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Elias, Nobert. 1996. The Germans. Power Struggle and the Development of Habitus in the Nineteenth and Twentieth Centuries. New York: Columbia Uni- versity Press. 494 pp. As categorias explicativas de inspiração liberal ou marxista, tal como eram formuladas nos primeiros decênios deste século, foram insuficientes para dar conta das grandes tempestades sociopolíticas de nossa época, dentre as quais se destacam — em posição relevante — o fascismo e o nazismo. Há várias razões para a perplexidade. Em primeiro lugar, esses dois regimes subverteram a significação tradicional da direita no espectro político. Tanto um quanto o outro incorporaram simbolicamente o fascí- nio das revoluções, rompendo com o quadro ideológico da direita clássi- ca, vinculada, com freqüência, à Igreja e ao pensamento católico (Furet 1995). Não é possível, pois, interpretar o fenômeno nazista sem levar em conta a irrupção das massas na arena política, embaladas pelo sonho do “socialismo nacional”, da unidade da pátria e, no caso específico do na- zismo, da supremacia da raça ariana. Afora isso, o nazismo representou uma mudança de qualidade — se é que se pode brincar nesse terreno com as palavras — no tocante à utili- zação da teoria da superioridade racial e do anti-semitismo. O anti-semi- tismo que percorreu a história do mundo ocidental não foi o núcleo fun- damental articulador das diferentes formações sociais, o que não signifi- ca negar sua importância como instrumento político. Mas nem a discri- minação genérica, nem os pogroms, nem mesmo a expulsão dos judeus da Península Ibérica, para ficar em um exemplo histórico ancestral, equi- valem aos objetivos de um regime que, desde o início da Segunda Guer- ra Mundial, decidiu erradicar da face da terra o “bacilo judaico”, embora levasse algum tempo para encontrar a fórmula mais eficaz de extermínio. Do ponto de vista da prática política, as interpretações da III Inter- nacional, que não correspondem necessariamente às do marxismo oci- ENSAIO BIBLIOGRÁFICO A INTERPRETAÇÃO DO NAZISMO, NA VISÃO DE NORBERT ELIAS Boris Fausto MANA 4(1):141-152, 1998

FAUSTO, B. A Interpretação do Nazismo, na Visão de Norbert Elias

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Elias, Nobert. 1996. The Germans. Power Struggle and the Development of

Habitus in the Nineteenth and Twentieth Centuries. New York: Columbia Uni-

versity Press. 494 pp.

As categorias explicativas de inspiração liberal ou marxista, tal como eramformuladas nos primeiros decênios deste século, foram insuficientes paradar conta das grandes tempestades sociopolíticas de nossa época, dentreas quais se destacam — em posição relevante — o fascismo e o nazismo.

Há várias razões para a perplexidade. Em primeiro lugar, esses doisregimes subverteram a significação tradicional da direita no espectropolítico. Tanto um quanto o outro incorporaram simbolicamente o fascí-nio das revoluções, rompendo com o quadro ideológico da direita clássi-ca, vinculada, com freqüência, à Igreja e ao pensamento católico (Furet1995). Não é possível, pois, interpretar o fenômeno nazista sem levar emconta a irrupção das massas na arena política, embaladas pelo sonho do“socialismo nacional”, da unidade da pátria e, no caso específico do na-zismo, da supremacia da raça ariana.

Afora isso, o nazismo representou uma mudança de qualidade — seé que se pode brincar nesse terreno com as palavras — no tocante à utili-zação da teoria da superioridade racial e do anti-semitismo. O anti-semi-tismo que percorreu a história do mundo ocidental não foi o núcleo fun-damental articulador das diferentes formações sociais, o que não signifi-ca negar sua importância como instrumento político. Mas nem a discri-minação genérica, nem os pogroms, nem mesmo a expulsão dos judeusda Península Ibérica, para ficar em um exemplo histórico ancestral, equi-valem aos objetivos de um regime que, desde o início da Segunda Guer-ra Mundial, decidiu erradicar da face da terra o “bacilo judaico”, emboralevasse algum tempo para encontrar a fórmula mais eficaz de extermínio.

