olho até as badaladas se calarem, como se também ele estivesse a escutá-las. Nisto, saltou do peitoril e desapareceu. Foi mesmo antes de a última badalada ter deixado de vibrar. Pairou no ar por largo tempo, mais latente do que audível. Como se todos os sinos vibrassem ainda nos longos raios de luz que esmoreciam enquanto Jesus falava com São Francisco sobre a irmã. Se existisse apenas o inferno e nada mais. Se fosse tão simples como isso. Assunto arrumado. Se as coisas se acabassem em si próprias. Mais ninguém presente além de ela e de mim. Se ao menos tivéssemos podido fazer alguma coisa de tão terrível que todos eles tivessem fugido para os infernos, excepto nós. Cometi incesto disse eu Paifuí eu nãofoi o Dalton Ames. E quando ele me pôs Dalton Ames. Dalton Ames. Dalton Ames. Quando ele me pôs a pistola na mão não fui capaz. Foi por isto que não fui capaz. Ele estaria lá. E ela. E eu. Dalton Ames. Dai- ton Ames. Dalton Ames. Se ao menos tivéssemos podido fazer qualquer coisa de tão terrível que o Pai dissesse É triste que duas pessoas não só não consigam fazer nada de verdadeiramente terrível, mas que também não consigam sequer fazer nada de terrível, nem se consigam lembrar amanhã do que hoje lhes parecia tão terrível e eu disse: Podemos sempre fugir às responsabilidades e ele disse: Ali, podemos? E eu olharei para baixo e verei os meus ossos a rangerem e a água profunda como o vento, como um telhado de vento, e ao fim de muito tempo eles não poderão distinguir sequer os ossos na areia solitária e inviolada. Até

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que, no Dia em que Ele disser Levantai-vos, só o 72 ferro de engomar virá à superfície. Não é quando descobrimos que nada nos pode ajudar - religião, orgulho, qualquer coisa - é quando percebemos que não precisamos de ajuda. Dalton Ames. Dalton Ames. Dalton Ames. Se eu pudesse ter sido a mãe dele, jazendo de corpo aberto soerguido sorridente, agarrando o pai dele com esta mão, segurando-o, vendo, assistindo à sua morte antes de ele ter vivido. Ela permaneceu à porta por um minuto. Fui à cómoda e peguei no relógio, ainda com o mostrador para baixo. Bati com o vidro na esquina da cómoda, juntei na palma da mão os fragmentos, deit 'ei-os para o cinzeiro, arranquei os ponteiros e pu-los também no cinzeiro. O relógio continuou a trabalhar. Voltei-o com o mostrador para cima, agora vazio e com minúsculas rodas dentadas a baterem por detrás dele sem parar, sem outra alternativa. Jesus a andar pela Galileia e Washington sem dizer mentiras. O Pai trouxe ao Jason um prenda da Feira de Saint Louis: um óculo de ópera miniatural por onde se espreitava com um olho e se via um arranha-céus, uma Roda Gigante toda riscada como uma tela de aranha e as Cataratas do Niagara na cabeça de um alfinete. Havia uma mancha vermelha no mostrador. Quando dei por ela, senti o polegar a arder. Pousei o relógio, fui ao quarto do Shreve buscar a tintura de iodo e pintei o golpe. Com uma toalha, limpei os vidros que ainda estavam agarrados ao aro exterior. Tirei dois conjuntos de roupa interior, e também meias, camisas, colarinhos e gravatas, e fiz a mala. Meti tudo lá dentro excepto o meu fato novo e outro já muito velho, dois pares de sapatos e dois chapéus, e todos os meus livros. Levei os livros para a sala e empilhei-os em cima da mesa, tanto os que tinha trazido de casa como os que O Pai disse que antigamente se conhecia um cavalheíropelos livros que tinha; agora conhece-sepelos que não devolveu fechei a mala e enviei-a. Soou o quarto de hora. Parei e fiquei a ouvi-lo até os sinos se calarem. Tomei banho e fiz a barba. A água fez-me arder ligeiramente o dedo e pus-lhe por isso mais tintura. Vesti o fato novo, pus o relógio e meti o outro fato, os acessórios, a navalha de barba e as escovas na mala de viagem, e em seguida embrulhei a chave do '3 baú numa folha de papel e coloquei-a num sobrescrito dirigido ao meu pai, escrevi os dois bilhetes e selei-OS. A sombra não tinha desaparecido ainda do peitoril. Deixei-me ficar encostado à porta por mais algum tempo a ver a sombra deslocar-se. Avançava quase perceptivelmente, rastejando para dentro da porta, empurrando a sombra para trás até à porta. Só que elajá ia a correr quando eu me dei conta. já ia a correr dentro do espelho antes que eu pudesse perceber do que se tratava. Veloz, com a cauda do vestido deitada sobre o braço, saiu do espelho a correr como uma nuvem, com o véu esvoaçante cintilando em longos reflexos, os saltos dos sapatosfinos e apressados, segurando o vestido no ombro com a outra mão, saiu a correr do espelho de aromas de rosas na voz que soprava sobre o Éden. Depois atravessou o alpendre e eujá não ouvia os saltos dos sapatos e depois à luz do luar, como uma nuvem, com a sombraflutuante do véu deslizando sobre a relva, em direcção ao alarido. Parecia que saía do vestido e, agarrando o véu, corria de encontro ao alarido onde o T P na orvalhada dava Vivas ao Benjy da Salsaparrilha que gritava debaixo do caixote. O peito do Pai agitava-se sob uma couraça de prata emJorma de V O Shreve disse: - Bem, tu não... Trata-se dum casamento ou dum

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velório? - Não cheguei a tempo - disse eu. - Pudera, com tantos arrebiques. Que foi? julgaste que era domingo? - Acho que não vou preso por ir de fato novo, ao menos uma vez - disse eu. - Estava a pensar na estudantada toda lá em baixo no pátio. Vão pensar que vais para Harvard. Ou achas-te bom de mais para ires às aulas? - Primeiro vou comer. - A sombra desaparecera do parapeito. Saí para a luz do sol e encontrei de novo a minha sombra. Desci os degraus mesmo à frente dela. A meia hora soou. As badaladas foram-se extinguindo até cessarem por completo. O Diácono também não estava nos correios. Selei os dois sobrescritos e enviei um ao Pai. O outro, o do Shreve, guardei-o no bolso. Foi então que me lembrei de onde tinha visto o Diáco74 no pela última vez. Fora no Decoration Day,1 em pleno cortejo, vestido com o uniforme do G. A. R.' Se pudéssemos ficar à espera encostados a uma esquina, íamos encontrá-lo em todos os cortejos. A penúltima tinha sido no Dia de Colombo, ou seria de Garibaldi, ou talvez no aniversário de outra personagem qualquer. Desfilava na secção dos Varredores de Rua, com um chapéu em forma de chaminé e uma bandeirinha italiana na mão, a fumar o seu charuto, por entre uma multidão de pás e vassouras. Mas a última fora a do C. A. R., porque o Shreve disse: - Olha. Vê só o que o teu avô fez àquele pobre negro. - Pois é - disse eu. - Agora, ele já pode passar a vida nos cortejos. Se não fosse o meu avô, tinha de andar a trabalhar como os brancos. Não o encontrei em lado nenhum. Mas também nunca vi um funcionário preto que fosse fácil de encontrar quando precisamos dele, e ainda mais se vive dos rendimentos. Passou um eléctrico. Fui até à cidade e tomei um belo pequeno-almoço nu café do Parker. Quando estava a comer, ouvi um relógio dar horas. Acho todavia que se leva pelo menos uma hora a perder a noção do tempo quando se anda desde antes da própria história a tentar entrar na sua cadência mecânica. Quando terminei, comprei um charuto. A empregada disse que os melhores eram os de meio dólar e eu comprei um, acendi-o e saí para a rua. Deixei-me ficar ali parado e tirei duas boas fumaças, posto o que, de charuto na mão, me dirigi para a esquina da rua. Passei pela montra de um relojoeiro, mas desviei os olhos a tempo. Ao chegar à esquina, fui assaltado por dois engraxadores negros a gritarem-me os seus pregões, um de cada lado, estridentes e roufenhos como melros. Dei o charuto a um deles e um níquel ao outro, e deixaram-me em paz. O que levou o charuto começou logo a tentar vendê-lo ao outro pelo níquel. Havia um relógio lá alto, no sol, e pensei em como, quando não queremos fazer qualquer coisa, o nosso corpo nos tenta convencer a fazê-la, sem nos darmos conta. Senti os músculos da nuca muito tensos e ouvi o relógio dentro do bolso - tic-tac, 1. Dia 30 de Maio. Dia dedicado à memória dos heróis da Guerra da Secessão. (N. da T) 2. Grand Army of the Republic ("Crande Exército da República"). (N. íz T) 75 tic-tac; e, daí a pouco, tinha-me fechado a todos os outros sons e restava apenas o relógio a trabalhar dentro do bolso. Voltei a subir a rua, até à montra. Ele estava a trabalhar sentado à mesa, perto da montra. Estava a ficar calvo. Tinha um óculo preso no olho - um tubo de metal enroscado na cara. Entrei. O local estava cheio de tic-tacs que soavam como os grilos em

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Setembro, nos relvados; ouvi um grande relógio de parede, pendurado por cima da minha cabeça. Ele levantou os olhos para mim. O seu olho era enorme, desfocado e inquiridor, atrás da lente. Tirei o meu relógio do bolso e estendi-lho. - Parti o relógio. Virou-o sobre a palma da mão: - E está bem partido. Até parece que lhe saltou em cima. - Pois foi. Bati com ele na cómoda e saltei-lhe em cima no escuro. E, mesmo assim, continua a trabalhar. Ele abriu a tampa do mecanismo e examinou o interior. Parece tudo em ordem. Mas só posso ter a certeza depois de lhe fazer um exame completo. Logo à tarde vejo isso. - Então trago-o mais logo - disse eu. - Importa-se de me dizer se algum destes relógios da montra está certo? Ainda com o meu relógio na palma da mão, ele olhou para mim com o seu olho desfocado e inquisitivo. - Fiz uma aposta com um amigo - disse eu. - E esta manhã esqueci-me dos óculos. - Não tem importância - disse ele. Pousou o relógio e, soerguendo-se no banquinho, espreitou para dentro da montra por cima da separação. Depois olhou para a parede. - São vint... - Por favor, não me diga - pedi eu. - Diga-me só se algum deles está certo. Ele olhou para mim outra vez. Voltou a sentar-se no banco e puxou o óculo para a testa, ficando com um círculo vermelho à volta do olho. Sem óculo e sem círculo a cara do homem parecia nua. - O que é que se está a comemorar hoje? - disse ele. - A regata é só para a semana, não é? - É, sim. Hoje é uma comemoração particular. Um aniversário. Algum deles está certo? 76 - Não. Mas também ainda não foram acertados. Se está a pensar comprar algum... - Não, não. Não preciso de nenhum relógio. Temos um de parede na sala-comum. Quando precisar, mando arranjar este. Estendi a mão. - O melhor é deixá-lo já ficar. - Prefiro trazê-lo depois. - Entregou-me o relógio. Meti-o no bolso. Agora, no meio de tantos relógios, já não o ouvia. Muitíssimo obrigado. Espero não lhe ter tomado muito tempo. - Não faz mal. Traga-o quando entender. E o melhor é adiar a comemoração até ganharmos a, regata. - Também acho. Saí, fechei a porta e os tic-tacs ficaram lá dentro. Olhei para trás, para a montra. O homem observava-me, por detrás do vidro. Havia cerca de doze relógios na montra, todos com horas diferentes, cada um com a mesma certeza afirmativa e contraditória que o meu também tinha, mesmo sem ponteiros. Contradiziam-se uns aos outros. Ouvia o meu a trabalhar dentro do bolso, mesmo que ninguém o visse, mesmo que não pudesse dizer nada, se alguém o pudesse ver. Por isso, disse para mim mesmo que tinha de levar aquele. Porque o Pai dizia que os relógios matam o tempo. Dizia que o tempo está morto enquanto se for esgotando no tic-tac de minúsculas rodas de engrenagens; só quando os relógios param é que o tempo ganha vida. Os ponteiros estavam estendidos, não rigorosamente na horizontal, mas com uma ligeira inclinação, como uma gaivota planando ao vento. Prenúncio de tudo o que me costumava entristecer, como a lua nova é prenúncio de chuva, como os negros dizem. O relojoeiro voltara ao trabalho, debruçado sobre a bancada, com o tubo enfiado na cara. Tinha o cabelo apartado ao meio, e o risco subia até à calva, lembrando um pântano drenado, de Dezembro. Reparei na loja de ferragens do outro lado da rua. Não sabia que se

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podiam comprar ferros de engomar a peso. - Talvez esteja interessado num ferro de alfaiate - disse o caixeiro. - Pesam cinco quilos. - Porém, eram maiores do que eu pensava. Comprei então dois mais pequenos, de três quilos cada, pois dariam a impressão de um par de sapatos embrulhados. Os dois juntos tornavam-se bastante pesados, mas pensei outra vez no que o Pai tinha dito acerca do reducto absurdum da experiência humana, pensando nesta como a última oportunidade para a minha admissão em Harvard. Talvez no próximo ano; pensando que talvez fossem precisos dois anos para aprender a fazer as coisas como deve ser. No entanto, eram muito pesados para levar na mão. Chegou um comboio. Não reparei no destino. Ia cheio; gente, na sua maioria de aspecto abastado, a ler o jornal. O único lugar vago era ao lado de um negro. Levava chapéu de coco e sapatos bem engraxados e segurava uma ponta apagada de charuto. Eu costumava pensar que era dever de todo o Sulista mostrar sempre consideração pelos negros. Achava que era isso que os do Norte esperavam dele. Quando vim pela primeira vez para o Leste, costumava pensar Tens de te esforçar por pensares neles como pessoas de cor e não como negros, e, se não fosse ter vindo encontrar tantos por aqui, teria perdido muito tempo e energia até descobrir que a melhor maneira de lidar com as pessoas, sejam elas pretas ou brancas, é tomá-las por aquilo que julgam ser e deixá-las em paz. Foi nessa altura que percebi que ser-se negro não é tanto o ser-se uma pessoa, é mais um comportamento, uma espécie de reflexo dos brancos com quem convivem. A princípio, porém, julguei que ia sentir a falta dos negros à minha volta, porque pensava que era isso que os do Norte achavam que eu sentia, mas só naquela manhã em Virgínia é que me apercebi de como sentia a falta do Roskus e da Dilsey, e de todos eles. Quando acordei o comboio estava parado e eu subi a per- siana e espreitei lá para fora. A carruagem estava mesmo em cima de uma passagem de nível, onde duas cercas brancas desciam a encosta e se ramificavam para os lados e para baixo como um esqueleto, e vi um negro montado num burro, plantado sobre os sulcos ressequidos da estrada, à espera de que o comboio arrancasse. Não sabia há quanto tempo ele ali estava, sei só que estava escarranchado no burro, com a cabeça embrulhada num bocado de uma manta, como se os dois tivessem sido ali postos com a cerca e a estrada, ou até com a colina, esculpidos na própria coli78 na, como um aviso que dissesse Estás de novo em casa. Montava sem sela e os pés chegavam quase ao chão. O burro mais parecia um coelho. Puxei a janela para cima. - Eh, Tiozinho - disse eu. - É este o caminho? - Siô? - Olhou para mim e depois abriu a manta e destapou as orelhas. Prenda de Natal!' - disse eu. É pa já, patrão. Desta vez levou-m'à certa. Olá se levou. Por esta escapas. - Tirei as calças da bagageira e tirei do bolso uma moeda de vinte e cinco cêntimos. - Mas para a próxima tem cuidado. Passo ou 'tra vez por aqui dois dias depois do Ano Novo; fica de olho alerta. - Atirei-lhe a moeda da janela. Compra qualquer coisa para o Natal- Sim, siô - disse ele. Desceu do burro, apanhou a moeda e limpou-a à perna. - Obrigado, patrãozinho. Obrigadinho. - O comboio pôs-se de novo em movimento. Debrucei-me da janela, a olhar para trás, a apanhar o ar gelado. Lá estava ele ao lado da pileca que mais parecia um coelho, estáticos os dois, andrajosos, impacientes. O comboio balançou ao descrever uma curva e a locomotiva soltou umas apitadelas breves, desabridas; e assim desapareceram os dois suavemente, envoltos no seu ar de miséria e infinita paciência, de estática serenidade: aquela mistura de incompetência espontânea e infantil e paradoxal honestidade

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que guarda e protege aqueles que ama sem razão e constantemente os rouba e foge às responsabilidades e obrigações, recorrendo a meios demasiado visíveis para se lhes chamar subterfiígios, e que é encarada no roubo ou na evasão com a admiração franca e espontânea que todo o cavalheiro sente por aquele que o vence em combate leal; no fundo, uma tolerância afectuosa e inesgotável para com as extravagâncias dos brancos, semelhante à de um avô para com netos imprevisíveis e endiabrados, e de que eu já não me lembrava. Durante todo o dia, enquanto o comboio contornava ravinas e precipícios onde apenas se ouvia o som laborioso dos rodados gemendo de exaustão, e onde as montanhas eternas se perdiam na 1. Saudação tradicional da época de Natal. Quem a recebia tinha de dar uma pequena lembrança a quem lha dirigia. (N. da T) 79 espessura dos céus, eu ia pensando na nossa casa, na estação deserta, na lama, nos negros e no povo, acorrendo lentamente à praça principal com os seus macaquinhos de peluche, carroças, sacos de rebuçados e fogo de artifício, e as entranhas revolviam-se-me, como na escola, quando a sineta tocava. Só começava a contar depois de o relógio dar as três horas. Nessa altura sim, contava até sessenta e dobrava um dedo, a pensar nos restantes catorze dedos à espera de serem dobrados, ou treze ou doze ou oito ou sete, até que, de repente, me apercebia do silêncio das mentes iluminadas e dizia: - Sim, Senhora Professora? - O teu nome é Quentin, não é verdade? - dizia Miss Laura. Depois, o silêncio voltava e com ele a crueldade das mentes iluminadas e das mãos que se agitavam no silêncio. Diz ao Quentin quem descobriu o rio Mississípi, Henry. DeSoto. Depois as mentes iam-se embora, e eu ficava com medo de me ter atrasado e punha-me a contar mais depressa e dobrava mais um dedo, mas depois tinha medo de estar a ir depressa de mais e abrandava, mas tinha medo e contava depressa outra vez. Por isso nunca chegava ao fim a par da sineta e do tumulto dos pés a caminho da liberdade, sentindo já a terra por baixo do soalho, e o dia quebrava-se com um som agudo e frágil de vidraça, e eu ficava sentado com as entranhas às voltas. Movia-me sentado sem me mexer. As minhas entranhas revolviam-se por ti. Daí a um m in u to ela su rgiu à p o rta. Benjy. A gri ta r. Benja m 1 n o fru to da mi .nha velhice a gritar. Caddy! Caddy! Vo u'fuTir. Ele começou a chorar elafoí ter com ele efez-lhe uma carícia. Pronto. Já nãofujo. Pronto. Ele calou-se. Dilsey. Ele cheira o que lhe dizemos quando quê. Não precisa douvir nem dejaU Será querUpelo cheiro deste nome qu;igora lhe deram? Será que 6Upelo cheiro da má sorte? Pa quhá-de ele preocupar-se ca sorte? A sorte não o pode apoquentá. Pa que lhe mudaram então o nome se não lhe traz melhor sorte? A carruagem arrancou, parou, arrancou outra vez. Por baixo da j anela viam-se cocurutos de cabeças a passar por baixo de chapéus de palha novinhos em folha, ainda não comidos pelo sol. 80 Agora já iam mulheres na carruagem com as cestas das compras, e já se viam mais homens em fato de trabalho do que com sapatos bem engraxados e colarinhos brancos. O negro tocou-me no joelho. - Desculpe - disse ele. Virei as pernas para o lado de fora e deixei-o sair. íamos a passar por um muro completamente nu, e o eco do ruído do comboio vol- tava para a carruagem, para as mulheres com as cestas das compras ao colo e um homem de chapéu todo manchado com um cachimbo enfiado na fita. Senti um cheiro a água e vislumbrei por uma

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fenda do muro uma nesga de água cintilante com dois mastros e uma gaivota suspensa no ar, entre os mastros, como se presa por arame invisível. Levei a mão ao peito, por cima do casaco, e apalpei as cartas que escrevera. Quando o comboio parou, apeei-me. A ponte estava levantada para dar passagem a uma escuna. Vinha a reboque e o rebocador puxava-a suavemente, colado ao flanco, deixando um rasto de fumo; mas o navio propriamente dito parecia deslocar-se sem meios visíveis de propulsão. Um homem nu da cintura para cima enrolava um cabo no castelo de proa. Tinha um corpo bronzeado, cor de folha de tabaco. Um outro homem, de chapéu de palha já sem copa, ia postado ao leme. O navio passou pela ponte, deslizante, com os mastros despidos, como um fantasma em pleno dia, corri três gaivotas a sobrevoarem a popa, brinquedos pendurados em arames invisíveis. Quando a ponte baixou, passei para o outro lado e debrucei-me do parapeito sobre os hangares dos barcos a remos. A prancha estava deserta e as portas fechadas. As tripulações só treinavam ao fim da tarde, depois de algumas horas de repouso. A sombra da ponte, as grades da balaustrada e a minha sombra estendida sobre a água, que eu tinha sabido aliciar tão bem que nunca mais me abandonara. Tinha pelo menos quinze metros de comprimento; se ao menos eu tivesse alguma coisa com que pudesse empurrá-la para baixo e mantê-la debaixo de água até ela se afogar, como por exemplo a sombra do embrulho que parecia conter sapatos. Dizem os negros que a sombra dos afogados fica sempre dentro de água a vigiá-los. Brilhava e cintilava, 81 parecia respirar, e a prancha também, agitando-se lentamente como se respirasse, e os detritos meio-submersos de volta ao mar, às cavernas, às grutas marinhas. A deslocação de uma massa de água é igual a qualquer coisa de qualquer coisa. Reducto absurdum de toda a experiência humana, e dois ferros de engomar de três quilos cada pesam mais que um ferro de alfaiate. Que desperdício, que pecado, diria a Dilsey. O Benjy sentiu quando a Avó morreu. Pôs-se a gritar. Ele sentiu-lhe o cheiro. Ele sentiu-lhe o cheiro. O rebocador voltou para trás, apartando as águas, formando longos cilindros rolantes e fazendo finalmente balançar a prancha à sua passagem, fazendo-a ir de encontro ao cilindro rolante com um sonoro chapinhar e um audível safanão, quando a porta articulada se abriu e apareceram dois homens transportando uma canoa. Meteram-na na água e logo a seguir surgiu o Bland com os remos. Vestia de calças de flanela, casaco cinzento e chapéu de palha enformado. Ele ou a mãe deviam ter lido algures que os estudantes de Oxford remavam de calças de flanela e chá- péu de palha e, assim, no princípio de Março compraram ao Gerald uma canoa de dois lugares e ele lá foi para o rio de calças de flanela e chapéu de palha. Os funcionários do hangar ameaçaram chamar a polícia, mas ele teimou em ir. A mãe chegou num carro alugado, enrolada em peles como um explorador do Ártico, para o ver partir impelido por um vento que soprava a sessenta quilómetros por hora e navegar rodeado de um rebanho de blocos de gelo flutuantes que o acompanhavam como carneiros enxovalhados. Desde então fiquei convencido de que Deus não é só um cavalheiro e um desportista; Deus é também do Kentucky. Quando ele partiu, ela fez inversão de marcha e desceu o rio outra vez, seguindo a par dele, com o carro em primeira. Diz quem viu que ninguém suspeitaria de que já se conheciam, os dois por ali fora, como rei e rainha, sem olharem sequer um para o outro, atravessando de lés a lés o Massachussets, em percursos paralelos, como dois cometas. Ele entrou para a canoa e partiu. Remava com ímpeto. Também não admira. Diziam que a mãe o tinha tentado obrigar a desistir do remo

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para fazer outra coisa que o resto da turma não 82 soubesse ou não quisesse fazer, mas pelo menos dessa vez ele venceu pela teimosia. Se é que se pode chamar teimosia a ficar sentado em pose principesca e enfadada, com os loiros caracóis, os olhos violeta, as longas pestanas e os fatos comprados em Nova lorque, a ouvir a mãe falar-nos dos cavalos do Gerald e dos negros do Gerald e das mulheres do Gerald. Deve ter sido um alívio para os pais e maridos do Kentucky quando ela mandou o Gerald para Cambridge. Ela tinha um apartamento na cidade e o Gerald tinha outro, além do quarto na universidade. Ela gostava que o Gerald andasse comigo porque eu dava pelo menos mostras de um sentido 'algo desconcertante do noblesse oblíge, ao ter conseguido nascer a sul de Mason e de Dixon, e de mais algumas cidades cuja geografia correspondia aos seus padrões (mínimos) de exigência. Era, pelo menos, desculpável. Ou tolerável. Porém, desde o dia em que viu o Spoade pela primeira vez à saída da capela e Ele disse que ela não podia ser uma senhora pois nenhuma senhora andaria na rua àquela hora da noite ela nunca mais fora capaz de lhe perdoar por usar cinco nomes, incluindo o de uma actual casa ducal inglesa. Tenho a certeza de que se consolou tentando convencer-se de que algum Maingault ou Mortemar degenerado se tinha metido com a filha do caseiro. O que era bem provável, tivesse-o ela ou não inventado. O Spoade era o campeão dos fleumáticos, permitindo-se todos os devaneios e todas as trapaças. A canoa era, agora, apenas um pontinho, com os remos a brilhar ao sol, intermitentemente, como se tivesse luz própria. Já tiveste uma irmã? Não, mas elas são todas umas cabras. já tiveste uma irmã? Por um minuto. Umas cabras. Sem ser cabra surgiu à portapor um minuto. Dalton Ames. Dalton Ames. Camisas Dalton. Estava convencido que eram de caqui, de caqui como as camisas militares, até ver que eram feitas de seda chinesa muito grossa ou de flanela fina, e que era por isso que lhe faziam a cara tão morena e os olhos tão azuis. Dalton Ames. Faltava-lhe apenas um toque de classe. Puro adereço teatral. Tudo papelão. Toque-se e Ah, amianto. Nem sequer bronze. Mas não o verão U em casa. A Gaddy é também mulher não te esqueças. Há-defazer certas coisaspor razõesfeminínas. 83 Por que não o trazes cápara casa, Caddy? Por que nãoJazes comofazem as negras aípelosprados, pelos valados, pelas moitas sombrias, que se escondem ardentes defúria nas moitas sombrias. Passado algum tempo já tinha ouvido o meu relógio durante um bom bocado e sentia as cartas estalarem no bolso do casaco de encontro ao parapeito, e eu continuava debruçado a observar a minha sombra e como a tinha enganado. Guiei-a para dentro da sombra do cais. Depois caminhei rumo a leste. Harvard meu estudante de Harvard Harvard harvard Aquele miúdo cheio de borbulhas que ela encontrou no dia das provas de atletismo com fitas coloridas. Correndo ao longo da cerca assobiando-lhe como a um cão. Como não o tínhamos conseg or uido convencer pela lisonja a entrar na casa de jantar a Mãe acreditava que ele ia enfeitiçá-la quando ficasse a sós com ela. Como qualquer canalha Ele estava deitado ao lado do caixote debaixo dajanela a gritar quepudesse chegar numa limusine com umaflor na lapela. Harvard. Quentin este é o Herbert. O meu estudante de Rarvard. O Herbert vai ser como um irmão mais velhojá oprometeu aojason. Cordial, do tipo viajante do celulóide. Dentadura de lés a lés muito branca, mas poucos sorrisos. já U ouvíJalar nele. Muitos dentes mas

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poucos sorrisos. És tu que vais guiar? Entra Quentin. És tu que guias. O carro é dela não te sentes orgulhoso por a tua irmãzínha ser dona do primeiro automóvel da cidadepresente do seu Herbert. O Louis tem andado a dar-lhe lições todas as manhãs não recebeste a minha carta Mr. e Mrs. Jason Richiriond Compson têm o prazer de anunciar o casamento da sua filha Candace com Mr. Sydney Herbert Head no dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e dez em Jefférson no Mississípi. Os noivos oferecem a sua casa a partir do dia um de Agosto na Avenida South Bend Número Tal Andar Tal Indiana. O Shreve disse Não vais ao menos abri-Ia? Três dias. Vezes. Mr. e Mrs. Jason Ríchmond Compson O jovem Lonchinvar partiu do oeste um pouco cedo de mais, não foi? Eu sou do sul. És um tipo um tanto estranho, não és? 84 Ah sim sabia que de algum lado havias de ser. És estranho, não és. Devias ir para o circo. E eu fui. E foi assim que dei cabo dos olhos a dar de beber às pulgas dos elefantes. Três vezes. Estas raparigas da província. Nunca se sabe, pois não. Bem, seja como for, Byron nunca viu o seu desejo satisfeito, graças a Deus. Mas nunca bater num homem com óculos Não vais sequer abri-Ia? Estavam em cima da mesa com uma vela a arder em cada extremo sobre o sobrescrito atadas com uma liga suja cor-de-rosa duasflores artificiais. Nunca bater num homem com óculos. Gente da província coitados nunca viram um automóvel olha tantos toca a buzina Candace para Ela nem para mim olhou eles saírem do caminho nem para mim olhou o teu pai não ia gostar que atropelasses algum deles acho que o teu pai agora não vai ter outro remédio senão comprar um automóvel quase lamento que o tenha trazido Herbert gostei imenso é claro há a caleche mas muitas vezes quando eu quero sair Mr. Compson tem os pretos ocupados com qualquer coisa era o fim do mundo se os interrompesse ele insiste que o Roskus está à minha disposição o tempo todo mas eu sei o que isso significa sei quantas vezes as pessoas fazem promessas só para aliviarem as suas consciências veja lá se vai tratar assim a minha menina Herbert mas eu sei que não vai o Herbert tem-nos estragado a todos com mimos Quentin já te mandei dizer que ele vai levar o Jason para o banco quando o Jason acabar o liceu o Jason vai dar um banqueiro de primeira ele é o único dos meus filhos com algum sentido prático da vida podes agradecer-me a mim por isso ele sal à minha família os outros saem todos aos Compsons OJasonJornecía afarinha. Elesfaziam papagaios na varanda das traseiras e vendiam-nos a um níquel cada um, ele e ofilho do Patterson. Ojason era o tesoureiro. Neste comboio não ia nenhum negro e os chapéus de palha novinhos em folha continuavam a passar por baixo da janela. Ir para Harvard. Vendemos Ele estava deitado no chão por baixo da janela a gritar, Vendemos a pastagem do Benjy para o Quentin poder írpara Harvard o teu irmão. O teu irmãozinho. Devias ter um carro fez-te muito bem não achas Quentin 85 está a ver eu já lhe chamo Quentin de tanto ouvir a Candace falar nele. E por que não havia de chamar eu quero que os meus filhos sejam mais do que amigos sim Candace e Quentin. mais do que amigos Pai eu cometi que pena não teres irmãos nem irmãs Nenhuma irmã nenhuma irmã não tinha nenhuma irmã Não pergunte ao Quentin ele e Mr. Compson sentem-se os dois um pouco insultados quando eu tenho forças suficientes para

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vir sentar-me à mesa agora ando uma pilha de nervos e vou pagar por isso depois de tudo terminar e o Herbert ter levado a minha filhinha para longe de mim A minha írmãzínha não tinha nenhum. Se eu pudesse dizer Mãe. Mãe. A menos que faça o que estou tentada a fazer e a leve a si não creio que Mr. Compson pudesse alcançar o carro. Ah Herbert Candace estás a ouvir isto Ela nem para mim olhava doce voluntariosa queixofirme sem se virarpara trd não precisas de ter ciúmes ele está só a ser lisonjeiro para uma velha senhora com uma filha já casada não acredito. Que disparate parece uma rapariga muito mais nova do que a Candace a cor das suas faces é de rapariga Um rosto ressentido lacrimejante e o cheiro a cân/ora e a L@grímas uma voz carpindo suave e persistente por detrás da porta incendiada de crepúsculo o aroma a madressilva tingião de crepúsculo. Arrastando baús vazios pelas escadas do sótão abaixo como quem arrasta caixões French Lick.' Não encontrar a morte na salina Com chapéus ainda por desbotar e sem chapéu. Três anos sem usar chapéu. Não era capaz. Estava. Será que há chapéus uma vez que eu não estava nem tão pouco se falava em Harvard. Onde o melhor dos pensamentos dizia o Pai se agarra como gavi- nhas mortas a velhos tijolos mortos. Harvard não. Não para mim, pelo menos. Outra vez. Mais triste do que antes. Outra vez. Mais triste que nunca. Outra vez. O Spoade tinha uma camisa vestida; então deve ser. Quando voltar a ver a minha sombra se não tiver cuidado como quando a atraí para a água caminharei outra vez sobre a minha sombra 1. Estância termal (Trad.: "Salina Francesa"). (N. da T) 86 impenetrável. Mas nem uma irmã. Eu não o teria feito. Não consinto que andem a espiar a minhafilha Não teria. Como é que heí-de controlar qualquer um deles quando tu sempre lhes ensinaste a não me respeitarem nem a mi .in nem às mi.nhas vontades sei que desprezas a minhajamília mas isso não é razão para industríares os meusfilhos os meus própriosfilhos por quem passei sofrimentos a não me terem respeito Espezinhava os ossos da minha sombra no chão de cimento com os tacões e nisto ouvi o relógio e apalpei as cartas por cima do casaco. Não consinto que tu o Quentín ou quem quer que seja andem a espiar a minhafilha síja o quejorguepensem que elajez. Pelo menos concordas que há razão para a trazer vigiada Eu não o teria feito eu não o teria feito. Sei que não terias não foi minha intenção ser tão duro mas as mulheres não têm respeito nenhum umaspeZas outras nem por si mesmas Mas comofoi que ela As badaladas soaram quando eu pisei a minha sombra, mas era o quarto de hora. O Diácono não se via em parte nenhuma. pensar que eu teriapodido Ela não ofez por mal é assim que as mulheresfazem as coisas é por amar tanto a Caddy Os candeeiros desciam pela estrada abaixo e depois subiam em direcção à cidade eu caminhava em cima da barriga da minha sombra. Podia estender a mão para fora dela. sentir o Pai atrás de Mim para U da escuridío irritante do Verão e de Agosto os candeeíros o Pai e eu protegemos as mulheres umas das outras e delas mesmas as nossas mulheres As mulheres são assim não aprendem a conhecer as pessoas nós é que nascemos para isso elas apenas nasceram com a capacidade prática de desconfiarem tão desenvolvida que a todo o momentofazem uma verdadeira colheita de suspeitas geralmentejundamentadas elas têm uma propensão para o mal o talento defornecerem ao mal o que lhefalta para nele se enrolarem

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i.nsti.nti.vamente como nos enrolamos a dormir nos cobertoresfertilizando a mentepara o receber até que ele atinja o seu objectivo quer esse objectivo tenha existido ou não Ele vinha ladeado por dois caloiros. Ainda não tinha recuperado do desfile, pois fez-me uma continência muito militar. - Preciso de falar contigo - disse eu, estacando. 87 - Falar comigo? Está bem. Até logo, rapazes - disse ele, parando e voltando para trás -; gostei de falar com vocês. Aquele sim, era o Diácono, dos pés à cabeça. Por falar em psicólogos natos... Diziam que em quarenta anos nunca tinha perdido um cortejo de abertura do ano lectivo, e que só de olhar identificava logo os naturais do sul. Nunca se enganava e depois de os ouvir falar era até capaz de identificar o estado de onde vinham. Tinha um uniforme especial para cortejos, uma espécie de fatiota à cabana do Pai Tomás, com remendos e tudo. - Si, siô. Por aqui, patrãozinho, sê por aqui - dizia, pegando nas malas. - Aqui, rapaz, vem cá pegá nestas tralhas. - E uma montanha ambulante de bagagens aproximava-se, transformando-se num rapaz branco de cerca de quinze anos, e o Diácono punha mais uma mala em cima da montanha e mandava-o embora. - Agora vê lá se deixas cair isso. Si, siô, patrãozinho, dê o número do seu quarto ao nêgo velho e quando lá chegá já lá tá tudo. Daí em diante, e até nos ter completamente subjugados, passava a vida a entrar e a sair do quarto, castiço e pairador, embora os seus modos se fossem aproximando gradualmente dos do norte e a forma de vestir também, até que, por fim, quando já nos tinha gozado o suficiente e nós já começávamos a ficar desconfiados, ele nos tratava por Quentin ou por o que quer que fosse o nosso primeiro nome, e, quando o voltássemos a encontrar, já ele trazia um velho fato da alfalataria Brooks e um chapéu com uma fita já não me lembro de que clube de Princeton que alguém lhe tinha dado e que ele estava plena e orgulhosamente conven- cido de se tratar de uma tira da faixa do uniforme de gala de Abe Lincolti. Quando ele, há uns a-nos atrás, apareceu pela primeira vez na Universidade vindo sabe-se lá de onde, alguém espalhou o boato de que ele se tinha formado em teologia. Ele, quando percebeu o que isso significava, ficou tão orgulhoso que passou ele próprio a contar a história, até acabar por acreditar que era mesmo verdade. O certo é que contava intermináveis histórias sem nexo dos seus tempos de estudante, referindo-se com familiaridade a professores já mortos e afastados que tratava pelos primeiros nomes, geralmente errados. Fosse como fosse, tinha 88 sido guia, mentor e amigo de incontáveis fornadas de caloiros ingénuos e solitários, e estou convencido de que apesar de todas as suas pequenas hipocrisias e aldrabices não estava mais mal visto aos olhos de Deus do que qualquer outro. - Há três ou quatro dias que não o vejo - disse ele, fitan- do-me do alto da sua aura ainda militar. - Teve doente? - Não. Estou bem. Mas tenho andado muito ocupado. Mas olha que eu vi-te. - Ah, sim? - No cortejo, no outro dia. - Ah, aí. Tava lá, sim. Não qu'eu ligue a essas coisas, tá a perceber, mas os rapazes gostam qu'eu vá com eles, os finalistas sobretudo. Sabe com'é, as senhoras querem lá ver todos os finalistas. E eu tenho de lhes fazer a vontade. - E no dia da festa da Italianada também - disse eu. Nessa altura estavas lá a pedido da Liga Anti-alcoólica, se bem me lembro. - Dessa vez? Dessa vez tava lá por causa do meu genro. O sonho dele é

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arranjar um emprego na Câmara Municipal- Varredor de ruas. E eu costumo dizer-lhe que tudo o que ele quer é uma vassoura pá s'arrimar. Viu-me, não viu? - Das duas vezes. - Quer dizer, co uniforme. O qu'é qu'achou? - Que estavas uma maravilha. Melhor que qualquer dos outros. Deviam fazer-te general, Diácono. Tocou-me ao de leve no braço, com a mão gasta e macia como são as mãos dos negros. - Oiça. Isto não é pa sair daqui. Não me importo de lhe contar porque o Quentin e eu semos a bem dizer da mesma massa. - Chegou-se mais perto e começou a falar rapidamente, sem olhar para mim. -já tou a preparar as coisas. Espere só pelo ano que vem e vai ver onde é qu'eu vou marchar. Nem preciso de lhe dizer como é que vou fazer; espere e verá meu rapaz. - Finalmente olhou para mim, deu-me uma palmadinha no ombro e rodou nos calcanhares, meneando a cabeça. - Sim senhor. Não me fiz Democrata há três anos p'ra nada. O meu genro na Câmara; e eu... Sim, senhor. Se ao menos fazer-me Democrata pusesse aquele filho da mãe a 89 trabalhar.. E quanto a mim: é só pôr-se ali naquela esquina de anteontem a um ano e logo verá. - Espero bem que sim. TU mereces, Diácono. E enquanto penso no que me disseste... - Tirei a carta do bolso. - Leva esta carta amanhã ao meu quarto e dá-a ao Shreve. Ele depois dá-te uma coisa. Mas só amanhã, estás a ouvir. Ele pegou na carta e examinou-a. - Está fechada. - Pois está. E lá dentro está escrito: Só vale abrir amanhã. - Hum - fez ele. Mirou o sobrescrito muito sério. - Uma coisa para mim, não foi o que disse? - Foi. Uma prenda que eu te dou. Estava com os olhos postos em mim, e o sobrescrito branco na mão preta, à chapa do sol. Os seus olhos eram doces, sem íris, acastanhados, e de repente vi o Roskus a observar-me por detrás de todos aqueles adereços de homem branco: os uniformes, a política, o estilo Harvard, desconfiado, secreto, inexpressivo, triste. - Não está a pregar uma partida ao negro velho, pois não? - Sabes bem que não. Já algum sulista alguma vez te pregou uma partida? - Tem razão. São boa gente, mas não para se viver com eles. -já alguma vez tentaste? - disse eu. Mas o Roskus já lá não estava. Ele voltara a ser o indivíduo que há muito se tinha habituado a ser aos olhos do mundo pomposo, espúrio, mas não completamente grosseiro. - Farei o que me pede, meu rapaz. - Mas só amanhã, não te esqueças. - Claro - disse ele. - Entendido, meu rapaz. Bem... - Espero que... - disse eu. Ele olhou-me lá do alto com os seus olhos bondosos e profundos. Num impulso estendi-lhe a mão e cumprimentámo-nos, ele com gravidade, dos píncaros do seu sonho municipal e militar. - És um bom tipo, Diácono. Espero que... já ajudaste muitos rapazes. - Tento tratar bem toda a gente - disse ele. - Não faço distinções sociais. Para mim, um homem é sempre um homem, onde quer que o encontre. - Só espero que encontres tantos amigos como os que tens feito. 90 - A rapaziada. Gosto deles. E eles também não me esquecem - disse, agitando o sobrescrito. Meteu-c, no bolso e abotoou o casaco. - Sim, senhor - disse ele. - Tenho feito bons amigos. As badaladas soaram outra vez; era a meia-hora. E eu parado sobre a barriga da minha sombra a ouvir as batidas, tranquilas e espaçadas, à

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luz do sol entre as folhas delicadas e imóveis. Espaçadas, suaves e serenas, com aquele toque outonal sempre presente nos sinos mesmo no mês dos noivados. Deitado no chão a chorar debaixo dajanela Bastou-lhe olhar para ela uma vez só e percebeu. Pela boca das crianças. -Os candeeiros As badaladas cessaram. Voltei para os correios, pisando no chão a minha sombra. descem a encosta e depois sobem-na em direcção à cidade, como lampíjes pendurados uns por cima dos outros na parede. O Pai disse que para ele amar a Caddy é porque gosta das pessoas pelo seus defeitos. O Tio Maury de pernas estendidas em frente ao lume ergueu a mão apenas o tempo necessário para brindar ao Natal. O Jason ia a correr com as mãos nos bolsos, caiu espalmado que nem um frango pronto para o churrasco até o Versh o ajudar a levantar. Por que não tira as mãos dos bolsos quando vai a correr assimjá não se desequilibrava. Rebolar a cabeça no berço e bater com ela de um lado e do outro. A Caddy disse ao Jason e ao Versh que a razão por que o Tio Maury não trabalhava era porque costumava rebolar a cabeça no berço quando era bebé. O Shreve vinha a subir a rua, a arrastar os pés, todo ele obesidade e boa fé, com as lentes a cintilarem como minúsculas poças de água sob as ramadas frondosas. - Dei ao Diácono uma lista de coisas para ele vir buscar. Esta tarde sou capaz de não estar cá, não o deixes levar nada até amanhã, percebes? - Está bem. - E continuou, olhando para mim: - Ouve lá, que vais fazer hoje? Todo bem vestido e por aí às voltas como se te preparasses para um sati. Foste esta manhã à aula de Psicologia? - Não tenho nada que fazer. Pelo menos até amanhã. - O que levas aí? 91 - Nada. É só um par de sapatos a que mandei pôr meias-solas. Não lhe dês nada até amanhã, ouviste? Pronto, está bem. Ah, é verdade, viste uma carta que estavá em cima da mesa esta manhã? - Não. - Então ainda lá está. Da Semiramís. Trouxe-a o motorista esta manhã. - Deve ser mais algum recital da orquestra. Tchim-pum, Gerald, toma lá mais um. "Um pouco mais de ânimo no tambor, Quentin." Safa. Ainda bem que não sou menino-bem. Seguiu o seu caminho, agarrado a um livro, um pouco disforme, com obesa determinação. Os candeeíros da rua pensas assim por um dos nossos antepassados ser governador e outros três generais, e os da Mãe não qualquer homem vivo está melhor do que qualquer homem morto, mas nenhum homem vivo ou morto está muito melhor do que outro homem vivo ou morto Era assunto arrumado na cabeça da Mãe. Nada afazer. Nada afazer. E entãofomos todos envenenados Estás a confundir pecado com moralidade as mulheres não fazem isso a tua mãe está a pensar na moralidade, se é pecado ou não nem sequer lhe ocorreu Tenho de me ir embora Jason fica com os outros eu levo o Jason e vou para onde ninguém nos conheça para ele poder crescer e esquecer tudo isto os outros não gostam de mim nunca gostaram de nada têm o egoísmo e o falso orgulho dos Comp- sons O Jason era o único a quem entregava sem receios o meu coração disparate o Jason está bem estava a pensar que assim que te sentires melhor tu e a Caddy podiam ir para as termas de French Lick e deixarem aqui o Jason sem mais ninguém além de ti e dos negrinhos ela vai esquecê-lo e o falatório acaba por esmorecer não encontrar a morte nas salínas Talvez lhe conseguisse arranjar marido a morte nas salínas não O carro aproximou-se e parou. Os sinos ainda batiam a meia-hora. Entrei e pôs-se de novo em marcha, sobrepondo-se

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92 à meia-hora. Não: eram os três quartos de hora. Nessa altura já só faltavam dez minutos. Deixar Harvard o sonho da tua mãe vendeu apastagem do Benjypor o que fiz eu para ter filhos como estes o Benjamin já era castigo suficiente e agora ela que não mostra qualquer consideração pela própria mãe sofri por ela sonhei e fiz planos e sacrifiquei-me desci às profundezas e no entanto desde que abriu os olhos ela nunca pensou em mim desinteressadamente às vezes olho para ela e pergunto-me como pode ela ser minha filha só o Jason é que não esse nunca me deu o mais pequeno desgosto desde o momento em que o segurei nos brraços soube logo que seria a minha alegria e a minha salvação pensei que o Benjamin já era castigo suficiente para os pecados que eu possa ter cometido pensei que ele era o meu castigo por pôr o orgulho de lado e casar com um homem que se julgava melhor do que eu não me queixo eu amava-o mais do que a todos eles por isso mesmo porque era meu dever embora o Jason me cortasse o coração mas vejo agora que não sofri o bastante vejo agora que tenho de pagar pelos teus pecados e pelos meus que fizeste tu que pecados lan- çou sobre mim a tua família tão distinta e tão poderosa mas tu saberás justificá-los sempre encontraste desculpas para os teus parentes só o Jason é que se porta mal porque ele é mais Bascorrib do que Compson enquanto a tua própria filha a minha menina a minha pequenina não é não é melhor do que isso quando eu era pequena era infeliz era apenas uma Bascorrib, ensinaram-me que não há meio termo que uma mulher ou é uma senhora ou não é mas nunca imaginei quando a apertava nos braços que filha minha pudesse chegar a esse ponto sabes que me basta olhar para os olhos dela e perceber podes julgar que ela te conta mas ela não conta nada é de guardar segredo tu não a conheces eu sei de coisas que ela fez que antes queria morrer do que tu vires a sabê-las é isso mesmo continua a criticar o Jason a acusares-me de o mandar vigiá-la como se isso fosse um crime enquanto a tua própria filha pode eu sei que tu não gostas dele que fazes por lhe arranjar defeitos que sabes que ele não tem sim metê-lo a ridículo como sempre fizeste com o Maury não me podes magoar mais do que os teus filhos já me magoaram e não 93 tarda eu desapareço e o Jason não terá ninguém que o ame que o proteja de tudo isto olho para ele todos os dias temendo ver o sangue dos Compsons a tomar conta dele finalmente com a irmã a fugir de casa para ir ter com o não sei quê já alguma vez o viste deixas-me ao menos ver se descubro quem ele é não por mim por mim não suportaria vê-lo mas por ti para te proteger mas que se pode fazer quando o sangue é ruim tu nem me deixas tentar ternos de ficar quietos de mãos tolhidas enquanto ela não só arrasta o teu nome pela lama como polui o ar que os teus filhos respiram Jason tu tens de me deixar ir embora eu não aguento mais deixa-me ficar com o Jason e fica tu com os outros esses não são do meu sangue como ele são uns estranhos nada têm a ver comigo e tenho medo deles eu posso pegar no Jason e ir para onde ninguém nos conheça hei-de ajoelhar-me e pedir perdão pelos meus pecados para que ele se livre desta maldição e tente esquecer que os outros existiram Se aquilo eram os três quartos de hora, não faltariam agora mais de dez minutos para a hora. Um comboio tinha acabado de partir e já havia gente à espera do seguinte. Perguntei, mas ele não sabia se ainda partia outro antes do meio-dia ou não, isto dos interurbanos... Bem, o primeiro era outro comboio. Entrei. Sente-se quando é meio-dia. Será que até os mineiros nas entranhas da terra também sentem. É para isso

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que servem as sirenes: porque há gente que sua, e se estamos suficientemente afastados do suor não ouvimos as sirenes e dentro de oito minutos estaríamos em Boston a essa distância do suor. Dizia o Pai que um homem é o somatório das suas desgraças. Até que um dia pensa que as desgraças se hão-de cansar, mas nessa altura é o tempo a sua desgraça. Uma gaivota planava riscando o espaço suspensa de um arame invisível. Levamos para a eternidade o símbolo da nossa frustração. Aí, dizia o Pai, as asas são maiores, mas quem sabe tocar harpa. Ouvia o tic-tac do meu relógio sempre que o comboio parava, mas alguns já estavam a comer Quem tocaría uma Comer essa coisa de comer dentro de nós o espaço também o espaço e o tempo confundidos o Estômago a dizer meio-dia e o cérebro a dizer horas de comer Muito bem pergunto-me que horas serão que se 94 passa. As pessoas iam saindo. O comboio já não parava tantas vezes, esvaziado pela vontade de comer. Agora era a meia-hora. Desci e fiquei parado em cima da minha sombra e daí a pouco passou outro comboio e entrei e voltei para a estação interurbana. Estava um comboio prestes a partir e eu arranjei um lugar à janela e ele pôs-se em marcha e eu a vê-lo arrastar-se por terras alagadas da beira-rio e depois árvores. De vez em quando avistava o rio e pensava em como devia ser bom para os habitantes de New London se o tempo e a canoa do Gerald singrassem solenemente a manhã cintilante e perguntava-me o que quereria agora a velha, para me mandar um recado antes das dez da manhã. E que fotografia do Gerald e eu Dalton Ames oh o amianto o Quentin disparou em pano de fundo. Qualquer coisa onde aparecessem raparigas. As mulheres têm a sua voz sempre acima da algaraviada uma voz que respirava afinidade com o mal, por não acreditarem que mulher alguma é digna de confiança, mas que alguns homens são ingénuos de mais para se protegerem delas. Raparigas simples. Primas afastadas e amigas da família cujo conhecimento fortuito se impunha como uma espécie de dever de sangue noblesse oblige. E ela ali sentada a dizer-nos à frente delas que era uma vergonha o Gerald ter ficado com toda a beleza da família, ele que como homem nem precisava, que até passava bem sem ela, mas que sem ela uma rapariga estava simplesmente perdida. A falar-nos das namoradas do Gerald num O Quentin matou o Herbert ele matou a sua voz através do chão do quarto da Caddy tom de consolada aprovação. "Quando ele tinha dezassete anos eu disse-lhe um dia "Que vergonha teres uma boca como essa essa boca devia estar na cara de uma rapariga" e sabem os cortinados co"s ao crepúsculo sobre o aroma da macieira a cabeça dela desenhando-se no crepúsculo os braços atrás da cabeça abríndo asas de químono a voz que sussurrava do Éden as roupas sobre a cama puxadas até ao nariz vislumbrado acima da maçã e sabem o que ele me respondeu? e só tem dezassete anos, vejam bem. "Mãe" disse ele "e muitas vezes está." " E ele sentado todo ele pose a olhar para duas ou três através das pestanas. Pestanas que se lançavam em voos picados de andorinha. O Shreve dizia que sempre se perguntara Vais tomar conta do Benjy e do Paz 95 Quanto menosfalares do Benjy e do Pai quando pensares neles tanto melhor Caddy Promete Não precisas de tepreocupares com eles vais-te embora sem problemas Promete estou doente tens deprometer quem teria inventado aquela anedota mas por outro lado ele sempre havia considerado Mrs. Bland uma mulher extraordinariamente bem conservada dizia ele que ela andava a

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treinar o Gerald para seduzir uma duquesa. Ela chamava ao Slireve canadiano gordo e arranjou-me por duas vezes um novo companheiro de quarto sem me consultar, uma vez era eu que tinha de mudar de quarto, a outra Ele abriu a porta e saiu para o crepúsculo. A cara dele parecia uma tarte de abóbora. - Bem, é com ternura que me despeço. O destino cruel pode separar-nos, mas nunca amarei inais ninguém. Nunca. - De que estás tu a falar? - Estou a falar do destino cruel dentro de oito metros de seda cor de alperce e mais quilos de metal por centimetro quadrado do que um forçado das galés e da única dona e proprietária da incontestada e peripatética cloaca da defunta Confederação. - Depois contou-me como ela fora ter com o vigilante para o obrigar a sair do quarto e como o vigilante dera mostras de uma deplorável teimosia insistindo em consultar primeiro o Shreve. Então ela sugeriu que ele mandasse chamar imediatamente o Slireve e fizesse o que tinha a fazer, mas ele não cedeu, e daí em diante ela passou a tratar o Slireve muito mal. - Faço questão de nunca ser grosseiro com as senhoras - dizia o Slireve - mas aquela mulher tem mais modos de puta do que qualquer outra senhora destes estados e domínios. - E agora, Carta colocada por mão própria em cima da minha mesa, encomendar orquideas perfumadas coloridas Se ela soubesse que eu tinha passado quase por baixo da janela sabendo que a carta lá estava sem Minha Querida Senhora ainda não tive oportunidade de receber a sua mensagem mas peço-lhe desculpa antecipadamen- te por hoje ontem ou amanhã ou qualquer outro dia Porque me lembrei de que a sua próxima história será de como o Gerald ati96 1 ra o criado negro pela escada abaixo e como o negro implora que o deixem ir para a faculdade de teologia para estar perto do patrão patrãozinho Gerald e Como foi a correr até à estação ao lado da caleche com os olhos rasos de água quando o patrãozi- nho Gerald partiu Ficarei à espera da outra sobre o marido car- pinteiro que veio à porta da cozinha com uma espingarda aperrada e o Gerald se atirou a ele e partiu a espingarda em duas e lha devolveu e depois limpou as mãos ao lenço de seda e atirou o lenço para o lume Só ouvi essa duas vezes matou-o através do vi-te entrar aqui e aproveitando a oportunidade vim ter contigo pensei qne podíamos conhecer-nos melhor fumar juntos um charuto Obrigado não fumo Não as coisas devem ter mudado por lá desde os meus tempos importas-te que acenda um Faz favor Obrigado ouvi dizer tantas coisas acho que a tua mãe não se importa se eu deitar o fósforo para trás do biombo pois não tantas coisas de ti a Candace falava de ti a toda a hora lá nas termas até fiquei cheio de ciúmes. E disse cá para comigo quem será este Quentin dê lá por onde der tenho de ver como é o animal porque fiquei apanhadinho de todo mal vi a rapariga e não me importo de reconhecer que nunca me passou pela cabeça que era do irmão que ela passava a vida a falar não teria falado mais de ti nem que tu fosses o único homem sobre a terra nem que fosses seu marido não queres mesmo um charuto Não fumo Nesse caso não insisto apesar de ser de muito boa qualidade custaram-me a vinte e cinco o cento comprados por grosso a um amigo de Havana sim acho que muita coisa mudou por lá passo a vir a prometer a mim mesmo que hei-de lá ir mas nunca mais me decido há dez anos que ando a dar no duro não posso deixar o banco em tempo de aulas os novos hábitos de licenciado alteram as coisas que pareciam importantes para um estudante estás a perceber conta-me como vão as coisas por lá Não vou dizer nada nem aos meus pais se é isso

