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Favela toma conta

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Buzo é um expoente do movimento cultural da periferia paulistana que vem revelando o cotidiano da periferia em suas crônicas, livros e blogs. As mudanças vieram com o casamento, o hip-hop, a literatura e a preocupação com a realidade que o cercava. De "O Trem - baseado em fatos reais" (2000) ou "Suburbano Convicto - o cotidiano do Itaim Paulista" (2004) a "Favela Toma Conta", toda a sua produção mantém o compromisso de representar a periferia, fortalecendo sua auto-estima e estimulando a arte e a mobilização de outros "suburbanos convictos".

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Favela toma contaAlessandro Buzo

Patrocínio

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Copyright © 2008 Sérgio Vaz

COLEÇÃO TRAMAS URBANAS

curadoria HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA

consultoria ECIO SALLES

projeto gráfico CUBÍCULO

FAVELA TOMA CONTA

produção editorial ROBSON CÂMARA

copidesque DIANA DE HOLLANDA

revisão JULIANA WERNECK

revisão tipográfica ROBSON CÂMARA

B996f

Buzo, Alessandro, 1972-

Favela toma conta / Alessandro Buzo.

-Rio de Janeiro : Aeroplano, 2008.-(Tramas urbanas ; 10)

ISBN 978-85-7820-008-4

1. Buzo, Alessandro, 1972-. 2. Homens - Brasil - Biografia. I. Título. II. Série.

08-2851. CDD: 920.71

CDU: 929-055.1

10.07.08 14.07.08 007607

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA

Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22440 030 TEL: 21 2529 6974 Telefax: 21 2239 7399

[email protected] www.aeroplanoeditora.com.br

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Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, peri-feria social – se reforçam cada vez mais movimentos culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam os de alguns segmentos específicos: grupos musicais, grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas de idêntica importância, embora com menos visibilidade, é a produção intelectual que cuida, além de questões artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos.

A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes, um consistente e instigante apanhado dessa produção amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que não são originários de favelas ou regiões periféricas dos grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a partir de um ponto de vista local, alguns consensos ques-tionáveis das elites intelectuais”.

A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patroci-nadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsa-bilidade social contribuir para a inclusão cultural e o for-talecimento da cidadania que esse debate pode propiciar. Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século, cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar para diminuir as distâncias sociais é um esforço impres-cindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.

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Sumário 08 Prefácio

10 Cap.01 Minha formação

18 Cap.02 As drogas

36 Cap.03 Virando gente e mudando de vida radicalmente

48 Cap.04 1998, o ano do meu casamento, e as mudanças continuam

56 Cap.05 Virando escritor

68 Cap.06 Encarando a vida e escrevendo a história

78 Cap.07 Primeiro livro

98 Cap.08 Tudo novo na minha vida

108 Cap.09 Altos e baixos

118 Cap.10 2003, último ano turbulento

132 Cap.11 Hip-hop

154 Cap.12 2004, ano da mudança pra melhor

162 Cap.13 Nasce o “Favela toma conta”

170 Cap.14 A periferia em destaque

180 Cap.15 1º “Favela toma conta”

188 Cap.16 Continuidade

198 Cap.17 3ª edição do evento e segundo livro se aproximando

210 Cap.18 Um livro por ano e o Buzo crescendo

222 Cap.19 Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto

230 Cap.20 Consolidando a carreira

244 Cap.21 2006, só duas edições do Favela

254 Cap.22 Livre de vez do sistema e do trabalho escravo

260 Cap.23 Pelas periferias do Brasil

270 Cap.24 Poesia

272 Cap.25 2008: segue o jogo da vida

278 Legendas e créditos de imagens

282 Sobre o autor

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Prefácio

Nos últimos anos, tenho ouvido falar cada vez mais em globali-zação. É um termo meio genérico, que muita gente usa sem nem saber direito o que significa, mas para mim é o fato de que o mundo parece ficar menor e que as distâncias são percorridas mais facilmente. É muito comum hoje em dia acompanharmos as notícias da Europa, consumirmos produtos chineses, ali-mentos argentinos, roupas americanas e por aí vai. A Internet chegou de vez pra colocar lenha nessa fogueira. Ao navegar no universo virtual, tenho acesso a cidadãos iraquianos, estudan-tes mexicanos, vídeos amadores feitos em toda parte.

É indubitável que o planeta se converteu numa aldeia, mas mesmo essa aldeia tem centro e periferia.

Numa grande metrópole como São Paulo, onde as distâncias físicas e sociais são enormes, parece às vezes que estamos mais próximos de Londres que da periferia. A TV e os jornais nos aproximam mais do chamado primeiro mundo do que do Itaim Paulista. O tempo que o Buzo leva pra sair de sua casa no extremo da Zona Leste até entrar no trabalho, no Centro da cidade, equi-vale, muitas vezes, a uma viagem internacional de avião. Maior ainda é o desafio de trazer a realidade dessa periferia para o centro da cidade e revelar sua diversidade e qualidade.

Esse é o principal papel do Buzo. Ele se converteu num porta-voz da periferia, através de seus livros, blogs, fanzine e dos eventos e palestras que ele articula constantemente.

Junto com a Marilda e o filho deles, Evandro – o Buzo é o cara mais família que conheço –, ele anda por todo lado articulando o encontro entre pessoas com interesses parecidos, viabilizando

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as idéias que tem para agitar a cultura e, assim, trazer novas perspectivas e consciência pra muita gente.

Ele sabe como poucos usar a palavra – no papel, na Internet ou falada – para contar o seu cotidiano e nos mostrar um mundo que está muito próximo, mas que não foi ainda ouvido e reve-lado. Acontece que esse universo oculto é muito grande. As periferias das grandes metrópoles abrigam milhões de pessoas que, mesmo silenciadas pelos meios de comunicação, estão realizando uma verdadeira revolução cultural. Estamos come-çando a ver, e veremos muito mais, uma agitada e questionadora cena artística – em literatura, dança, teatro, música, audiovi-sual, artes plásticas – protagonizada pela periferia que vem pra abalar os alicerces e o marasmo da produção contemporânea. E o Buzo desponta como um expoente nesse movimento. Ele é o maior cronista desse ambiente, nos mostrando, através de seus livros e dos blogs que atualiza permanentemente, o cotidiano da periferia, e chamando nossa atenção para aquilo que está muito perto, mas que parece difícil de se enxergar.

Esse livro é uma incrível oportunidade para acompanhar a tra-jetória do Buzo até desembocar no 15º “Favela toma conta”, nos seus livros, na sua presença na TV. Conforme os capítulos se sucedem parece que estou ouvindo sua voz, ao redor de uma garrafa de cerveja num bar do Itaim Paulista, contando algumas passagens marcantes da sua correria enquanto nossos filhos brincam por perto.

Com sinceridade total, que é sua característica, o cara nos dá uma aula de vida e respeito, sempre com objetivos claros e com a presença da família, afinal, a Marilda e agora o Evandro são parte indispensável dessa história.

Sérgio GagliardiSP maio, 2008

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Cap.01

Minha formaçãofor-ma-ção

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Cap.01

Minha formaçãoCap.01

Minha formação

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Posso dizer, sem medo de errar, que minha infância e adolescên-cia nada tiveram de diferente das dos moradores das milhares de periferias espalhadas pelo Brasil. Cresci no Itaim Paulista, no extremo da Zona Leste de São Paulo, e, acredite, se lá hoje temos poucas opções de lazer e cultura, nos anos 1970 e 1980 essas opções eram quase zero. Em meio a isso, cresci sendo um rapaz comum. Morador do Jardim Olga, de onde eu gostava muito pelos amigos dali – pois o lugar não tinha nem tem nada de especial –, na rua Francisco Emídio Pacheco, antiga rua 5. Trata-se de uma travessa da estrada Dom João Nery que liga os bairros do Itaim Paulista a Guaianazes. Na região do Jardim Olga, é Itaim ainda. Próximo dali, na favela do Torresmo, é onde promovo a maioria das edições do meu evento “Favela toma conta”, que dá título a esta obra – mas disso vamos falar mais pra frente,14 anos depois. Por enquanto, estamos no início dos anos 1990, e o jovem Alessandro Buzo de Souza – por muitos chamado de Alemão, seu apelido de infância – tem 18 anos.

Na rua Cinco, nós jogávamos bola desde antes do asfalto che-gar. A vila tinha dois times principais – um de campo e outro de salão –, joguei em ambos. Fui, por algum tempo, o centroavante do segundinho – naquela época os times tinham duas forma-ções, o segundo quadro – que jogava antes – e o principal, cha-mado de primeiro quadro. Muitos diziam que eu era ruim e só

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13Minha formação

fazia gol porque ficava na banheira, mas o fato é que eu fazia gols, e para um centroavante isso basta.

O Bar do Pirú, localizado na Dom João Nery, em frente à rua 5, era a sede do Força Jovem. O Pirú era o central do time e meio que dono também. Joguei uns três anos ali e fui titular da camisa 9 do segundinho. O meu reserva era bandido, e sempre dizia que merecia uma chance, mas nunca tomou minha posição. Como jogador, ele era um bom ladrão.

O outro time em que joguei foi o Campari, de futebol de salão. O esquema era dois quadros também, e fiz uma boa dupla de ata-que com o Diva. Lá, a concorrência era maior, então às vezes eu ficava no banco, mas sempre entrava e fazia meus gols.

Para arrecadar fundos pro time, nasceu a quermesse do Jardim Olga que, com o passar dos anos, se tornou a maior e mais cheia do Itaim Paulista. Mas era muito bandido que colava1 e, com o tempo, ela ficou perigosa de se freqüentar. Chegou ao ponto de rolar uma treta2 feia em que morreram algumas pessoas – entre elas, um pai e seu filho. Quando isso aconteceu, eu não morava mais no Jardim Olga, nem colava mais na quermesse. Com o tempo, fui deixando de jogar futebol e, depois que casei – em 1998 –, parei de vez. Só jogo de brincadeira, muito de vez em quando.

Desde muito cedo, com 13 anos, passei a trabalhar no Centro de São Paulo – a 38 quilômetros do Itaim Paulista. Meu primeiro emprego foi o de office-boy num escritório de contabilidade na rua Silveira Martins, na Praça da Sé. Depois, por anos, trabalhei em vários lugares e funções.

Por volta de 1987, meu pai se separou da minha mãe, e ela teve que começar a trabalhar, encarando muita faxina em casa de

1 Chegava.2 Briga, confusão.

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15Minha formação

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família para sustentar a mim e a meu irmão. Depois, virou fun-cionária pública da Prefeitura do Município de São Paulo, e trabalhou como auxiliar de cozinha em hospitais e creches públicas. Sempre trazia livros e gibis usados que comprava em sebos – sem saber, ela estava fazendo uma coisa que ajuda-ria, e muito, na minha formação e no meu futuro profissional. Melhor dizendo: seus livros me abriram uma porta que, hoje sei, salvou minha vida e me tirou da invisibilidade.

Meu pai nunca ajudou direito nas despesas, e minha mãe nunca teve coragem de procurar a justiça para obrigá-lo a pagar pensão, nem de mandá-lo para a cadeia pela falta do paga-mento. Passamos por muitos problemas financeiros, e minha mãe morreu trabalhando, pois não tinha quem a fizesse deixar o emprego, mesmo com seus problemas de saúde por causa de uma hérnia. Na real, eu e meu irmão não dávamos a ela a confiança de que sozinhos seguraríamos a barra. Passei a ter responsabilidade apenas depois que casei, antes só vivia endi-vidado, doidão e na zueira.3 Minha mãe faleceu por causa dessa hérnia, no Hospital do Servidor Público da Vergueiro, em 2001.

3 Bagunça.

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17Minha formação

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Cap.02 As drogas

Cap.02 As drogas

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Além da leitura, sempre gostei muito de música. Curtia samba – Bezerra da Silva, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Fundo de Quintal, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, entre outros – e também gostava de rock nacional – Titãs, Legião Urbana, RPM, Barão Vermelho etc. Ainda na infância, conheci a primeira febre mundial por uma banda, os latinos do Menudo. Eles domina-ram a cena de um jeito que beirava a histeria e nós, os meninos, os odiávamos, pelo simples fato de as meninas os amarem. Há pouco tempo, teve uma febre parecida – talvez um pouco mais para o público infantil do que para o juvenil –, Os Rebeldes.

Reflito às vezes sobre isto: o sucesso muito grande que um dia acaba. Tirando o Rick Martin, os outros integrantes do Menudo desapareceram e não fazem mais parte do meio da fama e das celebridades. Acho que de Os Rebeldes não sobrará sequer um Rick Martin, mas tudo bem. Com esse negócio de sucesso é mesmo difícil de se lidar. Você vê as Paquitas da Xuxa: algu-mas seguiram carreira de atriz, recentemente, uma delas – a Fantini – fez um filme pornô, outras sumiram etc. A mídia é cruel, do mesmo jeito que levanta, derruba. Mas vamos mudar de assunto.

Desde 1985, eu trabalhava no centro. Foram anos de office-boy, o que foi muito importante na minha vida. Nessa função, conheci bastante a mega cidade de São Paulo, e aprendi a fazer traba-lhos em bancos e repartições públicas. O tempo passou –ao

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todo trabalhei na Good Look Organização Contábil uns dez anos –, e cheguei a chefe de Departamento Pessoal. Fazia folhas de pagamento de vários clientes do escritório – admissão, resci-são, homologação. Saí e voltei umas três vezes durante esses dez anos.

A minha relação com meu ex-patrão – com quem hoje não tenho mais contato – era difícil. Eu acelerava o processo, achava que merecia ganhar mais, ficava puto porque em muitas vezes ele não aparecia no dia do pagamento, e noutras ele nos pagava com cheques de terceiros que davam um puta trabalho de tro-car. Por isso, eu gastava em bares no Centro para conseguir pagar com o cheque e pegar o troco – se eu tivesse recebido em dinheiro, não teria que gastar em bar pra trocar.

Então, passei a dar uns gatos, desviar grana, tirar vantagem de homologações e até pegar dinheiro para pagar tributos de clien-tes e simplesmente não pagar. Virei um tipo de estelionatário, mas sempre acreditando que uma hora pagaria. Por isso, man-tinha em minha gaveta as coisas de que pegava a grana. Até que um dia faltei e meu patrão, procurando algo em minha gaveta, achou todas as guias. No dia seguinte, quando cheguei, todas as provas estavam na mesa dele. Foi foda, ele se sentiu traído, e ameaçou chamar a polícia. Mas resolvemos que eu pagaria tudo, a cada mês daria 50% do meu salário até quitar a dívida. Entretanto, isso só rolou por uns seis meses, pois depois vi que ele também descontava de mim – não estava me pagando na íntegra –, então saí fora e disse que podia chamar a polícia se quisesse. O que me levou a juntar tanto B.O.1 foi o uso de dro-gas, cheirava cocaína todo dia nessa época.

A gota d’água da nossa conturbada relação foi quando, depois de eu ter voltado a trampar2 lá, machuquei a perna no trem, vindo de um jogo de futebol do meu time do Coração – lembro até hoje:

1 Vem de “Boletim de Ocorrência”, significa um problema.2 Trabalhar.

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Palmeiras 2x1 Novorizontino, no Parque Antártica. A história foi assim: um cara que vinha com a gente, o Jânio – que esteve preso uns tempos por brigas de torcida, e é hoje presidente da Mancha Verde –, naquele tempo pouco mais que um garoto, estava na porta e caiu. Então, nós todos descemos na estação seguinte – São Miguel –, e recebemos a orientação de voltar até o local do acidente, pois, se ele estivesse vivo, o próximo trem o colocaria na cabine. Hoje, erros como esses – a orientação de andarmos na linha e de mexermos num acidentado sem a pre-sença do Corpo de Bombeiros – jamais aconteceriam.

Correndo nos trilhos para ver se o cara – na época, não sabí-amos seu nome – tinha sobrevivido, caí num buraco, e minha perna bateu num dormente – madeira que apóia o trilho –, que fez um rasgo, deixando o osso à mostra, fratura exposta. Eu e meu primo voltamos a São Miguel, e os demais seguiram para socorrer o jovem que caíra do trem.

Resultado, o Jânio não morreu – aliás, até reclamou quando o médico cortou sua camiseta da Mancha Verde –, e eu fui pessi-mamente atendido. Costuraram minha perna com sujeira den-tro, o que quase causou a sua amputação. Depois de muito sofri-mento, enfim arrumei um médico que me receitou uma série de trinta injeções, uma de manhã e outra à tarde por quinze dias. Minha mãe se matou para comprá-las, pois eram caras, e foram elas que salvaram minha perna.

O Jânio indo de muleta fazer fisioterapia, e eu ainda com a perna muito inchada, deitado num colchão na sala, sofrendo feito um cão sem dono a cada vez que tinha de ir ao banheiro. A dor era tanta que eu batia a cabeça na parede. Digo que foi a gota d’água entre mim e o meu patrão, porque ele não só me aban-donou, como disse pra todo mundo na Sé que eu havia caído do trem por estar vadiando pendurado na porta. A gota d’água e o fim da nossa conturbada relação.

Esse acidente foi em 1992, quando o Palmeiras lutava para sair da fila de títulos – o último tinha sido em 1976. Por fim saímos,

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e em grande estilo: goleando o Corinthians por 4 x 0 na final do Paulistão 93. Nessa época, eu era presidente da Torcida Leste Alvi Verde, umas das muitas loucuras que fiz na minha vida. Fui também baloeiro, integrante da equipe de balão “Lágrimas de Fogo”. Minha vida era só drogas e baladas.

Nunca roubei nem trafiquei para usar drogas, só gastava toda a minha grana e ajudava, por conta disso, muito pouco em casa.Mas vamos falar de como conheci as drogas, ainda traba- lhando no escritório na Praça da Sé.

Cresci vendo vizinhos fumarem maconha, mas morria de medo, a fama deles era de bandidos e, naquele tempo, bastava estar com cheiro de maconha na mão numa batida policial para ser conduzido à delegacia. Depois, parte desses caras passou a usar “Back” – primeira droga pesada da periferia antes da coca-ína, que naquele tempo era muito cara e difícil de se achar, e do crack –, e injetar droga com seringa direto na veia. Uns morre-ram, outros acabaram presos – roubavam para sustentar o vício – e alguns viraram crentes para poder deixar o vício maldito.Cresci nesse ambiente, então não era nenhum garotinho ino-cente. Mas, por ter visto tanta gente ir presa e morrer por causa das drogas, tinha medo de experimentá-las.

Voltando à história, eu trabalhava na rua Silveira Martins, que começa na Praça Clóvis, grudada à Sé. Todo dia, ou quase, tomava uma cerveja na Panificadora Silveira Martins, ao lado do Edifício Minister, número 112, onde trampava. Lá conheci o Mulinha, nem sei por que coloquei esse apelido nele. Na ver-dade, eu o chamava de Mulinha e vice-versa. Mas não tinha nenhuma ligação direta com o “mula” que transporta droga para traficantes. Eu era chefe de departamento pessoal na contabi-lidade, e ele trabalhava por conta própria, consertando máqui-nas de calcular – mercado que, acreditem, existe até hoje, ainda que, claro, naquele tempo fosse mais requisitado. O Mulinha ganhava bastante dinheiro e torrava tudo com bebidas e coca-ína. Ao contrário de mim – que não oferecia droga para quem

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não usasse –, ele tinha esse perfil. Sempre nos víamos na pada-ria, até que um dia trocamos idéia, e nasceu uma grande ami-zade. No mesmo dia em que nos conhecemos, ele disse que “ia ali e já voltava” – no caso, foi na sala dele cheirar –, e quando voltou, perguntei inocentemente:

— Foi aonde?

— Fui dar um tirinho.3

— Dar um tiro?

— Fui cheirar uma farinha,4 tá a fim?

Respondi que não, e que morria de medo do nome COCAÍNA, pois ouvia falar horrores dele. Mas, apesar disso, continuei bebendo com o Mulinha, e achei estranho o fato de, depois de cheirar, ele continuar igual, sem aparentar ter se drogado. Dia seguinte, colei na padaria e, depois de umas cervejas, fui com o Mulinha dar o primeiro tiro da minha vida.

Passei a cheirar com ele, íamos a vários lugares comprar dro-gas, à baixada do Glicério e a microbiqueiras5 que surgiam e acabavam com a mesma velocidade.

Até que arrumamos nosso fornecedor oficial, o Zóinho, um cara mal-encarado que tinha um olho de vidro – ou sei lá o quê. Ele vinha, ao início da tarde, com vários papelotes para vender a R$ 10,00 cada. Quando chegava, colava direto na sala do Mulinha, guardava a maior parte dos papelotes dentro de uma calcula-dora velha – na sala tinha centenas –, e ficava só com alguns em cima. Zóinho rodava bares e salas de maquineiros, ofere-cendo seu produto aos clientes.

3 Gíria para cheirar cocaína. 4 Cocaína.5 Biqueira é onde se vende droga.

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Com o tempo, passou a bater o cartão, isto é, a colocar um pape-lote de graça para nós três cheirarmos. Quando ele chegava, o Mulinha me ligava e dizia:

— Mulinha, o Zóinho vai bater o cartão.

O prédio dele era exatamente na frente do meu, do outro lado da rua. Então, eu pegava qualquer papel na minha mesa e anunciava:

— Vou tirar uma xerox.

Descia a milhão, saía do 112, entrava rasgando no 115, subia ao primeiro andar de escada e “batíamos o cartão”. Depois, voltava cheirado pro escritório, muitas vezes, sem um real no bolso, e pegava um papel para pagar às 18:00h. Com o passar do tempo, este tipo de hábito contribuiu para eu me enfiar mais nos este-lionatos descobertos pelo meu patrão depois, como já disse.

Cheirava de segunda a sexta e, por um bom tempo – meses ou anos –, não cheirava aos fins de semana, porque meus forne-cedores eram no Centro e não conhecia esse movimento no Itaim Paulista. Até o dia em que descobri a primeira biqueira de farinha no meu bairro – depois outras –, e passei a cheirar de domingo a domingo. Trabalho, drogas, baladas, soltar balão, ir para o estádio ver o Palmeiras jogar, uma vida loka.6 Não tem grana que agüente.

Nessa época, eu era bastante namorador e, modéstia à parte, fazia algum sucesso com as mulheres. Eram várias. Uma me deu muito trabalho, porque me ameaçava se eu largasse dela. Outra ficou grávida e perdeu o filho num aborto espontâneo – não sei o que seria da minha vida se tivesse sido pai naquele tempo, jovem e sem responsabilidade. Muitas eram esquema de uma noite só – freqüentava o Bar Tempo Livre, na av. Tibúrcio de Souza, no Itaim Paulista, e lá conhecia as minas e as arras-

6 O mesmo que louca.

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tava na madruga pros motéis, ou ficava com elas no bar mesmo, quando ele fechava.

Na Sé, eu também arrumava meus casos. Lembro de uma mina que fazia jogo do bicho – ela dava entrada fazia tempo, mas eu não ligava pra ela. Até um dia em que ficamos bebendo, a hora passou, o metrô acabou, e fomos prum hotel fuleiro no Parque Dom Pedro. Eu, louco pra cheirar, só tinha um tirinho mínimo, ela disse que fumaria um baseado. Eu nunca tinha fumado – minha iniciação nas drogas foi direto na farinha –, fumei, e não conseguia parar de rir; fizemos uma zona naquele quarto: sexo, drogas e muitas risadas. Definitivamente, não queria voltar a fumar, pois a maconha eu não controlava, enquanto com a cocaína ficava de boa.

Fiz cada loucura. O Mulinha era viciado em puteiro, e às vezes eu ia com ele, que me convencia bancando tudo, mulheres e bebidas.

Assim, eu seguia minha vida – com tudo para ser preso, morrer, ou, quem sabe, matar minha mãe de desgosto, se ela sonhasse com metade das coisas que eu fazia. Mas ela sempre achava que era mentira – se algum vizinho me cagüetava –, e, quando me perguntava sobre drogas, eu sempre a enrolava. O fato de, aos trancos e barrancos, continuar trabalhando, ajudava que acreditasse em mim. Nunca fiz nada tão errado – roubar, trafi-car – justamente para não decepcioná-la. Minha mãe sempre dizia que não nos queria presos, e que, se isso acontecesse, não nos visitaria e nem leria nossas cartas. O amor que tinha por ela, de tão grande, me salvou, pois nunca passei de um dro-gado para coisa pior. Ela morreu sem nunca ter tido uma grande decepção comigo e, em 2001, quando se foi, eu nem cheirava mais. Parei em 1997 ou 1998, porque estava namorando a Marilda – que virou minha noiva, com quem casei e tive meu único filho. Larguei a cocaína para me casar, não daria para fazer as duas coisas.

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A forma que encontrei para conseguir parar de cheirar foi fumar maconha. Aos poucos, fui passando a fumar e deixando de chei-rar. Antes disso, por uns seis meses, fumei mesclado, que é um cigarro de maconha misturada com crack.

Foi quase o fundo do poço, quase me levou a nóia total, fiquei feio na foto. Tínhamos no Jardim Olga uma banca7 de uns 15 drogados, fumávamos mesclado todo dia. Durante uma época, morei seis meses sozinho neste bairro, e minha casa passou a se chamar “BatCaverna”. Acabei devolvendo a chave porque, a qualquer momento, a polícia estouraria aquele antro de drogas.

Havia um matagal perto de uma favela no Itaim, e lá fumáva-mos também. Depois, no lugar desse matagal, passaram a exis-tir prédios do CDHU – moradia popular do governo do Estado de São Paulo. Ali, onde antes eu usava droga, acontece hoje a maioria das edições do “Favela toma conta”, fundado em 2004.

Assim foi minha juventude de usuário de drogas. Saí da Good Look Contábil em 1997, depois do acidente no trem. Ao todo, foram 11 anos lá, preenchidos por muito aprendizado – com bons e maus momentos –, e pelo retorno à leitura.

Esse retorno se deu quando umas pessoas do Círculo do Livro entraram no escritório. Elas tinham um catálogo de livros atra-vés do qual você escolhia a obra – pagava via boleto, no banco–, e a recebia em casa. Folheei-o sem o mínimo interesse, até ver um título que me chamou a atenção: Eu, Christiane F., 13 anos drogada e prostituída. Comprei, gostei demais, e voltei a ler. Adquiri vários títulos do Círculo do Livro – isso fez parte do meu resgate, e depois faria parte do meu futuro, como escritor.

O Mulinha é meu amigo até hoje. Há anos não o via, mas, por esses dias, parei na Silveira Martins para almoçar com a Marilda e, muito rapidamente, o avisaram que eu estava na área. Ele, então, colou na lanchonete e, depois que comi, fui à sua sala.

7 Pessoal, galera.

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35As drogas

O Mulinha continua trabalhando por conta, consertando calcu-ladora, mas a sala agora é em outro prédio, na mesma rua, e seu aluguel é dividido com outros maquineiros. Sua história é bas-tante sofrida. Casou, teve três filhos, mas se separou da mulher, que ligava de madrugada, com problemas – ela se envolveu com o crime e as drogas, e teve um final trágico, morreu assassinada. Depois disso, voltou a morar com a mãe, e cria sozinho os filhos, é um pai responsável.

Nunca as drogas abalaram nossa amizade, que era verdadeira. Mesmo não o vendo sempre, considero-o um irmão. Não o culpo por ter me iniciado na cocaína. Se não fosse ele, alguém teria me iniciado, mais cedo ou mais tarde.

O ano de 1997 foi um marco pra mim. Minha vida começou a mudar para melhor, namorando e, depois, noivando com a Marilda. Passei a ter vontade de largar as coisas que me faziam mal. Parei com a cocaína, o mesclado e o cigarro, e passei a fumar maconha, o que, tendo em vista o meu passado, era o mesmo que virar careta. Foi quando, também, larguei a contabi-lidade. Não dava mais. O rolo das coisas que soneguei, o fato de o meu patrão ter me abandonado quando machuquei a perna, tudo isso me fazia mal e, enfim, cortei o vínculo definitivamente. Fui atrás de uma nova vida.

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Virando gente e mudando de vida radicalmente.

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Cap.03

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Passei vários venenos nesse tempo. Quando saí da contabi-lidade, achava que arrumaria um outro emprego no mesmo ramo, na mesma função que estava quando saí, chefe de Dpto. Pessoal, ou ao menos a de auxiliar. Durante muito tempo pro-curei um trampo nesse ramo, mas nunca encontrei. Queriam segundo grau completo, queriam a função que dizia praticar na carteira, mas eu trabalhara mais sem registro do que propria-mente registrado no antigo trampo.

Houve uma vez em que já tinha passado por várias etapas da seleção para o Bradesco, praticamente todos que ali continua-vam seriam contratados, mas num dos últimos testes a mulher perguntou:

—Todos aqui têm segundo grau completo?

Eu vacilei, deveria ter dito que sim, depois enrolava para levar diploma se fosse preciso, mas no ato respondi:

—Eu não tenho.

Em seguida, fui chamado a uma outra sala, onde outra mulher me disse que era um engano eu estar ali, pois a seleção era só para quem tinha segundo grau, e me deu um pé na bunda. Fiquei na febre,1 com muita raiva do mundo e de mim mesmo, ainda mais porque na turma tinham umas minas muito pouco

1 Ficar totalmente estressado.

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inteligentes, e eu dançara por ter sido honesto. Não sei o que teria acontecido se eu mantivesse a mentira, se colaria, e, se colasse, como teria sido minha carreira de bancário. Hoje, sei que não queria trabalhar num banco, mas, naquele tempo, era tudo com o que eu podia sonhar.

Saí da contabilidade entre 1995 e 1996. Pela falta de registro, não sei ao certo a data, mas passei mais de um ano desempre-gado, me negando a procurar trampo de qualquer coisa, queria no meu ramo.

Nesse tempo, conheci o rap. Curtia as músicas dos Racionais MCs e, aos poucos, fui descobrindo outros grupos, outras músi-cas, mas não sonhava que me envolveria tanto assim, como hoje. Para conhecer melhor, passei a ler tudo o que encontrava sobre o assunto: primeiras edições da revista Rap Brasil, jornal Estação Hip Hop etc. Escrevo essas linhas na semana da 15ª edição do “Favela toma conta”.