Do ponto de vista da prática política, as interpretações da III Inter-nacional, que não correspondem necessariamente às do marxismo oci-

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dental, derivaram da análise inicial do fascismo, em meados da décadade 20, chegando com algumas variantes aos últimos tempos da chamadaRepública Democrática Alemã. A teoria explicativa da III Internacional,em termos simplificados, concentrava-se na análise econômica e na lutade classes. A partir da concepção leninista do imperialismo, afirmava que,em face do colapso iminente e inelutável do capitalismo, os elementosmais reacionários e mais poderosos do capital financeiro tinham desvia-do os movimentos de massa nascidos no após-guerra, a fim de manipulá-los a serviço de seus interesses. Em última análise, os dirigentes fascistase nazistas não passariam de lacaios do grande capital financeiro, um ins-trumento eficaz da repressão à classe operária organizada e da garantiada manutenção de seus lucros.

Há uma parcela de verdade nessa interpretação, mas apenas umaparcela. É um dado irrecusável que, se os representantes do grande capi-tal colaboraram com a ascensão dos nazistas, em face do espectro real ouimaginário do comunismo, sempre pretenderam deles servir-se, na quali-dade sobranceira de aristocratas diante de ativistas pequeno-burguesessemi-educados. Entretanto, definir a relação entre os grandes persona-gens do setor financeiro e da indústria alemã, de um lado, e o PartidoNazista em que avulta a figura de Hitler, de outro, como correspondenteà de senhor e lacaio, é certamente equivocado. Embora não tenha ocorri-do uma dominação do tipo sugerido por essa imagem, a inversão do rela-cionamento torna-se mais cabível. Ou seja, o Partido-Estado nazistadeterminou os rumos fundamentais da política, encarando com desprezouma grande burguesia pragmática cuja colaboração lhe era, entretanto,indispensável.

The Germans, livro de ensaios de Norbert Elias publicado poucoantes de sua morte, tem como um de seus eixos a interpretação do nazis-mo, seja no que diz respeito às suas raízes históricas, seja no que se refe-re às possibilidades de sua transfigurada ressurreição. Isto me parece jus-tificar a seleção desse tema central na análise do livro, embora outrasquestões de um trabalho tão denso fiquem aqui intocadas.

Desde logo, convém assinalar que o autor acrescenta mais um ele-mento significativo às dificuldades de se entender o nazismo. Trata-se,em suas palavras, da tendência a dar importância secundária a crençassociais e políticas, tomando-as como uma espécie de espuma, como“ideologias”, diante dos reais interesses de grupos ou classes (:312).Tomando como exemplo a decisão de pôr em prática o plano de “soluçãofinal para o problema judeu”, Elias assinala que ela não se explicamediante critérios que costumamos chamar de racionais ou realistas. Sem

negar a utilidade secundária de certos aspectos da decisão, ela consti-tuiu, em essência, a realização de uma crença central e profundamenteenraizada no movimento nacional-socialista desde o seu início. A crençade que a grandeza presente e futura da Alemanha e de toda a “raça aria-na” dependia da luta pela “pureza racial”; essa “pureza”, concebida emtermos biológicos, impunha o afastamento e, no limite, a destruição dosgrupos humanos “inferiores”, cujo epítome era representado pela “raça”judaica.

Um pressuposto da visão da história, assumida por Elias, é lembradono prefácio, escrito por Eric Dunning e Stephen Mennell. O processo civi-lizador — conceito e tema constitutivo de sua obra mais conhecida (Elias1993) — não é sinônimo de história-progresso, pois está sujeito a regres-sões; o nazismo representa uma demonstração trágica desse fato, corres-pondendo, no dizer do autor, ao colapso da civilização.

Elias considera que a implantação do movimento nazista e de seusistema de crenças é incompreensível, se nos detivermos apenas na con-juntura histórica. Sem dúvida, a profunda crise econômica aberta em 1929e a intensificação do conflito de classes daí resultante concorreram parao triunfo do nacional-socialismo. Mas, para se entender o fenômeno emtoda a sua extensão torna-se necessário, acima de tudo, considerar as ca-racterísticas do desenvolvimento da Alemanha, através de um longo pro-cesso histórico (:316).

Ressalve-se que, por maior que seja o peso dado à história de longaduração, na perspectiva do autor, o nacional-socialismo não constituiuuma necessidade histórica. A tradição nacional alemã abriu a possibili-dade da emergência desse regime que contém e potencia as característi-cas dominantes da aludida tradição.