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que queres saber Não vou dizer nada não vou oh isso isso é no que estás a falar será 97 que não percebes que tanto se me dá que contes ou não vê se percebes que uma coisa como essa é um azar mas não é crime não sou o primeiro nem serei o último tive azar nada mais tu poderias ter tido mais sorte Estás a mentir Fica calmo não te estou a tentar obrigar a contares nada que não queiras não te quero ofender claro um jovem como tu iria considerar uma coisa dessas muito mais grave do que se fosse daqui a cinco anos Eu só conheço uma maneira de tratar a mentira e não acho que Harvard. me faça mudar de ideias Isto ainda é melhor que uma comédia deves ter ensaiado bem bom tens razão não há necessidade nenhuma de lhes dizer o melhor é esquecer o que lá vai lá vai eli não há nenhuma razão para que tu e eu deixemos que uma coisa sem importância como essa se intrometa entre nós Eu gosto de ti e do Quentin gosto do vosso aspecto não se parecem com os outros provincianos ainda bem que resolvemos assim a questão prometi à tua mãe fazer qualquer coisa pelo Jason mas também gostava de te ajudar o Jason podia perfeitamente aqui ficar mas num buraco como este não há futuro para um jovem como tu Obrigado mas é melhor ficares-te pelo Jason ele saberá retribuir a gentileza melhor do que eu Desculpa lá aquilo mas eu não passava de um miúdo naquela época e nunca tinha tido uma mãe como a tua para me ensinar boas maneiras e se ela tivesse sabido isso só a ia magoar desnecessariamente sim tens razão não há necessidade e à Candace também não naturalmente Eu disse aos meus pais Olha bem para mim quanto tempo achas que te aguentas comigo Não tenho de me aguentar muito tempo se tu também aprendeste a lutar na escola experimenta e verás quanto tempo eu Olha o puro dum raio onde é que queres chegar Experimenta e verás Meu Deus o charuto que diria a tua mãe se encontrasse uma queimadura no rebordo da chaminé foi por pouco ouve lá Quentin 98 tu estás a preparar-te para fazeres alguma coisa de que ambos nos vamos arrepender eu gosto de ti gostei de ti assim que te vi disse até deve ser um tipo porreiro tenha lá os defeitos que tiver senão a Candace não gostava tanto dele ouve eu ando por aí no mundo há dez anos e as coisas passam a ter menos Importância tu depois verás vamos fazer as pazes tu e eu filhos da velha Universidade de Harvard e tudo acho que já não reconheceria o lugar é o melhor lugar do mundo para um rapaz hei-de para lá mandar os meus filhos dar-lhes melhor sorte do que eu tive espera não te vás ainda vamos conversar mais sobre isto um jovem mete estas ideias na cabeça e eu apoio-o inteiramente -fazem-lhe bem enquanto el@ anda na universidade moldam-lhe o carácter a universidade é boa para manter a tradição mas quando ele sai para o mundo tem de se desenrascar o melhor que pode porque vê que os outros estão todos a fazer o mesmo que diabo vá apertemos as mãos e o que lá vai lá vai pela saúde da tua mãe lembra-te de como ela é frágil vá dá cá a tua mão toma olha acabadinha de sair do convento vês nem uma mancha ainda nem sequer foi dobrada estás a ver vá Vai para o diabo mais o teu dinheiro Não não vá lá eu agora sou da família vês eu sei como se sente um rapaz da tua idade metido em negócios secretos e é sempre dificil levar o velhote a descoser-se eu sei então não passei já por isso e nem foi assim há tanto tempo mas agora vou-me casar e tudo vá não sejas tolo especialmente agora que estás lá longe ouve quando tivermos mais tempo para conversar quero falar-te de uma viúva lá da cidade Também já ouvi essa podes guardar a merda do dinheiro Então aceita-o como um

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empréstimo num abrir e fechar de olhos estás com cinquenta anos Tira as tuas mãos de cima de mim e é melhor tirares o charuto de cima da chaminé Então conta e vai para o diabo hás-de ganhar muito com isso se não fosses tão idiota terias percebido que eu as tenho bem seguras para que um irmãozeco qualquer armado em cavaleiro andante a tua mãe falou-me de ti sempre cheio de ideias entra entra querida o Quentin e eu estávamos a tentar conhecer-nos melhor a conversar sobre Harvard queres alguma coisa a minha menina não consegue estar longe do velhote pois não Sai por um instante Herbert quero falar com o Quentin Entra entra toca a conversar para nos conhecermos melhor eu estava precisamente a dizer ao Quentin Vá Herbert sai só por um bocadinho Pronto está bem tu e o maninho querem estar juntos mais um bocadinho não é É melhor tirares esse charuto de cima da chaminé Certo como sempre meu rapaz bem vou andando deixa-os fazerem de ti o que quiserem enquanto podem Quentin a partir de depois de amanhã tens de pedir por favor ao velhote não é querida dá cá um beijinho minha linda Oh pára com isso guarda isso para depois de amanhã Nessa altura vai ser com juros não deixes o Quentin fazer nada que ele não possa acabar ah a propósito não sei se já contei ao Quentin aquela do papagaio do homem e do que lhe aconteceu uma história bem triste lembra-me para lhe contar e tu pensa nela também adeuzinho Bem Bem Que estás tu a tramar agora Nada Andas outra vez a meter-te na minha vida não te chegou o que fizeste o Verão passado Deves estar com febre Caddy Estás doente doente como Simplesmente doente. Não posso perguntar. Matou a voz dele através do Esse canalha não Caddy De vez em quando o rio cintilava para lá das coisas com uma espécie de reflexos deslizantes à hora do meio-dia e já mais tarde. Bem mais tarde agora, embora tivéssemos passado por ele remando ainda rio acima majestoso sob o olhar dos deuses de deus. Melhor. Deuses. Deus seria também um canalha em Boston no Massachussetts. Ou talvez não propriamente um marido. Os remos molhados fazendo-o luzir à medida que avançava entre longas piscadelas e mãos abertas de mulher. Adulador. Adulador mesmo não sendo marido sem se importar com Deus. 100 Esse canalha, Caddy O rio desapareceu cintilante para lá de uma curva fechada. Estou doente tens deprometer Doente estás doente como Simplesmente doente por enquanto não posso pedir a ninguém maspromete-me que ofarás Se elesprecisam de quem tome conta deles épor tua causa estás doente como Ouvimos o carro arrancar mesmo por baixo da j anela e partir para a estação, para ir esperar o comboio das oito e dez. Para ir buscar as primas. Cabeças.' Progredindo cabeça a cabeça, mas nada de barbeiros. Manicuras. Um dia tivemos um puro-sangue. Mas só no estábulo porque quando lhe púnhamos a sela era uma fera. O Quentin matou todas as suas vozes através do chão do quarto da Gaddy O comboio parou. Saltei para cima da minha sombra. Os carris eram atravessados por uma estrada. Havia um cartaz de madeira com um velho a comer qualquer coisa de dentro de um cartucho, e depois o ruído. A estrada avançava por entre árvores, que faziam sombra, mas a folhagem de junho na Nova Inglaterra não é muito mais densa que em Abril na minha terra. Avistei uma chaminé. Virei-lhe as costas, calcando a minha sombra na poeira. Por vezes à noite sentia algo terrível dentro de mim algo que me sorria que eu via que me sorria através deles através das caras deles mas agora desapareceu e sínto-me doente Caddy Não me toquespromete só Se está doente não pode Posso sim e depoisfica tudo bemjá não tem importância não os deixes mandarem-no parajackson promete

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Prometo Gaddy Gaddy Não me toques não me toques Como é Gaddy Como é Isso que te sorri essa coisa que te sorriatravés deles Ainda via a chaminé. Era lá que a água devia estar, a cami1. Head: apelido de Herbert (Trad.: <@Cabeça"). (N. da T) 101 nho do mar e das grutas repousantes. Correndo lentamente, e quando Ele dizia Erguei-vos só os ferros de engomar. Quando o Versh e eu passávamos o dia a caçar nunca levávamos almoço, e ao meio-dia dava-me a fome. Ficava com fome até cerca da uma hora, mas depois, de repente, até me esquecia de que já não eesta-va com fome. Os candeeiros da rua descem a encosta e depois ouvi o carro a descer a encosta. O braço,,@W cadeira liso efrio sob a minha testa moldando a cadeira os ramos da macieira a tocarem-me o cabelo sobre as roupas do paradisíacas puxadas até ao nariz Estás com febre também ontem estive é como estar perto do fogão. Não me toques. Caddy se estás doente não podes fazer isso. O canalha. Tenho de casar com alguém. Então disseram-me que tinham de voltar apartir o osso Deixei finalmente de ver a chaminé. A estrada seguia ao longo de um muro. As árvores arrimavam-se ao muro, aspergidas de sol. A pedra estava fria. Sentia-se o frio quando passávamos ao lado. Só que a nossa região não era como esta região. Sentia-se qualquer coisa só de andar a passear. Uma espécie de fecundidade serena e violenta que satisfazia até os mais esfomeados. Flutuando à nossa volta sem se deter protegendo as mais ínfimas pedras. Uma espécie de estratagema para que o verde não faltasse às árvores e o azul distante não fosse essa rica quimera. disseram-me que o osso tinha de serpartido outra vez e cá por dentro desatei a gritar Ai AiAleasuar. Quero U saber seio que é umapernapartida sei muito bem não há-de ser nada só vou ter deficar em casa umpouco mais é tudo e os músculosfacia' aficarem entorpecidos e a minha boca a is dizer Esperem Esperem só u m m i n uto encharcada de suor ai ai aípor detrds dos dentes e o Pai maldito cavalo maldito cavalo. Fspera a cul- pafoi minha. Ele vinha pela cercafora todas as manhãs direito à cozi.nha com um cesto na mão correndo um pau pela vedaçãofora e todas as manhãs eu me arrastava até àjanela com gesso e tudo eficava à espreita com um bocado de carvão a Dilsey dizia vai dã cabo de si* não tem tino na cabeça sópassaram quatro dias desde qu @apartÍu. Espera eu habituo-me num i .nstante espera só um minuto eu vou Até o som parecia sumir-se no ar, como se o ar estivesse gasto e cansado de transportar sons há tanto tempo. A voz de um 102 cão chega mais longe que o ruído de um comboio, pelos menos na escuridão. E a de algumas pessoas. Dos negros por exemplo. O Louis Hatcher nunca usou a trompa quando a levava mais o velho lampião. E eu disse: - Louis quando foi que limpaste o lampião pela última vez? - Limpei-o há pouco tempo. Lembra-se quando as águas da cheia arrastaram as pessoas por aí fora? Limpei-o nesse dia. Nes- sã noite a velha e eu sentados em frente ao lume e vai ela e diz "Louis, qu'é tu vais fazê s'a cheia chega ré qui?" e vou eu e digo "Lá isso é verdade. Acho qu'o melhor é limpá o lampião". E por isso limpei-o nessa noite. -A cheia andava lá para cima para a Pensilvânia - disse eu. Não podia chegar cá tão abaixo. - Isso é o que vomecê diz - disse o Louis. - A auga pode subir tão alto e alagar tanto em jefferson como na Pensilvânia, acho eu. São os que dizem qu'a cheia não chega ré qui qu' apare- cem a boiar no alto dos telhados.

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- Chegaste a sair de casa com a Martha nessa noite? - Ai não que não saí. Limpei o lampião e depois eu e ela passámos a noite no alto da colina atrás do cemitério. E s'eu soubesse doutra mais alta era pa lá que tínhamos ido. - E desde então nunca mais limpaste o lampião? - Pa qu'hei-de eu limpá-lo se não há precisão? - Queres tu dizer até vir outra cheia? - O qu'eu sei é que nos livrou da outra. - Ora, Tio Louis, deixa-te disso - disse eu. - Si siô. Pense vomecê pela sua cabeça qu'eu penso pela minha. Se tudo o qu'eu tenho de fazer pa me livrar da cheia é limpar este lampião, não vou discutir com ninguém por causa disso. - O Ti'Louis nem cum lampião caçava nada - disse o Vérsh. - Olha rapaz, já eu andava por aí a caçar opóssuns, e inda elas tinham de esfregar a cabeça do teu pai com petróleo pa matar os piolhos - disse o Louis. - E apanhava-os, si siô. - Isso é verdade - disse o Vérsh. - Acho qu'o Ti'Louis apanhou mais opóssuns nas redondezas do que qualquer outro. 103 - Si siô - disse o Louis. - Tinha luz que chegava p@)s opóssuns verem bem, si siô. Nunca os ouvi refilar. Agora calem-Se. Lá vem um. lupi. Vá, cão, agarra-o. - E lá ficávamos, sentados nas folhas secas que sussurravam com a palpitação lenta da espera e a respiração lenta da terra e daquele Outubro sem vento, com o cheiro pestilento da lanterna a empestar o ar macio, a ouvir os cães e o eco da voz do Louis a perder-se ao longe. Ele nunca elevava a voz, mas mesmo assim, numa noite calma ouvíamo-la da varanda da frente. Quando ele chamava os caes, a voz dele parecia mesmo a trompa que levava pendurada ao ombro e nunca usava, mas ainda mais clara, mais suave, como se a sua voz pertencesse à escuridão e ao silêncio, dele saindo e a ele voltando em sucessivas ondulações. HooUuuuuu. HooUuuuuu. HooUuuuuuuuuuuuuu. Tenho de casar com alguém Tiveste muitos Caddy Não tive de mais tomas conta do Benjy e do Pai Então não sabes de quem é e ele sabe Não me toques tomas conta do Benjy e do Pai Comecei a sentir a água antes de chegar à ponte. A ponte era de pedra gris, coberta de líquenes e impregnada de uma humidade persistente semeada de fungos. Em baixo a água estendia-se límpida e estática, sombreada, murmurando e batendo em torno das pedras em fugidios remoinhos de céu rodopiante. Caddy esse Tenho de casar com alguém O Versh falou-me de um homem que se mutilou. Foi para a floresta e fê-lo com uma navalha sentado numa vala. Uma navalha partida atirando-os para trás das costas e com idêntico movimento atirou a pele ensanguentada para trás a direito não em arco. Mas não é isso. Não é não os ter. É nunca os ter tido e então poderia dizer Oh Isso Isso é chinês e eu não sei chinês. E o Pai disse é, por seres virgem: não percebes? As mulheres nunca são virgens. A pureza é um estado negativo e como tal contrário à natureza. É a natureza que te está a magoar e não a Caddy e eu disse Isso são só alavras e ele disse Também p a virgindade e eu disse isso é que não sabe. Não tem como saber e ele disse Sim. No momento em que nos apercebemos disso a tragédia perde todo o seu efeito. 104 Onde batia a sombra da ponte eu podia ver até muito fundo, mas não até ao fundo. Quando deixamos uma folha na água durante muito tempo daí por um bocado o tecido vegetal desfaz-se e as fibras delicadas oscilam lentamente como quando adormecemos. Nunca se tocam por mais

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entrelaçadas que tivessem estado anteriormente, por mais agarradas que tivessem estado aos ossos. E talvez quando Ele disser Erguei-vos também os olhos venham à superfície, saídos da paz e do sono profundo para contemplarem a glória. E passado algum tempo os ferros viriam à superfície. Escondi-os por baixo da extremidade da ponte, fui até ao parapeito e debrucei-me. Não conseguia ver o fundo, mas os meus olhos penetraram fundo na inquietação das águas antes até se darem por vencidos, e então vi uma sombra suspensa como uma seta larga na corrente. As borboletas entravam e saíam da sombra da ponte rasando a superfície. Se ao menos do lado de N houvesse um inferno: a chama purificadora e nós dois mais do que mortos. Então só me terás a mim então só a mim então os dois no meio da maledicência e do horrorpara lí da chamapurificadora A seta aumentava com os movimentos, e nisto uma truta apanhou uma mosca por baixo da superfície com a delicadeza descomunal de um elefante a apanhar um amendoim. O vértice fugaz perdeu-se rio abaixo e depois vi de novo a seta, de bico contra a corrente, oscilando suavemente impelida pela água sobre a qual volteavam borboletas em voos rasantes e depois pousavam. Então só tu e eu ei d nom o a maledicência e do horror cercadospela chamapurificadora A truta parou, delicada e imóvel, entre as sombras ondulantes. Chegaram à ponte três rapazes com canas de pesca e ficámos todos debruçados a olhar para a truta. Eles conheciam bem o peixe. Era uma personagem famosa por aquelas bandas. - Há vinte e cinco anos que andam a ver se apanham esta truta. Há uma loja em Boston que oferece uma cana de pesca de vinte e cinco dólares a quem conseguir. - Então por que não a apanham vocês? Não gostavam de ter uma cana de pesca de vinte e cinco dólares? - Gostávamos - disseram eles. Debruçaram-se mais do 105 parapeito, a olharem para a truta. - Lá isso gostava - disse o primeiro. - Eu cá não queria a cana para nada - disse o segundo. Antes queria o dinheiro. - Talvez eles não to dessem - disse o primeiro. - Aposto que o homem te obrigava a ficares com a cana. - Nesse caso vendia-a. - Mas ninguém te dava vinte e cinco dólares por ela. - Nesse caso contentava-me com o que me dessem. Consigo pescar tantos peixes com esta cana como com uma de vinte e cinco dólares. - Depois começaram a discutir o que fariam com os vinte e cinco dólares. Falavam todos ao mesmo tempo, com vozes peremptórias, contraditórias e impacientes, fazendo da irrealidade possibilidade, depois probabilidade e logo facto incontroverso, como toda a gente faz quando os desejos ganham voz. - Eu cá comprava um cavalo e uma carroça - disse o segundo. - Isso é que era bom - disseram os outros. - Isso é que comprava. Até sei onde posso arranjar uma por vinte e cinco dólares. Conheço o homem que a vende. - Quern é ele? - Isso é comigo. Posso comprar uma por vinte e cinco dólares. - Tretas - disseram os outros. - Ele não sabe de nada. É só conversa. - Isso é o que vocês julgam - disse o rapaz. Os outros continuaram a gozá-lo, mas ele não disse mais nada. Debruçou-se do parapeito, a olhar lá para baixo para a truta que ele já tinha gasto e, de repente, a acrimónia, o conflito, desapareceram das suas vozes, como se também eles achassem que ele tinha de facto pescado o peixe e comprado o

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cavalo e a carroça, todos três experimentando aquela sensação adulta de se ficar convencido de qualquer coisa por força de uma atitude de serena superioridade. Suponho que as pessoas, à força de se gastarem tanto a si e aos outros pelas palavras, são pelo menos coerentes ao reconhecerem sabedoria numa língua calada, e, por instantes, senti os 106 outros dois rapidamente à procura de um meio de desfeitearem o amigo, de o privarem do cavalo e da carroça. - Tu não conseguias vender a cana por vinte e cinco dólares - disse o primeiro. - Aposto o que quiseres como não conseguias. - Ele ainda não apanhou a truta - disse o terceiro subitamente, e depois gritaram os dois em coro: - Pois, o qu'é qu'eu te disse? Como é que se chama o homem? Desafio-te a dizeres o nome. Não conheces homem nenhum. - Cala-te - disse o segundp. - Olha, lá vem ela outra vez. - Debruçaram-se do parapeito, sem se mexerem, todos iguais, com as canas finas desenhando-se oblíquas contra o sol, também elas todas iguais. A truta subiu sem pressas à superfície. Uma sombra que aumentava em ténues ondulações; e de novo o pequeno vortex desapareceu rio abaixo. - Bolas - murmurou o primeiro. - Vamos desistir de querer apanhá-la - disse ele. - Ficamos só a ver os de Boston virem cá tentar. É este o único peixe que por aqui anda? É. Correu com os outros todos. Por estas bandas, o melhor sítio para pescar é lá em baixo no Sorvedouro. - Não é nada - disse o segundo rapaz. - Em Bigelows Mill é muito melhor. - Depois puseram-se a discutir qual era o melhor local para pescar e de repente debruçaram-se de novo do parapeito para verem a truta vir mais uma vez à superfície e o remoinho engolir um bocadinho do céu. Perguntei-lhes a que distância ficava a cidade mais próxima e eles disseram-me. - Mas a mais perto de comboio é para aquele lado - disse o segundo, apontando para trás, para a estrada. - Para onde é que vai? - Para lado nenhum. Ando só a passear. - Anda na Universidade? - Ando. Há fábricas nessa tal cidade? - Fábricas? - ficaram a olhar para mim. - Não - disse o segundo. - Lá não. - Miraram-me da cabeça aos pés. - Anda à procura de trabalho? - E Bigelow's Mill? - disse o terceiro. - É uma fábrica. - Fábrica uma ova. Ele quer mesmo uma fábrica a sério. - Uma que tenha sirene - disse eu. - Ainda não ouvi nenhuma sirene tocar a uma hora. - Ah - disse o segundo. - Há um relógio na torre da igreja unitária. Pode ir lá ver as horas. Mas, oiça lá, isso aí pendurado na corrente não é um relógio? - É, mas parti-o esta manhã. - Mostrei-lhes o relógio e eles examinaram-no muito sérios. - Ainda trabalha - disse o segundo. - Quanto custa um relógio destes? - Foi um presente - disse eu. - Deu-mo o meu pai quando acabei o liceu. É canadiano? - disse o terceiro. - Tinha o cabelo ruivo. Canadiano? Ele não fala como eles - disse o segundo. - já os ouvi falar. Este fala como as pessoas falam nas pantomimas de negros. - Ouve lá - disse o terceiro. - Não tens medo que ele te bata? - Bater-me? - Tu disseste que ele fala como os negros. - Ora, vai-te catar - disse o segundo. - Quando chegar ao cimo daquela

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colina vê logo a torre. Agradeci-lhes. - Desejo-vos boa sorte. Mas não apanhem o bicho. já é velhote e merece que o deixem em paz. - Ninguém consegue pescar aquela truta - disse o primeiro. Debruçaram-se do parapeito, a olharem para a água, com as três canas de pesca descendo na diagonal como três fios de fogo contra o sol. Avancei pela minha sombra acima, empurrando-a de novo para a sombra sarapintada das árvores. A estrada curvava, subindo a encosta e afastando-se da água. Atravessava a colina e depois descia serpenteante, guiando a vista e a mente por um aprazível túnel verdejante até à cúpula quadrada que se elevava por detrás das árvores e ao mostrador redondo do relógio, muito longe. Sentei-me na berma da estrada. A erva chegava-me aos tornozelos. Era espessa. As sombras da estrada eram tão estáticas como se tivessem sido pintadas com lápis de raios de sol. 108 Mas era apenas um comboio e, passado algum tempo o ruído prolongado desapareceu por entre as árvores e eu ouvi o meu relógio e o comboio a desvanecerem-se, como se estivessem a atravessar um outro mês ou um outro Verão algures noutro lugar, desaparecendo velozes sob a estática gaivota e todas as coisas correndo velozes. Excepto o Gerald. Esse seguiria imponente, remador solitário no meio-dia, remando precisamente para lá do meio-dia, em apoteose, subindo a corrente rumo ao clarão da tarde, ascendendo a uma bebedeira de infinito onde só ele e a gaivota, esta terrivelmente imóvel, ele em remadas vigorosas e compassadas, eram a imagem da própria inércia, com o mundo subjugado sob as suas sombras projectadas no sol. Caddy esse canalha esse canalha Caddy As vozes deles aproximavam-se pela colina acima, e as três canas finíssimas eram três fios de fogo a balançar. Olharam para mim sem abrandarem o passo. - Bem - disse eu. - Não vos vejo trazer nada. - Nem sequer tentámos pescá-la - disse o primeiro. Aquele peixe não é para ser pescado. - Lá está o relógio - disse o segundo, apontando. Quando estiver mais perto já vê as horas. - Pois é - disse eu. - Está bem. - Levantei-me. - Vocês vão para a cidade? - Vamos para o Sorvedouro, para as carpas - disse o primeiro. - Mas no Sorvedouro não se apanha nada - disse o segundo. - Se calhar achas melhor irmos para a azenha, com uma data de tipos a chapinharem e a afugentarem os peixes. - Mas no Sorvedouro não se apanha peixe nenhum - disse o segundo. - Se não nos apressarmos é que não apanhamos peixe em lado nenhum - disse o terceiro. - Não percebo por que é que vocês só falam do Sorvedouro disse o segundo. - Lá não se apanha nada. - Se não quiserem não venham - disse o primeiro. - Não estão amarrados a mim. 109 - Vamos nadar para a azenha - disse o terceiro. - Eu cá vou pescar para o Sorvedouro - disse o primeiro. Vocês façam o que quiserem. - Ouve lá, há quanto tempo não ouves ninguém dizer que apanhou lá peixe? - disse o segundo para o terceiro. - Vamos nadar para a azenha - disse o terceiro. A cúpula mergulhou lentamente por detrás do arvoredo, com o mostrador redondo do relógio ainda muito longe. Continuámos a caminhada e entrámos na sombra pintalgada. Chegámos a um

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pomar, todo ele rosa e branco. Estava cheio de abelhas; já as ouvíamos. - Vamos nadar para a azenha - disse o terceiro. Ao lado do porriar abria-se uma vereda. O terceiro rapaz abrandou e parou. O primeiro continuou, com os raios de sol a reflectírem-se na cana e a projectarem-se sobre o seu ombro e as costas da camisa. - Venham daí - disse o terceiro. O segundo rapaz parou também. Por que hás-de ter de casar com alguém Gaddy Queres que seja eu a dizê-lo achas que se eu o disser não será - Vamos subir até à azenha - disse ele. - Vá, venham daí. O primeiro rapaz seguiu em frente. Os seus pés descalços não se ouviam caminhar, mais leves na poeira fina do que a folhagem. No pomar as abelhas pareciam vento a levantar-se, com um zumbido suspenso como por magia no limiar do crescendo e aí inantido. A vereda corria paralela ao muro, sob arcos de folhagem, abrindo-se em flor e dissolvendo-se depois no arvoredo. Os raios de sol penetravam-no, escassos e sôfregos. Borboletas amarelas cintilavam na sombra como centelhas de sol. - Para que queres ir para o Sorvedouro? - disse o segundo rapaz. - Se quiseres, também podes pescar na azenha. - Ora, deixa-o ir - disse o terceiro. E ficaram a ver o primelro rapaz, afastar-se. O sol deslizava em manchas sobre os seus ombros bamboleantes, cintilando sobre a cana como formigas douradas. - Kenny - disse o segundo. Diz ao Pai está bem eu digo sou o Progenitor do meu paifui eu que o i .nventeifui.eu que o criei Diz-lho mas não será mais assim porque ele dirá que não então tu e eu seremos desde aífiloprogenitores 110 - Vá, venham - disse o terceiro rapaz. - Eles já lá vão. Seguiam com os olhos o primeiro rapaz. - Vai-te embora disseram eles de repente. - Vai, menino da mamã. Se se põe a nadar e molha a cabeça, leva uma coça. - Meteram pela vereda e lá foram, com as borboletas amarelas a rodopiarem à volta deles pela sombra fora. éporque não há mais nada em que eu acredite há mais alguma coisa maspode ser que não seja e então eu Tu descobrirás que nem a injustiça vale aquilo que tu acreditas ser Ele não me ligou. O queixo desenhava-se-lhe de perfil e a cara estava ligeiramente virada para o lado por baixo do chapéu roto. , - Por que não vais nadar com eles? - disse eu. aquele cana- lha Caddy Estava a quererprovocar uma briga com ele estavas Um mentiroso e um patife Caddyfoi expulso do clubeporfazer batota com as cartas e mandado para Coventry e aí apanhado a copiar nos exames e expulso Sim e depois eu não voujogar cartas com - Gostas mais de pescar que de nadar? - disse eu. O som das abelhas diminuiu, suspenso ainda, como se em vez de mer- gulhar no silêncio, o silêncio se limitasse a aumentar entre nós e elas, como água a subir. A estrada curvava novamente e transformava-se numa rua ladeada de relvados sombreados e casas brancas. Caddy esse canalha serás capaz de pensares no Benjy e no Pai e fazê-lo, mas nãopor mim Em que mais posso eu pensar em que mais tenho eu pensado O rapaz saiu da rua. Saltou por cima de uma cerca sem olhar para trás e atravessou o relvado até chegar a uma árvore, pousou a cana no chão, empoleirou-se na árvore e deixou-se ficar sentado de costas para a rua, com o sol finalmente imóvel sarapintando-lhe a camisa branca. em que mais tenhopensado nem sequerposso chorar morri o ano passado disse que tinha morrido mas nessa altura não sabia o que isso signíficava não sabia o que dizia Lá há dias como este no fim de Agosto, em que o ar fica fino e sôfrego como aqui, com um não sei quê de nostálgico, de triste e familiar. O homem é o somatório das suas experiências climáticas dizia o Pai. O homem era o somatório de tudo e

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mais alguma 111 coisa. Um problema de propriedades impuras fastidiosamente arrastado para um invariável nada: um impasse entre o pó e o desejo. mas agora que sei que estou morta digo-te que Entãopor que lhe dás ouvidospodemosfugír tu o Benjy e eupara onde nínguém nos conheça para onde A sege era puxada por um cavalo branco, com os cascos toc-toe pela estrada poeirenta fora; as rodas, aracnídeas, estalavam em secos murmúrios, subindo a ladeira sob um manto enrugado de folhas. Ulmeiros. Não: olmos. Olmos. De quê do dinheiro para os teus estudos do dinheiro quefizeram com a venda da pastagem para poderes irpara flarvard não vês que agora tens de acabar o curso se não acabares elefica sem nada Venderam a pastagem A camisa branca estava imóvel sobre o tronco, na sombra crivada de cintílações. As rodas eram aracnídeas. Por baixo da sege os cascos batiam rápidos e audíveis ao ritmo de uma senhora a bordar, diminuindo sem se afastarem como no teatro quando alguém se mete num tambor e desaparece do palco como por encanto. A rua curvava novamente. já via a cúpula branca e o mostrador peremptório, redondo e estúpido, do relógio. Venderam apastagem Dizem que o Pai morre daqui a um ano se não deixar de beber e ele não vai deixar não pode deixar desde que eu desde o último Verão e depois mandam o Benjyparajackson não consigo chorar nem chorar eu consigo num minuto ela estava à porta e no minuto seguinte ele estava a puxar-lhepelo vestido e a berrarfazendo a voz repercutir-se pelas paredes em ondas de som e ela encostada à parede toda encolhida cada vez mais pequena com o rosto muito branco e os o lhos co m o se tivessem sido afu nàa@s po r u m polegar a té ele a p uxa r Parafora do quarto com a voz em ondas a ecoarpela casafora como se impedida depararpelo seu próprio estado como se não houvesse lugarpara ela no silêncio a gritar Quando a porta se abriu soou uma campainha, um toque apenas, agudo, cristalino e breve, na penumbra bem definida, como se estivesse regulada e afinada para produzir aquele único e breve tinido, como se para evitar que a campainha se gastasse ou para não se ter de esbanjar silêncio em demasia para a fazer voltar ao normal quando a porta se abria para o cheiro morno do 112 pão acabadinho de cozer; uma criança suja com olhos de urso de peluche e duas tranças envernizadas. - Olá, miúda. - No vazio cálido e doce da padaria, a cara dela parecia uma chávena de leite com um pingo de café. - Não está aqui ninguém? 1 Ela, porém, limitou-se a olhar para mim até uma porta se abrir e aparecer uma senhora. Por detrás do balcão, repleto de formas estaladiças enfileiradas dentro da vitrina, assomaram-se o seu rosto acinzentado e limpo, o cabelo arrepiado e ralo colado à cabeça pequena e acinzentada, uns óculos muito limpos de aros acinzentados, encavalitados,no nariz e projectando-se como se puxados por um arame, ou como a gaveta da caixa registadora de uma loja. Parecia uma bibliotecária. Alguém perdida entre prateleiras poeirentas de certezas bem ordenadas e de há muito divorciadas da realidade, ressequindo tranquilamente como o sopro de ar de quem vê ser cometida uma injustiça - Duas destas, por favor, minha senhora. Tirou uma folha de papel de jornal de debaixo do balcão, colocou-a sobre o balcão e pegou nas duas arrufadas. A garota tinha os olhos presos nelas, sem pestanejar, como duas amoras bolando estáticas numa chávena de café fraco Terra de

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judeus pátria de italianos. A mulher olhou para o pão, com as mãos acinzentadas e muito limpas onde um enorme anel de ouro pontificava no indicador esquerdo, apertado ao dedo por uma junta azul. É a senhora mesma quem coze o pão? Meu senhor? - disse ela. Sem tirar nem pôr. Meu senhor? Como no teatro. Meu senhor? - São cinco cêntimos. Deseja mais alguma coisa? - Não, minha senhora. Para mim não. Mas aqui esta senhorinha deseja qualquer coisa. -A estatura não permitia à mulher ver por cima da vitrina e chegou-se por isso para a ponta para poder ver a garota. - Vem consigo? - Não, minha senhora. já cá estava quando entrei. - Ah, sua atrevida - disse ela. Saiu de trás do balcão, mas não tocou na garota. - Tens alguma coisa nos bolsos? - Ela nem bolsos tem - disse eu. - Não estava a fazer mal nenhum. Estava só aqui parada à sua espera. - Então por que é que a campainha não tocou? - disse a mulher olhando-me triunfante. Tudo do que ela precisava era de um monte de interruptores e de uma lousa atrás dos seus 2 x 2= 5. - Ela esconde-o debaixo do vestido e a gente não dá por nada. Eh, menina, como foi que entraste? A garota não respondeu. Olhou para a mulher e depois lançou-me um olhar negro e fugidio, e voltou a fixar os olhos na mulher. - Estes estrangeiros - disse a mulher. - Como é que ela entrou sem fazer tocar a campainha? _ Entrou quando eu abri a porta - disse eu. - Tocou só uma vez e entrámos os dois. Além disso, daqui ela não consegue chegar a nada. Nem creio que fosse capaz. Não eras capaz, pois não, pequenina? - A garota deitou-me um olhar secreto, contemplativo. - O que é que tu queres? Pão? Estendeu a mão fechada, que se desenrolou, mostrando um níquel húmido e muito sujo numa palma da mão húmida e muito suja. A moeda estava molhada e morna. Sentia-lhe o cheiro ténue a metal. - Dá-me um cacete de cinco cêntimos por favor, minha senhora? Ela tirou de debaixo do balcão uma folha quadrada de papel de jornal, colocou-a em cima do balcão e embrulhou o cacete. Pus a moeda em cima do balcão e juntei-lhe outra. - E mais uma dessas arrufadas, minha senhora, se faz favor. A mulher tirou da vitrina mais uma arrufada. - Dê cá o embrulho - disse ela. Dei-lhe o embrulho e ela desembrulhou-o, meteu lá a terceira arrufada, voltou a embrulhá-lo e pegou nas moedas; depois tirou duas moedas de troco do bolso do avental e deu-mas. Entreguei-as à garota. Os deditos dela fecharam-se sobre as moedas, molhados e mornos, como larvas. - Vai dar-lhe essa arrufada? - disse a mulher. - Sim senhora - disse eu. - Espero que o seu pão lhe cheire tão bem a ela como me cheira a mim. Peguei nos dois embrulhos e dei o cacete à garota, perante o olhar de fria certeza da mulher, que nos mirava, toda ela acin114 zentada, por detrás do balcão. - Espere um instante - disse ela. Foi às traseiras do estabelecimento. A porta abriu-se e fechou-se outra vez. A garota não tirava os olhos de mim, com o pão bem apertado contra o vestido enxovalhado. - Como te chamas? - disse eu. Ela baixou os olhos, mas não se mexeu. Parecia nem respirar. A mulher voltou. Trazia na mão uma coisa deveras curiosa. Pegava-lhe como se tivesse sido um ratinho de estimação, agora morto. - Toma - disse ela. A garota fitou-a. - É para ti - disse a mulher, e estendeu-lhe a tal coisa. - Só é esquisito de aspecto. Acho que quando comeres não notas a diferença. Vá, pega. Não posso ficar aqui à espera

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o dia todo. - A garota pegou-lhe, sempre sem desviar os olhos da mulher. A mulher limpou as mãos ao avental. - Tenho de mandar arranjar esta campainha - disse ela. Foi até à porta e abriu-a com ímpeto. A campainha tocou uma vez, sumida, cristalina e invisível. Dirigimo-nos para a porta e a mulher olhou para trás. - Obrigado pelo bolo - disse eu. - Estes estrangeiros - disse ela, espreitando para o recanto escuro onde a campainha se anichava. - Siga o meu conselho e mantenha-se longe deles, meu rapaz. - Sim, senhora - disse eu. - Anda, miúda. - Saímos da loja. - Muito obrigado, minha senhora. Ela encostou a porta e depois abriu-a outra vez com força, obrigando a campainha a soltar a sua nota breve e solitária. Estrangeiros - disse, perscrutando a campainha. Seguimos o nosso caminho. - Bem - disse eu - e que tal um gelado? - Ela trincou o bolo ressequido. - Gostas de gelados? - Ela voltou-me uns olhos estáticos e negros, sem parar de mastigar. - Vem comigo. Entrámos na pastelaria e comemos os gelados. Ela não queria pousar o pão. - Por que não o pousas para comeres mais à vontade? - disse eu, oferecendo-me para lho segurai@ Mas ela não o largava, chupando o gelado como se fosse um caramelo. O bolo já dentado estava em cima da mesa. Comeu o gelado de uma assentada e voltou ao bolo, olhando em volta para as vitrinas. Acabei o meu gelado e saímos. 115 - Para que lado moras? - disse eu. Uma sege, e era a do cavalo branco. Só que o doutor Peabody manda peso. Cento e cinquenta quilos. Com ele é preciso agarrares-te bem pela estrada acima. Crianças. Andam melhor do que se agarram pela encosta acima. Jáfoste ao médícofoste ao médico Gaddy Nãopreciso de ir agora não lhepossoperguntar depoísjá nãofaz maljá não tem importância Porque as mulheres são muito delicadas muito misteriosas dizia o Pai. O delicado equilíbrio da imundície periódica entre duas luas. Luas dizia ele cheias e amarelas como as luas das colheitas as suas ancas as suas coxas. Fora fora delas sempre mas. Amarelas. Como solas dos pés depois de muito caminharem. E depois saber que um homem guardava todos aqueles segredos misteriosos e imperiosos. Com tudo isso dentro das formas internas uma suavidade exterior à espera de ser tocada. Putrefacção líquida como coisas afogadas flutuando como borracha des- botada e pouco inchada impregnada do aroma das madressilvas. - Era melhor levares o pão para casa, não achas? Ela olhou para mim. Mastigava silenciosa e convictamente; a intervalos regulares, um pequeno alto escorregava-lhe suave- mente pela garganta. Abri o meu embrulho e dei-lhe uma das minhas arrufadas. - Adeus - disse eu. Continuei a andar. Nisto olhei para trás. Ela estava mesmo atrás de mim. - Moras para este lado? - Não respondeu. Ia ao meu lado, quase por baixo do meu cotovelo. Continuámos. Estava tudo muito sossegado, quase não se via vivalma impregnando-se do aroma das madressilvas Ela ter-me-ia ditopara não me deixar ali sentado nos degraus a ouvi-la atirar com a porta no crepúsculo a ouvir o Benjy ainda a chorar A hora da ceia ela ia ter de descer e impregnar-se do aroma das madressilvas Chegámos à esquina. - Bem, agora sigo por aqui - disse eu. - Adeus. - Ela parou também. Engoliu o resto do bolo e começou a comer a arrufada, espiando-me por cima dela. -Adeus - disse eu outra vez. Virei para a outra rua e continuei a andar, só parando na esquina seguinte.

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- Para que lado moras? - disse eu. - Será para este? 116 Apontei para o extremo da rua. Ela não tirava os olhos de mim, - E para ali que moras? Aposto que moras perto da estação, onde estão os comboios. Moras, não moras? - Ela não tirava os olhos de mim, serenos e secretos, sempre a mastigar. A rua estava deserta nos dois sentidos, ladeada por silenciosos relvados e casas bem inseridas no arvoredo, mas não se via ninguém a não ser lá muito para trás. Demos meia volta e retrocedemos. Vimos dois homens sentados em frente a uma loja. - Conhecem esta menina? Não me larga e eu não consigo descobrir onde ela mora. Eles desviaram os olhos de mim para a garota. - Deve pertencer a uma dessas novas famílias italianas disse um. Tinha vestida urna sobrecasaca cor de ferrugem. - já a vi antes. Como te chamas, miúda? - Ela pousou neles o olhar negro por um instante, sempre com o queixo em movimento. Engolia sem parar de mastigar. - Talvez ela não fale inglês - disse o outro. - Mandaram-na ao pão - disse eu. - Há-de ser capaz de dizer alguma coisa. - Como se chama o teu pai? - disse o primeiro. - Pete? Joe? Nome John, hem? - Ela deu outra dentada na arrufada. - Que hei-de fazer com ela? - disse eu. - Não me larga e tenho de voltar para Boston. - Anda na Universidade? - Ando sim. E tenho de regressar. - Podia subir a rua e entregá-la ao Anse. Encontra-o na cocheira. É o xerife. - Acho que é isso mesmo que vou fazer - disse eu. Tenho de a deixar em qualquer lado. Muito obrigado. Anda daí, miúda. Subimos a rua, pelo lado da sombra, onde a sombra das fachadas em ruínas ia lentamente ocupando a rua. Chegámos à cocheira. O xerife não se encontrava lá. Sentado numa cadeira inclinada para trás e encostada à porta larga e baixa por onde corria uma aragem fria e escura que passava entre as baias alinhadas e tresandava a amónia, estava um homem que me mandou ir procurá-lo nos correios. Também ele não a conhecia. 11/1 - Estrangeirada. Cá para mim são todos iguais. Também a pode levar para o lado de lá da linha, que é onde eles vivem. Talvez alguém a conheça. Fomos aos correios. Ficavam no outro extremo da rua. O homem da sobrecasaca estava a abrir um jornal. - O Anse acabou de sair da cidade - disse. - Acho que o melhor é ir para o lado de lá da estação até àquelas casas junto ao rio. Lá alguém há-de conhecê-la. - Acho que é isso que vou fazer - disse eu. - Vem daí, miúda. - Ela enfiou na boca o último bocado de arrufada e engoliu-o. - Queres mais? - disse eu. Sempre a mastigar, ela fitou-me com os olhos negros e pestanudos, afectuosos. Tirei do cartucho as outras duas arrufadas, dei-lhe uma e dei uma dentada na outra. Perguntei a um homem onde ficava a estação e ele indicou-me o caminho. - Anda, miúda. Chegámos à estação e atravessámos a linha férrea, no sítio onde passava o rio. Havia uma ponte e uma rua pejada de casas de madeira, paralela ao rio. Era uma rua miserável, mas com um ar heterogéneo e fervilhante de vida. No centro de um terreno abandonado cercado por uma vedação de estacas já muito desdentada estava uma carroça tombada e uma casa a cair aos bocados, com um vestido cor-de-rosa berrante pendurado no estendai numa das mansardas. - Achas que é ali a tua casa? - disse eu. Ela olhou-me por cima da

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arrufada. - É esta? - disse eu, apontando. Ela só mastigava, mas pareceu-me discernir-lhe no olhar algo de afirmativo, de aquiescente, apesar de não mostrar qualquer entusiasmo. - É esta? - disse eu. - Então vem daí. - Entrei pelo portão desengonçado. Olhei para trás, para ela. aqui? - disse eu. Achas que é esta a tua casa? Ela acenou afirmativamente com um meneio rápido, sem tirar os olhos de mim, cravando os dentes na meia-lua humedecida da arrufada. Avançámos. Um carreiro de lajes partidas e espalhadas ao acaso, entremeadas de tufos de ervas ásperas, conduzia à escada-ria em ruínas. Não se via movimento pela casa, e o vestido cor-de-rosa lá estava pendurado na mansarda na tarde sem vento. Havia uma campainha de puxar com urna maçaneta 118 de porcelana na ponta que, quando desisti de puxar e resolvi bater, vi que estava presa a um arame com cerca de dois metros. A garota tinha a côdea meio atravessada a sair da boca e continuava a mastigar. Veio uma mulher abrir a porta. Olhou para mim e começou a falar muito depressa com a garota em italiano, numa entoação crescente seguida de uma pausa interrogativa. Voltou a falar com a garota, que a olhava por cima da ponta da côdea, empurrando-a para dentro da boca com a mão suja. - Ela diz que mora aqui - disse eu. - Encontrei-a na cidade. Este pão é seu? - Não falar - disse a mulher. Falou de novo com a garota, que se limitou a olhar para ela. - Não morar aqui? - disse eu. Apontei para a garota, depois para ela, e depois para a porta. A mulher abanou a cabeça. Falava muito depressa. Veio até ao portão e apontou para o fundo da rua, sempre a palrar. Eu acenei vigorosamente com a cabeça. - Vir mostrar? disse eu. Peguei-lhe no braço, apontando com a mão para o fundo da rua. Ela falava muito depressa e apontava também. Senhora vir mostrar - disse eu, tentando fazê-la descer os degraus. - Si, si - disse ela, recuando, mostrando-me onde estava o que me queria dizer. Acenei outra vez. - Obrigado. Obrigado. Obrigado. - Desci a escada e dirigi-me para o portão, sem correr, mas em passo acelerado. Ao chegar ao portão, parei e fiquei por momentos a olhar para a garota. A côdea já tinha desaparecido e ela olhava-me com os seus olhos negros, afectuosos. A mulher observava-nos do cimo da escada. - Anda - disse eu. - Mais tarde ou mais cedo havemos de encontrar a casa certa. Ela ia a andar mesmo por baixo do meu cotovelo. Continuámos. As casas pareciam todas vazias. Não se via vivalma. Só aquela sensação de abaf@mento que parece invadir as casas vazias. No entanto, não podiam estar todas vazias. Todos os quartos vazios, se pudéssemos cortar as paredes de repente. Minha 119 senhora, a sua filha, faça favor. Não. Minha senhora, por amor de Deus, a sua filha. E ela sempre ao meu lado, mesmo por baixo do meu cotovelo, com as tranças luzidias e muito apertadas, até que surgiu a última casa e a rua se perdeu por detrás dela para lá de um muro, paralela ao rio. Uma mulher assomou-se ao portão quebrado, com um xaile pela cabeça bem apertado com a mão por baixo do queixo. A rua descrevia uma curva e seguia deserta. Encontrei uma moeda e dei-a à garota. Eram vinte e cinco cêntimos. -Adeus, miúda. - Desatei a correr. Corri o mais que pude, sem olhar para trás, o que só fiz mesmo ao

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chegar à curva. Ela estava parada no meio da rua, pequenina, apertando o pão contra o vestido imundo, com os olhos estáticos e negros, imperturbáveis. Continuei a correr. Da rua partia um carreiro. Meti por ele e, passado algum tempo, abrandei a corrida para passo acelerado. O carreiro passava por traseiras de casas - casas por pintar, com mais roupa garrida pendurada nos arames, um estábulo com as traseiras em ruínas, apodrecendo calmamente entre as árvores alinhadas de um pomar, todas elas por podar e infestadas de ervas daninhas, todas elas rosa e branco, fervilhantes de sol e de abelhas. Olhei para trás. A entrada do carreiro estava deserta. Abrandei ainda mais, com a minha sombra a caminhar ao meu lado, arrastando a cabeça pelas ervas que escondiam a cerca. O carreiro ia dar a um portão de grades, desaparecendo entre as ervas, transformando-se depois num mero trilho que tranquilamente abria caminho para um novo prado. Saltei o portão e achei-me num espaço arborizado que atravessei até chegar a um outro muro, rente ao qual segui, com a minha sombra agora atrás de mim. Havia vinhedos e trepadeiras onde na minha terra encontraria madressilvas. Não paravam de vir, especialmente à noitinha quando chovia, impregnando do aroma das madressilvas como se sem isso não fosse já suficiente mau, suficientemente insuportável. Por que é que o deixaste beíjar beíjar Eu não o deixei eu obriguei-o ao sentir afúria a apoderar-se de mim Que me dizes tu a ísto?A Marca Vermelha da minha mão subindo-lhepe& cara acendendo uma luzpor baixo da tua mão e os olhos dela a incendiarem-se 120 Nãofoi por o teres beijado que te dei uma bofetada. Os cotovelos da raparígas de quinze anos dizia o Pai engolem-se como se tivéssemos uma espinha na garganta que se passa contigo e com a Caddy do outro lado da mesapara não olharempara mim. Folpor deixares quejosse esseparvalhão da cidade que te dei uma bofetada agora vais nao vais acho que vais dizer que não vale nada. A minha mão toda vermelha a afastar-se da cara dela. Que achas tu disto esfregar-lhe a cabeça em. As ervas emaranhadas cravando-se na carne ardendo esfregando-lhe a cabeça. Diz que não vale nada vá diz Pelo menos não beijei nenhuma porcalhona como a Natalie O muro penetrou na sombra e a segu@r foi a minha sombra, já lhe tinha pregado a partida outra vez. Tinha-me esquecido de que o rio acompanhava a curva da estrada. Trepei o muro e dei com ela * ver-me saltar para o outro lado, com o cacete apertado contra * vestido. Por um instante fiquei ali, de pé, no meio das ervas, eu a olhar para ela e ela a olhar para mim. - Por que não me disseste que era para este lado que moravas? - O pão ia saindo lentamente para fora do papel; já precisava era de ser embrulhado outra vez. - Bom, vem daí então e mostra-me onde é a tua casa. não umaporcalhona como a Nata- lie. Estava a chover ouvíamos a chuva no telhado, suspirando nas alturas através da doce soli,@,Uo do estábulo. AÍ? Tocando-lhe Aí não Aí? não chovia muito mas não conseguíamos ouvir mais nada além do telhado nem se era o meu sangue ou o seu sangue Ela empurrou-mepela escada abaixo efugiu a correr deixando-me ali sozinho a Caddyfez isso mesmo Foi aí que te doeu quando a Cad<yJugíuJoí aí Oh Ela ia ao meu lado mesmo por baixo do meu cotovelo, roçando-lhe com o alto da cabecita envernizada, com o cacete já meio fora do jornal. - Se não chegares a casa depressa ainda ricas sem o pão, e depois o que é que a tua mãe vai dizer? Aposto que sou capaz de te p@çar ao colo

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Não és nada sou muito pesada 121 A Caddyfoí-se emborafoipara casa não consegues ver o estábulo da nossa casajá alguma vez tentaste ver o estábulo da A cu,@aJoi dela ela empurrou-me elajugiu Sou capaz de tepegar ao colo sim vês como sou Ob o sangue dela e o meu sangue Oh Continuámos a caminhar pela estrada coberta de poeira fina, com pés silenciosos de borracha, pisando a poeira fina onde os lápis de sol riscavam sombras por entre as árvores. E de novo senti a proximidade da água a correr veloz e mansa no segredo das sombras. - Moras muito longe, não moras? És muito esperta para ires sozinha para a cidade de tão longe. Écomo dançar sentadojá alguma vez dançaste sentado? Ouvíamos a chuva, um rato na manjedoura, o estábulo vazio de cavalos. Como é que te agarraspara dançar é assim que te agarras para dançar Ob Eu costumava agarrar-me assim tu pensavas que eu não tinha força suficiente não pensavas Ob Ob Oh Oh Eu agarrava a costumar-me assim quero dizer ouviste o que eu disse eu disse que oh oh oA, oh A estrada continuava, silenciosa e deserta, batida por raios de sol cada vez mais oblíquos. As tranças dela, rígidas e apertadas, estavam amarradas na ponta com tiras de tecido carmesim. Uma ponta do embrulho adejava à medida que ela andava, deixando a descoberto o bico do cacete. Parei. - Ouve lá, é mesmo nesta estrada que moras? Há mais de um quilómetro que não encontramos nenhuma casa, ou quase. E ela sempre a fitar-me com aqueles olhos negros, secretos, afectuosos. - Onde moras tu, miúda? Não será lá para trás, para a cidade? Havia um pássaro algures no arvoredo, para lá dos raios de sol cada vez mais escassos, intermitentes. - O teu pai vai ficar aflito. Não vês que vais apanhar por não teres voltado direitinha para casa com o pão? O pássaro piou outra vez, invisível, um pio profundo e 122 desprovido de sentido, de inflexáo, terminando como se abruptamente cortado por uma faca, e de novo piou, e aquela sensação da água, veloz e mansa, por lugares secretos, apenas sentida, nem vista nem ouvida. - Ora bolas, miúda. - Metade do papel já estava todo pendurado, meio desfeito. - Agora já não serve para nada. Rasguei-o e atirei-o para a berma da estrada. - Vá. Temos de voltar para a cidade. Vamos seguir o rio. Saímos da estrada. Por entre o musgo havia florinhas a crescer, tal como crescia a sensação da água, muda e invisível. Eu agarrava a costumar-me assim quero dizer eu costumava agarrar-me Ela estava entreportas a olharpara nós com as mãos nas ancas Tu empurraste-me a culpajoí tua também me magoei' Estávamos a dançar sentados aposto que a Gaddy não sabe dança r sentada Pára com issopára com isso Estava só a sacudir a terra da parte & trás do teu vestido Não meponhas em cima essas tuas mãos nojentas a culpajoi tua tu é que me empurraste estotífuriosa contigo Quero lá saber que ela estivesse a olharpara nósficajuriosa à vontade elafoí-se embora Começámos a ouvir gritos, gente a chapinhar; vi um corpo castanho brilharpor um instante. Ficafuriosa. Tinha a camisa encharcada e o cabelo. Através do telhado o telhado ouvía-se agora bem vi a Natalie a atravessar o jardim à chuva. Isso mesmo encharca-te bem espero que apanhes umapneumonía