Nascia algo que cresceria muito dentro de mim: meu envolvi-mento com a cultura hip-hop e também – isso um pouco mais a frente –, minha participação no quinto elemento que é o conhe-cimento – livros e filmes-, no caso, por enquanto, mais os livros. Para quem é leigo no assunto, os outros quatro elementos do hip-hop são: MC, break, DJ e grafite. A junção desses elementos para se tornar uma cultura – que hoje está em todos os estados do Brasil e que tem representantes do mundo todo – nasceu através do Afrika Bambaataa, nos Estados Unidos. Teve uma cena antes na Jamaica, mas foi o Bambaataa, para controlar a violência das gangues americanas, que juntou os elementos e propôs que os combates entre gangues, que antes eram resolvidos a bala, fos-sem então feitos em batalhas de MCs, break e assim por diante. O Afrika Bambaataa se tornou, então, o pai do hip-hop.

Mas voltemos a 1996. O Palmeiras ganharia o título paulista com o time dos sonhos – mais de cem gols sob o comando de Wanderlei Luxemburgo –, e eu, desempregado e já bem desen-

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canado de futebol, fui, acompanhado da Marilda, ao último jogo contra o Santos gritar:

— É campeão.

Comecei a admitir que teria de trampar em outra coisa, porque senão estaria ferrado, mas nem assim encontrava nada. Até que, através de um desses locais que encaminham pessoas para empregos, cheguei à Status Componentes Eletrônicos, que fica na região central de São Paulo, conhecida como Cracolândia.

Fui admitido em 05 de agosto de 1997 para ser auxiliar de escri-tório. A firma vendia componentes eletrônicos através de licita-ções, e o grosso do meu serviço era datilografar – lembram da máquina de escrever? Eu era um ótimo datilógrafo, afinal, antes da era do computador, fazia as folhas de pagamento da contabi-lidade. Assim, caí como uma luva na Status. Mas tinha um pro-blema: era muito trabalho para pouco dinheiro. Bem, melhor um passarinho na mão do que dois voando, então encarei.

Trampava no primeiro andar, numa mesa próxima à janela de vidro, e a cena a que assistíamos diariamente era depri-mente. Logo pela manhã, ao chegarmos para trampar, víamos vários nóias2 fumando pedra. Eu conhecia o processo: pedra no cachimbo, fumar. Durante o dia, com as lojas abertas, circula-vam menos nóias do que no final da tarde, mas sempre tinha.

Da minha janela, eu via a chegada da polícia. Chegava chu-tando, agredindo e revirando as coisas, achava rapidamente drogas e cachimbos, batia na cara, xingava, um esculacho só. Se eu, da minha posição, filmasse, a cena daria repercussão na mídia com certeza, mas naquele tempo nem sonhava com audiovisual, meu negócio era datilografar muito, e, sendo um morador sem grana de periferia, era melhor evitar qualquer problema com polícia.

2 Termo usado nas ruas para usuários de drogas.

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A empresa não ia muito bem das pernas e recebia vários telefo-nemas de cobranças, mas, sempre que entrava dinheiro, a dona e seu marido – ela mandava mais que ele –, pagavam algumas delas, e lutavam com garra para reverter a má situação. O nosso salário era pouco, mas ela pagava direitinho.

Voltemos aos nóias. Eles viviam apanhando da polícia e suas auto-estimas eram zero. Tinha um policia civil japonês que era o capeta, muito ruim mesmo. Quando a barca dele parava, era porrada pra todo lado. Era deprimente todo dia ver aqueles far-rapos humanos apanhando. Geralmente, eles batiam e deixa-vam os nóias no mesmo lugar, só mandavam eles circularem. Às vezes, acho que dependendo do flagrante que encontravam, levavam todos pro camburão, mas algumas horas depois os nóias voltavam – mancando, com sinais de tortura – para fumar pedra e aliviar a dor.

Só agüentei trabalhar ali por três meses e vinte dias. Nesse meio tempo, meu irmão Álvaro entrou para trabalhar de office-boy.

Eu morava mais na casa da Marilda do que na de minha mãe. Lá tinha o namorado da minha cunhada – que casou e se sepa-rou dela anos depois –, com quem hoje não converso. Mas, na época, eu namorava a Marilda e ele, que trabalhava de pedreiro, namorava a minha cunhada.

O cara queria montar uma empreiteira para se levantar, então, usando meus conhecimentos do tempo de contabilidade, abri a firma pra ele, fiz o contrato social, com auxílio da Ana Regina do meu antigo trampo, fui à Junta Comercial etc. E consegui. Abri a empresa, que tinha seu CNPJ e tudo mais, só falei pra ele que não tinha estrutura para fazer o dia-a-dia empresarial, e o man-dei deixar isso com um escritório. Foi o que ele fez.

Com os primeiros trabalhos arrumados pela Empreiteira X – vamos chamar assim –, o cara perguntou se eu não queria trabalhar de apontador, que é quem controla a documenta-ção dos pião, anota faltas, atrasos e horas extras, enfim, quem

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cuida de tudo o que for burocrático. Como o salário da Status não estava sendo suficiente, troquei meu emprego pela obra do CDHU da Parada XV de Novembro, onde a Empreiteira X tinha um grupo de quase vinte pião trampando. Saí da Status dia 25 de Novembro de 1997 e, dias depois, já estava na obra.

Outro mundo, salário melhor. Só era fogo lidar com a piãozada, muitos bebiam cachaça, eram brutos e mal-encarados. Mas fui fazendo a política da boa vizinhança e ganhando a confiança deles. Várias vezes tinha que pôr a mão na massa e trabalhar feito um pião, já estava até bebendo pinga na hora do almoço para agüentar o tranco.

A comida servida no refeitório era horrível, e eu era responsá-vel também por controlar os tickets de almoço e café. Comia ali forçado. Como uma outra cunhada minha morava – ainda mora – ali perto, um dia a Marilda estava em sua casa, cuidando da bombonière dela. Fui almoçar lá, e fiquei entre namoro, almoço, Globo Esporte, umas duas horas e meia fora da obra. Quando voltei, o véio3 – pai do dono da empreiteira – estava virado no capeta atrás de mim. No dia do pagamento era treta, aparecia muita grana que eu sozinho ia buscar no Bradesco de Itaquera, mas somando todos os holerites não sobrava muito, e depois passou a não dar. Foi quando o pai do dono quis que eu remon-tasse os pagamentos, tirando um pouco de cada um. Aí o caldo começou a desandar.

Eu já estava meio de saco cheio. Meu escritório era um apar-tamento em construção. Um monte de prego batido na parede – que servia para pendurar roupas e mochilas –, enxadas e pás por toda parte – quando chovia, ficavam vinte centímetros de água suja nele.

Nos dias de “grauti” – uma massa forte feita em caminhão e que usávamos para encher laje, escada, etc –, eu vinha de bota no meio, primeiro mexendo, e depois com um vibrador gigante, o

3 Velho. É usado normalmente para chamar os pais.

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enfiando nos locais que os trabalhadores tinham acabado de encher. Vibrava e evitava espaços sem massa – dava uma esta-bilizada, digamos assim. Ou seja, eu caía no trampo feito um pião.

Chegou o último dia de pagamento que passei ali, e corri para chamar o pai do dono – este aparecia pouco na obra. Encontrei-o no meio de um serviço pesado, ele gritava:

—O que você quer? Não dá pra esperar acabar aqui?

—Porra, tem que ser agora.

Ele saiu do buraco onde estava – literalmente – e veio xingando:

—Não vem me dar notícia ruim não. Você ultimamente só me serve pra isso.

Chegamos no “escritório”, falei:

—Falta mais de R$ 1.000.

—E o meu? – disse ele.

—Sem você, falta mais de R$ 1.000.

—Refaz essa porra toda, tira cem conto de cada um, cobre o que falta, e tira pelo menos quinhentos reais pra mim.

Eu, a contragosto, fiz, mas antes avisei:

—Tirando isso de cada um, eles vão reclamar, dizer que está errado.

—A gente põe a culpa na contabilidade. E vê se tira um pouco do seu também, que tá me saindo muito caro.

Eu tinha comprado uma TV numa promoção em duas vezes, a TV que até hoje tenho em casa. O cheque era para aquele dia, e não podia furar com a minha cunhada, aquela que era noiva do dono da empreiteira. Um puta rolo. Alterei todos os pagamen-tos menos o meu, que não sou trouxa de ninguém. Era o correto, não ia me roubar.

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Fiz os pagamentos ao final da tarde e vários reclamaram. Tirei principalmente das horas extras, e deu briga. Tranqüilizei todos dizendo que devia ser erro da contabilidade, e que se resolve-ria segunda. Eles engoliram, mas nascia um problema grave: se corrigisse, não tinha de onde tirar grana. O pai do dono foi até os homi4 da construtora e mostrou a situação. Eles não adian-taram nada pra ele, as contas estavam certas, o problema era dele. Não tínhamos crédito na praça para empréstimos, o que o véio fez? Espalhou para os pião e todos na obra que eu tinha roubado dinheiro, por isso que os pagamentos vieram errado, e que ele não tinha como repor agora, mas que mais pra frente todos receberiam. Na real, ele ficou puto de eu não ter abatido do meu e ter recebido mais que ele.

Ia trampar inocentemente e, antes de chegar à obra, um orelha – servente – me disse:

—O véio disse pra todo mundo que você roubou a firma.

—Filho da puta safado.

Temendo pela minha integridade física, não voltei lá até o dia em que fiquei sabendo que ele não pagaria meus direitos. Tipo assim, a coisa ficou tão séria que agora ele tinha que manter – até pro filho dele – que eu havia roubado. O filho, que não é muito inteligente mas não é burro, sabia que dificilmente eu teria como ter roubado. Aí fui lá à obra tirar satisfação. Falei na frente da piãozada que se alguém ali era ladrão, esse alguém era ele. Batemos boca, e fiquei de ir atrás do meu direito. Parece que o filho dele me pagou depois, puta dum rolo. Em junho de 1998, acabava minha carreira na construção civil.

4 Mesmo que homem ou homens.

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Cap.04 1998 – Ano do meu casamento, e as mudanças continuam

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Estava de casamento marcado para 26 de setembro. Eu e a Marilda construímos uma casa no restinho de laje da mãe dela – de onde hoje escrevo esse livro. Como o espaço era pequeno, fizemos dois cômodos e um banheiro. Melhoraram várias coi-sas em minha vida – sou hoje chamado até de referência por alguns novos escritores –, mas não deu ainda para comprar uma casa. Moro há dez anos nesses dois cômodos. Espero, ainda neste ano de 2008, comprar uma casa maior e sair daqui. Estou lutando pra isso.

Dei “sorte”, e encontrei outro trampo logo. Não lembro como cheguei à Brás Mac, acho que foi através de anúncio em jornal ou caderno de emprego. Tratava-se de uma empresa grande que trabalhava com tecidos, rolos e mais rolos de todos os tipos e cores. Esses rolos pesam pra caramba, mas encarei. Fui admi-tido em 1º de julho de 1998 como ajudante geral – cada vez mais, estava pegando no pesado.

Lembrava com saudade a minha mesa na contabilidade. Por causa do noivado e da falta de grana, fui parando de usar droga. Teve uma vez em que contei pra Marilda que cheirava cocaína, ela chorou muito e ali decidi parar, e parei. Cortei duas coisas que me faziam mal, cigarro e cocaína.

Tinha entrado um novo gerente geral na Brás Mac, que queria fazer uma grande arrumação nos três andares de estoque. Por

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isso, contrataram três ajudantes. Entre eles, eu. A promessa e o sonho era ser efetivado ao término dos 3 meses de experiência. Então, trabalhei domingo, fiz hora extra pra porra e o possível e o impossível para me destacar e ser efetivado – afinal, fal-tava pouco tempo pro meu casamento. Trabalhei muito, feito um burro de carga, e me sentia da casa, do time. Os três meses voa-ram. No começo, cansava muito. Depois, fui pegando o ritmo.

Um dia, cheguei para trampar e me mandaram procurar o cara do Departamento Pessoal. Como tinha umas extras pra receber, e eles as pagavam por fora, acreditei que fosse isso, e subi cor-rendo as escadas. Era a minha demissão. Terminava naquele dia o contrato de experiência. Eu e os outros que entraram comigo estávamos sendo dispensados.

Caiu a ficha: só passamos ali o tempo de arrumar a casa pro novo gerente. Agora, éramos descartáveis. Quis saber o motivo. Não tinha motivo, era isso mesmo.

Fiquei muito puto da vida. Grande injustiça, não levaram em consideração que eu estava para casar. Recebi meus direitos e, depois da fúria – olha como Deus escreve certo por linhas tor-tas – meu próximo emprego foi no ramo em que fiquei por quase dez anos, um trampo onde, ao contrário da obra ou da Brás Mac, eu sentia prazer no que fazia. Só deixei de trabalhar nele – ven-das de alimentos para restaurantes, hotéis, clubes, hospitais – quando passei a viver só de cultura. Lembro até hoje, caderno de empregos do jornal Diário de São Paulo – olha que coincidên-cia: ontem dei entrevista para esse jornal, em que serei desta-que daqui a dois dias. Mas voltemos a 1998.

Saí da Brás Mac em 30 de julho de 1998, com casamento mar-cado para setembro. Achei que casaria desempregado, quando, num domingo, comprei o Diário de São Paulo e recortei alguns trampos pra ver segunda. Fui a dois e já estava indo embora, com fome, sem dinheiro, quando decidi ir a mais um, que era no Brás, no caminho do trem que pegaria depois.

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Cheguei lá, e tinha uma fila de umas dez pessoas. Um ataca-dista de alimento, isso ficou claro. A vaga era para auxiliar de escritório, nada de obra ou ajudante geral. Fiquei ali, e fui aten-dido pelo Edvaldo, que até hoje trampa lá e, já nessa época, tinha mais de dez anos de empresa. Ficaram, então, de me ligar, como sempre após várias outras fichas que fazia. Mas desta vez, antes de eu chegar em casa – isto é, na casa da Marilda –, eles ligaram. Era para eu ir lá no dia seguinte. Fui e comecei a trabalhar no romaneio no dia 1º de setembro de 1998, 25 dias antes de casar.

O trampo era receber todas as notas fiscais e separá-las por região – todas do Itaim Bibi, todas da Zona Norte, todas de Pinheiros etc. Os dois carros da casa e as terceirizadas faziam as entregas. Eu pegava as notas da mesma região – nelas tinha o peso da mercadoria –, e as ia juntando até que o peso atin-gisse o limite do carro – Kombi de 900 a 1.000 kg, Besta 1.300 kg e Van grande até 1.800 Kg. Às vezes o cara saía com duas, três entregas, às vezes com dez, e assim ia. Quando passava de seis, sete entregas, os motoristas falavam um monte. Nesse caso, eu prometia que a seguinte seria melhor, e cumpria. Assim, estava sempre bem com eles. Apesar de corrido e de haver muita gente no pé, era da hora1 fazer os romaneios de entrega no Atacadista São João – vamos chamar assim.

Toca o telefone:

—Queria falar com o Gil.

—Da onde?

—Milton, do Restaurante tal.

—Gil falando...

—(geralmente, muito bravo) Cadê minha entrega? Era até 11 horas!

1 Muito bacana, muito legal.

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—Buuuuuzzzzzzooooooo, cadê a entrega do Restaurante tal?

Eu pegava os romaneios do dia e respondia “tá no carro da casa” ou “tá no carro do seu Mário” etc. Então, o Gil voltava ao seu cliente e o tranqüilizava:

—Tá na rua, daqui a pouco está chegando aí.

—Buzo, tenta ligar pro seu Mário.

Ele e eu íamos fazer outra coisa.

Casei em 26 de setembro de 1998. Neste ano, meu casamento completa dez anos. Fiquei nessa função por apenas três meses. Aí, chegou um feriado, e o espanhol, o dono, me chamou:

—Segunda-feira, depois do feriado, você senta naquela mesa e começa a vender.

Fiquei felizão. O salário fixo era o mesmo, mas, a partir de 30 mil de vendas no mês, havia comissão, e muitos ali ganhavam bem nessa função. Alem do mais, a pressão era menor que no romaneio e o status maior, sem contar as perspectivas de aumento salarial.

As coisas começavam a melhorar.

Cerveja e maconha eram meu lazer. Fumava todo dia na hora de ir embora, e, trabalhando ali, conheci bebidas e comidas finas de que gosto até hoje. Passei a comprar – rachando com meus cunhados – vários uísques: Cavalo Branco, Red, Bucannas etc., um melhor do que o outro. Quase em todo fim de semana a gente bebia uma garrafa. No Natal de 1998, tomamos três litros de Cavalo Branco, e o cavalo deu coice em uns três, nocaute.

Ao começar, cada vendedor te dá uns três clientes. Os piores. Aqueles que só ligam para pedir preço, ou que só compram o mínino – R$ 150,00 –, ou os que são curvas de rio – explico, na curva do rio só pára lixo. E, a partir dessa sua primeira carteira, você batalha por novos clientes, através de ligações e fax de

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ofertas. Os telefones você encontra nas revistas dos jornais, no guia da folha etc.

Na seção de restaurantes tem um montão deles. Como vim do romaneio, sabia quais já possuíam vendedores e ligava para os outros. O Davi era o campeão de vendas lá, e é meu amigo até hoje, apesar de nos falarmos pouco ou quase nada ultima-mente. Eu falo e ele afirma que se tornou leitor, e lê sempre, mas que teve como o primeiro livro de sua vida o meu: O trem – base-ado em fatos reais.

Trampando ali, escrevi e lancei o meu primeiro livro. Estava, portanto, tudo caminhando para melhoras e progressos, mas eu ainda tinha que passar por muita coisa para chegar aonde estou hoje.

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Cap.05

Virando escritor es-cri-tor

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Cap.05

Virando escritores-cri-tor

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O grande marco da evolução aconteceu recentemente. Escrevo essas linhas em maio de 2008, quando, há menos de um mês, minha loja Suburbano Convicto, no Itaim Paulista, completou um ano. Acabo de contratar meu primeiro funcionário, pagarei a ele R$ 500,00 mais almoço – e pensar que há um tempo era eu quem estava atrás de um trampo para ganhar o que pago hoje para o Eduardo B.Boy.

Do Atacadista X pra frente, minha vida foi se transformando, e as coisas foram começando a mudar. Mas, pelo que você acompanhou nos quatro primeiros capítulos, ficou bem claro que eu poderia ser uma pessoa comum, seguindo da casa pro trabalho e do trabalho pra casa, ou ainda ter desandado nas drogas, ou pior, ter ido preso ou sido morto. Mas não. O destino – se é que ele existe – me reservava muitas surpresas.

Foi esse o ano divisor de águas da minha vida: 1998. Pelo bre-que definitivo na cocaína, pelo casamento com a Marilda, e por um texto que rabisquei, intitulado “Ferrovia nua e crua”. Tudo ia bem, trabalho, vida sentimental.

Um amigo, Jonilson Montalvão, largou o emprego – ou foi man-dado embora –, no sebo do Messias, no Centro de São Paulo, e ficou sócio do meu outro camarada Jorge Lins, conhecido como Dody, que já tinha há um tempo o sebo Mutante.

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Eu freqüentava o Mutante desde o primeiro endereço, no pequeno salãozinho na rua Monte Camberella. Agora era locali-zado num salão maior, na rua Barão de Alagoas, próximo à Casa de Cultura do Itaim Paulista. Com a vinda do Jonilson pro Sebo, ganhei um grande incentivo para ler, pois ele me vendia livros fiados. Às vezes me mostrava um título, empolgadão, e eu dizia:

—Tô duro.

—Lê aí, depois você me devolve – respondia ele.

Parecia uma biblioteca. E isso quando ele não falava:

—Pega pra você.

De fato, passei a ler cada vez mais. Nesse ano, estou lendo uma média de três livros por mês. Isso sem forçar a barra, não quero entrar em nenhum livro dos recordes.

Outra coisa importante na minha amizade com o Jonilson Montalvão é que o cara tem mania de editor, e lançou o Zine Mutante. Foi amor à primeira vista. Gostei do formato e do esquema de tirar xerox e distribuí-lo de graça nas ruas.

Voltemos ao texto, que mudou minha vida. Nem tudo no dia-a-dia de um periférico é só alegria. Para ir e voltar do trabalho, eu enfrentava a pior linha do sistema ferroviário paulistano: a antiga Linha Variant, que depois passou a se chamar Linha F – imagino que F de fudida. Naquele ano de 1998, os trens estavam péssimos, a gente pagava o maior veneno dentro deles. Aliás, paga até hoje. Mas, agora em 2008, estão prestes a terminar as obras de melhoria da Linha F – a Estação do Itaim Paulista vai se transformar num terminal, está ficando muito bonita. Este ano será um marco na melhoria do sistema e na vida de quem mora aqui no fundão da Leste e, direta ou indiretamente, utiliza o trem véio de guerra.

Bem, descontente com a situação dos trens em 1998, e moti-vado pelos livros que estava lendo, fiz o tal texto “Ferrovia nua e crua”. Naquele tempo – me sinto velho dizendo isso –, não

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existia computador em casa de classe média baixa, só nas empresas e nas casas de quem tinha dinheiro. Lan house nem pensar – hoje tem até na favela. Mas descolei um esquema com o Gercilio – apelidado de Bovespa no Atacadista X, onde ele trampava no faturamento. A história deste apelido é a seguinte: um dia, estava a maior galera comendo marmita e reclamando do salário, do trabalho, da vida – era tipo vés-pera de pagamento, e todo mundo estava duro, ferrado –, aí, o Gercilio virou e falou, bem sério, algo como:

—Gente, não dá para pensar só nas mesmas coisas, tem que se ligar no mundo, saber a quantas anda a cotação do dólar na Bovespa.

Caímos na risada, o zuamos muito, e o apelidamos de Bovespa.

Tinham uns caras zueiros1 e gente boa no trampo, o Davi, o Gilberto, o Magrão – com quem depois tive uma treta e perdi o contato, apesar de ele morar no Itaim. Era foda essa turma – um monte de ajudantes e vendedores. O Edvaldo, que me entre-vistou e contratou, era de confiança do patrão – com mais de dez anos de firma -, fazia, e faz, tudo certinho. Eu lhe dizia que ele era inteligente por ter me contratado e burro por ter trazido o Bovespa – que era chato pra caramba. Mas, apesar disso, o Bovespa integrou a turma, e, pra mim em particular, fez um grande favor e outro maior pra frente. Comigo, ele foi 10, e digi-tou e imprimiu o meu texto, minha primeira expressão de pro-testo através das palavras escritas. Tirei xerox do original e, no mesmo dia, o distribuí a todo mundo no trem.

Desde que me conheço por gente, andava com galeras do trem. Primeiro, a turma do Jardim Olga – onde cresci –, que pegava o de 7:00h da manhã – que saía do Itaim – e o de 6:23h – que partia à tarde do Brás. Depois, migrei pra uma turma predo-minantemente do Jardim Nélia, e, por fim, até um ano atrás, a turma do último vagão – o mais loko do sistema, conhecido por

1 Bagunceiros.

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anos como o vagão da maconha. Os caras e as minas fumavam mesmo de manhã e de tarde no último vagão. Eu, em algumas ocasiões, cheguei a dar uns dois no trem, mas não se fotogra-fou, não se filmou, não se prendeu, não virou manchete.

Muita gente fumava, não tinha nem como conhecer todo mundo. Nossa galera colava num canto do vagão e no meio do mesmo, na outra ponta eram outras galeras. Isso porque eu pegava um horário – tipo 18:30h -, mas já no horário seguinte – 18:40h – haveria outras turmas, e assim por diante. Milhares de maco-nheiros que só não fumam mais porque, depois que se iniciou a atual reforma, a polícia caiu em cima. Blitz todo santo dia, gente passando na TV, câmera escondida, mídia na plataforma. Esses enquadros eram feitos geralmente na Estação Engenheiro Goulart, no meio do nada – de um lado, o muro e, atrás, a av. Assis Ribeiro que não dá vista para a plataforma, do outro, ao longe, a rodovia Ayrton Senna. Hoje, praticamente acabou o consumo de droga no trem, ainda que por esses dias eu tenha visto uma turma da tarde acender um fininho. Bem, depois que a reforma acabar, aí estará acabado definitivamente.

Foda dos anos de maconha é que não era um fino,2 mas só bomba. Não era uma, eram várias. Sei que muita gente vai se ver nessas linhas sobre o “ultimo vagão”, mas vale esclarecer que apenas uns 30% fumavam, o restante era amigo e não via problema no ato ou no fato de estar junto. Ali era mais animado, rolava mais respeito, como em qualquer favela. Uma mulher de idade não andava em pé e, por causa disso, várias senhoras o escolhiam porque conseguiam lugar para sentar. Além do mais, ali não aproveitavam do trem cheio para encoxar mulheres, o que é muito comum em outros vagões.

O nome sempre foi “último vagão”, mas não era bem assim. Pela manhã – quando saíamos da Zona Leste para o Centro –, era o último de fato, mas, à tarde, era o primeiro, o do maquinista.

2 Baseado fino.

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Todos falavam último porque a grande maioria entrava pelo Largo da Concórdia – milhares que trabalhavam ali nas con-fecções – e, para ir até a galera, passava por todo o trem, até chegar ao último – na verdade, ao primeiro. Mas, enfim, foi ali que distribuí o texto em xerox “Ferrovia nua e crua”. Uns pou-cos leram na hora e não comentaram nada, outros dobraram e o colocaram no bolso ou na bolsa.

Desci normalmente no Itaim Paulista. No trem, muito ambu-lante vendendo de tudo: salgadinho, cerveja, refrigerante, café, CD pirata, sorvete etc. Antigamente, década de 1980 – início da de 1990 –, era um pelotão de camelô. Hoje ainda tem, mas bem menos.

A galera jogava baralho – geralmente “sueca”, a mais tradicional ou “truco”, que parece briga de tanta gritaria, a descontração depois de um dia estressante, para muitos pesado, no trabalho. O trem era uma festa. Às vezes era tanta zueira de manhã, e você olhava pro relógio e não eram nem sete da matina.

No dia seguinte à distribuição do texto, peguei normalmente o trem de manhã, vendi minha cota de alimento na firma e, à tarde, qual não foi minha surpresa ao chegar à plataforma da Estação Brás. Havia um monte de gente querendo falar comigo e me elogiar pelo texto. Os camelôs diziam que, pela primeira vez, alguém falara em favor deles, muitos se sentiram represen-tados pelas palavras. Afinal, só alguém com quase 15 anos de trem – desde o meu primeiro emprego, em 1985, com 13 de idade – podia ter tanto conhecimento de causa. Virei celebridade no cara de lata e, no dia-a-dia, o pessoal passou a botar pilha:

—Por que não escreve o livro do trem?

Essas pessoas, sem saber, estavam mudando a minha vida.

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Cap.06

Encarando a vida e escrevendo a história.

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A vida continuava dura, só que agora eu estava escrevendo, narrando essa dureza. O tempo foi passando e o trem um lixo. Comecei a escrever o tal livro num caderno pequeno, à mão.

Em 1999 – ano que marca mais ou menos o meu fim de car-reira como torcedor fanático pelo Palmeiras –, estava com os livros, e desencanando de só falar de futebol, mas, nesse ano, o Palmeiras foi campeão da Libertadores.

Não consegui ingresso, então assisti à final bebendo todas no Conjunto Encosta Norte, no bar do Cabral. Assim que o Zapata perdeu o pênalti para o Desportivo Cali da Colômbia e o Verdão foi campeão, corri pra rua e acendi uns fogos de ponta cabeça, virados para baixo. Graças a Deus não estavam apontados direto pro meu rosto, pois, ao saírem, fizeram um risco nele, que seguiu pelo meu peito, e por barriga e perna. No meu ouvido, foi o maior zumbido. Mais uma vez graças a Deus, não pegou no meu rosto. A partir daí, fui deixando de lado tanto fanatismo.

Encerrando esse assunto, queria lembrar o que aconteceu meses depois. Por ter ganhado a Libertadores da América, fomos a Tóquio disputar o Mundial Interclubes contra o cam-peão europeu, no caso o Manchester United da Inglaterra. Nessas horas, é foda ser empregado: você é um escravo, não pode fazer o que bem entender. A final do Mundial era oito e pouco da manhã – horário de Brasília –, e no meio de semana.

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Minha maior vontade era assistir ao jogo na sede da Mancha Verde ou próximo à avenida Paulista, onde rolaria, sem dúvida, a comemoração de costume das torcidas. Hoje o local é proi-bido pela prefeitura e pela polícia, por ser uma área com mui-tos hospitais e porque, segundo eles, atrapalhava o fluxo de carros. Mas a ameaça da empresa era mandar embora quem faltasse ao trabalho para assistir futebol – a indireta era prin-cipalmente pra mim, que ia direto trabalhar uniformizado, apesar de o patrão não gostar disso. Enfim, acabei não indo pra Mancha, e assisti ao jogo da minha vida – depois dos 4x0 contra o Corinthians em 1993 –, no bar ao lado do Atacadista X, junto a uns chapa que trabalhavam por conta de descarregar caminhões ali na zona cerealista.

Não demorou muito pro Davi me descobrir e me zuar dizendo que o Palmeiras ia perder, ele é corinthiano. A firma toda, menos os patrões, sabiam que eu fora o único que tivera peito de não entrar e ficar ali assistindo ao jogo. Enquanto os vendedores iam “tomar café” e viam cinco, sete minutos, eu continuava lá. O Gilberto era palmeirense – e o segundo colocado em vendas, atrás somente do Davi, que vendia 200 mil reais por mês, campeão disparado –, mas não teve coragem. Eu, dos dez a 12 vendedores, ficava entre terceiro e quarto lugar. Bem, o cara do Manchester cru-zou, o grande goleiro Marcos falhou e perdemos de 1x0. Diante disso, eu não sabia se ia embora ou se entrava pra trampar. A rua toda aguardava minha decisão pessoal. Era certo que, se eu fosse embora, seria punido, então entrei, triste pra porra, bravo pra caralho e sentei. O patrão espanhol chamou:

— Filhoooooooooo !!!