Atualmente, há pouca discordância de que o recurso à longa dura-ção seja indispensável para o entendimento do nazismo. Interpretaçõesestritamente personalistas, centradas na figura de Hitler, ou microcon-junturais, perderam força1. Porém, uma vez aceita a necessidade de bus-car-se um quadro mais amplo, as questões proliferam. A partir de quemomento o passado histórico alemão deve ser levado em conta na tenta-tiva de se entender a emergência e o triunfo do nazismo? Que elementosdevem ser privilegiados nessa busca de nexos de sentido?

Um grande número de estudiosos tem-se concentrado na análise dasociedade e da política alemã no fim do século XIX, com perspectivasdiversas e, às vezes, conflitantes. De um lado, destaca-se o papel repre-sentado por uma suposta sobrevivência de tradições autoritárias e feu-dais como resultado do fracasso de uma autêntica revolução burguesa.

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Em conflito com uma economia moderna e dinâmica, as forças sociais“pré-capitalistas” seriam responsáveis pela entrega do poder aos nazis-tas, diante da crise econômica e da emergência de um movimento demassas.

De outro lado, enfatiza-se o caráter burguês da sociedade, tratando-se de explicar o nacional-socialismo não propriamente pelas “singulari-dades alemãs” vinculadas à idéia de uma revolução burguesa semi-abor-tada, mas pelas características específicas do Estado capitalista alemão,tal como se forjou a partir de fins do século XIX.

Em The Germans, Elias aparta-se dessas duas linhas interpretativas,seja do ponto de vista cronológico, seja no tocante aos elementos expli-cativos que seleciona e realça, na análise do processo histórico. Segundoele, para se entender o colapso da civilização alemã, é necessário ampliaro foco cronológico da longa duração, recuando-se consideravelmente notempo. Após referir-se à situação instável das tribos de fala alemã, assen-tadas nas terras baixas da Europa a oeste do rio Elba, rodeadas de tribosinimigas, Elias analisa as características do Sacro Império Romano-Ger-mânico, formado no século X que, em seus primeiros tempos, gozava deuma posição de preeminência no contexto dos Estados europeus.

Entretanto, ao longo do tempo, enquanto muitos Estados vizinhosestavam se transformando em monarquias centralizadas e internamentepacificadas, o Sacro Império manteve uma frágil integração, diante doreforço do poder dos príncipes; este fato deu origem a intermináveis con-flitos internos e foi um convite às invasões.

A partir dessa primeira caracterização, Elias traça um quadro de fra-queza da nação germânica, selecionando para tanto alguns exemplos his-tóricos: a guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que resultou no empobre-cimento de grande parte da população alemã e na perda de um terço des-sa população; a invasão do solo alemão pelas tropas de Luis XIV, no fimdo século XVII; a irrupção de Napoleão à frente de um Estado centraliza-do, obrigando a rainha da Prússia a empreender uma fuga humilhante.

Os acontecimentos das últimas décadas do século XIX poderiam terrevertido esse quadro de fraqueza estrutural do Estado germânico. Adinâmica da eliminação interna de estados rivais tornou a casa de Bran-demburgo-Prússia dominante no contexto alemão, em condições de lutarpela supremacia na Europa. De fato, ela engajou-se em uma guerra coma França — a guerra franco-prussiana de 1870-71 —, da qual saiu vito-riosa, o que lhe permitiu promover definitivamente a unificação alemã.

Porém, diz Elias, a Alemanha definia-se como uma monarquia abso-luta. O estágio do desenvolvimento estatal significava que as rivalidades

dinásticas continuavam a ser decisivas nas relações com as outras gran-des potências. Desse modo, os dirigentes políticos escolhidos pelo Kaiseroptaram inesperadamente por uma nova guerra, sem se perguntar se aAlemanha tinha alguma possibilidade de vitória, caso os Estados Unidosentrassem no conflito ao lado de seus aliados ocidentais. O resultado foia derrota na Primeira Guerra Mundial e a humilhação imposta pelo Tra-tado de Versalhes.