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vaípara casagrande vaca. Saltei com quantajorça tinha para dentro do chiqueiro a lama toda amarela chegava-me à cintura continuei a chafurdar até me deixar cair e começar a rebolar - Estás a ouvi-los dentro de água, miúda? Não me raiava nada de estar a fazer o mesmo. - Se tivesse tempo. Quando tiver tempo. Ouvia o tic-rac do meu relógio. a lama era mais quente do que a chuva mas cheirava horrorosamente mal. Ela estava de costas voltadas eu dei a volta e coloqueí-me nafrente dela. Sabes o que é que eu estava afazer? Ela virou-me as costas eu pus-me de novo nafrente dela a chuva infiltrava-se na lama colava-lhe a combínafão ao cor po por baixo do vestido cheirava terrivelmente mal Eu estava a abraçá-la era isso o que eu estava afazer. 123 Ela voltou-me as costas eu dei a volta e pus-me diante dela. Estava a abraçá-lajá te disse. Quero U saber do que estavas afazer Ah não queres ah não queres vais ver vais ver se queres ou não. Ela empurrou-me a mão eu sujei-a de lama com a outra mão nem senti .apalmada molhada que ela me deu limpei a lama das minhas pernas e espalhei-a no seu corpo molhado e rígido que se contorcia ouvindo os seus dedos virem direitos à minha cara mas não os senti nem mesmo quando a chuva nos Ubíos começou a ter um sabor doce Eles viram-nos da água primeiro, cabeças e ombros. Gritaram e um deles soergueu-se agachado e saltou de repente entre os outros. Pareciam castores, com a água a chegar-lhes ao queixo, a gritarem. - Leve daqui essa miúda! Para que trouxe uma miúda para aqui? Vá-se embora! - Ela não vos faz mal. Só queremos ficar aqui um bocadi- nho a olhar para vocês. Agacharam-se dentro de água. As cabeças reuniram-se em molho, observando-nos, e nisto precipitaram-se na nossa direcção, atirando chapadas de água com as mãos. Saímos dali rapidamente. - Oiçam lá, rapazes; ela não vos faz mal. - Vai-te embora, Harvard! - Era o segundo rapaz quem falava, o que na ponte tinha sonhado com o cavalo e a carroça. Atirem-lhes água, rapazes! - Vamos sair da água e atirá-los a eles cá para dentro - disse um outro. - Eu não tenho medo de rapariga nenhuma. - Molhem-nos! Molhem-nos! - Corriam para nós a atirar- -nos chapadas de água. Recuámos. - Vão-se embora! - gritavam eles. - Vão-se embora! Fomo-nos embora. Eles juntaram-se perto da margem, com as cabeças escorridas em fiada a despontar da água cintilante. Continuámos a andar. - Aquilo não é coisa para nós, pois não? - O sol brilhava no musgo, aqui e ali, quase rasante. - Pobre miúda, és uma rapariga, que se há-de fazer. - Cresciam florinhas pelo meio do musgo, pequeníssimas, como eu nunca tinha visto. -.És apenas uma rapariga, pobrezinha. - Havia um trilho para124 leio à água. A água estava de novo silenciosa, escura e silenciosa, e veloz. - Apenas uma rapariga. Pobrezinha. - Estávamos deita- dos na erva molhada ofegantes com a chuva a bater-me nas costas fria como balas. E agorajá queres saberjá queres Santo Deus estamos num lindo estado não haja dúvida levanta- -te. Começou a arder onde a chuva mepíngava na testa a minha mão vinha vermelha a escorrer água cor-de-rosa à chuva. Dói-te muito Claro que dói o que é que achas Tentei arrancar-te os olhos meu Deus cheiramos mesmo mal o melhor é ver se nos lavamos no riacho - Lá está a cidade outra vez, miúda. Agora tens de ir para casa, não tens? - mas ela apenas me respondeu com o olhar estático, negro, secreto e afectuoso, com o cacete meio desembrulhado apertado de encontro ao

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peito. - Está molhado. julguei que tivéssemos fugido a tempo. Tirei o lenço do bolso e tentei limpar o pão, mas a côdea começou a esfarelar e parei. - Temos de o deixar secar. Pega-lhe assim. - Ela pegou-lhe assim. Parecia que tinham andado ratos a comê-lo. e a água a subir a subirpelas costas curvadas a lama agarradiça epestilenta a vir à tonaiuntando-se à superficie como gordura numapanela ao lume. Eu disse-te que te iafazer Quero U saber do que tufazes Nisto, ouvimos alguém a correr; parámos, olhámos para trás e vimo-lo a correr pelo trilho acima, com a sombra a cruzar-lhe as pernas horizontalmente. - Vem com pressa. O melhor... - e então vi outro homem, já velho, a correr pesadamente, agarrado a um pau, e um rapaz nu da cintura para cima, a segurar as calças enquanto corria. - Olha o Julio - disse a garota, e foi então que lhe vi bem a cara, de italiano, e os olhos, quando ele se atirou a mim. Caímos no chão. As mãos dele cravaram-se no meu rosto e o homem dizia qualquer coisa e tentava morder-me, acho eu, mas os outros apartaram-nos e seguraram-no; arfava e estrebuchava, aos gritos por se ver manietado e tentava dar-me pontapés, até que eles o puxaram para trás. A garota chorava, abraçada ao pão. O rapaz seminu corria e saltava, agarrado às calças, e alguém me puxou a tempo de ver uma outra personagem completamente nua contornar 125 a correr a plácida curva do caminho, mudando a meio de direcção e saltando para o meio das árvores, levando as roupas atrás de si, rígidas como tábuas. O tal Julio debatia-se ainda. O homem que me tinha puxado disse: - Chega. Caçámos-te. - Trazia um colete, mas estava sem casaco. Sobre o colete, um escudo de metal. Na outra mão, bem seguro, um pau nodoso e polido. - O senhor é o Anse, não é? - disse eu. - Andava à sua procura. Porquê isto agora? - Aviso-te de que tudo o que disseres será usado contra ti disse ele. - Estás preso. - Eu matar ele - dizia o homem chamado Julio. E continuava a debater-se. Dois homens agarravam-no. A garota chorava sem parar, agarrada ao pão. - Tu roubares mia irmã - disse o Julio. - Soltem. - Roubar-lhe a irmã? - disse eu. - Essa agora, pois se eu tenho andado... - Cala-te - disse o Anse. - Podes contar essa ao juiz. - Roubar-lhe a irmã? - disse eu. O tal Julio libertou-se e atirou-se a mim outra vez, mas o xerife meteu-se de permeio e engalfinharam-se os dois até os outros lhe prenderem outra vez os braços. O Anse soltou-o então, ofegante. - Estrangeiro dum raio - disse ele. - Estou com vontade de te levar também preso, por assalto e briga. - depois voltou-se para mim: - Vens a bem ou é preciso algemas? - Vou a bem - disse eu. - Faça qualquer coisa, só para eu encontrar alguém... faça qualquer coisa... Roubar-lhe a irmã dizia eu. - Roubar-lhe... - já te avisei - disse o Anse. - Ele está a preparar-se para te acusar de tentativa de violação com premeditação. Eli, tu, vê lá se fazes a miúda calar-se. - Oh - disse eu. Nisto comecei a rir. Mais dois rapazes com os cabelos a escorrer e os olhos muito redondos saíram de detrás dos arbustos a abotoarem as camisas que já estavam com os ombros e os braços molhados, e eu esforcei-me por parar de rir, mas sem resultado. - Olho nele, Anse, acho que o tipo é maluco. - Eu p-paro j-já - disse eu. - Est-tou q-quase a p-parar. 126

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Da outra vez foi ah ah ah - disse eu, sem conseguir conter o riso. - Deixe-me sentar um bocadinho. - Sentei-me, sob o olhar vigilante dos homens e da garota, com a cara sulcada de lágrimas e o cacete todo ratado, e a água a correr veloz e mansa lá em baixo. Daí a pouco o riso dissipou-se, mas a minha garganta não queria deixar de rir, era como as náuseas em estômago vazio. - Agora chega - disse o Anse. - Vê se te controlas. - Vou tentar - disse eu, contraindo a garganta. Apareceu outra borboleta amarela, um reflexo de sol voando à solta. Passado um bocado já não tinha de apertar tanto a garganta. Levantei-me. - Estou pronto. Para que Iado vamos? Fomos pelo carreiro fora, os outros dois sempre de olho no Julio e a garota e os rapazes mais atrás. O caminho seguia ao lon- go do rio até à ponte. Atravessámo-la e a linha férrea também. As pessoas assomavam-se às portas para nos verem passar e foram-se juntando mais rapazes vindos sabe-se lá de onde, até que, quando entrámos na rua principal, o cortejo já ia longo. Â porta do armazém estava parado um automóvel, dos grandes, mas só o reconheci quando Mrs. Bland disse: - Mas é o Quentin! O Quentin Compson! - E então vi o Gerald, e o Spoade no banco de trás, com a cabeça apoiada ao encosto. E o Shreve. Não conhecia as duas raparigas. - Quentin Compson! - disse Mrs. Bland. - Boa-tarde - disse eu, tirando o chapéu. - Vou preso. Lamento não ter recebido o seu recado. O Shreve contou-lhe? - Preso? - disse o Shreve. - Desculpem - disse ele. Levantou-se, passou por cima das pernas delas e saiu do carro. Trazia vestidas as minhas calças de flanela que lhe assentavam como uma luva. Não me lembrava de me ter esquecido delas. Mas também não me lembrava de quantos queixos e duplos-queixos tinha Mrs. Bland. A rapariga mais bonita ia à frente com o Gerald. Elas observavam-me por detrás dos véus com requintado horror. - Quem é que foi preso? - disse o Shreve. Que vem a ser isto? - Gerald - disse Mrs. Bland. - Manda essa gente embora. Entre para o carro, Quentin. O Gerald saiu do carro. O Spoade nem se mexeu. 127 Que fez ele, Capitão? - disse ele. - Assaltou algum galinheiro? Veja lá como fala! - disse o Anse. - Conhece o prisioneiro? - Se o conheço? - disse o Shreve. - Oiça bem... - Toca a vir também apresentar-se ao juiz. Está a obstruir a justiça. Vamos. - E puxou-me pelo braço. Bem, então muito boa-tarde - disse eu. - Estou contente por os encontrar a todos. Só lamento não vos poder ficar a fazer companhia. - Faz qualquer coisa, Gerald - disse Mrs. Bland. - Oiça lá, senhor guarda - disse o Gerald. - já o avisei de que está interferir com um representante da lei - disse o Anse. - Se tem alguma coisa a declarar, pode vir ao e identificar o prisioneiro. - Continuámos a andar. Era uma bela procissão, com o Anse e eu à cabeça. Ouvia-os a contarem-lhes o que se tinha passado e o Spoade a fazer perguntas, e nisto o Julio gritou qualquer coisa ofensiva em italiano e eu olhei para trás e vi a garota parada na berma, a olhar para mim com o seu olhar afectuoso e imperscrutável. - Vai a casa - berrou-lhe o Julio. - lo ti mato de porrada. Descemos a rua e virámos para um relvado onde, um pouco recuado, se elevava um edifício de um só piso, todo em tijolo e debruado a branco. Seguimos pelo carreiro empedrado até à porta; aí, o Anse mandou parar toda a gente, menos nós, obrigando-os a esperar do

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lado de fora. Entrámos para urna sala vazia, a cheirar a tabaco velho. No centro de um caixote de madeira cheio de areia havia um fogão de ferro, na parede estava pendu1 rado um mapa já muito sumido e uma placa da cidade muito su a. Por detrás de uma mesa toda riscada e pejada de papéis estava sentado um homem de grenha hirsuta, cor de aço, que nos olhava por cima de uns óculos também de aço. - Apanhaste-o, não foi, Anse? - disse ele. -Apanhei, sim, i uiz. O homem abriu um calhamaço poeirento e puxou-o para si, mergulhando uma caneta nojenta num tinteiro que continha algo parecido com pó de carvão. 128 - Oiça... - disse o Shreve. - O nome do prisioneiro - disse o juiz. Eu disse o meu nome. Escreveu-o sem pressas, arranhando o papel com a caneta com excruciante determinação. - Oiça lá, xerife - disse o Shreve. - Nós conhecemos este homem. Nós... Ordem no tribunal - disse o Anse. Cala-te, pá - disse o Spoade. - DeLixa-o fazer as coisas à maneira dele. Afinal é como ele as vai fazer. Idade - disse o juiz. Disse-lhe a idade. Ele tomou nota, mexendo a boca enquanto escrevia. Ocupação. - Também lhe disse. - Com que então Harvard, hem? - Levantou os olhos do livro e fitou-me, inclinando um pouco o pescoço para me olhar por cima dos óculos. Os seus olhos eram claros e frios, como os de um bode. - Que ideia foi essa de vires para aqui raptar crianças? - Eles estão doidos, Senhor Juiz - disse o Shreve. - Quem disser que este rapaz anda a raptar.. O Julio saltou logo. - Doido? - disse ele. - Não os apanhar, hem? Não ver com meus olhos... - Isso é mentira - disse o Shreve. - Você nunca... - Ordem, ordem - disse o Anse, erguendo a voz. - Estejam calados - disse o juiz. - Se não se calarem põe-nos lá fora, Anse. - Eles calaram-se. O juiz olhou para o Shreve, depois para o Spoade, e por fim para o Gerald. - Conhecem este rapaz? - disse ele ao Spoade. - Sim, Meretíssimo - disse o Spoade. É apenas um rapaz da província que anda na universidade. Não pretendia fazer mal a ninguém. Penso que o xerife apurará que se tratou de um equívoco. O pai dele é pastor congregacionista. - Hurrurim - disse o juiz. - Exactamente, o que andavas tu a fazer? - Expliquei-lhe, e ele sempre a fitar-me com os seus olhos pálidos e frios. - Que te parece, Anse? - É capaz de ser verdade - disse o Anse. - Estrangeirada dum raio. - Eu americano - disse o Julio. - Eu ter papéis. - Onde está a miúda? 129 - Ele mandou-a para casa - disse o Anse, - Ela estava assustada ou coisa parecida? - Só quando o Julio se atirou ao prisioneiro. Eles iam só a passear à beira rio, em direcção à cidade. Uns rapazes que estavam a nadar é que nos disseram para que lado tinham ido. - Trata-se de um equívoco, Senhor Juiz - disse o Spoade. As crianças e os cães passam a vida atrás dele. O que é que ele há-de fazer? - Hummin - disse o juiz. Foi até à janela e olhou lá para fora. Nós não tirávamos os olhos dele. Ouvi o Julio a coçar-se. O juiz olhou para trás. - Você aí, reconhece que a garota não sofreu maus tratos?

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- Não sofrer ainda - disse o Julio, mal encarado. - Deixou o trabalho para a ir procurar? - Claro. Eu correr. Correr muito. Procurar aqui, procurar ali, e homem dizer ver este dar comida a ela. Ela ir com ele. - Hummin - disse o juiz. - Bem, meu rapaz, acho que deves dar ao Julio alguma coisa por o teres feito largar o trabalho. - Sim, senhor - disse eu. - Quanto? - Um dólar, acho eu. Dei um dólar ao Julio. - Bem - disse o Spoade. - Se é tudo... Acho que ele está livre, não é assim, Senhor Juiz? O juiz nem para ele olhou. -A que distância daqui o encontraste? - Quatro quilómetros, pelo menos. Só passadas duas horas é que o apanhámos. - Hurrim - disse o juiz. Matutou por uns instantes. E nós a olhar para ele, com a grenha hirsuta e os óculos na ponta do nariz. O reflexo amarelo da janela aumentava pelo chão fora, até chegar à parede e subir por ela acima. A poeira rodopiava à luz, em riscas diagonais. - Seis dólares. - Seis dólares? disse o Shreve. - Para quê? - Seis dólares disse o juiz. Olhou para o Shreve por um instante, e depois para mim. - Oiça - U'L@sse o Shreve. 130 - Cala-te - disse o Spoade. - Dá-lhos, menino, e vamos embora. As senhoras estão à nossa espera. Tens aí seis dólares? - Tenho - disse eu. Dei-lhe os seis dólares. - Caso encerrado - disse ele. - Pede um recibo - disse o Shreve. - Pede um recibo assinado como prova de que pagaste esse dinheiro. O juiz olhou para o Shreve com complacência. - Caso encerrado - disse ele sem elevar a voz. - Raios me partam... - disse o Shreve. - Anda embora - disse o Spoade, pegando-lhe no braço. Boa-tarde, Senhor Juiz. Muito 6brigado. - Quando íamos a sair, a voz do Julio elevou-se de novo, violenta, mas calou-se de seguida. O Spoade olhava para mim, com os olhos castanhos inquiridores e um pouco frios. - Então, menino, acho que daqui em diante é melhor ficares por Boston quando quiseres andar atrás de criancinhas. - És parvo ou quê - disse o Shreve. - Que raio de ideia foi essa de vires para aqui meteres-te com esta italianada? - Vamos embora - disse o Spoade. - Elas já devem estar impacientes. Mrs. Bland estava a conversar com elas. Eram Miss Holmes e Miss Daingerfield e deixaram de lhe prestar atenção para olharem para mim com aquele seu horror requintado e curioso, com os véus puxados sobre os narizinhos muito brancos e os olhos brilhando fúgidios e misteriosos por baixo dos véus. - Quentin Compson - disse Mrs. Bland. - Que diria a sua mãe. É natural que um rapaz se meta em encrencas, mas ser levado a pé para a cadeia por um polícia. O que é que eles julgavam que ele tinha feito, Gerald? - Nada - disse o Gerald. - Pode lá ser. O que foi, hem, Spoade? - Ele estava a preparar-se para raptar aquele garota muito suja, mas eles apanharam-no a tempo - disse o Spoade. - Pode lá ser - disse Mrs. Bland, mas a voz sumiu-se-lhe na garganta, fitou-me por um momento, e as raparigas respiraram fundo com audível inquietação. - Absurdo - disse Mrs. 131

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Bland, sacudida. mesmo coisa destes labregos do norte. Entra, Quentin. O Shreve e eu sentámo-nos nos dois bancos rebatíveis. O Gerald deu à manivela, entrou para o carro e pusemo-nos em marcha. - Agora, Quentin, vai contar-me toda esta embrulhada disse Mrs. Bland. Contei-lhes, com o Shreve todo encolhido e furioso no seu banquinho e o Spoade ao lado de Miss Daingerfield, com a cabeça de novo encostada para trás. - E a melhor é que o Quentin nos enganou o tempo todo disse o Spoade. - Nós a pensarmos que ele era aquele menino exemplar a quem se pode confiar uma filha, até a polícia o apanhar com a boca na botija. - Cale-se, Spoade - disse Mrs. Bland. Descemos a rua, atravessámos a ponte e passámos pela casa onde estava pendurado o vestido rosa berrante. - Isto é o que acontece por não ter lido o meu recado. Por que não foi buscá-lo? Mr. MacKenzie disse-me que lhe tinha dito que estava lá. - Pois é. Tencionava ir buscá-lo, mas não voltei ao quarto. - Se não fosse Mr. MacKenzie, tinha-nos deixado ficar à espera. E depois, quando ele disse que não tinha voltado, ficou a sobrar um lugar e convidámo-lo para vir connosco. É um prazer tê-lo connosco, mesmo assim, Mr. MacKenzie. - O Shreve não disse nada. Estava de braços cruzados a olhar em frente por cima do boné do Gerald. Era o boné usado pelos automobilistas em Inglaterra. Era Mrs. Bland quem o dizia. Passámos por a tal casa e por mais três e ainda por um quintal onde vimos a garota junto ao portão. Agora já não estava a segurar o pão e a cara dela parecia ter sido esfregada com carvão. Acenei-lhe, mas ela não respondeu. Só a cabeça se voltou lentamente quando o carro passou, seguindo-nos com o seu olhar imperturbável. Depois passámos rente a um muro, e as nossas sombras corriam pelo muro fora, até que, passado algum tempo, passámos por um bocado de jornal amachucado atirado para a berma da estrada, e eu comecei a rir outra vez. Sentia o riso na garganta e pus-me a olhar para as árvores banhadas pela luz do entardecer, a pensar nessa tarde e no pássaro e nos rapazes a nadar. Mas, mesmo 132 assim, não conseguia parar e percebi que, se me esforçasse demasiado, acabava por chorar, e pensei então em como tinha achado que não podia ser virgem, com tantas a passearem à sombra, sussurrando com as suas vozes doces de raparigas pelos recantos sombrios, e as palavras que diziam e o perfume e os olhos que eu sentia sem os ver, mas se era assim tão simples de fazer, então não valia nada, e se não valia nada, quem era eu afinal, e nisto Mrs. Bland disse: - Quentin? Ele estará mal disposto, Mr. MacKenzie? - e a mão sapuda do Shreve tocou-me no joelho e o Spoade começou a falar e eu desisti de tentar travar o riso. - Se aquela cesta incomoda o Quentin, puxe-a para o seu lado, Mr. MacKenzie. Trouxe uma cesta com vinho, porque penso que os jovens devem beber vinho, embora o meu pai, o avô do Gerald já alguma vezfizeste isso já alguma vezfizeste isso Napenumbra cinzenta uma luzínha as mãos dela entrelaçadas - Bebem, quando o arranjam - disse o Spoade. - Eh, Shreve? os seusjoelhos e o seu rosto virado para o céu o aroma da madressilva no seu rosto e no seu pescoço - E cerveja também - disse o Shreve. A mão dele tocou-me outra vez no joelho. E outra vez eu afastei o joelho. como umafina camada de tinta cor de liNsfalando dele metendo-o - Tu não és um cavalheiro - disse o Spoade. entre nós até a 1.magem dela se desfocar mas não com a escuridío - Pois não. Sou canadiano - disse o Shreve. falando dele as

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pás dos remosfazendo-o luzir à medida que avançavafazendo luzir o boné de automobilista estilo inglês e o tempo que se esvaía e eles os dois confundidos um no outropara sempre ele tinha an" no exército tinha matado outros homens - Adoro o Canadá - disse Miss Daingerfield. - Acho-o uma terra maravilhosa. - Já alguma vez beberam perfume? - disse o Spoade. com uma mão elepodia levantá-la e deitá-la sobre o ombro e correr com ela correr Correr - Não - disse o Shreve. correr com a besta de dois dorsos e ela desfocada nos remos cintilantes correr com osporcos de Eubeleu correr e copular com quantos Caddy Eu também não - disse o Spoade. não conheço muitos 133 havia em mim algo de terrívelalgo de terrívelPaí eu cometijá alguma vezfizeste isso Nós não nós nãofizemos isso pois não - e o avô do Gerald apanhava sempre a sua hortelã-pimenta antes do pequeno-almoço, enquanto ainda estava orvalhada. Nem o velho Wilkie ele deixava tocar-lhe lembras-te Gerald colhia-a ele sempre para fazer o seu julep. 1 Era tão meticuloso com o seu julep como uma velha solteirona, medindo todos os ingredientes escrupulosamente segundo uma receita que sabia de cor. Só houve um homem a quem deu essa receita; e esse homem erafizemos sim como podes ígnorá-lo se esperares dígo-te comofoífoí um crime nós cometemos um crime tenível que não se pode esconder tupensas quepode mas espera Pobre Quentin tu nuncafizeste isso pois não pois eu vou-te contar comofoí e vou contar ao Pai e então tem de serporque tu amas o Pai e então temos de sair de casa entre a maledicência e o horror e a chama purificadora hei-de fazer-te dizer que ofizemos sou maisforte do que tu hei-defazer-te aceitar que ofizemos tu pensaste que eram eles mas era eu ouve eu enganeí-te era sempre eu tu pensavas que eu estava dentro de casa 1.Mpregnada da maldita madressilva tentando não pensar no baloíço nos cedros nos impulsos secretos na respíraçãofechado a beber a respiração descomandada o sim Sim Sim sim - nunca deixou que o convencessem a beber vinho, mas dizia sempre que uma cesta de vinho em que livro leste isso foi naquele em que a indumentária de remo do Gerald cor de vinho era complemento indispensável da cesta de piquenique de todo o cavalheiro que se preza tu amava-lgs Caddy tu amava-los Quando eles me tocavam morria num minuto ela estava ali de pé e no outro ele estava a gritar e a puxar-lhe pelo vestido foram para o vestíbulo e subiram as escadas a gritar e ele a empurrá-la pela escada acima até à porta da casa de banho e ela encostou-se à porta com o braço à frente da cara a gritar e a tentar empurrá-la para dentro da casa de banho quando ela velo cear o T. P estava a dar-lhe de comer e ele começou outra vez a princípio só a choramingar até ela lhe tocar e ele então pôs-se a gritar e ela ali com os olhos como ratos acossados e eu corri para as trevas cinzentas havia o cheiro da chuva e os 1. Refresco feito com hortelã-pimenta e uma bebida alcoólica. (N. da T) 134 aromas de todas as flores no ar húmido e quente e a interminável cantilena dos grilos na relva que me acompanhava com uma pequena ilha itinerante de silêncio a Fancy observava-me por detrás da cerca sarapintada como uma manta pendurada num estendal e eu pensei cos diabos aquele negro esqueceu-se de lhe dar de comer outra vez e corri pela encosta abaixo naquele vácuo de grilos como um sopro sobre um espelho ela estava deitada na água com a cabeça

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na areia a água dava-lhe pelas ancas havia um pouco mais de luz na água a saia dela ensopada ondulava-lhe à volta das ancas ao sabor das águas propagando ondas sem destino que se renovavam a si próprias no se@ próprio movimento eu estava na margem e sentia na água aromas de madressilva o ar parecia impregnado de madressilva e do cantar dos grilos tanto que se sentia na carne o Benjy ainda está a chorar não sei não não sei pobre Berijy sentei-me na margem a erva estava húmida mas não muito depois encontrei os meus sapatos todos molhados sai já da água estás maluca mas ela não se mexeu a cara dela era uma mancha branca emoldurada pelo cabelo na mancha de areia agora sai ela sentou-se depois levantou-se a saia batia-lhe no corpo ela pingava trepava pela margem com as roupas a ade- jar sentou-se por que não a torces queres apanhar uma constipação sim a água redemoinhava e gorgolejava na língua de areia e mais além na escuridão entre os salgueiros do lado de lá do vau a água enrugava-se como um pano retendo ainda um pouco de luz como só a água sabe fazer ele atravessou todos os oceanos à volta do mundo depois ela falou dele com as mãos crispadas sobre os joelhos molhados 135 a cara atirada para trás na luz cinzenta o aroma das madressilvas havia uma luz no quarto da mãe e no do Benjy onde o T. P. o estava a meter na cama tu ama-lo a mão dela velo eu não me mexi deslizou-me pelo braço e ela colocou a minha mão contra o seu peito o seu coração pulava não não ele forçou-te da outra vez ele forçou-te a fazeres isso deixa-o ele era mais forte do que tu e ele amanhã eu mato-o juro mato-o o pai não precisa de saber por enquanto só depois e nessa altura tu e eu ninguém precisa de saber podemos usar o dinheiro dos estudos podemos anular a minha matrícula Caddy tu odeia-lo não odeias ela segurou-me a mão contra o peito dela o coração pulava virei-me e agarrei-lhe o braço Caddy tu odeia-lo não odeias ela levou-me a mão até à garganta o seu coração agora martelava nela pobre Quentin a cara dela estava virada para o céu baixo tão baixo que todos os cheiros e todos os sons da noite pareciam ter-se juntado ali como debaixo de uma tenda especialmente o da madressilva tinha entrado na minha respiração cobria-lhe a cara e o pescoço como tinta o seu sangue pulsava na minha mão eu estava apoiado no meu outro braço mas ele começou a abanar e a ceder e eu tive de respirar fundo para extrair algum ar do aroma-espesso e cinzento das madressilvas sim eu odeio-o a ponto de morrer por ele já morri por ele morro por ele mais e mais cada vez que isto acontece quando levantei a mão sentia ainda os vincos emaranhados deixados pelos troncos e as ervas a arderem-me na palma da mão pobre Quentin ela deitou-se para trás apoiando-se nos braços e com as mãos a abraçarem os joelhos isto nunca tu fizeste pois não o quê fiz o quê 136 aquilo que eu aquilo que eu fiz sim sim muitas vezes com muitas raparigas então comecei a chorar a mão dela tocou-me outra vez e eu chorava encostado à sua blusa húmida e então ela deitada de costas a olhar por cima da minha cabeça para o céu vi uma orla branca sob as íris abri a minha navalha lembras-te do dia em que a Vóvó morreu quando tu te sentaste dentro de água com os culotes sim encostei-lhe o fio da navalha à garganta não leva mais de um segundo um segundo apenas e depois posso ser eu posso ser eu e então consegues fazê-lo sozinha sim a lâmina é suficientemente longa o Benjy já está na cama sim não leva mais que um segundo tentarei não te fazer doer muito está bem

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fecha os olhos não assim tens de apertar com mais força põe aí a mão mas ela não se mexeu os seus olhos estavam arregalados a olhar para o céu por cima da minha cabeça Caddy lembras-te de como a Dilsey ralhou contigo por teres os culotes sujos de lama não chores eu não estou a chorar Caddy aperta então não vai queres que eu sim aperta põe lá a mão não chores pobre Quentin mas eu não conseguia parar ela segurava-me a cabeça de encontro ao seu peito molhado e rígido e eu ouvia o seu coração bater com força mas compassadamente agora sem martelar e a água a gorgolejar entre os salgueiros na escuridão e ondas de madressil- va elevando-se no ar o meu braço e o ombro estavam torcidos sob o meu corpo 137 o que é que estás tu a fazer os músculos dela contraíram-se e eu senteí-me é a minha navalha deixei-a cair ela sentou-se que horas são não sei ela pôs-se de pé eu tacteei no chão à nossa volta vou-me embora deixa-a ficar para casa sentia-a ali sentia o cheiro das roupas molhadas sentia-a ali está algures por aqui deixa-a ficar a-manhã logo a encontras anda espera um segundo hei-de encontrá-la estás com medo cá está ela estava mesmo aqui o tempo todo ah estava vamos levantei-me e comecei a caminhar subimos a encosta com os grilos a sussurrarem à nossa frente é engraçado como podemos estar sentados e perder qualquer coisa e ter de correr tudo à procura dela cinzento estava tudo cinzento com o orvalho a reflectir-se no céu cinzento e as árvores a perder de vista maldita madressilva quem dera que parasse costumavas gostar chegámos ao cimo e continuámos em direcção às árvores ela veio de encontro a mim depois afastou-se um pouco a vala era uma negra cicatriz na erva cinzenta ela veio de encontro a mim olhou para mim e afastou-se chegámos à vala vamos por este lado para que vamos ver se ainda consegues ver os ossos da Nancy há muito tempo que não venho ver e tu estava coberta de lianas e de silvas negras era aqui mesmo que estavam não sabes se os estás a ver ou não pois não 138 pára Quentin anda a vala apertava-se fechava-se ela virou-se para as árvores pára Quentin Caddy pus-me de novo à frente dela Caddy pára agarrei-a tenho mais força do que tu ela estava imóvel rígida inflexivel mas calada não vou lutar pára o melhor é parares Caddy não faças isso Caddy não vai servir de nada não sabes que não vai larga-me a madressilva envolvia-nos envolvia-nos ouvia os grilos à nossa volta a observarem-nos ela recuou passou por detrás de mim e dirigíu-se para as árvores volta para casa não precisas de vir comigo eu continuei por que não voltas para casa maldita madressilva chegámos à cerca ela passou de rastos para o outro lado eu passei também de rastos quando me levantei e endireitei ele vinha a sair de entre as árvores para a clareira cinzenta na nossa direcção caminhando na nossa direcção alto espalmado e silencioso movendo-se como se estivesse parado e ela foi ter com ele este é o Quentin estou molhada estou toda molhada não és obrigado se não quiseres as sombras deles uma sombra a cabeça dela erguia-se acima da dele no céu mais alto as cabeças deles não és obrigado se não quiseres depois já não eram duas cabeças a escuridão cheirava a chuva a erva molhada e folhas molhadas a luz cinzenta caindo como chuva o aroma das madressilvas elevando-se em ondas de humidade eu via a cara dela uma mancha sobre o ombro dele ele entrelaçava-a com um braço como se ela não fosse maior que uma criança estendeu-me a mão 139

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prazer em conhecê-lo apertámos as mãos depois ficámos ali os dois e a sombra dela elevava-se esguia ao lado da sombra dele uma sombra só que vais fazer Quentin andar por aí acho que vou pela mata até à estrada e volto pela cidade comecei a andar boa-noite Quentin parei que queres na mata as rãs das árvores cheiravam a chuva no ar soavam como caixas de música difíceis de pôr a tocar e a madressilva vem cá que queres vem cá Quentin voltei para trás ela pôs-me a mão no ombro encostando a sua sombra à mancha da sua cara encostando-se do alto da sua sombrarecuei cuidado vai para casa eu não estou com sono vou dar uma volta espera por mim no riacho vou dar uma volta Não demoro espera por mim estás a ouvir não eu vou pela mata nem olhei para trás as rãs das árvores não me ligaram nenhuma a luz cinzenta era como musgo invadindo as árvores mas não chovia passado algum tempo voltei para trás para a orla da mata assim que lá cheguei comecei a sentir o cheiro das madressilvas outra vez via as luzes reflectidas no relógio do tribunal e o clarão da cidade o quadrado projectado no céu e os salgueiros negros ao longo do riacho e a luz nas janelas do quarto da mãe e ainda a luz no quarto do Benjy e baixei-me e atravessei a cerca e corri até ao outro lado do prado correndo pela erva cinzenta entre grilos e madressilvas sentindo-me cada vez mais forte e o cheiro da água e então vi a água da cor da madressilva cinzenta deitei-me na 140 margem com a cara encostada ao chão para não sentir o cheiro da madressilva e já não o sentia e deixei-me ali estar a sentir a terra entrar-me pela roupa dentro a ouvir a água e passado um bocado já não me custava tanto respirar e deixei-me ficar ali deitado a pensar que se não mexesse a cabeça não tinha de respirar fundo e sentir o cheiro e depois já não pensava em nada e ela veio pela margem fora e parou não me mexi é tarde vai para casa o quê vai para casa é tarde está bem a roupa dela restolhava não me mexi deixou de restolhar vais voltar como te disse ou não eu não ouvi nada Caddy está bem vou se tu quiseres eu vou sentei-me ela estava sentada no chão abraçando os joelhos com as rriãos vai para casa como te mandei está bem farei tudo o que quiseres tudo sim ela nem sequer olhou para mim agarrei-lhe no ombro e sacudi-a com força cala-te sacudi-a cala-te cala-te está bem ela levantou o rosto e percebi que não estava sequer a olhar para mim via-lhe a orla branca levanta-te puxei-a ela estava inerte obriguei-a a pôr-se de pé agora vai o Benjy ainda estava a chorar quando saíste vai atravessámos o riacho avistámos o telhado depois as janelas mais altas agora ele já está a dormir Tive de parar e trancar o portão ela continuou na luz cinzenta 141 cheirava a chuva mas a chuva não vinha e o aroma das madressilvas começava a sentir-se para lá da cerca do jardim ela penetrou na sombra ouvia os seus passos e então Caddy parei nos degraus não ouvia os seus passos Caddy Ouvi os seus passos e a minha mão tocou na dela nem quente nem fria apenas inerte as roupas um pouco húmidas ainda e agora ainda o amas sem respirar a não ser muito lentamente como uma respiração distante então Caddy ainda o amas não sei fora da luz cinzenta as sombras das coisas eram como coisas mortas em água estagnada quem dera que estivesses morta ah sim vens agora estás a pensar nele agora não sei diz-me no que estás a pensar diz-me pára pára Quentin cala-te cala-te estás a ouvir o que eu te digo cala-te calas-te ou não está bem eu

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paro senão fazemos muito barulho eu mato-te estás a ouvir vamos até ao baloiço aqui eles ouvem-nos eu não estou a chorar estás a dizer que eu estou a chorar não agora cala-te senão acordamos o Benjy vai tu para casa agora vá lá eu sou não chores eu sou má não há nada que possas fazer há uma maldição sobre nós a culpa não é nossa cala-te vá lá e agora vai deitar-te não podes obrigar-me há uma maldição sobre nós finalmente vi-o ele ia precisamente a entrar no barbeiro ele olhou cá para fora eu aproximei-me e fiquei à espera há dois ou três dias que ando à tua procura querias falar comigo 142 vou falar contigo enrolou rapidamente um cigarro em dois tempos e acendeu o fósforo no polegar aqui não podemos falar e se nos encontrássemos noutro lugar vou ter contigo ao teu quarto estás no hotel não isso não é lá grande ideia conheces aquela ponte sobre o ribeiro ali para aquele lado atrás de sim já sei à uma hora está bem está dei meia volta e afastei-me estou-te muito agradecido olha parei e olhei para trás ela está bem ele parecia feito de bronze a camisa era de caqui ela agora só me tem a mim estarei lá à uma hora ela ouviu-me dizer ao T. P para selar o Prince para a uma hora ela passava a vida a vigiar-me quase não comia veio também que vais fazer nada será que já não posso ir dar um passeio a cavalo quando me apetece vais fazer alguma coisa o que é nada da tua conta puta puta o T. R tinha o Prince à espera no portão lateral já não preciso dele vou dar uma volta a pé desci a rampa e saí o portão meti pela vereda e desatei a correr antes de chegar à ponte vi-o debruçado do parapeito o cavalo estava escondido na mata ele olhou para mim por cima do ombro depois voltou-se de costas não levantou os olhos até eu chegar à ponte e parar tinha um bocado de casca de árvore na mão e partia bocadinhos que atirava para a água Vim dizer-te que saias da cidade ele olhou para mim foi ela que te mandou dizer isso eu é que te estou a dizer não é o meu pai nem mais ninguém sou 143 eu que o digo ouve guarda isso para depois o que eu quero saber agora é se ela está bem eles não a têm aborrecido isso é coisa com que não te deves preocupar e então ouvi-me a dizer tens de sair da cidade até ao pôr-do-sol ele partiu um bocadinho da casca e deitou-o à água depois pousou a casca sobre o parapeito e fez um cigarro corri os tais dois gestos rápidos e acendeu o fósforo no varão da ponte que vais tu fazer se eu não me for embora mato-te e se julgas que não o faço só por achares que sou um miúdo o fumo saiu-lhe em dois jactos das narinas e espalhou-se-lhe pela cara que idade tens comecei a tremer as minhas mãos estavam agarradas à balaustrada pensei que se as escondesse ele ia perceber porquê tens até ao pôr-do-sol ouve lá miúdo como te chamas o Benjy é o idiota não é e tu és o Quentin a minha boca disse-o não fui eu dou-te até ao pôr-do-sol Quentin limpou a cinza do cigarro escrupulosamente ao parapeito muito devagar e com todo o cuidado como se estivesse a aparar um lápis as minhas mãos tinham deixado de tremer. ouve não vale a pena levar isso tão a peito a culpa não foi tua miúdo teria sido outro qualquer já alguma vez tiveste uma irmã já não mas elas são todas umas desavergonhadas assentei-lhe em cheio com a mão aberta resistindo ao impulso de chegar com ela fechada à cara dele a mão dele avançou tão depressa como a minha o cigarro foi pelos ares tomei balanço com a outra mão e ele agarrou-a também antes de o cigarro tocar na água prendeu-me os dois pulsos só com uma mão e levou a outra mão à cova do braço por baixo do casaco por detrás dele o sol descia e um

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pássaro cantava algures para lá do sol ficámos a olhar um 144 para o outro enquanto o pássaro cantava e ele soltou-me as mãos ouve lá tirou a casca da árvore do parapeito e atirou-a para a água ela ficou a flutuar a corrente levou-a sempre a flutuar a mão dele estava pousada no parapeito segurando frouxamente na pistola esperámos agora já não lhe acertamos pois não ia a flutuar o arvoredo estava silencioso ouvi o pássaro outra vez e a água depois a pistola ergueu-se ele nem fez pontaria e a casca desapareceu depois havia só bocados espalhados a boiar ele acertou em mais dois desses bocados de casca de árvore que não eram maiores que um dólar de prata acho que já chega puxou o tambor para fora e soprou para dentro do cano uma réstia de fumo dissipou-se ele recarregou as três câmaras fechou o tambor estendeu-me a pistola de coronha virada para mim para quê nem vale a pena tentar fazer melhor pelo que me disseste precisas dela dou-ta porque já viste o que ela pode fazer vai para o diabo mais a tua pistola agredi-o ainda tentava acertar-lhe já muito depois de ele estar a segurar-me nos pulsos mas eu continuava a tentar era como se estivesse a vê-lo através de um vidro multicor sentia o sangue a pulsar e depois vi o céu outra vez e os ramos projectados nele e o sol a baixar brilhando por entre eles e ele a agarrar-me obrigando-me a ficar de pé querias acertar-me não ouvia nada o quê sim como te sentes estou bem solta-me ele soltou-me encostei-me ao parapeito sentes-te bem deixa-me em paz estou bem achas que consegues chegar a casa vai-te embora deixa-me em paz 145 é melhor não tentares ir a pé leva o meu cavalo não vai-te embora podes pendurar as rédeas no arção e deixá-lo ir ele volta para o estábulo deixa-me em paz vai-te embora e deixa-me em paz encostei-me ao parapeito a olhar para a água ouvi-o desamarrar o cavalo e afastar-se e daí a pouco já não ouvia mais nada a não ser a água e depois o pássaro outra vez saí da ponte e fui sentarme encostado a uma árvore com a cabeça encostada também à árvore e fechei os olhos um raio de sol bateu-me em cheio nos olhos e eu cheguei-me mais para o outro lado ouvi o pássaro outra vez e a água e então foi como se tudo fugisse para muito longe e já não sentia nada sentia-me quase bem depois de tantos dias e tantas noites em que o aroma das madressilvas se elevava da escuridão até ao meu quarto onde eu tentava adormecer mesmo quando passado algum tempo percebi que ele não me tinha atingido que ele não tinha mentido por ela também e que eu tinha acabado de desmaiar como uma donzela mas isso também já não tinha importância e deixei-me ficar ali sentado encostado à árvore com o sol a roçar-me na cara como folhas amarelas na ponta de um ramo a ouvir a água e a não pensar em nada absolutamente em nada e mesmo quando ouvi o cavalo a aproximar-se a toda a pressa continuei sentado com os olhos fechados a ouvir os cascos varrerem a areia sibilante e o som dos passos em corrida e as mãos dela duras a correr idiota idiota estás ferido abri os olhos às mãos dela corriam-me pela cara só soube para que lado era quando ouvi a pistola não sabia onde estavam não pensei que ele e tu fugissem assim viessem assim não, pensei que ele tivesse ela segurava-me a cara entre as mãos e batia-me com a cabeça na árvore pára pára com isso agarrei-lhe os pulsos acaba com isso já disse eu sabia que ele não se atrevia eu sabia que não ela tentava dar-me com a cabeça na árvore 146

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disse-lhe para ele não falar mais comigo disse-lhe ela tentava soltar os pulsos solta-me pára com isso eu tenho mais força do que tu agora chega deixa-me tenho de o apanhar e perguntar-lhe solta-me Quentin solta-me por favor solta-me de repente ela desistiu os pulsos ficaram moles posso sim posso dizer-lhe posso fazê-lo acreditar no que eu quiser quando eu quiser posso sim Caddy ela não tinha amarrado o Prince e ele podia voltar para casa se lhe desse na gana ele acredita em mim quando eu quiser e tu ama-lo Caddy achas que não ela olhou para mim então os seus olhos ficaram vazios a olhar para mim como olhos de estátua vácuos cegos e serenos põe aqui a mão na garganta pegou na minha mão e encostou-a à garganta agora diz o nome dele Dalton Ames senti o primeiro afluxo de sangue pulsando com batímentos acelerados diz outra vez a cara dela estava virada para as árvores onde o sol se escondia e onde o pássaro diz outra vez Dalton Ames o sangue vinha em ondas a pulsar a pulsar na minha mão Pulsou assim por muito tempo, mas a minha cara ficou fria e quase morta, e os meus olhos também, e o golpe do dedo começou a arder de novo. Ouvia o Shreve a dar à bomba, depois voltou com a bacia onde flutuava uma bola de crepúsculo com uma orla amarela como um balão a esvaziar-se e, depois, o meu tosto reflectido. Tentava ver nela o meu rosto. - Já parou? - disse o Shreve. - Dá cá o lenço. - Tentou tirar-mo da mão. 147 - Cuidado - disse eu. - Eu faço isso. já está quase a parar. molhei o trapo outra vez, quebrando o balão. O trapo manchou a água. - Quem me dera ter outro limpo. - Precisas de pôr um bife nesse olho - disse o Shreve. Diabos me levem se amanhã não tens o olho todo negro. O filho da puta - disse ele. - E eu, fiz-lhe alguma mossa? - espremi o lenço e tentei limpar o sangue do colete. Isso já não sei - disse o Shreve. - Tens de o mandar limpar. Vá segura-o em cima do olho, por que não seguras? - Pelo menos tiro o maior - disse eu. Mas não fazia grandes progressos. - Como está o meu colarinho? - Não sei - disse o Shreve. - Deixa estar isto encostado ao olho. Toma. - Cuidado - disse eu. - Eu mesmo faço. E eu, fiz-lhe alguma mossa? - Pode ser que lhe tenhas acertado. Eu posso ter olhado para o lado nessa altura ou fechado os olhos ou qualquer coisa. Ele deu-te uma tareia. Arrasou com vocês todos. Que ideia foi essa de lutares com ele? Parvalhão. Como te sentes? - Sinto-me bem - disse eu. - Vamos a ver se arranjo maneira de limpar o colete. - Ora, deixa lá o fato. Dói-te o olho? - Estou bem - disse eu. Tudo estava quedo e em tons de violeta, e o céu era verde a escorregar para o dourado por detrás da empena da casa e uma pluma de fumo elevava-se da chaminé no ar sem vento. Ouvi de novo a bomba. Era um homem a encher um balde, e a olhar para nós por cima do ombro que bombeava. Uma mulher passou pela porta, mas não olhou cá para fora. Ouvia uma vaca algures a mugir. - Vamos - disse o Shreve. - Deixa lá o fato e põe o lenço no olho. Amanhã de manhã mando o teu fato para limpar. - Está bem. Só lamento não ter pelo menos sangrado um bocado para cima dele. - Filho da puta - disse o Shreve. O Spoade saiu da casa, pareceu-me vê-lo a falar com a mulher, e atravessou o pátio. Olhou para mim com os seus olhos frios, inquiridores. 148

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- Então, menino - disse ele, olhando para mim. - Diabos me levem se tu não és perito em arranjares um monte de sarilhos só para te divertires. Primeiro rapto, depois andas à pancada. Como é que passas as férias? A deitares fogo às casas? - Eu estou bem - disse eu. - O que é que Mrs. Bland disse? - Ela está a dizer das boas ao Gerald por te ter posto a sangrar. E tu vais ouvir das boas, quando ela te vir, por teres consentido. Ela não tem nada contra uma boa luta, é o sangue que a incomoda. Acho que desceste um pouco na sua consideração por não saberes reter melhor o teu sangue. Como te sentes? - Claro - disse o Shreve. - Se não podemos ser um Bland, o melhor é cometer adultério com alguém que seja, ou então embebedarmo-nos e lutar com ele, conforme os casos. - É isso mesmo - disse o Spoade. - Mas eu não sabia que o Quentin estava bêbado. - E não estava - disse o Shreve. - Desde quando é preciso estar bêbado para bater naquele filho da puta? - Bom, eu acho que tinha de estar muito bêbado para tentar, depois de ver o estado em que o Quentin ficou. Onde é que ele aprendeu a lutar? - Tem ido treinar ao ginásio do Mike todos os dias, na cidade - disse eu. - Ah sim? - disse o Spoade. - E tu já sabias disso quando o atacaste? - Não sei - disse eu. - Acho que sim. Sabia sim. - Molha o lenço outra vez - disse o Shreve. - Queres que mude a água? - Está bem assim - disse eu. Mergulhei o pano outra vez e encostei-o ao olho. - Só queria arranjar qualquer coisa para limpar o colete. - O Spoade continuava a olhar para mim. - Diz-me cá uma coisa - disse ele. - Por que é que lhe bateste? O que foi que ele disse? - Não sei. Não sei por que foi. - Só me lembro de te ver dar um salto de repente e perguntares "Já tiveste uma irmã? Já?", e quando ele disse que não, atiraste-te a ele. Reparei que não tiravas os olhos dele, mas parecia 149 que não estavas a ligar a nada do que se dizia até ao momento em que deste um salto e lhe perguntaste se ele tinha alguma irmã. - Ora, ele tinha começado com os seus trocadilhos, como de costume - disse o Slireve - a gabar-se das suas conquistas. Tu sabes como é: como ele faz sempre que há raparigas, para elas não perceberem bem do que está a fidar. Tudo subentendidos e mentiras e uma data de histórias sem sentido. A falar-nos duma gaja qualquer corri quem combinou encontrar-se num baile em Atlantic City e que deixou pendurada porque resolveu ir para o hotel dormir e os remorsos que sentiu por estar ali na cama e ela no pontão à espera dele, sem ninguém para lhe dar o que ela queria. A falar da beleza do corpo e do triste fim a que conduz e da má sorte das mulheres que não podem fazer mais nada senão passar a vida deitadas de costas. Não sei se estás a ver. Tipo Leda no bosque, a gemer e a chorar pelo cisne. O filho da puta. Eu também lhe dava. Só com uma diferença: eu agarrava na cesta do vinho que ela trouxe e dava-lhe com ela na cabeça como se fosse minha. - Olha o campeão das damas - disse o Spoade. - Menino, tu não estás só de espantar, estás de meter medo. - Olhou para mim, frio e inquisidor. - Santo Deus - disse ele. - Para que é que eu lhe bati? - disse eu. - Será que estou com muito mau aspecto para voltar lá e resolver a questão? - Pedir desculpa, isso é que era bom - disse o Slireve. Eles que vão para o diabo. Nós vamos para a cidade. - Ele devia voltar para eles saberem que luta como um cavalheiro -

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disse o Spoade. - Ou melhor, que sabe apanhar como um cavalheiro. - Neste estado? - disse o Shreve. - Com o fato todo sujo de sangue? - E por que não? Mas está bem - disse o Spoade -, tu é que sabes. - Ele não pode andar por aí em mangas de camisa - disse o Shreve. - Ainda não é finalista. Vá, vamos até à cidade. - Vocês não precisam de vir - disse eu. - Voltem para o piquenique. - Eles que vão para o diabo - disse o Shreve. - Anda cá. 150 - E o que é que eu lhes digo? - disse o Spoade. - Digo-lhes que tu e o Quentin também andaram à pancada? - Não lhe digas nada - disse o Shreve. - Diz-lhe que a opção dela expirou ao pôr-do-sol. Vamos, Quentin. Vou perguntar àquela mulher onde é a estação interurbana mais... - Não - disse eu. - Eu não volto para cidade. O Shreve parou e olhou para mim. De lado os seus óculos pareciam pequenas luas amarelas. - Então que vais fazer? - Não vou ainda para a cidade. Voltem vocês para o piquenique. Digam-lhes que eu não quis voltar porque tinha o fato todo sujo. - Ouve lá - disse ele -, o que é que tu vais fazer? - Nada. Está tudo bem. Tu e o Spoade voltem para lá. A gente amanhã vê-se. - Atravessei o pátio em direcção à estrada. - Sabes onde fica a estação? - disse o Shreve. - Eu dou com ela. Até amanhã. Peçam desculpa por mim a Mrs. Bland por lhe ter estragado o passeio. - Eles ficaram a olhar para mim. Dei a volta à casa. Havia um caminho empedrado até à estrada. Seguia pela encosta abaixo, em direcção à mata, e eu ainda conseguia ver o automóvel parado na berma da estrada. Subi a encosta. A luminosidade aumentava à medida que eu subia, e antes de chegar ao cimo ouvi um carro. Parecia vir muito longe, dos confins do crepúsculo e eu parei e fiquei à escuta. já não via o automóvel, mas via o Slireve parado na estrada em frente à casa, a olhar para o alto da colina. Por detrás dele, a luminosidade amarelada parecia uma demão de tinta no telhado. Acenei-lhe e desci para o outro lado da colina, sempre a ouvir o automóvel. Nisto, a casa desapareceu no arvoredo e eu parei no meio da luz verde e amarelada a ouvir o ruído do carro cada vez mais próximo, até que, mal começou a diminuir, cessou completa-mente. Esperei até o ouvir de novo. Depois continuei. À medida que descia a encosta, a luz foi-se desvanecendo lentamente, sem no entanto perder a luminosidade, como se fosse eu que mudava e não a luz, diminuindo sempre, embora ainda se pudesse ler o jornal quando a estrada meteu pelo meio das árvores. Logo a seguir encontrei uma vereda. Meti por ela. 151 Era mais estreita e escura do que a estrada, mas quando desembocou no apeadeiro do comboio... mais um cartaz de madeira... a luz continuava inalterada. Depois da vereda, o ar parecia mais brilhante, como se tivesse caminhado toda a noite na vereda e saísse agora dela para o amanhecer. O comboio não demorou. Entrei. As pessoas viraram-se para olharem para mim e eu procurei um lugar. Arranjei um do lado esquerdo. O comboio levava as luzes acesas e, enquanto fomos por entre as árvores, não conseguia ver mais nada a não ser a minha própria cara e uma mulher do outro lado da coxia com um chapéu no alto da cabeça com uma pena partida, mas quando saímos das árvores vi outra vez o crepúsculo, uma luminosidade como se o tempo tivesse realmente parado por momentos, com o sol suspenso sob a linha do horizonte, e então passámos pelo cartaz onde o velho estivera a comer coisas de dentro de um cartucho, e a

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estrada continuava banhada pelo crepúsculo, penetrando no crepúsculo, e a sensação da água mais além, mansa e veloz. Depois o comboio continuou, com uma corrente de ar persistente a entrar pela porta aberta até se espalhar por todo o interior transportando o odor do Verão e da escuridão, mas não da madressilva. O odor da madressilva era o mais triste de todos, acho eu. E lembro-me de tantos. O das glicínias era um. Nos dias de chuva quando a Mãe não se sentia tão doente que tivesse de ficar sentada à janela costumávamos ir brincar para a chuva. Quando a Mãe ficava na cama a Dilsey vestia-nos roupas velhas e deixava-nos ir para a chuva porque dizia ela a chuva nunca fez mal aos catraios. Mas se a Mãe estava levantada começávamos por ficar a brincar no alpendre até ela dizer que estávamos a fazer muito barulho, e então íamos brincar lá para fora para debaixo do caramanchel das glicínias. Aqui foi onde vi o rio pela última vez esta manhã, foi mais ou menos por aqui. Sentia a água para lá do crepúsculo, sentia-lhe o cheiro. Quando as árvores estavam em flor na Primavera e estava a chover o cheiro espalhava-se por toda a parte não se notava tanto nas outras vezes mas quando chovia o cheiro entrava pela casa dentro com o crepúsculo ou chovia mais à hora do crepúsculo ou então era qualquer coisa que a luz tinha mas cheirava sempre mais 152 nessa altura e eu na cama a pensar quando é que isto acaba quando é que isto acaba. A corrente de ar cheirava a água, um bafo húmido e persistente. Às vezes conseguia adormecer repetindo o mesmo vezes sem conta até que depois de a madressilva se misturar com o outro cheiro o conjunto de odores passava a simbolizar a noite e o desassossego e eu parecia estar ali deitado nem acordado nem a dormir estendendo o olhar ao longo de um corredor de penumbra acinzentada onde todas as coisas estáveis se tinham tornado sombras todas elas paradoxais tudo o que eu tinha feito sombras tudo o que eu tinha sentido e sofrido tomava formas visíveis medonhas e perversas sem referências @cias próprias inerentes à negação do significado que deviam reafirmar pensando que era e não era ao mesmo tempo quem não era não era quem. Sentia o cheiro dos meandros do rio para lá do ocaso e vi o derradeiro reflexo supino e tranquilo repousar sobre o areão como estilhaços de um espelho, e então mais além as luzes come- çavam a acender-se no ar pálido e cristalino, cintilantes como borboletas volteando ao longe. Benjamin filho de. Como ele se sentava em frente àquele espelho. Infalível refúgio onde o conflito se apaziguava silenciava reconciliava. Benjamin o filho da minha velhice feito refém no Egipto. Oh Benjamin. A Dilsey dizia que era por a Mãe ter vergonha dele. É assim que eles entram na vida dos brancos sem mais nem menos, infiltrações negras que deixamos factos brancos isolados por um instante numa verdade inabalável como se na lâmina de um microscópio; o mais das vezes apenas vozes que riem quando não há nada que dê vontade de rir, lágrimas quando não há razão para elas. São capazes de apostar par ou ímpar no número de pessoas pre- sentes num funeral. Um bordel cheio delas em Memphis veio para a rua em pelota durante um transe fanático. Foram precisos três polícias para dominarem uma delas. Sim Jesus Oh Jesus homem bom Oli aquele homem tão bom. O comboio parou. Saí e eles a olharem para o meu olho. O outro comboio que chegou vinha cheio. Tive de ficar em pé na plataforma da rectaguarda. - Há lugares à frente - disse o condutor. Olhei lá para a frente. Não vi lugares vagos do lado esquerdo. 153