Aí, até ele tirou barato da minha cara e deixou por menos.

Foda foi, à tarde, no trem. Como eu estava com três camisetas – e as 3 do Palmeiras –, não tive opção e, na estação Brás, eu era o único palmeirense uniformizado às 18:00h. Muitos corinthia-nos, são paulinos, santistas comemorando, uns inclusive com a camiseta do Manchester vendidas nos camelôs – feia pra porra.

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Então, juntou um pelotão de “amigos” atrás de mim. Eu entrava num trem, eles entravam atrás, e cantavam, gritavam, eu levan-tava e dizia:

—Vou no próximo. E descia.

Todo o vagão descia atrás de mim, iriam no trem em que eu fosse. Chegou a sair um ultimo vagão quase vazio por causa disso. Como diz o ditado: se não pode com eles, junte-se a eles. Embarquei eu e a torcida do Manchester. Agüentei a gozação até o Itaim, mas fui ali.

No lado pessoal, um outro fato de 1999 fora mais importante: o dia em que botaram fogo no trem, antes mesmo do título da Libertadores e do carnaval. Lembro-me como hoje daquele dia. Por causa dos incidentes ocorridos, ficamos seis meses sem trem na linha F – o que prejudicou milhares de pessoas. Desde que escrevera aquele texto no ano anterior, o trem só havia pio-rado, a superlotação era grande, e os problemas maiores ainda.

Numa tarde como outra qualquer, cheguei ao Brás para tentar chegar a minha casa, depois de um dia de trabalho. Mas não era uma tarde qualquer. Tudo começou na plataforma do Brás, que enchia, enchia, enchia, e nada de sair trem. Até que, quase 19:00h, saiu um e eu, na base da porrada, fui nele. Só que antes de che-gar ao Tatuapé, estação seguinte, o trem parou e voltou para trás, descarregando de volta a multidão que estava nele à plataforma superlotada do Brás. Quase deu merda, porque todos queriam descer e não cabia mais gente na plataforma. Enfim, um trem hiperlotado – desumano – partiu. Nesse, eu não cheguei nem perto, nem eu e nem ninguém que havia voltado comigo. Quando chegamos nele, já não cabia mais senhor ninguém. Embarquei no segundo ou no terceiro depois desse primeiro.

O trem ia em velocidade reduzida, marcha lenta, até que no meio do nada, entre Goulart e Ermelino Matarazzo, parou de vez e não foi mais pra nenhum lugar. Ficou parado durante 10, 20, 30, 40, 50, 60 minutos, e nada de ninguém, nem o maquinista,

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informar nada. Mulheres e crianças – poucas destas no horá-rio – passando mal, gente cansada e humilhada, e até os caras do ultimo vagão – que fumaram e cheiraram toda droga que tinham, além de beberem todo o estoque de cerveja, água e refrigerante dos camelôs –, não agüentavam mais o tempo passando e nada. Todos queriam ir embora.

Foi quando começaram a aparecer pessoas andando na linha. Uns iam pra um lado, outros no sentido contrário. Ninguém sabia pra onde ir. Diziam que os trens da frente e os de trás estavam incendiados. O povo, em fúria, queimou os trens. Todos pulavam na linha, no escuro. Começaram a colocar fogo no trem em que eu estava. O povo gritava, estilo torcida de futebol, pare-cia o Maracanã em dia de Botafogo:

—Fooogooo. Fogo!!! – ninguém sabe quem começou, mas nossa composição estava em chamas.

Eu e alguns amigos decidíamos se iríamos sentido Goulart ou Ermelino Matarazzo. Decidimos ir pra Ermelino, melhor andar pra frente que pra trás. Sirenes de polícia, bombeiros, tumulto, descaso. Ainda estávamos com receio de a polícia chegar e botar pra quebrar pra cima de todo mundo que andava na linha – achando que era tipo Carandiru, já que era rebelião – e nem era –, entrariam atirando, ali todos nós poderíamos facilmente ser taxados de vândalos que botaram fogo no trem. Andávamos nas pedras, cansaço, nossos pés doíam, a sandália de uma amiga ainda quebrou. Uma noite terrível. Somado ao medo da chegada da polícia, o que, graças a Deus, não aconteceu.

Uma meia hora depois, chegamos à Estação Ermelino Matarazo. Uma estação fantasma, no escuro, toda quebrada e saqueada. Subimos na plataforma, olhamos o estrago, pessoas muito irri-tadas estiveram ali antes de nós. Saímos, e tinham umas três barcas da PM. Os soldados olhavam feio para todos. Seguimos até a av. Paranaguá e nos informamos onde passava um ôni-bus para o Itaim. No caminho, fizemos um rateio – estava todo mundo duro, sem grana, com fome, sede –, e as moedas juntas

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deram uma Coca-cola de 2 litros. Que maravilha molhar as pala-vras depois da terrível caminhada nas pedras da linha do trem.

Ponto lotado e para o buzão – caralho, nove anos depois esse seria o nome do meu quadro no programa “Manos e Minas”, da TV Cultura.

O embarque é pela porta da frente, mas, ao descer um passa-geiro, entramos uns vinte pela porta de trás. O motorista ame-açou não partir se não saíssemos todos os que entraram por trás. Ele ouviu, então, todo tipo de palavrão – de filho da puta pra baixo – e ameaças à sua integridade física. Se ele não sabia que aquilo era um dia de fúria, descobriu nesse momento.

Finalmente, partiu. Eu tinha a certeza de que, a qualquer momento, ele pararia uma viatura ou numa delegacia. Mas não aconteceu de novo. Ele seguiu viagem e, meia hora, quarenta minutos depois, eu estava no Itaim Paulista. Particularmente, entrei por trás porque simplesmente não tinha um real furado no bolso. Ia muitos dias trampar assim, só com a passagem de ida e da volta, sem nenhum guardado para imprevistos. Já viu trabalhador ter grana fora de semana de pagamento? Ao saltar, andei ainda do centro do Itaim Paulista até em casa, uns vinte minutos. Cheguei quebrado, quase meia noite.

No dia seguinte, não teve trem. Até aí, normal.

A repercussão na mídia foi total e em todos os veículos de comu-nicação – rádio, TV, Jornais – o destaque, a frase principal era: “VÂNDALOS DESTROEM E QUEIMAM OS TRENS NA ZONA LESTE”.

Todos os milhares de passageiros que estavam nos diversos trens incendiados foram taxados de “vândalos”. Era como se todo mundo tivesse colocado fogo. Eu mesmo nem vi onde o fogo começou no trem em que estava. Com o trem já em chamas, vi um grupo atirar um sofá para aumentar o fogo. Pergunto:

—O que um sofá velho estava fazendo ali nos trilhos ? Por que nos trilhos do metrô não tem sofá jogado?

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Cheguei aos trancos e barrancos ao Atacadista X para trabalhar. Mais um dia de luta, e, sem trem, não foi fácil chegar. Peguei uma lotação do Itaim Paulista a Guaianazes e, lá, o trem que vai pela linha E, hoje Expresso Leste. Mais gasto, mais tempo, mal sabia que, por meses, essa seria minha rotina.

No trabalho, quase apanhei. Meus companheiros de profissão, principalmente o Gilberto e o Davi – que eram foda–, só falta-ram me bater, enquanto prosseguiam com o seguinte diálogo:

—Vocês tinham que ficar sem trem pro resto da vida.

—Aposto que você ajudou a queimar os trens.

—Ou aquele bando de maconheiro que anda com você no último vagão, fumando.

—Tudo sem vergonha, a polícia devia ter descido a porrada geral – estão vendo como o nosso medo se justificava, na caminhada pela linha, se eles, os PM, tivessem aparecido e descido a lenha, a sociedade iria dizer amém.

Assim foi por dias, eles me xingando e dando risada pelo fato de os trens não estarem circulando. Mas, no fim daquela semana, seria carnaval, e eu viajaria pra praia, precisava mesmo de um descanso. Fui, curti, bebi, zuei e voltei um dia antes de ter de ir ao trabalho.

Chegando à Estação do Itaim, naquela quarta-feira de cinzas – sempre lembro nessa data de um amigo chamado Ricardo que foi assassinado numa quarta de cinzas – descobri que os trens ainda não tinham voltado. Então colei na banca de jornal do Messias – até hoje com o nome dele, ainda que não pertença mais ao próprio –, e ele disse, diante da minha indignação:

— Estava onde, filho? Não vê TV? Vai demorar uns seis meses para voltarem a circular.

Calculei ali os prejuízos e os venenos a mais que pagaria. Sem opção, peguei meu jornal e fui de novo para Guaianazes,

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o que se tornou o meu roteiro mais freqüente. Ida e volta por Guaianazes.

Muita gente perdeu emprego porque não se adaptou aos novos horários. Se antes eu saía de casa quase às 7:00h para entrar às 8:00h, agora saía às 5:00h da manhã. Se antes pegava o 18:30h e chegava às 19:30h no Itaim, agora chegava em casa por volta das 21:00h, supercansativo. Isso foi fundamental para que nas-cesse um livro chamado O trem – baseado em fatos reais, e um escritor chamado Alessandro Buzo.

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O trem realmente ficou cerca de seis meses sem circular. Todo mundo reclamava, o comércio ao redor da estação, que sempre foi forte, estava com várias lojas falindo.

O boato que rolou é que essa linha nunca mais transportaria passageiros, e se limitaria ao transporte de cargas. Até hoje a CPTM divide os trilhos com os trens de carga da MRS, que causa perigo de descarrilamento, devido ao peso dessas cargas – de pedra, ferro, terra etc. Só víamos passar esses trens de carga, cada vez com maior freqüência. O boato de que nunca mais terí-amos trem aumentou, então foram feitas caminhadas e protes-tos, ora de passageiros, ora de comerciantes e camelôs contra aquela situação. Enfim, um dia os trens voltaram, e a vida, aos poucos, também retornou à sua normalidade.

Coloquei esses fatos no meu livro, mas, depois de quatro meses com o Bovespa digitando, e eu procurando editora ou patrocí-nio, o tempo passou e não o lancei em 1999.

Casei em setembro de 1998, eu e a Marilda passamos juntos quase um ano antes de ela engravidar do nosso único filho – Evandro Borges de Souza –, que nasceu em 22 de março de 2000. Este ano, com certeza, mudou de vez minha trajetória. Se o mundo não acabara, como havia previsto Nostradamus, então eu precisava mudar de vida definitivamente.

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As drogas poderiam ter me matado ou me conduzido ao crime e, conseqüentemente, à prisão. Numa época em que andei com problemas financeiros, cheguei a pensar na possibilidade de traficar, mas, graças a Deus, isso não se concretizou. Tirando os estelionatos que cometia no tempo da contabilidade, tam-bém nunca roubei. De toda forma, em 2000, já não era mais um drogado.

Lendo o livro Estou viva – não uso mais drogas, da Bell Mar-condes, vi que, apesar de eu ter feito menos merda do que ela, também magoei muito a minha mãe por causa da cocaína, pois o dinheiro que gastei usando drogas poderia ter lhe dado uma vida mais digna, o que ela merecia. Mas, assim como a Bell Marcondes em seu livro, não conseguia brecar a fissura de usar cocaína. Tinha uma biqueira próxima à estação de trem do Itaim Paulista – que hoje não existe mais –, e eu simples-mente não conseguia passar ali com dinheiro no bolso e não pegar um, dois, três papelotes de cocaína. Custava R$ 10,00 cada – a droga no Brasil é um dos poucos produtos tabelados, faz anos que o papelote custa dez e a paranga de maconha custa R$ 5,00.

Quando não tinha grana, pedia fiado, e isso era humilhante, por-que, antes de liberar, o traficante sempre falava um monte. Um dia fiquei devendo R$10,00 a um que vendia no trem, pagaria no dia seguinte. Então, no dia seguinte, colei pra pegar o trem, e ele me cobrou na frente de um monte de gente. Eu não tinha o dinheiro e disse:

—Mano,1 amanhã te pago.

A sua resposta me magoou muito, ele disse:

—Não sei o que fico fazendo aqui, correndo o risco de ser preso. Vocês não valem a pena.

Isso martelou minha mente durante dias, meses até:

1 A gíria pode ser usada tanto no lugar de amigo, colega, como no de você ou alguém.

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—Vocês não valem a pena – eu sabia que eu valia a pena, mas agora teria de provar, senão se tornaria uma verdade.

O tempo é rei. Esse mesmo cara foi preso, e, depois que saiu da cadeia, passou a vender produto no farol. Muitas vezes, me pediu um baseado pra fumar. Eu liberava um fino pra ele e pensava:

—Esse cara não vale a pena.

Outro caso foi na biqueira que tinha na Tibúrcio de Souza – ou melhor, numa travessa. Ali, peguei muita cocaína, e pedi muito fiado. O cara falava um monte, mas liberava, e eu sempre pagava meus fornecedores. Esse cara morreu de alguma doença, e sem-pre que passo por onde era seu bar, fico lembrando o quanto eu subia aquela rua e descia com três, quatro, cinco papelotes no bolso – cinco papelotes significa, por exemplo, ter gastado R$50,00, muitas vezes eu pegava essa quantidade e ficava sem um real no bolso. Havia vezes em que pegava dinheiro no trampo para, no dia seguinte, pagar alguma coisa ou ir executar algum serviço, só que, na fissura, eu gastava. Depois, ficava que nem um louco pedindo dinheiro pra amigo e parente, a fim de cobrir o que tinha desfalcado. Não foi uma nem duas vezes que gastei dinheiro que não podia.

Uma vez achei R$20,00 dentro da bíblia da minha mãe e peguei. Achei que ela tinha esquecido aquele dinheiro ali e que não sen-tiria falta, mas ela ficou muito decepcionada quando sentiu, e passou a esconder sua grana.

Um fato ficou marcado em minha mente como fim do meu uso. Eu parara de cheirar fazia uns dois anos e estava de boa, me sentindo ótimo, mas uma coisa me martelava a cabeça quando eu parava pra pensar: restara uma dívida de R$10,00 reais a um dos traficantes que tinha boca próximo à estação. De vez em quando, cruzava com ele, mas sempre que isso acontecia eu estava duro. A dívida tinha caducado, mas não esquecia dela. Na minha cabeça, eu pensava:

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—Não posso ter parado de usar e deixar uma insignificante dívida de R$10,00 para trás.

Até que um dia, saí da estação e bolei um baseado, vim fumando pelo Alabama e quando passei próximo à quadra do bloco car-navalesco Unidos de Santa Bárbara, o tal traficante estava no bar – nem tinha mais ponto de venda de drogas ali, mas era o cara. Chamei-o pra fora do bar, ele veio, eu disse:

—Mano, faz uma cara que parei de usar farinha, mas, se não me engano, fiquei te devendo R$10,00. É isso ?

—Pode crê, ficou sim.

—Queria te pagar, tem juros ?

—Que nada, é R$10,00 mesmo.

Então paguei e ele ainda me falou:

—Se todo mundo que ficou me devendo pagasse como você fez agora, eu ficaria rico.

Muitas vezes, é por causa de dívidas pequenas assim que pes-soas morrem. Imagina esse cara passando alguma necessidade e lembrando que fulano deve pra ele e não pagou. É o fim. Então, assim que paguei o cara, zerei minha vida. Usara muita coca-ína e mesclado, mas não devia para ninguém, não havia ficado nenhum pé pra trás, podia seguir minha vida de boa, sem ama-nhã encontrar alguém querendo me matar por dez conto.

Atualmente nem sei onde se vende cocaína no Itaim Paulista. Depois de mais de dez anos sem usar, esse circuito da farinha sai do seu caminho e, graças a Deus, saiu do meu. Quando vejo pessoas cheirarem, tenho muita pena, porque quem usa acha o máximo, mas quem está de fora, acha ridículo. Sem falar que hoje é muita mistura, as pessoas cheiram de tudo – além da cocaína pura, tem fermento Royal e outras coisas bem piores. Vi na TV um delegado do DENARC afirmar que em nenhum lugar de São Paulo a pessoa encontra cocaína pura, e que as vendidas

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hoje têm no máximo 30% de cocaína, o resto é mistura. Imagina o mal que isso faz pra saúde. Mas um viciado – ou dependente químico, que é o nome correto – não liga pra nada, muito menos pra sua própria saúde. Dependência química é uma doença reco-nhecida pela Organização Mundial de Saúde, mas na sociedade e na polícia, se chama vício, e um viciado é tratado como lixo.

Mas voltemos à literatura e ao meu primeiro livro. Eu não tra-balhava mais no Atacadista X, saí de lá indignado. Quando meu filho nasceu, em março de 2000, minha esposa teve depres-são pós-parto, o que descobri ser um perigo para a mulher e até para a criança, que muitas vezes, nesse caso, é desprezada pela mãe. Graças a Deus, enquanto teve depressão pós-parto, a Marilda nunca fez nada que pudesse prejudicar o nosso filho, mas se virou contra mim, que tive de ter, seguindo orientação médica, muita paciência.

Os gastos com o tratamento eram pesados, por isso, precisava de dinheiro. Por várias vezes o pedi ao espanhol, que era meu patrão. Vendia de R$ 70.000 a R$ 80.000 por mês em troca de um piso salarial e uma comissão de 0,05%. Mas o cara não entendia que depressão pós-parto era doença, e meus constantes pedi-dos de dinheiro fora do dia certo passaram a chateá-lo.

Estávamos em junho de 2000, e tive a idéia de pedir que ele adiantasse minha férias, que venceriam em primeiro de setem-bro, depois de três meses. Aí ele me disse:

—Buzo, vou te ajudar: te mando embora, você pega o seu dinheiro e resolve os seus problemas.

Assim ele agiu, me mandou embora por causa dos meus pro-blemas particulares. Isso me deixou puto da vida. Ele não podia fazer isso, eu era um bom vendedor, bastava ver a minha colo-cação – 3º ou 4º lugar em vendas entre 12 vendedores. Ficou claro pra mim que nenhuma empresa valia a pena, porque você não tem direito a ter problema e, se tiver, não pode pedir ajuda no trabalho – vai pedir onde então? O sentimento de que um

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dia não trabalharia mais pra ninguém nasceu ali, mas demorou anos para eu conseguir concretizá-lo. Hoje, é assim que eu vivo: sem patrão, gerente ou chefe.

Saí do Atacadista X em 19 de junho de 2000. Fiquei três meses desempregado, e paguei algumas dívidas com a indenização. Meu medo era não voltar a arrumar trampo no ramo, assim como havia ocorrido na contabilidade. Mas eu tinha uma coisa que interessava às empresas: uma boa carteira de clientes. Procurei emprego, mandei currículo e nada. Então, inventei uma nova forma de arrumar emprego. Eu sabia da existência de alguns atacadistas – concorrentes daquele de onde eu tinha saído –, porque os próprios clientes comentavam direto:

—Tenho preço melhor na firma tal.

Pensei em algumas, e descolei seus telefones. Liguei, então, para a Super do Brasil, que nasceu no Brás. Na época, inclusive, cha-mava Super do Brás. Apenas depois de mudar para um enorme espaço em Guarulhos, próximo ao Shopping Internacional, virou Super do Brasil.

O Atacadista X foi a única empresa que coloquei na justiça. Eles não pagavam a comissão em folha de pagamento, e isso é ilegal. Mas o motivo de ter posto no pau – como se diz na gíria – é que não perdoava o fato de o espanhol ter me dispensado por-que eu precisava de ajuda com a minha esposa em depressão pós- parto. Nunca ouvira falar que mandar alguém embora era forma de ajudar a pessoa. Acabei ganhando a causa e recebi, fora a parte do advogado, quatro parcelas de R$ 500,00. Além disso, como na empresa seguinte em que entrei pagavam 1% de comissão além do piso – isto é, o dobro do que pagava o Atacadista X, com seu 0,5% –, chamei os dois melhores ven-dedores deles, o Davi e o Giba para trabalhar lá. O espanhol não os perdeu, mas teve que aumentar a porcentagem de seus vendedores. Não sei o que ele pensa de mim, mas depois de eu receber uma grana na justiça e ter tumultuado sua vida ofe-

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recendo emprego para seus melhores vendedores, acabei por perdoá-lo.

Bem, voltemos à minha fórmula mágica de procurar trampo. Liguei para a Super do Brás e disse:

—Por gentileza, quero falar com o gerente de vendas.

—Um minuto, por favor.

Assim, cortava caminho. O currículo muitas vezes ia pro lixo, placa não existia mais, e anúncio nesse ramo nos jornais eu não encontrava – mas sabia que todo atacadista precisa de bons vendedores. Atendeu o gerente, Hélio Adilson Simões – que virou meu amigo, apesar de fazer tempo que não o vejo nem falo com ele. O Hélio também foi importante no processo do meu primeiro livro.

—Alô ?

—É o gerente de vendas ? – perguntei.

—Sim, é o Hélio falando.

—Então, sr. Hélio, meu nome é Alessandro e sou vendedor. Tenho uma ótima carteira de clientes, e faz apenas três meses que saí do Atacadista X, conhece ?

—Claro que sim – disse ele.

Continuei meu xaveco:

—Eu queria saber se o sr. não me receberia para ver minha carteira.

Ele pensou um pouco e disse:

—Vem aí, quarta-feira, às 8:00h – e me passou o endereço.

Minha carteira era basicamente formada por restaurantes, hotéis, hospitais e clubes. Mas a Super do Brás tinha outro perfil, eles vendiam quantidades maiores para revendedores – mercados, mercearias –, e não para o consumidor final – como

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chamamos, no caso, o restaurante, o hotel etc. Por sorte, eles tinham acabado de montar uma equipe de fast food, minha área. O Hélio me atendeu e chamou o Miguel – gerente do fast food. Conversamos, dei a maior orelhada2 neles, e entrei, estava admitido.

Trabalhei ali por 11 meses e saí porque não deslanchava. Como o forte deles era atender supermercado, nossa equipe era meio que segundo escalão, mas foi muito bom enquanto durou. Numa época que tivemos um superpreço de maionese Hellmann’s, vendi muito – o pote era de 3 kg. Surgiu uma promoção: um real por caixa vendida – cada caixa tem seis potes de 3 kg. Vendi quase quinhentas caixas no mês e peguei uma grana boa: salá-rio, comissão e mais prêmio.

Gostava de trabalhar ali, só tinha dois problemas. O primeiro, o menor, era o fato de lá ser fora de mão, mas isso eu tirava de letra. O maior era que a firma estava passando por problemas e veio à falência. Saí antes, porque não dava para trabalhar se faltavam mercadorias de primeira necessidade. Mas sou eter-namente grato a eles por terem apoiado o lançamento do meu primeiro livro.

Houve uma Bienal do livro em que a Rede Globo queria fazer uma matéria para o SPTV sobre pessoas que queriam lançar seu pri-meiro livro. Uma editora – não sei qual foi, mas através da qual eu tentara publicação – indicou o meu. A Globo me procurou e marcamos de fazer a entrevista na plataforma da Estação Brás, dos trens da CPTM. Afinal, meu livro falava desse cotidiano, dos trens da linha F, que acaba de mudar de nome de novo – já foi Variant, F, e agora é Linha 12. O repórter que foi fazer a entre-vista comigo era bem conhecido – o Brito Jr. que hoje apresenta o Programa “Hoje em Dia” na TV Record. Formou-se uma multi-

2 Conversar, ser convincente.

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dão, já que, além da câmera da Globo, tinha o Brito Jr. ali.Fingi não ver ninguém e falei bem – para uma primeira vez.

A matéria foi pro ar e virei celebridade na quebrada,3 mas achei engraçado o fato de algumas pessoas dizerem ter me visto e nem comentarem sobre o assunto abordado, só interessava:

—Te vi na TV.

Mas outros – a minoria – comentaram sobre o livro:

—E o livro, onde compro um?

A galera não entendeu que o livro ainda não existia de fato, que estava escrito mas não publicado. Fiquei pensando:

—Como pode o livro já ter tido mídia, ter gente querendo com-prar, e ele não existir?

Odiei as editoras por serem tão burras. Sinceramente, achava que o tema “Trem”, somado ao “baseado em fatos reais”, chama-ria a atenção de todos, e seria um sucesso de vendas. Aliás, um comentário sobre o título. Eu pegava o trem todo dia e, depois do boom de ter passado na Globo, inventei que o livro estava pres-tes a sair, então teria que definir o seu título. Aí, um dia, fiz um papel de votação, com três opções para a galera escolher uma:

O trem – nos trilhos da vida, O trem – versão do passageiro, O trem – baseado em fatos reais. Como só ia no último vagão – o famoso da maconha –, a que ganhou a votação disparado foi: O TREM – baseado em fatos reais. E assim ficou.

Nesse tempo, recebi cartas de algumas empresas, respondendo a meu pedido de patrocínio – sou grato à contabilidade por hoje saber pensar um pedido desses, aprendi muito lá –, mas todas responderam estar encerrada a verba anual para apoios cultu-rais, e me desejavam boa sorte. Quem também o desejava eram as editoras, ao explicarem que o livro estava fora do padrão

3 Geralmente, a gíria é usada para falar de um lugar ou bairro na periferia.

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editorial deles. Tinha certeza de que, a qualquer momento, uma dessas cartas seria de um patrocinador ou de uma editora dizendo sim. Mas isso nunca aconteceu.

Até que surgiram cartas de editoras independentes e procu-rei algumas delas, por telefone ou pessoalmente. Foi quando descobri que poderia bancar a publicação de meu livro e sair vendendo. O livro seria normalmente registrado na Biblioteca Nacional, “só” não teria distribuição e divulgação por parte deles, mas esta parte era o de menos. Acreditei que não ter dis-tribuição e divulgação não era um problema. Eu já tinha passado na Globo, lia bastante jornal e revista – até nas piores fases do vício em drogas-, e sabia que eu mesmo podia mandar material de divulgação via carta – dez anos de contabilidade me davam essa familiaridade com orgãos públicos: correio, banco, cartório etc. -, o importante era ter o livro. Afinal, na rua e no trem, vários perguntavam:

—E o livro?

—Quando sai o livro?

Fiz algumas coisas para enrolar a rapaziada e, ao mesmo tempo, dizer que o processo estava em andamento. A primeira foi a votação pelo título, outra foi fotos para o livro – que seria ilustrado com imagens. Por um lado, divulgava o livro – mesmo sem ele existir de fato –, por outro, me comprometia com mais gente. E se nunca saísse? Mas não pensava nessa segunda opção. Assim como pra usar droga eu era determinado, pra cul-tura, desde esse processo, mostrei ser também. O que, na reali-dade, não se mostrou ilusão, afinal, o livro saiu, com ilustrações – não fotos –, e o título foi o escolhido na votação.

Um jovem, todos o chamavam de Paraguai, que havia sido por anos surfista de trem – isto é, ele andava em cima, não era pin-gente, que é quem fica na porta –, me entregou um desenho dele – um trem com as portas abertas, cheio de pingentes e surfistas surfando em cima –, e me disse:

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—Põe esse desenho em seu livro.

—Mas ainda não tem data pra sair.

—Guarda com você – guardei, e depois saiu no livro.

Foram, ao todo, três sessões de fotos, porque, nas primeiras, vários comentavam que não tinham saído, e eu dizia:

—Calma, faço outra sessão e você sai também.

Eu era o cara. Ainda bem que a casa não caiu – isto é, que o livro saiu de fato –, pois dei minha cara pra bater e, como prefiro dizer, coloquei o meu na reta.

Continuava nesses agitos. As sessões de fotos tiveram como fotógrafos o Eduardo Portella, o Jonilson Montalvão e até eu mesmo. Cada sessão, um acontecimento, uma festa, vários dias de comentários, antes e depois delas. Ao mesmo tempo, per-manecia procurando editora – aquelas em que fui queriam o dinheiro à vista de quinhentos ou mil exemplares. Com o meu salário, para ter essa grana só roubando um banco ou seqües-trando alguém. Até que um dia, meu gerente, o Hélio da Super do Brasil, que havia me visto no SPTV, perguntou:

—E o livro, o que falta pra sair? Tenho visto alguns comentários e a sua angústia.

—Pô, Hélio, não tenho editora, e uma independente custa caro.

—Quanto? – perguntou ele.

—Uns R$ 4.000,00 reais por 500 livros – era mais ou menos isso.

—Vou falar com os donos da empresa e ver se eles podem ajudar.

Rezei muito para dar certo, senão já estava vendo que o livro não sairia nunca e teria que dar muita explicação pros amigos, principalmente no trem. Uns dias depois, ele me chamou, e disse que o dono, o “todo poderoso”, Sérgio, me receberia. Ele

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95Primeiro Livro

era meio intocável ali dentro, só passava e dizia “Bom dia” ou “Boa tarde”, nada mais. O Hélio me adiantou:

—Parece que ele ajuda com R$ 1.000 – e acrescentou –, tenho certeza de que você arruma o restante – o Hélio tinha essa mania de incentivar as idéias.

O homem me recebeu, disse coisas que gostei de ouvir, de ver-dade. Disse que por anos trabalhou na ferrovia – linha Santos-Jundiaí. Que não apoiaria meu livro porque queria me ajudar, nem porque eu era funcionário dele, e sim porque era bom, ele o tinha lido e se vira em várias situações, sabia que eram real-mente coisas que aconteciam. Reforçou, então, que me daria R$1.000,00. E que, assim que eu arrumasse o restante e preci-sasse da parte dele, era só solicitar à sua secretária, Isabel – e a chamou, uma pessoa muito bacana e boa, para falar na minha frente. Agradeci, feliz, mas era pouco perto do que eu precisava. Ao contrário da previsão otimista do Hélio, eu não estava tão confiante que arrumaria logo o que faltava.

Então, tive uma idéia. Era melhor, agora com R$ 1.000,00, ir dire-tamente às editoras negociar, em vez de ligar. O Hélio ajudou de novo, descolando algumas saídas para eu ir às reuniões das editoras independentes. Acabei fechando com uma que aceitou os R$1.000,00 de entrada e o restante parcelado. Assim, saiu o meu primeiro livro.