O relato sumário da história alemã, efetuado por Elias, não introduznovidades em si mesmo. A novidade diz respeito à natureza das conse-qüências derivadas desse processo histórico para a compreensão da Ale-manha como um todo e da catástrofe nazista, em particular. Tais conse-qüências não se situam na esfera das grandes estruturas socioeconômi-cas e sim na formação de um habitus. A questão central de Elias consisteem entender como a história de uma nação, ao longo dos séculos, sedi-mentou-se no habitus de seus membros considerados individualmente(:19).

Essa referência aos “membros considerados individualmente” meparece ambígua, prestando-se a equívocos. Todo o contexto do livro eoutras afirmações do autor demonstram que ele diverge de uma explica-ção centrada na formação da personalidade individual. Ele sugere,modestamente, estar formulando algumas considerações que permitiriamescrever a “biografia” de um Estado-sociedade, pois, tal como no desen-volvimento de uma pessoa as experiências de um tempo passado conti-nuam a ter efeitos no presente, o mesmo ocorre no desenvolvimento deuma nação. Nesse caso, trata-se de um ser coletivo, forjado em um con-texto mais amplo, como Elias assinala em sua crítica da teoria da perso-nalidade autoritária, citando expressamente Adorno (1950). Em suaspalavras, o pressuposto fundamental implícito nessa teoria é o de que apessoa, como resultado de uma estrutura familiar específica quando deseu crescimento, desenvolve a síndrome da estrutura de caráter corres-pondente à familiar.

Entretanto, diz Elias, a explicação, sem ser falsa é insuficiente, por-que a estrutura familiar autoritária está intimamente ligada à estruturaautoritária do Estado; e, para se entender melhor a natureza dessa cone-xão, é necessário olhar para a organização do Estado, forjada através deum processo de longa duração.

Assentado esse ponto, é necessário precisar o conceito estratégicode habitus no pensamento de Elias e, a partir daí, discriminar os elemen-tos que ele considera explicativos no processo de organização da socie-dade e do Estado germânico. Em primeiro lugar, habitus não é sinônimo

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de “caráter nacional”, expressão que o autor emprega no texto, mas sem-pre entre aspas. Uma clara distinção consiste no fato de que o conceitode caráter nacional tende a corresponder a um dado estrutural abrangen-te e pouco permeável a mutações de uma formação social, quaisquer quesejam os elementos privilegiados na constituição do “caráter nacional”,tanto em uma visão racial quanto em uma visão historicista.

O conceito de habitus implica maior flexibilidade, o que se compati-biliza com os cortes e as descontinuidades da história alemã. Assim, Eliasrefere-se ao dilema da classe média alemã, no século XIX e no início doséculo XX, oscilando entre uma tendência idealista-liberal e outra con-servadora-nacionalista que termina com a vitória da última, ao influxo daforma como se deu a unificação alemã. Acentua que esse fato constituium testemunho eloqüente da natureza descontínua do desenvolvimentoalemão, uma alteração de habitus que pode ser associada com clareza auma fase específica do desenvolvimento do Estado.

A rigor, o conceito de habitus aproxima-se do de mentalidade, assu-mido em toda a sua extensão, como se sabe, pela historiografia francesa,a ponto de Elias referir-se a habitus nacional ou mentalidade como ter-mos pelo menos assemelhados. Entretanto, ao contrário do que ocorrecom os historiadores franceses das mentalidades, a psicologia e, sobretu-do, a psicanálise parecem intervir mais do que a antropologia na consti-tuição do conceito de habitus. A esse respeito, o autor lança mão, expres-samente, de uma analogia com o método freudiano, em uma passagemem que, aliás, as fronteiras entre a psicologia individual e a psicologiacoletiva não são claras. Freud, diz Elias, tratou de mostrar a conexão entreo desfecho de uma conflituosa canalização dos impulsos no desenvolvi-mento da personalidade e seu habitus daí resultante. Mas há tambémconexões análogas entre o destino e as experiências de um povo, a longoprazo, e seu habitus social assim assentado. Nesse plano, ocorrem muitasvezes sintomas complexos de distúrbio que têm praticamente a força dasneuroses individuais.

Tanto na situação individual quanto na coletiva, segundo Elias, énecessário empreender a mesma tarefa: trazer de volta à consciência,quase sempre em face de uma forte resistência, coisas que tinham sidoesquecidas. Tal esforço, em ambos os casos, requer um autodistancia-mento e, se tiver êxito, pode contribuir para a flexibilização de rígidosmodelos de comportamento.