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- Não vou para longe - disse eu. - Prefiro ficar aqui. Atravessámos o rio. Isto é, a ponte, erguendo-se em arco no espaço lentamente, muito alta, entre o silêncio e o vazio, onde as luzes - amarelas, verdes e vermelhas - cintilavam no ar limpido, repetindo-se. - O melhor é ir lá para frente e sentar-se - disse o condutor. - Vou sair já - disse eu. - São só mais dois quarteirões. Desci antes de chegarmos aos correios. A estas horas eles deviam estar sentados por aí em qualquer lado, e então comecei a ouvir o meu relógio e a ver se ouvia as badaladas e apalpei a carta para o Shreve por baixo do casaco, com a sombra dentada dos ulmeiros a brincar na minha mão. E então quando ia a virar para o pátio da Universidade soaram as badaladas e eu segui em frente enquanto as notas me chegavam em ondas como numa lagoa, passando por mim e seguindo, dizendo um Quarto para as quantas? Sim, um Quarto para as quantas. As nossas janelas estavam às escuras. A entrada estava deserta. Entrei e avancei encostado à parede do lado esquerdo, mas tudo estava deserto: só as escadas que curvavam e se perdiam nas sombras ecos de passos na geração da tristeza como poeira leve roçando nas sombras que os meus pés despertavam como pó, levemente, para logo assentar. Vi a carta antes mesmo de acender a I uz, encostada a um livro em cima da mesa para eu a ver bem. Dizer que ele era meu marido. E então o Spoade disse que iam não sei onde, que voltariam tarde e que Mrs. Bland ia precisar de um outro oficial à ordens. Mas eu tê-lo-ia visto e ele não consegue apanhar outro carro antes de uma hora porque já passa das seis. Tirei o meu relógio do bolso e fiquei a ouvi-lo a trabalhar, sem saber que ele não podia sequer mentir. Depois pousei-o na mesa com o mostrador para cima peguei na carta de Mrs. Bland rasguei-a deitei os bocados para o cesto dos papéis e tirei o casaco, o colete, o colarinho, a gravata e a camisa. A gravata também estava estragada, mas depois as negras. Talvez ele dissesse que a mancha de sangue era a que Cristo usava. Encontrei a gasolina no quarto do Shreve, deitei o colete em cima da mesa, para ficar bem estendido, e abri a lata da gasolina. 154 o primeiro carro para a cidade uma rapar@ga Rapariga precisamente o que ojason nãopodia suportar o cheiro da gasolina apô-lo mal disposto e depois maisfurioso do que nunca porque uma rapari@a Rüpar@ga não tinha nenhuma irmã mas o Benjamin o Benjaminfilho do meu arrependimento se eu ao menos tivesse uma mãe parapoder dizer Mãe Mãe Gastei imensa gasolina, e por fim já não sabia se aquilo ainda era a nódoa ou apenas a gasolina. A gasolina tinha feito o golpe começar a arder de novo e por isso quando fui lavar-me pendurei o colete nas costas de uma cadeira e baixei o fio do candeeiro para a lâmpada secar o molhado. Lavei a cara e as mãos, mas até fiessa altura eu lhe sentia o cheiro pestilento, irritante, se contraísse um pouco as narinas. Depois abri o saco e tirei a camisa, o colarinho e a gravata, meti lá os que estavam sujos de sangue e fechei o saco. Vesti-me. Estava eu a escovar o cabelo quando deu a meia hora. Mas faltavam ainda os três quartos, excepto suponho eu vendo apenas a sua cara na escuridío emfuga nada depena quebrada a menos quejossem duas mas não duas assim indo para Boston na mesma noite e depois a minha cara a cara delepor um instante no ruído do choque quando saindo 1lumínad,,Lç da escuri@o duasjanelas chocam na rígidaJuga desapareci.das a sua cara e a minha só v4@o vi será que vi não é adeus ao cartaz ondejá ninguém está a comer a estrada vazia na escurídio no siléncio aponte arqueando-se no silêncio a escuridío dorme a água mansa e veloz não é adeus Acendi a luz e fui para o meu quarto, longe da gasolina mas

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ainda lhe sentia o cheiro. Fui até à janela as cortinas vieram lentamente da escuridão tocar-me na cara como a respiração de alguém que dorme, respirando devagar outra vez para a escuridão, deixando o toque. Depois de eles irempara cima a Mãe recostou-se na cadeira, levando à boca o lenço perfumado de cân/ora. O Pai nem se mexeu continuava sentado ao " dela pegando-lhe na mão os gritos martelavam cada vez mais longe como se no siléncio, não houvesse lugarpara eles Quando eu era pequeno havia uma gravura num dos nossos livros, um lugar escuro onde apenas entrava um único raio de luz iluminando oblíquo dois rostos saídos da sombra. Sabes o que eufazia sejosse rei? ela nunca era rainha nem fada ela era sempre rei ou gigante ou general entra155 vapor ali dentropuxava-os cáparafora e dava-lhes uma bela sova Estava rasgado, desfeito. Ainda bem. Tinha de lá voltar até a masmorra ser a Mãe em pessoa ela e o Pai a subirem para a penumbra de mãos dadas e nós perdidos algures cá em baixo sem um raio de luz. E então a madressilva invadia-o. Assim que apagava a luz e tentava adormecer começava a entrar-me em ondas pelo quarto, mais forte cada vez mais forte até me obrigar a respirar fundo para conseguir inspirar algum ar até ter de me levantar e ir às apalpadelas como quando era pequeno as mãos vêem tocam a mente moldam invisível a porta Porta agora as mãos nada vêem O meu nariz via a gasolina, o colete em cima da mesa, a porta. O corredor continuava deserto de pés da geração da tristeza em busca de água. porém os olhos cegos cravavam-se como dentes não descrentes mas duvidando até da ausência de dorperna tornozelojoelho o desenrolar longo invisível efluído da balaustrada da escada onde um passo emfalso na escuridão mergulhava no sono Pai Mãe Caddy)ason MauryPorta eu não tenho medo só Mãe Pai Caddyjason Maury chegaram tão longedormindo que eu adormecerei depressa quando euportaPortaporta Vazios também estavam os cachimbos, as porcelanas, as paredes plácidas e manchadas, o trono da contemplação. Tinha-me esquecido do vidro, mas podia as mãos podem ver dedos refrescados ín visíveis colo de cisne o nde menos do que a vara de Móisés o vidro toca a medo batendofino no colofresco batendo refrescando o metal o vidro cheio a transbordar refrescante o vidro os dedos desprendendo sono deixando o travo do sono molhado no longo silÊncio da garganta voltei para trás, pelo corredor, acordando os passos perdidos para batalhões de murmúrios no silêncio, para a gasolina, o relógio contando a sua furiosa mentira sobre o tampo escuro da mesa. E depois as cortinas respirando da escuridão para cima da minha cara, soltando o sopro no meu rosto. Um quarto de hora ainda. E depois já não serei. De todas as palavras as mais tranquilizantes. As palavras mais tranquilizantes. Nonfui. Sum. Fui. Non Sum. Algures um dia ouvi os sinos. No Mississípí ou no Massacliussetts. Eu fui. Não sou. No Massa- chussetts ou no Mississípi. O Shreve tinha uma garrafa no baú. Ná,9 vais sequer abri-la Mr. e Mrs. Jason Ríchmond anunciam o 156 Três vezes. Dias. Não vais sequer abri-Ia casamento da sua filha Candace a bebida ensina-nos a confundir osfins com os meios Eu sou. Bebe. Eu não fui. Vamos vender a pastagem do Benjy para que o Quentin possa ir para Harvard e eu possa apertar os meus ossos uns contra os outros cada vez mais. Vou morrer daqui a. Terá sido um ano que a Caddy disse. O Shreve tem uma garrafa no baú. Pai, eu não preciso do dinheiro do Shreve vendi a pastagem do Benjy e já posso morrer em Harvard a Caddy disse nas cavernas e nas grutas marinhas balançando em paz ao sabor das marés que por Harvard ser uma palavra que soa tão bem quarenta acres não é um preço elevádo demais para um som tão belo. Um som belo e mortal

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trocaremos a pastagem do Benjy por um som belo e mortal. Vai dar-lhe para muito tempo porque ele não o pode ouvir a não ser que o possa cheirar assim que ela apareceu à porta ele começou a chorar pensei sempre que fosse um desses finórios da cidade por causa de quem o Pai estava sempre a meter-se com ela antes. Não reparei nele mais do que em qualquer outro desconhecido, vendedor ou coisa parecida, pensei que eram camisas do exército até que de repente percebi que ele já não estava a pensar em mim de modo nenhum como uma possível fonte do mal mas que era nela que pensava quando olhava para mim olhava para mim através dela como através de um vidro multicor por que te metes na minha vida não sabes que não serve de nadapensei que tinhas deíxado isso a cargo da Mãe e dojason a Mãe terá mesmo mandado o Jason espiar-te eu não o teria feito, As mulheres só usam os códigos de honra de outraspessoas épor ela gostar tanto da Caddy ficava lá em baixo mesmo quando estava doente para o Pai não se meter com o Tio Maury à frente do Jason o Pai dizia que o Tio Maury era muito fraco em mitologia clássica para fazer o papel do imortal menino cego devia ter escolhido o Jason porque o Jason teria cometido o mesmo erro que o Tio Maury em pessoa e não um que lhe valesse um olho negro ainda por cima o filho dos Pattersons era mais pequeno do que o Jason eles vendiam os papagaios por um níquel até surgir o problema financeiro o Jason arranjou outro sócio ainda mais pequeno ou pelo menos suficientemente pequeno porque o T. P. disse 157 que o Jason ainda era o tesoureiro mas o Pai disse por que é que o Tio Maury havia de trabalhar se ele o meu pai podia sustentar cinco ou seis negros que não faziam nada senão ficarem sentados a aquecerem os pés no fogão ele podia muito bem dar cama e comida ao Tio Maury de vez em quando e emprestar-lhe algum dinheiro de modo a manter intacta a crença do Pai dele na origem divina da sua estirpe e a Mãe punha-se a chorar e a dizer que o Pai estava convencido de que a família dele era melhor do que a dela que ele fazia pouco do Tio Maury para nos ensinar a fazer o mesmo ela não via que o Pai nos estava a ensinar que todos os homens são apenas acumuladores bonecos cheios de serradura varrida do monte de desperdícios para onde todos os bonecos anteriores foram atirados deitados fora jorrando serradura por que chaga de que lado que não foi por mim que morreu. Eu costumava imaginar a morte como um homem parecido com o Avô um amigo um amigo muito especial como achávamos que era a secretária do Avô em que não podíamos tocar nem sequer falar alto dentro da sala onde ela estava imaginava-os sempre juntos algures a toda a hora à espera de que o velho Coronel Sartoris descesse e se viesse sentar com eles à espera num local elevado para lá dos cedros o Coronel Sartoris estava ainda num local mais elevado a olhar sabe-se lá para onde e eles à espera de que ele acabasse de olhar e descesse o Avô estava de uniforme e nós ouvíamos o murmúrio das suas vozes para lá dos cedros eles não paravam de falar e o Avô tinha sempre razão. Os três quartos começaram a bater. Soou a primeira nota, calma e contida, serenamente peremptória, esvaziando o silêncio paulatino abrindo caminho à seguinte e foi tudo se ao menos as pessoas pudessem substituir-se umas às outras para sempre por esse processo fundirem-se como labareda que rodopia por um instante e logo se apaga na fresca e eterna escuridão em vez de ficar ali estendido tentando não pensar no baloiço de rede até todos os cedros adquirirem aquele odor pungente e defunto de perfume que o Benjy tanto detestava. Só de imaginar a mata de cedros me parecia ouvir murmúrios desejos secretos cheirar o bater do sangue quente sob a carne selvagem e dis- ponível ver nas pálpebras

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vermelhas os porcos enlouquecidos 158 copulando furiosamente e atirando-se ao mar acopulados e ele nós temos de estar alerta para ver o mal ser praticado mas não por muito tempo nem é preciso tanto tempo para um homem de coragem e ele achas que a coragem e eu sim senhor tu e ele não cada homem é árbitro das suas próprias virtudes quer isso seja ou não considerado corajoso é mais importante do que o acto propriamente dito do que qualquer acto ou não poderiamos estar a falar a sério e eu tu não acreditas eu estou a falar a sério e ele eu acho que és demasiado sério para me dares motivo para preocupações senão não te terias sentido impelido a lançares mão do expediente de me dize@es que tinhas cometido incesto e eu eu não estava a mentir eu não estava a mentir e ele tu querias sublimar um pedaço de loucura humana perfeitamente natural transformando-a num horror e depois exorcisá-la com a verdade e eu era para a isolares do mundo do som para que ele tivesse forçosamente de nos fugir e então o seu som seria como se não tivesse nunca existido e ele fez isso tenta tu obrigá-la a fazer isso e eu eu tinha medo eu tinha medo de que ela pudesse e depois de nada teria servido mas se eu te pudesse contar nós fizemo-lo teria sido assim e então os outros não seriam assim e o mundo rugiria e ele e agora este outro tu agora também não estás a mentir mas continuas cego para o que te vai lá dentro para aquela parcela da verdade universal a sequência dos acontecimentos naturais e as suas causas que ensombram a fronte de todo o homem até mesmo dos benjys tu não estás a pensar na finitude estás a contemplar uma apoteose na qual um estado de espírito temporário se tornará simétrico se elevará acima da carne e tomará consciência tanto de si próprio como da carne não te dispensará propriamente nem sequer morrerás e eu temporário e ele não suportas pensar que um dia já não te magoará assim finalmente estamos a chegar ao âmago da questão tu pareces encarar o facto meramente como uma experiência que te embranquecerã o cabelo da noite para o dia por assim dizer sem te alterar minimamente a aparência tu não o farás nestas condições será um jogo e o mais estranho é que o homem que é concebido por acidente e cujo sopro de vida mais não é do que um molde fresco já calibrado corri dados jogados contra si se recusa a enfren159 tar aquela etapa final que ele sabe de antemão que tem de enfrentar sem recorrer a expedientes que podem ir da violência à mentirola que nem a uma criança consegue enganar até que um dia no auge do desencanto ele aposta tudo sem ver nenhum homem o faz à primeira fúria de desespero remorso ou luto fá-lo só quando percebe finalmente que nem o desespero nem o remorso nem o luto são particularmente importantes para o negro jogador de dados e eu temporário e ele é tão dificil acreditar pensar que um amor ou uma dor são obrigações da bolsa compradas sem objectivo e que têm um prazo de reembolso quer o queiramos quer n o e que são reembolsadas sem aviso e substituídas por outra qualquer emissão em que os deuses estiverem empenhados no momento não tu não o farás enquanto não acreditares que talvez até mesmo ela não valesse todo esse teu desespero e eu eu nunca o farei ninguém sabe o que eu sei e ele penso que o melhor seria ires para cambridge imediatamen- te podes ir para o norte para o maine por um mês se fores poupado até consegues seria bom sentires o dinheiro tem sarado mais chagas que jesus e eu suponho eu imagino aquilo em que tu acreditas hei-de imaginar lá na próxima semana ou no próxi- mo mês e ele e então lembrax-te-ás que a tua ida para harvard foi o sonho da tua mãe desde que nasceste e nenhum compson jamais desiludiu uma senhora e eu temporário será

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melhor para mim para todos nós e ele cada homem é árbitro das suas virtudes mas que nenhum homem passe a outro homem receitas de bem estar e eu temporário e ele era a palavra mais triste de todas nada mais existe no mundo não é o desespero até ao fim do tempo não é sequer o tempo até dizermos foi A última nota soou. Por fim deixou de vibrar e na escuridão de novo se fez silêncio. Entrei na sala e acendi a luz. Vesti o colete. O cheiro a gasolina era agora muito ténue, mal se notava, e no espelho a nódoa não se via. Não tanto como o meu olho, apesar de tudo. Vesti o casaco. A carta para o Shreve estalou por baixo do tecido e eu tirei-a do bolso de dentro examinei o endereço e meti-a no bolso lateral. Depois levei o relógio para o quarto do Shreve meti-o numa gaveta fui ao meu quarto buscar um lenço lavado dirigi-me para a porta e levei a mão ao interruptor. Nisto 160 lembrei-me de que não tinha escovado os dentes, e tive por isso de abrir o saco outra vez. Encontrei a escova dos dentes fui buscar a pasta do Slireve e escovei os dentes. Sequei a escova o mais que pude voltei a guardá-la no saco e fechei-o, dirigindo-me de novo para a porta. Antes de apagar a luz olhei em volta para ver se faltava mais alguma coisa, e vi que me tinha esquecido do chapéu. Tinha de passar pelos correios e fazer por encontrar alguns deles, e eles haviam de pensar que eu era um estudante de Harvard a fazer-se passar por finalísta. Tinha-me também esquecido de o escovar, mas o Shreve tinha urna escova e não era preciso abrir o saco outra vez. Seis de Abril de 1928 Quem nasce puta morre puta, é o que eu digo. Cá para mim, tem muita sorte se a única coisa que a preocupa é ela faltar às aulas. Cá para mim, ela devia era estar lá em baixo na cozinha, neste momento, em vez de estar lá em cima no quarto a pintar-se toda à espera que seis negros lhe preparem o pequeno-almoço, seis negros que nem se conseguem levantar de uma cadeira a não ser que tenham uma panela cheia de pão e carne para os equilibrar. E diz a Mãe: - Mas levar a Direcção da escola a pensar que eu não tenho mão nela, que eu não posso... - Bem - digo eu. - E não pode, pois não? Nunca tentou fazer nada dela - digo eu. - Como é que quer começar agora, que ela já tem dezassete anos? Agora é tarde. Ficou pensativa. - Mas levá-los a pensar que... Eu nem sabia que ela tinha uma caderneta. Disse-me no começo das aulas que este ano tinham acabado com elas. E agora o Professor Junkin telefona-me e diz-me que se ela falta mais uma vez que seja, tem de sair da escola. Como é que ela faz? Para onde é que ela vai? Tu passas o dia na cidade; tu deves vê-Ia se ela andar pela rua. - Sim - digo eu. - Se ela andar pelas ruas. Mas não creio que ela falte às aulas só para fazer qualquer coisa que possa fazer em público - digo eu. - Que queres dizer com isso? - diz ela. - Não quero dizer nada - digo eu. - Só respondi à sua pergunta. - Então ela começou a chorar outra vez e a dizer como os seus próprios filhos, a carne da sua carne, se revoltavam contra ela e a amaldiçoavam. 163 - Para que perguntou? - digo eu. - Não me referia a ti - diz ela. - Tu és o único que não me envergonha. - Claro - digo eu. - Nunca tive tempo para isso. Nunca tive tempo para

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ir para Harvard ou matar-me de tanto beber. Eu tinha de trabalhar. Mas claro que se quer que eu a siga e veja o que ela anda a fazer, posso deixar a loja e arranjar um emprego onde possa trabalhar à noite. Assim posso vigiá-la durante o dia e pode incumbir o Berijy do turno da noite. - Eu sei que não passo de um problema e de um fardo nas tuas costas - diz ela, a chorar agarrada à almofada. Eu já tinha obrigação de saber isso - digo eu. - Há trinta anos que não me diz outra coisa. Até o Benjy já devia saber. Quer que fale com ela? - Achas que serve de alguma coisa? - diz ela. - Não, se for lá abaixo meter-se na conversa precisamente quando eu estiver a começar - digo eu. - Se quer que eu faça alguma coisa dela, é só dizer e não se meter. Sempre que eu tento, vem logo meter a colherada e ela fica a rir-se dos dois. - Lembra-te de que ela é da mesma carne e do mesmo sangue que tu - diz ela. - Claro - digo eu. exactamente nisso que estou a pensar.. carne. E um bocadinho de sangue também, para ser como eu gosto. Quando as pessoas se comportam como pretos, seja lá quem for, a única coisa a fazer é tratá-las como pretos. - Tenho medo que percas a cabeça - diz ela. - Bem - digo eu. - O seu sistema não deu grandes resul- tados. Quer que eu faça alguma coisa ou não? Diga lá, ou sim ou não; tenho de ir trabalhar. - Eu sei que te matas a trabalhar por nossa causa - diz ela. Sabes bem que, se eu pudesse, tinhas o teu próprio escritório na cidade e um horário digno de um Bascorrib. Sim, porque tu és um Bascorrib, apesar do teu nome. Eu sei que, se o teu pai tivesse podido adivinhar.. - Bem - digo eu -, acho que ele tinha o direito de se enganar de vez em quando, como toda a gente, mesmo os Smittis ou os Jones. - Ela começou a chorar outra vez. 164 - Ouvir-te falar assim do teu falecido pai - diz ela. - Está bem - digo eu. - Está bem. Faça como quiser. Mas eu não tenho o meu escritório e tenho de ir para aquilo que tenho. Quer que lhe diga alguma coisa? - Tenho medo que percas a cabeça - diz ela. - Está bem - digo eu. - Então não digo nada. - Mas alguma coisa tem de ser feita - diz ela. - Não posso deixar as pessoas pensarem que é com o meu consentimento que ela falta à escola e anda aí pelas ruas, ou que não sou capaz de a impedir.. Jason, Jason - diz ela. - Como foste capaz. Como foste capaz de me deixares com este peso às costas. - Pronto, pronto - digo eu. - Assim vai adoecer. Por que não a fecha em casa todo o dia ou então não ma entrega e deixa de se preocupar? - A minha própria carne - diz ela, a chorar. E eu digo: - Está bem. Eu trato dela. Agora pare de chorar. - Mas não percas a cabeça - diz ela. - Lembra-te de que ela não passa de uma criança. - Não - digo eu. Não vou perder. - Saí e fechei a porta. - Jason - diz ela. Não respondi. Segui pelo corredor fora. - Jason - diz ela de trás da porta. Desci as escadas. Não estava ninguém na casa de jantar, e foi então que a ouvi na cozinha. Estava a tentar convencer a Dilsey a dar-lhe mais uma chávena de café. Entrei. - Suponho que esse seja o teu uniforme escolar, ou não? digo eu. - Ou será que hoje é feriado? - Só meia chávena, Dilsey - diz ela. - Por favor. - Nã siô - diz a Dilsey. - Não vou fazê mais. Não tem nada que tomá mais duma chávena, uma menina de dezasset'anos, sem contá co que Miss

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Cdline diz. Vá vestir-se pá escola, pa ir pá cidade co Jason. Tá a preparar-se pa chegá atrasada outra vez. - Não está não - digo eu. - Vamos já tratar disso. - Ela olhou para mim, com a chávena na mão. Afastou os cabelos da cara, com o quimono descaído, deixando-lhe um ombro a desco- berro. - Pousa a chávena e chega aqui um instante - digo eu. 165 - Para quê? - diz ela. - Vá - digo eu. - Põe a chávena no lava-loiça e vem cá. - Qu@é que vai fazê agora, Jason? - diz a Dilsey. - Tu podes julgar que passas por cima de mim como fazes com a tua avó e todos os outros - digo eu. - Mas estás muito enganada. Tens dez segundos para pousares a chávena como te mandei. Ela desistiu de olhar para mim. Pôs-se a olhar para a Dilsey. Que horas são, Dilsey? - diz ela. - Quando passarem os dez segundos, assobia. Só meia chávena, Dilsey, po... Puxei-a pelo braço. Ela largou a chávena, que se partiu no meio do chão. Deu um puxão com força, sempre a olhar para mim, mas eu tinha-lhe o braço bem agarrado. A Dilsey levantou-se da cadeira. - Então, Jason - disse ela. - Solta-me - diz a Quentin. - Olha que te bato. - Ai bates? - digo eu. - Pá bates? - Ela esboçou uma bofetada. Agarrei-lhe também a mão e prendi-a como se faz a um gato bravo. - Ai bates? - digo eu. - É o bates! - Então, Jason! - diz a Dilsey. Arrastei-a para a casa de jan- tar. O quimono desapertou-se, esvoaçando em torno do seu corpo, quase nu. A Dilsey veio a coxear atrás de nós, mas eu virei-me e com um pontapé fechei-lhe a porta na cara. - Não te quero aqui, ouviste - digo eu. A Quentin estava encostada à mesa, a apertar o quimono. Olhei para ela. - Agora - digo eu - quero saber o que pretendes com essa história de faltares às aulas, mentires à tua avó, falsificares a assinatura dela na caderneta e matá-la de desgosto. O que é que pretendes? Ela não respondeu. Apertava o quimono junto ao pescoço, traçando-o muito, e olhava para mim. Ainda não se tinha pintado e a cara dela parecia que tinha sido polida com um pano de polir espingardas. Aproximei-me e agarrei-lhe o pulso. - Vá, diz lá, o que pretendes? - digo eu. - Não tens nada com isso - diz ela. - Larga-me. A Dilsey apareceu à porta. - Então, Jason - diz ela. 166 - Sai já daqui como eu mandei - digo eu, sem olhar para trás. - Quero saber para onde vais quando faltas à escola digo eu. - Na rua não andas, senão eu via-te. Com quem andas então? Vais para a mata com algum desses parvalhões de cabelo embrilhantinado? É para aí que vais? - Estúpido... Intrometido! - diz ela. Debatia-se, mas eu tinha-a bem agarrada. - Intrometido dum raio! - diz ela. - Eu digo-te quem é intrometido - digo eu. - Podes meter medo a uma velha, mas agora vou mostrar-te quem manda em ti. - Segurei-a com uma mão e ela desistiu de lutar e olhou para mim, com os olhos negros desmedidamente abertos. - Que vais fazer? - diz ela. - Espera só até eu tirar o cinto e já vais ver - digo eu, puxando o cinto. Mas a Dilsey agarrou-me o braço. - Jason - diz ela. - Pare, Jason! Não tem vergonha? - Dilsey - diz a Quentin. - Dilsey. - Eu não deixo ele batê-lhe - diz a Dilsey. - Não s'afiija, menina. -

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E não me largava o braço. Nisto, o cinto soltou-se e eu dei-lhe um empurrão e libertei-me. Ela foi aos tropeções chocar com a mesa. Era tão velha que só a custo se mexia. Mas não fazia mal: era preciso alguém na cozinha para comer os restos que os novos deixam ficar. Ela meteu-se entre nós dois, a cambalear, tentando agarrar-me outra vez. - Bata-m'antes a mim - diz ela - s'o que quê é batê em alguém. Vá, bata-me - diz ela. -Julgas que não sou capaz? - digo eu. - Eu sei que mais ruindade qu'a sua não existe - diz ela. Nesta altura, ouvi a Mãe nas escadas. já tinha obrigação de saber que ela não ia deixar de se meter. Soltei-a. Ela caiu para trás desamparada, aos trambolhões, de encontro à parede, sempre a segurar o quimono. - Está bem - digo eu. - Vamos ter de adiar a nossa conversa. Mas não penses que levas a melhor comigo. Eu não sou nem uma velha, nem uma negra meio morta. Grande cabra digo eu. - Dilsey - diz ela. - Dilsey, quero a minha mãe. A Dilsey foi ter com ela. - Pronto, pronto - diz ela. 167 Enquanto eu aqui tivé ele não lhe toca nem cum dedo. -A Mãe desceu as escadas. - Jason - diz ela. - Dilsey! - Pronto, pronto - diz a Dilsey. - Eu não deixo qu'ele lhe toque. - A velha afagou a Quentin com a mão, mas ela sacudiu-a. - Negra velha dum raio! - diz ela. E correu para a porta. - Dilsey - diz a Mãe das escadas. A Quentin passou por ela a correr escada acima. - Quentin - diz a Mãe. - Então, Quentin. - A Quentin não ligou. Ouvi-a chegar lá acima e depois os passos dela pelo corredor. Depois o estrondo da porta. A Mãe tinha parado. Depois continuou a descer. - Dilsey diz ela. - Pronto - diz a Dilsey. - Tou a ir. Agora vá buscar o carro e espere um bocadinho - diz ela - pá ir levá à escola. - Não te preocupes - digo eu. - Eu levo-a e desta vez ela vai lá ficar. Já que me meti nesta alhada, vou levá-la até ao fim. - Jason - diz a Mãe das escadas. - Vá, vá-se embora - diz a Dilsey, encaminhando-se para a porta. - Ou tamém. quê qu@ela comece? Vou já, Miss Ca'line. Saí. Ouvia-as nas escadas. - Vá, volte pá cama - ( Dilsey. - Não sabe que não tá com forças pa se levantá? Vá, volte pa cima. Eu faço-a chegá a horas à escola. Saí pelas traseiras para tirar o carro de marcha atrás, e depois tive de dar a volta toda até à frente da casa para as encontrar. _ Julguei que já te tinha dito para pores esse pneu na maia do carro - digo eu. - Não tive tempo - diz o Luster. - Não há ninguém pé vigiá enquanto a'nha mãe tivé na cozinha. - É - digo eu. - Ando eu a encher a barriga a uma cozinha cheia de negros para passarem a vida atrás dele, mas quando quero um pneu trocado, tenho de ser eu a fazê-lo. - Nã tinha ninguém com quem o deixá - diz ele. E nisto ele pôs-se a gemer e a chorar. - Leva-o para as traseiras - digo eu. - Para que diabo queres ficar com ele aqui para as pessoas o verem? - Pu-los a andar antes que ele desatasse a berrar. já chega aos domingos, com o 168 campo cheio de pessoas que não têm nada com que se entreter, nem seis negros para sustentar, e passam o dia a bater num raio duma espécie de bola de naftalina gigante. E ele não pára de correr a cerca para cima e para baixo, a gritar de cada vez que vê alguma, e lá chegará o dia em que me hão-de querer obrigar a

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pagar cota, e então a Mãe e a Dilsey vão ter de arranjar um par de maçanetas das portas em porcelana e uma bengala e começarem a treinar, a menos que eu vá jogar à noite à luz da lanterna. E depois mandam-nos a todos nós para Jackson, muito provavelmente. Até eram capazes de celebrar a semana da Terceira Idade quando isso acontecesse. 1 Voltei para a garagem. Lá estava o pneu encostado à parede, mas diabos me levassem se era eu que o ia colocar. Dei um passo atrás e voltei-me. Ela estava na alameda. E vou eu e digo: - Vejo que não tens livros nenhuns, e queria só perguntar-te o que lhes fizeste, se é que tenho esse direito. Claro que não tenho direito de perguntar coisa nenhuma - digo eu. - Eu só me limitei a pagar onze dólares e sessenta e cinco por eles em Setembro. - Quem me compra os livros é a minha mãe - diz ela. Eu não quero nem um cêntimo do teu dinheiro. Antes morrer de fome. - Ah sim? - digo eu. - Conta essa à tua avó e verás o que ela diz. Não me parece nada que andes despida - digo eu apesar de essas porcarias que pões na cara te taparem mais do que o que trazes em cima do corpo. - Julgas que foi o teu dinheiro ou o dela que pagou alguma destas coisas? - diz ela. - Pergunta à tua avó - digo eu. - Pergunta-lhe o que aconteceu aos cheques. Lembro-me bem de que a viste queimar um. - Mas ela nem me ouvia, com aquela cara toda borrada da pintura e os olhos de aço como os de um cão de fila. - Sabes o que é que eu fazia se soubesse que o teu dinheiro ou o dela tinham comprado alguma destas coisas? - diz ela, pondo a mão no vestido. - Não, o que é que fazias? - digo eu. - Vestias-te com uma barrica? 169 - Rasgava tudo e atirava a roupa para a rua - diz ela. Não acreditas? - Claro que acredito - digo eu. - Passas a vida a fazer isso. - Vais ver! - diz ela. Meteu as duas mãos no decote do vestido e fez menção de o rasgar. - Rasga o vestido e levas uma tareia aqui mesmo de que te vais lembrar para o resto da vida - digo eu. - Vais ver se rasgo ou não - diz ela. Percebi que estava mesmo a tentar rasgá-lo, a tentar arrancá-lo aos bocados. Quando desliguei o carro e lhe agarrei as mãos já havia cerca de uma dúzia de pessoas a assistir. Naquele momento, fiquei tão desvairado que ceguei por completo. - Faz outra como esta e vais arrepender-te de ter nascido digo eu. - já estou arrependida - diz ela. Desistiu e depois os olhos dela ficaram esquisitos e eu disse cá para mim, se te pões a chorar dentro do carro, aqui no meio da rua, vais apanhar. Dou cabo de ti. Sorte dela não ter começado. Soltei-lhe os pulsos e arranquei. Felizmente estávamos perto de uma travessa por onde eu podia meter e apanhar uma rua secundária, para fugir à praça principal .já estavam a montar a tenda no terreno do Beard. O Earl já me tinha dado as duas entradas. Ela ia sentada com a cara virada para o outro lado, a morder o lábio. - Agora estou arrependida diz ela. - Não sei para que havia de ter nascido. - E eu conheço pelo menos uma outra pessoa que não entende tudo o que sabe sobre o assunto - digo eu. Parei em frente à escola. A sineta já tinha tocado e os últimos alunos já iam a entrar. - Hoje chegas a horas para variar - digo eu. Vais entrar e deixares-te ficar lá dentro, ou é preciso eu ir lá contigo e obrigar-te? - Ela saiu e bateu com a porta. - Lembra-te do que eu disse - digo eu. - Olha que falei a sério. Livra-te de que eu oiça dizer mais alguma vez que andas aí pelos becos na vadiagem com algum desses valdevinos. Ela voltou-se e disse: - Eu não ando na vadiagem. Como se as pessoas soubessem tudo o que eu faço.

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- O pior é que sabem - digo eu. - Toda a gente nesta cidade sabe quem tu és. Mas agora acabou-se, estás a ouvir? Por 170 mim, não me interessa o que tu fazes - digo eu. - Mas tenho um nome a preservar nesta cidade e não admito que ninguém da minha família se porte como uma preta ordinária. Estás a ouvir? - Quero lá saber - diz ela. - Sou ruim e hei-de ir parar ao inferno, mas não me importo. Antes quero estar no inferno do que ao pé de ti. - Se volto a saber mais alguma vez que não foste à escola, aí sim, vais desejar ir para o inferno - digo eu. Ela deu meia volta e correu pelo pátio fora. - Mais uma vez que seja, lembra-te bem - digo eu. Ela nem olhou para trás. Fui aos correios buscar a cortespondência, segui directamente para o armazém e estacionei o carro. O Earl olhou para mim quando eu entrei. Dei-lhe oportunidade de fazer algum reparo por eu chegar atrasado, mas ele disse apenas: - As capinadeiras já chegaram. É melhor ires ajudar o Job a montá-las. Fui até ao celeiro, onde o velho Job as estava a tirar dos caixotes, à velocidade de uns três parafusos por hora. - Devias estar a trabalhar em minha casa - digo eu. Metade dos negros estropiados desta cidade comem na minha cozinha. - Eu trabalho pa quem me paga 6 sábado à noite - diz ele. E depois disso não me sobra muito tempo pa dá às outras pessoas. - Tirou mais um parafuso. - Não há por aí muita gente que trabalhe a não sê os negros do algodão - diz ele. - Devias dar-te por feliz de não andares numa plantação agarrado a essa capinadeira - digo eu. - Morrias antes que te tirassem de lá. - Isso é bem verdade - diz ele. - Aquilo é duro nas plantações. Trabalhá todos os dias da semana é, calor, chova 6 faça sol. Sem um alpendre onde a gente s'assente a ver crescer as melancias e os sábados nem se dá por eles. - Se fosse eu que te pagasse, também não davas pelos sábados - digo eu. - Vá tira essas coisas dos caixotes e leva-as lá para dentro. Abri a carta dela em primeiro lugar e tirei o cheque. Mesmo coisas de mulher. Seis dias de atraso. E depois querem convencer 1/11 os homens de que são capazes de tomar conta de um negócio. Quanto tempo se ia aguentar um homem que pensasse que o mês começava no dia seis? E já se vê que quando lhe mandavam o extracto da conta, ela queria saber por que é eu nunca depositava a mesada antes do dia seis. As mulheres nunca pensam nestas coisas. Não respondeste à minha carta sobre o vestido da Quentin para a Páscoa. Chegou em boas condições? Ela não respondeu às duas últimas cartas que lhe escrevi, apesar de o cheque que lhe mandei com a segunda ter sido levantado com o outro che- que. Ela está doente? Manda-me dizer depressa, senão vou aí para ver com os meus próprios olhos. Prometeste que me dizias quando ela precisasse de qualquer coisa. Espero ter notícias tuas antes do dia 10. Não, o melhor é mandares-me já um telegrama. Tu abres as cartas que eu lhe escrevo. Sei-o tão bem como se estivesse a ver-te. O melhor é mandares-me já um telegrama para esta morada a dizeres-me como ela está. Mais ou menos nessa altura, o Earl começou a gritar com o Job e eu guardei as cartas e fui ter com eles para ver se o espevitava. Do que este país precisa é de mão-de-obra. branca. Deixem esta pretalhada inútil morrer de fome durante uns tempos, e eles logo aprendem a dar valor ao que têm. Perto das dez horas fui até à loja. Estava lá um caixeiro-viajante. Faltavam dois ou três minutos para as dez e convidei-o para vir beber

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um copo ali perto. Começámos a falar de colheitas. - Não tem nada que saber - digo eu. - O algodão é uma cultura para os especuladores. Enchem de esperanças o agricultor e levam-no a cultivar uma plantação imensa para depois lançarem a colheita no mercado para lucro desses oportunistas. Acha que o agricultor ganha mais alguma coisa do que um cachaço vermelho e uma corcunda nas costas? Acha que o homem que tem de suar para cultivar todo aquele algodão ganha alguma coisa que lhe dê para mais do que o estritamente neces- sário? - digo eu. - Se a colheita for muito grande, nem vale a pena apanhá-la; se for muito pequena, não ganha nem para o gin. E para quê? Para que um bando de judeus do leste, não que 1172 eu tenha nada contra os que seguem a religião judaica- digo eu. -Já conheci judeus que eram até muito boas pessoas. Você se calhar até é um deles - digo eu. - Não - diz ele. - Eu sou Americano. - Sem ofensa - digo eu. - Que eu cá respeito toda a gente, independentemente da religião ou de outra coisa qualquer. Isoladamente não tenho nada contra os judeus - digo eu. Estou a falar da raça, no seu conjunto. Há-de concordar que não produzem nada. Seguem os pioneiros por toda a parte para lhes venderem roupa. - Deve estar a referir-se aos Arménios - diz ele. - Para que é que um pioneiro havia de querer roupas novas? - Sem ofensa - digo eu. - Não julgo um homem pela sua religião. - Claro - diz ele. - Eu sou Americano. A minha família tem sangue francês, é por isso que tenho este nariz. Mas o que eu sou é Americano. - E eu também - digo eu. - já não restamos muitos. Do que eu estava a falar era desses tipos que estão repimpados lá em Nova Iorque a aproveitarem-se dos pequenos especuladores. - É isso mesmo - diz ele. - Os pobres nunca podem especular. Devia haver uma lei que o proibisse. - Não acha que tenho razão? - digo eu. - Acho - diz ele. - Acho que tem razão. O agricultor é quem se lixa sempre. - Eu sei que tenho razão - digo eu. - Nunca se ganha nada, a não ser que se consigam obter informações de alguém que esteja por dentro das tramóias. Por acaso estou ligado a algumas pessoas que estão muito bem informadas. Têm por conselheiro o maior especulador de Nova lorque. É sempre assim que eu faço - digo eu. - Nunca arrisco muito de uma vez. O que lhes interessa a eles é o tipo que julga que sabe tudo e quer fazer fortuna com três dólares. Para isso é que eles montaram o negócio. Bateram as dez horas. Fui até ao posto do telégrafo. As coisas estavam um pouco melhores, tal como eles tinham dito. Fui para um canto e tirei outra vez o telegrama do bolso, só para me cer1 ;73 tificar. Enquanto olhava para ele, chegaram as cotaçóes. Tinham subido dois pontos. Toda a gente comprava. Percebi que era assim pelo que mandavam dizer. Atiravam-se de cabeça. Como se não soubessem que o resultado só podia ser um. Como se houvesse uma lei ou coisa parecida que proibisse tudo menos comprar. Bem, acho que esses judeus do leste também têm direito à vida. Mas diabos me levem se as coisas não vão por mau caminho quando qualquer estrangeiro dum raio, que não consegue sobreviver no país onde Deus o pôs, se dá ao luxo de vir para este país roubar o dinheiro dos bolsos dos americanos. Tinha subido mais dois pontos. Quatro pontos. Mas, que diabo, eles estavam lá e sabiam tudo o que se passava. E, se não fosse para seguir os conselhos deles, para que havia eu de lhes estar a pagar dez dólares

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por mês. Vim-me embora, mas de repente lembrei-me, voltei atrás e mandei um telegrama: "Tado bem. A Q escreve hoje". - Q? - disse o telegrafista. - Sim - digo eu. - Q. Não sabe escrever Q? - Só perguntei para ter a certeza - diz ele. - Mande-o como eu escrevi e garanto-lhe que está bem digo eu. - Mande à cobrança. - O que é isso, Jason? - diz o Doc Wright, espreitando por cima do meu ombro. É alguma mensagem em código a mandar comprar? - Não é da vossa conta - digo eu. - Pensem o que quiserem. Vocês sabem mais disto do que os tipos lá de Nova lorque. - Bem, eu tinha obrigação de saber - diz o Doc. - Teria ganho bom dinheiro este ano se o tivesse aplicado a dois cêntimos a libra. Chegaram mais cotações. Tinham baixado um ponto. - O Jason está a vender - diz o Hopkins. - Olhem para a cara dele. - O que eu faço é cá comigo - digo eu. - Vocês que sigam a vossa intuição. Os ricaços judeus de Nova lorque precisam de ganhar o deles como toda a gente - digo eu. Voltei para o armazém. O Earl andava todo atarefado na loja. Sentei-me à secretária e li a carta da Lorraine: "Querido paizinho gostava que estivesses aqui. Não há festas que prestem 174 quando os paizinhos não estão na cidade tenho muitas saudades do meu querido paizinho". Acho bem que tenha. Da última vez dei-lhe quarenta dólares. Nunca prometo nada a uma mulher para ela não saber quanto lhe vou dar. É a única maneira de as ter na mão. Mantê-las na expectativa. E se não nos ocorrer melhor maneira de as surpreendermos, é dar-lhes um murro nos queixos. Rasguei-a e queimei-a no escarrador. Tenho uma regra que não guardar nenhum papel escrito por uma mulher, e também nunca lhes escrever. A Lorraine anda sempre atrás de mim para eu lhe escrever, mas o que eú lhe digo é: qualquer coisa que me tenha esquecido de te dizer tem de esperar até eu voltar a Memphis; e digo ainda: não me importo que me escrevas de vez em quando num sobrescrito sem remetente, mas se tentares telefonar-me, Memphis não vai chegar para te esconderes; é o que eu digo. Quando lá estou sou igual aos outros, mas não quero mulher nenhuma atrás de mim ao telefone. Toma digo eu e dou-lhe quarenta dólares. Se alguma vez te embebedares e te passar pela cabeça telefonares-me, lembra-te do que te disse e conta até dez antes de pegares no telefone. - Quando é que vai ser? - diz ela. - O quê? - digo eu. - Quando é que voltas? - diz ela. - Logo se vê - digo eu. Ela então quis pagar-me uma cerveja, mas eu não deixei. - Guarda o dinheiro - digo eu. Compra um vestido com ele. - Dei também cinco dólares à criada. Afinal, como eu digo sempre, o dinheiro não tem valor; o que tem valor é a maneira como o gastamos. Não pertence a ninguém, para quê poupá-lo. O dinheiro pertence àqueles que conseguem arranjá-lo e conservá-lo. Há aqui um homem em Jefferson que fez uma fortuna a vender produtos estragados aos pretos, e que vivia num quartinho, por cima do armazém, que mais parecia uma pocilga e até era ele que cozinhava e tudo. Há cerca de quatro ou cinco anos adoeceu gravemente. O susto foi tão grande que quando ficou bom entrou para uma igreja e comprou um missionário chinês, cinco mil dólares por ano. Penso muitas vezes na fária que lhe vai dar quando morrer e desco175 brir que o céu não existe e ele se lembrar dos cinco mil dólares por

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ano. É o que eu digo, o melhor era ter morrido logo e assim poupava o dinheiro. Quando a carta já tinha ardido por completo, e eu já me preparava para meter as outras no bolso do casaco, de repente alguma coisa me disse para abrir a da Quentin antes de chegar a casa, mas nessa altura o Earl começou a gritar por mim da loja, e eu tive de as deixar ficar para ir atender um labrego qualquer e esperar que ele decidisse se levava uma correia de charrua de vinte cêntimos ou de trinta e cinco. - Eu se fosse a si levava a melhor - digo eu. - Como é que vocês hão-de querer progredir, a trabalharem com equipamento barato? - S'esta aqui não presta - diz ele - pra que a tem à venda? - Eu não disse que não prestava - digo eu. - O que eu disse é que não era tão boa como a outra. - E como é que sabe que não é? - diz ele. - já as experimentou? - É porque não custa trinta e cinco cêntimos - digo eu. Por isso é que eu sei que não é tão boa. O homem pegou na de vinte cêntimos e fê-la correr entre os dedos. - Acho qu'é mesmo esta aqui qu 1eu vou levar - diz ele. Perguntei-lhe se queria que lha embrulhasse, mas ele enrolou-a e meteu-a no bolso do fato de macaco. Depois tirou do outro bolso um saco de tabaco, desamarrou-o com toda a calma e despejou algumas moedas em cima do balcão. Deu-me vinte cêntimos. Os outros quinze cêntimos já me dão pró almoço - diz ele. - Como quiser - digo eu. - O senhor é quem manda. Mas depois não se venha queixar daqui a um ano quando tiver de comprar outra. - A colheita do próximo ano inda vem longe - diz ele. Finalmente vi-me livre do homem, mas, de cada vez que pegava na carta, surgia qualquer coisa. Eles vinham de todos os lados para o espectáculo. Chegavam aos magotes, prontos a gastarem o seu dinheiro numa coisa que em nada beneficiava a cidade e que nada deixava ficar a não ser o que os chupistas da Câmara Municipal iam dividir entre si, e o Earl a correr de um 176 lado para o outro como uma galinha tonta, e a dizer: - Sim, minha senhora, Mr. Compson vai já atendê-la. Jason, mostra a esta senhora uma batedeira de manteiga, ou, avia-lhe cinco cêntimos de colchetes. Enfim, o Jason gosta de trabalhar. É o que eu digo, nunca tive a vantagem de ir para a universidade porque em Harvard só nos ensinam como nadar à noite sem saber nadar e em Sewanee nem sequer nos ensinam o que é a água. E vou eu e digo podem mandar-me para a universidade estadual: talvez eu aprenda a fazer parar aqui a maquineta com um inalador nasal e depois podem mandar o Ben para a Marinha digo eu ou então para a Cavalaria, porque na Cavalaria castram os cavalos. E depois quando ela mandou a Quentin também lá para casa para eu sustentar, eu disse acho que também está certo, em vez de eu ir para o norte procurar um emprego, eles mandam-me o emprego para aqui e então a Mãe começou a chorar e vou eu e digo não é que eu tenha alguma coisa contra ficar aqui: se isso lhe dá prazer deixo o trabalho e fico a tomar conta dela e a Mãe e a Dilsey que tratem de encher a despensa, ou o Ben. Aluguem-no a um circo; devia haver muita gente que pagasse um dólar para o ver, e ela pôs-se a chorar ainda mais e a dizer meu pobre menino coitadinho e vou eu e digo sim sim ele há-de servir-lhe de muito quando crescer ele que ainda só é uma vez e meia maior do que eu e ela então diz que vai morrer em breve e será um alívio para todos e então eu digo pronto, pronto, faça corno quiser. É sua neta, e isso nenhum dos outros avós pode dizer com segurança. Só que é uma questão de tempo digo eu. Se acredita que a outra vai fazer o que prometeu e não vai tentar vê-Ia, está a enganar-se a si mesma porque a primeira vez foi quando a Mãe não

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parava de dizer graças a Deus que não és um Compson a não ser de nome, porque vocês são tudo o que me resta, tu e o Maury, e vou eu e digo cá por mim passava bem sem o Tio Maury e depois eles chegaram e disseram que estavam prontos para começar. Nessa altura a Mãe parou de chorar. Puxou o véu para a cara e descemos as escadas. O Tio Maury vinha a sair da casa de jantar, a tapar a boca com o lenço. Eles a modos que abriram alas e nós saímos a porta mesmo a tempo de ver a Dilsey que 177 vinha a virar a esquina com o Ben e o T P Descemos os degraus e entrámos para o carro. O Tio Maury só dizia Pobre mana, pobre mana, a mastigar as palavras e a dar palmadinhas na mão da Mãe. A mastigar não sei o quê com as palavras. - Puseste o fumo no braço? - diz ela. - Porque é que eles não partem antes que o Benjamin apareça e faça um escarcéu. Pobre criança. Não sabe de nada. Nem sequer imagina. - Pronto, pronto - diz o Tio Maury, batendo-lhe na mão, e continuando a mastigar as palavras. É melhor assim. Deixa-o viver sem conhecer o sofrimento enquanto puder. - As outras mulheres podem contar com os filhos em alturas como esta - diz a Mãe. - Tu tens-me a mim e ao Jason - diz ele. - Custa-me tanto - diz ela. - Perder assim os dois em menos de dois anos. _ Pronto, pronto - diz ele. Passado um bocado levou a mão disfarçadamente à boca e deitou-os pela janela. Foi então que percebi donde vinha o cheiro que eu sentia. Cravos de cabecinha. Acho que ele pensou que era o mínimo que podia fazer no fime- ral do Pai ou talvez o aparador tivesse pensado que era ainda o Paí e lhe tivesse passado uma rasteira. É o que eu digo, se ele tinha de vender alguma coisa para mandar o Quentin para Harvard, tínhamos ficado todos bem melhor se ele tivesse vendido o aparador e com parte do dinheiro tivesse comprado uma camisa de forças com um braço só. Acho que a explicação que tod Compson deram antes de o dinheiro me chegar às mãos, corno diz a Mãe, é que ele o bebeu todo. Pelo menos, não me lembro de o ouvir falar em vender fosse o que fosse para me mandar para Harvard. Ele continuava a dar-lhe palmadinhas na mão e a dizer: Pobre mana - a dar-lhe palmadinhas com uma das luvas pretas de que recebemos a factura daí a quatro dias no dia vinte e seis que era o mesmo dia do mês em que o Pai a foi buscar para a trazer para casa recusando-se a dizer onde a mãe dela estava, e a Mãe a chorar dizia: - E tu nem sequer falaste com ele? Nem sequer tentaste obrigá-lo a dar algum dinheiro para a criança? e o Pai respondeu: - Não, ela não quer o dinheiro dele para 178 nada - e a Mãe disse: - Por lei ele pode ser obrigado sustentá-Ia. Não pode provar nada, a menos que... Jason Compson. Não me digas que foste estúpido a ponto de contar.. - Cala-te, Caroline - diz o Pai, e em seguida mandou-me ir ajudar a Dilsey a trazer do sótão um berço velho, e eu digo: - Bem, hoje trouxeram-me o trabalho para casa. - Porque sempre tivemos esperanças de que eles se entendessem e ele não a mandasse embora porque a Mãe não se cansava de dizer que ela teria pelo menos consideração suficiente pela família para não me estragar as oportunidades depois de ela e o Quentin terem tido as deles. - E pa onde mais havia de ir? - diz a Dilsey. - Quem mais havia de a criá senão eu? Não criei já todos os outros? - E fizeste um lindo trabalho - digo eu. - Além disso, sempre dá à Mãe um bom motivo para se preocupar. - Trouxemos o berço para baixo e a Dilsey levou-o para o antigo quarto dela. A Mãe desatou a chorar.

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- Então, Miss Ca'line - diz a Dilsey. - Assim vai acordá-Ia. - Aí? - diz a Mãe. - Para ser contaminado por essa atmosfera? A herança que recebeu já lhe vai custar bastante a suportar. - Chega - diz o Pai. - Não te portes como uma tonta. - Por qu'é qu'ela não há-de dormir aqui - diz a Dilsey no mesmo quarto onde eu deitei a mãe todas as noites da vida dela desde que teve idade pa dormir sozinha? - Tu não sabes nada - diz a Mãe. - Ver a minha filha escorraçada pelo marido. Pobre inocentinha - diz ela, olhando para a Quentin. - Nunca saberás o sofrimento que causaste. - Cala-te, Caroline - diz o Pai. - Pa que se põe com essas coisas à frente do Jason? - diz a Dilsey. - Tenho tentado protegê-lo - diz a Mãe. - Sempre tentei protegê-lo de tudo isto. Pelo menos posso fazer os possíveis para a defender. - Só gostava de sabê corr@é que dormi neste quarto lhe pode fazê mal - diz a Dilsey. mais forte do que eu - diz a Mãe. - Sei que só dou 1;79 trabalho, mas também sei que as pessoas não podem desrespeitar impunemente as leis de Deus. - Tolices - diz o Pai. - Bom, Dilsey, leva lá o berço para o quarto de Miss Caroline. Podes dizer que são tolices - diz a Mãe. - Mas ela não pode nunca vir a saber. Não pode ouvir nunca esse nome. Estás a ouvir, Dilsey, proíbo-te de dizeres esse nome na frente dela. Quem me dera, meu Deus, que ela pudesse crescer sem nunca saber que teve mãe. - Não sejas tonta - diz o Pai. - Nunca interferi com a maneira como os educaste - diz a Mãe. - Mas agora chega. Isto tem de ficar decidido esta noite. Ou o nome não será nunca pronunciado à sua frente, ou então uma de nós terá de se ir embora. A escolha é tua. - Está caladinha - diz o Pai. - Isso são nervos. Arma o berço aqui, Dilsey. - E o sinhô tamém tá a modos que doente - diz a Dilsey. Parece uma alma penada. Meta-se na cama e eu faço-lhe um toddy e depois veja se dorme. Aposto que nunca teve uma noite de sono desde que partiu. - Não - diz a Mãe. - Não sabes o que disse o médico? Para que lhe hás-de falar em bebida? Pois se esse é que é o problema dele. Olha para mim. Eu também estou a sofrer, mas não sou fraca ao ponto de me matar com uísque. - Tretas - diz o Pai. - O que é que os médicos sabem? Ganham a vida a dizer às pessoas para fazerem o contrário do que elas fazem, e isso é tudo o que eles sabem sobre estes macacos degenerados que nós somos. - Ao ouvir isto, a Mãe pôs-se a chorar novamente e ele saiu do quarto. Desceu as escadas e logo a seguir ouvi barulho no aparador. Acordei e lá ia ele outra vez pela escada abaixo. A Mãe devia ter adormecido ou coisa parecida, pois a casa estava finalmente em silêncio. Ele próprio se esforçava por não fazer barulho, porque eu a bem dizer não o ouvia, apenas a fralda da camisa a roçar-lhe nas pernas nuas díante do aparador. A Dilsey armou o berço, despiu-a e meteu-a lá dentro. Ela ainda não tinha acordado desde que ele a trouxera. 180 - já tá quase grande de mais pé, berço - diz a Dilsey. Pronto, já tá. Vou deitar um colchão no chão ali no corredor qu'é pa não tê de se levantá de noite. - Não vou conseguir dormir - diz a Mãe. - Vai para tua casa. Eu não me importo. Sinto-me feliz a dedicar-lhe o resto da minha vida, se ao

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menos puder.. - Vá, reja caladinha - diz a Dílsey. - A gente vai tomá conta dela. E agora vá pá cama tamém - diz ela, falando comigo. - Amanhã tem d'ir pá escola. Saí do quarto, mas a Mãe chamou-me outra vez e agarrou-se a mim a chorar. 1 - Tu és a minha única esperança - diz ela. - Todas as noites agradeço a Deus por existires. - Enquanto esperávamos que eles começassem, ela diz Graças a Deus, já que Ele mo quis levar também, que ficaste tu comigo e não o Quentin. Graças a Deus que tu não és um Compson, porque tudo o que me resta agora és tu e o Maury e vou eu e digo, Enfim eu cá passava bem sem o Tio Maury. Bem, ele continuava a dar-lhe palmadinhas na mão com a luva preta, falando com a boca virada para o lado. Só as tirou quando chegou a vez de ele pegar na pá. Foi para junto dos primeiros, dos que estavam protegidos por chapéus de chuva, a bater corri os pés no chão para sacudirem a lama que se lhes agarrava aos sapatos e às pás, e que caía com um ruído seco, e quando voltei para trás e me abriguei atrás da carreta vi-o escondido por detrás de uma campa, de garrafa na mão a beber um trago. Julguei que nunca mais acabava e eu que estava de fato novo e tudo, mas por acaso ainda não havia muita lama acumulada nas rodas, mas a Mãe viu-o e diz não sei quando vais poder ter outro e o Tio Maury diz: - Pronto, pronto, não te preocupes. Eu estou aqui para o que for preciso. E estava mesmo. Sempre. A quarta carta era dele. Mas nem precisava de abri-la. Podia escrevê-la eu ou dizer-lha de cor, juntando-1h e dez dólares pelo sim pelo não. No entanto tinha um pressentimento quanto à outra carta. Parecia-me que já estava na hora de ela recomeçar com os velhos truques. Ela percebeu com quem estava a lidar logo da primeira vez. Percebeu rapidamente que eu não era feito da mesma massa que o Pai. Quando 181 eles começaram a enchê-la até acima claro que a Mãe desatou a chorar, e o Tio Maury meteu-a no carro e levou-a dali. Tu podes voltar com outra pessoa diz ele alguém te há-de dar boleia. Tenho de ir levar a tua mãe e eu tive vontade de dizer, Então devia ter-se lembrado de trazer duas garrafas em vez de uma mas lembrei-me do sítio onde estávamos e deixei-os partir. Bem se importavam eles se eu estava muito ou pouco molhado. E depois sempre era um bom pretexto para a Mãe se preocupar com a pneumonia que eu podia apanhar. E enquanto pensava nisto, ia-os vendo deitar a terra lá para dentro, calcando-a como se estivessem a fazer um cigarro de mortalha ou coisa parecida, ou um muro, mas comecei a ficar mal disposto e resolvi ir dar uma volta. Achei que se seguisse em direcção à cidade, eles acabavam por me alcançar e haviam de querer por força dar-me boleia. Por isso caminhei na direcção do cemitério dos negros. Abriguei-me debaixo de uns ciprestes, onde não chovia muito, só pingava, e de onde podia ver quando terminassem e se fossem embora. Daí a pouco já se tinham ido todos embora. Esperei mais um minuto e saí do meu esconderijo. Como tive de ir pelo carreiro para não pisar a relva empapada, só quando já estava muito perto é que a vi, de pé, embrulhada numa capa preta a olhar para as flores. Reconheci-a logo, mesmo antes de ela se voltar e olhar para mim, levantando o véu. Olá, Jason - diz ela, estendendo-me a mão. Apertámos as mãos. - Que vieste cá fazer? - digo eu. - Então não lhe prometeste que nunca mais voltavas? Julguei que tivesses mais bom senso. - Ah julgaste? - diz ela. Olhou de novo para as flores. Deviam valer cinquenta dólares. Alguém tinha colocado também um ramo na campa do Quentin. - Sério? - diz ela.