Marquei seu lançamento para a véspera de Natal, o que foi uma grande burrice, pois, nessa data, todos estão fazendo compras ou estão atrás de outras coisas. Mas era praticamente o pri-meiro evento que eu organizava na minha vida, até então nunca tinha organizado nada do tipo. Depois vieram “Favela toma conta”, “Conduta na rua”, “Encontro com o autor”, “Suburbano no centro”, etc. Enfim, para o lançamento chamei algumas atra-ções musicais do bairro, lembro até hoje: grupo Autênticos MCs de Rap, The Concept de Rock e uma banda punk do Dody, do Sebo Mutante. O local – não me pergunte como cheguei a ele –, foi a Associação de moradores do Jardim das Oliveiras. Outro

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erro, porque, se fosse no centro do Itaim – Casa de Cultura, Sebo Mutante etc. – teria mais público. De toda forma, foi uma galera.

Coloquei no livro também, a letra do rap O trem, do conceituado grupo RZO – Rapaziada da Zona Oeste –, mas isso sem pedir autorização.

Outro B.O. – e esse mais grave ainda – é que não teria como saírem as fotos, encareceria o custo. Dava para serem ilustra-ções em desenho. Então, peguei aquele do Paraguai – que guar-dei por mais de seis meses – e acrescentei outros que fiz sob encomenda com o Magu – meu primo – e um amigo do Jonilson Montalvão, o Alex. Peguei as fotos que sairiam no livro e pedi para que eles as desenhassem. O Magu seguiu mais fielmente o meu pedido, fez alguns desenhos que eram muito parecidos com as fotos, possibilitando até reconhecer as pessoas. Já o Alex fez outro estilo, só as usou como base, mas seus desenhos não eram cópias das fotos. Juntei uns do Magu, outros do Alex, mais o do Paraguai, e lancei o livro com eles. Para o povo que esperava as fotos, foi fácil justificar: com elas, o livro ficaria bem mais caro do que os R$ 15,00 que estava custando. Muita gente se viu nos desenhos e ficou feliz.

Quando lancei o livro, O trem – contestando a versão oficial, enfim, fiz com fotos, mas não as mesmas, era outra galera. Aquelas que sairiam ficaram um dia na laje do Helião, do RZO, e nunca mais as vi. O Helião – grande amigo até hoje – disse que não achou, e depois descobri o que aconteceu. O DJ Cia achou as fotos legais e as levou, e depois foram utilizadas no encarte do CD “Evolução é uma coisa”, último lançado antes de o grupo dar um tempo e seus integrantes montarem novas ban-das ou irem para carreira solo – o Helião veio pela mutinacional Universal, em parceria com a Negra Li.

Eu estava numa fase difícil quando o Helião me ligou convi-dando para uma sessão de fotos que sairiam no encarte do CD, mas fui. Seriam feitas pela galera da Rap Brasil, que conheci

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97Primeiro Livro

nesse dia – hoje faço matérias para esta revista. Na foto cen-tral do encarte, tem uma banca nervosa onde eu estou com uma camiseta do meu livro: O trem. Qual não foi a minha surpresa quando o CD saiu e, no restante do encarte, um monte das fotos que esqueci na laje do Helião – o Cia tinha pego. Fiquei dupla-mente feliz, apesar de não ter nenhuma referência das imagens serem Itaim paulista muitos pensam que é Pirituba, quebrada do RZO –, afinal, periferia é periferia em qualquer lugar.

Mas voltemos ao meu livro. Ficou pronto em Pinheiros, então, além de mim, o Hélio liberou o Oliveira, que tinha carro, para ir comigo buscar:

—Pô, meu, liberar dois é foda, vão e voltem logo.

Na av. 9 de Julho, começou a chover na volta. De repente, água por toda parte, cheguei a temer que os livros molhassem – o que seria o fim –, mas o Oliveira subiu na calçadinha cen-tral e voltou pra trás, fomos por outro caminho. Imagina se o Anhangabaú inunda e leva, além do carro, meus livros? Quase acabou ali minha carreira. Mas segui em frente.

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Tudo novo na minha vida.

tudo

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Chamei o lançamento do meu livro de “Mega evento da peri-feria”, e comecei a divulgá-lo, sua data e seu local. Este, como disse, afastado do centro do Itaim Paulista, que já é, pra alguém que vem de fora, bastante longe.

Peguei uma folha impressa com os dados do lançamento, e come-cei a passar via fax para a mídia. O número consegui nas páginas dos jornais e das revistas. Quando não tinha, eu ligava:

—Por favor, qual o número de fax aí da redação?

O mesmo fiz com os canais de TV. Disquei o 102 – informações–, peguei os telefones e liguei pedindo os números do fax.

No ramo de alimentos, a gente passava muito fax de lista de promoções para os clientes, e eu era de fato um dos que mais usava esse meio, então passei a ficar horas no fax “trabalhando”, era assim. Quando o Hélio e o Miguel – os gerentes de vendas – estavam olhando, eu passava os fax das promoções para a pilha de ficha de clientes na minha frente, quando eles viravam as costas eu pegava a lista de números de fax da imprensa e man-dava uma folha do lançamento do livro, o “Mega” evento.

E não é que deu certo? Por incrível que pareça. Não sei se naquele tempo era mais difícil alguém da periferia lançar um livro e isso chamou a atenção, mas descolei duas revistas e um jornal – fora os de bairro e as rádios comunitárias.

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Só saiu matéria de responsa.1 A mais incrível delas tinha duas páginas na Revista Caros amigos – que me foi apresentada pelo Jonilson Montalvão – de dezembro de 2000, mês do lan-çamento. O Magu, no trampo dele, abrira um e-mail pra mim, que ele checava de lá. Havendo alguma coisa, ele imprimia, para que eu respondesse à mão, e depois, de seu trabalho, enviava a resposta. Na matéria, então, saiu meu e-mail – diretamente, eu nunca tinha estado na internet – e meu telefone –, o da firma, mas não pegou nada. E, assim, vendi livro para algumas pessoas da Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e outras localidades.

Outra matéria foi meia página, bem no dia do lançamento, no Jornal da Tarde do grupo Estado. Nela, saiu o desenho do Paraguai.

No mês seguinte, duas páginas na revista Rap Brasil – número 7 –, e, enviada por mim, uma foto minha com o Sandrão do RZO, no lançamento. Depois, fiquei sabendo que a Juliana Penha, quem fez a matéria, tinha escolhido meu fax, entre outras car-tas enviadas para redação, como sua primeira pauta, pois era a sua estréia na revista.

Quando comecei a fazer matérias para a Rap Brasil, fiquei muito amigo dela – que está morando em Portugal, mas nossa ami-zade é grande até hoje –, e também do Alexandre de Maio, do Marques Rebelo e do Fábio Rogério.

Uma vez viajamos para cobrir o lançamento do primeiro DVD de rap de Goiás, organizado pelo DJ Fox. Fomos eu, a Marilda – que é fotó-grafa – e a Juliana Penha. Nós três dormimos no mesmo quarto, na casa do mano Monza. Nunca esqueci, a Juliana me disse:

—Ô nego, somos família, já dormimos até no mesmo quarto.

Às vezes a Ju fazia umas tranças no cabelo da Marilda, de quem também era muito amiga. Grande figura, essa Juliana.

1 Muito boa.

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Mas, voltando. O resultado dos fax não poderiam ter sido melho-res: duas matérias de duas páginas em revistas, e mais meia página no jornal.

O Guilherme Azevedo, da Caros amigos na época – hoje ele toca o site Jornalirismo –, foi quem fez a matéria. Duas páginas, uma foto grande – eu nos trilhos – e o título “O poeta pega o trem”. Pela primeira vez na vida, alguém me chamava de poeta.

O Guilherme virou meu amigo pessoal. Numa época de vacas magras, por dois meses seguidos, ele me emprestou uma grana – acho que R$200,00 cada vez –, e esse dinheiro foi o único que entrou naqueles meses de desemprego e desilusão. Afinal, depois do boom do livro, continuei fudido, vendendo alimento, e depois desempregado, sem ter como lançar o segundo livro, pronto desde 2002. Eu e Marilda seremos eternamente gratos ao Guilherme por essa ajuda no momento em que mais precisei, por não ter crédito na época – nome sujo – para pedir ajuda a ninguém, nem – aliás, principalmente – para parente.

Há coisas que não dá para esquecer. Recentemente, fui na redação da Rap Brasil, levar o Evandro para a sessão de fotos que saiu em anúncio da marca de roupas Conduta na revista. A marca já me patrocinava. No dia marcado, teve greve de ônibus e foi difícil chegar. No caminho e até durante as fotos, o Evandro pelou em febre. Não sabia como ir embora com ele doente, ainda mais com o ônibus em greve. Aí, o Locutor Fábio Rogério – da 105 FM –, que também trabalhava na revista, pegou o carro e me trouxe em casa no Itaim Paulista. Nunca vou esquecer.

O livro foi vendendo, outras matérias surgiram, algumas pales-tras em escolas e associações, mas nada de muito especial, continuava sendo apenas mais um rapaz comum, trabalhando e pegando o trem lotado.

Deixa eu explicar como o Sandrão do RZO chegou até o lança-mento do meu livro. Eu tinha falado com a Juliana Penha da Rap

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Brasil, que me entrevistou, aí pedi o contato deles. Ela passou, eu liguei.

—Alô, é do RZO?

—É sim, tio. Quem fala ?

—Meu nome é Alessandro Buzo, sou escritor da periferia.

—De onde, tio? – perguntou a voz do outro lado.

—Do Itaim Paulista, Zona Leste. Lancei um livro chamado O trem – baseado em fatos reais, e coloquei nas páginas dele a letra da música O Trem, do RZO.

Quem falava do outro lado era o Davi do Gueto, que na época empresariava eles.

—Como assim “colocou a letra” ?

Pensei “ih, fudeu”, mas respondi:

—Tipo uma homenagem, afinal a letra inspirou meu livro também.

—E o que você quer? – ele respondeu.

—Primeiro comunicar o fato a vocês. Quem me passou o con-tato foi a Rap Brasil, vai sair uma matéria do livro nela. Depois, saber se não dava para vocês colarem no lançamento.

Quanta pretensão, usar a música sem autorização, e ainda querer que um dos três maiores grupo da época fosse ao lançamento.

—Vou ver com os caras, me liga amanhã.

Liguei, no dia seguinte, e ele disse:

—Descola um transporte aí pra buscar nóis,2 que cola alguém.

Eu sabia que o Zumba, que era DJ e fazia umas tretinhas de maconha nas horas vagas – hoje não mais –, curtia os caras,

2 O mesmo que nós.

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e joguei ele na fita de ir buscar o RZO. Não precisei nem arru-mar o carro, ele chamou um amigo. No dia – véspera de natal de 2000 – vieram até o Itaim o Davi do Gueto, o Sandrão, e mais dois manos de moto, da produção do grupo. O Hélio queria vir, mas não deu.

O Davi, mais pra frente, tomou uns tiros, quase morreu, e sumiu. Mas depois apareceu de novo na cena, o revi no 2º “Conduta na rua”, que apresentei no Largo do Paissandu. Grande figura. Do Sandrão virei amigão no lançamento. Depois do Helião, colei várias vezes na famosa laje de sua casa, onde o RZO ensaiava. Ali, conheci Negra Li, DBS, Tom – hoje, Função RHK –, Wando – hoje, U TIME – e toda a rapa da familia RZO, que curto demais. Torço pela volta plena do grupo, coisa que ainda não rolou, mas deve acontecer.

Assim foi os bang loko3 para lançar, divulgar e virar um escritor da periferia no ano de 2000. Hoje talvez seja mais fácil – ou não –, mas passei tudo isso, e era só o começo.

3 As correrias.

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Cap.09 Altos e Baixos

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Saí da Super do Brasil em 23 de agosto de 2001. Forcei um pouco a barra para ser mandado embora, porque a firma ia muito mal das pernas. Faltava muita mercadoria, por isso, estava per-dendo meus clientes. Em outra firma, poderia batalhar para ganhá-los de volta, mas antes queria evitar bater de frente com todos eles. A vantagem desse ramo é justamente a carteira de clientes, você muda de empresa e ela vai junto. A única coisa que lhes interessa é o prazo de pagamento – geralmente, 28 dias – e o preço, claro.

Fiquei pouco tempo desempregado. De novo, usei a artimanha de ligar para a firma e oferecer meus serviços. Assim, entrei no Laticínios Araxá. O nome já dizia. Só trabalhava agora com lati-cínios e, apesar de ser menor a lista de produtos, adaptei minha clientela. Vendia um pouco. Nada grande coisa, mas dava para manter o emprego. Isso em 10 de setembro de 2001, a 15 dias de completar 29 anos e a 16 de aniversariar três de casado. O Evandro, meu filho, com menos de dois de idade.

A firma, que existe até hoje, era pequena, e se localizava numa travessa da rua Cantareira, próximo à linha do trem, entre as estações Brás e Luz. Nela, havia alguns problemas considerá-veis. Em primeiro lugar, o fato de o leque de produtos ser bem menor do que aquele com o qual eu estava acostumado. Em segundo, e principalmente, o fato de só possuírem uma kombi velha – que vivia quebrando – para fazer as entregas, que

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sempre atrasavam. Então, eu perdia os poucos clientes que tinha conseguido levar pra lá, muitos diziam:

—Você não tem as coisas de que preciso. Se você for pra um atacadista, me liga de novo.

Não estava bem ali. Ganhava pouco, e, conseqüentemente, pas-sava vários perreios financeiros em casa. Contas atrasadas, cheques devolvidos, nome sujo, o maior veneno. Via o Natal e o fim de ano de 2001 com medo. Mas, antes do primeiro, arru-mei emprego numa grande importadora de alimentos, La Rioja. Ali era pauleira o movimento. No telefone e na porta, entrava e ligava gente, e tínhamos que atender.

O tipo de produto era diferente de um atacadista – que vende arroz, feijão, óleo, azeite, massas, farináceos, enlatados etc. –, mas maior e melhor do que no laticínio. As vendas eram altas: uma caixa de bacalhau – 25 kg – já dava faturamento, uma caixa de vinho idem.

Recuperei alguns clientes e, nesse primeiro mês de trabalho, vendi 30 mil reais. Fui para as festas feliz, com dinheiro no bolso – coisa rara ultimamente –, cesta de Natal da firma, tudo voltando ao normal. Mas, para a minha surpresa, mesmo tendo vendido bem, fui dispensado em 2 de janeiro de 2002. Só tinham me admitido para cobrir o aumento de trabalho em dezembro, depois fui pro olho da rua. Fiquei muito mal com essa demissão, com ódio do mundo, de tudo e de todos.

Na La Rioja, circulava muito representante comercial, caras que vendem a vários fornecedores e conhecem muita gente. Um deles, o China, indignado de eu ter sido mandado embora, me levou no dia seguinte a outra importadora – um pouco menor e com alguns problemas financeiros, mas enfim –, e no dia 3 de janeiro de 2002, entrei na Realli Importadora. O maior pro-blema era com os meus clientes eu estar ficando com fama de pulador de galho, que não pára em lugar nenhum. Justificava dizendo não ter culpa, pois depois do Atacadista X e da Super

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do Brasil, não tinha arrumado empresa que valesse a pena, e seguia nessa busca.

Apesar de ter menos produtos e o preço ser pior que na La Rioja, levei vários bons clientes para a Realli – a inadimplência da minha clientela era quase zero, nenhum cliente meu devia para a empresa.

Passei ali quase oito meses, e saí porque não dava mais: cada vez menos produtos e preços mais caros, cada vez menos dinheiro no bolso e mais dívidas se acumulando. Tinha ódio disso, trabalhar tanto e nunca ter grana.

Quanto ao livro O trem, ele foi indo, indo, indo, vendendo de mão em mão, de mano em mano, até que acabou. Para meus clientes, e em todas essas firmas pelas quais passei, pouco falava desse meu lado cultural. Não queria misturar as estações. Sabia que para os patrões e gerentes de vendas eu era o vendedor, não o escritor.

Meu segundo livro, Suburbano convicto – o cotidiano do Itaim Paulista – que era baseado na minha infância no Jardim Olga/Itaim Paulista, com histórias reais em personagens fictícios – ficou pronto em 2002. Assim como da primeira vez, não tinha idéia de como lançá-lo. Financeiramente, eu estava mais fudido que em 2000.

Fazia tempo que esse entra e sai das empresas me desgastava. Pensava em mudar de ramo, mas fazer o que da vida? Minha base para não fraquejar, e para não ter recaída na cocaína, era a minha família, me privei de várias coisas para não deixar faltar nada em casa. Quantas vezes eu não tinha uma única calça e, de tanto usá-la todo dia – e também por eu ser meio gordinho–, ela não rasgava embaixo? Daí, a Marilda remendava e lá ia eu trabalhar com roupa remendada, até chegar o pagamento, e eu apertar o orçamento para comprar uma calça nova. Hoje, há quase três anos sendo patrocinado pela marca de roupa Conduta, tenho várias calças, bermudas, camisetas, moletons etc. Eu, minha mulher e meu filho temos muita roupa, mas

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não esqueço as calças remendadas que tanto me causavam vergonha.

Na Realli era foda. Um clima pesado de firma rumo à falência, a dona meio fora da realidade, às vezes inventando umas loucuras nada a ver, a gente – vendedores – cada vez ganhando menos, e se enrolando mais com as dívidas. Saí de lá em 19 de julho de 2002, cheio de dívidas, e passando o maior sufoco financeiro, porque ali eu só ganhava comissão, não tinha fixo.

De novo, me vi na rua. Em casa, só veneno, mas a nega véia não abandonou o barco, e passamos lado a lado todos os proble-mas e todas as dificuldades. Por isso, nosso casamento ficou tão sólido, e dura até hoje.

Tentava de novo achar uma ocupação via telefone, ligando para as empresas, mas nada deu certo. Até que resolvi ligar para o Hélio, meu ex-gerente na Super do Brasil – que foi à falência –, ele trabalhava então no Pet Center Marginal, que o Sérgio mon-tou depois da Super quebrar.

O Hélio marcou de nos encontrarmos, mas não no Pet Center, e sim num outro endereço, no parque São Lucas. Achei estranho, mas fui no dia marcado. No endereço, funcionava uma pequena indústria de alumínio que fabricava panelas e coisas para cozi-nha, tais como cuscuzeiro, bule de café etc. O Hélio os estava assessorando, pois eles – da Extra Lar Alumínio – pretendiam montar um atacadista. Sob a sua supervisão, eu seria um faz- tudo nesse começo de projeto. Então, começamos a convocar fornecedores e esses, mesmo meio desconfiados, iam ao nosso chamado. A maior parte, por conhecer o Hélio há anos do ramo, passou a fornecer para a recém-aberta Extra Lar Alimentos, que tinha o aval da Extra Lar Alumínio – esta com anos de mercado.

Tenho orgulho do que produzi ali. Virei comprador, gerente, chefe, vendedor, fazia de tudo, inclusive receber as mercadorias que chegavam. Ficava lá sozinho a maior parte do tempo, e, quando

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precisava de ajuda, vinha gente – patrões ou funcionários – da Alumínio, localizada em cima da Alimentos.

Passamos a vender com um estoque mais ou menos, e fiz uns clientes. A rede de restaurantes Coração Mineiro – que tem lojas em vários shoppings, e que eu já atendia de outros lugares – começou a comprar e se tornou o melhor deles.

Na Extra Lar havia vários problemas. O maior deles é que do Itaim ao Parque São Lucas eram duas horas dentro de um ôni-bus velho que percorria a linha Itaim paulista – Vila Califórnia. Duas horas na ida, duas na volta. Foi dificil largar meus amigos do trem, a bagunça que fazíamos, e me adaptar a essa nova vida, naquele tormento de ônibus. Outro é que, pouco mais de três meses depois que iniciamos os trabalhos, a Extra Lar começou a dever para alguns fornecedores, que, por sua vez, não manda-vam mais as mercadorias. Sob a pressão da cobrança, eles iam pagando conforme entrava dinheiro. Não era má fé, a firma de alumínio estava na maior crise da sua vida.

Além do mais, era muito patrão. Pai, mãe, filho – que era para ter assumido a responsa da divisão de alimentos mas não tinha condições para isso, era fraquinho, sem poder de decisão –, e outras duas ou três filhas. Uma família em crise, várias tretas entre eles – tipo saindo do padrão classe média e entrando na classe média baixa –, ou virando pobre. Não sei como estão os outros, nunca mais os vi depois que saí de lá. Eles tratavam seus funcionários muito mal. Comigo, era um pouco melhor, porque eu carregava a divisão de alimentos nas costas, mas, com o tempo e a crise, os problemas só aumentaram. O cara fazia que esquecia o dia de me pagar, o Hélio já não era mais o poderoso chefão – a casa dele ali estava caindo antes da minha –, mas pra mim também não dava.

Lembro que a família dos donos, em crise, começou a ir à missa do Padre Marcelo Rossi. Eu achava tudo, inclusive eles, uma grande piada. Aquele ônibus maldito, o meu salário, que seria de R$ 600,00 até melhorar e nunca melhorou – só piorou, pois,

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além de tudo, agora atrasava direto. Estava me sentindo no fundo do poço, mas seguia lutando. Descolei um ônibus que ia pro metrô Tatuapé e, às vezes, para aliviar a tensão, eu ia pra lá e pegava o último vagão para rever os amigos. Aquele rolé1 me fazia falta. A bagunça dos amigos no trem sempre foi um refresco em meio aos problemas nas empresas – na real, era uma das melhores diversões da minha vida.

Nesse tempo, o Bandoc, um amigo dos tempos de Atacadista X – eu o ensinei a trabalhar nesse ramo –, me ligava direto. Ele estava bem num atacadista chamado Comercial Loro, e dizia que me levaria para lá. Marcou entrevista uma vez, mas não deu certo. De toda forma, em 10 de janeiro de 2003, não agüentei mais e saí da Extra Lar, lugar que não deixou saudades.

Minha mãe faleceu em 2001, no Hospital do Servidor Público da Vergueiro. Foi um choque pra mim. Primeiro ligaram dizendo que ela estava internada. Dez minutos depois, avisaram que ela tinha morrido. Perdi meu grande amor, a pessoa que eu tanto amava, apesar de ter lhe magoado bastante. O dia do seu enterro foi de muita dor. Tenho muita saudade dela.

Sem rumo, desempregado de novo, estava louco para mudar de ramo. Até porque ficara queimadíssimo com meus clientes por causa do entra e sai das empresas, o que realmente não era minha culpa. A fase era negra e não via nenhuma luz no fim da linha. Se não fosse a família – minha esposa e meu filho –, acho que teria desandado na vida, voltado a cheirar, sei lá. A Extra Lar me desgastou, de novo eu procurava emprego. Minha situação não era das melhores, eu procurando por melhoras que nunca chegavam.

1 Passeio, volta.

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2003, último ano turbulento

2003Cap.10

2003, último ano turbulento tur-bu-lento

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Arrumava emprego tão rápido, que uma vez o escritor Ferréz me disse por telefone:

—Caraio mano, têm uns caras aqui no Capão que passam anos desempregado, dizendo não encontrar nada, e você sai de um e em seguida arruma outro.

Era isso mesmo, só estava pecando na qualidade da ocupação, mas eu tentava.

Depois do livro do trem e do certo destaque que consegui, parou tudo. Os livros estavam acabando, e eu não conseguia editora para o outro, pois de novo não tinha grana. Pra você ter uma idéia, eu procurava um emprego e aceitaria ganhar na faixa de R$ 500,00, que, como já disse, é o que hoje pago pro meu funcio-nário na Loja Suburbano Convicto.

Nem tudo na vida é tristeza. Duas coisas nessa fase negra foram positivamente marcantes. Uma foi as fotos de que participei pro encarte do CD do RZO, outra o convite para participar da Revista Literatura Marginal. Vamos por parte.

Tudo começou porque eu estava fazendo outros tipos de maté-rias pro jornal Página 1. Tinha dado um tempo na coluna “Futebol de Várzea”, e agora fazia entrevistas. Já tinha feito com o Ribeiro, aquele negão black que fica na esquina da Ipiranga com a São João – “alguma coisa acontece no meu coração”–, e que é pre-sidente – ou era – da Torcida Organizada Coração Corinthiano.

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A base da entrevista era o fato de ele ter ido como torcedor a umas três ou quatro Copas do Mundo. Fiz ainda outra entre-vista com o Paulo Serdan, presidente da Torcida Mancha Verde do Palmeiras. Mas queria largar o tema futebol e entrar em cultura, daí pensei e sugeri pro Djair fazer uma com o escritor Ferréz, que era sucesso com seu livro Capão pecado e ia lançar, ou tinha lançado, sua segunda obra: Manual prático do ódio.

Não sei onde descolei o contato, mas liguei e falei com o cara, que foi logo dizendo que tinha visto meu livro numa livraria. Pensei que era um caô1 – como diriam os cariocas -, porque meu livro tinha estado numa única livraria em São Paulo, que o aceitou em consignação. Isto é, não foi via distribuição normal. Perguntei, esperando uma mentira como resposta:

—Qual livraria?

—Na Livraria Cultura do Conjunto Nacional – Férrez me disse.

Não é que o cara tinha visto mesmo?, afinal era lá que o livro estava. Nem sei se o Ferréz lembra disso, mas marquei de conhecê-lo e entrevistá-lo pro jornal Página 1.

Três horas de condução do extremo leste para o extremo sul, e cheguei ao Capão Redondo, que na época tinha uma grande fama de ser perigoso, e era mesmo – hoje, um pouco menos.

Segui a orientação do Ferréz, e peguei o ônibus Jardim Comer-cial, no Terminal Santo Amaro. Depois da ponte, desceria logo na frente, era a Loja 1 da Sul, em sua primeira sede, junto da casa do mano na favela do Jardim Comercial. Lugar simples, loja pequena, e o Ferréz ali. Conversamos e subimos pro quarto dele para fazer a entrevista. O quarto não era muito grande tam-bém, e cheio de livros, gibis, brinquedos, miniaturas etc.

A entrevista foi publicada e ficou show de bola. Então, virei amigo do cara, que, em seguida, me convidou para ser um dos dez autores da Revista Coletânea Caros amigos – Literatura

1 Mentira.

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marginal, que teria nomes como Paulo Lins – Cidade de Deus–, Jocenir – Diário de um detento, O livro – entre outros. Fiquei honrado e ainda ganhei o meu primeiro cachê, R$200,00. Nessa revista, ouvi falar pela primeira vez no poeta Sérgio Vaz, de quem depois viraria amigo. Também o acompanharia em muito agito do maior e melhor sarau do Brasil, a Cooperifa.

Até hoje acredito que ganhei um status maior por ter partici-pado desta edição especial da Caros amigos. Afinal, eram os dez mais da Literatura Marginal, e eu estava entre eles. Mais pra frente, participei ainda do ATO III da coleção – a última que saiu – e, posteriormente, do livro: Literatura marginal – Talentos da escrita periférica, pela Agir Editora, e também organizado pelo Ferréz.

Durante a fase negra – 2001 e 2002 –, essas foram algumas das poucas coisas que me trouxeram alegria e que, de alguma forma, não deixaram a minha bola cair. Senão, como escritor, já estaria no esquecimento.

Cheguei mesmo a pensar que tinha sido só um sonho, e que eu era mesmo um escritor de um livro apenas, mas “Nada como um dia após o outro dia”. Foi justamente o novo álbum dos Racionais MCs – com esse título – que virou meu lema e me tirou do marasmo. Eu estava, sim, fudido, mas, quando saiu o CD, na abertura dizia:

—Acorda irmão, você não pediu mais uma chance, como Deus é bom né não nego, mais um dia, todo seu, vamô acordar, vamô acordar, porque o sol não espera, demorou, vamô acordar.

Ouvi isso e disse pra mim mesmo:

—Bola pra frente, que atrás vem gente.

Não sei em que ano, mas, no meio dessa época, conheci atra-vés de carta, um pessoal do Rio de Janeiro, do Movimento Enraizados. Um quarteto: Dudu de Morro Agudo, Neném, Fiell e Dinho K2. Conheci o Rio através deles, e fui várias vezes à cidade

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maravilhosa, para me hospedar na casa do rapper Fiell, em Praça Seca, Jacarepaguá. Hoje, continuo muito amigo do Dudu de Morro Agudo, ele vem direto a São Paulo e fica na minha casa – da mesma forma, por diversas vezes, fico na sua, na Baixada Fluminense. Quanto ao Fiell e o K2, com eles perdi o contato depois que, por motivos seus e particulares, ambos pediram por e-mail o desligamento do Movimento Enraizados – acho que em 2005. Nunca rolou treta, mas perdemos definitivamente o con-tato. Faço parte até hoje do Enraizados SP, que tem base aqui no Parque Bristol, Zona Sul, fundão do Ipiranga – salve Terno, Dimenor e toda rapa. Eram essas coisas que não deixavam minha carreira parar, apesar de eu não emplacar o segundo livro.

Voltemos à minha situação. Disposto a largar o ramo de alimen-tos, nos cadernos de emprego eu procurava qualquer ocupação que não fosse nessa praia. Mas não pintava nada. Foi quando lembrei de novo da Super do Brasil. Depois que ela quebrou e o dono montou o Pet Center Marginal, surgiu ainda um novo ata-cadista na praça, se chamava Tabor – ficava na rua Tabor, no Ipiranga –, e o “dono” era o Miguel, meu outro gerente – além do Hélio – na Super. O boato que corria é que a firma era mesmo do Sérgio Zimermam, e que o Miguel era apenas um testa de ferro. Pra mim tanto fazia, tanto fez, descolei o telefone e liguei:

—Por favor, o Miguel ?

—Quem gostaria?

—Fala que é o vendedor Alessandro Buzo – passei a dizer meu sobrenome e a ser chamado por ele, depois do primeiro livro.

Expliquei pro Miguel que estava fudido, e que precisava de uma chance para me levantar, ele ficou de pensar e me pediu para ligar na outra semana. Não senti firmeza, mas liguei. Ele me mandou ir conversar e acabei sendo contratado. O gerente de vendas era o Benê, que eu conhecia da Super. Aliás, desco-bri que ali tinha uma galera grande da Super: André, Anderson, Silvia, Miriam e outros.