Quais as relações entre a constituição do habitus e as vicissitudes dahistória da Alemanha? O autor acentua que o desenrolar do processo his-tórico alemão, em contraste com países como a França, a Inglaterra, a

Suécia e até a Rússia, tomou o rumo da fragmentação; disso resultou queo habitus dos membros da sociedade veio a revelar sinais de depressão ede perda de identidade. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a posiçãosecundária dos estados alemães, no concerto da Europa, trouxe como con-seqüência a baixa de auto-estima do povo germânico, acompanhada deum sentimento de humilhação.

Com tais características, o habitus, transmitido de geração em gera-ção, produziu no povo alemão um desejo ardente de unidade, que emer-giu recorrentemente na Alemanha em situações de crise. A auto-imagemde que os alemães não eram capazes de conviver sem discórdias e dispu-tas encontrou expressão no sonho de encontrar um soberano ou um líderpoderoso, capaz de produzir a unidade e o consenso. Da alta sensibilida-de dos alemães pelas disputas internas, consideradas enfraquecedorasdo ideal de unidade, resultou, por sua vez, no passado recente, uma aver-são pela democracia parlamentar, com suas tensões incessantes e confli-tos entre os diferentes partidos.

A forma pela qual se deu a unificação alemã e a vitória na guerrafranco-prussiana provocaram uma alteração nesse quadro, após 1871.Mas, o ressentimento, o sentimento de inferioridade na hierarquia dosEstados europeus tiveram sua contrapartida na ênfase exagerada postana interiorização do sentimento de grandeza e do poder da nação alemã.A valorização da força bruta, reverso de uma situação histórica passadavivida como humilhante, foi potenciada pelo êxito de uma unificação rea-lizada sob a hegemonia dos junkers prussianos.

A partir desse quadro, podemos perceber em que características delonga duração se assenta o nazismo, depois da derrota da Alemanha naPrimeira Guerra Mundial, depois de Versalhes e da implantação de umregime democrático parlamentarista, que repuseram os traços de umhabitus adormecido após 1871. Se o nacional-socialismo trouxe consigoconfigurações terrivelmente originais, sendo a nova modalidade de anti-semitismo talvez a maior delas, se assentou também em outras de que ahistória alemã era portadora: o desejo de unidade, a valorização da vio-lência, a crença no “homem forte”, o desprezo pela democracia. Estesfatores facilitaram, em grande medida, o ascenso ao poder de um movi-mento nacionalista extremista, antidemocrático e anti-semita, que consti-tuiu uma religião social fortemente dominada pela fantasia.

Seria equivocado imaginar que Elias faz uma leitura “idealista vul-gar” do processo histórico alemão. Por exemplo, a penetração do modeloprussiano na classe média alemã, como conseqüência, sobretudo, da for-ma como ocorreu a unificação do país, foi precedida — diz ele — de

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desentendimentos entre um setor liberal da classe média e os estratosaristocráticos da corte, expressando um verdadeiro conflito de classes, doqual a classe média liberal saiu derrotada. Entretanto, na análise do con-flito, é bem mais relevante desvendar suas conseqüências no plano daconstituição do habitus do que no das transformações socioeconômicas.

Identificadas as características principais do habitus, Elias refere-seà conjuntura dos anos 20 como um elemento derivado, na explicação doascenso ao poder do nazismo. Segundo ele, a crescente influência dadireita antidemocrática e do nacional-socialismo no curso daqueles anos,após os primeiros insucessos, só pode ser entendida inteiramente emconexão com a Revolução Russa. O êxito dos bolcheviques, produzindouma aversão generalizada em amplos setores da classe média alemã emesmo em parcela significativa da classe operária, facilitou o triunfo deHitler e uma política condescendente dos aliados relativamente ao rear-mamento alemão.

Mas, se Hitler triunfou ao destruir a República de Weimar, façanhaque outros grupos paramilitares — os Freikorps — não lograram alcan-çar, foi porque ele foi capaz de apelar às massas e mobilizá-las, em umasituação de crise econômica e social, enquanto os Freikorps permanece-ram vinculados à tradição da elite de oficiais, por mais que tal elite tenhasofrido um processo de “barbarização”. Apresentando-se como umhomem do povo e um simples cabo do Exército, Hitler construiu eficien-temente sua imagem simbólica de representante da “raça alemã”, ofere-cendo um mundo de glória e dominação para todos os setores da socie-dade dispostos a segui-lo.