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- Mas não estou surpreendido - digo eu. - De ti já espero tudo. Não ligas ao que ninguém diz. Não queres saber de ninguém para nada. - Ah sim - diz ela -, o teu emprego. - Olhou para a sepultura. - Lamento muito, Jason. - Está-se mesmo a ver - digo eu. - Agora és toda falinhas 182 mansas. Mas não precisavas de ter voltado. Não ficou nada. Pergunta ao Tio Maury, se não acreditas em mim. - Eu não quero nada - diz ela. Olhou para a sepultura. Por que não me mandaram dizer? - diz ela. - Soube por acaso, pelo jornal. Na última página. Calhou. Não respondi. Estávamos ali os dois a olhar para a sepultura e então lembrei-me de quando éramos pequenos e coisas assim e comecei outra vez a sentir-me mal, como se estivesse a enlouquecer, a pensar que agora o Tio Maury ia passar a vida metido lá em casa, a pôr e a dispor como agora que me deixara voltar para casa debaixo de chuva. E então vou eu e digo: - Está-se mesmo a ver que lamentas. Vires a correr meter o nariz assim que ele morreu. Mas não te serve de nada. Não penses que vais aproveitar isto para te vires meter aqui outra vez. Se não te aguentas no cavalo que arranjaste, anda a pé - digo eu. - já nem sabemos o teu nome lá em casa. Estás a perceber? já nem sequer sabemos o teu nome. Era bem melhor para ti se tivesses ficado com ele e com a Quentin - digo eu. - Sabias? - Eu sei, Jason - diz ela, olhando para a sepultura. - Se arranjares maneira de eu a ver só por um bocadinho, dou-te cinquenta dólares. - E onde é que tu tens cinquenta dólares? - digo eu. - Fazes-me isso? - diz ela, sem olhar para mim. - Mostra-os lá - digo eu. - Não acredito que tenhas cinquenta dólares. Vi-a vasculhar por baixo da capa, e depois estender-me a mão. Diabos me levem se não estava cheia de dinheiro. E até vi duas ou três das amarelas. - Ele ainda te dá dinheiro? - digo eu. - Quanto é que ele te manda? - Dou-te cem - diz ela. - Então? - Espera lá - digo eu. - Mas tem de ser como eu disser. Não quero que ela descubra. Nem por mil dólares. - Está bem - diz ela. - Será como tu disseres. Só quero vê-Ia por um bocadinho. Não vou pedir para ficar nem nada. Vou-me logo embora. Dá-me o dinheiro - digo eu. 183 - Só depois - diz ela. - Não confias em mim? - digo eu. - Não - diz ela. - Conheço-te bem. Crescemos juntos. - Olha quem fala - digo eu. - Bom - digo eu tenho tenho de sair desta chuva. Adeus. - Fingi que me ia embora. - Jason - diz ela. Parei. - Sim? - digo eu. - Despacha-te. Estou a ficar todo molhado. - Está bem - diz ela. - Toma. - Não se via ninguém. Voltei para trás e peguei no dinheiro. Ela tinha-o ainda bem seguro. - Vais fazer o que te pedi? - diz ela, fixando-me por baixo do véu. - Prometes? - Abre a mão - digo eu. - Queres que passe alguém e nos veja? Ela abriu a mão. Meti o dinheiro no bolso. - Fazes-me isso, Jason? - diz ela. - Se houvesse outra maneira, não te pedia. - Podes estar certa de que não há mesmo outra maneira digo eu. - Claro que faço. Já disse que fazia, não disse? Mas tens de fazer o que eu disser. - Está bem - diz ela. - Eu faço. - Disse-lhe onde havia de esperar e fui até à cocheira. Estuguei o passo e cheguei lá precisamente quando eles estavam a desatrelar a carreta. Perguntei se já tinham pago o

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trabalho e ele disse que Não e eu disse que Mrs. Compson se tinha esquecido de uma coisa e que precisava dela, e eles deixaram-me levar a carreta. O cocheiro era o Mink. Comprei-lhe um charuto e fomos dando voltas até começar a escurecer nas árvores mais afastadas onde eles já não o podiam ver. Nessa altura o Mink disse que tinha de levar de volta os cavalos e eu disse-lhe que lhe comprava outro charuto e então metemos pela rua das traseiras e eu entrei em casa pelo pátio. Fiquei no corredor até ouvir a Mãe e o Tio Maury lá em cima, e nessa altura voltei para a cozinha. Ela e o Ben estavam lá com a Dilsey. Disse à Dilsey que a Mãe a estava a chamar e levei-a para a sala. Encontrei a gabardina do Tio Maury, embrulhei-a nela, peguei-lhe ao colo, saí pelas traseiras e subi para a carreta. Disse ao Mink que fosse até à estação. Ele estava com medo de passar pelo estábulo, e por isso tivemos de ir de volta. Vi-a na esquina 184 junto ao candeeiro e disse ao Mink que passasse rente ao passeio e que quando eu dissesse Agora lhes desse com o chicote. Tirei-a da gabardina, encostei-a à janela e a Caddy, ao vê-Ia, deu um salto para a frente. - Chega-lhes, Mink! - digo eu, e o Mink deu-lhes com o chicote e passámos por ela como um foguete. - Agora mete-te no comboio como prometeste - digo eu. Pela janela de trás vi-a a correr atrás de nós. - Dá-lhes com força - digo eu. Vamos para casa. - Quando dobrámos a esquina ela ainda vinha a correr. À noite, contei o dinheiro outra vez e guardei-o. Já não me sentia tão mal. Foi para aprenderes digo eu. Agora já percebeste que não me podes fazer perder o emprego e ficares a rir. Nunca me passou pela cabeça que ela fosse faltar ao prometido e não apanhasse o comboio. Mas a verdade é que não conhecia as mulheres; era suficientemente ingénuo para acreditar em tudo o que diziam, pois na manhã seguinte, diabos me levem se ela não me entrou pelo armazém dentro; mas, vá lá, teve o bom senso de cobrir a cara com o véu e não falar com ninguém. Era sábado de manhã, porque eu estava lá dentro e ela entrou que nem um furacão e veio direita à minha secretária. - Mentiroso - diz ela. Grande mentiroso. - Estás doida ou quê? digo eu. - Que vem a ser isto? Entrares por aqui dentro dessa maneira? - Ela ia a falar, mas eu calei-a. - já me custaste um emprego; vê lá se também queres que eu perca este? Se tens alguma coisa para me dizer, encontramo-nos depois de escurecer. E o que é que tens para me dizer? digo eu. - Não fiz tudo o que prometi? Disse-te que a vias por um minuto, não foi? E tu viste-a, não viste? - Ela limitou-se a ficar ali parada a olhar para mim, a tremer como se estivesse com as febres, com as mãos crispadas e a abanar a cabeça. - Fiz exactamente aquilo que prometi - digo eu. - Tu é que mentiste. Prometeste que apanhavas aquele comboio, não prometeste? Prometeste ou não prometeste? Se julgas que te devolvo o dinheiro, experimenta só - digo eu. - Nem que fossem mil dólares. Ainda me estavas a dever dinheiro pelo risco que eu corri. E se eu descubro ou se me vêm dizer que o comboio 17 partiu 185 e tu ficaste na cidade - digo eu - conto tudo à Mãe e ao Tio Maury e então podes mirrar à espera de a tornares a ver. - Ela continuava ali na minha frente, a olhar para mim e a torcer as mãos. - Diabos te levem - diz ela. - Diabos te levem. - Podes dizer o que quiseres - digo eu. - Mas lembra-te, depois de partir o número 17, conto-lhes tudo. Depois de ela sair, senti-me melhor. Agora vai pensar duas vezes antes de me privar de um emprego que me estava prome- tido penso eu. Nessa

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altura eu era ainda um miúdo. Acreditava nas pessoas quando elas diziam que iam fazer coisas, mas aprendi a lição. Além disso, é o que eu digo, não preciso de ninguém, sei muito bem cuidar dos meus interesses como sempre fiz. Nisto, lembrei-me da Dilsey e do Tio Maury. Lembrei-me como ela era capaz de convencer a Dilsey e que o Tio Maury faria qualquer coisa por dez dólares. E ali estava eu, sem poder sair do armazém para defender a minha própria mãe. É como ela diz, se um de vocês tinha de partir, graças a Deus que foste tu que ficaste contigo eu posso contar e eu digo bem não me parece que chegue alguma vez a ir para tão longe do armazém que deixe de estar ao seu alcance. Alguém tem de zelar pelo pouco que nos resta, acho eu. Por isso, assim que cheguei a casa tratei de passar um responso à Dilsey. Disse-lhe que a outra tinha lepra e fui buscar a bíblia e li-lhe a passagem onde falava de como a carne de uma pessoa apodrecia, e disse-lhe que se ela se chegasse ao Ben ou à Quentin eles também a apanhavam. julgava eu que estava tudo resolvido até ao dia em que cheguei a casa e dei com o Ben a gritar. Berrava que se fartava e ninguém o conseguia calar. A Mãe disse, Bem, lá vão ter de lhe dar o chinelo. A Dilsey fingiu que não ouvira. A Mãe repetiu o que tinha dito e eu ofereci-me para o ir buscar porque já não suportava aquele maldito barulho. É o que eu digo, sou capaz de suportar muita coisa não espero nada deles, mas se tenho de trabalhar o dia todo no raio do armazém tenho ao menos o direito de ter um pouco de paz e sossego ao almoço. Disse então que ia lá eu e a Dilsey diz muito depressa: - Jason! Pronto, percebi imediatamente o que se passava, mas só para 186 ter a certeza fui buscar o chinelo e, tal como eu pensava, ele mal o viu parecia que o íamos matar. Então, obriguei a Dilsey a confessar e depois contei tudo à Mãe. Tivemos de a levar para a cama, e quando as coisas serenaram um pouco a Dilsey ouviu das boas. Pelo menos tanto quanto vale a pena ralhar com um negro. É o problema dos criados pretos; quando já estão na família há muitos anos acham-se tão importantes quejá não valem nada. Pensam que mandam na família toda. - Sempre gostava de sabê que mal faz deixá a pob'e criança vê a sua próp'ia filha - diz a Dilsey. - Se Mr. Jason inda estivesse vivo tud'era bem diferente. - Só que Mr. Jason não está - digo eu. - Sei que não me ligas nenhuma, mas acho que à Mãe sempre ligas alguma coisa. Continua a arreliá-la assim até a mandares também para a sepultura, e então já podes encher a casa de canalhas e de cabras. Mas para que a havias de ter deixado ver aquele desgraçado? - O menino é um homem muito duro, Jason, s'é que chega a sê um homem - diz ela. - Dou graças b Sinhô por me tê dado mais coração qu'a si, mesmo qu'o meu seja negro. - Pelo menos sou homem suficiente para ter sempre a despensa cheia - digo eu. - E se voltas a fazer isto, nunca mais de lá comes nada. Assim, quando ela voltou, disse-lhe que se convencesse outra vez a Dilsey, a Mãe a despedia, mandava o Ben para Jackson, pegava na Quentin e se ia embora para muito longe. Ela ficou parada a olhar para mim. Não havia nenhum candeeiro perto e por isso não lhe via bem a cara. Mas sentia o seu olhar pousado em mim. Quando éramos pequenos e ela se zangava e não podia fazer nada o seu lábio superior começava aos saltos. De cada vez que saltava deixava mais um bocado dos dentes a descoberto, e ela continuava hirta que nem um pau, sem mover um músculo, excepto o do lábio, que saltava cada vez mais alto. Mas não dizia nada. E ela só diz:

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- Está bem. Quanto queres? - Bom, se para a veres da janela pagaste cem... - digo eu. E daí em diante passou a portar-se muito bem, e só uma vez é que pediu para ver o extracto da conta. 1811 - Sei que estão em nome da Mãe - diz ela. - Mas quero ver o extracto bancário. Quero ver com os meus olhos para onde vão os cheques. _ Isso é um assunto privado da Mãe - digo eu. - Se julgas que tens algum direito de bisbilhotar os seus assuntos privados, eu digo-lhe que estás convencida de que os cheques estão a ser desviados e que queres fazer uma auditoria porque não confias nela. Ela não disse nada nem se mexeu. Ouvi-a apenas murmurar Maldito, maldito, maldito. - Podes dizê-lo bem alto - digo eu. - Acho que não é segredo nenhum o que pensamos um do outro. Se calhar queres que te devolva o dinheiro - digo eu. - Ouve, Jason - diz ela. - Agora não me mintas sobre ela. Eu não vou pedir para ver nada. Se não chegar, passo a mandar mais todos os meses. Só quero que prometas que ela... que ela... Tu podes, se quiseres. Coisas para ela. Trata-a bem. Pequenas coisas que eu não posso, que eles não me deixam... Mas tu não vais fazer nada. Nunca tiveste um pingo de bondade aí dentro - diz ela. - Se convenceres a Mãe a deixá-la voltar para mim, dou-te mil dólares. - Tu não tens mil dólares - digo eu. - Sei que estás a mentir. - Isso é que eu tenho. Vou ter. Posso arranjá-los. - E até sei como é que os vais arranjar - digo eu. - Vais arranjá-los da mesma maneira que a arranjaste a ela. E quando ela tiver idade suficiente... - Nessa altura pensei que ela fosse bater-me, e depois fiquei sem saber o que é que ela ia fazer. Por um momento, parecia um boneco a que se tivesse dado corda de mais, pronto a rebentar. - Estou louca - diz ela. - Completamente louca. Eu não posso criá-la. Fiquem vocês com ela. Não sei o que me deu. Jason - diz ela, agarrando-me no braço. As suas mãos ferviam. Tens de me prometer tomar conta dela, ela é da tua família; do teu sangue. Promete, Jason. Tu tens o nome do Pai, achas que eu tinha de lhe pedir duas vezes? Uma que fosse? _ Achas? - digo eu. - Ele de facto deixou-me alguma coi188 sa. Que queres que eu faça? - digo eu. - Que compre um avental e um carrinho de bebé? Não fui eu que te meti nesta alhada - digo eu. - Corro mais riscos do que tu, porque tu não tens nada a perder. Por isso se esperas que... - Não - diz ela, e começou a rir e a tentar conter o riso ao mesmo tempo. - Não. Eu não tenho nada a perder - diz ela, fazendo aquele ruído característico, levando as mãos à boca. N-n-nada - diz ela. - Toma - digo eu. - Pára com isso! - Estou a t-t-tentar - diz ela, tapando a boca com as mãos. Meu Deus, meu Deus. 1 - Vou-me embora - digo eu. - Não quero que me vejam aqui. E agora sai da cidade, estás a ouvir? - Espera - diz ela, prendendo-me o braço. - Já parou. Não volta a acontecer. Prometes, Jason? - diz ela, e eu sentia em mim os olhos dela como se estivessem a tocar-me. - Prometes? A Mãe... aquele dinheiro... se ela às vezes precisar de alguma coisa... Se eu mandar cheques para ela, além dos outros, dás-lhos? E não dizes nada? Ajudas-me a que ela tenha coisas como as outras meninas?

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- Claro - digo eu. - Desde que te comportes e faças o que eu mandar. E depois o Earl apareceu de chapéu na mão e diz: - Vou dar um pulo ao bar do Roger e comer qualquer coisa. Não vai dar para irmos almoçar a casa. - Por que é que não vai dar tempo? - digo eu. - Por causa do espectáculo que estão a montar na cidade diz ele. - Também vão actuar de tarde, e as pessoas querem despachar as compras a tempo de irem para o espectáculo. Por isso o melhor é irmos num instante ao Roger. - Está bem - digo eu. - O estômago é seu. Se quer ser escravo do negócio, por mim está tudo bem. - Então tu nunca serás escravo de nenhum negócio - diz ele. - Só se for de um negócio do Jason Compson - digo eu. Por isso quando voltei para dentro e abri a carta a única coisa que me surpreendeu foi ser uma ordem de pagamento e não um 189 cheque. Sim, senhor. Não se pode mesmo confiar nelas. Depois do que me arrisquei, arriscando-me a que a Mãe descobrisse que ela vinha à cidade uma ou até duas vezes por ano, e eu a ter de contar mentiras à Mãe. E agora era esta a paga. E não me admirava nada se ela tivesse avisado os correios para não deixarem ninguém levantar o dinheiro a não ser a outra. Dar cinquenta dólares a uma miúda daquelas. E eu que nunca vira cinquenta dólares até ter vinte e um a-nos, e ver os outros rapazes com as tardes e os sábados todos livres e eu a trabalhar no armazém. É como eu digo, como é que eles querem que alguém a controle, com ela a dar-lhe dinheiro pelas nossas costas? Ela tem a mesma casa que tu tiveste, digo eu, e a mesma educação. Parece-me que a Mãe sabe melhor o que ela precisa do que tu, que nem sequer tens uma casa para morar. - Se lhe queres mandar dinheiro - digo eu manda-o para a Mãe, não lho dês directamente a ela. Para eu continuar a correr este risco mês sim mês não, tens de fazer o que eu digo. Se não acabou-se. E precisamente quando eu me preparava para começar, porque se o Earl pensava que eu ia numa fugida ao Roger para engolir à pressa dois patacos de indigestão por causa dele, estava muito enganado. Posso não estar propriamente com os pés plantados em cima de uma secretária de mogno, mas ganho por aquilo que faço dentro do armazém e, se quando saio para a rua não posso levar uma vida civilizada, vou procurar o lugar onde isso seja possível. Sei cuidar dos meus interesses; não preciso das secretárias de mogno de ninguém. Por isso, precisamente na altura em que eu estava pronto para começar, tive de largar tudo e ir a correr vender meia dúzia de pregos a um labrego, enquanto o Earl comia à pressa a sanduíche e já estava muito provavelmente de regresso, e foi então que descobri que já não tinha cheques na caderneta. Lembrei-me até de que já tinha reparado que era preciso ir buscar mais, mas agora já era muito tarde, e então levantei os olhos e lá estava ela. Na porta das traseiras. Ouvi-a perguntar por mim ao velho Job. Só tive tempo de meter tudo na gaveta e fechá-la. Ela aproximou-se da secretária. Olhei para o relógio. -já almoçaste? - digo eu. - É meio-dia; ouvi bater o reló190 gio mesmo agora. Deves ter ido a casa num instante, para já estares aqui. - Não vou almoçar a casa - diz ela. - Recebeste alguma carta hoje? - Estavas à espera de alguma carta? - digo eu. - Tens algum namorado que saiba escrever? - É da minha mãe - diz ela. - Veio alguma carta da minha mãe? - diz ela, olhando para mim. - A Mãe recebeu uma dela - digo eu, - Mas não a abri. Tens de esperar

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até ela a abrir. Ela depois mostra-ta, acho eu. - Por favor, Jason - diz ela, sem prestar atenção. - E para mim veio alguma? - O que é que se passa? - digo eu. - Nunca te vi tão ansiosa por causa de ninguém. Deves estar à espera de que ela te mande dinheiro. - Ela disse que... - diz ela. - Por favor, Jason - diz ela. - Veio? - Hoje finalmente deves ter ficado na escola - digo eu. Onde te ensinaram a pedir por favor. Espera um instante, vou atender aquele freguês. Fui atender o homem. Quando me virei para voltar para dentro, ela estava escondida atrás da secretária. Corri. Contornei a secretária e apanhei-a quando ela tirava a mão da gaveta. Para lhe tirar a carta tive de lhe bater com os nós dos dedos na secretária até ela a largar. - Querias, não querias - digo eu. - Dá-ma - diz ela. - Tu já a abriste. Dá-ma cá. Por favor, Jason. É minha. Vi o meu nome. - Dou-te é umas boas correadas, isso sim - digo eu. Isso é que eu te dou. A mexer nos meus papéis. - Traz algum dinheiro? - diz ela, tentando agarrá-la. Ela disse que me mandava dinheiro. Ela prometeu. Dá-ma. - Para que queres tu o dinheiro? - digo eu. - Ela disse que mandava - diz ela. - Dá-me a carta. Por favor, Jason. Nunca mais te peço nada, se ma deres desta vez. - Dou-ta, mas tens de esperar - digo eu. Tirei a carta do sobrescrito com a ordem de pagamento e dei-lhe a carta. Ela não 191 quis saber da carta e só queria agarrar a ordem de pagamento. Primeiro tens de assinar aqui - digo eu. - Quanto é? - diz ela. - Lê a carta - digo eu. - Lá deve dizer. Ela leu-a a correr, num abrir e fechar de olhos. - Não diz - diz ela, olhando para mim. Deitou a carta para o chão. - Quanto é? - São dez dólares - digo eu. - Dez dólares? - diz ela, trespassando-me com o olhar. - E devias estar muito contente por receberes esse dinheiro digo eu. - Uma miúda da tua idade. Que pressa é essa agora para receberes o dinheiro? - Dez dólares - diz ela, como se falasse a dormir. - Só dez dólares? - Tentou agarrar a ordem de pagamento. - Estás a mentir - diz ela. - Gatuno! - diz ela. - Gatuno! - Querias, não querias? - digo eu, mantendo-a à distância. - Dá-me isso! - diz ela. - É minha. Ela mandou-o para mim. Quero vê-lo. já disse. - Ah queres? - digo eu, agarrando-a. - E como é que vais fazer? - Deixa-me vê-lo, Jason. - diz ela. - Por favor. Nunca mais te peço nada. - Julgas que estou a mentir, não julgas? - digo eu. - Só por causa disso, não te deixo ver. - Mas só dez dólares - diz ela. - Ela disse que... ela disse-me que... Jason, por favor.. por favor. Eu preciso do dinheiro. Preciso mesmo. Dá-me isso. Faço qualquer coisa para mo dares. - Diz-me para que precisas tanto do dinheiro - digo eu. - Preciso, pronto - diz ela. Olhava-me bem de frente. De repente deixou de olhar para mim, embora os olhos continuassem na mesma posição. Percebi que ia mentir. - É que devo um dinheiro - diz ela. - Tenho de o pagar. E tem de ser hoje. - A quem? - digo eu. Ela torcia as mãos. Vi que estava à procura de uma mentira para dizer. - Tens andado a fazer compras a crédito outra

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vez? - digo eu. - Nem precisas de responder. Se houver alguém nesta cidade que te venda alguma coisa a crédito depois do que eu lhes disse, já cá não está quem falou. 192 - É uma rapariga - diz ela. - É uma rapariga. Pedi dinheiro emprestado a uma rapariga. E tenho de lho pagar. Dá-me isso, Jason. Por favor. Eu faço qualquer coisa. Eu preciso disso. A Mãe depois paga-te. Eu escrevo-lhe para ela te pagar e digo-lhe que nunca mais lhe peço nada. Podes ver a carta que eu escrever. Por favor, Jason. Eu preciso desse papel. - Diz-me para que o queres, e logo se vê - digo eu. - Vá diz lá. - Mas ela ficou parada a torcer o vestido com as mãos. Está bem - digo eu. - Se dez dólares não te chegam, leva a ordem de pagamento para casa para a Mãe e já sabes o que acontece. Mas claro, se estás assim tão rica, não precisas de dez dólaEla continuou parada, de olhos no chão, a resmungar sozinha. - Ela disse que me mandava dinheiro. Ela aqui diz que manda dinheiro e tu dizes que não. Ela diz aqui que mandou muito dinheiro. E diz que é para mim. Que parte é para mim. E tu dizes que não velo dinheiro nenhum. - Sabes tanto do assunto como eu - digo eu. - Viste o que aconteceu àqueles cheques. - Pronto, está bem - diz ela, sem tirar os olhos do chão. Dez dólares - diz ela. - Sejam dez dólares. - E agradece a Deus serem dez dólares - digo eu. - Toma - digo eu. Pus a ordem de pagamento virada ao contrário sobre a secretária, e prendi-a com a mão. - Assina aqui. - Deixas-me ver? - diz ela. - Só quero olhar. Seja o que for que lá venha, só quero os dez dólares. Tu podes ficar como resto. Só quero ver. - Não depois da maneira como te portaste - digo eu. Tens de aprender uma coisa, que é que quando eu te digo para fazeres qualquer coisa, tens mesmo de fazer. Assina aqui nesta linha. Ela pegou na caneta, mas em vez de assinar, ficou parada de cabeça curvada, com a caneta a tremer na mão. Tal e qual a mãe. Meu Deus - dizia ela. - Meu Deus. - É - digo eu. - É uma coisa que tens de aprender nem que seja a última coisa que aprendes. Vá, assina e sai daqui para fora. 193 Ela assinou. - Onde está o dinheiro? - diz ela. Peguei na ordem de pagamento, sequei-a com o mata-borrão e meti-a no bolso. Depois dei-lhe os dez dólares. - Agora volta para a escola, estás a ouvir? - digo eu. Não respondeu. Amarfanhou a nota na mão como se fosse um trapo e saiu pela porta da frente no preciso momento em que o Earl vinha a entrar. Entrou com ele um cliente e pararam ta. junto à porta. - Muito trabalho? - diz o Earl. - Nem por isso - digo eu. Ele olhou lá para fora. - A@uele carro ali é o teu? - diz ele. - É melhor não pensares em ires almoçar a casa. Deve aparecer muita gente antes de o espectáculo começar. Vai comer qualquer coisa ao Roger e manda pôr na minha conta. - Muito agradecido - digo eu. - Mas ainda posso pagar o meu almoço. E lá ficou ele, a vigiar a porta como um falcão até eu voltar. Bem, foi só por pouco tempo; eu despachei-me o mais depressa que pude. Da última vez tinha dito olha é o último; não te podes esquecer de ir buscar mais. Mas quem pode lembrar-se de alguma coisa nesta correria? E logo o raio do espectáculo havia de chegar no dia em que eu tinha de

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correr a cidade à procura de um cheque, além de tudo o mais que tinha de fazer na loja e o Earl à porta, de olho alerta como um falcão. Fui à tipografia e disse que queria pregar uma partida a um amigo, mas ele não tinha nada. Todavia mandou-me ir ao antigo teatro da ópera, onde tinham arrecadado uma data de papelada que viera do antigo Banco Merchant & Farmer, quando faliu, e eu lá meti por mais umas tantas ruelas para o Earl não me ver até que encontrei o velho Simmons que me deu a chave e fui até lá procurar. Acabei por encontrar um maço de cheques de um banco de Saint Louis. E claro que havia de ser desta vez que ela ia olhar bem para o cheque. Mas não tinha outro remédio. Não podia perder mais tempo. Voltei para o armazém. Esqueci-me de uns papéis que a Mãe quer pôr no banco - digo eu. Fui para a secretária e passei o cheque. Com a pressa com que estava, digo até para comigo que é muito bom a vista dela estar a enfraquecer, com aquela putazinha dentro de casa, uma cristã 194 temente a Deus como a Mãe. Digo sabe tão bem como eu no que ela se vai tornar, mas Isso é lá consigo, se a quer manter e criar só por causa do Pai. E ela começa a chorar e a dizer que ela é do seu sangue e eu limito-me a dizer Está bem. Faça o que quiser. Eu aguento se a Mãe aguentar. Dobrei a carta muito bem, fechei-a e saí. - Vê se não te demoras mais que o estritamente necessário - diz o Earl. - Está bem - digo eu. Fui ao posto do telégrafo. Os espertalhões estavam lá todos. - Então já algum de vocês'ganhou o tal milhão? - digo eu. - Quem é que pode fazer alguma coisa com um mercado destes? - diz o Doc. - Como é que está? - digo eu. Entrei e olhei. Estava três pontos abaixo da abertura. - Eh rapazes, vocês não se vão deixar abater por uma coisa sem importância como o mercado do algodão, pois não? - digo eu. - Julguei que fossem mais espertos. - Espertos uma ova - diz o Doc. - Estava doze abaixo ao meio-dia. Limpou-me. - Doze pontos? - digo eu. - E por que é que não me disseram? Por qu 'é que não me disseram? - digo eu ao telegrafista. - Eu transmito o que me chega às mãos. Não dirijo nenhuma bolsa clandestina. - Está a armar-se em esperto, ou quê? - digo eu. - Parece-me que com o dinheiro que aqui gasto, podia bem ter-se dado ao trabalho de me telefonar. Ou será que a sua maldita empresa está de conluio com os especuladores do leste? Não respondeu. Fingiu que estava muito ocupado. - Está a pisar o risco. Se continua assim, ainda vai ter de ir trabalhar para ganhar a vida. - O que é que se passa consigo hoje? - diz o Doc. - Ainda está com três pontos de vantagem. - Sim - digo eu. - Se estivesse a vender. Mas não me lembro de ter dito que estava. E vocês, tudo raso? -A mim apanharam-me duas vezes - diz o Doc. - Inverti mesmo a tempo. 195 - Bem - diz o 1. O. Snopes -, eu às vezes ganho; é justo que de vez em quando sejam eles a ganhar. Deixei-os a comprar e a vender uns aos outros a um níquel o ponto. Encontrei um negro e mandei-o buscar o meu carro e fiquei à espera na esquina. Não conseguia ver o Earl a olhar para um lado e para o outro e a consultar o relógio, porque de onde estava não via a porta do armazém. Demorou para aí uma semana para trazer o

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carro. - Por onde andaste? - digo eu. - Às voltas por onde essas pegas te vissem? - Vim o mais depressa que pude - diz ele. - Mas tive de contornar a praça, com aqueles carros todos. Ainda estou para encontrar o negro que não tenha um alibi perfeito o que quer que seja. Mas deixem um à solta num carro e ele tem de se exibir. Entrei e dei a volta à praça. Vi o Earl do outro lado, à porta. Fui direito à cozinha e disse à Dilsey que se despachasse com • almoço. - A Quentin inda não chegou - diz ela. - E depois? - digo eu. - Daqui a pouco estás a dizer que • Luster ainda não tem fome. A Quentin sabe a que horas se come nesta casa. Despacha-te. A Mãe estava no quarto. Dei-lhe a carta. Abriu-a, tirou o cheque e ficou sentada com ele na mão a olhar para ele. Fui buscar a pá da lareira e dei-lhe um fósforo. - Vá - digo eu. - Acabe com isso. Não tarda está a chorar. Ela pegou no fósforo, mas não o acendeu. Ficou sentada a olhar para o cheque. Tal como eu previra. Detesto fazer isto - diz ela. - Tornar ainda mais pesado o teu fardo com a Quentin... - Cá nos havemos de remediar - digo eu. - Vá, acabe com isso. Mas ela continuava imóvel de cheque na mão. - Este é de um banco diferente - diz ela. - Os outros têm sido sobre um banco de Indianapolis. - Pois é - digo eu. - As mulheres também fazem destas coisas. 196 - Fazer o quê? - diz ela. - Ter dinheiro em dois bancos diferentes - digo eu. - Oli - diz ela. E examinou o cheque. - Fico contente por saber que ela está tão... que tem tanto... Deus sabe que estou a fazer o que é certo - diz ela. - Então - digo eu. - Vamos lá. Acabe com a brincadeira. - Brincadeira? - diz ela. - Quando penso que... - Julguei que era por brincadeira que queimava todos os meses estes duzentos dólares - digo eu. - Vá. Quer que eu acenda o fósforo? - Podia fazer um esforço,e aceitá-los - diz ela. - Pelos meus filhos. Não tenho amor-próprio. - Nunca se sentiria bem - digo eu. - Sabe que não. Está dito, está dito. Nós cá nos havemos de arranjar. - Deixo tudo ao teu cuidado - diz ela. - Mas por vezes receio que ao fazer isto vos esteja a privar do que por direito vos pertence. Talvez venha a ser castigada. Se quiseres, engulo o orgulho e aceito os cheques. - Qual seria a vantagem de começar agora, depois de ter passado quinze anos a destruí-los? - digo eu. - Se continuar a fazê-lo, não perdeu nada, mas se começasse agora a aceitá-los, teria perdido cinquenta mil dólares. E cá nos temos arranjado, não temos? - digo eu. - Ainda não a vi na sopa dos pobres. - É - diz ela. - Nós, os Bascorribs, não precisamos da caridade de ninguém. E muito menos da de uma mulher perdida. Acendeu o fósforo, pegou fogo ao cheque e deixou-o a arder em cima da pá; depois fez o mesmo ao envelope e ficou a vê-los consumir-se. - Tu não sabes o que isto é - diz ela. - Graças a Deus nunca saberás o que sente uma mãe.

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- Há muitas mulheres no mundo na situação dela - digo eu. - Mas não são minhas filhas - diz ela. - Não é por mim diz ela -, eu recebia-a de volta de bom grado, com os seus pecados e tudo, porque é sangue do meu sangue. É pela Quentin. Bem, podia ter-lhe dito que não havia grande probabilidade 197 de alguém magoar a Quentin, mas como sempre digo, não sou muito exigente, mas quero poder comer e dormir sem ter de aturar um par de mulheres a chorarem pelos cantos e a lamentarem-se. - E por ti - diz ela. - Sei o que pensas dela. - Deixe-a voltar - digo eu. - Lá por isso... - Não - diz ela. - Devo isso à memória do teu Pai. - Quando ele passava a vida a tentar convencê-la a deixá-la voltar para casa quando o Herbert a pôs fora? - digo eu. - Tu não percebes nada - diz ela. - Sei que não pretendes tornar isto ainda mais difícil para mim, mas é a mim que compete sofrer pelos meus filhos - diz ela. - Eu aguento. - Parece-me que exagera - digo eu. O papel ardeu todo. Levei-o para a chaminé e deitei as cinzas lá para dentro. - Só me parece uma pena queimar dinheiro bom - digo eu. - Que eu nunca vej a o dia em que os meus filhos tenham de aceitar este dinheiro, o salário do pecado - diz ela. - Antes queria ver-te morto no caixão. - Faça como quiser - digo eu. - Vamos já almoçar? digo eu. - É que, se não vamos, tenho de voltar para o armazém. Hoje há muito movimento. - Ela levantou-se. - Eu já lhe disse - digo eu. - Mas parece que ela está à espera da Quentin ou do Luster ou coisa assim. Deixe, eu chamo-a. Espere. - Mas ela foi até ao cimo das escadas e charnou-a. - A Quentin'irida. não chegou - diz a Dilsey. - Bem, nesse caso tenho de ir - digo eu. - Posso comer uma sanduíche na cidade. Não quero complicar a vida da Dilsey - digo eu. Isto foi o suficiente para ela começar outra vez a chamá-Ia, e a Dilsey a arrastar-se de um lado para o outro e a resmungar: - Tá bem, tá bem, vai pá mesa o mais depressa que eu pudé. - Eu quero ver-vos a todos satisfeitos - diz a Mãe. - Tento facilitar-vos a vida o mais possível. - Não me estou a queixar, pois não? - digo eu. - Disse alguma coisa a não ser que tinha de voltar para o trabalho? - Eu sei - diz ela. - Sei que não tivestes as oportunidades que os outros tiveram, que tiveste de te enfiar num armazém de 198 província. Mas eu queria que fosses mais longe. Sabia que o teu pai nunca iria perceber que tu eras o único com jeito para o negócio, e depois quando tudo o resto falhou, convenci-me de que quando ela casasse, e o Herbert... depois do que ele tinha prometido... - Bem, esse estava também a mentir - digo eu. - Se calhar nunca teve um banco. E, se tinha, não me parece que fosse preciso vir até ao Mississípi para encontrar um gerente. Fomos comer. Ouvia o Ben na cozinha, onde o Luster lhe estava a dar a comida. É o que eu digo, se temos de alimentar mais uma boca e ela não quer aceitar o dinheiro, por que não o mandamos para Jackson? Lá seria mais feliz, entre pessoas como ele. E vou eu e digo Deus sabe que nesta família há bem pouco espaço para o orgulho, mas não é preciso ser-se muito orgulhoso para não se gostar de ver um homem de trinta anos a brincar no terraço com um rapaz preto, a correr ao longo da cerca e a mugir como uma vaca quando eles andam lá fora a jogar golfe. Acho que se o tivessem mandado logo para Jackson, hoje estaríamos todos bem melhor. E vou eu e digo, já cumpriu o seu dever para com ele; já fez tudo o

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que se podia esperar de si e muito mais do que outros teriam feito, por que não o manda então para lá deduz os encargos nos impostos? E ela diz: - Em breve partirei. Sei que sou um fardo para ti - e eu digo: - já diz isso há tanto tempo que começo a acreditar - só que digo eu o melhor é não me avisar do dia em que vai morrer, porque meto-o logo nessa noite na carreira 17 e acho que sei de um lugar para onde a posso mandar a ela também e o nome desse lugar não é de certeza nem rua da Fortuna nem avenida da Felicidade. Ela começou a chorar e eu digo Está bem está bem tenho tanto orgulho nos meus parentes como qualquer outra pessoa mesmo que às vezes não saiba de onde eles vêm. Fomos comendo. A Mãe mandou a Dilsey para a porta para ver se via a Quentin. Já lhe disse que ela não vem - digo eu. Ela sabe que tem de vir - diz a Mãe. - Sabe muito bem que eu não a deixo andar por aí a passear pelas ruas em vez de vir para casa na hora das refeições. Viste bem, Dilsey? 199 - Então não a deixe sair - digo eu. - Que posso eu fazer - diz ela. - Vocês nunca me obedeceram. Nunca. - Se não andasse sempre a interferir, eu fazia-a obedecer digo eu. - Não precisava de mais de um dia para a endireitar. - Ias ser muito bruto com ela - diz ela. - Tens o feitio do Tio Maury. Isto fez-me lembrar da carta. Tireí-a do bolso e entreguei-lha. - Não precisa de a abrir - digo eu. - O banco depois diz-lhe quanto foi desta vez. - Vem dirigida a ti - diz ela. - Vá, abra-a - digo eu. Ela abriu-a, leu-a e entregou-ma. Meu querido sobrinho - começava ele Vais gostar de saber que me surgiu agora uma oportunida- de em relação à qual, e por razões que depois explicarei, não poderei entrar de momento em grandes detalhes, até ter a possibilidade de to comunicar de uma maneira mais segura. A minha experiência nos negócios ensinou-me a ter o cuidado de não revelar nada que seja confidencial de outro modo que não seja a viva voz, e a minha extrema precaução nesta matéria será suficiente para te dar uma ideia da importância do que está em jogo. Escusado será dizer, acabei de examinar pormenorizadamente todos os aspectos da questão e é sem a mínima hesitação que te digo que se trata de uma daquelas oportunidades que aparecem uma vez na vida, e vejo claramente nela ao meu alcance aquele objectivo que há muito venho implacavelmente a perseguir: isto é, a solidificação definitiva dos meus negócios, através da qual poderei restituir à posição que por direito lhe pertence a família da qual eu tenho a honra de ser o único descendente do sexo masculino; a família na qual sempre incluí a senhora tua mãe e os seus filhos. Acontece que, de momento, não me encontro numa situação financeira que me permita corresponder às exigências que a oportunidade envolve, mas em vez de recorrer a estranhos para o fazer, preferi recorrer à conta bancária da tua Mãe, de onde hoje mesmo levantei uma pequena quantia, o necessário para completar o meu investimento inicial, da qual junto, por mera formalídade, uma nota de dívida a oito por cento ao ano. Escusado será dizer, trata-se de mera formalidade, para garantia da tua Mãe 200 caso se verifique aquela circunstância da qual o homem é sempre joguete, peça do destino. Irei naturalmente aplicar esta soma como se fosse minha e permitir assim à tua mãe aproveitar esta oportunidade

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que a minha análise exaustiva mostrou ser um filão de primeira água - se me é permitido o chavão - e da mais pura qualidade. Isto é uma revelação confidencial, como certamente compreenderás, de um homem de negócios para outro; nós damos conta sozinhos dos nossos recados, não é verdade? Conhecendo a saúde delicada da tua mãe e o receio com que todas as senhoras sulistas de esmerada educação, como ela, encaram os negócios, e aindala sua encantadora propensão para divulgarem involuntariamente tais assuntos nas suas conversas, atrevo-me a sugerir que não lhe digas nada. Melhor ainda, aconselho-te a que o não faças. Seria melhor restituir simplesmente a quantia ao banco num futuro mais ou menos próximo, digamos, num montante global adicionada das outras pequenas quantias que lhe devo, e não dizer nada. É nosso dever protegê-la o mais possível deste mundo crasso e materialista em que vivemos. Com todo o afecto do teu Tio, Maury L. Bascomb. Que pensa fazer? - digo eu, atirando a carta pela mesa fora. - Eu sei que tu reparas no que eu lhe dou - diz ela. - O dinheiro é seu - digo eu. - Se quiser atirá-lo aos pássaros, isso é lá consigo. - Ele é meu irmão - diz a Mãe. - O último Bascomb. Quando partirmos os dois, já não haverá mais. - O que supostamente será duro para alguém - digo eu. Está bem, está bem - digo eu. - O dinheiro é seu. Faça dele o que quiser. Quer que dê autorização ao banco para lho pagar? - Sei que não gostas dele - diz ela. - Vejo o peso que tens nos ombros. Quando eu me for tudo será mais fácil para ti. - Eu cá tornava as coisas mais fáceis desde já - digo eu. Está bem, está bem, não digo mais nada. Traga para cá os mendigos todos se lhe apetecer. - Ele é meu irmão - diz ela. - Mesmo que se encontre numa situação aflitiva. 201 - Vou-lhe buscar o livro de cheques - digo eu. - Vou levantar hoje o meu cheque do ordenado. - Ele fez-te esperar seis dias - diz ela. - Tens a certeza de que o negócio é seguro? Acho estranho que um negócio solvente não possa pagar a tempo e horas aos empregados. - O negócio é sólido - digo eu. - Seguro como um banco. Eu é que lhe digo que não se preocupe com o meu ordenado até fecharmos as cobranças todos os meses. É por isso que às vezes se atrasa. - Eu não ia suportar que perdesses o pouco que eu tenho para investir em ti - diz ela. - Penso muitas vezes que o Earl não é um bom negociante. Sei que ele não te dá a confiança que o valor do teu investimento no negócio devia requerer. Vou falar com ele. - Não, deixe-o em paz - digo eu. - O negócio é dele. - Ora essa, tu tens lá mil dólares. - Deixe-o em paz - digo eu. - Eu estou atento. Tenho a sua procuração. Não tem problema. - Nem sabes o conforto que me dás - diz ela. - Sempre foste a minha alegria e o meu orgulho, mas quando vieste ter comigo por tua própria iniciativa e insististe em depositar o teu salário todos os meses na minha conta, agradeci a Deus teres sido tu a ficar, já que Ele me tinha querido levar os outros. - Eles eram bons - digo eu. - Faziam o mais que podiam, acho eu. - Quando falas assim, sei que estás a pensar mal da memória do teu pai - diz ela. - E tens razões para o fazeres, acho eu. Mas parte-me o coração ouvir-te dizer isso. Levantei-me. - Se vai começar a chorar - digo eu -, vai ter de chorar

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sozinha, porque eu tenho de voltar para o trabalho. Vou buscar o livro de cheques. - Eu vou lá - diz ela. - Deixe-se estar - digo eu. - Eu vou. - Fui lá acima, tirei o livro de cheques da gaveta dela e voltei para a cidade. Fui ao banco e depositei o cheque, a ordem de pagamento e os outros dez dólares, e passei pelo posto do telégrafo. Estava um ponto acima da abertura. Eu já tinha perdido treze pontos, e 202 tudo porque ela,teve de vir fazer-me a vida negra ao meio-dia, por causa daquela carta. - A que horas chegaram essas cotações? - digo eu. - Há cerca de uma hora - diz ele. - Há uma hora? - digo eu. - E para que é que nós lhe pagamos? - digo eu. - Para nos entregar relatórios semanais? Como é que quer que um homem assim possa fazer alguma coisa? O raio da escala podia rebentar e nós nem sabíamos. - Eu não espero que faça nada - diz ele. - Eles alteraram a lei para as pessoas que jogam no algodão. - Ah alteraram? - digo eu. - Não ouvi dizer nada. Devem ter mandado as notícias pela Western. Union. Voltei para o armazém. Treze pontos. Raios me partam se acredito que alguém sabe alguma coisa do raio deste negócio excepto os tipos que estão todos repimpados lá nos escritórios de Nova lorque a ver os tansos dos provincianos irem levar-lhes o dinheiro de mão beijada. Bem, um homem que só paga para ver mostra que não tem confiança em si próprio, é o que eu digo, se não for para seguir os conselhos que nos dão, então para que serve estar a pagar para os receber? Além disso, estas pessoas estão mesmo no centro dos acontecimentos; sabem de tudo o que se passa. Sentia o telegrama no bolso. Só tinha de provar que estavam a usar a companhia dos telégrafos para defraudarem pessoas. E isso faria deles uma bolsa clandestina. E também não ia perder tempo. Que raio, pelo menos seria de esperar que uma companhia tão grande e tão rica como a Western Union fosse capaz de receber as cotações da bolsa a tempo e horas. Pelo menos com metade da velocidade com que nos mandam um telegrama a dizer que temos a conta a zero. Eles querem lá saber das pessoas. São unha com carne com essa corja de Nova lorque. Qualquer um podia ver isso. Quando entrei, o Earl olhou para o relógio. Mas não disse nada até o cliente sair. Nessa altura disse: - Foste comer a casa? - Tive de ir ao dentista - digo eu, porque onde eu como não é da conta dele, mas tenho de passar a tarde com ele no escritório. E ainda por cima a ouvi-lo resmungar depois de tudo por 203 que eu já tinha passado. Não há como um lojista de meia tigela, é o que eu digo, não há como um homem que não tenha mais de quinhentos dólares para se preocupar com o negócio como se ele valesse cinquenta mil. - Podias ter-me avisado - diz ele. - Esperava que voltasses logo. - Troco este dente consigo quando quiser e ainda lhe dou dez dólares por cima - digo eu. - O combinado é uma hora para a refeição - digo eu - e se não lhe agrada o que eu faço, já sabe o que tem a fazer. - Há algum tempo que ando a pensar nisso - diz ele. - Se não fosse pela tua mãe, já o tinha feito há muito tempo. Mas ela é uma senhora e eu tenho muita pena dela, Jason. É uma pena que outras pessoas que eu conheço não possam dizer o mesmo. - Pois pode ficar com ela - digo eu. - Quando precisarmos da sua pena

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eu aviso-o com antecedência. - Há muito tempo que te dou cobertura para o negócio que sabes, Jason - diz ele. - Sim? - digo eu, deixando-o continuar, para ouvir o que ele tinha a dizer antes de o fazer calar. - Aposto que sei muito mais acerca de onde veio aquele automóvel do que ela. - Julga que sim, não julga? - digo eu. - E quando é que vai espalhar a notícia de que o roubei à minha mãe? - Eu não vou dizer nada - diz ele. - Sei que ela te deu uma procuração. E também sei que ela ainda está convencida de que tem mil dólares aqui investidos. - Está bem - digo eu. - Já que sabe tanto, vou dizer-lhe também mais esta: vá ao banco e pergunte-lhes em que conta é que eu tenho depositado cento e sessenta dólares no dia um de cada mês desde há doze anos. - Eu não vou contar nada - diz ele. - Só te peço para teres mais cuidado daqui para a frente. Nunca mais lhe disse nada. Não adianta. Descobri que quan- do um homem embica para um lado, o melhor é deixá-lo. E que quando um homem mete na cabeça que tem de fazer queixa de nós para nosso próprio bem, nada feito. Ainda bem que não 204 tenho uma consciência tão frágil que tenha de cuidar dela como de um cachorrinho doente. Estava bem arranjado se fosse tão cuidadoso com as minhas coisas como ele é para evitar que o seu negócio de meio pataco lhe renda mais de oito por cento. Chego a pensar que está convencido de que são capazes de o prender por usura, se tirar um lucro superior a oito por cento. Que raio de sorte há-de ter um homem amarrado a uma cidade como esta e a um negócio como este? E eu podia tomar-lhe conta do negócio por um ano e dar-lhe tanto a ganhar que ele nem ia precisar mais de trabalhar. Só que ele ia de certeza dar tudo para a igreja ou coisa parecida. Se há coisa que'me irrite é um hipócrita. Um homem que pensa que tudo aquilo que não entende muito bem como se faz deve ser desonesto e à primeira oportunidade se sente moralmente impelido a ir contar à terceira parte o que não tinha nada de contar. É o que eu digo, se de cada vez que um homem faz qualquer coisa que eu não entendo completamente eu digo que ele deve ser um vigarista, acho que não me ia custar nada encontrar alguma coisa nos livros que achasse que não valia a pena ir a correr contar a alguém que eu achasse que entendia, quando eles já deviam saber disso há muito mais tempo do que eu, e se não sabiam a culpa não era minha e ele diz: - Os meus livros estão à disposição de toda a gente. Qualquer que tenha, ou ache que tem, direitos sobre este negócio, pode vir consultá-los e será muito bem recebido. - Claro que não vai dizer nada - digo eu. - Isso iria contra a sua consciência. Limitava-se a levá-la lá e deixava-a encontrar a resposta sozinha. O senhor contar, não contava. - Não estou a querer intrometer-me nos teus negócios diz ele. - Sei que ficaste privado de algumas coisas que o Quentin teve. Mas a tua mãe também teve uma vida infeliz, e se ela viesse aqui perguntar-me por que te tinhas demitido, eu tinha de lhe dizer a verdade. Não é pelos mil dólares. Sabes isso muito bem. É porque um homem nunca chega a lado nenhum se os factos não estão de acordo com os livros. E não vou mentir, nem por mim nem por mais ninguém. - Então está bem - digo eu. - Acho que a sua consciência é uma empregada mais zelosa do que eu; pelo menos não tem de 205

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ir almoçar a casa ao meio-dia. Mas por favor não a deixe interferir com o meu apetite - digo eu, porque como raio hei-de eu fazer alguma coisa como deve ser com aquela maldita família e ela sem se preocupar em controlá-la a ela ou a qualquer dos outros, como daquela vez em que viu um deles a beijar a Caddy e no dia seguinte andou todo o dia vestida de preto e com um véu pela cara e nem o Pai lhe conseguiu arrancar uma palavra que fosse além do choro e de que a sua filhinha estava morta e a Caddy, na altura apenas com quinze anos, daí a três anos já tinha usado crinolina e talvez a lixa. Julgas que posso admitir que ela ande por aí com todos os viajantes que passam pela cidade, digo eu, e que eles digam uns aos outros por essas estradas onde podem arranjar uma das boas quando vierem a Jefferson? Não tenho um orgulho por aí além, não posso dar-me a esse luxo com a cozinha cheia de negros para alimentar e a privar o manicómio da sua estrela. Sangue, digo eu, governadores e generais. É uma sorte nunca termos tido reis nem presidentes; estávamos todos em Jackson a caçar borboletas. E eu digo já que seria péssimo se ele fosse meu; pelo menos teria a certeza de ser bastardo, para começar, e agora nem o Senhor provavelmente tem a certeza. Passado um bocado ouvi a banda começar a tocar, e as pessoas começaram a escassear. Era vê-los a irem todos para o espectáculo. A regatearem uma correia de vinte cêntimos para pouparem quinze, para os irem dar a um bando de Yankees que vêm aí e pagam à vontade dez dólares pelos direitos. Voltei para os fundos. - Bem - digo eu. - Se não tens cuidado, esse parafuso ainda te cresce na mão. E depois vou buscar um machado e corto-ta. O que é que tu achas que os gorgulhos vão comer se não montares as capinadeiras a tempo de se plantarem as culturas? digo eu. - Sálvia? - Aqueles fartam-se de tocá as cornetas - diz ele. - Disseram-me qu'há lá um homem quIa modos que toca música cuma serra. Pega nela como se fosse um banjo. - Ouve - digo eu. - Sabes quanto é que aquele espectáculo vai render à cidade? Cerca de dez dólares - digo eu. - Os dez dólares que o Buck Turpin tem neste momento no bolso dele. - Porqu@é que deram dez dólares é Mr. Buck? - diz ele. 206 - Para terem autorização para actuar aqui - digo eu. Por aí já podes calcular quanto vão gastar contigo. - Quê dizê qu'eles dão dez dólares só para darem aqui o espectáculo? Se tivesse de dar, eu dava dez dólares só pa vê o tal homem pegá na serra. Por esse preço acho qu'amanhã de manhã ainda lhe estava a devê nove dólares e seis moedas. E depois ainda os Yankees nos dão cabo da cabeça a tentarem convencer-nos de que os pretos estão a ir em frente. Pois que os deixem ir em frente, é o que eu digo. Deixem-nos ir tão em frente que já nem com os cães se consiga encontrar um a sul de Louisville. Porque, quando lhe disse que eles vinham no sábado à noite para cobrarem pelo menos mil dólares na região, ele diz: - Não lhes quero mal por isso. Eu posso bem gastar as duas moedas. - Duas moedas uma ova - digo eu. - Isso é só o começo. E os dez ou quinze cêntimos que vais gastar numa caixa de rebu- çados de dois cêntimos ou coisa assim. E o tempo que já estás a perder agora, a ouvires a música? - Lá isso é vedade - diz ele. - Bem, e s'eu não morrê té à noite são mais duas moedas qu'eles levam da cidade, lá isso é. - Então não passas de um idiota - digo eu. - Bem - diz ele. - Isso eu não discuto. S'isse, fosse um crime, nem