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Enfim, entrei de novo numa empresa de porte, no meu ramo mesmo, e com estoque parecido com o Atacadista X. Recuperei meus clientes aos poucos, e cheguei chegando na Tabor Alimentos.

Voltei também a ter contato com o Bandoc, que ainda estava no Comercial Loro, mas que depois foi pra Logiodice. Ele continu-ava falando de a gente trampar junto, mas naquele momento eu estava bem na Tabor e não pretendia sair tão cedo. A vida voltara ao normal, dando uma aliviada nas dívidas, um fôlego novo.

Trabalhei um ano e meio na Tabor. Era para ter sido bem mais, só que fui boicotado pelo fraco gerente Benê, que não tinha capaci-dade para o cargo e me traiu na situação que narro na seqüência.

As vendas iam bem. Voltei a ter o status de bom vendedor, dis-putar a ponta era questão de tempo. De novo, numa equipe de uns 12 vendedores, corria atrás de estar entre os três primei-ros. Alguns bons clientes de antes eu não podia atender, porque quando entrei eles já eram atendidos por outros. Mas tem muita clientela dando sopa e fui de novo formando minha carteira.

Em várias etapas, elegi meu melhor cliente. O primeiro a ter esse título, ainda nos tempos do Atacadista X, foi a Churrascaria Paulista Grill, na João Moura, em Pinheiros – esquina da Rebouças. Toda segunda-feira, o Márcio – comprador – me ligava e dizia:

—Buzo, anota aí: um balde de azeitona sem caroço 2 kg, uma caixa de maionese Hellmann’s de 3 kg, uma lata de extrato de tomate 2 kilos, um fardo de arroz Camil, um de feijão Carioca... – e assim ia, toda segunda sempre gastava na faixa de mil e qui-nhentos reais, fora outras compras diárias de valores menores.

Tive outros tantos ótimos clientes – Clube Pinheiros, Hospital Infantil Sabará, São Paulo Futebol Clube, Restaurante Arábia etc. –, mas é um ramo ingrato em vários sentidos. Por exem-plo, um dia liguei normalmente na segunda-feira pro Márcio, do Paulista Grill, e ele não estava mais trabalhando lá. Nunca mais falei com ele e, o pior, nunca mais vendi pro Paulista Grill. O novo comprador me riscou do mapa. Isso acontecia, infelizmente.

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Também acontecia o contrário, você batalhar por meses um cliente e não conseguir vender para ele – fazer de tudo, ligar, mandar fax de oferta, amostra de produto e nada –, aí, troca o comprador, e você entra.

Conheci a rede Coração Mineiro nos tempos da Realli. Emplaquei umas caixas de bacalhau pra eles. A compradora, que virou minha amiga – apesar de, como freqüentemente acontecia, nunca tê-la conhecido pessoalmente –, era a “Tia” – tinha esse nome porque era tia dos donos. A Tia passou a ser a minha melhor cliente na Extra Lar, na Tabor voltei a atendê-la, e depois ela me acompanhou ainda na última empresa do ramo em que trabalhei.

Tudo corria bem, até demais, na Tabor. Depois de um ano ali, a empresa chamou os vendedores e perguntou se alguém tinha experiência em compras, que eles queriam desafogar um pouco a compradora. Se alguém quisesse, poderia passar a ter dupla função e auxiliar nas compras, ficando responsável pelos pro-dutos de limpeza e descartáveis.

Eu fui o único que se interessou. Afinal, eu tinha tido essa experiência de comprar na Extra Lar. Então, assim foi. Além de vender, comecei aos poucos a ir comprando também, o que fez com que meu ibope crescesse e – sabe como é gente medí-ocre e insegura –, conseqüentemente, passei a incomodar o gerente Benê. Mas às vezes sou meio inocente e não vejo a maldade rápido.

O fato é que a firma estava passando por mudanças. A maior delas era a chegada de um novo sócio, que nos foi apresentado como tal. As más línguas diziam que ele vinha a mando do ver-dadeiro dono – o Sérgio Zimermam, da Super – e substituiria o Miguel, que – todo mundo sabia, mas não falava às claras – não era dono de nada. O novo sócio, de quem não me recordo o nome, era linha dura, mas foi com a sua entrada que passei a ter dupla função.

Desde a Super do Brasil, que o Miguel tinha mania de reunião e, o pior de tudo, fora do horário de expediente. Eu, sinceramente,

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não curtia ficar depois do horário. Na Tabor, era tudo igual a na Super. Como lá, havia uma lanchonete para os funcionários não terem motivo para sair pra rua. Tinha tudo ali: balas, refrige-rante e até cerveja, depois das 18:00h. Às vezes, rolava ainda um churrasco. Era divertido na Super, mas na Tabor não era tão legal como antes, eu preferia sempre ir embora. Aliás, quando era obrigado a ficar um pouco, vazava na primeira oportunidade. Num desses churrascos, aniversário de alguém, o Miguel me perguntou sobre os livros, e se eu tinha parado – quando lancei O trem, em 2000, a Super do Brasil em peso comprou um exem-plar, todos ali na Tabor sabiam que eu escrevia. Expliquei que pintava alguma coisa de vez em quando, uma palestra ou uma revista, falei, por exmplo, da Caros amigos, mas enquanto expli-cava o Benê me cortou:

—Isso não traz futuro pra ninguém, vamos falar de vendas.

Ficou o maior clima chato, mas, enfim, mudamos de assunto.

Por essas e outras que não curtia falar de cultura e literatura nas firmas em que trampei, nem mesmo com meus clientes. Uma vez, saí no Estadão – jornal O Estado de São Paulo – e o comprador de um cliente – Jucalemão – me perguntou:

—Você e o escritor que saiu hoje no Estadão são a mesma pessoa?

—Sim, somos.

—Por que nunca disse nada? – expliquei que não gostava de misturar.

Alguns poucos sabiam por alto. A Arlete, compradora do Satélite Esporte Clube – um grande cliente que eu tinha –, era uma das poucas que, lembro, sabia. Assim seguia a vida. O salário melhor deu uma refrescada no veneno que passei em 2001 e 2002.

Até que chegou o dia da traição. Nem Cristo fugiu da inveja, fui só mais um que alguém, nessa vida podre de disputa que é uma empresa de vendas, prejudicou. Esse alguém era o Benê. Um dia – sexta-feira –, anunciaram que teria um churrasco, mas eu

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não estava a fim. O principal motivo é que estava um frio insu-portável. Não pensei duas vezes, deu 18:00h, e sumi. Desde a Super, eu dava vários perdidos nas reuniões depois do expe-diente, mas, nesse dia, de verdade, eu não sabia que era reu-nião – não tenho motivos para mentir aqui. Muito menos sabia que o novo dono falaria e exigia a presença de todos. Se sou-besse, claro que ficaria, não era louco, nem irresponsável. Mas o Benê chegou naquele dia pela manhã e disse:

—Gente, hoje à noite vai ter um churrasquinho aqui na empresa e esperamos a presença de todos – foram mais ou menos essas as palavras, foi isso o que ele nos comunicou.

Estava convicto de que não ficaria, estava cansadão e fazia o maior frio. Quando deu a hora de ir embora, 18:00h, geava mis-turado com garoa. Nem dei tchau pra ninguém, senão falariam “Não vai tomar uma cervejinha?” ou “Não vai ficar pro chur-rasco?”, então, pra evitar essas perguntas, peguei minha bolsa e, como dizem os Racionais MCs, “Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina” – no lugar da neblina, sumi mesmo na garoa.

Como sempre fazia, saía na rua à esquerda e ia reto. Em vez de ir pela rua movimentada, como a grande maioria, eu quebrava para a interditada. Naquele trecho – por causa das obras do fura fila, que a Marta tinha retomado – um bom pedação no sentido centro-bairro estava fechado, e só circulavam os manos e os fun-cionários da mega obra – hoje, depois de muito dinheiro gasto ali, ele finalmente está funcionando, apesar de eu nunca, até hoje, tê-lo utilizado. Chegando na av. do Estado, bolava meu baseado e fumava curtindo o trânsito. As viaturas com suas sirenes ligadas, as ambulâncias e os carros que se espremiam na outra pista – depois do Rio Tamanduateí, que fica no meio. Ali, eu botava fogo na bomba e ia de boa. Mas tinha que fumar antes de acabar o trecho fechado, já próximo de onde eu quebrava2 para chegar à Estação de trem Ipiranga. Lá, pegava o trem por duas esta-

2 Rua em que virava.

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ções até o Brás e, dali, o cara de lata pro Itaim Paulista. Fumava olhando o trânsito, o rio e pensando nas vendas do dia, no pro-gresso que estava sendo fazer compras também, em tudo isso, e agradecia a Deus por ter me dado de novo uma chance, um emprego bacana.

Segui fumando nesse dia. O frio era cortante, lembrava de novo Racionais MCs:

—Se vai sair pega sua toca e seu moletom porque faz dez graus em São Paulo.

Cheguei à Estação Ipiranga, comi um churrasquinho de gato, e tomei um bombeiro – pinga com groselha – para esquentar. A brisa3 na mente e eu de boa indo para casa. Quando cheguei ao Brás, meu celular tocou, tocou, tocou e atendi. Era o Benê da Tabor, ele gritava:

—Onde você está Buzo, cadê você?

—Estou no Brás, pegando o trem.

—Mas hoje tinha a reunião com o novo dono. Você não pode ir embora!

—Benê, calma lá. Você disse hoje pela manhã que teria um chur- rasquinho, não disse nada de reunião. Eu não sabia, sinceramente.

—Todo mundo sabia.

—Todo mundo menos eu.

—Só você foi embora – ele continuava gritando.

—Mas, Benê, eu não sabia de reunião nenhuma, estava sem pique pra churrasco, um frio da porra, você quer o quê?

—Buzo, você tem que voltar agora mesmo.

—Tá bom, tô chegando.

3 Brisa é igual a estar chapado, depois de fumar um baseado.

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E cheguei, segunda-feira, 7:59h, no horário. O Benê já estava, achei estranho, ele sempre chegava às 9:00h, 9:30h. Deu 8:05h, ele passou pela minha mesa e disse:

—Buzo, venha até aqui.

Entramos na sala do Miguel, vazia, e ele me mandou embora na hora, sem nenhuma explicação. Eu ainda tentei argumentar:

—Pô, se é por causa de sexta...

—Sexta é passado. Arruma suas coisas, liga depois para Silvia e veja quando é sua homologação, essas coisas.

De novo me sentia puto da vida, um lixo, um sei lá o quê. Ali, sendo demitido por aquele mané, que eu sabia que era incom-petente e, ainda por cima, para encobrir o fato de ele não ter me comunicado direito sobre a reunião. Enquanto arrumava minhas coisas, chegou a compradora:

—Bom dia, Buzo.

—Bom dia. Tô saindo fora.

—Como assim “saindo fora”?

—Fui demitido.

—Demitido? Por quê? Por quem?

—Deixa pra lá, depois falamos – e vazei.

Fumei um na av. do Estado e fui embora, desempregado. Dessa empresa, tenho muita saudade de dois grandes amigos – o André e Anderson –, dois ponta firme, além do Miguel, que era um bom amigo também. Quando fui demitido, ele já não estava apitando quase nada, apesar de ser um dos donos. Depois soube que ele saíra mesmo, e que o Benê foi escurraçado, só não sei o que aquele medíocre fez. Saí da Tabor no dia 1º de setembro – no meu mês da sorte – de 2003.

Mas Deus escreve certo por linhas tortas.

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Cap.11

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Se na literatura eu não arrumava editora para o meu segundo livro, no hip-hop, apesar de eu não cantar nem praticar nenhum dos quatro elementos, me envolvia cada vez mais. Fosse pelo quinto Elemento – conhecimento – do qual fazia – e faço – parte, fosse como repórter. Mais pra frente, em 2004, também como produtor de eventos, pois iniciaria o projeto de hip-hop na rua chamado “Favela toma conta”, cuja última edição realizada, a 15ª, foi mês passado, em 27 de abril de 2008.

Além disso, passei a ser colunista de vários sites de hip-hop. Por exemplo, Enraizados, www.enraizados.com.br -, Portal Rap Nacional – www.rapnacional.com.br –, Real Hip Hop – www.realhiphop.com.br –, entre outros. Sem contar, claro, meu pró-prio blog, o Suburbano Convicto – www.suburbanoconvicto.blo-gger.com.br –, que estreou em 2003, criado pelo Douglas Kim, de quem falo no final desse capítulo. O Kim fez o blog pra ser meu com o Marcelo Min, que é fotografo da grande mídia e tinha um blog famoso, o Fotogarrafa, hoje um site – www.fotogarrafa.com.br. Meu blog é atualizado diariamente, e tenho outras páginas além do carro chefe, são: www.literaturaperiferica.blogger.com.br, www.buzoentrevista.blogger.com.br, www.cinemanacional.blogger.com.br. Também cuido da página de fotos da fotógrafa e esposa Marilda Borges: www.marildafoto.blogger.com.br

Além dos sites e blogs, fui aos poucos iniciando um trabalho na revista Rap Brasil, a princípio como colunista, e depois como

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repórter. Foi tudo indo. Conheci musical e pessoalmente muitos grupos – naquela época, bem menos do que conheço hoje.

Tive então uma idéia. Se não descolei uma editora, vou promo-ver um evento com bilheteria e arrecadar fundos para bancar o livro independente. Mas quem estará no evento que a galera pague para ver? Dos que eu tinha contato na época, só pensei em um nome: RZO. “O trem é assim é assim que é, sem precedê não pára em pé”. Pra trocar uma idéia dessas, só mesmo pesso-almente, e liguei pro Helião:

—Fala mano, precisava colar na sua casa pra levar um papo com você.

—Demorô Buzo, só chegar.

E marcamos um dia qualquer da semana. Acho que estava desempregado ou faltei pra ir lá, não lembro. Fui ao Helião em Pirituba e expliquei a situação pra ele:

—Mano, lancei aquele livro do trem em 2000. O tempo passa, daqui a pouco é 2003 – era 2002 – e não consigo descolar uma editora. E então, pensei se vocês não poderiam fazer um show pra eu arrecadar fundos pro livro. Faço num local fechado, ingresso baratinho – falei mais alguma coisa de que não me recordo, mas foi basicamente isso.

—Buzo, desce lá na casa do Sandrão e, se ele concordar, a gente faz. Pra mim tá firmão1 te dar essa força. Se ele topar, já é.2

Sai a milhão pra casa do Sandrão, a pé – minha marca regis-trada até hoje. Não sei explicar por quê, mas até hoje, com 35 anos, nunca tive um carro, nem carta tenho. Cheguei lá e um vizinho me disse:

—Ele foi ali com a Negra Li.

1 Firme e forte.2 Concordando com alguma coisa; mesmo que dizer sim.

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Resolvi esperar. Uma meia hora depois, avisto o Sandrão e a Negra Li vindo. Ele me cumprimentou, animadamente como sempre. A Negra Li estava moada3 porque estava doente e não foi atendida no posto. Hoje, ela tá bombando em multinacional, cinema, TV. Foi até protagonista do filme Antônia da cineasta – hoje minha amiga – Tatá Amaral.

Mas voltemos. Contei a mesma história pro Sandrão, que respondeu:

—Se o Helião disse que vai, tô dentro também. Então, faz assim: liga pro Davi do Gueto, vê uma data disponível, tira da bilheteria o dinheiro de uma van pra nóis ir e já é.

A Negra Li olhava a conversa com uma cara fechada de poucos amigos, parecia que, a qualquer momento, falaria “Que cantar de graça nada”, mas acho que era mesmo porque ela estava mal.

Acertei com o Davi do Gueto a data e o valor da van, fechei com o meu amigo Nel Costa, presidente do Bloco Unidos de Santa Bárbara, a realização do show na quadra, com ingresso a R$3,00.

Nesse show, surgiu na minha vida o Douglas Kim, que conheci um pouco antes e com quem hoje não tenho mais sintonia, e o Tribunal MCs – fazemos trampos juntos até hoje –, além do Alerta Vermelho. Isto porque procurei saber quais eram os maiores grupos do Itaim Paulista e todo mundo me apontava para o Alerta Vermelho e, principalmente, para o Tribunal MCs – que, em 2002, lançou o álbum “A arte da Guerra”, e fez clipe da música Faculdade de mil grau, executada na MTV – estavam bombando. Corri atrás destes dois grupos e expliquei a pegada do show: que o ingresso arrecadaria fundos pra um livro meu, que o RZO – meus amigos – cantariam de graça, só pela van, e que, se eles quisessem participar da festa, sem cachê, esta-vam convidados. Ambos aceitaram. Coloquei ainda um bate lata

3 Abatida

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muito legal com crianças do Jardim Nélia – projeto tocado pelo Marcelino, chamado “Toque do Gueto” –, e o Autênticos MCs – dos meus amigos Zóio e Paulinho.

Foi o primeiro show do RZO no Itaim Paulista, e um cara envol-vido com a juventude do PT acabou me pedindo um favor: incluí ainda o grupo Fato Criminal, de Guaianazes. Estava tudo armado. O Magu fez no trampo dele uns convites personaliza-dos, com este valor de R$3,00. E começou a venda antecipada.

Semanas antes do show, fui no lançamento do livro As aventu-ras de Alencar Almeida, do amigo Guilherme Azevedo, na sede da Revista Caros amigos. Lá conheci o Douglas Kim, que era seu amigo. Como estávamos sentado com o Guilherme quando o Kim chegou, ele também se juntou a nós.

Papo vai, papo vem, e eu disse estar organizando o show do RZO para arrecadar fundos pro meu livro. Então, o Kim me veio com esse papo:

—Pô cara, que interessante, se quiser, eu filmo tudo, edito e te dou em fita VHS.

Trocamos telefone e pensei “Espera, esse japonês lá na que-brada para filmar e me dar editado em fita, abraça”. Na verdade, ele era filho de coreano e, faltando alguns dias para o show, me ligou, perguntando como fazer pra chegar.

O show foi demais, mas muita gente entrou de graça, a grana foi pouca e não deu para fazer quase nada do livro. Usei o dinheiro para pagar uma correção e mais alguma coisinha, mas o livro ainda esperaria – e muito – para sair, o que ocorreu em 2004. Todos os grupos arrebentaram, e o RZO fez uma apresentação inesquecível, que até hoje muitos comentam. Veio o time com-pleto: Helião, Sandrão, DJ Cia, Negra Li, Calado, Wando, Tom, Bem Bom, Davi do Gueto e o reforço da Dina Di do Visão de Rua. Puta sucesso de crítica na quebrada; todo mundo pirou com o show bem loko dos caras.

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Inacreditavelmente, o japonês – o tal do Kim – cumpriu sua palavras. Filmou, editou e me deu umas cópias em VHS do show, que presenteei aos grupos que participaram. O Douglas Kim era sócio da DGT Filmes, e virei amigo do cara. Foi ele que criou pra mim o blog Suburbano Convicto, e foi importante em várias eta-pas do meu segundo livro. Depois, infelizmente, não sei por quê, o cara zerou todas as suas amizades e mudou de vida – era doi-dão. Afastou-se de um por um, saiu da DGT, terminou a Banda Lest3r – que, além dele, contava com o Toni Nogueira e outro cara –, depois que acabaram de lançar o primeiro – e, portanto, único – CD.

Sou muito grato ao Douglas por tudo o que me ensinou. Não tenho mágoas dele, nem lhe desejo nenhum mal, sei até porque ele se afastou de mim – ele tinha tretado com o Toni Nogueira antes e, quando eu voltei a fazer umas coisas na DGT, em que ele não estava mais, o cara saiu fora. Mas não foi só o Toni, nem só eu, ele se afastou de tudo e de todos com quem ele tinha contato. Zerou e mudou de vida. Eu respeito. A única coisa que me cha-teou foi o fato de que, através de mim, ele conheceu muita gente e, do mesmo jeito que me riscou do mapa, o fez com todos os que conheceu através de mim. Por muito tempo, vários perguntaram “Cadê o Japonês?” Eu sempre respondia “Sei lá, sumiu”. Mas sou grato a ele em muitas fitas, pois me ajudou pra porra.

Tem gente que pensa que o show do RZO foi o primeiro “Favela toma conta” mas o “Favela” só nasceu em 2 de maio de 2004. De toda forma, este show foi o primeiro evento de porte que promovi. De novo Racionais MCs: “Nem imaginava o que estaria por vir”.

Assim, dia após dia, grupo após grupo, quebrada após quebrada, fui me envolvendo com o hip-hop e com o rap nacional, que é o meu barato, nunca curti os gringos. Hoje, 90% dos vários CDs que tenho são de rap, é o que mais ouço. Mas curto um samba, reggae, rock. Grandes são as lembranças de ter entrevistado por telefone – durante quase uma hora – o Bezerra da Silva, e também de ter visto ao vivo Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal,

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Martinho da Vila, Leci Brandão, Jorge Aragão. No reggae, vi o Natiruts na gravação do extinto Musikaos da TV Cultura. Mas foda mesmo pra mim são os shows que vi dos Racionais MCs – principalmente um que aconteceu no Armazém 5, pela Semana Hutúz. Só não suporto enlatados da mídia – aqueles que vivem nos programas de TV –, com raras exceções.

Disputei, até hoje, três vezes a final do Prêmio Hutúz, em 2005, 2006 e 2007. Sempre na categoria Ciência e Conhecimento – livros e filmes. Em 2005, o Ferréz ganhou, em 2006, a Cooperifa. Ambos, merecedores, mas na treceira indicação pensei “Caraio, será que não ganho nunca?”. Então, em 2007, apesar de grandes nomes concorrendo comigo, levei o prêmio, pelo livro Guerreira. Além desse, ganhei ainda o Prêmio Cooperifa em 2005, 2006 e 2007.

Muitas das coisas que citei nesse capítulo, rolaram nas piores fases de trampos; ganhando pouco, trabalhando longe ou, por vezes, desempregado. Ainda bem que não cheirava mais, só jogava fumaça pro ar, senão tinha dançado.

Os corres4 seguiam. Eu me mantinha antenado, e mostrando a cara aqui e ali, foda é que meu segundo livro não saía. Apesar de muita coisa legal ter rolado, não tinha grana nenhuma – com exceção da arrecadada no show do RZO –, e, nesse tempo, como você já leu, eu só arrumava trampo tranqueira. Ainda mais com família pra sustentar, morando em dois cômodos. Vida dura, nêgo, vai pensando que caiu do céu o reconhecimento que tenho hoje. Mas seguia nos meus corres, esperando por dias melhores, afinal, “nada como um dia após o outro dia”.

Em 2003 ou 2004, conheci melhor o Sérgio Vaz. Ele organizava o Sarau da Cooperifa na Zona Sul – que começava a crescer –, e viramos amigos, o que somos até hoje. Meu primeiro con-tato com a Cooperifa foi no Sarau especial no Salão Nobre da Câmara dos Vereadores de São Paulo, em evento promovido

4 Vem de correr atrás de alguma coisa.

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pelo então vereador – hoje deputado – Carlos Gianazzi – um grande amigo também.

O Sacolinha, outra referência contemporânea da literatura mar-ginal, conheci em 2001. Ele era rapper – acredite –, e me chamou para ser entrevistado numa rádio pirata em que tinha programa. Estava no inicio também o Projeto “Literatura no Brasil” outro que, assim como a Cooperifa, cresceu pelo talento e militância.

Outros que conheci antes foram a Elizandra Souza, através dos zines – sempre tive o Boletim do Kaos,5 que está no número 150, e ela tinha o Mjiba6 –, a Dinha – porque ela e uma amiga com-praram meu livro pelo correio – e, depois, a galera do Enraizados SP, Dimenor e Terno – que é irmão da Dinha.

A maioria dos outros escritores da periferia paulistana conheci na Cooperifa, grande quilombo de encontro de artistas, princi-palmente de poetas e escritores.

5 O mesmo que caos. 6 Nome do zine dela.

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Antes de minha situação mudar pra melhor, tive que passar por mais uma fase negra, e das mais dificeis. Aconteceu de, depois de sair da Tabor, em setembro de 2003, passar seis meses desempregado. Só que, dessa vez, eu tinha família e a respon-sabilidade de um filho pra sustentar. A minha esposa sempre foi guerreira nas fases ruins, essa é uma das razões por que a valorizo. Mas, mano, que sufoco.

Chegou o Natal de 2003, e eu estava mesmo desiludido. Nessa época de festas, se ainda existia algum restinho de grana da Tabor, essa acabou. Para completar, me endividei com os chur-rascos de natal e ano-novo, que aqui em casa a gente sempre racha entre mim e os parentes, meus cunhados.

Era difícil de acreditar que um bom profissional de vendas como eu estivesse nessa situação, mas pagava por já ter trampado na maioria dos atacadistas, e nos que restavam não ter dado muita sorte. Fiz todo o tipo de bico e, a cada domingo, com o Caderno de Empregos na mão, renovava as minhas esperanças.

Quanto à minha carreira de escritor, essa só não tinha acabado porque sempre aparecia alguém querendo uma entrevista, coisa assim. Mas não via perspectivas de lançar meu segundo livro: Suburbano Convicto – o cotidiano do Itaim Paulista.

Não é fácil quando você depende de um emprego e se vê desem-pregado. Graças a Deus, hoje faço diversas atividades, e a soma

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de todas essas remunerações é maior do que qualquer salário que eu possa ganhar vendendo alimento.

Num domingo, então, veio num desses cadernos de emprego um anúncio grande dizendo que precisavam de vendedor. Não dizia o que se teria de vender, mas como era vendas, fui atrás.

Chegando à rua São Bento – no Centro de São Paulo –, descobri que era um Call Center para vendas de assinatura dos jornais Estadão e do Jornal da Tarde – que é do Grupo Estado. Pensei em desistir, mas estava na chuva, e tinha que me molhar.

Fiz uns treinamentos por três dias, e fui para a batalha. Não era fácil, há anos eu trampava de telemarketing, mas nada a ver com isso. Nas distribuidoras de alimentos, era minha mesa, eram meus clientes, e eu só lhes telefonava quando as vendas estavam fracas, em caso contrário, eles que me ligavam. Tinha o axé de serem os mesmos clientes, e de vários deles terem virado amigos – o bate-papo durante o tempo em que eu tirava um pedido era sobre futebol, bebidas importadas, família, coti-diano etc. Diferente de na Nick Tell, vendendo assinatura de jor-nal, pressão pura.

Logo cedo, todo dia, rolava uma reunião com o gerente e a supervisora. Não me recordo os seus nomes, mas eram pessoas bacanas, super a fim de ajudar quem estava começando. Era muita gente naquelas divisórias – uns 50 ou mais – e, no meio dela, muitas cobras. Principalmente umas minas, que se acha-vam as malandronas e não estavam com porra nenhuma. Clima tenso, trabalho pesado, tinha que ligar sem parar, pegar uma lista telefônica e sair ligando, ligando, ligando, descanso só no almoço e nos 15 minutos de café da tarde.

Nunca imaginara chegar a essa situação de novo, comparável apenas com a fase que passei na obra do CDHU como aponta-dor, que também não era minha praia. Naquele tempo, eu ficava lembrando minha mesa no escritório de contabilidade e, agora na Nick Tell, recordava os atacadistas em que trabalhei.

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—Alô.

—Bom dia senhor, tudo bem?

—Tudo.

—Somos do jornal O Estado de São Paulo, e estamos fazendo uma campanha aí na sua região: assinatura do Estadão por R$X por dia.

Falávamos o valor diário da assinatura, porque se falássemos o mensal daríamos chance pro cara pensar nas suas dívidas e não querer. Dizer que, por dia, seu custo seria só de R$ X era a forma de fisgarmos as vendas. Uma meia dúzia de vendedo-res se destacava, os outros estavam todos numa média abaixo desse pelotão de elite.

Tínhamos meta semanal. Vendendo acima de tantas assinatu-ras, ganhávamos um prêmio em dinheiro. Só o salário sem esses prêmios era roça, muito pouco. Dei um golpe na primeira semana de trabalho, vendi assinatura para vários amigos e conhecidos. Neta, Giggia, Telis e outros fizeram a assinatura para me ajudar. Cheguei a levar minha carteira de clientes para tentar vender pros compradores, muitos meus “amigos”, mas só liguei para uns três – era muita humilhação ligar para alguém a quem eu vendia alimento, e oferecer assinatura de jornal. Não que ven-der jornal seja humilhante, é um trabalho digno e muito dificil de ser executado, mas o ritmo de um Call Center, não só deste, é desumano. Você sai à tarde com dor de cabeça de tanto ligar e ouvir “Não”. Mas, a cada venda, o ânimo se reaviva.

Depois de conseguir a proeza de bater a meta logo na primeira semana, entrei numa fase de baixas vendas, o que cagüetava o fato de que eu não era nenhum grande talento recém-des-coberto, e sim tinha vendido graças aos amigos. Na segunda semana, vendi mais algumas para conhecidos, e fiz minha primeira venda na raça, mas fiquei próximo da meta sem alcançá-la.

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Quanto aos clientes de alimentos aos quais liguei, me arrependi de todos, pois me diziam “Quando você voltar pro ramo de ali-mentos me liga” ou “Jornal? Como assim vendendo jornal?”. Não liguei mais. Apesar da vontade de não voltar a trabalhar com alimentos, ninguém sabe o dia de amanhã, então era melhor eu não vacilar queimando minha “carteira de clientes”.

Lembram do Bandoc que trampou comigo no Atacadista X e que me ligava na Extra Lar? Quando na Tabor, falava com ele ainda, mas como um cara que havia dado a volta por cima, pois passava uma fase boa. Então. Tentei vender assinatura de jornal pra ele, que tinha saído do Comercial Loro, na rua Santa Rosa – onde tentei várias vezes mas nunca consegui entrar –, e que estava no Logiodice Atacadista, na rua da Cantareira. O Bandoc disse:

—Pô Buzo, você não pode ficar nessa situação. Você é um grande vendedor, não tem motivos para estar aí vendendo jor-nal. Vou marcar de você vir conversar aqui, e quero você tram-pando do meu lado.