A ênfase colocada por Elias na longa duração e na constituição dohabitus, a fim de interpretar o nazismo, é bastante justificável e abrecaminho para um campo de investigação em que se entrecruzam as dife-rentes disciplinas componentes das ciências humanas. Sua análise con-juntural merece, a meu ver, alguns reparos, na medida em que não dárelevância a certos elementos significativos de ordem socioeconômica epolítica. As referências ao quadro resultante da crise mundial iniciadaem 1929 e as opções partidárias surgem em The Germans en passant,aparentemente como elementos explicativos de importância secundária.A política desastrosa do Partido Comunista alemão, nos anos 20 e nosprimeiros anos da década de 30, identificando os social-democratas,alcunhados de social-fascistas, como o inimigo principal, aparece ape-nas em um momento do livro. E, mesmo assim, como uma referênciaindireta, ao discutir a doutrina oficial da RDA acerca da interpretaçãodo nazismo.

Duas indagações me parecem, ainda, dignas de destaque. Em quemedida o regime nazista contou com a aprovação do povo alemão? Emque medida constituiu um fenômeno singular, produto de uma história ede uma conjuntura específicas? Seleciono estas duas questões porqueelas se prestaram e ainda se prestam a uma longa controvérsia, comrepercussões no terreno político.

No que diz respeito à primeira, Elias não fica encerrado no dilemaresponsabilidade coletiva ou absolvição do povo alemão, optando poruma análise mais ampla. Não nega que muitos alemães recusaram onazismo e, esquecendo os militantes de esquerda liqüidados em grandenúmero nos campos de concentração, lembra o fracassado atentado con-tra a vida de Hitler, praticado por oficiais de alta patente, nos últimosanos da guerra.

Porém, a ênfase não é colocada na resistência e sim na aceitação ouno entusiasmo pelo nacional-socialismo, ponto de vista coerente com todaa sua análise. No fundo, diz Elias, nenhuma oposição ou revolta era pos-sível, tanto pela coação estatal quanto porque a consciência, o autocon-trole da grande massa permaneceu, em grande medida, dependente doEstado, quaisquer que fossem seus representantes. As técnicas intensi-vas de educação e de propaganda, postas em prática pelos nazistas nosentido de garantir a lealdade absoluta da população, serviram apenaspara reforçar as características de uma estrutura de personalidade quecriou nos indivíduos uma disposição a se submeter lealmente às exigên-cias do chefe do Estado, cuja imagem foi internalizada pelo povo comoparte de sua consciência.

A análise, concentrada na psicologia coletiva, é oscilante. O texto aci-ma referido implica uma identificação não conflituosa entre o povo ale-mão e Hitler, considerando-se o habitus forjado ao longo da história ale-mã e a personalidade deste, cujas necessidades emocionais correspon-diam às de seus seguidores. Entretanto, ao mesmo tempo, Elias faz refe-rência à identificação com o opressor, a despeito de todo o ódio e dúvidasque muitos alemães podem ter sentido no fundo de seus corações.

A questão da singularidade do nazismo, simplificadamente, podeser encarada através de duas interpretações opostas. De uma lado, a queconsidera o nazismo um regime específico, nascido de uma conjunção defatores estruturais e conjunturais não reprodutíveis, distinguindo-seinclusive do fascismo. De outro, aquela que, a partir principalmente daanálise do Holocausto, relativiza a chamada peculiaridade dos alemães,considerando o nacional-socialismo uma forma da barbárie gerada pela“modernidade”2.

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Em algumas passagens, Elias aproxima-se da última linha interpre-tativa, ainda que não se identifique com ela. Ao se referir às explicaçõesque consideram o nazismo um câncer extirpável no corpo das sociedadescivilizadas, diz que elas trazem conforto mas não explicam grande coisa.Muitos eventos recentes sugerem que o nacional-socialismo revelou, deuma forma particularmente execrável, condições comuns às sociedadescontemporâneas.

Porém, a discussão me parece deslocada. Se os exemplos da atuali-dade demonstram a extensão do genocídio, em uma escala inimaginávelnos primeiros anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, a questão daespecificidade do nazismo não se reduz a essa constatação, mas às suascaracterísticas peculiares que não se limitam ao Holocausto, por mais dra-mático que este tenha sido.