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todos os forçados eram negros. Bem, mais ou menos nessa altura olhei para a travessa e vi-a. Quando me meti para dentro e olhei para o relógio não reparei na altura quem ele era porque estava a olhar para o relógio. Eram só duas e meia, quarenta e cinco minutos antes da hora a que ela devia sair da escola. Quando olhei a primeira coisa que vi foi a gravata vermelha que ele trazia e pus-me a pensar que raio de homem seria capaz de usar uma gravata vermelha. Mas ela já se ia a esgueirar pela travessa, a olhar para a porta, e eu não pensei nada acerca dele até eles desaparecerem. Perguntava se ela teria tão pouco respeito por mim que não só faltava à escola depois de eu a ter proibido de sair de lá, como ainda por cima passava mesmo em frente do armazém para me desafiar. Porém não podia ver para dentro da porta, porque o sol batia nela em cheio e era o mesmo que tentar enxergar para lá dos faróis de um automóvel. Por isso fiquei a vê-Ia passar, com a cara pintada que nem um palhaço e o cabelo todo torcido e empastado e um vestido que se alguma mulher o tivesse trazido para a rua, mesmo que fosse nas ruas mal afamadas dos meus tempos de rapaz, sem mais nada a tapar-lhe as pernas e o rabo, ia logo presa. Raios me partam se elas não se vestem como se quisessem que todos os homens por que passam na rua estendam a mão e lho apalpem. E por isso eu estava a pensar que tipo de homem usaria uma gravata toda vermelha quando de repente percebi que se tratava de um dos artistas do espectáculo. Bem, eu aguento muito; se não fosse assim, já estaria metido nalguma embrulhada das boas. Por isso, quando eles viraram a esquina, fui atrás deles. Eu, em cabelo, no meio da tarde, a ter de andar a espiá-la pelas vielas para defender o bom nome da minha mãe. É o que eu digo, não há nada a fazer com uma mulher assim, se aquilo já nasceu com ela. Se lhe está na massa do sangue, não há nada a fazer. A única coisa a fazer é livrarmo-nos dela, deixá-la ir viver com as da sua laia. Saí para a rua, mas eles estavam escondidos. E ali estava eu, em cabelo, com um ar ainda mais doido do que ela. Como qualquer pessoa naturalmente pensaria, um deles é pateta, o outro afogou-se e a outra foi posta na rua pelo marido, por que é que os outros não háo-de ser doidos também? Via que as pessoas não tiravam os olhos de mim, como falcões, à espera de uma oportunidade para dizerem Bem, não me apanhou de surpresa, já era de esperar, a família é toda doida. Venderem terras para o mandarem para Harvard e pagarem impostos para o dinheiro ir para uma universidade estatal que eu não vi entrar mais que duas vezes num jogo de basebol e não deixar que o nome da filha seja pronunciado em casa até que daí a pouco tempo o Pai já nem à cidade ia passando os dias em casa agarrado à garrafa eu bem lhe via a fralda da camisa de dormir e as pernas e ouvia a garrafa tilintar até que por fim já tinha de ser o T. P a encher-lhe o copo e vem ela agora dizer Tu não respeitas a memória do teu pai e eu digo não sei porquê conservada está ela e por muito tempo simplesmente se eu fosse doido também sabe Deus o que eu faria fico doente só de olhar para a água e mais depressa bebia um copo de gasolina que um copo de uísque e a Lorraine 208 a dizer-lhes sabem ele não pode beber mas se julgam que é menos homem por isso eu digo-lhes como hão-de fazer para tirar isso a limpo e depois diz Se te apanho com alguma destas putas sabes o que é que eu faço diz ela agarro-me a ela e dou-lhe tantas que a mato e eu digo se não bebo é cá comigo já alguma vez te faltei com alguma coisa digo eu vou-te comprar tanta cerveja que até podes tomar banho nela se te apetecer porque tenho muito respeito por uma puta honesta porque com a

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saúde da Mãe e depois de tudo o que eu faço para manter a dignidade da família é duro vê-Ia ter tão pouco respeito pelo que eu tento fazer por ela que faça do nome dela do meu nome e do nome da minha Mãe nomes de passe na cidade. Ela tinha-se enfiado nalgum canto. Viu-me e meteu por algum beco, andava a correr ruas e travessas na companhia do raio de um artista de variedades de gravata vermelha ao pescoço com toda a gente a olhar para ele e a pensar mas que raio de homem será este para andar assim de gravata vermelha. Bem, o rapaz não se calava e eu peguei no telegrama sem prestar atenção. Só quando ia assinar é que percebi do que se tratava, e abri-o sem grande ansiedade. Acho que sempre soube o que era. Era a última coisa que faltava acontecer-me, especialmente depois de já ter registado o cheque no livro. Francamente não sei como uma cidade do tamanho de Nova lorque pode albergar gente suficiente para extorquir o dinheiro dos papalvos da província. Mata-se uma pessoa a trabalhar o dia inteiro todos os dias e de repente recebe um bocado de papel. A sua conta fechou a 20.62. Entusiasmam-na, deixam-na acumular uns lucros e zás! A sua conta fechou a 20.62. E, como se não bastasse, ainda paga dez dólares por mês a um tipo que lhe diz como há-de fazer para perder o dinheiro mais depressa, um tipo que ou não percebe nada do assunto ou está feito com a companhia telegráfica. Bem, para mim chega. Foi a última vez que me levaram à certa. Qualquer idiota, excepto um que seja tão estúpido que acredite na palavra de um judeu, seria capaz de dizer que as cotações iam continuar a subir com o maldito delta prestes a ficar alagado de novo e o algodão levado na enxurrada ano após ano, e eles em Washington a gastarem cinquenta mil dólares por dia para manterem um 209 exército na Nicarágua ou lá onde é. Claro que as inundações vão repetir-se e o algodão vai passar para sessenta cêntimos o quilo. Bem, eu só quero ganhar-lhes uma vez e recuperar o meu dinheiro. Não ando atrás de nenhuma fortuna; isso é coisa para estes papalvos da província, eu só quero recuperar o dinheiro que esses judeus dum raio me tiraram com as suas tramóias. E depois acabou-se; nunca mais vão ver a cor do meu dinheirinho. Voltei para o armazém. Eram quase três e meia. já não dava tempo de fazer grande coisa, mas já estou habituado. E não precisei de ir para Harvard para aprender isso. A banda tinha parado de tocar. já tinha entrado toda a gente e agora podiam poupar o fôlego. E diz o Earl: Ele encontrou-te, não encontrou? Passou por aqui há bocadinho. Pensei que estivesses lá para as traseiras. Encontrou - digo eu. - E trouxe-me as notícias. Não podiam escondê-las de mim durante toda a tarde. A cidade é muito pequena. Vou ter de sair por um instante - digo eu. Pode dizer que não, se isso o confortar. Vai lá - diz ele. - Eu dou conta do recado. Não são más noticias, espero. Se quiser saber tem de ir ao telégrafo - digo eu. - Eles lá têm tempo de sobra para lhe contar. Eu não. - Só perguntei por perguntar - diz ele. - A tua mãe sabe que pode contar comigo. Ela vai gostar de saber - digo eu. - Vou procurar não me demorar mais que o necessário. Demora o tempo que for preciso - diz ele. - Eu dou conta do recado. Podes ir. Fui buscar o carro e voltei para casa. Uma vez esta manhã, duas ao meio-dia, e agora outra vez, a ter de correr a cidade toda atrás dela e de lhes mendigar um pouco de comida que sou eu que pago. Às vezes penso que nada vale a pena. Depois de tudo o que já se passou devo

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estar doido para continuar. E agora sou capaz de chegar a casa e ter de sair à procura de um cesto de tomates ou coisa parecida e ter de voltar depois para a cidade a cheirar que nem uma fábrica de cânfora se não quiser ficar com a cabeça como se estivesse prestes a explodir a todo momento. 210 Estou farto de lhe dizer que a aspirina não passa de farinha e água para doentes imaginários. A senhora sabe lá o que é uma dor de cabeça digo eu. E digo também julga que eu ia a andar para aí às voltas com o carro se pudesse evitá-lo. Passo bem sem ele aprendi a passar sem muitas coisas mas se se quiser arriscar a ir nessa cale- che a cair aos bocados com um rapazola negro a conduzir então vá porque Deus protege os que são da laia do Ben, Deus sabe que devia fazer qualquer coisa por ele mas se julga que eu vou entregar uma máquina que vale mil dólares nas mãos de um negro seja ele ainda miúdo ou já grande, então o melhor é comprar-lhe um carro porque eu sei que gosta de andar de carro e a senhora também sabe disso. A Dilsey disse que ela estava em casa. Quando entrei no vestíbulo pus-me à escuta mas não ouvi nada. Subi a escada e, precisamente quando ia a passar pela porta do quarto, ela chamou-me. - Só queria saber quem era - diz ela. - Passo aqui tanto tempo sozinha que dou fé de todos os ruídos. - Não precisa de estar sempre aqui metida - digo eu. - Se quisesse, podia passar o dia a fazer visitas como as outras senhoras. Ela abriu a porta. Pensei que estivesses mal disposto - diz ela. - Depois de teres tido de comer à pressa. - Por acaso não estou, mas para a próxima talvez acerte digo eu. - O que é que quer? - Passa-se alguma coisa? - diz ela. - Por que é que se havia de passar? - digo eu. - já não posso vir a casa a meio da tarde sem pôr tudo em alvoroço? - Viste a Quentin? - diz ela. - Está na escola - digo eu. - Já passa das três - diz ela. - Ouvi o relógio dá-Ias pelo menos à meia hora. Ela já cá devia estar. - Acha que sim? - digo eu. - Quando é que já a viu chegar antes de anoitecer? - Mas ela devia estar em casa - diz ela. - Quando eu era rapariga... - Tinha alguém que a obrigava a portar-se bem - digo eu. Ela não. 211 - Não consigo fazer nada dela - diz ela. - Eu bem tento. - E, sabe-se lá porquê, não me deixa a mim tentar - digo eu. - Por isso devia sentir-se satisfeita. - Entrei para o meu quarto. Fechei a porta à chave muito devagarinho e esperei que a maçaneta rodasse sozinha. Nessa altura ela diz: lason. - O que é? - digo eu. - Estava só a pensar que poderia ter acontecido alguma coisa. - Mas não aconteceu nada - digo eu. - Bateu na porta errada. - Só não quero preocupar-te - diz ela. - Ainda bem - digo eu. - Mas olhe que não parece. Até pensei que pudesse estar enganado. Quer alguma coisa? Daí a pouco ela diz: - Não. Nada. - E depois foi-se embora. Tirei a caixa, contei o dinheiro, voltei a esconder a caixa, dei a volta à chave e saí. Pensei na cânfora, mas agora era tarde de mais. Agora só tinha de fazer mais uma viagem. Ela estava à espera à porta do quarto.

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- Quer alguma coisa da cidade? - digo eu. - Não - diz ela. - Não que eu goste de me meter nos teus assuntos, mas não sei o que faria se alguma coisa te acontecesse, Jason. - Eu estou bem - digo eu. - É só uma dor de cabeça. - Devias tomar uma aspirina - diz ela. - Sei que não vais deixar de levar o carro. - O que é que o carro tem a ver com isso? - digo eu. Como é que um carro pode provocar uma dor de cabeça? - Sabes que o cheiro da gasolina sempre te fez mal - diz ela. Desde pequeno. Devias tomar uma aspirina. Isso, continue a insistir - digo eu. - Sempre se entretém. Meti-me no carro e arranquei em direcção à cidade. Tinha acabado de entrar na rua principal quando vi um Ford vir como louco direito a mim. De repente travou. Ouvi os pneus chiarem, o carro derrapou e rodopiou e, quando eu estava a pensar que diabo pretendiam eles com aquilo, vi a gravata vermelha. E a seguir vi a cara dela à janela a olhar para trás. O carro desapare212 ceu por uma ruela. Vi-o aparecer de novo, mas quando lá cheguei já ele se ia embora a toda a velocidade. A gravata era vermelha. Quando reconheci a gravata vermelha, depois do que já lhe tinha dito, varreu-se-me tudo da mente. Só me lembrei da cabeça quando cheguei ao primeiro cruzamento e tive de parar. Fartamo-nos de gastar dinheiro com a manutenção das estradas mas diabos me levem se não é como guiar por cima de chapa ondulada. Gostava de saber como é que eles querem que um homem conduza como deve ser, nem que seja um carrinho de mão. Tenho muito amor ao meu carro para o meter aos saltos por ali fora como o outro fez @o Ford. O mais provável era terem-no roubado. Para que se haviam de preocupar. É o que eu digo, o sangue fala sempre mais alto. Quando se tem sangue da qualidade do dela, é-se capaz de qualquer coisa. E eu digo, seja qual for a dívida que a senhora possa ter para com ela, já está paga; e digo mais, de agora em diante só tem de se culpar a si própria pois sabe bem o que é que faria qualquer pessoa sensata. E digo ainda se é para eu passar metade do tempo a fazer de detective, pelo menos que seja para quem me pague. E então tive de parar no cruzamento. Foi nesse momento que me lembrei da cabeça. Parecia que tinha alguém lá dentro a martelar, a bater-lhe com toda a força. E então digo tenho tentado evitar que se preocupe com ela; cá por mim, é deixá-la ir para o inferno tão depressa quanto quiser e quanto mais cedo melhor. E digo ainda a que mais pode ela ambicionar para além dos caixeiros viajantes e dos artistas de meia-tigela que passam pela cidade quando já nem os rufias cá da terra querem saber dela. A senhora não sabe o que se passa digo eu, não ouve o que eu tenho de ouvir, mas pode ter a certeza de que não os deixo ir sem o troco. O que eu lhes digo é já a minha família era dona de muitos escravos e vocês não passavam de uns reles comerciantes e lavradorzecos de pedaços de terra para quem nem um negro olharia duas vezes. E se calhar nem os cultivavam. Foi uma sorte Deus ter feito alguma coisa por esta terra; os que cá vivem nunca fizeram nada. Sexta-feira à tarde. Daqui onde estava podia avistar uns bons quilómetros de terra que nem sequer tinha sido lavrada, e os 213 homens válidos da região enfiados na cidade a assistir ao espectáculo. Se eu fosse um forasteiro a morrer de fome, não ia encontrax vivalma que me indicasse sequer o caminho para a cidade. E ela a querer que eu tomasse uma aspirina. E eu digo quando quiser pão como-o à mesa. E depois digo está sempre a falar do que se sacrifica por nós quando

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podia muito bem comprar dez vestidos novos todos os anos com o dinheiro que gasta no raio dos remédios que toma. Do que eu preciso não é de um remédio que cure as dores de cabeça, é só de não ter nada que mas provoque, mas entretanto tenho de trabalhar dez horas por dia para encher a barriga a uma cozinha cheia de negros, e com a fartura a que estão habituados, e ainda por cima mandá-los para o espectáculo com todos os outros negros da região, só que este já estava atrasado. Quando lá chegasse já o espectáculo tinha acabado. Logo a seguir, aproximou-se do carro e quando eu finalmente consegui fazê-lo perceber a minha pergunta, se tinha visto passar duas pessoas num Ford, disse que sim. Sendo assim, segui em frente e quando cheguei ao cruzamento com o trilho das carroças vi marcas de pneus. O Ab Russell estava na propriedade dele, mas nem me dei ao trabalho de lhe perguntar fosse o que fosse, e ainda não estava muito longe do estábulo dele quando vi o Ford. Tinham tentado escondê-lo. Com tanto êxito como tudo aquilo em que ela se metia. É o que eu digo, não é que eu seja totalmente contra, talvez ela não se consiga controlar; é por ela não ter consideração pela família e não ser minimamente discreta. Estou sempre com medo de ir dar com eles no meio da rua ou debaixo de alguma carroça no meio da praça a portarem-se como caes. Estacionei o carro e saí cá para fora. E agora tinha de ir de volta e atravessar um campo lavrado, o único que eu vira desde que saíra da cidade, parecendo cada vez que poisava os pés no chão que vinha alguém atrás de mim a dar-me com um pau na cabeça. Só pensava que quando acabasse de atravessar o campo teria pelo menos terreno plano à minha frente, sem ter de me desequilibrar a cada passo, mas quando me embrenhei no arvoredo, vi que o piso estava intransitável, cheio de mato rasteiro, e tive de me desviar, indo ter a um valado cheio de silvados. Segui 214 por esse valado por algum tempo, mas o mato tornava-se cada vez mais denso e, durante todo este tempo, o Earl estava provavelmente a telefonar para minha casa para saber de mim e a deixar a Mãe toda aflita. Quando finalmente cheguei ao fim, vi que me tinha desviado tanto que tive de parar e ver se descobria onde estava o carro. Sabia que eles não podiam estar longe, estavam provavelmente atrás do arbusto mais próximo, e por isso dei meia volta e vim em direcção à estrada. Mas como não sabia a que distância estava, o melhor era parar e pôr-me à escuta; e assim, como as minhas pernas ja não consumiam tanto sangue, ele afluiu-me todo à cabeça pondo-ma como se fosse explodir a todo o momento, e o sol a declinar e a bater-me em cheio nos olhos e aquele zumbido nos ouvidos que não me deixava ouvir nada. Continuei a andar, tentando não fazer barulho e nisto ouvi um cão ou coisa parecida e percebi que quando ele me pressentisse vinha por aí que nem uma seta e estava tudo estragado. Eu estava todo coberto de bichos, troncos e porcarias do gênero, por dentro e fora da roupa e até nos sapatos, e então olhei em volta e vi que tinha a mão em cima de um monte de urtigas. Só não percebia por que razão logo havia de ser urtigas e não uma cobra ou coisa assim. Mas nem me dei ao trabalho de tirar a mão. Deixei-me ficar muito quieto até o cão se ir embora. Depois continuei. Não fazia a mínima ideia de onde estaria o carro. Não conseguia pensar em mais nada a não ser na minha cabeça, e ali estava eu parado a cogitar se teria realmente visto mesmo um Ford, e já nem queria saber se tinha visto ou não. É o que eu digo, ela que se deite debaixo de tudo o que usa calças na cidade, quero lá saber. Não devo nada a uma pessoa que tem tão pouca consideração por mim que não se ralou nada de me meter o Ford ao caminho para me fazer perder a tarde e o Earl poder levar a outra

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ao escritório para lhe mostrar os livros só porque é estuporadamente honesto para este mundo em que vivemos. Vais passar um mau bocado no céu sem poderes atrapalhar a vida das outras pessoas, mas não deixes que eu te apanhe com a boca na botija digo eu, se fecho os olhos é por causa da tua avó, mas livra-te de 215 que eu te apanhe a fazer isso neste lugar, onde vive a minha mãe. Olha-me só para estes rufias de cabelo embrilhantinado, con- vencidos de que fazem o diabo a quatro, eu mostro-lhes quem faz o diabo a quatro digo eu, e a ti também. Se ele pensa que pode andar aí pelas matas com a minha sobrinha, quando eu lhe deitar as mãos àquela gravata vermelha até vai pensar que ela é o cordão que abre as portas do inferno. Com o sol a bater-me nos olhos e tudo o resto, o sangue a latejar de uma maneira que eu pensava que a cabeça me ia estoirar a cada momento, e com as silvas e tudo o mais a prender-me, cheguei finalmente à vala de areia onde eles tinham estado e reconheci a árvore onde o carro tinha ficado, e precisamente quando ia a sair da vala e começar a correr, ouvi o carro arrancar. Partiram como loucos, a tocar a buzina. Não paravam de buzinar, como se dissessem Aahhh. Aabhh. Aaaalihhhhhhh, enquanto se afastavam. Cheguei à estrada mesmo a tempo de os ver desaparecer. Quando cheguei ao sítio onde tinha deixado o meu carro, já não os via, mas a buzina não se calava. Bem, não me ocorreu mais nada a não ser Corre. Correr de volta à cidade. Correr para casa e tentar convencer a Mãe de que não te vi dentro desse carro. Tentar fazê-la acreditar que não sabia quem ele era. Tentar fazê-la acreditar que não te deitei a mão naquela vala por um triz. Tentar fazê-la acreditar que estavas de pé. E a buzina a dizer Aahhhhh, Aahhhhh, Aaaahhhhhhhh, a perder-se na distância. Por fim calou-se e ouvi uma vaca a mugir no estábulo do Russe11. E mesmo assim não me passou pela cabeça. Aproximei-me da porta, abri-a e levantei o pé. Na altura pareceu-me que o carro estava um pouco mais inclinado que a inclinação natural da estrada, mas só descobri o que era quando entrei e me pus em marcha. Enfim, ali estava eu sentado. O pôr-do-sol aproximava-se e a cidade estava a cerca de sete quilómetros. Eles nem ganas tiveram para o furarem, para lhe abrirem um buraco. Limitaram-se a deixar sair o ar. Fiquei ali um bocado, a pensar naquela cozinha cheia de negros e nem um tinha tido tempo de pôr um pneu em cima do porta-bagagens e apertar uns parafusos. 216 Chegava até a ser engraçado, porque ela não era tão esperta que se tivesse lembrado de tirar a bomba de ar com antecedência, a menos que se tivesse lembrado disso enquanto ele esvaziava o pneu. Mas o mais provável era que alguém a tivesse tirado para a dar ao Ben para ele brincar como se fosse uma pistola de água, porque se ele quisesse até me desfaziam o carro, e a Dilsey a dizer, Ninguém lhe tocou no carro. Pa que havíamos nós d'ir lá mexê? e eu digo Sorte tua que és negra. Nem sabes a sorte que tens. Troco contigo de lugar quando quiseres, porque só um branco é idiota ao ponto de se preocupar com o que faz uma cabra duma rapariga. Fui até à propriedade do Russe11. Ele tinha uma bomba. Uma pequena falha da parte deles, quanto a mim. Só continuava a não acreditar que ela tivesse tido a coragem. Isso não me saía da cabeça. Não sei porquê, mas não consigo aceitar que uma mulher seja capaz de fazer uma coisa assim. Não parava de pensar, Vamos esquecer por momentos o que eu sinto por ti e o que tu sentes por mim: eu não te fazia uma coisa

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destas. Eu não te fazia uma coisa destas fosse lá o que fosse que tu me tivesses feito. Porque como eu sempre digo, a voz do sangue é a voz do sangue e não há nada a fazer. Não é teres-me pregado uma partida de que qualquer miúdo de oito anos se podia lembrar, é deixares o teu próprio tio servir de escárnio a um tipo que até usa uma gravata vermelha. Chegam à nossa cidade, chamam-nos um bando de labregos e acham que a cidade é pequena demais para eles. Pois ele nem sabe como tem razão. E ela também. Se é assim que pensa, então o melhor é pôr-se a andar e boa viagem. Parei, devolvi a bomba ao Russell e voltei para a cidade. Fui ao bar tomar um comprimido e depois fui até ao posto do telégrafo. As cotações tinham fechado a 20.2 1, quarenta pontos abaixo. Quarenta vezes cinco dólares; compra alguma coisa com isso se puderes, e ela vai dizer Mas eu estou a precisar, estou mesmo a precisar e eu digo Que maçada, vais ter de pedir a outra pessoa, eu estou sem dinheiro; tenho andado demasiado ocupado para ter tempo de o ganhar. Limitei-me a olhar para ele. 217 - Vou dar-lhe uma novidade - digo eu. - Vai ficar espantado de saber que por acaso estou interessado na bolsa do algodão - digo eu. - Nunca tal coisa lhe tinha passado pela cabeça, pois não? - Eu fiz tudo o que pude para lho entregar - diz ele. Tentei falar-lhe para o armazém por duas vezes e telefonei-lhe para casa, mas não sabiam onde estava - diz ele, vasculhando na gaveta. - Entregar o quê? - digo eu. Ele estendeu-me um telegrama. - A que horas chegou? - digo eu. - Cerca das três e meia - diz ele. - Eu tentei entregar-lho - disse ele. - Mas não o encontrei. - Não é culpa minha, pois não? - digo eu. Abri-o, só para ver qual era a mentira que me queriam impingír desta vez. Devem estar em muito má situação para precisarem de vir até ao Mississípi roubar-me dez dólares por mês. Venda, era o que dizia. A bolsa vai estar instável, com tendência para descer. Não fique alarmado com os relatórios oficiais. - Quanto custa um telegrama como este? - digo eu. Ele disse-me. - Eles já pagaram - diz ele. - Então devo-lhes isso - digo eu. - Eu já sabia disto. Mande este à cobrança - digo eu, pegando num impresso. Compre, escrevi eu, Bolsa apenas a um ponto de rebentar. Oscilações passageiras para levar à certa mais uns quantos papalvos que ainda não foram ao posto do telégrafo. Não há razão para alarme. - Mande à cobrança - digo eu. Ele olhou para a mensagem, depois para o relógio. - A Bolsa fechou há uma hora - diz ele. - Bom - digo eu - isso também não é culpa minha. Não fui eu que a inventei; só comprei algumas acções enquanto julguei que a companhia telegráfica me mantinha devidamente informado. - A lista das cotações é afixada quando chega - diz ele. - Pois é - digo eu. - E em Memphis eles afixam-na num quadro de dez em dez segundos - digo eu. - E eu que ainda esta tarde estive a cem quilómetros de Memphis. 218 O homem olhou pua a mensagem. - Quer enviar isto? disse ele. Ainda não mudei de ideias - digo eu. Escrevi outro telegrama e contei o dinheiro. - E mande este também, mas veja lá se sabe escrever c-o-m-p-r-a-r. Voltei para o armazém. Ouvia a banda a tocar ao fundo da rua. A Lei seca é uma grande coisa. Antigamente era vê-los chegar num sábado só

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com um par de sapatos para toda a família e era o pai que os trazia, e iam todos até à estação de recepção de encomendas levantar uma encomenda; agora vão todos ao espectáculo descalços, com og comerciantes à porta, à espreita como tigres numa jaula, a vê-los passar. E o Earl diz: - Espero que não tenha sido nada de grave. - O quê? - digo eu. Olhou para o relógio. Depois foi à porta e olhou para o relógio do tribunal. - Deve ter um relógio que não presta para nada - digo eu. - Assim não lhe custa tanto acreditar que ele lhe está a mentir. - O quê? - diz ele. - Nada - digo eu. - Espero não lhe ter causado grande transtorno. - Não houve muito que fazer - diz ele. - Foram todos ao espectáculo. Não faz mal. - Se fizer - digo eu - já sabe o que tem a fazer. - já disse que não faz mal - diz ele. - Eu ouvi - digo eu. - E se fizer mal, já sabe o que tem a fazer. - Queres deixar o emprego? - diz ele. - Isso não é comigo - digo eu. - Os meus desejos não contam. Mas não lhe passe pela cabeça que está a proteger-me deixando-me ficar. - Davas um belo negociante se quisesses, Jason - diz ele. - Pelo menos sei tratar da minha vida e deixar a dos outros em paz - digo eu. - Não sei por que razão estás a tentar fazer com que eu te despeça - diz ele. - Sabes que te podes ir embora quando quiseres sem ser preciso saíres a mal. Talvez seja por isso que não saio - digo eu. - Enquanto 219 for fazendo o meu trabalho, é para isso que me paga. - Fui lá para dentro, bebi água e saí para as traseiras. O Job já tinha as capinadeiras todas montadas. Estava tudo calmo lá atrás e daí a pouco a dor de cabeça melhorou. Agora ouvia-os cantar e depois a banda voltou a tocar. Bem, eles que levassem para lá todos os trocos das redondezas; um homem que vive até à minha idade e não sabe quando deve desistir é um idiota. Sobretudo porque não me diz respeito. Se ela fosse minha filha, isso era outra coisa, porque nem ia ter tempo para essas coisas; ia era ter de trabalhar para encher a barriga a um punhado de inválidos, idiotas e negros, mas como é que eu ia ter cara de levar alguém lá a casa? Tenho muito respeito pelas pessoas para lhes fazer isso. Eu sou homem, tenho de aguentar, são a minha família, e gostava de ver a cor dos olhos do homem que faltasse ao respeito a alguma mulher que fosse minha amiga, quem o faz são o raio destas mulheres que se dizem boas almas, ainda gostava de encontrar uma mulher honesta e temente a Deus que chegasse aos calcanhares da Lorraine, puta ou não. É o que eu lhe digo, se resolvesse casar- -me sabe bem que ficava toda inchada e ela diz o que eu quero é que sejas feliz e cries uma família em vez de te matares a trabalhar para nós. Mas qualquer dia desapareço e nessa altura podes arranjar uma mulher mas nunca encontrarás uma mulher que te mereça e eu digo que sim que arranjava. Sabe tão bem como eu q ue se levantava logo da campa. E eu digo não muito obrigado já tenho mulheres que cheguem para me dar trabalho, se me casasse ia acabar por descobrir que ela era drogada ou coisa assim. É só o que nos falta na família, digo eu. O sol já se tinha escondido por detrás da Igreja Metodista, e os pombos esvoaçavam em torno do campanário; quando a banda se calou ouvi-os a arrulhar. Ainda não tinham passado quatro meses desde o Natal, e eles já eram mais do que nunca. Cá para mim, o Padre Walthall apanhava umas boas barrigadas. Até parecia que andávamos a matar pessoas, pela maneira como ele pregava e como se agarrava às nossas

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espingardas quando eles vinham em bando. Falava da paz na terra, da boa vontade entre os homens e nem um pardal no chão. Mas a ele que lhe importa quantos são, ele não rem nada que fazer: que lhe interessa a ele 220 que horas são. Não paga impostos, não tem de ver o seu dinheiro ir todos os anos para a limpeza do relógio do tribunal para funcionar sempre bem. Pagavam quarenta e cinco dólares a um homem para o limpar. Contei para mais de cem pombos novos no chão. Pensar-se-ia que seriam suficientemente espertos para deixarem a cidade. Ainda bem que eu não tenho mais laços que me prendam do que um pombo, hei-de dizer-lhe esta. A banda tocava outra vez, era uma música rápida e aguda, como se estivessem prestes a acabar. Eles deviam estar a gostar. Talvez levassem para casa música que chegasse para os entreter enquanto faziam os vinte ou vinte e cinco quilómetros de regresso, desatrelavam a carroça na escuridão, davam de comer aos animais e ordenhavam as vacas. Tudo o que tinham de fazer era assobiarem as melodias, contarem as piadas aos habitantes dos estábulos e calcularem o que tinham poupado por não levarem também os animais ao espectáculo. Podiam calcular que se um homem tivesse cinco filhos e sete mulas, ganhava vinte e cinco cêntímos se levasse a família toda ao espectáculo. Tão simples como isto. O Earl apareceu com dois embrulhos. - Aqui está mais mercadoria - diz ele. - Onde está o Job? - Foi ao espectáculo, acho eu - digo eu. - Não o deve ter vigiado bem. - Ele não se escapava assim - diz ele. - Nesse eu posso confiar. - Está a referir-se a mim - digo eu. Foi até à porta e pôs-se a olhar lá para fora, de ouvido à escuta. - É uma bela banda - diz ele. - já era altura de terminarem. - A menos que tenham resolvido tocar pela noite fora digo eu. As andorinhas já tinham começado a chegar e ouvia os pardais a invadirem as árvores do pátio do tribunal. De vez em quando avistava um bando a esvoaçar por cima do telhado, desaparecendo em seguida. Cá para mim são tão incomodativos como os pombos. Por causa deles nem nos podemos sentar um bocado nos bancos do pátio do tribunal. Mal nos sentamos, zás. Mesmo em cheio no chapéu. Mas era preciso sermos milionários para os conseguirmos matar a todos, a cinco cêntimos cada 221 tiro. Se ao menos deitassem veneno na praça, viam-se livres deles de um dia para o outro, e se um comerciante não for capaz de impedir a sua criação de andar a correr pela praça fora, o melhor é negociar noutra coisa além de Lplínhas, qualquer coisa que não coma, como por exemplo charruas ou cebolas. E se um homem não alimentar os seus cães, é sinal que já não os quer ou que não devia tê-los. É o que eu digo, se todos os negócios de uma cidade forem geridos como os negócios do campo, acabamos por ter uma cidade do campo. - Não vai adiantar grande coisa se acabarem agora - digo eu. - Têm de se apressar e meter-se à estrada, se quiserem chegar a casa antes da meia-noite. - Bem - diz ele -, o que importa é que se divirtam. Deixá-los gastar algum dinheiro num espectáculo de vez em quando. Os lavradores que vêm dos montes trabalham muito e ganham pouco. - Ninguém os obriga a cultivarem a terra dos montes digo eu. - Ou qualquer outra terra. - O que seria de ti e de mim, se não fossem os lavradores? diz ele.

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- Eu cá já estava em casa a estas horas - digo eu. - Deitado na cama com um saco de gelo na cabeça. - Tens essas dores de cabeça muitas vezes - diz ele. - Por que não vais a um bom dentista? Ele examinou-te bem os dentes esta manhã? - Ele quem? - digo eu. - Esta manhã disseste que ias ao dentista. - É contra eu ter uma dor de cabeça nas horas de expedien- te? - digo eu. - É isso? - Eles já vinham a atravessar a rua, de regresso do espectáculo. Lá vêm eles - diz ele. - Acho que o melhor é ir para a porta da loja. - E lá foi. É curioso que, seja do que for que urna pessoa se queixe, os homens nos digam todos para irmos ao dentista e as mulheres para nos casarmos. E é sempre alguém que nunca fez grande coisa na vida que nos vem dizer como havemos de governar a nossa. É como esses professores da universidade, que nem um par de peúgas têm de seu, a ensinarem-nos como 222 ganhar um milhão em dez anos, e uma mulher que nem marido conseguiu arranjar a dar-nos conselhos sobre como criar uma família. O velho Job chegou com a carroça. Parou e levou o seu tempo a enrolar as rédeas à volta do cabo do chicote. - Então - digo eu. - Foi bom o espectáculo? - Ainda lá não fui - diz ele. - Mas esta noite hei-de ir dê lá por onde dê. - Uma ova é que não foste - digo eu. - Desde as três horas que ninguém te vê. Mr. Earl esteve mesmo agora aqui à tua procura. 1 - Andei a trará da minha vida - diz ele. - Mr. Earl sabe ond'é qu'eu fui. - Podes enganá-lo à vontade - digo eu. - Eu não digo nada. - O Ben é o único qu'eu podia tentá enganá - diz ele. Porqu'havia eu de tentá enganá um home que tanto se me dá qu'o veja sábado à noite como não? A si não tent'enganá-lo diz ele. - É esperto de mais pa mim. É si sinhô - diz ele, fingindo-se muito ocupado a meter cinco ou seis embrulhos pequenos na carroça. - É esperto de mais pa mim. Não há home nesta cidade que se lh`acompare em esperteza. Até engana um home que chega a ser esperto de mais pa ele mesmo. E quem é ele? - digo eu. É Mr. Jason Compson - diz ele. - Toc'andar, Dan! Uma das rodas estava prestes a saltar. Fiquei a olhar para ver se ele saía da rua antes de ela saltar. É o que dá meter um veículo nas mãos de um negro. Eu digo essa traquitana está uma miséria e a senhora há-de conservá-la na cocheira por mais cem anos só para esse rapaz poder ir ao cemitério uma vez por semana. E digo ainda ele não é o primeiro a ter de fazer coisas de que não gosta. Cá por mim obrigava-o a ir no carro, como deve ser, ou então ficava em casa. Ele sabe lá onde vai ou como vai, e nós a termos de manter uma caleche e um cavalo só para ele ir passear aos sábados à tarde. Bem se ralava o Job se a roda ia saltar ou não, desde que depois não tivesse de andar muito até casa. É o que eu digo, o 223 lugar deles é no campo, a trabalharem do nascer ao pôr-do-sol. Não suportam nem a prosperidade nem o trabalho leve. É deixá-los privar com os brancos e já não valem nem o trabalho de os matarmos. Ficam de tal maneira que nos enrolam com toda a facilidade mesmo debaixo do nosso nariz, como o Roskus, cujo único erro foi ter morrido um dia por distracção. Passam a vida a preguiçar, a roubar e a tentarem levar-nos na conversa, levar-nos na conversa, até que um dia não temos outro

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remédio senão dar-lhes uma rareia e mandá-los embora. Bem, o Earl lá sabe. Mas eu, se fosse ele, não queria ver o meu negócio anunciado pela cidade por um negro trôpego e uma carroça que de cada vez que dava uma curva parecia que se partia toda. O sol era agora apenas um reflexo no céu, e lá dentro já começava a ficar escuro. Fui até à porta. A praça estava deserta. O Earl estava lá atrás a fechar o cofre e o relógio começou a dar horas. - Fecha tu a porta das traseiras - diz ele. Fui lá fechá-la e voltei para a loja. - Se calhar vais logo ao espectáculo - diz ele. - Ontem dei-te umas entradas, lembras-te? - Claro - digo eu. - Quere-as de volta? - Não. Não - diz ele. - Só já não me lembrava se tas tinha dado ou não. Era uma pena desperdiçá-las. Trancou a porta, disse Boa-noite e foi-se embora. Os pardais chilreavam ainda nas árvores, mas a praça estava deserta tirando meia dúzia de carros. Estava um Ford parado diante do bar; mas nem para ele olhei. Sei quando já tenho a minha conta. Não me importo de tentar ajudá-la, mas sei quando tenho a minha conta. Acho que podia ensinar o Luster a guiar e assim já podia andar atrás dela o dia inteiro se quisesse, e eu podia ficar em casa a brincar com o Ben. Entrei e comprei dois charutos. Depois resolvi tomar mais um comprimido para as dores de cabeça só para prevenir, e fiquei por ali a dar dois dedos de conversa. - Então - diz o Mac. - Ouvi dizer que este ano apostou nos Yankees. - Para quê? - digo eu. - Na Pennant - diz ele. - Não há ninguém na Liga que lhes ganhe. 224 - Isso é que era bom - digo eu. - Têm os dias contados digo eu. - julga que uma equipa pode ter uma sorte daquelas toda a vida? - Eu não lhe chamo sorte - diz o Mac. - Eu nunca apostaria em nenhuma equipa onde jogasse esse gajo, o Ruth - digo eu. - Mesmo que soubesse que ia ganhar. - Ah não? - diz o Mac. - Posso dizer o nome de uma dúzia de jogadores em cada liga que são melhores que ele - digo eu. - O que é que você tem contra o Ruth? - diz o Mac. - Nada - digo eu. - Não tenho nada contra ele. Nem sequer gosto de olhar para a fotografia dele. - Vim-me embora. As luzes começavam a acender-se e as pessoas regressavam a casa' Às vezes os pardais só se calavam quando era já noite fechada. Na noite em que colocaram os candeeiros novos junto do tribunal eles acordaram e passaram a noite a esvoaçar à volta do edifício e a irem de encontro ás lâmpadas. Andaram nisto duas ou três noites, até que uma manhã tinham desaparecido todos. Mas passados cerca de dois meses, voltaram outra vez. Meti em direcção a casa. As luzes ainda não estavam acesas, mas eles haviam de estar todos à janela e a Dilsey a resmungar na cozinha como se fosse a comida dela que tinha de manter quente até eu chegar. Quem a ouvisse havia de pensar que só havia uma ceia no mundo, e era a que ela tinha de manter à espera por alguns minutos por minha causa. Bem, pelo menos daquela vez não encontrei o Ben e o negro dele pendurados no portão como o urso e o macaquínho no jardim zoológico. É só chegar o pôr-do-sol e lá vai ele para o portão como uma vaca para o estábulo, pendurando-se nele, a abanar a cabeça e a gemer. É para aprender. Se o que lhe tinha acontecido por brincar com portões abertos me tivesse acontecido a mim, nunca mais queria ver um portão na minha vida. Perguntava-me muitas vezes no que estaria ele a pensar enquanto se pendurava no portão a ver as miúdas virem da escola, a tentar querer qualquer coisa que ele já não podia nem queria ter. E o que pensaria ele quando eles o estavam a despir e ele olhava para o seu corpo e desatava a chorar como sempre

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fazia. Mas é o que eu digo ainda 225 o deviam fazer mais vezes. E digo mais, eu sei do que tu precisas do que tu precisas é do que eles fizeram ao Ben e então ias portar-te como deve ser. E, se não sabes o que foi que lhe fizeram, pede à Dilsey que te conte. Havia luz no quarto da Mãe. Arrumei o carro e entrei pela cozinha. O Luster e o Ben estavam lá. - Onde está a Dilsey? - digo eu. - A pôr a ceia na mesa? - Tá lá em cima cá Miss Wine - diz o Luster. - Aquilo é que tem sido. Desde que Miss Quentin chegou. A minha mãe tá lá em cima pá elas não se pegarem. O espectáculo já chegou, Mr. Jason? -já - digo eu. - Pareceu-me ouvi a banda - diz ele. - Quem me dera ir diz ele. - E ré podia, se tivesse vinte cinco cêntimos. A Dilsey apareceu. - Ah já chegou - diz ela. - Qu@andou a fazê té à noite? Sabe qu'eu tenho muito que fazê; porque não chegou a horas? - Se calhar fui ao espectáculo - digo eu. - A ceia já está pronta? - Quem me dera ir - diz o Luster. - E podia se tivesse a minha moeda. - Não tens nada qu'ir pó espectáculo - diz a Dilsey. - Vai pá casa e fica manso - diz ela. - Não vás lá pá cima pô-lo a chorá outra vez. - O que é que se passa? - digo eu. - A Quentin entrou há bocadinho e disse qu'o menino andou a segui-Ia toda a tarde e então Miss Cá line deu-lhe uma descompostura. Porque não a deixa em paz? Não é capaz de vivê na mesma casa com a sua própria sobrinha sem brigá co ela? - Não posso brigar com ela - digo eu - porque não a vejo desde esta manhã. O que é que ela diz que eu fiz desta vez? Que a obriguei a ir à escola? Que malvadez! - digo eu. - É tratá da sua vida e deixá a dela em paz - diz a Dilsey. Eu tomo conta dela s'o menino e Miss Cá line deixarem. Vá lá para dentro e porte-se bem até eu pôr a sopa na mesa. - S'ao menos eu tivesse a minha moeda - diz o Luster podia ir 6 espectáculo. 226 - E se tivesses asas podias voar pó céu - diz a Dilsey. Não quero ouvi falá mais nesse espectáculo. - É verdade - digo eu. - Tenho aqui dois bilhetes que eles me deram. - Tirei-os do casaco. - Tá a pensá usá-los? - diz o Luster. - Eu não - digo eu. - Não ia lá nem que me dessem dez dólares. - Atão dê-m@um, Mr. Jason - diz ele. - Vendo-te um - digo eu. - Que tal? - Mas eu não tenho dinheiro - diz ele. - Que pena - digo eu. Fingi que me ia embora. - Dê-fiium, Mr. Jason - diz ele. - Não vai precisá dos dois. - Cala a boca - diz a Dilsey. - Não sabes qtMe nunca dá nada a ninguém? - Quanto quê por ele? - diz ele. - Cinco cêntimos - digo eu. - Não tenho que chegue - diz ele. - Paciência - digo eu. E dirigi-me para a porta. - Mr. Jason - diz ele. - Porque não te calas? - diz a Dilsey. - Ele tá só a arreliar- -te. Ele vai usá os bilhetes. Vá-s,embora, Jason, e deixe-o em paz. - Eu não os quero para nada - digo eu. Voltei para junto do fogão. - Entrei aqui para os queimar. Mas se quiseres comprar um por um níquel... - digo eu, olhando para ele e abrindo a porta da fornalha.

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- Eu não tenho tanto dinheiro - diz ele. - Paciência - digo eu. - Deitei um dos bilhetes para dentro do fogão. - Oh, Jason - diz a Dilsey. - Não tem vergonha? - Mr. Jason - diz ele. - Po'favô, siô. Eu conserto-lh`os pneus todos os dias durante um mês. - É do dinheiro que eu preciso - digo eu. - É teu por um níquel. - Cala-te, Luster - diz a Dilsey. E deu-lhe um empurrão. Vá - diz ela. - Deite-o lá pa dentro. Vá lá. Acabe lá co'isso. - É teu por um níquel - digo eu. 227 - Vá lá - diz a Dilsey. - Ele não tem um níquel. Vá. Deite-o lá pa dentro. - Então está bem - digo eu. Deitei-o lá para dentro e a Dilsey fechou a porta do fogão. - Um homem do seu tamanho - diz ela. - Fora da minha cozinha. Caluda - diz ela ao Luster. - Queres qu'o Benjy comece? Logo eu peço vinte e cinco cêntimos à Frony e amanhã vais. Agora cala-te. Fui para a sala. Não conseguia ouvir nada do que se passava lá em cima. Abri o jornal. Daí a pouco o Ben e o Luster entraram. O Ben foi para o sítio escuro da parede onde costumava estar o espelho, e pôs-se a esfregar as mãos na mancha, a gemer e a choramingar. O Luster pôs-se a atiçar o lume. - Que estás a fazer? - digo eu. - Hoje não é preciso acender o lume. - É pa vê s'ele se cala - diz ele. - A Páscoa é sempre muito fria - diz ele. - Só que não estamos na Páscoa - digo eu. - Deixa o lume em paz. Ele pousou o atiçador, foi buscar a almofada à cadeira da Mãe, deu-a ao Ben e ele encolheu-se em frente da lareira e calou-se. Comecei a ler o jornal. Continuava a não se ouvir nada lá em cima quando a Dilsey entrou e mandou o Ben e o Luster para a cozinha, dizendo que a ceia estava pronta. - Está bem - digo eu. Ela saiu. Eu fiquei sentado a ler o jornal. Daí a nada vi a Dilsey a espreitar à porta. - Por que não vem comê? - diz ela. - Estou à espera da ceia - digo eu. - já tá na mesa - diz ela. - já o chamei. - Ah sim? - digo eu. - Mas não ouvi ninguém descer. - Elas não vêm - diz ela. - Venha o menino comê, pa eu depois lhes levá qualqué coisa lá cima. - Então estão doentes? - digo eu. - E o que disse o médico? Espero que não seja varíola. - Venha lá, Jason - diz ela. - Pa vê s'eu me despacho. - Está bem - digo eu, e peguei outra vez no jornal. Estou à espera da ceia. 228 Sentia o olhar dela a observar-me da porta. Continuei a ler o jornal. - Pa que faz isso - diz ela - q'ando sabe bem todo o trabalho qu'eu tenho? - Se a mãe estiver pior do que estava quando veio almoçar, então está bem - digo eu. - Mas enquanto eu pagar a comida de pessoas mais novas do que eu, elas têm de vir comê-la à mesa. Avisa-me quando a ceia estiver pronta - digo eu, voltando para o meu jornal. Ouvi-a subir as escadas, a arrastar os pés, a gemer e a queixar-se, como se os degraus fossem a pique e tivessem um metro de altura. Ouvi-a parar junto à porta do quarto da Mãe, depois ouvi-a chamar a Quentin, que devia ter a porta fechada à chave, e depois voltar para o quarto da Mãe e então foi a Mãe que foi chamar a Quentin. Finalmente vieram para baixo. Eu continuava a ler o jornal. A Dilsey voltou a aparecer à porta da sala. - Venha - diz ela. -Antes

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que se lembre dout'a maldade. Esta noite ninguém o atura. Fui para a casa de jantar. A Quentin estava sentada de cabeça baixa. Tinha-se pintado outra vez. O nariz dela parecia um isolador de porcelana. - Ainda bem que se sente com disposição de vir comer à mesa - digo eu à Mãe. - É o mínimo que posso fazer por ti, vir comer à mesa diz ela - por muito mal que me sinta. Sei muito bem que quando um homem trabalha o dia todo gosta de se ver rodeado pela família à hora da ceia. E eu gosto de te ver contente. Só queria que tu e a Quentin se dessem melhor. Ficava muito mais tranquila. - Nós damo-nos bem, sim - digo eu. - Não me importo que ela fique fechada no quarto o dia todo se lhe apetecer. Mas não estou disposto a aturar amuos e disparates à hora das refeições. Sei que é pedir-lhe de mais, mas é assim que eu quero as coisas em minha casa. Na sua casa, queria eu dizer. - A casa é tua - diz a Mãe. - Agora és tu o chefe de família. A Quentin ainda não tinha levantado os olhos da mesa. Eu servi os pratos e ela começou a comer. 229 - Apanhaste um bocado bom de carne? - digo eu. - Se não gostas, posso escolher um melhor. Não respondeu. - Estás a ouvir, apanhaste um bocado bom de carne? digo eu. - O quê? - diz ela. - Sim. Está bom assim. - Vê lá se queres mais um bocadinho de arroz? - digo eu. - Não - diz ela. - Deixa-me só pôr mais um bocadinho - digo eu. - Não quero mais - diz ela. - Obrigada - digo eu. - Não tens de quê. - A dor de cabeça já te passou? - diz a Mãe. - Que dor de cabeça? - digo eu. - Pensei que estavas a ficar com dores de cabeça - diz ela. Esta tarde, quando vieste a casa. - Ali, isso - digo eu. - Não, não chegaram a aparecer. Tivemos tanto que fazer esta tarde que até me esqueci delas. - Foi por isso que chegaste tão tarde? - diz a Mãe. Percebi que a Quentin era toda ouvidos. Olhei para ela. O garfo e a faca não pararam, mas apanhei-a a olhar para mim, baixando rapidamente os olhos para o prato. E então digo: - Não. Emprestei o meu carro a um tipo por volta das três horas e tive de esperar que ele mo trouxesse. - Continuei a comer. - Quem era ele? - diz a Mãe. - Era um daqueles artistas que estão na cidade - digo eu. Parece que o marido da irmã dele andava aí pela cidade com uma mulher e ele queria ir atrás deles. A Quentin continuou a mastigar, perfeitamente imóvel. - Não devias emprestar o teu carro a gente dessa - diz a Mãe. - És bom de mais. É por isso que, se eu puder evitá-lo, nunca te peço nada. -A certa altura eu também fiquei com receio - digo eu. Mas ele voltou sem novidade. Disse que tinha encontrado o que procurava. - Quem era a mulher? - diz a Mãe. - Eu depois digo-lhe - digo eu. - Não gosto de falar destas coisas à frente da Quentin. 230 A Quentin já tinha acabado de comer. De vez em quando bebia água, e depois pôs-se a esmigalhar uma bolacha, com a cara quase em cima do prato.

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- Pois é - diz a Mãe. - Acho que as mulheres que passam o dia fechadas em casa como eu não fazem a mínima ideia do que se passa nesta cidade. - Pois é - digo eu. - Não fazem mesmo. - A minha vida foi tão diferente - diz a Mãe. - Graças a Deus que não sei nada dessas coisas ruins. E nem quero saber. Não sou como muita gente. Eu não disse mais nada. A Quentin ficou ali a esmigalhar a bolacha até eu acabar de comer. Depois, sem olhar para ninguém, disse: - Posso levantar-me? - O quê? - digo eu. - Claro que podes. Estavas à nossa espera? Ela olhou para mim. já tinha esmigalhado o pão todo, mas as mãos dela continuavam a mexer como se ainda estivessem a esmigalhar alguma coisa, e os olhos eram os de alguém que se sentia acossada ou coisa assim, e depois começou a morder os lábios como se quisesse envenenar-se com tanta vermelhidão. - Avó - diz ela. - Avó... - Queres comer mais alguma coisa? - digo eu. - Por que é que ele me trata assim, Avó? - diz ela. - Eu não lhe faço mal nenhum. - Eu quero que vocês se dêem todos bem - diz a Mãe. São tudo o que me resta agora, e quero que passem a dar-se melhor. - A culpa é dele - diz ela. - Ele não me deixa em paz, e eu tenho de o aturar. Se ele não me quer aqui, por que não me deixa voltar para... - Chega - digo eu. - Nem mais uma palavra. - Então por que não me deixa ele em paz? - diz ela. Ele... Ele só... - Ele é o pai que tu nunca tiveste - diz a Mãe. ele que compra o pão que nós comemos. É natural que queira que tu lhe obedeças. 231 A culpa é dele - diz ela. Deu um salto. - Ele obriga-me a ser assim. Se ele ao menos... - olhou para nós, com uns olhos acossados, abanando os braços, pendidos ao longo do corpo. - Se eu ao menos o quê? - digo eu. - Tudo o que eu fizer a culpa é tua - diz ela. - Se eu sou má, é porque tenho de ser assim. És tu que me obrigas. Quem me dera morrer. Quem dera que morrêssemos todos. - Saiu a correr. Ouvimo-la pela escada acima. Depois a porta bateu. - É a primeira coisa acertada que lhe ouvi dizer - digo eu. - Ela hoje não foi à escola - diz a Mãe. - Como é que sabe? - digo eu. - Esteve na cidade? - Sei, é tudo - diz ela. - Gostava que não fosses tão duro com ela. Se eu fizesse isso, tinha de arranjar maneira de a ver mais de uma vez ao dia - digo eu. - Tem de a obrigar a vir para a mesa a todas as refeições. Assim, podia dar-lhe mais um bocado de carne a cada refeição. - Há pequenas coisas que podias fazer - diz ela. - Como por exemplo não ligar nenhuma quando a Mãe me pede que veja se ela vai à escola? - digo eu. Ela hoje não foi à escola - diz ela. - Sei que não foi. Ela diz que esta tarde foi passear de carro com um rapaz e que tu a seguiste. Como é que eu podia ter feito uma coisa dessas - digo eu se andava outra pessoa com o meu carro? Se ela foi à escola ou não isso agora já não interessa - digo eu. - Se se quer preocupar com isso, espere até segunda-feira. Eu queria tanto que tu e ela se dessem bem - diz ela. Mas ela herdou a obstinação toda da família. E do Quentin também. Na época pensei dar-lhe este nome para reforçar a herança que já trazia. Às vezes penso que ela é o instrumento de vingança da Caddy e do Quentin sobre mim. Meu Deus - digo eu. - Que cabeça complicada a sua. Não admira que ande sempre doente.