Nunca esqueci essa frase, nem esse amigo com quem depois perdi o contato. Isto porque sua namorada, com quem acabou se casando, não ia com a minha cara, mesmo eu nunca tendo feito nada pra ela.

Fui à Logiodice para uma entrevista com a dona Margarida, uma das donas junto aos seus irmãos, Seu Pedro, José Augusto e Nicolau. A dona Margarida lembrou de mim, eu já estivera ali procurando emprego e estava novamente desempregado; isso lhe parecia um mau sinal.

—Por que saiu da Tabor?

—É que mudou de dono, e o novo trouxe uma equipe com ele.

Papo vai, papo vem, e ela acabou por me contratar. Estava de novo na cena, de novo no meu ramo, com produtos que sabia vender.

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Saí dia 1º de abril de 2004, e no mesmo dia entrei na Logiodice. Lá reencontrei pessoas conhecidas e conheci muitas outras, inclusive amigos que prezo muito, apesar de não estar em con-tato com eles há algum tempo. Falo do próprio Bandoc, que me ajudou a voltar para a atividade, e as minas que lá trampavam – Luciana, Rita, Priscila, Simone e tantas outras. O dia-a-dia era de muito trabalho, mas também de muita descontração, eles eram muito gente boa.

A fase da Logiodice foi de transição, lá foi meu último emprego das 8:00h às 18:00h. Consegui retomar a maioria dos meus clientes – fora os que já eram atendidos quando entrei – e fiz do Coração Mineiro – saudades da Tia –, o meu maior cliente, era muita venda para suas nove lojas em diversos shoppings.

Estava a um mês de organizar, a toque de caixa, meu primeiro “Favela toma conta”, e não sabia, mas estava a seis meses de lançar meu segundo livro.

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Cap.13 Nasce o “Favela toma conta”

Cap.13 Nasce o “Favela toma conta”

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Eu estava em ritmo de primeiro mês de trabalho na Logiodice, superfeliz. Retomei as vendas e os clientes, além de vales tran-porte e dia 20, ticket refeição, e pagode no quinto dia útil.

Num fim de semana qualquer de abril, fizemos na casa do meu cunhado, José Augusto, um churrasco, para comemorar a nova fase. A casa dele fica no mesmo quintal de onde moro até hoje. Minha sogra mora embaixo, eu e ele moramos em cima, respec-tivamente nos fundos e na frente. Na sua casa, tinha uma área que dava para rua e é ali que estávamos fazendo o churrasco. Todo mundo de boa, as crianças brincando, os adultos trocando ideal, som alto, cerveja, refri, campari e carne.

Já era meio noite quando nos debruçamos no parapeito que dava pra rua, do outro lado dela, tinham cerca de vinte jovens, jogando basquete. O aro de uma bicicleta, amarrado num poste era a “cesta”. Estávamos eu, o Zé Augusto e o cunhado dele – irmão da esposa –, chamado Gil, que hoje infelizmente enfrenta sérios problemas de saúde causados por bebidas e drogas em excesso.

Falávamos sobre como tantos jovens estavam aí na rua sem opção de lazer, e sobre como eram criativos ao inventarem com nada uma brincadeira capaz de entreter a todos – no caso, a improvisada cesta de basquete.

— Dá vontade de fazer um evento cultural aqui na rua, para dar a esses rapazes uma oportunidade de conhecer o hip-hop.

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—Por que você não faz? – perguntou o Zé.

—Pô, Zé, não é assim fácil organizar um evento. Precisaria de palco e som.

—A gente arruma.

O Gil só agitava, mas depois pouco ou nada fazia pra ajudar de fato. Naquele tempo, ele ganhava muito dinheiro com CD pirata no centro de São Paulo, na região da rua 25 de Março. Mas foi justamente esse muito dinheiro e a falta de responsa-bilidade que o levaram a cheirar e beber tanto. Torço para que ele melhore, porque atualmente ele anda muito mal – tipo meio louco da cabeça –, principalmente quando toma remédio tarja preta e mete pinga por cima. Ele está precisando de ajuda, mas ninguém o ajuda. Se fosse rico, iria para uma clínica de recupe-ração, mas pobre fica na quebrada, dando uma de doido.

Nas fases boas, ele chegava com o bolso cheio de notas. Malandro, ele tinha muitas de R$ 1,00 e, por cima, jogava as de R$ 10,00 e R$ 50,00, no puxa plaque constante que ele fazia, para mostrar a todos – em casa e na rua – que ele tinha dinheiro. Depois pagava bebida para geral no bar, além de dar doces e brinquedos para as crianças. Era um rei, mas perdeu a majes-tade, hoje nem as crianças aturam mais seus problemas. Torço para que um dia seu juízo volte pro lugar, e ele volte a ser rei.

Fiz questão de escrever esse relato – não para expor o problema do Gil – mas por três razões. A primeira é quem sabe se alguém, lendo esse livro, não banca um tratamento para ele enquanto é tempo. A segunda é alertar sobre o perigo das drogas e do álcool. A terceira para mostrar como o dinheiro transforma as pessoas: naquele tempo, o Gil tinha “muitos amigos”, agora, nin-guém mais o quer por perto. Naquele tempo, todo mundo sabia que ele cheirava e bebia, mas amigo de bar quer mais é beber junto, e amigo de canudo pra cheirar não se importa nem com a própria saúde, quanto mais com a dos outros.

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Mas voltemos ao churrasco, quando nasceu a idéia de fazermos uns contatos e tentarmos armar uma festa aqui. Se rolasse, seria “Favela toma conta” seu nome, afinal, “nós” três ali na favela – Buzo, Zé e Gil – que tivemos a idéia. Nisso, eu no meu primeiro mês de trabalho na Logiodice – onde fiquei um ano e 11 meses. Aliás, só saí porque pedi as contas para viver e traba-lhar exclusivamente com cultura, literatura e arte ou hip-hop, livros e cinema – agora também TV, depois comento.

Descolei que na Santa Bárbara, tinha um trio elétrico que à noite dormia lá. Liguei pro presidente – meu grande amigo Nel Costa–, e descobri que ele pertencia ao Turco Louco – um político que não era da região e ligado a assuntos culturais. O motivo de ele ficar ali é que o responsável direto por ele era o Cal – ou Curuça, como era chamado também -, que era pre-sidente da Escola de Samba Unidos de São Miguel ou do que sobrou dela, que estava – e está – mal das pernas.

Desfilei três ou quatro anos pela Unidos de São Miguel, na sua época de ouro, quando chegou a disputar o grupo especial do carnaval paulista. Por um ano apenas, mas estivemos lá. Subi com a Unidos, e desfilei no especial por ela. Fora outras agre-miações em que desfilávamos – Primeira do Itaim, Torcida Jovem do Santos (bloco) e, mais pra frente, a Santa Bárbara.

O Cal era o homem do trio, e eu não o conhecia, mas o seu téc-nico de som era o Tom, irmão do Paulo e do Beto – meus amigos no tempo em que eles tinham um bar na Tibúrcio de Souza, o Tempo Livre. Procurei o Tom e cheguei ao Cal, que foi gente boa e disse para eu fazer um ofício e levar na casa dele, na Vila Curuça – por isso do seu outro apelido, Curuça –, e foi o que fiz.

Ele disse que, se o escritório do Turco Louco liberasse o Trio, ele estava na mão – só tinha que ter R$100,00 de diesel, para fazer o gerador funcionar e ter energia para o som. Nem imaginava que estava entrando num mundo que até hoje estou, produção cultural.

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Passaram uns dias e liguei:

—Então Buzo, pode marcar o evento, que o trio está liberado. Não esquece o diesel.

Essa primeira despesa do “Favela”, paguei do bolso, tais como tantas outras depois.

Marcamos o evento para o dia 2 de maio de 2004. Nascia o “Favela toma conta”.

Outra coisa que me motivava era o fato de eu ter participado por alguns meses de um grupo cultural aqui do bairro, e de não ter dado certo porque eles faziam muitas coisas com que eu não concordava. Num evento que fiz ponte pro Z’Africa Brasil vir, pela Sub do Itaim e esse grupo cultural, chegou a maior banca do Rio de Janeiro. O Movimento Enraizados trouxe uma van cheia – uns três grupos – e não tinha como não colocá-los para cantar. Então me enquadraram,1 e a diretoria da parada disse que eu tinha atrasado o evento chamando tanta gente, isto é, que eu atrapalhara. Olhei para o cara que era tipo presidente da associação e disse:

—Aceito tudo o que me disseram, mas essa foi a primeira e última vez que te atrapalhei na vida, não vai se repetir.

Só não fui embora porque tocariam ainda Tribunal MCs, que articulei de trazer, e o Z’Africa, que fez dois shows para esse pessoal, pelos quais nunca recebeu. Não sei quem ficou com essa grana, mas sei que eu não fui. Aliás, só descobri isso bem mais pra frente, falando com o Tiko – do Bocada Forte – e que fechava, ou fecha, shows pro Z’Africa. Ainda bem que a bronca não estourou pra mim porque eu havia dito pra ele:

—Tiko, só vem quando estiver tudo OK com a Subprefeitura. Não tenho nada a ver com essa contratação, além de ter indi-cado vocês e feito o contato.

1 A gíria vem de revista policial, de ser enquadrado.

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Depois dessa festa, me afastei da associação, que depois fe-chou e não existe mais. O seu presidente batia no peito e dizia:

—Se não for eu, ninguém faz evento nesse bairro.

O “Favela toma conta” nasceu por dois motivos. Um era levar entretenimento e hip-hop para a rua de casa. Outro era mos-trar para o pessoal da outra associação que tinha mais gente fazendo evento na quebrada, a Suburbano Convicto produções.

Eles nunca bateram de frente comigo, porque, no íntimo, sabiam que eu não havia feito nada de errado. Sei que se arrependeram – porque tentaram se chegar depois –, mas sou assim: amigo pra porra, ajudo pra caramba, mas quando risco da minha vida, é definitivo. Não sei se isso é bom ou ruim, mas a todos de quem me afastei – aqueles com quem hoje não converso mais porque deram mancada comigo – não me interessa dar outra chance. Dou outra chance até pros internos da Febem – onde fiz muita oficina de graça falando de livros –, mas não para um amigo que deixou de ser meu amigo da pior forma, dando mancada. Eu corto mesmo, definitivamente. Muitos tentam se reaproximar, mas não dá. Quando eu perco a confiança, é foda.

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Cap.14

A periferia em destaque

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desperife-ria

ta-que

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Tudo bem que, em 2004, as coisas passaram a dar certo pra mim. Nasceu o “Favela toma conta”, e finalmente lancei meu segundo livro, depois de quatro anos de intervalo. Mas a periferia ficou em evidência na mídia e na sociedade antes, em 2002. Essa evi-dência, somada às coisas que plantei – quem planta colhe –, fez com que dois anos depois eu começasse a ter retorno.

Mas não ache que minha vida virou um mar de rosas, o que nunca foi e continua não sendo. Hoje tenho quatro livros lança-dos – este é o quinto –, uma coletânea que organizei e outra que estou para lançar esse ano – Pelas Periferias do Brasil, vol II. O meu último livro – Guerreira – foi lançado pela Global Editora, já com distribuição nacional. Além disso, tenho um quadro – Buzão – Circular Periférico – no programa “Manos e Minas” – apresentação Rappin’Hood – na TV Cultura. Ainda assim – com a realização de 15 edições do “Favela toma conta”, a publicação de vários livros, o êxito de ter chegado a uma editora grande e até na TV – não tenho uma grande situação financeira. Claro que melhorou, não ando mais endividado como na época em que era empregado. Montei uma pequena estrutura para trabalhar, com um computador e um notebook – este recém-comprado -, inter-net banda larga em casa, speed, fax, etc. Isso faz a diferença e, graças a essa estrutura e a parcerias como a da DGT Filmes, cheguei aonde estou.

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Mesmo assim, no mundo capitalista em que vivemos, não passo de um “ninguém”. Não tenho carro, e ainda moro no último bairro da Zona Leste de São Paulo, numa casa de dois cômodos, com um córrego fedendo atrás. Hoje, meu principal projeto de vida é conseguir comprar uma casa maior, por isso tenho trabalhado tanto, às vezes dia e noite. Quem sabe depois eu até queira comprar um carro, mas hoje só penso numa casa, e esse livro é o marco para essa conquista. O cachê recebido para escrever o mesmo é o primeiro dinheiro que de fato guar-darei no banco com essa finalidade. Após anos de nome sujo – devido aos baixos salários nas empresas em que trabalhei –, finalmente agora, em maio de 2008, consegui limpar o nome e reaver minha dignidade e cidadania – além de cartão de cré-dito, talão de cheques, e por aí vai o progresso.

Diferente do que pensam alguns, nada pra mim cai do céu, luto por cada conquista. Lembro das calças remendadas que usava porque não tinha outra e vejo agora, depois de quase três anos sendo patrocinado pela Conduta, tendo para escolher. Em vários aspectos progredi, isso é inegável.

Através da literatura e do hip-hop, conheci o Brasil. Fui a Porto Alegre, Rio de Janeiro, Nova Iguaçu-RJ, Salvador-BA, Alagoinhas-BA, Londrina-PR, Curitiba-PR, Rio Branco no Acre, Brasília-DF – de passagem indo pro Acre, cinco horas de rolé com o GOG –, Belo Horizonte-MG, Goiânia-GO, Fortaleza-CE, e em todos esses lugares deixei amigos.

Muita gente hoje diz que sou referência. Não sei como pude me tornar um nome tão forte, tendo feito tudo tão sem dinheiro. Realizei várias edições do “Favela toma conta” sem um real no bolso. Sabe o que é ser a semana do evento, e você não ter um real furado? Aceito ser referência, porque, se o moleque da favela não tiver pessoas como eu em quem se espelhar, ele o

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fará com o traficante da quebrada, que paga1 de moto, carro e dinheiro no bolso.

Voltemos a 2002. Em agosto desse ano, aconteceu o que mais contribuiu para colocar a periferia em evidência: foi lançado o filme Cidade de Deus, do cineasta Fernando Meirelles, baseado no livro de Paulo Lins. O sucesso do filme deixou a favela e a periferia na bola da vez da imprensa, e muitas matérias em jor-nais, revistas e TV traziam jovens pretos como protagonistas. Os atores do filme, com exceções como a do Matheus Nachtergaele, eram todos vindos da favela e sem experiência, mas passaram por uma grande oficina que fez eles darem o melhor nas filma-gens. Cidade de Deus é o primeiro filme nacional, na minha opi-nião, que trouxe uma nova visão de filmagem e edição.

Logo em seguida, outubro de 2002, estreou na TV Record o pro-grama “Turma do Gueto”, idealizado pelo pagodeiro Netinho de Paula. Esse programa trazia, pela primeira vez, a periferia para as telas – durou alguns anos, mas só o primeiro trouxe alguma coisa de bom. Depois, principalmente depois que Netinho de Paula se afastou diretamente da produção, ela descambou para a violência e a bandidagem, perdendo assim o valor, e servindo para passar a falsa imagem de que na periferia todo mundo vende droga e anda armado. Com a entrada do ator Alexandre Frota, então, piorou de vez, e não servia mais para representar a periferia na TV, como foi no primeiro ano da série.

Para mim, o fato que marcou demais foi o lançamento do tão esperado álbum do grupo de rap “Racionais MCs”, no mesmo outubro de 2002, o “Nada como um dia, após o outro dia”. Como já disse antes, nesse tempo eu estava totalmente desiludido com o trabalho e com a carreira artística. As únicas coisas que se salvavam eram o meu casamento e meu filho, de resto, tudo uma sucessão de fracassos. Aí comprei o CD – original, porque nunca gostei de pirata, e você já sabe: “Vamô acordar”. Essas

1 Exibir-se, mostrar-se.

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palavras me trouxeram para a luta, me formaram militante, me mostaram que, desanimado e sem acreditar, ninguém acredita-ria também. Nada como um dia após o outro dia, virou meu lema e o meu combustível. Salve a Mano Brown – meu grande ídolo no hip-hop, sem contar outros que admiro –, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay. Sem saber, vocês colocaram fogo no pavio, como diria outra referência do rap – o meu amigo GOG, de Brasília-DF.

Em 2003, aconteceu um dos fatos mais lamentáveis da história do rap nacional. No dia 24 de janeiro, logo pela manhã, foi assas-sinado o rapper Sabotage. Foi vingança de uma mente invejosa – de um inimigo dos tempos em que Sabotage era envolvido com o crime, antes de ser resgatado pelo hip-hop. Em sua curta carreira, ele lançou o fantástico álbum “Rap é Compromisso” e participou – pioneiro – de duas obras no cinema: O Invasor e Carandiru. Que Deus o tenha em um bom lugar.

Em fevereiro de 2003, saiu do ar na TV Cultura o programa “MUSIKAOS”, apresentado pelo Gastão Moreira. Acho que só hoje, cinco anos depois, o “Manos e Minas” do Rappin’ Hood vem cobrir essa lacuna.

Continuando a evolução de temas ligados à periferia, veio o filme Carandiru, de Hector Babenco, baseado no livro do médico Drauzio Varella. Outro grande sucesso de público e mídia.

Acho que esses fatos – e alguns outros que não citei – foram importantes para a periferia passar a ser vista além dos progra-mas policiais.

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Cap.15 Primeiro “Favela toma conta”

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Em abril de 2004, já tinha o Trio Elétrico do Turco Loco, e passei a ver quem seriam as atrações para o 1º evento “Favela toma conta”. Articulei uns nomes, e fiz uns contatos. Chamei o Tribunal MCs – que conheci naquele show que fiz do RZO –, o DCM – Dois contra o mundo, da banca do Tribunal –, e os Autênticos MCs – o primeiro grupo da quebrada que vi ao vivo, anos antes, e que cantou no lançamento do meu primeiro livro, em 2000.

O Dê – que é meu vizinho e trabalha na Maurício de Souza – ofereceu uns gibis da Turma da Mônica para distribuir para a molecada, e disse que seu filho e uns jovens aqui da rua – local do evento – estavam formando um grupo, o EXL, só que nunca tinham se apresentado. Então os incluí, afinal, eram da rua.

Um amigo meu do Rio de Janeiro – o Cacau Amaral, hoje cine-asta – também se ofereceu para vir com o seu grupo, com dinheiro do próprio bolso pra viagem, de modo que tivemos o Baixada Brothers, da Baixada Fluminense. Todos esses, e mais a Bateria do Bloco Unidos de Santa Bárbara e, para falar de “conhecimento” – o quinto elemento do hip-hop –, o Ferréz e o Nino Brown.

Tudo foi feito meio de improviso – primeira vez é foda –, por isso, alguns nomes que estiveram no cartaz não vieram – caso da banda Tuca & Mell, que viria de graça, mas precisava de trans-porte para a aparelhagem, e não tinha essa grana. Por causa

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desse mal-entendido, não veio. Além do poeta Sérgio Vaz, que não veio por motivos de agenda, e do Nel Costa – presidente da Santa Bárbara –, que falaria junto com Ferréz e Nino Brown, mas não compareceu, enviando apenas a sua bateria – por sinal, nota 10. O que rolou no primeiro “Favela toma conta” está abaixo discriminado:

Projeto Suburbano Convicto apresenta

1º Evento Favela toma contaDia 02 de maio de 2004 a partir das 12hLocal: av. José Borges do Canto, s/n no Itaim PaulistaIdealizador e apresentador: Alessandro BuzoShows comTribunal MCsDCMBaixada BrothersAutênticos MCsEXLApresentação da Bateria do Bloco Santa BárbaraPalestra com Ferréz e Nino Brown.

E assim foi. A festa foi um sucesso. A rua lotou, a gente a fechou sem autorização. Era fim de semana e – apesar de ela não estar em atividade – pelos documentos da PMSP, é uma rua de lazer, então num domingo pode ser fechada. A maioria da população apoiou e prestigiou.

Críticas e gente contra sempre tem. Por exemplo uma vizinha que, quando viu o trio elétrico parando em frente à sua casa, saiu gritando que chamaria a polícia, que não passaria o domingo com um carro de som daqueles na sua porta. Troquei uma idéia com ela, na maior da educação, e tentei mostrar o outro lado: era um dia de entretenimento e lazer, um dia diferente e o baru-lho não entraria na noite, só na tarde. Ela insistia em chamar a polícia, então perdi a paciência e disse que ela podia chamar quem ela quisesse, que a festa tinha apoio da Subprefeitura, que era de dia, a rua era de lazer e que ela ficasse à vontade

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para fazer o que bem entendesse. Só era mentira o apoio da Sub, eles nem sabiam.

Na semana seguinte à festa, muita gente me procurou para elo-giar, dar os parabéns, além de muitos grupos querendo saber quando seria a próxima edição. Próxima?

Nasceu um evento que hoje é tradicional, mas que foi total-mente pensado para ser “único”. As próximas edições vieram da pilha que os amigos e os grupos colocaram. O Dê, que deu os gibis, até hoje é um dos manos da quebrada que mais apóia o evento e meus corres em geral, até hoje ele faz a arte dos car-tazes e muito mais. O “Favela toma conta” era uma realidade.

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Cap.16

Continuidade

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Eram poucos os eventos culturais no bairro. A associação de que cheguei a fazer parte durou mais alguns meses, fez mais alguma coisa, depois parou de vez. Outro que surgia – e ainda existe – se estruturando também era o “Balada Gospel”, do Pastor Anderson Hip Hop. No dia 29 de maio de 2004 – mesmo mês do primeiro “Favela” –, ele fez uma edição na favela do Tijuco Preto, com os grupos Alerta Vermelho, DCM, Tribunal MCs, Ao Cubo – que nascia ali, mas depois cresceu muito –, King, Rap Sensation, Fornalha Negra, Lito Atalaia, Projeto Crescer, Êxodo e Impacto Soul. Colei nessa festa e, tive certeza, teria que conti-nuar minha caminhada – já pensava no 2º “Favela toma conta”.

A demanda de grupos era muito grande, e o povo precisava desse lazer e dessa informação. O Itaim Paulista tem mais de 300 mil habitantes e só a cultura, o esporte, o lazer e educação podem combater a violência. Um fato que me diferencia de mui-tos produtores culturais da periferia é a leitura, seja de livros ou mesmo de jornais e revistas.

Quem se informa está sempre um passo a frente, vou citar dois exemplos, quando o filme Cidade de Deus estourou, poucos sabiam da existência do livro de Paulo Lins, até hoje nos “Favela toma conta”, quando vou sortear um brinde – camiseta, boné, cd – pergunto:

—Quem escreveu o livro Cidade de Deus?

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Por incrível que pareça, nunca a galera sabe a resposta. Uns arriscam Fernando Meirelles e uns, zuando, respondem que foi o Zé Pequeno. Isso me deixa muito triste, saber que os manos não têm a informação. Tento amenizar colocando muita coisa em meus blogs, mas é pouco perto da demanda.

Outro exemplo. No fim de 2007, estreou, com muito sucesso, o filme Meu nome não é Johnny. Aí, o livro do jornalista Guilherme Fiúza Estrella, feito com a ajuda de Marcelo Carneiro, e com o cartaz do filme na capa, virou febre também. Eu, que sem-pre leio, já sabia desta história e desse livro desde 23 de junho de 2004, quando saiu uma entrevista com o Estrella na coluna “Auto-retrato” da revista Veja. Quem lê sabe antes, e isso é o que diferencia lá na frente.

A expectativa e a ansiedade de promover a segunda edição do “Favela toma conta” fez com que a data do próximo fosse mar-cada para menos de dois meses depois da primeira: dia 20 de junho de 2004. O local era o mesmo, minha rua, av. José Borges do Canto, no Itaim Paulista.

O cartaz saiu com 12 atrações musicais, 100% a mais do que na primeira edição. Dessas, só duas não vieram, por falta de apoio para o transporte: o Castor da favela da Zona Norte e o Sabedoria de Vida, da Zona Sul. Uma pena o Sabedoria não ter vindo, pois, na seqüência, o Jotta – que era líder do grupo – foi assassinado. Senti muito, porque ele queria tanto ter vindo ao “Favela”. O grupo continuou, mas nunca deu certo de eles virem ao evento, sei lá por quê. Às vezes, por falta de chance de incluí-los, às vezes, por falta de verba para apoiar no transporte.

Não sei por quê, nem como, mas a banca Tribunal MCs/DCM, com a ausência de algumas atrações, se envolveu na festa e acon-teceu um fato que chocou e, por conseqüência, tirou o evento da rua de casa. O B.O. que rolou foi que a banca era enorme e não sei quem – nem era diretamente do grupo – bolou um mega baseado de uns 30 gramas de maconha. Quem via na mão do cara tinha a impressão de que era uma bomba – daquelas de

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explodir -, e não deixava de ser, mas de outro tipo. E, quando o Tribunal subiu junto com o DCM, eles botaram fogo naquele baseadão, chocando a vizinhança. A fumaça que saía daquilo parecia um incêndio. Imaginei a polícia chegando, mas, por Deus, ela não veio.

Outro fato inusitado dessa segunda edição foi a banda Mokó di Sucata de Osasco, do meu amigo Erton Moraes – que par-ticipou do “Literatura Marginal”, faz tempo que não o vejo nem falo com ele. Ela simplesmente chegou – de trem –, na hora em que terminávamos de desmontar o trio elétrico. A festa já tinha acabado fazia meia hora quando vi saindo da viela umas vinte, trinta pessoas, com instrumentos na mão, uma loucura. Eu, cansado pra porra, ainda providenciei um macarrão para eles comerem e não perderem 100% a viagem. Mesmo esgotado, os acompanhei até a quadra do Bloco Santa Bárbara, onde rolava um ensaio. O pessoal relaxou, curtiu e foi até convidado para se apresentar, mas a hora já estava avançada e, se eles não fossem embora, perderiam os trens que parariam de circular. Então, eu os levei até a estação e fui para casa, enfim, descansar.

No dia seguinte, apesar de a vizinhança ter curtido a festa, vários estavam chocados com a cena da fumaça. Alguns vieram falar comigo, eu disse não ter culpa, não poder fazer nada e até cogitei não realizar mais a festa. Depois, decidi que ela iria para outros pontos do bairro, para aliviar a barra na minha rua, e que eu teria de fazer alguma coisa para que o uso de qualquer droga nunca mais rolasse – nessa escala – na festa.

O grupo DCM, que levou a culpa do B.O., depois colocou numa letra de música deles um pedido de desculpa pra mim, por conta dessa mancada. Ficou tudo bem. A festa, fora isso, foi um sucesso. A programação segue abaixo.

2º Favela toma contaAv. José Borges do Canto, s/n (na rua)Dia 20 de junho de 2004Shows com:

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Formação AcadêmicaEXLEpheziusEstratégiaAtividade de RuaConexão LocalPânico BrutalBanka TerrorTribunal/DCMWalter Limonada

A parte literária ficou com o poeta Sérgio Vaz e com o escritor Sacolinha. Pela primeira vez, anunciamos no cartaz “Doe um livro para futura biblioteca comunitária”. Nascia a Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto, que funciona até hoje den-tro do Bloco Santa Bárbara. Lembro-me do Sérgio Vaz e do Sacolinha terem trazido alguns livros, outros o público trouxe. Além do meu amigo Dê, que de novo doou alguns gibis, colou um vizinho, Ricardo, que trabalha num atacadista de doces no Brás, e deu alguma coisa que distribuímos entre a criançada. Entre contras e prós, tinha rolado o 2º “Favela toma conta”.

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Cap.17

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Cap.17

3ª edição do evento e segundo livro se aproximando

3ª2º

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Da segunda edição em diante, nasceu um problema que só recentemente resolvemos, o número de grupos por edição.

Devido à grande demanda – muitos grupos e poucos eventos – de uma edição para outra do “Favela toma conta”, uma média de trinta grupos me procuraram e fiz edições do favela com 13, 14, 15 e até 17 grupos. Mas isso se tornou inviável porque fazia a festa entrar na noite, e o cansaço ficava enorme para a organização. Basicamente, para mim e Marilda, pois, apesar de sempre ter alguém ajudando nisso e naquilo, as decisões e as articulações são mesmo com a gente.

No último favela realizado até o termino desse livro – 15ª edição em 27 de abril de 2008 – foram apenas seis atrações e, de agora em diante, será assim. Para não ter que ficar falando não para tanta gente, desde a 3ª edição do meu outro evento “Suburbano no Centro” – que transformei em festival – são dez atrações cantando uma musica só. Assim, além dos grandes que eu trago no “Favela”, também há oportunidade para os novos talentos.

Das 3ª e 4ª edição do “Favela” não tenho registro – procurando no Google até que dá para achar alguma coisa –, mas não sobrou um único flyer ou cartaz.

O 3º “Favela toma conta” aconteceu em 18 de agosto de 2004, debaixo do viaduto da China, na divisa de São Miguel com Itaim Paulista. Ali funcionava a quadra da Escola de Samba Unidos de

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São Miguel. Utilizamos de novo o Trio Elétrico do Turco Louco, e essa edição foi mais tranqüila que a do baseadão. Infelizmente, não dá para lembrar todos os que participaram, então, vou citá-los mas de forma genérica: Tribunal MCs – o grupo que mais cantou no favela –, Fúria do Raciocínio, de Santo André – que cantava uma música no CD “Arte da Guerra,” do Tribunal –, direto de Limeira, a banda de reggae Nação Nesta – do meu amigo de infância Cido – e o Geração Rap – que era gospel. Com certeza houve mais algumas atrações, mas não lembro mesmo. O mais importante dessa edição é que ela existiu. Isto é, o evento não parou depois dos incidentes da segunda edição, coisa que che-guei seriamente a pensar que aconteceria.

Antes da quarta edição, ainda na Logiodice – onde fiquei quase dois anos –, finalmente lancei meu segundo livro. Mas primeiro vou narrar como cheguei à Edicon e as coisas, enfim, deram certo.