Por último, caberia pensar sobre as possibilidades de reemergênciado nazismo na Alemanha, não apenas como um fenômeno marginal. Eliasnão lida diretamente com a questão, mas afirma que, no plano político, ainteriorização de um regime parlamentar multipartidário, por parte dopovo alemão, é tarefa para alguns séculos, pois um regime dessa nature-za, baseado na mediação e no compromisso, choca-se com os valoresautoritários e guerreiros, cristalizados ao longo da história da Alemanha.

Em um registro otimista, poderíamos nos perguntar se a SegundaGuerra Mundial e os acontecimentos posteriores não abriram caminhopara uma inflexão de habitus da população alemã. Duas guerras com des-fechos catastróficos para a Alemanha e as lições aprendidas pelos paísesdemocráticos em sua atitude para com os vencidos, tão diversas em 1918e em 1945, não teriam, ao menos, contribuído significativamente paralivrar os alemães de uma síndrome histórica?

Recebido em 11 de setembro de 1997

Reapresentado em 4 de janeiro de 1998

Aprovado em 29 de janeiro de 1998

Boris Fausto é historiador e professor aposentado do Departamento de Ciên-cia Política da USP. Editor da História Geral da Civilização Brasileira (Perío-do Republicano) e autor, entre outros trabalhos, de Crime e Quotidiano. ACriminalidade em São Paulo (1880-1924) (1984) e História do Brasil (1994).E-mail: [email protected]

Notas

1 Isto não quer dizer que as explicações microconjunturais tenham desapa-recido de cena. Para um exemplo recente, ver Turner Jr. (1997).

2 Este último argumento é central para os historiadores que tentaram relati-vizar o genocídio nazista, gerando a “querela dos historiadores”, aberta porHabermas, em 1986, com sua crítica ao “revisionismo conservador”. Dentre osautores criticados, destaca-se, por seu prestígio, Ernst Nolte. Nolte argumentaque, embora o genocídio tenha sido incontestável e deplorável, estaria inscritoem uma série de eventos comparáveis, característicos do século XX. Mais ainda,ele não teria ocorrido, se não fosse o genocídio cometido pelos bolcheviques rus-sos, por razões de classe (ver Nolte 1988).

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Referências bibliográficas

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Resumo

Este trabalho analisa um dos temascentrais do último livro de NorbertElias: a significação do nazismo. Refe-re-se às razões da perplexidade dascorrentes liberal e marxista para darconta do fenômeno, pelo menos em umprimeiro momento. A partir dessa cons-tatação, expõe o ponto de vista de Elias,que se aparta de uma história-progres-so, no rumo de um processo civilizatóriocada vez mais aperfeiçoado. Procura-sedemonstrar como a interpretação deElias está fundada na análise de longaduração da história alemã, dando rele-vância à constituição do habitus comoum conceito explicativo original quenão se confunde com o de caráter na-cional. O ensaio discute também o pesosecundário, embora não irrelevante,que Elias atribui à conjuntura dos anos20 e princípios dos anos 30 na implan-tação do nazismo. Indaga-se, por últi-mo, se, na opinião de Elias, o nazismofoi um fenômeno datado e específico e,em função da resposta, quais as possi-bilidades de sua reemergência no qua-dro atual.

Abstract

This paper analyzes the significance ofNazism, one of the central themes inthe latest book by Norbert Elias. Itrefers to the reasons behind the per-plexity of the liberal and Marxist cur-rents in dealing with the phenomenon,at least initially. Beginning with thisobservation, the author presents Elias’point of view, which strays from a kindof progress-history towards an increas-ingly perfected civilizatory process. Itseeks to demonstrate how Elias’ inter-pretation is founded on a long-rangeanalysis of German history, highlight-ing the constitution of habitus as anoriginal explicatory concept, not to beconfused with that of national charac-ter. The essay also discusses the sec-ondary (albeit relevant) weight Eliasascribes to the context of the 1920s andearly 1930s in implanting Nazism. Fi-nally, the author asks whether in Elias’view Nazism was a dated, specific phe-nomenon and – depending on the an-swer – what the possibilities might befor its reemergence in the current con-text.