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- Como? - diz ela. - Não estou a entender. - Espero bem que não - digo eu. - Uma mulher digna não entende muita coisa que é melhor nem saber. 232 - Eram os dois assim - diz ela. - Quando eu tentava corrigi-los, punham-se logo ao lado do teu pai contra mim. Ele passava a vida a dizer que eles não precisavam de ser controlados, que já sabiam muito bem o que era a pureza e a honestidade, que é tudo o que se pode ensinar a alguém. Espero que ele agora esteja satisfeito. - A senhora tem o Ben. - digo eu. - Anime-se. - Eles mantiveram-me deliberadamente fora da vida deles - diz ela. - Era sempre ela e o Quentin. Sempre a conspirarem contra mim. E contra ti também, embora tu fosses muito pequeno para perceberes. Olharam-te sempre a ti e a mim como dois estranhos, como faziamcom o Tio Maury@ Eu sempre disse ao teu pai que tinham liberdade a mais, que andavam de mais um com o outro. Quando o Quentin entrou para a escola tivemos de a deixar ir logo no ano seguinte, para poder estar ao pé dele. Ela não suportava que algum de vocês fizesse alguma coisa que ela não pudesse fazer. já era a vaidade, a vaidade e o falso orgulho. E depois quando a vida dela se começou a complicar eu sabia que o Quentin ia achar que tinha de fazer também qualquer coisa ruim. Mas nunca acreditei que ele pudesse ser egoísta ao ponto de... Nunca imaginei que... - Talvez ele soubesse que ia ser uma rapariga - digo eu. E que outra como ela era mais do que ele podia suportar. - Ele podia tê-la dominado - diz ela. - Ele parecia ser a única pessoa por quem ela tinha alguma consideração. Mas isso também faz parte da vingança, acho eu. - Enfim - digo eu. - Foi uma pena não ter ido eu no lugar dele. A senhora agora estaria muito melhor. - Dizes isso só para me magoares - diz ela. - Mas eu mereço. Quando começaram a vender as terras para o Quentin poder ir para Harvard disse ao teu pai que ele devia dar-te o valor equivalente. Depois, quando o Herbert se ofereceu para te levar para o banco eu disse O Jason já tem um emprego e quando as despesas começaram a subir e eu me vi forçada a vender a inobilia e o resto das pastagens, escrevi-lhe imediatamente a dizer que ela tinha de compreender que ela e o Quentin já tinham recebido a parte deles e um bocado da parte do Jason também e que dependia agora dela compensar o irmão. Disse-lhe que devia 233 isso ao pai. Na altura ainda acreditava nessas coisas. Mas não passo de uma pobre velha; fui criada a acreditar que as pessoas eram capazes de renunciarem a si mesmas para ajudarem a família. A culpa é minha. Tiveste razão em me recriminares. - Julga que eu preciso da ajuda de alguém para governar a minha vida? - digo eu. - E muito menos de uma mulher que nem pode dizer quem é o pai da própria filha. - jason! - diz ela. - Pronto - digo eu. - Não quis dizer isso. Sabe bem que não. - Se eu achasse que isso era possível, depois de tudo o que já sofri. - Claro que não - digo eu. - Não quis dizer isso. - Espero ao menos ser poupada a isso - diz ela. - Claro que sim - digo eu. - Ela parece-se demais com eles para termos dúvidas. - Não ia suportar uma coisas dessas - diz ela. - Então não pense mais nisso - digo eu. - Ela tem-na continuado a aborrecer para sair à noite?

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- Não. Fi-la entender que era para o bem dela e que um dia ainda me havia de agradecer. Leva os livros para o quarto e fica lá a estudaL Às vezes são onze horas e a luz ainda está acesa. - Como sabe que ela está a estudar? - digo eu. - Não sei que mais havia de estar a fazer lá sozinha? - diz ela. - Nunca foi de grandes leituras. - Não - digo eu. - A senhora não sabe, e dê graças a Deus digo eu. Mas para quê dizê-lo em voz alta. Só se fosse para ela me começar a chorar no ombro outra vez. Ouvi-a subir as escadas. Depois chamou a Quentin e a Quentin, de dentro do quarto, diz O que é? Boa-noite, diz a Mãe. Depois ouvi a chave rodar na fechadura e a Mãe ir para o quarto. Quando terminei o charuto e fui para cima, a luz ainda estava acesa. Via a fechadura vazia, mas não ouvi barulho. O estudo era silencioso. Talvez tivesse aprendido isso na escola. Dei as boas-noites à Mãe, fui para o meu quarto, tirei a caixa e contei-o outra vez. Ouvia o Grande Capão dos Estados Unidos a roncar 234 como uma plaina mecânica. Li algures que fazem isso aos homens para eles ficarem com voz de mulher. Talvez ele não soubesse o que lhe tinham feito. Acho que ele nem sabia o que tinha tentado fazer, ou por que razão Mr. Burgess lhe batera com uma estaca que arrancou da vedação. E se o tivesse mandado para Jackson enquanto estava sob os efeitos do éter, ele não ia dar pela diferença. Mas isso era simples de mais para passar pela cabeça de um Compson. Tinha de ser pelo menos duas vezes mais complicado. Esperarem para fazer isso até ele fugir e tentar atirar-se a uma garota no meio da rua na frente do pai e tudo. Bem, é o que eu digo, começaram tarde derríais com os cortes e acabaram demasiado cedo. Sei pelo menos de mais dois que precisavam de qualquer coisa do gênero, e um deles não está nem a dois quilómetros de distância. Mas acho que nem isso ia valer de alguma coisa. É o que eu digo, quem nasce puta morre puta. Só queria vinte e quatro horas sem ter um desses malditos judeus de Nova lorque a dizer-me o que se deve fazer. Não quero ganhar uma fortuna; isso é coisa para papalvos. Só quero uma oportunidade de recuperar o meu dinheiro. E quando isso acontecer podem trazer cá para casa os bordéis em peso e os manicómios e então podem dormir dois na minha.cama e outro pode ficar com o meu lugar à mesa. Oito de Abril de 1928 O dia amanheceu frio e fristonho, trazendo de nordeste uma muralha de parda luminosidade que, em vez de se dissolver em humidade, parecia desintegrar-se em minúsculas partículas venenosas, quase pó, que, quando a Dilsey abriu a porta do casebre e se assomou ao relento, se lhe infiltraram lateralmente pela carne, deixando uma camada, não de gotículas de água, mas de uma substância semelhante na textura a um óleo muito fino e semi-solidificado. Trazia um chapéu rígido de palha todo preto plantado em cima do turbante e uma capa de veludo castanho, com uma barra de pele indefinida e carcomida por cima de um vestido de seda de cor púrpura, e ficou parada à porta, erguendo para o ar o rosto milenário e encovado e uma mão descarnada de palma mole como a barriga de um peixe, a testar a atmosfera, afastando em seguida a capa para o lado e examinando a frente do vestido. O vestido caía-lhe solto desde os ombros sobre os peitos descaídos, cintava ligeiramente sobre o ventre e alargava de novo para baixo, em balão, sobre os saiotes de tons esplêndidos, mas esvaídos, que ela ia tirando um a um à medida que a Primavera avançava e os dias quentes se instalavam. Outrora de fartas carnes, o seu esqueleto erguia-se agora sob as pregas soltas da pele frouxa que o

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embrulhava e que ainda se esticava sobre um ventre quase hidrópico, como se tecidos e músculos tivessem sido a coragem ou a força de que os dias e os anos se tinham alimentado, até nada mais restar além do indomável esqueleto, erecto como ruína ou marco milenário sobre as sonolentas e imperscrutáveis entranhas, e encimado por um rosto descarnado, onde os próprios ossos pareciam sair da carne, um rosto que ela virava 237 para o dia que nascia com uma expressão a um tempo fatalista e de pueril desilusão, após o que deu meia volta, entrou em casa e fechou a porta. O terreno junto à porta era pelado, coberto de uma espécie de pátina do pisar de gerações de pés descalços, semelhante a prata velha ou às paredes das casas mexicanas caiadas à mão. Ao lado da casa, dando-lhe sombra no Verão, havia três amoreiras de folhas cobertas de penugem que mais tarde se abririam plácidas e lisas como a palma de uma mão ondulando ao sabor das brisas. Um casal de gaios surgidos do vazio rodopiou com as rajadas como tiras de pano ou de papel de cores garridas e pousou num ramo de amoreira, onde ficou a baloiçar-se para baixo e para cima soltando pios guturais e lançando gritos ao vento, que o vento dilacerava e propagava como tiras de papel ou de pano. E logo mais três se lhes juntaram e todos se baloiçavam e saltitavam nos ramos retorcidos, sem pararem de gritar. A porta do casebre abriu-se e Dilsey apareceu mais uma vez, agora de chapéu de feltro, à homem, e capote militar de bainha esfiapada, por baixo do qual caía em tufos incertos um vestido azul de algodão, que ondulava em torno dela quando atravessou o pátio e subiu os degraus da entrada da cozinha. Voltou a aparecer daí a nada com um chapéu-de-chuva aberto, que virava contra o vento, foi até à pilha de lenha e pousou o chapéu-de-chuva, mas sem o fechar. Deitou-lhe a mão imediatamente para não voar e ficou com ele na mão a olhar em volta. Depois fechou-o, deitou-o no chão e apanhou um braçado de lenha para acender o fogão, apertando-o contra o peito com o braço em ângulo recto, apanhando em seguida o chapéu-de-Chuva e abrindo-o finalmente, encaminhando-se de novo para os degraus com a lenha em equilíbrio precário, enquanto se esforçava por fechar o chapéu-de-chuva que encostou a um canto mesmo por detrás da porta. Deitou a lenha para dentro de um caixote que estava atrás do fogão. Tirou o capote e o chapéu, pôs um avental imundo que estava pendurado na parede e acendeu o lume no fogão. Enquanto se entregava a esta tarefa, raspando as barras da grelha e batendo com as tampas da fornalha, Mrs. Compson começou a chamá-la do cimo das escadas. 238 Trazia um roupão de cetim preto acolchoado, que apertava com a mão por baixo do queixo. Na outra mão tinha um saco de borracha vermelho de água quente e estava ao cimo das escadas das traseiras a gritar Dilsey, sem inflexão e a espaços cadenciados, gritando pela escada abaixo, a chamar para a escuridão, que clareava onde se projectava no chão o reflexo tíbio da janela. Dilsey - chamava ela, sem ênfase, inflexão ou pressa, como se não esperasse uma resposta. - Dilsey. Dilsey respondeu, parando de traquinar no fogão, mas, sem lhe dar tempo de atravessar a cozinha, Mrs. Compson chamou-a outra vez, e ainda outra, anté's de ela sair pela casa de jantar e a sua cabeça se assomar na mancha de penumbra da janela. - Pronto - disse Dilsey. - Pronto, já cá tou. Encho-o assim qt@houvé água quente. - Apanhou as saias e subiu a escada, tapando a luz. - Deixe-o aí e volte pá cama.

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- Não estava a perceber o que se passava - disse Mrs. Compson. - Há pelo menos uma hora que estou acordada e não ouvia barulho nenhum na cozinha. - Deixe-o ficá e volte pá cama - disse Dilsey. Arrastava-se pela escada acima, informe, respirando a custo. - O lume tá pronto num minuto e a água ferve em dois. - Há pelo menos uma hora que estou acordada - disse Mrs. Compson. - Pensei que estivesses à espera de que eu descesse para acenderes o lume. Dilsey chegou ao cimo das escadas e pegou no saco de água quente. - Tá pronto num minuto - disse ela. - O Luster deixou-se dormir esta manhã, esteve até às tantas no tal espectáculo. Eu mesma acendo o lume. Agora vá, pa não acordar os outros enquanto eu não tive despachada. Se deixares o Luster fazer coisas que interferem com o trabalho dele, tu é que sofres as consequencias - disse Mrs. Compson. - Se o Jason sabe disto não vai gostar nada. Sabes bem que não. - Não foi co dinheiro do Jason qiMe lá foi - disse Dilsey. Disso pode tê a certeza. - Desceu a escada. Mrs. Compson voltou para o quarto. Quando se metia outra vez na cama ouviu a Dilsey a descer a escada com uma lentidão dolorosa e aterrado239 ra, que seria de endoidecer se não tivesse cessado depois de ela passar as portas de batente da copa. Entrou na cozinha, acendeu o lume e começou a preparar o pequeno almoço. Deixou-o a meio, foi à janela e olhou na direcção da casa dela. Depois foi até à porta, abriu-a e gritou para a intempérie: - Luster! - chamou ela, pondo-se à escuta, desviando a cara do vento. - Então, Luster! - Escutou de novo, e, quando se preparava para gritar outra vez, apareceu Luster a dobrar a esquina da cozinha. _ Siôra? - disse inocentemente, tão inocentemente que Dilsey o olhou de alto a baixo por um momento, imóvel, com um olhar que era bem mais que mera surpresa. - Onde tavas tu metido? - disse ela. - Em parte nenhuma - disse ele. - Só n'adega. - Que tavas tu a fazê n'adega? - disse ela. - Não fiques aí à chuva, meu palerma - disse ela. - Não tava a fazê nada - disse ele, subindo os degraus. - Não t'atrevas a entrá por esta porta sem um braçado de lenha - disse ela. - já tive d'acartá a tua lenha e acendê o teu lume. Não te disse ontem à noite pa não saíres sem deixares aquele caixote cheio de lenha inté cima? - E eu enchi-o - disse Luster. - Então p'ond'é qu'ela foi? - Não sei, eu cá não a levei pa lado nenhum. - Tá bem, então agora enche-o outra vez - disse ela. - E vai lá cima ver o Benjy. Fechou a porta. Luster dirigiu-se para a pilha de lenha. Os cinco gaios esvoaçaram à volta da casa, a gritarem, e voltaram para as amoreiras. Ele observou-os. Apanhou uma pedra e atirou-lha. - Chôô - disse ele. - Voltem pé inferno qu'é lá o vosso lugá. Hoje inda não é segunda-feira.' Apanhou uma montanha de achas para o fogão. Mas como não via nada por cima delas, foi a cambalear até aos degraus e de encontro à porta da cozinha, espalhando algumas. Dilsey 1. Dia em que, segundo a crença local, os gaios, pássaros do inferno, saíam de lá para descerem à terra. (N. da T) 240 abriu-lhe a porta e ele entrou aos tropeções pela cozinha dentro. - Então, Luster! - exclamou ela, mas ele já tinha atirado a lenha para

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dentro do caixote com grande estrondo. - Safa! disse ele. - Queres acordar toda a gente? - disse Dilsey, dando-lhe uma palmada no pescoço. - E agora vai lá cima e trata de vestires o Benjy. - Sissiô - disse ele, e dirigiu-se para a porta das traseiras. - Onde vais? - disse Dilsey. - Achei qu@era melhor ir de volta e entrá pela frente, pá não acordá Miss Cá line e os outros. @ - Vai pela escada das traseiras como eu te mandei e trata de vestires o Benjy - disse Dilsey. - Vá, toc'andar. - Sissiô - disse Luster. Voltou para trás e saiu pela porta da casa de jantar. Passado algum tempo a porta deixou de bater. Dilsey preparava-se para fazer bolachas. Enquanto peneirava a farinha para cima da tábua com mão firme, ia cantarolando, primeiro só para si, uma cantilena sem música nem palavras, repetitiva, tristonha e chorosa, austera também, enquanto peneirava e a farinha caía fina e em monte em cima da tábua do pão. O calor do fogão já começara a aquecer a cozinha e a enchê-la com o crepitar da lenha, e ela cantava agora mais alto, como se também a sua voz tivesse descongelado com o calor, e nisto Mrs. Compson chámou-a outra vez lá de cima. Dilsey levantou a cabeça, como se os seus olhos pudessem de facto penetrar nas paredes e no tecto e ver • velha senhora no alto das escadas com o seu roupão acolchoado, • chamá-la com maquinal regularidade. - Valha-me Nosso Sinhô! - disse Dilsey. Pousou a peneira, sacudiu o avental, limpou as mãos, tirou o saco de água quente da cadeira onde o tinha deixado e, usando a ponta do avental, pegou na pega da chaleira que começava a fumegar. - Só um minuto - gritou ela. - A água só agora é qu'aqueceu. Porém, não era do saco de água quente que Mrs. Compson precisava; mas Dilsey, pegando-lhe pelo gargalo como uma galinha morta, chegou-se ao fundo das escadas e olhou para cima. - Então o Luster não tá lá em cima co ele? - disse ela. - O Luster não esteve cá em cima. Tenho estado deitada a ver 241 se o oiço. já sabia que ele se ia atrasar, mas tinha esperança de que chegasse a tempo de evitar que o Benjamin incomodasse o Jason no único dia da semana em que o Jason. pode dormir até tarde. - Não sei com'é que quê cas pessoas consigam dormir consigo aí no corredô a gritá desde madrugada - disse Dilsey. Começou a subir as escadas, arrastando-se a custo. - Eu mandei o rapaz aí pa cima há meia hora. Mrs. Compson olhava para ela, apertando o roupão rente ao queixo. - Que vais fazer? - disse ela. - Vou vesti o Berijy e trazê-lo pá cozinha, ond'ele não acor- de o Jason nem a Quentin - disse Dilsey. - já começaste a fazer o pequeno almoço? - Eu trato disso tamém - disse Dilsey. melhor ir metê-se na cama ré o Luster lhe acendê o lume. Tá muito frio esta manhã. - Sei bem que está - disse Mrs. Compson. - Tenho os pés que nem gelo. Estavam tão frios que até acordei. - Ficou a ver Dilsey subir as escadas, o que foi tarefa demorada. - Sabes como o Jason fica irritado quando o pequeno almoço se atrasa disse Mrs. Compson. - Só posso fazê uma coisa de cada vez - disse Dilsey. Volte pá cama, antes qtíinda me dê trabalho esta manhã. - Se vais largar tudo para ires vestir o Benjamin, o melhor é eu ir para baixo e fazer o pequeno almoço. Sabes tão bem como eu como o Jason fica quando o pequeno almoço se atrasa. - E quem é qu'o vai comê? - disse Dilsey. - Sim, diga-me lá. Vá-se

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deitar - disse ela, continuando a arrastar-se pela escada acima. Mrs. Compson estava parada a vê-Ia subir, apoiada à parede com uma mão e a segurar o roupão com a outra. - Vais acordá-lo de propósito só para o vestires? - disse ela. Dilsey parou. Ficou ali, com o pé no ar a caminho do degrau de cima, a mão na parede e o clarão cinzento da janela atrás das costas, imóvel e informe, perplexa. - Então ele 'irida não tá acordado? - disse ela. - Não estava quando espreitei - disse Mrs. Compson. Mas já está na hora. Ele nunca acorda depois das sete e meia. Sabes bem que não. 242 Dilsey não disse nada. Não esboçou qualquer gesto, mas, embora não a pudesse ver a não ser como uma forma indistinta e sem dimensão, Mrs. Compson sabia que ela tinha baixado um pouco a cabeça, na postura característica das vacas quando chove, com o saco de água quente vazio pendurado pelo gargalo. Não és tu quem sofre as consequencias - disse Mrs. Compson. - A responsabilidade não é tua. Tu podes ir-te embora. Não tens de carregar esta cruz dia após dia. Não lhes deves nada a eles, nem à memória de Mr. Compson. Sei que nunca gostaste do Jason. E também nunca fizeste nada para disfarçares. Dilsey não respondeu. Virou-se muito devagar e desceu as escadas, levando o corpo atrás, degrau a degrau, como fazem as crianças pequenas, apoiando-se à parede com a mão. - Vá-se deitá e deixe-o em paz - disse ela. - Não volte lá. Eu mando o Luster assim qu'o encontrá. Voltou para a cozinha. Espreitou para o fogão e depois pôs o avental pela cabeça, o capote pelas costas, abriu a porta do pátio e olhou para um lado e para o outro. A morrinha batia-lhe na cara, áspera e miudinha, mas não se via nada que mexesse. Desceu os degraus, cautelosamente, como se não quisesse fazer barulho, e contornou a cozinha. Nesta altura apareceu Luster todo lampeiro e inocente a sair da porta da adega. Dilsey parou. - Qiandas tu a fazê? - disse ela. - Nada - disse Luster. - Mr. Jason mandou-me vê donde é que vem a água que pinga r@adega. - E quando é qu'ele te mandou fazê isso? - disse Dilsey. Foi no Dia d'Ano Novo que passou, não foi? - Achei que podia ir lá vê enquanto eles dormiam - disse Luster. Dilsey dirigiu-se para a porta da adega. Ele afastou-se e ela espreitou para baixo, perscrutando a penumbra impregnada de um cheiro a terra molhada, bolor e borracha. - Hum! - disse Dilsey. Olhou outra vez para Luster. Ele enfrentou o seu olhar com uns olhos transparentes, inocentes, francos. - Não sei o qu'andas a fazê, mas não tens nada de vi p'aqui. Andas a vê se m'atentas esta manhã, como os outros, não é? Vai já lá cima tratá do Benjy, ouviste? 243 - Sissiô - disse Luster. E dirigiu-se lesto para os degraus da cozinha. - Vem cá - disse Dilsey. - Acarta-me outro braçado de lenha enquanto aqui estás. - Sissiô - disse ele. - Passou por ela nos degraus e foi até à pilha de lenha. Quando daí a pouco foi de encontro à porta novamente, outra vez invisível e sem ver nada, ajoujado sob o feixe de lenha, Dilsey abriu a porta e guiou-o pela cozinha fora com mão firme. - Vá, agora vê lá s'atiras pó caixote outra vez - disse ela. vá. - Tem de sê - disse Luster, ofegante. - Não pode sê doutra maneira. - Então fica aí co ela e espera um instante - disse Dilsey. E começou

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a arrumar a lenha acha por acha. - Que te deu esta manhã? Té hoje, sempre que te mandei à lenha nunca trouxeste mais de seis cavacos de cada vez pa não te cansares. O qu'é que tu me quês pedi agora? Os músicos inda não se foram embora? -já, sissiô. já foram. Ela meteu no caixote o último cavaco. - Agora vai lá cima trará do Benjy com'eu te disse - disse ela. - E não quero ouvi mais ninguém a chamá por mim do cimo das escadas té eu tocá a campainha. Tás a ouvir? - Sissiô - disse Luster. E desapareceu pela porta de batente. Dilsey deitou mais lenha no fogão e voltou para a tábua do pão, retomando a cantoria. A cozinha estava cada vez mais quente. Enquanto andava de um lado para o outro a juntar os ingredientes necessários para o pequeno almoço, a pele de Dilsey depressa adquiriu uma tonalidade rica e lustrosa, comparada com a que a dela e a de Luster tinham antes, como se estivessem cobertas por uma fina camada de cinza. Na parede, por cima do aparador, invisível excepto à noite, quando a luz do candeeiro lhe incidia, e mesmo assim conservando uma certa profundidade enigmática por ter apenas um ponteiro, soava o tic-tac de um relógio de caixa, que a certa altura, e depois de emitir um som preliminar como se a apurar a garganta, acabou por dar cinco badaladas. 244 - Oito horas - disse Dilsey. Parou e levantou a cabeça, para escutar. Mas só se ouvia o ruído do relógio e do lume. Abriu o forno e olhou para o tabuleiro, ficando ali curvada enquanto alguém descia a escada. Ouviu passos na casa de jantar, depois a porta abriu-se e Luster entrou, seguido de um homenzarrão que parecia ter sido talhado de um material cujas partículas não quiseram ou não puderam aderir umas às outras ou à forma que as moldou. A sua pele era mortiça e sem pêlos; hidrópico também, movia-se com passo incerto e balançado, como um urso amestrado. O cabelo era claro e ralo. Tinha sido suavemente escovado sobre a restá como o dos meninos nos daguerreótipos. Os olhos eram límpidos, azul pálido como as fidalguinhas-dos-jardins, e a boca de lábios grossos pendia aberta, deixando escapar um fio de baba. - Ele terá frio? - disse Dilsey. Limpou as mãos ao avental e tocou-lhe na mão. - S'ele não tem, tenho eu - disse Luster. - A Páscoa é sempre fria. Nunca falha. Miss Ca'line diz que se vomecê não tivé tempo de lhe prepará o saco d'água quente não faz mal. - Valha-me Nosso Sinhô - disse Dilsey. Puxou uma cadel- ra para o canto, e meteu-a entre o caixote da lenha e o fogão. O homenzarrão sentou-se nela, obediente. - Vai à casa de jantá e vê ond'é qu'eu pus o saco - disse Dilsey. Luster foi buscar o saco de água quente à casa de jantar e Dilsey encheu-o e deu-lho. - Vá despacha-te - disse ela. - Vê s'o Jason já tá acordado. Diz-lhes que tá tudo pronto. Luster saiu da cozinha. Ben ficou sentado ao lado do fogão. Deixara-se cair abandonado na cadeira, sem se mexer, excepto a cabeça, que balançava sem parar, enquanto fixava em Dilsey o olhar doce e ausente, seguindo-lhe os movimentos. Luster voltou. - Ele já tá a pé - disse ele. - Miss Ca'line diz pa pô na mesa. - Chegou-se para o fogão e estendeu as mãos com as pal- mas para baixo por cima da fornalha. - Ele já tá a pé - disse ele. - E não tá pa graças. - O qu'é qu'aconteceu? - disse Dilsey. - Sai daí. Como é qu'eu posso fazé alguma coisa contigo em cima do fogão? - Tenho frio - disse Luster. 245

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- Devias tê pensado nisso enquanto tavas lá em baixo dadega - disse Dilsey. - O qdé qu 'o Jason tem? - Diz qu'eu e o Benjy partimos o vidro da janela do quarto dele. E tá mesmo partido? - disse Dilsey. É o qu'ele diz - disse Luster. - Diz que fui eu. Corno é qu'isso pode sê, s'ele tem o quarto fechado à chave de dia e de noite? - Diz qu'o parti a atirá-lhe pedras - disse Luster. - E partiste? - Nassinhô - disse Luster. - Não mintas, rapaz - disse Dilsey. - Não fui eu - disse Luster. - Pergunte é Benjy se fui eu. Nem pa lá olhei. - Então quem pode tê sido? - disse Dilsey. - Ele tá co'isso qulé só p1acordá a Quentin - disse ela, tirando o tabuleiro das bolachas do forno. - Deve sê - disse Luster. - Gente maluca. Inda bem que não sou com@eles. - Não és como quem? - disse Dilsey. - Pois sempre te digo uma coisa, negrinho duma figa, tens tanta ruindade dos Compsons nesse corpo como qualquer deles. Tens mesmo a certeza que não partiste a janela? - E pa qu'é qu'eu ia parti-la? - E pa qu'é que tu fazes as outras maldades? - disse Dilsey. - Toma conta dele agora, pa ele não queimar a mão outra vez enquanto eu acabo de pô a mesa. Foi para a casa de jantar, e eles ouviram-na andar de um lado para o outro, e depois voltou para a cozinha, pôs um prato em cima da mesa e encheu-o de comida. Ben observava-a, choramingando, emitindo sons leves e ansiosos. - Pronto, meu amô - disse ela. - Aqui tá o seu pequen'almoço. Traz a cadeira dele p'aqui, Luster. - Luster trouxe a cadeira e Ben sentou-se, a gemer e a choramingar. Dilsey atou-lhe um pano ao pescoço e limpou-lhe a boca com a ponta. E vê se desta vez não lhe sujas o fato todo - disse ela, dando uma colher a Luster. 246 Ben parou de gemer. Observava a colher enquanto ela subia até à sua boca. Era como se nele até a ansiedade fosse muscular e a fome inexpressiva, sem que ele soubesse que era fome. Luster dava-lhe de comer com perícia e indiferença. De vez em quando a atenção voltava por tempo suficiente para lhe permitir fazer uma finta com a colher e obrigar Ben a fechar a boca em falso, mas era evidente que Luster estava com a cabeça muito longe. Tinha a mão livre pousada nas costas da cadeira e os dedos tamborilavam tentativainente, suavemente, sobre a superficie inerte, como se do vazio se elevasse uma música inaudível, e uma vez chegou mesmo a esquecer-se de fazer negaças a Ben com a colhá, enquanto os seus dedos faziam negaças na madeira arrancando um arpeio mudo e arrebatado, até Ben lhe chamar a atenção pondo-se de novo a choramingar. Dilsey andava de um lado para o outro na casa de jantar. Nisto, tocou uma campainha sonora e cristalina, e Luster ouviu na cozinha Mrs. Compson e Jason a descerem a escada, e a voz de Jason, e pôs-se a escutar de olhos em alvo. - Claro, foram lá eles que o partiram - dizia Jason. - Claro que não. Se calhar foi o mau tempo. - Não sei como isso foi possível - disse Mrs. Compson. O teu quarto fica fechado à chave o dia todo, desde que sais para a cidade. Nenhum de nós lá entra a não ser ao domingo, para fazer limpeza. Não quero que penses que eu era capaz de entrar onde não sou desejada, ou que deixava entrar lá alguém. - Não disse que foi a Mãe que o partiu, pois não? - disse Jason.

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- Eu não quero entrar no teu quarto - disse Mrs. Compson. - Respeito muito a privacidade de toda a gente. Não passava do limiar da porta, nem que tivesse a chave. - Eu sei - disse Jason. - Sei que as suas chaves não entram na fechadura. Foi por isso que a mudei. O que eu quero saber é como foi que o vidro se partiu. - O Luster garante que não foi ele - disse Dilsey. - Isso já eu sabia mesmo sem lhe perguntar - disse Jason. - Onde está a Quentin? - disse ele. - Ond'há-de ela tá é domingo de manhã? - disse Dilsey. - O qu'é que lhe deu nestes últimos dias? - Bem, tudo isso vai mudar - disse Jason. - Vai lá acima e diz-lhe que o pequeno almoço está pronto. - Deixe-a tá em paz, Jason - disse Dilsey. - Ela levanta-se pa tomá o pequeri'almoço tod'a semana, e Miss Ca'line deixa-a ficá na cama ó domingo. Sabe bem qu'é assim. - Não posso sustentar uma cozinha cheia de negros para estarem à disposição dela, por mais que gostasse de o fazer disse Jason. - Vai dizer-lhe para vir tomar o pequeno almoço. - Nunca ninguém teve d'a servir - disse Dilsey. - Eu deixo-lh`o pequen'almoço na estufa e ela... - Ouviste o que eu te disse? - disse Jason. - Ouvi - disse Dilsey. - É só o qu'eu oiço quando tá em casa. Se não é ca Quentin ou ca sua mãe, é co Luster ou co Benjy. Porqu'é qu'o deixa sê assim, Miss Uline? - É melhor fazeres o que ele diz - disse Mrs. Compson. Ele agora é o chefe da família. Tem todo o direito de querer que respeitemos os seus desejos. Eu tento, e se eu posso, tu também podes. - É preciso sê mesmo muito malvado p'obrigá a Quentin a leventá-se só porque Ih`apetece - disse Dilsey@ - Se calhá julga que foi ela que partiu a janela. - Capaz disso era ela, se se lembrasse - disse Jason. - Vá, vai fazer o que eu te mandei. - E não era eu qu 1a censurava s'o fizesse - disse Dilsey, dirigindo-se para as escadas. - Consigo sempre a implicá co ela quando tá em casa. - Cala-te Dilsey - disse Mrs. Compson. - Não é da tua conta nem da minha dizer ao Jason o que ele há-de fazer. Às vezes acho que ele está errado, mas procuro fazer-lhe as vontades para * bem de todos. Se eu tenho força suficiente para vir para a mesa, * Quentin também tem de ter. Dilsey saiu. Ouviram-na subir as escadas. Ouviram-na durante muito tempo a subir as escadas. - Tem uns criados de primeira - disse Jason. Serviu a mãe e serviu-se a ele. - Já alguma vez teve algum que valesse ao menos o trabalho de o matar? Deve ter tido vários antes de eu ter idade suficiente para me lembrar. 248 - Tenho de os tratar bem - disse Mrs. Compson. Dependo deles para tudo. Não é como quando tinha saúde. Quem me dera. Quem me dera ser capaz de tratar da casa sozinha, Pelo menos tirava esse peso das tuas costas. - E havíamos de viver numa linda pocilga - disse Jason. Despacha-te Dilsey - gritou ele. - Sei que me censuras por lhes ter dado hoje folga para irem à igreja - disse Mrs. Compson. - Irem aonde? - disse Jason. - O raio do espectáculo ainda cá está? - À igreja - disse Mrs. Çompson. - Os negros vão fazer uma celebração especial de Páscoa. Prometi à Dilsey há duas semanas que os deixava

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ir. - O que quer dizer que vamos comer o almoço frio - disse Jason - Se é que vai haver almoço. - Sei que a culpa foi minha - disse Mrs. Compson. - Sei que me censuras por isso. - Por isso o quê? - disse Jason. - Não foi a Mãe que ressuscitou Cristo, pois não? Ouviram Dilsey subir os últimos degraus e depois os pés a arrastarem-se lentamente pelo corredor. - Quentin - disse ela. Quando ela chamou da primeira vez Jason pousou o garfo e a faca e ele e mãe pareceram ficar os dois suspensos, à espera, cada um na sua cabeceira da mesa, em poses idênticas; ele, frio e astuto, de cabelo frisado, castanho e espesso, penteado com dois caracóis de cada lado sobre a testa, lembrando a caricatura de um dono de restaurante, e com uns olhos de avelã orlados a negro, como dois berlindes; e ela, fria e sofrida, de cabelo completamente branco, e olhos inchados, baços e tão negros que pareciam só pupila ou só íris. - Quentin - disse Dilsey. - Levante-se meu amô. Eles tão à sua espera pé> pequen'almoço. - Não consigo perceber como é que a janela se partiu disse Mrs. Compson. - Tens a certeza de que foi ontem? Podia já estar assim há muito tempo, com o tempo quente que tem feito. O caixilho superior, por detrás da persiana, assim... É a última vez que lhe digo que foi ontem que isto acon249 teceu - disse Jason. - Acha que não conheço o quarto onde durmo? Acha que eu era capaz de dormir nele uma semana com um buraco na janela por onde passa uma mão... - a voz sumiu-se-lhe, apagou-se-lhe na garganta, e ele pousou na mãe uns olhos vazios de tudo. Era como se os olhos sustivessem a respiração, enquanto a mãe olhava para ele, com o rosto flácido e sofrido, interminável, clarividente e, no'entanto, obtuso. Estavam eles assim quando Dilsey repetiu: - Quentin. Não teja a brincá comigo. Venha tomá o pequen'almoço, meu amô. Eles tão à sua espera. - Não percebo - disse Mrs. Compson. - Parece mesmo que alguém tentou assaltar a casa... - Jason deu um salto. A cadeira caiu para trás. - O que... - disse Mrs. Compson, olhando para ele boquiaberta, quando o viu passar por ela a correr e galgar as escadas desvairado, cruzando-se com Dilsey. A cara dele estava na sombra e Dilsey disse: _ Ela tá ca birra. A sua mãe não abriu... - Mas Jason continuou a correr e meteu pelo corredor fora direito à porta dela. Não a chamou. Agarrou a maçaneta e tentou rodá-la. Depois ficou com a mão na maçaneta e a cabeça ligeiramente curvada, como se estivesse a escutar qualquer coisa vinda de muito mais longe do que o espaço que o quarto delimitava, qualquer coisa que ele já tinha ouvido antes. A sua atitude era a de alguém que finge escutar para se convencer de que não ouve o que realmente está a ouvir. Atrás dele veio Mrs. Compson, a subir a escada e a chamar por ele. Nisto, viu Dilsey e parou de o chamar, começando então a chamar pela Dilsey. -Já lhe disse qu'ela 'irida não destrancou essa porta - disse Dilsey. Quando ela falou, ele voltou-se e correu para ela, mas a sua voz era calma''natural. - Ela traz a chave com ela? - disse ele. Quero dizer, tem-na com ela agora, ou será que... - Dilsey - disse Mrs. Compson das escadas. - O qu'é? - disse Dilsey. - Por que não deixa... - A chave - disse Jason. - A chave do quarto. Ela trá-la sempre com ela, não traz? A Mãe. - Nisto, viu Mrs. Compson e foi ter com ela ao fundo das escadas. - Dê-me a chave - dis250 se ele, pondo-se a vasculhar nos bolsos do vestido preto ruçado que

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ela trazia. Ela resistiu. - jason - disse ela. - Jason! Será que tu e a Dilsey querem pôr-me de cama outra vez? - disse ela, tentando afastá-lo. - Não podes ao menos deixar-me passar um domingo sossegada? - A chave - disse Jason, agarrando-a. - Dê-ma cá. Olhou para trás, para a porta, como se esperasse vê-Ia abrir-se por encanto antes de ele lá voltar com a chave que ainda não tinha na mão. - Dilsey! - disse Mrs. Compson, apertando o vestido contra o corpo. - Dê-me a chave, sua parva! - gritou jason subitamente. Tirou-lhe do bolso um molho enorme de chaves ferrugentas enfiadas numa argola de ferro, à carcereiro medieval, e correu pelo corredor fora seguido pelas duas mulheres. - Ouve, jason! - disse Mrs. Compson. - Ele nunca mais dá com ela - disse ela. - Sabes bem que nunca dou as chaves a ninguém, Dilsey - disse ela. E começou a chorar. - Cale-se - disse Dilsey. - Ele não lhe vai fazê nada. Eu não vou deíxá. - Mas num domingo de manhã, na minha própria casa dizia Mrs. Compson. - Quando passei por tantos sacrifícios para os educar como bons cristãos. Deixa-me procurar a chave, jason - disse ela, agarrando-lhe o braço. Depois começou a lutar com ele, mas ele deu-lhe uma cotovelada e olhou-a por um instante, com os olhos frios e acossados, voltando-se de novo para a porta e para as indecifráveis chaves. - Cale-se - disse Dilsey. - Olí, jason! - Aconteceu alguma coisa terrível - disse Mrs. Compson, de novo a chorar. - Sei que aconteceu. Espera, Jason - disse ela, agarrando-se a ele outra vez. - Ele nem sequer me deixa procurar a chave de um quarto da minha própria casa! - Pronto, pronto - disse Dilsey. - Não vai acontecê nada. Eu tou aqui e não o deixo fazê-lhe mal. Quentin! - disse ela, elevando a voz. - Não tenha medo, meu amô, eu tou aqui. A porta abriu-se para dentro do quarto. Ele ficou parado à 251 entrada, por uns instantes, e depois entrou. - Entrem - disse, com uma voz cava e sumida. Elas entraram. Aquilo não era o quarto de uma menina. Não era o quarto de ninguém, e o vago perfume a cosméticos baratos, bem como os poucos objectos femininos e algumas outras provas que atestavam o esforço grosseiro e infrutífero de o tornar mais feminino, apenas conseguiam torná-lo ainda mais anónimo, conferindo-lhe a transitoriedade inexpressiva e estereotipada das casas de passe. A cama não tinha sido desfeita. No chão estava uma peça de roupa interior já muito suja, num tom de rosa talvez berrante de mais, e da gaveta meio aberta de uma cómoda pendia uma meia de vidro desirmanada. A janela estava aberta. Quase encostada à janela havia uma pereira. Estava em flor e os ramos batiam e raspavam na parede exterior, e o ar de mil partículas, entrando pela janela, trazia até ao quarto o aroma perdido das flores em botão. - Pronto, pronto - disse Dilsey. - Eu não lhe disse qu'ela tava bem? - Bem? - disse Mrs. Compson. Dilsey foi com ela até ao quarto e acarinhou-a. - Vá, venha-se deitá um bocadinho - disse ela. - Eu encontro-a num instante. Mrs. Compson empurrou-a. - Vê se encontras o bilhete disse ela. - O Quentin deixou um bilhete quando fez aquilo. - Tá bem - disse Dilsey. - Eu procuro. Vá, venha pó seu quarto. - Sempre soube que isto ia acontecer desde o momento em que lhe chamaram Quentin - disse Mrs. Compson. Dirigiu-se à escrivaninha e começou a revolver os objectos que já estavam todos espalhados: perfumes, frasquinhos, uma caixa de pó de arroz, um lápis todo roído,

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uma tesoura com uma lâmina partida em cima de um lenço enfarruscado, sujo de pó e manchado de ruge. - Vê se encontras o bilhete - dizia ela. - Tou à procura - disse Dilsey. - Agora venha. Eu e o Jason vamos procurá-lo. Venha pó seu quarto. - Jason - disse Mrs. Compson. - Onde está ele? - Encaminhou-se para a porta. Dilsey foi atrás dela pelo corredor fora até uma outra porta. Estava fechada. - Jason - chamou ela. 252 Não obteve resposta. Tentou rodar a maçaneta e voltou a chamá-lo. Mas continuou a não obter resposta, pois ele estava ocupado a tirar tudo para iora do roupeiro: roupas, sapatos, uma mala de viagem. Nisto, saiu de dentro do roupeiro com uma tábua canelada que atirou para o chão, voltando a entrar e aparecendo a seguir com uma caixa de metal. Colocou-a em cima da cama e quedou-se a olhar para a fechadura arrombada enquanto tirava do fundo do bolso um molho de chaves de onde escolheu uma, ficando com ela na mão por mais algum tempo, a olhar para a fechadura. Voltou a guardar as chaves e virou cuidadosamente o conteúdo da caixa para cima da cama. Separou os papéis também com muito cuidado, pegando num de cada vez e sacudindo-os. Depois virou a caixa ao contrário e sacudiu-a também, guardou de novo os papéis e ficou ali, de caixa nas mãos e cabeça caída, a olhar para a fechadura arrombada. Lá fora, ouviu os gaios passarem em turbilhão rente à janela, soltando gritos agudos que o vento levava consigo, e um automóvel passar ao longe perdendo-se na distância. A mãe voltou a chamá-lo do corredor, mas não se mexeu. Ouviu os passos de Dilsey pelo corredor fora e uma porta fechar-se. Então, tornou a meter a caixa dentro do roupeiro, atirou as roupas lá para dentro, desceu as escadas e correu para o telefone. Dilsey apareceu nas escadas quando ele estava à espera, de auscultador encostado ao ouvido. Olhou para ele sem se deter e seguiu em frente. Do outro lado atenderam. - Fala Jason Compson - disse ele, com uma voz tão cava e tão rouca que teve de repetir. - É Jason Compson - disse novamente, controlando a voz. Tenha um carro pronto daqui a dez minutos; mande um dos seus ajudantes, se o senhor não puder ir. Eu vou para aí agora... O quê?... Roubo. Em minha casa. Sei quem... Sim, roubo. Tenha um carro pron... O quê? Então não é para fazer respeitar a lei que lhe pagamos? Sim, estou aí dentro de cinco minutos. Tenha o carro pronto para partir imediatamente. Se não tiver, participo de si ao Governador. Bateu com força com o auscultador, atravessou a casa de jantar, onde jazia já frio o pequeno almoço interrompido e entrou na cozinha. Dilsey estava a encher o saco de água quente. Ben 253 estava sentado, tranquilo e ausente. A seu lado, Luster parecia um cão de fila, de olhar atento e vigilante. Estava a comer qualquer coisa. Jason atravessou a cozinha. - Então não vem acabar o pequen'almoço? - disse Dilsey. Ele não ligou. - Vá tomá o seu pequedalmoço, Jason. Ele foi-se embora, batendo a porta das traseiras. Luster levantou-se, foi à janela e olhou lá para fora. - Ena pá - disse ele. - O qdé que se passou lá em cima? Ele bateu na Miss Quentin? - Cala essa boca - disse Dilsey. - Se fazes o Ben chorar, dou cabo de ti. Vê s'ele tá calmo té eu voltar. - Atarrachou a válvula do saco de água quente e saiu da cozinha. Ouviram-na subir as escadas e logo a seguir Jason partiu com o carro. Depois, os únicos sons que se ouviam na cozinha eram o murmúrio da chaleira e o tie-tac do relógio.

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- Sabe o qu'é qu'eu aposto? - disse Luster. - Aposto qu@ele lhe bateu. Aposto que lhe bateu na cabeça e agora foi buscá o médico. Aposto que sim. - O relógio continuava a trabalhar, solene e grave. Dir-se-ia que era o pulsar insensível da própria decadência daquela casa; passado pouco tempo, deu o aviso, apurou a garganta e bateu seis badaladas. Ben ergueu os olhos para o relógio e depois para o contorno fusiforme da cabeça de Luster, desenhado na janela, e recomeçou a abanar a dele e a babar-se. E também a choramingar. _ Cale-se, seu idiota - disse Luster sem se voltar. - Parece que não vai sê hoje que vamos à igreja. - Mas Ben continuava imóvel na cadeira, com as manápulas pendentes entre os joelhos, a gemer baixinho. De repente começou a chorar, num lamento longo, contido e sem sentido. - Cale-se - disse Luster. Voltou-se para trás e levantou a mão. - Quer que lhe bata? - Mas Ben limitou-se a olhar para ele, sempre a soluçar baixinho ao compasso da respiração. Luster aproximou-se e abanou-o. Cale-se imediatamente! - gritou. - Venha p'aqui - disse ele. Obrigou Ben a levantar-se da cadeira, virou-a de frente para o fogão, abriu a portinhola da fornalha e puxou-o, fazendo-o sentar-se outra vez. Parecia um rebocador a puxar um petroleiro numa doca exígua. Ben sentou-se, calado, a olhar para a porta 254 toda rubra. Nisto, ouviram de novo o relógio e Dilsey a descer a escada com lentidão. Quando a viu entrar, pôs-se a choramingar outra vez. E depois a chorar de rijo. - Que lhe fizeste? - disse Dilsey. - Logo hoje tinhas de passá a manhã a atazaná-lo. Deix'ó em paz. - Eu não fiz nada - disse Luster. - Foi Mr. Jason qu'o assustou, isso sim. Ele não vai matá Miss Quentin, pois não? - Cale-se, Benjy - disse Dilsey. Ele calou-se. Ela foi à j anela e olhou lá para fora. - Já parou de chovê - disse ela. -Já, sissiô - disse Luster. - Há muito tempo. - Então vão lá pa fora um bocado - disse ela. - Mesmo agora acabei de acalmá Miss Ca1ine. - Vamos à igreja? - disse Luster. - Logo se verá. Vê s'o aguentas lá por fora ré eu vos chamá. - Podemos ir pó prado? - Tá bem. Desde que não o deixes vir pa casa. já não tou com cabeça pa mai nada. - Sissiô - disse Luster. - Adonde foi Mr. Jason, vó? - Isso já é querês sabê de mais, não achas? - disse Dilsey. Começou a levantar a mesa. - Cale-se, Benjy. O Luster vai levá-lo a passear. - Qu'é qu'ele fez a Miss Quentin, vó? - disse Luster. - Não lhe fez nada. Vá vão brincá lá pa fora. - Aposto qu'ela já cá não tá - disse Luster. Dilsey olhou para ele. - Como é que sabes? - Eu e o Benjy vimo-la saltá da janela onte à noite. Não vimos, Benjy? - Viste mesmo? - disse Dilsey, olhando para ele muito séria. - Nós temo-Ia visto fazê isso todas as noites - disse Luster. Sairá pela janela e descê pela pereira. - Não me mintas, negrinho - disse Dilsey. - Não tou a mentir. Pergunte 6 Benjy. - Então porqu'é que não disseste nada? - O qu'é qu'eu tinha co isso? - disse Luster. - Não me meto na vida dos brancos. Venha, Benjy. Vamos lá pa fora. Saíram os dois. Dilsey ficou encostada à mesa por algum 255 tempo, e depois foi levantar a mesa do pequeno almoço, tomou o dela e arrumou a cozinha. Tirou o avental, pendurou-o, foi até ao fundo das

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escadas e ficou de ouvido à escuta. Nem um som. Vestiu o capote, pôs o chapéu na cabeça e foi para casa. A chuva tinha parado. O vento tinha virado para sudeste, deixando o céu semeado de clareiras azuis. Para lá das árvores, dos telhados e dos torreões da cidade, o sol repousava sobre a crista de uma colina, como um remendo, esmorecido. O ar vibrou com o repicar de um sino, e logo, como se obedecendo a um sinal, outros se lhe juntaram, imitando-o. A porta do casebre abriu-se e Dilsey apareceu, outra vez com a capa castanha e o vestido púrpura. Trazia também calçadas um par de luvas brancas encardidas que lhe chegavam ao cotovelo, mas desta vez não levava turbante. Veio até ao meio do pátio e chamou Luster. Esperou uns momentos, e depois contornou a casa, sempre colada à parede, aproximou-se sorrateira da porta da adega e espreitou lá para dentro. Ben estava sentado nos degraus. Luster estava do outro lado, sentado no chão húmido. Tinha uma serra na mão esquerda, com a lâmina ligeiramente flectida sob a pressão da mão, e percutia a lâmina com o velho pilão de que ela se servia há mais de trinta anos para moer a farinha. A lâmina vibrou com um gemido único, arrastado, que logo se extinguiu, sem brilho nem ardor, fazendo a serra descrever uma curva bem pronunciada entre a mão de Luster e o chão: parada, imperscrutável, abaulada. - Era assim qu'ele fazia - dizia Luster. - Só inda não encontrei uma coisa ideal para lhe bater. - Com qu'então é isso qu'andas a fazê? - disse Dilsey. Traz-me cá esse pilão - disse ela. - Não o estraguei - disse Luster. - Traz-mo cá - disse Dilsey. - E vai pô essa serra ond'a encontraste. Ele foi arrumar a serra e trouxe-lhe o pilão. Ben começou de novo a soltar gemidos longos, desesperados. Mas não era nada de importância. Apenas sons. Dir-se-ia que, por uma conjunção de planetas, nele encontravam voz por um instante todo o tempo, toda a injustiça e toda a pena. 256 - Olhe pa ele - disse Luster. - Está assim desde que nos mandou embora. Não sei que tem ele esta manhã. - Trá-lo cá - disse Dilsey. - Venha, Benjy - disse Luster, descendo os degraus e pegando-lhe por um braço. Ele veio, obediente e choroso, produzindo aquele som lento e rouco dos navios, que parece começar antes mesmo de o som propriamente dito se ter iniciado, e parar depois de o som propriamente dito já ter cessado. - Vai a corrê a casa buscar-lhe o boné - disse Dilsey. - E não faças barulho, pa Miss Ca'line não ouvir. Vá, despacha-te. já ramos atrasados. 1 - Se não o fizé calá, ela vai ouvi-lo na mesma - disse Luster. - Ele cala-se quando sairmos daqui - disse Dilsey. - Está a sentir-lhe o cheiro. É o que é. - O cheiro de quê, vó? - disse Luster. - Vai buscar-lhe o boné - disse Dilsey. Luster foi. Estavam os dois na escada da adega. O céu estava agora fragmentado em mil pedaços que arrastavam consigo as sombras fugidias para lá do jardim pouco cuidado, passando por cima da cerca partida e atravessando o pátio. Dilsey afagou a cabeça de Ben, com gestos lentos, repetidos, alisando-lhe as farripas. Ele choramingava baixinho, compassadamente. - Esteja caladinho - disse Dilsey. - Vá, agora não chore. Estamos quase a sair. Esteja caladinho. Mas ele chorava baixinho, sem parar. Luster voltou, trazendo na cabeça um chapéu de palha novinho em folha avivado com uma fita colorida e um boné de pano na mão. Aos olhos de um observador, o chapéu parecia

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evidenciar cada ângulo e plano da cabeça de Luster como um foco luminoso. A sua forma era tão singular que à primeira vista o chapéu parecia estar na cabeça de alguém que estivesse por detrás de Luster. Dilsey olhou para o chapéu. - Por que não trouxeste antes o velho? - disse ela. - Não fui capaz de dá co ele - disse Luster. - Aposto que não. Aposto que lhe deste sumiço ontem à noite só pa não o encontrares. Meteste na cabeça qu'hádes dá cabo desse. 257 - Oh, vó - disse Luster. - Não vai chovê. - E com'é que sabes? Vai buscá o chapéu velho e deixa lá ficá esse. - Oh, vó. - Então vai buscá o guarda-chuva. - oh, vó. - Tens d'escolhê - disse Dilsey. - O chapéu velho ou o guarda-chuva. Tanto se me dá. Luster foi à cabana. Ben chorava baixinho. - Vamos - disse Dilsey. - Eles já nos apanham. Vamos ouvir os cânticos. - Deram a volta à casa e dirigiram-se para o portão. - Esteja caladinho - ia dizendo a Dilsey enquanto desciam a rampa até ao portão. Chegaram ao portão. Dilsey abriu-o. Luster vinha um pouco mais atrás com o chapéu-de-Chuva. Vinha também uma mulher. - Lá vêm eles - disse Dilsey. Saíram o portão. - Então - disse ela. Ben parou de chorar. Luster e a mãe passaram-lhes à frente. Frony levava um vestido de seda azul muito brilhante e um chapéu enfeitado com flores. Era uma mulher magra, com uma cara achatada e simpática. - Tens seis semanas de trabalho em cima - disse Dilsey. Que vais fazê se chovê? - Molhá-me, acho eu. - disse Frony. - Inda não consigo fazê pará de chovê. - A vó tá sempre a dizê que vai chovê - disse Luster. - Se não for eu, quem se vai preocupá com vocês - disse Dilsey. - Vamos lá. já tamos atrasados. - Hoje é o Revendo Shegog que vai fazer a pregação - disse Frony. - É? - disse Dilsey. - Quem é ele? - Vem de Saint Louis - disse Frony. um grande pregadô. - Hum - disse Dilsey. - Do qu'estes negrinhos sem préstimo precisam é dum homem que lhes mostre o caminho do bem. - O ReVendo Shegog sabe fazê isso muito bem - disse Frony. o que todos dizem. 258 Foram andando. Pela rua tranquila, os brancos, em grupos resplandecentes, dirigiam-se para a igreja, respondendo ao chamado dos sinos trazido pelo vento, banhados de vez em quando por um sol tímido, irregular. O vento soprava afoito de sudeste, frio e rijo, deixando para trás os dias quentes. - Gostava mais que não o trouxesse sempre consigo pá igre- a, mãe - disse Frony. - As pessoas falam. - Que pessoas? - disse Dilsey. - Eu bem as oiço - disse Frony. - Eu sei quais são os que falam - disse Dilsey. - Escumalha branca. Esses é que falam. Acham qu'ele não serve pa entrá na igreja dos brancos, mas qu'é bom de mais pa entrá na dos negros. - As pessoas falam sempre - disse Frony. - Manda-as falá comigo - disse Dilsey. - Diz-lhes que Nosso Sinhô não quê sabê s'ele é esperto ou não. Ninguém quê sabê disso, só os brancos. Chegaram a uma rua que fazia esquina com aquela por onde iam, e que

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descia em ladeira, transformando-se numa estrada de terra batida. O terreno descia íngreme de cada lado, formando em baixo uma planície salpicada de pequenas cabanas cujos telhados corroídos pelo mau tempo ficavam à altura da estrada. As cabanas estavam situadas em lotes de terreno pelado, pejado de coisas partidas, tijolos, tábuas, loiças, coisas que haviam tido outrora utilidade. O pouco verde que havia eram as ervas bravas e as árvores - amoreiras, cássias e sicórnoros - , árvores que partilhavam da secura hedionda que rodeava as casas; árvores cujos rebentos pareciam ser os restos tristes e teimosos de Setembro, como se a Primavera os tivesse ignorado, deixando-os ali- mentar-se do odor espesso e inconfundível dos negros que impregnava o ar onde cresciam. Quando passavam, os negros cumprimentavam-nos da porta de casa, dirigindo-se geralmente a Dilsey: - Irmã Gibson! Então como tá esta manhã? - Tou bem. E a irmã, tamém tá? - Tou muito bem, 'brigada. Saíam das cabanas e subiam a custo a ladeira argilosa até à 259 estrada. Os homens solenemente vestidos de preto ou castanho escuro, com correntes de relógio em ouro e um por outro com uma bengala; os rapazes com fatos azul berrante ou de riscas, e chapéus aperaltados; as mulheres engomadas e restolhantes; e as crianças, com roupas compradas aos brancos em segunda mão, olhavam para Ben com o olhar esquivo dos animais nocturnos: - Aposto que não és capaz de lá ires e tocás nele. - Pdque'é que não hei-d'ir? - Aposto que não és capaz. Aposto que tens medo. - Ele não faz mal a ninguém. É só maluquinho. - E então um maluco não faz mal às pessoas? - Este não. já lhe toquei. - Mas aposto qu'agora não tocas. - Se Miss Dilsey estivé a vê. - Não tocas de maneira nenhuma. - Ele não faz mal a ninguém. É só maluquinho. Os mais velhos davam todos a salvação a Dilsey. Mas, a menos que fossem muito velhos, Dilsey deixava ser Frony a res- Ponder. - A minha mãe não se sente muito bem esta manhã. - Que pena. Mas o Rev'endo Shegog póe-na boa. Vai dar-lhe conforto e aliviá-IWa alma. A estrada subia outra vez até ao que parecia um pano de cenário. Escavada no barro vermelho, coroada de carvalhos, a estrada parecia acabar abruptamente, como uma fita cortada. De um dos lados, uma igreja depauperada erguia um excêntrico campanário, como numa pintura, e toda a cena era tão plana e falha de perspectiva como se pintada num cartão e colocada na beira do mundo, virada ao vento e ao sol, no espaço aberto, em Abril, numa manhã impregnada de sinos. Acorriam nume- rosos à igreja com a pausada determinação do sabbath. As mulheres e as crianças entraram e os homens ficaram cá fora a conversar em grupos, em voz baixa, até o sino se calar. Nessa altura entraram também. A igreja estava enfeitada com meia dúzia de flores apanhadas nas sebes e nos jardins, e tiras de papel colorido. Por cima do púlpito estava suspenso um sino de Natal já amachucado, 260 daqueles que se desdobram em harmónio. O púlpito estava vazio, embora os elementos do coro já estivessem no lugar, a abanarem-se com leques, apesar de não estar calor nenhum. A maior parte das mulheres estavam reunidas em grupos num dos lados da