Continuava na Logiodice, de novo uma empresa estruturada, com minhas vendas de alimento, trabalhando registrado, e com mercadoria para atender meus clientes, tudo “normal”. Mas, a cada dia que passava, eu fazia mais coisas pelo social e cul-tural, e tinha menos vontade de vender alimentos e ter que resolver os problemas de entregas de meus clientes. Tinha uma mulher na expedição que não dava, fazia muita coisa errado e, ainda assim, era intocável, nunca soube por quê. Só depois que saí é que foi despedida, ela atrapalhava bastante o andamento das vendas, de um modo geral.

Através da Juliana Penha, que era amiga de uma escritora – Claudia Canto – que tinha lançado um livro – Morte às Vassouras – De jornalista à doméstica em Portugal – narrando sua trajetó-ria em Portugal, conheci não só a Claudia Canto, como o Thomaz Mielenhausen. A Claudia, não sei por quê, acabou não virando assim uma grande amiga – inclusive perdi seus contatos –, mas foi ela que me apresentou o Thomaz, um alemão muito doido, que era tipo agente dela, e que me falou da Editora Edicon, onde ela tinha lançado independente.

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Expliquei que não dava, pois estava sem nenhuma grana sobrando, que se desde abril estava na Logiodice, nos primei-ros meses só estava pondo a casa em ordem, devido à dificul-dade enfrentada antes. Apesar de ter perdido o contato com o Bandoc, sempre serei muito grato por ele ter insistido em me arrumar esse emprego, que chamo de “último emprego da minha vida”. Então, mesmo depois de eu ter falado que não tinha grana, o Thomaz Mielenhausen marcou uma entrevista minha com a Valentina Ljubtschenko, dona da Editora Edicon. Fui ao encontro.

A Valentina me recebeu muito bem, e disse que existiam várias formas de viabilizar o projeto. Uma das opções soou como música aos meus ouvidos. Ela sugeriu que nós fizéssemos 1.000 capas do livro, mas só rodássemos 500 miolos. Eu pagaria a ela só 200 livros e não mil. Aí, depois que fizéssemos o lançamento, e vendido uma parte dos livros, íamos fazendo outros 200 mio-los e já teríamos a capa. Foi a melhor coisa que me disseram em toda a vida, mas mesmo assim eu não tinha a grana. Cada livro saía cerca de R$ 10,00, 200 unidades davam R$ 2.000,00. O que fazer?

Voltei para Logiodice e tive uma séria conversa com o Sr. Pedro – um dos donos –, pedi R$ 2.000,00 emprestados, para serem descontados aos poucos. Ele disse que veria com seus irmãos e sócios. No dia seguinte, me deu a resposta: me emprestaria 1/3 do valor, cerca de R$ 700,00. Fiquei agradecido, mas onde arru-mar o restante? Ele então me disse:

— Tenho certeza de que você arruma o restante.

Corri para todo lado e, em uma semana mais ou menos, descolei mais um terço. Um cheque de R$ 700,00 do então subprefeito do Itaim Paulista, sr. João Francisco, que me deu do seu próprio bolso, dinheiro pessoal dele.

Então voltei à Edicon. Tinha R$ 1.400,00, e queria ficar devendo o restante. Conversa vai, conversa vem, e a Valentina me propôs

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pagar o que faltava em alimento. Isso mesmo, pagar livro com comida – vinda é claro, da Logiodice, do meu trabalho.

De novo me reuni com o sr. Pedro, e expliquei a situação. Tinha outros R$ 700,00 além do empréstimo dele, mas teria que enviar R$ 600,00 em alimento. Perguntei se ele liberava essa venda pra mim e a entregava à casa da dona da editora. Ele topou e ficou de descontar em 3x de R$ 200,00. Quanto aos R$ 700, ele me dava um prazo de seis meses para ir pagando conforme dava.

BINGO! Eu teria meu segundo livro. Nascia ali o Suburbano Convicto – O cotidiano do Itaim Paulista. Fui acertar detalhes com a Valentina, fizemos a diagramação juntos e, em cima de um desenho do meu primo Magu, a capa.

Marquei o lançamento para 18 de setembro de 2004, na qua-dra do Bloco Carnavalesco Unidos de Santa Bárbara, no Itaim Paulista. Mesmo esquema de quando lancei meu primeiro livro. Traria alguns grupos para cantar, e pensei em alguma coisa também para beber.

Comprei uns garrafões de cinco litros de vinho, e chamei o Tribunal MCs e, direto do Rio de Janeiro, o CLAM – Consciência, Liberdade, Atitude e Movimento –, grupo então formado por Dudu de Morro Agudo – hoje em carreira solo – e Dinho K2 – que leva esse nome, CLAM, até hoje, com grupo e como associação. Fiz o convite na Edicon, divulguei muito a parada e aguardei o dia, contando que seria um grande sucesso.

Tenho de dizer que, apesar de concretamente não ter dado nada certo nos lugares que o Douglas Kim tentou, ainda assim sou grato a ele pela força que deu antes de o livro virar realidade – mesmo tendo sido eu quem descolou depois a Edicon.

Chegou o grande dia e não deu para acreditar no que aconteceu, parece até mentira.

A galera foi chegando, vieram bastantes amigos de fora do Itaim, como o Guilherme Azevedo e o seu irmão Alexandre, o

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Sacolinha, o Róbson Canto, o Wellington Ramalhoso, o Brazil, o Oliveira de Guaratinguetá, uns amigos da quebrada – Neta, Beto Guilherme, meu irmão Álvaro, representando a família, pois minha mãe já não estava mais entre a gente –, o Thomaz Mielenhausen, a Claudia Canto, a galera do Tribunal MCs, e por aí vai. A festa era dividida em dois ambientes, a quadra e o bar em frente. Todo mundo começou a beber demais, e começou também a chover muito forte – muito mesmo, chuva de gra- nizo –, caía cada pedra de gelo inacreditável.

O Dudu de Morro Agudo cantaria sozinho, porque o K2 não tinha vindo. O Tribunal MCs recebeu a notícia de que a favela do Tijuco Preto estava alagada e havia entrado água na casa do DuLoko, que teve de ir embora. Resolvi acelerar, mas chegou a notícia de que a favela da Cripa estava um caos, o rio subira demais. O fotógrafo Marcelo Min – free de grandes jornais – na época, amigo do Kim – e hoje meu também – deixou o evento, e foi cobrir a favela.

O Dudu de Morro Agudo começou a cantar para entreter a galera, não chegaria mais ninguém nessa chuva, forte a ponto de ninguém ali poder ir embora. Ainda assim, a Marilda resol-veu correr para casa a fim de ver se lá não tinha entrado água também, e o Brazil – amigo do Guilherme Azevedo – lhe deu uma carona. Realmente a situação estava crítica. Enquanto a Marilda dava um jeito na casa, a água quase arrastou o Brazil com seu carro e tudo, levou até sua placa embora. Coisa de louco, só quem viu para acreditar.

O Dudu de Morro Agudo cantava a música “Sou do CLAM” e, do nada, quando chegou o momento em que K2 deveria entrar, este apareceu rimando no palco. Ninguém o tinha visto, ele acabara de chegar, depois de passar o maior veneno no trem por conta da chuva. Mais um pouco e resolvi encerrar o lançamento, antes que alguma coisa pior acontecesse. Fomos então para o bar em frente. Tirando eu, que estava na responsa, o resto estava tudo embriagado, pra não dizer bêbado.

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Cheguei ao bar e a cena era o Douglas Kim – que nesse dia pas-sou a ser chamado de Skim – servindo no balcão, e o Dudu de Morro Agudo na chapa, assando uns hambúrgueres. Os caras tomaram conta do lugar geral. Resolvi que tiraria eles dali – senão alguma merda ia dar –, convidei os mais chegados, os amigos de fora do bairro, para uma pizza na Nova Barão.

Um foi levando o outro, e sei que baixou1 na Barão quase todo mundo que estava no bar. Pedimos umas três pizzas e cerveja, muita cerveja. Vendo que ali tudo estava meio que no meu nome, decidi fechar a conta e, dali em diante, quem pedisse mais cer-veja pagaria. O Douglas Kim já havia pagado tudo, minutos antes de mim, com a mesma idéia: dali em diante cada um deveria pagar o que pedisse. Aproveitei a conta paga e vazei. Avisei só o Dudu e o K2, que dormiriam lá em casa. Mas eles sabiam o caminho, e os deixei lá. Os caras apareceram às duas da manhã. Foi um dia inesquecível, uma grande bagunça, mas lancei meu segundo livro, enfim. Até choveu, mas lancei.

No dia seguinte, quando íamos à padaria comprar pão, eu, Dudu e K2, víamos o estrago que a chuva causara no bairro. Várias árvores derrubadas, telhas quebradas por toda parte, pessoas em cima das casas fazendo reparos. O Itaim Paulista podia nem saber que no dia anterior fora lançado um livro com o subtítulo O cotidiano do Itaim Paulista, mas da chuva dificilmente esque-ceriam. Ainda havia umas enormes pedras de gelo no chão.

Assim, nessa loucura, lancei meu livro no Itaim. Depois, ainda fiz mais dois lançamentos: um na Ação Educativa, que colou a Logiodice em peso, e outro na Cooperifa, onde eu já era um pouco conhecido.

Menos de um mês depois, fiz o 4º “Favela toma conta”, pela pri-meira vez no dia 12 de outubro – Dia das Crianças. Depois, até 2007, fizemos sempre nessa data. Hoje tornou-se obrigação.

1 Aparecer, chegar.

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Essa é outra edição de que não tenho um flyer para relembrá-la direito. Só sei que estava negociando com o Cascão de trazer o Trilha Sonora do Gueto, que estava estourado com o sucesso:

—Sou vida loka, é né jão...às vezes na Diogo se pá lá no fundão.

“Um pião de vida loka” é o nome da música. Fechei com o grupo, mas ele não saiu nos cartazes, que já tinham sido feitos. Então foi anunciado como atração surpresa.

Lembro que eu falava durante a festa no microfone:

—E mais tarde tem uma atração surpresa. “Sou vida loka é né jão.”

Todos já sabiam quem era, a expectativa enorme. Seria a pri-meira grande atração de fora que eu traria. Antes, houve aquele inesquecível show do RZO para arrecadar fundos pro meu livro.

Dessa época, destaco o apoio do Carlinhos Boné. Hoje em dia, estamos meio longe devido a besteiras – não somos tretados, só nos falamos e nos vemos bem menos –, mas o considero por tudo em que me ajudou no início de carreira, seja divulgando os eventos ou os meus livros.

Vieram, no 4º “Favela”, os grupos Ideológicos, EXL e outros, além do Trilha Sonora do Gueto, que quebrou tudo. Foi um show mara-vilhoso, com as crianças invadindo o palco e tudo mais. A pro-pósito, falando em crianças, distribuímos os doces que o mano Ricardo descolou na distribuidora em que trampava, e isto virou tradição: fazer a festa no Dia das Crianças e dar doces.

Essa foi também a primeira vez que fizemos o “Favela toma conta” em frente aos prédios do CDHU, na região do Jardim Olga, onde depois virou o local número um. A festa rola entre os prédios – mais de dez – e a favela do Torresmo, como chamam. O Dia das crianças também virou oficial, porque nosso forte são elas. Afinal, festa de dia na favela é o que mais tem.

No primeiro ano de existência, o “Favela toma conta” realizou quatro edições. Isso era surpreendente. Por isso só, já tinha se

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tornado um evento tradicional, e fiquei bastante conhecido por conta de organizar essa festa.

O livro seguia naquelas, vendia aos poucos, de mão em mão, de mano em mano. Surgiam algumas matérias na mídia também, por conta do segundo livro. O Alessandro Buzo ia ficando mais conhecido.

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O ano de 2005 começou sem novidades. Eu trampando normal-mente na Logiodice, vendendo meus alimentos, e articulando o próximo “Favela toma conta”, que seria de novo nos prédios do CDHU. A data ficou acertada para 26 de março de 2005 e, a par-tir dessa edição, tenho os registros de todos.

Cada vez mais me enrolava na Logiodice. Já tinha feito mais tre-zentos livros, e mandado mais alimento para Valentina – esta virou minha principal forma de pagá-la –, mas a firma tinha altos e baixos. Nossos preços não andavam muito bons, e a gente perdia vendas, pois clientes iam desanimando.

Eu pedindo direto para sair – ora para ir à editora, ora para dar entrevista. Meu patrão me apoiava, mas tinha medo de que os outros funcionários se sentissem no direito de fazer o que bem entendiam. Fomos levando, e trabalhei durante 2005 todo na Logiodice. Finalmente, me firmei em uma empresa – apagando aquela imagem de funcionário que pula de galho em galho –, e retomei a confiança dos clientes.

Conheci uma escritora de Guarulhos, Babi Akylla, que, se não me engano, me viu na TV – pois passei de madrugada no SBT, dando entrevista para o Ney Gonçalves Dias. Ela dizia ter um livro e trezentos exemplares para doar à periferia, e eu seria “o escolhido” para fazê-lo chegar lá. O livro era de auto-ajuda e se chamava Vivendo com a vida. Ela os trouxe à minha casa. Era

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jovem, magra, loira, muito delicada, diria que bonita, e uma sim-patia. Peguei seus livros, não sei se trezentos ou quinhentos, e saí dando para quem passava na minha frente. No trem, o distri-buí para todo mundo do último vagão, pensava “Já que é grátis, vamos incentivar a leitura onde é preciso”. Amigos de trabalho na Logiodice ganharam, acho que a firma toda ganhou, por onde eu passava, distribuía – e divulgava, por tabela – a Babi Akylla.

Passaram uns 15 ou vinte dias, e a Babi Akylla era a estrela maior da periferia. Desses baratos de auto-ajuda nunca gos-tei. Li o livro dela, e era bacana, mas não a minha praia. Em compensação, o povo adorou, amou e comentou o livro. Até hoje, de vez em quando, alguém que o ganhou de presente, o elogia. Por tabela, me ajudou, pois, com tanta gente falando de livro comigo, ia vendendo o meu.

Separei, então, cem exemplares do livro e marquei de ela fazer uma tarde de autógrafos no 5º “Favela toma conta”, em frente aos CDHU, na Altura do Jardim Olga, travessa da Estrada Dom João Nery, maior quebrada.1 Ela topou. Saiu no cartaz: presença da escritora Babi Akylla autografando seu livro Vivendo com a vida – distribuição de cem exemplares. Dei a maior moral, já falo na seqüência em quê, e como rolou no dia.

O 5º “Favela toma conta” teria shows com: Tribunal MCs, Banka Terror, DCM, Variuz, Autênticos MCs, Conexão Local, Walter Limonada, EXL, MC Tabaco e Ideológicos. Havia ainda no cartaz Calado e Big Richard, que não puderam vir no dia.

O Big Richard tinha feito parte do elenco do seriado “Turma do Gueto”, da Record, mas o conheci pessoalmente na Cooperifa. Nunca oferecia um centavo – porque não tinha –, então não ficava encanado quando alguém não podia vir. O break era com o Eduardo e o Andrezinho – já falo deles – e o grafite com o Magu – outro que não colou. A apresentação de Alessandro Buzo, eu não tinha como não ir, todos os B.O. no meu nome. E

1 Neste caso, um lugar derrubado, que não seria qualquer um que iria.

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vamo que vamo com o Trio do Turco Louco – que por tabela me ajudou, mesmo sem eu nunca, até hoje, ter trocado uma idéia com ele, só tê-lo visto e cumprimentado em eventos – como o Prêmio Hip Hop Top, para o qual fui indicado duas vezes mas nunca ganhei.

Fora os que faltaram, eram ainda dez atrações, e foi rap das 13:00h às 22:00h. Favela em peso, casa cheia.

O Tribunal MCs nesse dia fez um show impecável. O Walter Limonada trouxe sua descontração, e cada um cumpriu muito bem o seu papel. O Variuz, da Zona Norte – salve, inútil –, trouxe uma banca bem loka. Os caras bebiam um barato numa garrafa descartável pet de dois litros, riam e dançavam – não break, tipo um reggae – ao som de rap, firmeza total os manos, e o som bem loko.

Lembra que a Babi tinha uma tarde de autógrafos na favela? Então. Um carro luxuoso – pelo menos pareceu – a trouxe até o local e foi embora assim que me localizaram, ela o chamaria por telefone quando fosse embora. Ela veio com uma criança, não lembro se filha ou sobrinha. Mano, impagável e inacreditável a cena dessa mulher na favela.

Muito bem vestida e maquiada, ela ficou no palco, até que eu a chamei ao microfone e a anunciei como uma escritora de Guarulhos que me tinha dado uns livros para distribuir. Disse que já tinha feito uma parte, e tinha ainda cem unidades ali para quem quisesse pegar. Uns quatro manos foram com pilha de 25 cada na mão, e a galera caiu em cima. Distribuímos em vinte segundos os cem livros e ela falou pouco, acrescentando:

— Vou descer aí agora e autografo o livro de quem quiser.

Quem quiser significou cem ou umas 98 pessoas. Mulheres, senhoras, manos e crianças a rodearam. Organizei meio que uma fila e a deixei no corre dela, com um da produção dando assistência, caso fosse preciso. Fui apresentar a próxima atra-ção e essa guerreira, de quem depois perdi o contato, atendeu

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com sorriso e paciência cada uma das pessoas. Além disso, tirou foto, conversou com aqueles que na fila de autógrafos já tinham achado no livro uma frase com que concordavam ou que admiravam. Depois dessa maratona, ela ainda curtiu uns três grupos cantarem, antes de chamar o carro para ir embora. Vendo de cima do palco um monte de moleque descalço sendo atendido com respeito por ela, a Babi definitivamente ganhou minha admiração.

Eduardo B.Boy mora no fundão de Itaquaquecetuba, quase Arujá. Ele começou a colar na segunda edição. Sempre que se formava uma roda, ele dançava e sonhava, queria ajudar, fazer o que fosse preciso para ajudar, queria chegar longe e corria, como corre o Eduardo. Aí, pra dar uma força, coloquei no car-taz dessa edição que ele dançaria um break com o Andrezinho. Desde então, acho que até o 15º, ele só não veio em umas duas edições, mas várias vezes teve o seu nome no cartaz.

Um cara esforçado, batalhador, que tentou muito até conseguir um apoio de alguma marca de roupa. Com a ajuda do locutor Fábio Rogério, um cara muito gente boa, encontrou esse apoio na Firmeza, do Brás, e já saiu até em anúncio da marca na revista Rap Brasil.

Eduardo estava trabalhando há pouco tempo na construção civil, se matando como pião de obra e, desde abril de 2008, ofe-reci – e ele aceitou – o mesmo salário da obra para trampar para mim na loja Suburbano Convicto, onde realizo o terceiro evento “Encontro com o Autor”. Eduardo B. Boy é um da banca do Suburbano Convicto e do “Favela toma conta”.

Quanto ao Andrezinho, vamos falar sem demagogia, ele dan-çava muito mais do que o Eduardo. Sem querer menosprezar o Eduardo, nada disso, é que ele dançava muito, dava show. Esse mano eu sabia que tinha envolvimento com o tráfico de drogas ou sei lá o quê, mas, para mim, nunca teve nada a ver, pois ele não chegou pedindo para vender drogas no evento, mas sim para dançar um break na festa. E então, eu disse que sim e o

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coloquei, junto ao Eduardo, como atração. Inclusive pensava na possibilidade de, se envolvendo com o break, o Andrezinho sair da vida do crime, mas isso não aconteceu, infelizmente. O cara dançou e representou em umas duas ou três edições do favela, mas depois fiquei sabendo que estava preso. Aliás, quando foi preso, estava anunciado no cartaz de um “Favela toma conta”, em que não pôde colar, por força maior.

Um dia, depois de mais uma jornada de trabalho, andando no Itaim Paulista, no meio daquela muvuca saindo do trem à tarde, horário de pico, um cara olhou pra mim e disse:

—Você que faz aqueles evento lá na favela ?

—Pode crê mano, eu mesmo.

Essa é a hora da verdade das ruas, hora em que o que você plan-tou será colhido, seja pro bem ou pro mal, dependendo do que se plantou. Outra vez, no metrô, aconteceu também, mas sobre essa conto mais pra frente. O cara continuou falando:

—Estava preso com um mano que falava bem pra porra de você e do evento, ele disse que dançava na parada.

—O Andrezinho – falei logo, só podia ser.

—Ele mesmo. Cheio das tatuagens, dançava lá no X e os manos o admiravam. Aí ele dizia que dançava no “Favela toma conta”, e os malucos zuavam dizendo que era caô. Mas ele tirava de letra, afirmando ser verdade.

—E era mesmo – disse eu, e acrescentei – vai com Deus, mano, bom descanso.

—Falou cara, pra você também.

Esses encontros são o que paga, é o retorno do que você é, você é recebido da forma com que o seu trabalho é recebido nas ruas. Só os verdadeiros passam por isso, porque estão ali chegando do trampo de trenzão, e não de carro importado.

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Nunca mais ouvi falar do Andrezinho. Não sei se ele continua preso, espero que não. Espero também que um dia o seu talento o tire da vida loka do crime. Se vier a ler esse livro, saiba que você dança muito, mano, corre atrás.

Esse foi o 5º “Favela toma conta”. Assim seguimos, fazendo his-tória e amigos. Não sei de onde eu arrumava força para buscar cada detalhe do evento, que não só não tinha nenhum apoio financeiro, como também não tinha dinheiro particular apoiando – o que eu ganhava mal dava para viver. Naquele tempo, um ou outro livro que eu vendia era transformado em feira e supermer-cado. Paguei o livro com comida, e agora comprava comida com a venda dele, literatura de sobrevivência mesmo.

LITERATURA MARGINAL.

LITERATURA PERIFÉRICA.

Nóis que tá2.

2 Gíria nova, significa “A gente que está”.

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Cap.19

Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto

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Desde aquele “Favela” lá de trás, em que eu disse que receberia livros para a organização de uma biblioteca comunitária, que eu recebia doações. Em minha casa de dois cômodos, já não cabia mais nada, impossível. O bom disso é que com tantos livros eu lia muito, aliás, eu leio muito. Mas chegou uma hora em que a minha esposa Marilda deu o veredicto:

—Ou sai você ou saem esses livros.

Era livro debaixo da mesa, em cima das cadeiras, no guarda-roupa, por toda a parte. Comecei, com mais afinco, a arrumar um local para instalar a biblioteca. Foi quando, o Nel Costa, presidente da Santa Bárbara – sempre ele –, me levou até uma salinha vazia e disse:

—Aqui serve para ser a biblioteca?

—Claro que serve.

—Então é sua.

—Obrigado, Nel. O nome será Biblioteca comunitária Suburbano Convicto, e vocês são parceiros.

Depois, a Cássia, esposa do Nel, me disse que fazia tempo que sonhava em ter uma biblioteca, e tinha, inclusive, pedido vários livros como entrada em eventos na quadra. Juntamos o meu acervo com o dela e tínhamos uns mil livros. Hoje, a biblioteca deve ter uns 3 mil, não cabe mais nada, nem sobra dinheiro para

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225Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto

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construir um local maior e abrigá-los direito. Há doações até hoje encaixotadas por conta disso. Mas um dia a gente chega lá.

Voltemos a 2005. Tudo bem, tínhamos livros, e uma sala onde os colocaríamos, mas precisávamos de prateleiras. Foi aí que o meu primo Magu salvou a pátria. Ele trabalha – até hoje – num grande escritório de advocacia na av. Paulista – para se ter uma idéia do que quero dizer com grande: eles tinham, hoje estão em outro ponto da Paulista, dez andares do prédio ao lado do Parque Trianon. Então. O escritório trocou todas as prateleiras, há uns seis meses, da biblioteca da firma. Eram várias, e abriam pros dois lados, que foram pro almoxarifado. Como de lá tinham que ir para algum outro lugar, eles as doaram para uma insti-tuição de caridade, que foi retirá-las. Mas não coube tudo no caminhão que veio, então eles deixaram o resto e nunca mais vieram buscá-lo. Sobraram cinco prateleiras que, abrindo pros dois lados, viravam dez. O Magu, sabendo da situação, chegou em algum patrão ou superior imediato dele, e solicitou aquelas prateleiras que a instituição não voltou para retirar e que, há tempos, atrapalhava o espaço físico do almoxarifado. Explicou que só faltava isso para nós montarmos uma biblioteca comu-nitária no nosso bairro. E eles autorizaram. Não divulgo o nome da empresa porque não sei se eles querem, mas valeu mesmo.

Da av. Paulista ao Itaim Paulista são mais ou menos uns 45 km. Do centro, são 38. Descolei, na Subprefeitura, um caminhãozi-nho meia-boca, mas com, o principal, o logotipo da PMSP na porta. Fomos buscá-las – acho que eu e a Marilda –, e o Magu estava lá a trabalho, porque era dia de semana. Ao parar o cami-nhão, colaram um carro do DSV e outro da PM – é foda parar de caminhão na Paulista –, mas com o logo dos homi – PMSP – os guardas só perguntaram:

—Demora muito aí parado ?

O tiozinho motorista:

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227Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto

—Cinco minutos, são só três dessas aí. – disse, mostrando a primeira prateleira que eu e o Magu já trazíamos.

—Tudo bem – disse o cara do DSV. E saíram fora, juntos da PM.

Acabou demorando uns 15 minutos, porque eram cinco e não três, e a última enganchou em não sei o quê, deu um trabalhão. O chefe da expedição, feliz de se livrar delas, e eu, feliz em rece-ber o entulho, e transformá-lo de novo numa biblioteca.

Em sua inauguração, no dia 23 de julho de 2005, falamos ao microfone, eu e a Cássia – esposa do Nel. Colaram a bateria da Santa Bárbara e a DGT, que trouxe trezentos livros. Essa minha reaproximação da DGT fez o Kim se afastar, mas ele tinha tre-tado com todas as suas relações e só faltava eu. De boa, ele sumiu e não colou mais. Até o entendi depois, o cara quis zerar a vida dele, e se tranformar numa outra pessoa. Estranho. Mas eu respeito, Deus deu a vida para cada um cuidar da sua. Essa é a última vez que falo desse mano aqui, e quero deixar claro que ele me ajudou muito e lhe serei sempre grato. Ele pegava no meu pé para ler, estudar, fez e me deu o blog Suburbano Convicto – que é da hora, há anos atualizado diariamente, e foi citado na revista Galileu, em março de 2007, como um dos TOP 10 margi-nais do mundo, único da lista a representar o Brasil.

Por bem, a Biblioteca foi montada e eu, trabalhando das 8:00h às 18:00h, não poderia administrá-la, então ela ficou a cargo de quem estivesse na secretaria do bloco, responsável também por disponibilizar os livros aos seus freqüentadores. Isso foi feito e acontece até hoje. Há tempos virei meio que seu patrono. Já doei tudo o que levei pra lá, nada é meu – de livros a pratelei-ras doei com muito carinho para a Santa Bárbara. Visito-a sem-pre que preciso procurar um livro ou quando a imprensa quer conhecê-la, ajudando assim na sua divulgação e na do bloco que, a partir de 2009, vira escola de samba.

O meu principal projeto no momento, ainda não realizado – sem contar o de uma casa maior –, é montar o Espaço Cultural

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Suburbano Convicto, onde teremos – em breve, se Deus, ou algum patrocinador filho de Deus, quiser –, salas de palestras e de oficinas gratuitas, a Biblioteca comunitária Suburbano Convicto II e, para gerar renda, uma lanchonete sem bebida alcoólica junto a uma filial da loja Suburbano Convicto.

O dia em que o Espaço existir, deixarei de ir diariamente à DGT – só para gravar o quadro Buzão, depois falo disso –, e ficarei pes-soalmente no Espaço, cuidando, aí sim, de uma biblioteca, coisa que quero muito fazer. O Espaço terá de ser no Itaim Paulista, como uma retribuição ao bairro onde passei minha vida e onde moro até hoje. Será uma forma de multiplicar os antenados em cultura e literatura, trarei muitos famosos com conteúdo para bate-papo ou palestra sobre diversos temas, ligados a arte: música, cinema, literatura etc. Se é para sonhar, vamos pelo menos sonhar com classe.

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Cap.20

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acar-reira

conso- lidan-do

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acar-reira

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Dias antes da inauguração da Biblioteca Suburbano Convicto – em 23 de julho de 2005 –, mais precisamente no dia 16, acon-teceu o 6º “Favela toma conta”. Pela primeira vez no vão de entrada da favela, entre o D’Avó e seu Mc Donald’s no estaciona-mento ao lado desse vão e o Viaduto da China, ao lado da Unidos de São Miguel. Justamente onde fizemos a terceira edição, só que, em vez de ser debaixo do viaduto, era nesse vão, entre o hipermercado e ele.

Sempre, graças a Deus, tive trânsito livre em várias favelas do Itaim e fora dele, mas nunca me envolvi em nada errado. Não ia mais às quebradas pegar droga, ia às quebradas para levar o hip-hop pros moleques, para evitar que histórias como a do Andrezinho se repetissem. E foi o que fizemos pela sexta vez, pela sexta vez a favela tomou conta.

A edição teve 12 atrações, e isso porque um bonde do Rio de Janeiro, que fora anunciado nos cartazes, devido ao responsá-vel – irresponsável – não ter arrumado o transporte com que todos contavam, não veio e, portanto, não cantou. Fiell, Dinho K2, Manuscritos e Dudu de Morro Agudo, na época todos do Enraizados. Hoje, Fiell e K2 montaram outras organizações e trabalham separados, só o Dudu de Morro Agudo que seguiu com vários aliados o Movimento Enraizados, que em 2008, inau-gurou lá em Morro Agudo – Baixada Fluminense, Nova Iguaçu –, o seu espaço. A inauguração contou com a presença do prefeito

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Lindberg Farias e de uma representante enviada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil. O Enraizados foi, em 2007, o 1º colocado do Prêmio Cultura Viva, do governo federal – como o prêmio era de R$30 mil, viabilizou o projeto. O Espaço Enraizados é o modelo em que quero me basear para montar o Espaço Suburbano Convicto, assim como a loja Suburbano Convicto teve como influência a Loja 1 da Sul, do meu amigo Ferréz. Mas voltemos a 2005 e ao 6º “Favela toma conta”. Além dos quatro grupos do Rio de Janeiro que não vieram, ainda eram 12 grupos.