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igreja, a conversarem. O sino soou - uma badalada -, e elas dispersaram e tomaram os seus lugares, os fiéis, todos sentados, aguardavam, expectantes. O sino soou de novo - outra badalada. O coro levantou-se e começou a cantar e toda a assembleia virou a cabeça em uníssono à entrada de seis crianças ainda pequenas - quatro raparigas de tranças apertadas e atadas com laços de tiras de pano colorido como borboletas, e dois rapazes de cabeça quase rapada - que avançaram pela coxia, central, enfeitada com fitas brancas e grinaldas de flores. Seguiam-nas dois homens. O que ia atrás era corpulento, da cor de café claro, imponente no seu fraque e laço branco. A cabeça era magistral e profunda, e o pescoço caía sobre o colarinho em grossos refegos. Mas todos o conheciam bem e, por isso, as cabeças continuaram voltadas depois de ele passar, e só quando o coro se calou é que perceberam que o pregador visitante já tinha entrado; e quando viram o homem que vinha à frente do pastor subir ao púlpito, ainda à sua frente, elevou-se da assembleia um rumor indescritível, um suspiro fundo, um som de espanto e desapontamento. O visitante era franzino e vestia um casaco de alpaca já coçado. A cara era negra e chupada, de macaco velho. E enquanto o coro voltava a cantar e as seis crianças se levantavam e cantavam com vozes finas e assustadas, soltando átonos murmúrios, todos olhavam visivelmente consternados para o homenzinho insignificante sentado ao lado do pastor, cuja volumosa imponência o reduzia a dimensões liliputianas. Ainda o fitavam incrédulos e consternados, quando o pastor se pôs de pé e o apresentou com palavras fluentes e tonitroantes cujo fervor ainda mais aumentou a insignificância do visitante. - E foram eles a Saint Louis pá buscá isto - cochichou Frony. já vi Deus servir-se de coisas inda mais estranhas - disse Dilsey. - Esteja caladinho - disse ela a Ben. Eles já vão cantá outra vez. 261 Quando o visitante se levantou para dar início à sua prega- ção, parecia um branco. A sua voz era fria e monocórdica. Parecia forte demais para sair dele, e a princípio todos o escutaram por mera curiosidade, como fariam se um macaco ali estivesse a falar. Olhavam para ele como se estivesse a fazer equilíbrio no arame. Esqueceram-se até da sua insignificância levados pelo virtuosismo com que corria, parava e mergulhava no fio gélido e inflexível da voz, até que, por fim, quando ele, com uma espécie de pirueta voltou para junto da estante de leitura, apoiando-se a ela com um braço levantado à altura do ombro, e com o seu corpo de macaco tão despojado de movimento como uma múmia ou um recipiente vazio, a assembléia soltou um suspiro, como se acordasse de um sonho colectivo, mexendo-se nos lugares. Por detrás do púlpito, o coro abanava-se com convicção. Dilsey murmurou: - Agora fique calado. Eles já voltam a cantá. Nisto, uma voz disse: - Irmãos. O pregador não se mexera. O seu braço estava ainda sobre a estante, conservando a mesma pose enquanto a voz se extinguia em sonoridades que o eco repercutia pelas paredes. Um tom tão diferente do primeiro como a noite do dia, um som triste, de timbre semelhante ao de uma trompa de contralto, que lhes penetrava o coração e lhes falava por dentro mesmo depois de se extinguir em múltiplos ecos perdidos. - Irmãos e irmãs - disse outra vez. O pregador tirou o braço da estante e começou a andar para trás e para a frente diante dela, com as mãos atrás das costas, com a sua figura franziria, curvada sobre si mesma, como de alguém de há muito empenhado numa luta solitária contra o mundo implacável: - Eu tenho a memória e o sangue do Cordeiro! - E continuou a andar para trás e para a frente com passadas firmes, por

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baixo das decorações em papel frisado e do sino de Natal, alquebrado, com as mãos atrás das costas. Era um rochedo já gasto pela erosão das vagas sucessivas da sua própria voz. Parecia alimentar com o seu corpo aquela voz que, como um súcubo, nele cravava os dentes ávidos de carne. E os fiéis pareciam assistir impávidos, enquanto a voz o consumia até o reduzir a nada e os reduzir a nada e já nem voz existir, só corações que falavam uns aos outros através dos 262 cânticos, sem precisarem de palavras, de tal maneira que, quando ele se veio apoiar na estante, com a cara de macaco erguida alto, e a postura serena e torturada de um cristo crucificado que transcendia a sua própria insignificância e indigência, tornando-as inexistentes, um suspiro longo e lamentoso se elevou da assembleia, e uma voz isolada de mulher, uma voz de soprano, entoou: Sim, meu Jesus! À medida que as nuvens avançavam fugazes em ondas sucessivas, as lúgubres vidraças acendiam-se e apagavam-se em fantasmagórica alternância. Na estrada passou um carro, derrapou na areia e perdeu-se na distância. Dilsey estava sentada muito hirta com a mão pousada sobre o joelho de Ben. Duas lágrimas rolavam-lhe pelas faces descaídas, cintilando nas miríades de sulcos retalhados pelos sacrifícios, a abnegação e tantos anos. - Irmãos - disse o pastor num sussurro rouco, sem se mexer. -Sim, meujesus!-disse avozdemulher, agoraemsurdina. - Irmãos e irmãs! - Soou de novo a sua voz, com as trompetas. Desapoiou o braço da estante, ficou parado e ergueu as mãos: - Eu trago a rècordação e o sangue do Córdeiro! - Nem notaram que a entoação e a pronúncia se haviam tornado negras, apenas se inclinavam para um lado e para o outro, sempre sentados, deixando que a voz os levasse com ela. - Quando os longos e gélidos... Olí, digo-vos eu, irmãos, quando os longos e gélidos... Eu vejo a luz e eu vejo a palavra, pobre pecadô! Elas passaram pelo Egipto, as quadrigas balançantes; passaram pelas gerações. O home qu'era rico: onde tá el'agorã, meus irmãos? O home qu'era pobre: onde tá el'agora, minhas irmãs? Ah, eu vou-vos dizê, se não tiverdes o leite e o orvalho d'antiga salvação, quando os longos e gélidos anos passarem por vós! - Sim, meu Jesus! - Eu vou-vos dizê, irmãos, eu vou-vos dizê, irmãs, eles a seu tempo chegarão. Diz o pobre pecadô Deixai-me repousá no Sinhô, deixai-me repousá o meu fardo. E então, irmãos, que vai dizê Jesus? E então, irmãs, que vai dizê Jesus? Trazes a rècordação e o sangue do Cè>rdeiro? Não quero sobrecarregá o céu! 263 Meteu a mão no bolso, tirou um lenço e limpou a cara. Um som cavo, concertado, perpassou a assembleia: Mmmmmmmmmmmmm! E a voz da mulher soou: Sim, Jesus! Meu Jesus! - Irmãos! Olhai pa estas criancinhas sentadas entre vós. Jesus um dia foi assim. A sua mãe sofreu a glória e os tormentos. Talvez o tenha abraçado um dia, ao cair da noite, cos anjos a embalá-lo; talvez tenha olhado lá pa fora e visto a ronda Romana passá. Continuava a andar para trás e para a frente, limpando a cara com o lenço. - Escutai, irmãos! Eu tou a vê esse dia. Vejo Maria sentada à porta com Jesus ao colo, o seu menino Jesus. Oiço os anjos a cantá cânticos de paz e de glória; vejo os Seus olhos a fechá-se; vejo Maria dá um salto, vejo a cara dos soldados: Vamos matá! Vamos matá! Vamos matá o teu menino Jesus! Oiço o pranto e os lamentos da pobre mãe sem salvação, sem a palavra de Deus! - Mmmmmmmmmmmmmmmm! Meu Jesus! Meu Menino Jesus! - e uma outra voz, elevando-se:

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- Eu vejo, oh, Jesus! Eu vejo! - E outra ainda, sem palavras, soando como bolhas de ar subindo dentro de água. - Eu vejo tudo, irmãos! Eu vejo tudo! Uma visão atroz que deixa meus olhos cegos! Vejo o Calvário e os três troncos sagrados, vejo o ladrão e o assassino e Aquele qu@ind'é menos qtieles; oiço a chacota, as provocações: S'és mesmo Jesus, ergu'a tua cruz e anda! Oiço o pranto das mulheres e as lamentaçóes nocturnas; oiço o choro e os gemidos e a face voltada de Deus: eles mataram Jesus; eles mataram o Meu Filho! - Mmmmmmmmmmmmm. Oli, Jesus! Eu vejo, oli, Jesus! - Oli, cego pecadô! Eu digo-vos, irmãos. Eu digo-vos, irmãs, quando o Sinhô voltou a Sua face omnipotente, disse, Não vou sobrecarregar o céu! Vejo Deus inconsolável fechá a Sua porta; vejo o dilúvio chegá avassaladô; vejo as trevas e a condenação eterna abatê-se sobre as gerações. E então, irmãos, atentem! Sim, irmãos! Que vejo eu? Que vejo eu, oli, pecadô? Vejo a ressurreição e a luz; vejo o doce Jesus que diz Eles mataram-me pa que vós possais vivê de novo; morri pa que aquele que vê e acredita não morra nunca. Irmãos, oh, irmãos! Vejo a aurora a despontar e as trompetas a anunciarem a glória, e os mortos 264 a levantarem-se, que têm o sangue e a récordação do Córdeiro! Ben continuava sentado, com o seu olhar azul e doce, envolvido pelas vozes e pelas mãos que se agitavam. Dilsey, muito direita a seu lado, chorava convictamente e em silêncio abandonada ao sangue e à lembrança do Cordeiro. E chorava ainda, alheia às conversas, quando subiam a estrada de areão sob o sol do meio-dia, e os grupos dispersavam, trocando comentários entre si. - Gande pregadô, hem! A princípio não parecia, mas depois... Coisa fina! - Ele viu o podê e a glória. - Si sinhô. Viu mesmo. Cara a cara. Isso é que viu. Dilsey ia calada, sem um trejeito, deixando as lágrimas seguirem o seu curso cavado e sinuoso, caminhando de cabeça levantada, sem qualquer esforço sequer para as limpar. - Por que não pára com isso, mãe? - disse a Frony. - Com toda esta gente a vê. Não tarda ramos a encontrá brancos. - Vi o começo e o fim - disse Dilsey. - Não te preocupes. - O começo e o fim de quê? - disse Frony. - Não te preocupes - disse Dilsey. - Vi o começo e agora vejo o fim. Todavia, antes de chegarem à rua principal, Dilsey parou, pegou na ponta da saia e limpou os olhos à barra do saiote de cima. Depois continuaram. Ben arrastava os pés ao lado de Dilsey, com os olhos postos em Luster, que ia à frente a fazer cabriolas, com o chapéu-de-chuva na mão e o chapéu de palha novo atrevidamen- te à banda, reluzindo ao sol; dir-se-ia um canzarrão tonto e desajeitado a admirar um cachorrinho vivaço. Chegaram finalmente ao portão e entraram. E logo Ben desatou na caramunha do costume, e por momentos todos olharam para o cimo da rampa, para a casa quadrada, sem pintura, com a porta apodrecida. - Que aconteceu por lá hoje? - disse Frony. - Alguma coisa foi. - Nada - disse Dilsey. - Trata da tua vida e deixa os brancos trará da deles. - Alguma coisa foi - disse Frony. - Ouvi-o logo pela manhã. Mas não tenho nada co isso, tá claro. 265 - E eu ré sei o que foi - disse Luster. - Sabes mais qu'è> que devias - disse Dilsey. - Não ouviste a tua mãe dizê que não é da tua conta? LeVó Benjy pás traseiras e vê s'o

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entreténs ré eu tê o comê pronto. - Eu sei onde tá Miss Quentin - disse Luster. - Então guarda pa ti o que sabes - disse Dilsey. - Quando a Quentin precisá dos teus conselhos, eu aviso-te. Vá toc'à ir brincá lá pa trás. -já sabe o que vai acontecê mal eles se puserem a j ogá além co aquela bola - disse Luster. - Inda é cedo pa começarem. E nessa altura já cá tá o T. R pé> levá a passeá. Vá, dá cá o chapéu novo. Luster deu-lhe o chapéu e depois foi com Ben para o pátio das traseiras. Ben continuava a chorar, mas em surdina. Dilsey e Frony foram para a cabana. Daí a nada Dilsey saiu, de novo com o vestido de algodão desbotado, e dirigiu-se para a cozinha. O lume estava quase apagado. O silêncio era absoluto. Pôs o avental e foi ao andar de cima. Não se ouvia nada em lado nenhum. O quarto da Quentin estava tal e qual o tinham deixado. Entrou, apanhou a roupa caída no chão, meteu a meia de vidro na gaveta e voltou a fechá-la. A porta do quarto de Mrs. Compson estava fechada. Dilsey parou cá fora por um instante a escutar. Depois abriu-a e entrou, penetrando num odor intenso a cânforã. Como as persianas estavam descidas, e o quarto e a cama na penumbra, ela pensou que Mrs. Compson estava a dormir; porém, quando ia a fechar a porta, a outra falou. - Então - disse ela. - O que é? - Sou eu - disse Dilsey. - Quê alguma coisa? Mrs. Compson não respondeu. Passado um instante, e sem mexer a cabeça, disse: - Onde está o Jason? - Inda não voltou - disse Dilsey. - O qu'é que lhe quê? Mrs. Compson não respondeu. Como tantas outras pessoas frias e fracas, ao ver-se agora conftontada com uma calamidade irremediável, ia buscar sabe-se lá onde uma espécie de força, de coragem. No seu caso era uma convicção inabalável num acontecimento ainda por deslindar. - Bem - disse por fim. Sempre encontraste? 266 - Encontrei o quê? Tá a falá de quê? - Do bilhete. Ela devia pelo menos ter tido por mim a consideração, suficiente para deixar um bilhete. Até o Quentin deixou. - De qu'é que tá a falá? - disse Dilsey. - Então não sabe qu'ela tá bem? Aposto que vai entrá por aquela porta antes d'anoitecê. - Isso sim - disse Mrs. Compson. - Está-lhe na massa do sangue. Tal tio, tal sobrinha. Ou tal mãe, tal filha. Nem sei o que seria pior. Mas também já não me interessa. - Pa que continua a fálá dessa maneira? - disse Dilsey. Por qu'é qu'ela havia de querê fazê uma coisa dessas? - Sei lá. E o Quentin, que motivos tinha? Sim, em nome de Deus, que razões tinha ele? Só pode ter sido para me afrontar, para me magoar. Esteja Deus onde estiver, Ele não ia permitir tal coisa. Eu sou uma senhora. Pode pensar-se que não, a avaliar pelos filhos que tenho, mas sou. - Tenha calma e espere - disse Dilsey. - Logo à noite ela vai estar aqui, nesta cama, olá se vai. - Mrs. Compson não disse nada. Um lenço embebido em cânfora estava pousado sobre a sua testa. O roupão preto deitado aos pés da cama. Dilsey parada à porta, com a mão na maçaneta. - Bem - disse Mrs. Compson - O que queres? Vais fazer o almoço para o Jason e o Benjamin, ou não? - O Jason inda não voltou - disse Dilsey. - Vou prepará qualqué coisa. Tem a certeza que não quê nada? E o saco, inda tá quente? - Podes dar-me a Bíblia? - Dei-lhe esta manhã antes de sair.

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- Puseste-a à beirinha da cama. Quanto tempo achas que se aguentoulá? Dilsey foi da porta até à cama e, às apalpadelas, procurou no escuro, acabando por encontrar a Bíblia caída debaixo da cama. Alisou as páginas dobradas e colocou de novo o livro em cima da cama. Mrs. Compson nem abriu os olhos. Os seus cabelos eram da cor da almofada, e sob aquele toucado feito com o terapêutico lenço canforado, parecia uma velha freira a rezar. - Não a 267 ponhas aí outra vez - disse ela, sem abrir os olhos. - Aí foi onde a puseste antes. Parece que queres que eu saia da cama para ter de a ir apanhar. Dilsey passou a Bíblia por cima dela e pousou-a do lado da cama que estava vazio. - Não pode lê com esta luz. Nem pensá disse ela. - Quê que suba a persiana um bocadinho? - Não. Deixa-a estar como está. Vai é preparar qualquer coisa para o Jason comer. Dilsey foi-se embora. Fechou a porta e voltou para a cozinha. O fogão estava quase frio. Nessa altura, o relógio que estava por cima do aparador bateu dez vezes. - Uma hora - disse ela em voz alta. - O Jason não vem pa casa. Vi o começo e vejo o fim - disse ela, olhando para o fogão arrefecido. - Vi o começo e vejo o fim. - Pôs algumas coisas frias em cima da mesa, sempre a cantar enquanto andava para trás e para a frente, entoando um hino. Cantou-o inteiro, mas repetindo sempre os dois primeiros versos. Preparou a refeição, foi à porta, chamou Luster e, passado pouco tempo, Luster e Ben entraram na cozinha. Ben gemia ainda, como se chorasse para dentro. - Não há maneira de se calá - disse Luster. - Vá, venham comê - disse Dilsey. - O Jason não vem almoçá. - Sentaram-se à mesa. Ben conseguia comer sozinho as coisas sólidas, embora, mesmo tratando-se de um almoço só de coisas frias, Dilsey lhe tivesse posto um pano ao pescoço. Ele e Luster iam comendo. Dilsey andava pela cozinha a cantar os únicos dois versos do hino de que se lembrava. - Podem comê à vontade - disse ela. - O Jason não vem pa casa. Nessa altura estava ele a trinta e tal quilómetros de distância. Depois de sair de casa, dirigiu-se a toda a velocidade para a cidade, ultrapassando os grupos mais atrasados para o sabbath e até o repicar peremptório dos sinos no ar cortado de vento. Atravessou a praça deserta e virou para uma rua estreita que ainda estava mais silenciosa, parou diante de uma casa de madeira e foi até ao alpendre pelo caminho ladeado de flores. Por detrás da porta de rede havia gente a falar. Quando levantou a mão para bater, ouviu passos e susteve o gesto até a porta ser aberta por um homem corpulento de calças largas de sarja preta e uma camisa branca de peiti268 lho engomado. Tinha uma farta cabeleira rebelde e grisalha e uns olhos acinzentados, redondos e pequeninos de menino. Apertou a mão de Jason e levou-o para dentro, ainda a apertar-lhe a mão. - Entre - disse ele. - Entre. - Está pronto para partir? - disse Jason. - Entre - disse o outro, empurrando-o pelo ombro para uma sala onde estavam sentados um homem e uma mulher. já conhece o marido da Myrtie, não conhece? Jason Compson, Vernon. Sim, sim - disse Jason. Nem sequer olhou para o homem e, enquanto o xeri e trazia uma cadeira, ó homem disse: - Nós saímos, para vocês poderem falar à vontade. Anda, Myrtle. - Não, não - disse o xerife. - Deixem-se estar sentados. Não é nada de muito grave, pois não Jason? Sente-se. - Eu conto-lhe no caminho - disse Jason. - Pegue no chapéu e no

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casaco. - Nós saímos - disse o homem, pondo-se de pé. - Deixe-se estar sentado - disse o xerife. - Eu e o Jason vamos ali para o alpendre. - Vá buscar o chapéu e o casaco - disse Jason. - Eles já levam doze horas de avanço. - O xerife dirigiu-se para o alpendre. Um homem e uma mulher que iam a passar cumprimenta- ram-no. Ele respondeu com um gesto caloroso e floreado. Ainda repicavam sinos para os lados da zona da cidade conhecida por o Poço dos Negros. - Vá buscar o chapéu, xerife - disse Jason. O xerife puxou duas cadeiras. - Ora sente-se lá e conte-me o que se passou. - já lhe contei ao telefone - disse Jason, continuando de pé. - Fi-lo para ganhar tempo. Será que tenho de apelar para a lei para o obrigar a cumprir o seu dever? - Sente-se e conte-me tudo - disse o xerife. - Eu já trato de si. - Trata uma ova - disse Jason. a isto que chama tratar de mim? - Você é que nos está a atrasar - disse o xerife. - Ora sen- te-se e conte-me lá o que se passou. 269 Jason contou-lhe, mas era tal o peso do ultraje e da impotência, que depressa esqueceu que tinha pressa, embarcando num turbilhão violento de autojustificação e desagravo. O xerifé observava-o atento com os olhos frios e perspicazes. Mas não sabe se foram eles - disse ele. - Apenas julga que foram. Como pode dizer que não sei - disse Jason - quando dois dias a persegui-Ia por becos e travessas, tentando J passei afastá-la dele, depois de lhe ter dito o que lhe fazia se os apanhasse juntos, e vem agora dizer-me que eu não sei que aquela p... - Calma - disse o xerifé. - já chega. É melhor parar por aí. - E pôs-se a olhar para a rua, de mãos nos bolsos. - E quando venho ter consigo, um representante da lei... disse Jason. Esta semana o espectáculo vai para Mottson - disse o xeri e. Pois vai - disse Jason. - E se eu tivesse conseguido encontrar um representante da lei que estivesse minimamente interessado em defender os cidadãos que o elegeram, a estas horas já eu lá estava. - Repetiu a história, recapitulando amargamente os factos, como se retirasse prazer do ultraje e da impo- tência. O xerife parecia nem ouvir. Jason - disse ele. - Que fazia você com três mil dólares escondidos em casa? O quê? - disse Jason. - O sítio onde eu guardo o meu dinheiro é da minha conta. Da sua é ajudar-me a recuperá-lo. - A sua mãe sabia que tinha tanto dinheiro em casa? - Oiça uma coisa - disse Jason. - A minha casa foi assaltada. Sei quem são os ladrões e sei onde estão. Venho ter consi go, como representante da lei, e mais uma vez lhe pergunto, vai ajudar-me a recuperar o que é meu, ou não vai? - O que tenciona você fazer com a rapariga, se os apanhar? - Nada - disse Jason. - Absolutamente nada. Nem lhe toco. Aquela cabra, que me custou um emprego, a única oportunidade que tive de singrar na vida, que matou o meu pai, que está a dar cabo da vida da minha mãe e que fez do meu nome 270 bombo de festa da cidade... Não lhe vou fazer nada - disse ele. -Absolutamente nada. - Você levou a rapariga a fugir, Jason - disse o xerife. -A maneira como eu governo a minha família não é da sua conta - disse Jason. - Vai ajudar-me ou não?

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- Obrigou-a a fugir de casa - disse o xerife. - E tenho cá as minhas suspeitas de que sei a quem pertence esse dinheiro, mas acho que nunca vou ter a certeza. Jason continuava de pé, a torcer a aba do chapéu, e disse calmamente: - Então não vai fazer nada para me ajudar a apanhá-los? - Isso não é nada comigo, Jason. Se você tivesse provas concretas, nesse caso eu tinha de agir. Mas sem elas acho que não tenho nada a ver com o assunto. É essa então a sua resposta? - disse Jason. - Pense bem. É essa, é, Jason. Muito bem - disse Jason. Pôs o chapéu na cabeça. - Vai arrepender-se. Não vou ficar sem ajuda. Não estamos na Rússia, onde um homem é imune só porque usa uma chapa de metal ao peito. - Desceu os degraus, entrou no carro e pôs o motor a trabalhar. O xerife ficou a vê-lo afastar-se, inverter a marcha e passar a acelerar em frente à casa, a caminho da cidade. Os sinos repicaram outra vez, sons agudos na luz fugaz, em acordes sincopados, desencontrados. Parou numa estação de gasolina e mandou verificar os pneus e encher o depósito. - Vai de viagem? - perguntou-lhe o negro. Não respondeu. - Parece qu'o tempo vai melhorá, finalmente - disse o negro. - Melhorar, uma merda - disse Jason. - Ao meio-dia vai estar a chover a potes. - Olhou para o céu, a pensar na chuva, nas estradas escorregadias de terra argilosa, e nele, empanado algures a quilómetros e quilómetros da cidade. Pensava nisso com um espécie de sentimento triunfal, em como iria faltar ao almo- ço, em como, partindo imediatamente, cedendo à premência da pressa, estaria à distância máxima possível de ambas as cidades quando o meio-dia chegasse. Parecia-lhe que neste particular as circunstâncias estavam a seu favor, e disse então ao negro: 271 - Que raio estás tu a fazer? Alguém te pagou para reteres aqui o carro o máximo que pudesses? - Este pneu não tem ar nenhum - disse o negro. - Então salta dali para fora e dá cá a bomba - disse Jason. - já tá cheio - disse o negro, pondo-se de pé. - Já pode partir. Jason entrou para o carro, pôs o motor a trabalhar e arrancou. Meteu a segunda, o motor roncava ofegante e ele insistia, carregando no acelerador e fechando e abrindo a entrada de ar com violência. - Vai chover - disse ele. - Quando chegar a meio do caminho vai chover a potes. - E lá foi a acelerar, deixando para trás a cidade e o repicar dos sinos, e já se imaginava atolado em lama à procura de uma parelha de mulas. - E todos estes estupores vão estar na igreja. - Imaginava como finalmente acabaria por encontrar uma igreja, e conseguiria arranjar a tal parelha de mulas, e como o dono viria cá fora a correr, a gritar com ele, e ele o atirava ao chão e dizia: - Sou Jason Compson. Experimenta travares-me o passo. Experimenta elegeres um xerife que me consiga travar o passo - dizia ele, imaginando-se a entrar no tribunal escoltado por soldados e trazendo à força o xerife. - Pensa que pode ficar de braços cruzados a ver-me perder o emprego. Eu mostro-lhe o que é perder o emprego. - Não era na sobrinha que pensava, nem no valor relativo do dinheiro. Nenhum deles tinha tido para ele existência real nos últimos dez anos: simbolizavam apenas, em conjunto, o emprego no banco, do qual se vira privado antes mesmo de o ter conseguido. O tempo clareou, as sombras fugidias eram agora um bom prenúncio, e parecia-lhe que o facto de o dia estar a desanuviar era mais um golpe da sorte traiçoeira, da nova batalha para que se dirigia carregado de velhas feridas. De vez em quando passava por igrejas, barracões de madeira por pintar, com campanários de chapa, rodeados de parelhas de

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pílecas e automóveis estropiados, e parecia-lhe que cada uma delas era mais um posto de vigia de onde a guarda-recuada das Circunstâncias o espiava. - E vai-te lixar Tu também - dizia ele. - Experimenta deteres-me - e imaginava-se ao comando da sua escolta de soldados, com o xerife algemado na retaguarda, arrancando a Omnipotência à 272 força do seu trono, se tal fosse necessário; imaginava as legiões do céu e do inferno guerreando-se e ele abrindo caminho por entre elas para finalmente deitar as mãos à sobrinha. O vento que soprava de sudeste fustigava-lhe o rosto, certeiro. Dir-se-la que sentia o golpe de ar, persistente, penetrar fundo no seu cérebro e, de súbito, impelido por uma velha premonição, carregou nos travões, parou e quedou-se imóvel e sentado. Depois levou a mão à cabeça e começou a praguejar, e assim continuou, sentado e a praguejar, num rouco sussuro. Quando tinha de guiar por muito tempo, munia-se de um lenço embebido em cânfora que atava à volta do pescoço mal saía da cidade, para inalar os vapores; saiu por isso do carro e levantou a almofada do assento, na esperança de encontrar algum lenço esquecido. Espreitou debaixo dos dois bancos e deixou-se ficar fora do carro mais um pouco, a praguejar, imaginando-se coberto de ridículo pelo seu próprio triunfo. Fechou os olhos e encostou-se à porta. Podia voltar para trás e ir buscar a cânfora, ou seguir em frente. Em qualquer dos casos, sentiria a cabeça a estalar, mas em casa sabia que encontraria cânfora ao domingo, ao passo que se continuasse não sabia se a conseguiria arranjar. Porém, se voltasse para trás, só daí por hora e meia chegaria a Mottson. Talvez se eu for devagar... - disse ele. - Talvez se eu for devagar, a pensar noutra coisa... Entrou para o carro e arrancou. - Vou pensar noutra coisa disse, pondo-se a pensar na Lorraine. Imaginou-se na cama com ela, mas apenas deitado ao lado dela, pedindo-lhe que o ajudasse, mas logo voltou a pensar no dinheiro, e em como tinha sido enganado por uma mulher, uma miúda ainda. Se ao menos pudesse acreditar que fora o homem que o roubara. Mas ver-se roubado daquilo que era a sua compensação pelo emprego gorado, privado daquilo que ele tinha juntado com tanto esforço e risco, do próprio símbolo do emprego perdido, e, pior que tudo, por uma cabra daquelas. Seguiu em frente, protegendo a cara do vento certeiro com a gola do casaco. Via as forças adversas do destino e da vontade reunirem-se agora, rapidamente, numa aliança irrevogável; estava a ficar astucioso. Não posso falhar, dizia de si para si. Só havia uma saída, 273 sem alternativas: tinha de a usar. Estava convencido de que qualquer deles o reconheceria à primeira vista, ao passo que ele tinha de tentar descobri-Ia a ela primeiro, a menos que o homem ainda trouxesse a gravata vermelha. E o facto de depender de uma gravata vermelha parecia-lhe ser sinal da fatalidade iminente; podia quase sentir-lhe o cheiro, senti-lo no latejar das têmporas. Transpôs a última colina. Pairava fumo sobre o vale e viam-se alguns telhados e um ou dois pináculos despontando das árvores. Desceu a encosta e entrou na cidade, abrandando a marcha, mentalizando-se de que todo o cuidado era pouco, procurando a tenda antes de mais nada. Estava com a vista algo afectada, e sabia que era a fatalidade que teimava em dizer-lhe que fosse procurar qualquer coisa para as dores de cabeça. Numa estação de serviço disseram-lhe que a tenda ainda não estava montada, mas que as caravanas estavam num parque junto à estação dos comboios. Foi pois para lá que se dirigiu.

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Encontrou duas carrinhas estacionadas, pintadas em cores garridas. Inspeccionou o local ainda antes de sair do carro. Esforçava-se por respirar superficialmente para que o sangue não lhe latejasse tanto nas fontes. Saiu do carro e seguiu rente ao muro da estação, sempre atento às caravanas. Havia algumas peças de roupa estendidas nas janelas, pingonas e enrodilhadas, como se tivessem acabado de ser lavadas. No chão, junto aos degraus de uma delas, estavam três cadeiras de lona. Mas não detectou sinais de vida até um homem de avental imundo se assomar à porta e despejar um alguidar de água da loiça com um gesto largo, fazendo reflectir o sol no bojo metálico voltando em seguida para dentro. Agora tenho de o apanhar de surpresa, antes de ele os avisar, pensou. Nem lhe passou pela cabeça que podiam não estar nas caravanas. Que podiam nem sequer estar ali, que o desenlace não iria depender de quem visse primeiro quem, contrariando a natureza, o ritmo dos acontecimentos. Mais do que isso: ele tinha de ser o primeiro a vê-los e recuperar o dinheiro; o que fizessem depois já não teria importância, ao passo que de outra maneira, o mundo inteiro ficaria a saber que ele, Jason Compson, tinha sido roubado pela Quentin, sua sobrinha, uma puta. Fez novo reconhecimento do terreno. Depois aproximou-se 274 da carrinha, subiu os degraus, rápido e silencioso, e parou junto à porta. A cozinha da caravana era escura e tresandava a comida estragada. O homem era uma mancha esbranquiçada, e cantarolava com voz de tenor, trémula e de cana rachada. Um velho, pensou ele, e mais pequeno do que eu. Entrou no carro e o homem levantou os olhos para ele. - Sim? - disse o homem, parando de cantar. - Onde estão eles? - disse Jason. - Vá, rápido. Na carava- na-dormitório? - Onde está quem? - disse o homem. - Nada de mentirolas - disse Jason. Eavançou para o homem na penumbra, por entre a desarrumação geral. - Mas que vem a ser isto? - disse o outro. - A quem está você a chamar mentiroso? - E quando Jason lhe deitou a mão ao ombro, ele exclamou: - Eh lá, camarada! - Nada de mentiras - disse Jason. - Onde estão eles? - Filho da puta - disse o homem. O braço dele, fino e frá- gil, estava bem preso nas garras de Jason. Tentou libertar-se, e depois virou-se e começou a tactear entre a tralha que pe' ) ava a mesa por detrás dele. - Vamos - disse Jason. - Onde estão eles? - Espera lá que eu já te digo onde eles estão - guinchou o homem. - É só eu encontrar a minha faca e vais ver, - Oiça lá - disse Jason, tentando segurar o outro. - Só estou a fazer-lhe uma pergunta. - Filho da puta - guinchava o outro, vasculhando por cima da mesa. Jason tentou prender-lhe os dois braços para lhe acalmar a fúria, mas o corpo do homem era tão velho e frágil, mas, não obstante, tão fatalmente determinado, que Jason viu claramente pela primeira vez a fatalidade para a qual se precipitava. - Pronto! - disse ele. - Pronto. Pronto! Eu saio já. É só o tempo de sair. - A chamar-n-ic mentiroso - indignava-se o outro. - Deixa-me. Solta-me e vais ver o que eu te faço. Jason olhava tresloucado para todos os lados, sem o largar. Lá fora o dia estava soalheiro, brilhante, vivo e vazio, e ele pensou nas pessoas que não tardariam a regressar a casa calmamente, com 275

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circunspecto decoro, para o seu almoço de domingo, e pensou em si próprio, tentando deter aquele homenzinho furioso e fatal, sem se atrever a soltá-lo para lhe poder voltar as costas e fugir. - Promete que se controla até eu sair? - disse ele. - Promete? - Mas o outro continuava a debater-se, e Jason soltou uma das mãos e bateu-lhe na cabeça. Um golpe desastrado, atabalhoado, não muito violento, mas o outro tombou de imediato, rolando com estrépito por cima de baldes e panelas. Jason ficou de pé a olhar para ele, ofegante, à escuta. Depois deu meia volta e correu para a porta. Aí, dominou-se e desceu os degraus mais devagar, ficando parado cá fora. A sua respiração produzia um sonoro há há há e ainda ele estava ali parado, a ver se se acalmava, olhando para um lado e para o outro, quando uma restolhada atrás de si o fez voltar-se mesmo a tempo de ver o homenzinho saltar em fúria da caravana, brandindo um machado ferrugento. Jason agarrou-se ao machado, sem sentir o choque, mas sabendo que tombava e pensando É então assim que isto vai acabar, convencido de estar prestes a morrer, e quando uma coisa o atingiu na nuca pensou Como é que ele me conseguiu atingir aqui? Só se já me bateu há muito tempo, pensou ele, e só agora é que senti. E pensou Depressa. Depressa. Acaba com isso, e de repente foi tomado pelo desejo imperioso de não morrer e desatou a lutar, ouvindo o velho a gemer e a praguejar na sua voz de cana rachada. Lutava ainda quando o puseram de pé, mas agarraram-no e acabou por parar. - Estou a sangrar muito? - disse ele. - A nuca. Estou a sangrar? - Ainda a dizer o mesmo, sentiu-se subitamente empurrado, ao mesmo tempo que ouvia a voz do homem, esganiçada e furiosa, a perder-se na distância. - Vejam a minha cabeça - dizia ele. - Esperem, eu... - Esperem, uma ova - disse o homem que o agarrava. Aquele danado ainda o mata. Ponha-se a andar. Não está ferido. - Ele agrediu-me - disse Jason. - Estou a sangrar? - Vá-se embora - disse o outro. Dobrou a esquina e levou Jason até à estação, até à plataforma vazia onde estava parado um vagão de mercadorias perto de um sítio onde a erva crescia den276 sa num terreiro orlado de flores rígidas, com um anúncio luminoso que dizia: Fique de <3> em Mottson, estando o espaço preenchido por um olho humano com uma pupila eléctrica, O homem soltou-o. - Agora - disse ele - vá-se embora e não volte mais aqui. O que é que queria fazer? Suicidar-se? - Vim à procura de duas pessoas disse Jason. - Só lhe perguntei se sabia onde elas estavam. - Anda à procura de quem? - De uma rapariga - disse Jason. E de um homem. Ele andava ontem em Jefferson com uma gravata vermelha. Fazia parte do espectáculo. Eles roubaram-me. - Ah - disse o homem. - Então você é o tal. Pois é, mas eles não estão aqui. - Acho que não - disse Jason. Encostou-se ao muro, levou a mão à nuca e olhou para a palma da mão. - Julguei que estava a sangrar - disse ele. - Julguei que ele me tinha batido com o machado. - Você bateu com a cabeça nos carris - disse o homem. O melhor é ir-se embora. Eles não estão aqui. - Sim, ele de facto disse que não estavam. Mas pensei que estivesse a mentir. - E eu, acha que estou a mentir? - disse o homem. - Não - disse Jason. - Sei que eles não estão aqui. - Disse-lhes que se pusessem a andar daqui para fora. Os dois - disse o homem. - Não quero daquilo no meu espectáculo. Eu dirijo um

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espectáculo respeitável, com um elenco respeitável. - Claro - disse Jason. - E não sabe para onde foram? - Não. Nem quero saber. Nenhum dos meus artistas pode fazer avarias dessas. Você é... irmão dela? - Não - disse Jason. - Isso não interessa. Só queria encontrá-los. Tem a certeza de que ele não me bateu? Quero dizer.. que não me fez sangue? - Tinha corrido sangue, mas era se eu não chegasse quando cheguei. Fique longe daqui. Aquele danado é capaz de o matar. Aquele ali é o seu carro? 277 É. Ora bem, trate de se meter nele e de voltar para Jefferson. Se os encontrar, não vai ser no meu espectáculo. O meu espectáculo é um espectáculo respeitável. Diz que o roubaram? - Não - disse jason. - Não interessa. - Entrou para o carro. E agora o que vou fazer? pensou ele. Nisto, lembrou-se. Pôs o motor a trabalhar e seguiu devagar pela rua acima até encontrar uma farmácia. A porta estava fechada. Ficou parado por uns instantes com a mão no puxador e a cabeça ligeiramente curvada. Depois veio-se embora e, quando daí por um bocado passou um homem, perguntou-lhe se havia alguma farmácia aberta na cidade, mas não havia. Depois perguntou-lhe a que horas partia o comboio para o norte, e o homem disse-lhe que às duas e meia. Atravessou o passeio, entrou outra vez no carro e deixou-se ficar sentado. Algum tempo depois passaram dois rapazes pretos. Chamou-os. - Algum de vocês sabe guiar um carro? - Si, siô. - Quanto querem para me levarem agora mesmo para jefferson? Eles entreolharam-se e conferenciaram. - Dou-vos um dólar - disse jason. Conferenciaram de novo. - Por esse preço, não posso disse um. - Então por quanto? - Tu podes ir? - disse um. - Não posso sair daqui - disse o outro. - Por que não o levas tu? Não tás a fazê nada. - Isso é qu'eu tou. - E o qu'é que tás a fazê? Puseram-se de novo a cochichar e a rir. - Dou-vos dois dólares - disse jason. - A cada um. - Eu tamém não posso - disse o primeiro. - Está bem - disse jason. - Então passem bem. Deixou-se ficar sentado por mais algum tempo. Ouviu um relógio dar a meia hora e depois começaram a passar pessoas com os seus fatos pascais e domingueiros. Algumas olhavam para ele, 278 para aquele homem tranquilamente sentado ao volante de um carro pequeno, com a saga invisível da sua vida enredada à sua volta como urna peúga velha, e seguiam o seu caminho. Passado um bocado apareceu um negro de fato de macaco. É o sinhô que quê ir pa Jefferson? - disse ele. Sou - disse jason. - Quanto levas? Quatro dólares. Dou-te dois. Não poss'ir po menos de quatro. - O homem do carro continuou tranquilamente sentado. Nem para o outro olhava. O negro disse então: - Quê ou não quê os meus serviços? - Está bem - disse Jason. - Entra. Chegou-se para o lado e o negro sentou-se ao volante. jason fechou os olhos. Hei-de encontrar qualquer coisa assim que chegar a jefferson, dizia para si mesmo, tentando descontrair-se para suportar os solavancos, lá hei-de encontrar alguma coisa. Seguiram por ruas onde as pessoas regressavam às suas casas para o almoço de domingo, e saíram da cidade. Era nisso que ele

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pensava. Não pensava na sua própria casa, onde Ben e Luster comiam um almoço frio na mesa da cozinha. Alguma coisa - a ausência de fatalidade, de ameaça, um estado de mal permanente - permitia-lhe esquecer JefiFérson como um lugar que nunca tivesse visto, e onde a sua vida iria recomeçar. Quando Ben e Luster terminaram, Dilsey mandou-os lá para fora. - E vê s'o deixas em paz té às quatro horas. É q'ando chegló T. E - Sissiô - disse Luster. Saíram para o pátio. Dilsey almoçou também e arrumou a cozinha. Depois foi até ao fundo das escadas e pôs-se à escuta, mas não se ouvia nada. Passou pela cozinha, saiu pela porta das traseiras e parou nos degraus. Ben e Luster não estavam por ali, mas ouviu de novo um ruído vindo dos lados da adega e para lá se dirigiu, abrindo a porta e esprei- tando para baixo, numa repetição da cena dessa manhã. - Era assim qtMe fazia - dizia Luster. Contemplava a serra imóvel com uma espécie de esperançada dejecção. - Não tenho uma coisa apropriada pa lhe bate - dizia ele. - E tamém não vai sê aí qu'a encontras - disse Dilsey. 279 Leva-o já p'apanhá sol. Vocês inda apanham os dois uma pneumonia aqui em baixo neste chão molhado. Ficou à espera a vê-los atravessar o pátio até ao tufo de cedros junto à cerca. Depois foi para a cabana. - Agora, não comece - disse Luster. - Hoje já me deu trabalho que chegue. - Havia uma rede de baloiço feita de aros de barril enfiados numa rede de arame. Luster deitou-se a balançar, mas Ben continuou a deambular sem destino. E logo recomeçou a chorar. - Teja calado - disse Luster. - Tou a vê qu'inda tenho de lhe batê. - Deitou-se outra vez na rede. Ben estava quieto, mas Luster ouvia-o choramingar. - Vai-se calá ou não vai? - disse Luster. Saltou da rede e foi ter com Ben, agachado junto a um monte de terra. De cada lado do monte estava enterrado na terra um frasco vazio de vidro azul que antes contivera veneno. Dentro de um deles estava uma folha seca de erva-do-diabo. Ben estava de cócoras a olhar para o frasco e a chorar baixinho. Sempre a chorar, procurou à volta, encontrou um tronquinho e meteu-o no outro frasco. - Por que não se cala? - disse Luster. - Veja lá se quê qu'eu lhe dê uma boa razão pá chorá. E s'eu por exemplo lhe fizess'isto? Ajoelhou-se e, agarrando de repente no frasco, escondeu-o atrás das costas. Ben calou-se. Continuou de cócoras a olhar para a cova onde o frasco tinha estado, mas, quando ia encher os pulmões de ar, Luster fez aparecer outra vez o frasco. Chiu! - sibilou. - Não s'atreva a berrá! Tá a ouvi? Já aqui tá. Tá a vê? Tome lá. já vi que vai chorá s'aqui ficá. Venha daí. Vamos vê se já começaram a bate na bola. - Puxou Ben pelo braço para o ajudar a levantar, foram até à cerca e ficaram os dois lado a lado, a espreitarem por entre as folhas da madressilva que ainda não estava em flor. - Ali - disse Luster. - Lá vêm uns. Tá a vê-los? Viram um grupo de quatro jogadores atirarem a bola e seguirem para o buraco seguinte. Ben observava-os, a choramingar, e a gemer. Quando a equipa se afastou, seguiu-os ao longo da cerca, a gemer e a chorar. Um deles disse: - Vá, ca,@Uie, traz o saco. - Cale-se, Benjy - disse Luster, mas Ben continuou a 280 segui-los, no seu passo desajeitado, agarrado à cerca, a chorar com a sua voz rouca e infeliz. Os homens iam jogando e iam-se afastando, e Ben a segui-los até a cerca acabar, e ele ficar agarrado a ela a ver as pessoas cada vez mais longe, até desaparecerem. - E agora, vai-se calá? - disse Luster. - Vai-se calá ou não vai? - Abanou o braço de Ben. Ben estava agarrado à cerca, no seu choro rouco

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e continuado. - Vai pará ou não? - disse Luster, - Então? - Ben tinha o olhar fixo para lá da cerca. Então tá bem - disse Luster. - Quer que lhe dê uma razão pa chorá? - Olhou para trás, para a casa, ppr cima do ombro, e murmurou: - Caddy! Vá, berre agora. Caddy! Caddy! Caddy! Passados uns instantes, Luster ouviu a voz de Dilsey a cha- má-los, nos intervalos em que Ben se calava. Pegou no braço de Ben e foram ao encontro dela. - Eu bem lhe disse qu'ele não ia ficá calado - disse Luster. - Ah, malandro! - disse Dilsey. - O qu'é que tu lhe fizeste? - Eu não fiz nada. Eu bem lhe disse que quando os outros começassem a jogá ele desatava a chorá. - Venham p'aqui - disse Dilsey. - Vá, Benjy. Agora esteja caladinho. - Mas ele não se calava. Atravessaram o pátio e foram para a cabana. - Vai depressa buscá o sapato - disse Dilsey. - E não incomodes Miss Ca'line. S'ela dissé alguma coisa, diz-lhe qu'ele tá comigo. Vá, vai lá num instante. Acho qu'isso consegues fazê direito. - Luster saiu. Dilsey levou Ben para a cama e deitou-o ao lado dela e abraçou-o, embalando-o, enquanto lhe limpava a baba com a barra da saia. - Agora esteja caladinho - dizia ela, afagando-lhe a cabeça. - Esteja caladinho. A Dilsey está ao pé de si. - Mas ele chorava de mansi- nho, inconsolável, sem verter lágrimas; era o lamento desesperado e mudo de toda a miséria existente à face da terra. Luster voltou, trazendo na mão um chinelinho de cetim branco. Agora já estava amarelo, rasgado e sujo, mas quando o puseram na mão de Ben, ele sossegou por uns momentos. Mas choramingava ainda, e não tardou a elevar a voz. Achas que consegues encontrá o T E? - disse Dilsey. 281 - EFontem disse qu'ia hoje a St. Jolin. Disse que voltav'às quatro. Dilsey embalava Ben e afagava-lhe a cabeça. - Há quanto tempo, Sinhô - dizia ela - Há quanto tempo. - Eu consigo guiá a caleche, vó - disse Luster. - Vais é matar-vos aos dois - disse Dilsey. - Dizes isso pa m'atentares. Eu sei que esperteza não te falta. Mas não és de confiança. Vá, esteja caladinho - disse ela. - Vá. Chhh. - Não vou nada - disse Luster. - Eu guio como T R Dilsey balançava para trás e para a frente, abraçando Ben. - Miss Ca'line diz que se não conseguir qu'ele se cale, ela levanta-se e vem cá. - Chhh, meu amô - disse Dilsey, afagando a cabeça de Ben. - Luster, meu amô - disse ela -, vais fazê o qu'a tua avó diz e guiares a caleche direita? - Sissíô - disse Luster. - Vou guiá-la tão bem como o T. E Dilsey continuou a afagar a cabeça de Ben, embalando-o para trás e para a frente. - Eu faço o que posso - disse ela. Deus sabe que sim. Vai lá buscá-la - disse, levantando-se. Luster saiu a correr. Ben continuava agarrado à chinelinha, a chorar. - Agora cale-se. O Luster vai buscá a caleche e levá-lo ao cemitério. Nem m'atrevo a ir buscá o seu boné - disse ela. Foi a um roupeiro feito num canto do quarto com uma cortina a servir de porta e tirou o chapéu de feltro que tinha levado à igreja. - Inda havemos de chegá a pior do qu'isto, ah, s'as pessoas soubessem - disse ela. - O menino tamém é filho de Deus. E eu tamém vou tê com ele não tarda, louvado seja o Sinhê. Tome. - Pôs-lhe o chapéu na cabeça e abotoou-lhe o casaco. Ele não parava de chorar. Tirou-lhe a chinela da mão, arrumou-a e saíram. Luster apareceu com um velho cavalo branco atrelado a uma caleche desengonçada, toda tombada para um lado. - Vais tê muito cuidado, Luster, não vais? - disse ela. - Sissiô - disse Luster. Dilsey ajudou Ben a subir para o banco traseiro. Ele já tinha parado de chorar, mas depressa recomeçou.

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- É a flor - disse Luster. - Espere, eu vou-lhe buscá uma. - Deixa-te aí está - disse Dilsey. Foi para junto do cavalo e 282 segurou-lhe o freio. - Agora vai depressa apanhá uma. - Luster foi de volta até ao jardim e voltou com um narciso. - Esse tá partido - disse Dilsey. - Por que não IUarranjas um melhor? - Foi o único qu'encontrei - disse Luster. - Vocês levaram-nos todos na sexta feira pá decorá a igreja. Espere, eu conserto-o. - E enquanto Dilsey segurava o cavalo, Luster fez uma estaca para a flor com um tronquinho e dois bocados de cordel e deu-a a Ben. Depois subiu para a caleche e pegou nas rédeas. Dilsey ainda não tinha largado o freio. - Sabes o caminho? - disse ela. -, Pela rua acima, dás a volta à praça, vais direito ao cemitério e depois voltas pá casa. - Sissiô - disse Luster. - Toc'andá, Queenie. - Vê lá se tens cuidado. - Sissiô. - Dilsey largou o freio. - Toc'andá, Queenie - disse Luster. - Vá - disse Dilsey. - Passa pá cá o chicote. - Oli, vó! - disse Luster. - Dá-mo cá - disse Dilsey, encostando-se à roda. Luster deu-lho com relutância. - Assim a Queenie nunca mais anda. - Não te preocupes - disse Dilsey. - A Queenie sabe melhor pá onde vai do que tu. Tudo o que tens a fazê é ires aí sentado a segt@rares as rédeas. Sabes o caminho? - Sissiô. E o caminho qu@o T. P. faz todos os domingos. - Então faz tu a mesma coisa este domingo. - Claro que vou fazê. Então eu não guiei já pelo T. P. mais de cem vezes? - Então hoje é mais uma - disse Dilsey. - Agora vai. E se magoares o Benjy, negrinho duma figa, nem sei o que te faço. Vais pós trabalhos forçados, e tão depressa qu'inda lá chegas antes deles estarem à tua espera. - Sissiô - disse Luster. - Toc'andá, Queenie. Bateu com as rédeas no dorso largo da Queenle e a caleche arrancou com um solavanco. - Olha lá, Luster! - disse Dilsey. - Vamos. Toc'andá! - disse Luster. - Bateu-lhe outra vez 283 com as rédeas. Acompanhada de ruídos subterrâneos, Queenie trotou calmamente pela rampa abaixo, até à rua, onde Luster a espevitou para um trote vivo que se assemelhava a uma queda para a frente, prolongada e em suspensão. Ben parou de chorar. Ia sentado no meio do banco, com a flor consertada espetada na mão, de olhar sereno e inefável. Mesmo à sua frente, a cabeça fusiforme de Luster voltava-se continuamente até perder a casa de vista. Assim que isso aconteceu, parou na berma da estrada, desceu e foi cortar um ramo a uma sebe. Queenie baixou a cabeça e pôs-se a aparar a relva até Luster subir outra vez para a caleche, puxar-lhe a cabeça para cima e pô-Ia outra vez em marcha; depois, ele dobrou os braços e, com o ramo e as rédeas ao alto, adoptou uma pose fanfarrona, completamente despropositada para a cadência tranquila dos cascos da Queenie e os sons graves de órgão do seu acompanhamento interior. Passavam por eles carros, e pessoas; uma vez foi um grupo de rapazolas negros. Olá, Luster. Pa onde vais, Luster? Pé campo dos ossos? É - disse Luster. - Mas não pé mesmo campo d'ossos onde vocês hão-d'ir pará. Adiante, elefante. Aproximavam-se da praça, onde o soldado da Confederação vigiava, de

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olhar vazio sob a mão de mármore, fustigado por ventos e intempéries. Luster foi ainda mais longe e golpeou o dorso da imperturbável Queenie com o chicote improvisado, espraiando os olhos pela praça. - Tá ali o carro de Mr. Jason disse ele, ao mesmo tempo que avistava um outro grupo de negros. - Vamos mostrá a estes negros como é que se guia, Benjy - disse ele. - Disse alguma coisa? - Olhou para trás. Ben ia sentado com a flor na mão, de olhar sereno e despreocupado. Luster fustigou de novo a Queenie e obrigou-a a virar bruscamente à esquerda junto ao monumento. Por momentos, Ben viveu um hiato de pânico. Depois desatou a gritar. Grito a grito, a sua voz elevava-se cada vez mais, quase sem pausas para respirar. Havia nela mais do que espanto; era horror; choque; uma agonia sem olhos e sem língua; apenas som, e os olhos de Luster revirando-se para trás por um lapso de brancura. - Valha-me Deus - disse ele. - Cale-se! Cale-se! 284 Valha-me Deus! - Rodopiou outra vez e bateu na Queenie com o ramo. Mas ele partiu-se e Luster deitou-o fora, e, com a voz de Ben subindo de tom num crescendo inimaginável, pegou na ponta das rédeas e inclinou-se todo para a frente no momento em que Jason atravessava a praça a correr e saltava para o estribo. Com um golpe desferido com as costas da mão, Jason empurrou Luster para o lado; agarrou as rédeas, puxou o freio, dobrou as rédeas e fustigou os flancos da Queenie. Golpeava-a sem parar, metendo-a a galope desenfreado, enquanto os gritos roucos de Ben, em agonia, ressoavam por toda a praça. Depois fê-la virar à direita do monumento. Nisto, desferiu um murro na cabeça de Ben. - Não sabes que não é para a esquerda? - disse ele. Virou-se para trás e bateu em Ben, voltando a partir a haste da flor. Cala-te! - disse ele. - Cala-te! - Fez Queenie estacar e saltou para o chão. - Vai para o inferno, leva-o para casa. Se tornas a passar daquele portão com ele, dou cabo de ti! - Si, siô! - disse Luster. Pegou nas rédeas e bateu na Queenie com as pontas. - Levante-se! Vá, levante-se, Benjy. Por amô de Deus! A voz de Ben soava cada vez mais alto. A Queenie pôs-se de novo a passo, os cascos retomaram o seu toc-toc cadenciado e Ben calou-se de imediato. Luster olhou-o de relance por cima do ombro e seguiu em frente. A flor partida pendia da mão de Ben e os seus olhos eram vazios, azuis e serenos outra vez, à medida que comija e fachada deslizavam de novo da esquerda para a direita; postes e árvores, janelas, portas e cartazes, cada qual no seu devido lugar. Nova Iorque, N. Y Outubro de 1928 indíce Sete de Abril de 1928 .......................... . ...... 5 Dois de junho de 19 10 ............................... 69 Seis de Abril de 1928 ................................. 163 Oito de Abril de 1928 ................................ 237