Nos cartazes, estava anunciado também o Andrezinho – última festa que ele colou antes de ser preso – e o Eduardo B.Boy, no break. No grafite, não citava quem viria, vieram uns moleques da quebrada muito bons. Os shows foram com Tribunal MCs – como já disse, o grupo que mais cantou no favela –, Nego Chic e Os Guerreiros – que, depois, virou só Os Guerreiros –, do Capão Redondo. Aliás, salve Nego Chic, sangue bom. Esse grupo tem como integrante também o poeta e escritor Fuzzil, entre outros manos. Vieram mais Provérbios 23, do rapper Breakdow – que hoje também é só Breakdow –, Filosofia de Rua – salve Fox e toda rapa –, Bonnne Dee Band Bom, Autênticos MCs, D´Elementos, Alerta Vermelho, EXL, SZL, de Mogi das Cruzes, e ainda, direto de São José dos Campos, o grupo Sobrevivência Consistente. Ah, tinha ainda o VRL, de Itaquá, que também não veio.

Não gostamos muito desse local. O problema é que o som não arrasta gente. De um lado, temos o viaduto e, depois, um posto de gasolina. Do outro, temos o Hipermercado D’Avó e, na frente, a av. Marechal Tito. Atrás, a linha do trem – nesse trecho entre São Miguel e Itaim Paulista. Então, só cola mesmo o povo do Rap, que veio exclusivamente ao evento. Não é como nos pré-dios do CDHU, que só de moradores vem um monte. Ainda ten-tamos, mais pra frente, fazer nesse local a oitava edição, mas ficou comprovado que ali o público é pequeno, então nunca mais levamos o evento para lá.

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Apesar disso, o 6º “Favela toma conta” foi um sucesso. Não de público, mas correu tudo certo, e os show foram bem legais. O Toni Nogueira, da DGT Filmes, veio filmar, e isso valorizou os grupos. Desde essa edição, a DGT esteve em quase todos os eventos. Temos um grande material filmado – parte nós edita-mos –, mas comercialmente nunca colocamos um DVD na rua. Agora virando livro, não custa sonhar. Foi então que começou a me fazer falta o livro do trem, pois quem me conheceu depois sempre perguntava:

—E o primeiro livro?

Decidi que não o relançaria da mesma forma, tinha sido um pouco inocente, iniciante, demais, queria ser mais crítico. Afinal, cinco anos se passaram desde o seu lançamento e a Linha F da CPTM continuava um lixo. Reescrevi a parada e relancei com novo subtítulo. Desta vez: O trem – contestando a versão oficial. E, consolidando minha carreira de escritor, lancei meu 3º livro.

Nesse ano, também comecei a escrever o quarto, pela primeira vez 100% ficção. A história de uma mulher viciada em Crack. Para dar duplo sentido – confundir com as Guerreiras do Hip Hop –, intitulei a nova obra que lançaria no ano seguinte de Guerreira.

O novo trem vendeu bem, e o lancei no Itaim Paulista, na Ação Educativa, no centro, e na Cooperifa.

Mas voltemos. Entre o sexto e o sétimo “Favela toma conta”, conheci uma pessoa que foi muito importante para o evento, e ajudou, de fato, em várias edições. Seu nome: Pádua. Ele traba-lhava na Secretária Estadual de Cultura, na rua Mauá, 51. Mais precisamente, ele era do Projeto “Fábricas de Cultura”, em que entrei como arte-educador.

O projeto durou um ano. Tinha tudo para dar certo e ter conti-nuidade, mas infelizmente – para os arte-educadores que per-deram o emprego – e para as comunidades – nove bairros de

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quebrada –, que perderam as diversas oficinas de dança, canto, coral, capoeira, graffite e muito mais, não deu.

Fui designado para dar aula de leitura numa associação parceira do projeto, no Itaim Paulista mesmo – aliás, no fim da rua de casa, ia a pé –, a ABUMM – Associação Beneficiente União Por Um Mundo Melhor. Lá, tinha uma turma de 12 a 20 crianças, na faixa de oito a 12 anos. Não era fácil fazê-los prestarem atenção às aulas, de uma hora e meia a duas, falando de literatura, lendo historinhas, mas acabei conquistando a maioria. Vejo-os – os meus alunos – direto pela rua. Todos moram muito próximos de casa, e carinhosamente me chamam de “professor”.

O ponto alto foi um passeio em que os levei para assistir à expo-sição de Rodin, na Pinacoteca do Estado. Tudo começou quando surgiu um papo de que podíamos fazer aulas externas, levando os jovens – no meu caso, as crianças – para algum lugar. Nisso, eu já tinha uma amizade com o Pádua, e descolei com ele duas Vans de luxo – coisa fina mesmo – para levar a molecada ao Parque da Luz e à Pinacoteca ver o Rodin. O lanche rachamos eu e a ABUMM.

A molecada curtiu o museu e o parque – que é muito bonito, e conta com um aquário subterrâneo muito bacana mesmo. O único porém é que estava cheio de mulheres da vida,1 umas há anos na profissão. Mas, além de mim, da Marilda e da outra amiga da ABUMM que foi ajudar, ninguém mais na nossa turma sabia o que vinham a ser aquelas senhoras ali paradas, então passou batido. O passeio foi um sucesso e, no meio da bagunça da volta, tinha criança imitando a obra “O Pensador” de Rodin, e outros contando histórias que conheceram na aula, foi marcante.

O Pádua vestiu a camisa e, não sei como, viramos amigos pes-soais. Eu ia à secretaria direto, freqüentava ali bem mais do

1 Prostitutas.

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que qualquer outro arte-educador, uns nem iam lá, davam suas aulas e recebiam no banco.

Eu e o Pádua começamos a articular um palco e um som para o 7º “Favela toma conta”, que seria no Dia das crianças de 2005. Ele me disse que, se não arrumasse do Estado, alugaria o que fosse necessário e algum amigo dele – pois conhece muita gente – pagaria. Foi o que aconteceu. Ainda assim, o Pádua entrou com R$800,00 para a compra dos doces que, pelo segundo ano, dis-tribuiríamos no evento. Eu fechei uma atração de peso, o rapper Thaíde, que veio só pelo transporte – no total, acho que uns R$400,00 –, que arrumei em outro local.

Fomos articulando e fechando as coisas. O Pádua garantindo que estava tudo OK, e eu num medo da porra de não ir palco e som nenhum. Mas chegou o dia, e uma das cenas mais inusi-tadas da história do “Favela” aconteceu. Cheguei por volta das 7:00h do dia 12 de outubro de 2005 para mostrar ao pessoal onde seria montado o palco, depois fui embora e só voltei por volta de meio-dia. Quando cheguei no CDHU do jardim Olga, não acreditei no que meus olhos estavam vendo. Ali, no local onde parávamos antes o Trio Elétrico, estava um palco gigante, lem-brava os das festas de fim de ano na avenida Paulista. Era desse porte, parecia um sonho, deu ao evento um status de grande, de uma coisa em evolução. Foi demais.

Então, no mega palco, com som de primeira e vários microfones sem fio, fizemos a sétima edição do “Favela”. Uma edição histó-rica, e, pela segunda vez, no Dia das Crianças.

Vamos às atrações.

7º Favela Toma Conta – Especial Dia das Crianças.12 de Outubro de 2005Shows comTHAÍDETribunal MCsFilosofia de RuaLivre Ameaça

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Walter LimonadaConexão LocalCausa PUltima ProfeciaRealistas NPN – direto de Belo Horizonte-MGEXLAutênticos MCsAlmas ErrantesTerror Periférico Ideológicos.

Desta vez, não faltou nenhuma das 14 atrações anunciadas no cartaz, e a festa só acabou umas 23:00h. Eu cansado, mas feliz.

Nos cartazes tinha ainda Break com Andrezinho – mas ele foi preso antes – e Eduardo, DJs Zóio – que por várias edições emprestou suas Pick-ups – e Guga. Fora os doces – foi uma grande onda distribuí-los –, numa quantidade maior que a do ano anterior.

Pegou embalo a parceria Buzo e Pádua, então decidimos fazer uma festa de fim de ano. Mas, antes, fui surpreendentemente indicado para o Hutúz 2005 na categoria Ciência e Conhecimento – a maior premiação do Rap Nacional, que acontece no Rio de Janeiro, organizada pela CUFA. A maior surpresa era pelo fato de eu pertencer ao Movimento Enraizados – pois, por motivos que não vêm ao caso, a ligação deles, no Rio de Janeiro, com a CUFA não era das melhores –, mas, como fui indicado, dei o meu jeito e fui pro Rio.

Saíram uns ônibus grátis de São Paulo com vários grupos, mas fui por conta própria. Aproveitei, e passei uns dias com a rapa do Enraizados que, no dia da premiação, foi em peso ao Canecão comigo. Pensamos numa grande festa se ganhássemos, mas o Prêmio na minha categoria foi para o escritor Ferréz – mere-cido, porque ele veio antes de mim e era minha referência para

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vários corres. Não fiquei chateado, e sim feliz por ele. Para mim, já havia sido uma honra estar entre os cinco finalistas.

Por conta do Hutúz, consegui iniciar um marketing com a Loja de Roupas Conduta, que, a partir de então, me vestiria. Não sabia que seria uma parceria tão duradoura, mas hoje, em 2008, ainda sou patrocinado por ela, e inclusive virei freguês, mesmo depois de ter montado minha loja.

Voltei do Rio animado, com a carreira crescendo e os prepa-rativos para mais um favela em andamento, iríamos para a 8ª edição.

E então rolou, no dia 11 de dezembro de 2005. Pela última vez – pois vimos que ali não dava mesmo –, ao lado do D’Avó, da Marechal Tito. As atrações foram 12, sem contar o Alerta Vermelho, que não pôde vir por força maior. Abaixo, a programação.

8º Favela Toma Conta – Especial de Fim de Ano11 de Dezembro de 2005, no D´Avó da Av. Marechal Tito.Shows comSANDRÃO – RZO – o grupo tinha parado, a Negra Li gravou com o Helião pela Universal e o Sandrão estava com poucos shows, mas o seu nome era forte, como é até hoje.Dudu de Morro Agudo – direto do Rio de JaneiroTribunal MCsOs GuerreirosEXLUnidos nas IdéiasAspecto PositivoErupção VerbalTempo FechadoMc TabacoFilosofia Marginal RH2P, do Parque Bristol.

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Assim como em 2004, nosso primeiro ano de evento, consegui realizar quatro edições de novo em 2005, consolidando de vez o nome “Favela toma conta”. Mas a vida seguia e o trampo de vendedor de alimentos também. Continuava firme e forte na Logiodice, a firma é que não ia lá essas coisas, faltava muita mercadoria, e os nossos preços também não ajudavam.Eu estava de saco cheio do emprego e do ramo, mas não dava ainda para pensar em largar tudo.

O ano de 2005 marcou ainda a minha aproximação do Sarau da Cooperifa, um quilombo cultural organizado pelo poeta Sérgio Vaz, na Zona Sul de São Paulo. O Sarau em si acontece toda quarta-feira à noite, no Bar do Zé Batidão. É muito talento reu-nido num só local, e passei a ir sempre que tinha oportunidade – porque moro no extremo da leste, e o sarau é no extremo da sul, ou seja, são bem mais de 50 quilômetros de distância.

A Cooperifa, em 2005, iniciou o Prêmio Cooperifa. Eles não tinham votação, essas coisas, simplesmente davam o mesmo a quem, de uma forma ou de outra, corria pela periferia. Fui um dos 100 homenageados, e fiquei muito feliz. Era o primeiro prê-mio da minha vida.

No dia da entrega do 1º Prêmio Cooperifa, a casa estava lotada, não cabia mais ninguém. Inclusive foi instalado um telão na rua, para quem ficou de fora poder assistir. Nesse dia, ganhou também o Mano Brown, dos Racionais MCs, com quem troquei uma idéia. Ele ficou ali no meio da galera na maior humildade, e cenas dele nesse dia foram utilizadas no DVD “100% Favela”, que o Ferréz fez no ano seguinte com uns parceiros.

Assim, se encerrava o ano de 2005. Quatro edições do favela, indicação ao Hutúz, prêmio Cooperifa e muita disposição para seguir na caminhada.

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Cap.21

2006 – Só duas edições do Favela

só duas

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só duas

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Se 2004 e 2005 foram marcados, cada um, por quatro edições do “Favela toma conta”, 2006 foi osso,1 e só consegui fazer duas festas, a 9ª e a 10ª. Mas foi válido, com certeza, até porque não adiantava fazer por fazer, tinha que vir do coração. E esse ano ficou marcado como o último em que trabalhei de empregado.

As coisas iam mal na Logiodice. Eu faltava muito, saía mais cedo, chegava mais tarde, só que o sr. Pedro – meu patrão – sabia exa-tamente onde eu estava e o que tinha ido fazer – geralmente dar uma entrevista ou fazer algum corre extra. Ele até curtia, mas os outros – que cumpriam a mesma função que eu – se achavam com o mesmo direito, e isso foi minando minha chance de seguir na cultura e no emprego. Então, fiz uma coisa que poucos teriam coragem de fazer. Chamei meus patrões, disse que minha car-reira estava prestes a decolar, que não dava para eu ir todo dia trabalhar, e perguntei se eles não manteriam minha carteira de clientes, e eu atendia de casa, pois tinha telefone, internet e fax. Eles concordaram, e me desliguei da Logiodice em 1 de março de 2006, indo atender meus clientes de casa.

No começo, deu muito certo. Outra vida, acordar de manhã e não ter que enfrentar trem lotado, vender de chinelo e ber-mudão, tirava um pedido e fax direto para Logiodice, as coisas foram andando perfeitamente. O ciúme por parte dos outros

1 Indica dificuldade, podendo se aplicar a alguém que está sem dinheiro também.

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vendedores foi inevitável, mas cada um com seu cada um. Só ia à Logiodice no dia do pagamento.

Vendi em casa por quase um ano, antes de largar esse trabalho de vez. Só que chegou uma hora em que os compromissos eram tantos que nem em casa eu parava mais. Os clientes não me achavam e ligavam para a Logiodice, e, eu não estando, qual-quer um tirava meus pedidos. Então, o caldo foi desandando.

Não queria deixar o evento morrer, mas estava difícil de arrumar a estrutura. “Nóis tarda mas num falha”, e, na parceria com o Pádua, marquei o 9º “Favela toma conta” para maio de 2006, de novo no CDHU.

Trouxe algumas atrações de peso, e a festa bombou. Casa cheia, como na 7ª edição, que teve o Thaíde. Segue a programação.

9º Favela toma conta21 de Maio de 2006Show comExpressão AtivaClã NordestinoDi FunçãoAna Paula – A Liga, de São José do Rio Preto.Visão UrbanaHórus do Mandrake, do Site Rap Nacional.Realistas NPN, de novo de BH,Guerrilha Urbana, Fiell, do Rio de Janeiro Carlão + Um Guerreiro da Leste.Da Baixa, outro do RJSpainy & TruttyDCMConexão Popular e Revés

Quinze grupos de rap, uma coisa de gente loka da cabeça. Era meia-noite quando, não agüentando mais, encerrei a festa que, ainda teve Sérgio Vaz, os poetas da Cooperifa – para quem mandei uma van – e o King Nino Brown – que deu uma idéia e

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discotecou um pouco. Não conseguia fugir desse esquema de muitos grupos, e isso atrapalhava um pouco as coisas. O show do Expressão Ativa, sem menosprezar as demais atrações, foi inesquecível. Os moleques da favela cantaram juntos cada sucesso.

Além dos doces, já tradição, sorteamos também três pares de convite para o Parque da Mônica, no Shopping Eldorado. Quem os descolou foi o Dê, que, como já disse, trabalha na Maurício de Souza Produções, e é o cara que faz a maioria das artes dos cartazes do “Favela”.

Eu seguia a vida vendendo alimentos de casa, escrevendo meu novo livro e articulando o próximo “Favela”. Mas 2006 estava difícil, e só rolou mais uma edição. Essa, é claro, no Dia das crianças de 2006, pelo terceiro ano seguido. Foi quando, de uma só vez, eu trouxe mais grupos de peso. O apoio do Pádua foi de ponta a ponta, inclusive no transporte das principais atrações.

Então, para de novo entrar na história, tivemos o 10º “Favela” – caraca, décima vez! O que rolou foi:

10º Favela toma conta – Dia das crianças12 de Outubro de 2006Shows comDe Menos CrimeTribunal Mc’sDMNAlvos da LeiCabalPeriafricaniaVersão PopularDCMMatéria RimaCLAM do RJSexto SelloEbenezer Rap

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Doze atrações, fora o Vozes do Gueto, do Rio de Janeiro, que não pôde vir. A quantidade de grupos ainda estava grande e, conse-qüentemente, o evento continuava acabando muito tarde. Mas estava valendo. De novo, foi sucesso total. O Bonga e o Derf – que ganhou o Hutúz 2005, no grafite – foram os que vieram representar esse elemento do hip-hop. Rolou ainda teatro: o Grupo Extremos Atos, com a peça Pedra maldita. Puta festa de responsa.

Estava animado, mas as vendas lá de casa já não estavam fun-cionando tão bem. Como naquele tempo o número de pales-tras pagas era bem menor do que hoje e o livro vendia mais no picado, foi ficando difícil de grana, e apertou um pouco o cinto – coisa normal na minha vida.

Outro círculo que se fechou foi as oficinas de leitura remu-neradas do “Fábrica de Cultura”. Só restavam as que eu fazia como voluntário na FEBEM, durante todo o primeiro semestre de 2006. No segundo semestre, idealizei e realizei o Primeiro concurso de literatura da Febem, que escolheu os dez melhores contos e as dez melhores poesias. Os internos escolhidos com seus textos vieram de suas respectivas unidades, no fim de ano, para um sarau que realizamos na Ação Educativa, no centro de São Paulo, outro grande momento da minha vida.

Um fato marcante do tempo das oficinas de leitura na Febem foi quando fizemos um sarau no stand da Febem, na Bienal inter-nacional do livro. Os internos da minha oficina deram um show e declamaram seus textos, ganhando a atenção de pessoas como o escritor Rubem Alves e o ator Milton Gonçalves. Na volta, na Kombi, íamos eu e a minha esposa Marilda no banco do meio e, atrás, três internos e um segurança. Eles estavam algemados, e só tiraram as algemas no local, no caso, no Anhembi. Então. Na volta, eles conversavam sobre tudo o que rolou, sobre a atenção que o Milton Gonçalves tinha dado para eles. Olhei para trás e vi que, naquele momento, as algemas não serviam de nada, pois eles estavam livres no pensamento. Quase chorei, mas fui firme para depois não tirarem barato de mim, nas aulas.

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Sem contar que, depois dessa apresentação na Bienal, teve a Páscoa, e o diretor Flagas, da Unidade Encosta Norte da Febem, no Itaim Paulista, onde eu fazia oficina, me ligou, querendo uma apresentação igual à da Bienal para os parentes dos internos, na festa de páscoa. Disse pra ele que era um dia para se pas-sar com a família, e que seria osso eu ir, mas acabei cedendo. Iria, mas somente se ele autorizasse a entrada da Marilda e do Evandro, na época com quatro anos. Foi o que fiz, levei-os comigo.

Chegando lá, muita demora. Uma enrolação para ligar o som que viria de uma igreja. Além do nosso sarau, teria uma banda da igreja. Fiquei ali conversando com internos e funcionários. Vários alunos da minha oficina me chamaram para conhecer seus parentes: pai, mãe, irmãos, avós. Nessa, o Evandro ganhou o mundo e corria para todo lado, sozinho, até pimbolim jogou com os internos. Todos eles ganharam ovo de páscoa – de quinta categoria, diga-se de passagem –, tinham 72 internos e vieram 72 ovos. Aí, o Evandro começou “Pai, quero um ovo. Pai, quero chocolate”, e eu explicando que, assim que acabasse ali, compraria um ovo pra ele, e que lá em casa tinham uns três ou quatro. Mas ele continuava “Pai, quero ovo, quero chocolate’. Aí, um interno veio e disse:

—Senhor, dá pra ele – e esticou a mão com o ovo.

—Mano, não precisa, ele tem em casa – respondi.

—Não como chocolate. Se não der pra ele, vou dar para outro mesmo – então, meio sem jeito, aceitei.

Tempos depois, aconteceu ainda um fato para lembrar esse dia. Estava no metrô e, desde a Estação Dom Pedro II, notei um cara bem alto me encarando. Não sabia qual era a dele, será que me conhecia dos corres culturais? Sei lá. Passou a Sé e, antes de chegar ao Anhangabaú, ele desviou de umas pessoas e parou na minha frente. A hora da verdade das ruas 2. Ele me disse:

—Você não é um mano que fazia oficina na Febem?

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—Pode crê, eu mesmo.

—Eu estava preso lá.

—Que bom que está na rua, agora é cabeça no lugar, e bola pra frente.

—Isso memô,2 senhor – ele seguiu – sabe quando todo mundo viu que você era mesmo firmeza total?3

—Hã – respondi eu.

—Naquela festa que teve.

—Na Páscoa – disse eu.

—Isso memô. Quando o senhor deixou o seu filho a pampa4 com os internos, sem temer em nenhum momento, ali você ganhou a cadeia inteira – o Metrô parou e era minha estação.

—Vou descer nessa, boa sorte pra você.

—Falou mano – nessas horas quem é, é. Quem não é, o cabelo voa.

Em 2006, ainda teve o lançamento do meu quarto livro, Guerreira, que foi independente e, pela terceira vez, na Edicon.

Depois, no ano seguinte, esse livro foi relançado pela Global Editora, na Coleção Literatura Periférica, e eu, então, cheguei às livrarias do Brasil – comento mais pra frente.

Fechei 2006 ganhando, pelo segundo ano seguido, o Prêmio Cooperifa. Além do mais, fui de novo – pelo segundo ano con-secutivo – indicado para o Prêmio Hutúz, na categoria Ciência e Conhecimento – filmes e livros. De novo, não levei, mas o prêmio ficou com a Cooperifa – de onde eu fazia e faço parte até hoje –, então me senti também vencedor.

2 Mesmo.3 Gente fina, pessoa bacana, legal. 4 Numa boa.

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Cap.22

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Na virada de 2006 para 2007, deixei de vez de vender alimento, não parava em casa. Com o fim das vendas e das oficinas do “Fábricas”, o Pádua tendo ido pro Japão e a dificuldade de entrar grana, me apertei bastante. Mas ia levando. Só tinha de pensar em como fazer para entrar algum.

Foi quando, numa reunião com o Toni Nogueira, na DGT Filmes, que eu de vez em quando visitava – porque eles filmavam de graça os Favelas–, tive um estalo. Propus a ele que me contra-tasse para ganhar R$100,00 por semana + condução, só para ajudar nas despesas, enquanto eu não arrumasse coisa melhor. Ficou definido esse valor e o horário das 14:00h às 19:00h. Eu seria assistente de produção, e, se precisasse, office-boy, aju-dante, seja lá o que fosse, isto é, pau pra toda obra. Comecei uma nova etapa da minha vida. Como entrava às 14:00h, podia articular vários bicos para a manhã, e fui me equilibrando. Não estava endividado, apenas sem grana.

A parceria com a DGT só cresce. Não considero lá um traba-lho, e sim uma escola, que me deixa próxima a outro sonho meu, o cinema. Hoje, a DGT produz o quadro Buzão – Circular Periférico, que tenho na TV Cultura – [email protected], no programa “Manos e Minas”, apresentado pelo Rappin’ Hood. Só progresso, depois volto a esse asssunto. Então, 2007 na área, e eu na DGT.

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Estava meio desencanado do “Favela toma conta”, pois nunca surgiu o patrocinador que esperava, e sem o Pádua a gente vol-tava à estaca zero. Mas tive uma idéia para o evento não morrer. Fui à casa do meu amigo Nel Costa, e pedi três datas na qua-dra para três edições do “Favela toma conta”. Era suicídio: sem grana, e armando três festas de uma vez, em menos de quatro meses. Mas quem tem medo de cagar é melhor nem comer, e fui pro arrebento1.

A 11ª edição do “Favela” foi um especial para o site Rap Nacional, que gravou cenas para um futuro DVD deles. A maioria dos gru-pos o Mandrake que iria trazer. Eu entraria com a divulgação e a estrutura. No dia da festa, deram vários B.O. O local que for-neceria bebida em consignação furou, ou eles nem tinham, sei lá, o bar, pela primeira vez no evento, é que pagaria as despe-sas. A entrada tinha que ser grátis, porque o “Favela” é de graça. Acabei tendo que arrumar cartão de crédito emprestado com parente. Naquele tempo, meu nome ainda estava sujo, e eu sem cheque, cartão, essas coisas.

Na hora H, tinha uma parada queimada no som. O Gersão, do Alerta Vermelho, me falou dum cara que podia quebrar o galho, o Lucas. Nunca tinha ouvido falar dele. Era do outro lado da linha do trem, então peguei alguém de carro e fomos lá. O cara salvou mesmo a pátria, e, mais pra frente, fiz evento alugando seu som. Ele, que conhecia o Gersão há mil anos, emprestou a peça que estava queimada na quadra e, por isso, o show rolou. Com tudo contra, mas rolou. Esta foi a programação do evento:

11º Favela toma contaDia 22 de Abril de 2007 na quadra do Bloco Santa Bárbara.Shows comTribunal MCsHórus e MoysésVoz sem Medo, DFUZZY – Caçador de Harmonia, GO

1 À luta.

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Oest RapStillo RadicalHolocaustoDepoimento OcularResistência Lado Leste Mc Tabaco & Elaine

Dez atrações, mais a 11ª que era uma atração surpresa – Realidade Cruel –, e que quebrou tudo, puta show. Assim, cheio dos proble-mas, sem grana e na raça, fazíamos mais uma festa de rap.

E, no acordo doido que fiz com o Nel, o próximo já tinha data: 3 de junho. Articula daqui, dali, e fechamos o bang, de novo na Santa Bárbara, e agora sozinhos, a parceria com o Rap Nacional – www.rapnacional.com.br – foi só para a 11ª edição. Então, no início de junho, fazíamos o 2º “Favela” do ano de 2007. Confira as atrações:

12º Favela toma contaDia 3 de Junho de 2007 na quadra do Bloco Santa Bárbara no Itaim Paulista.Shows comFUNÇÃO RHK – Salve Tom, meu camarada. Desde os tempos da Família RZO que eu colava.Tribunal Mc’sAlerta VermelhoDudu de Morro Agudo, RJRealistas NPN, MGSpainy & TruttyOs GuerreirosFamília L.D.R.Mano Rodolfo e os AliadosEXLSubMundo Racional – não lembro que rolo deu, mas não cantou.

Muita loucura ter marcado três edições seguidas na quadra, sem grana nenhuma, na raça total, por amor ao barato. Nessa edição, marcou que um cara que me ajudou muito, prefiro não citar nome,

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por influência da sua esposa, foi se afastando. Justamente a partir dessa edição, eu o percebi. Lembro muito bem como tudo rolou. Ela falando pra ele que eu não dava valor à sua ajuda, que no meu blog não tinha foto dele, e por aí foi, até que ela conseguiu tirar do meu lado um cara que eu tinha como um dos principais aliados. Mas a vida segue, e desejo tudo de bom pra esse mano, que é cor-reria e tem um grande coração. Novos amigos vindo, velhos indo, e por aí vai a vida.

Nesse tempo, eu negociava com a Global Editora para relan-çar o livro Guerreira, agora nas livrarias, e articulava a coletânea Suburbano Convicto – pelas periferias do Brasil, com vários auto-res de outros estados. Mas, antes desses livros, tinha o 13º “Favela toma conta”, o último desse acordo maluco que fiz com o Nel.

Dia 28 de julho era nóis que tava de novo na cena. Confira o que rolou em mais esta edição do “Favela”:

13º Favela toma contaDia 28 de Julho de 2007, pela última vez na Santa Bárbara – tínha-mos que levar o evento de novo pra rua, pra favela.Shows comA FamíliaCriolo DoidoHerança NegraH2PNaMahaTriste RealidadeHerdeiros na MissãoEXLPosse EnigmaSubMundo Racional Premonição.

Isto fora o grupo 9 Milímetros, do Interior Paulista, que não conse-guiu chegar. Missão cumprida. minha palavra, como sempre, não fazia curva, e trinquei as três festas que combinara com o Nel.

O “Favela” seguinte foi no Dia das Crianças, mas antes lancei minha coletânea.

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Cap.23

Pelas Periferias do Brasil

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O ano de 2007 foi foda. Viajei para vários estados, ora como palestrante e, hoje, como repórter da revista Rap Brasil. Uma dessas viagens foi para o Acre, onde fui cobrir o “1º Encontro Norte de Hip Hop”, organizado pelo Augusto.

O país vivia um kaos aéreo, e nunca imaginei que sofreria com ele. Eu saía dos trens de subúrbio e, cada vez mais, viajava de avião. Fui assim para Porto Alegre, Goiânia, Fortaleza, Rio de Janeiro e para o Acre. Pela primeira vez, teria que descer e pegar outro vôo. Essa troca se daria em Brasília, e o intervalo entre um vôo e outro era de seis horas.

Fui embora, voei até Brasília depois de uma hora de atraso – no caos que estávamos passando no país, era um atraso pequeno –, cheguei em Brasília e aí que caiu a ficha de que o outro vôo até Rio Branco no Acre seria apenas após 5 horas – e, se não fosse o atraso, seriam seis. O que fazer cinco horas no aeroporto de Brasília? Tinha cinema, e pensei em assistir a um filme e gastar assim duas horas. Se o filme fosse legal, assistiria de novo e mataria quatro horas.

Já indo para o cinema, lembrei do GOG e o procurei na agenda. Liguei para um número que eu tinha, e que era de um lugar onde ele passava de vez em quando. O GOG era um dos autores que estariam na coletânea que eu estava organizando. A mina que atendeu disse:

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—Ele não fica aqui, quer deixar recado?

—Sou de São Paulo, amigo dele e estou aqui em Brasília, preci-sava do numero dele.

—Anota aí o celular – eu com bolsa, no orelhão, anotei no jornal enquanto caía folha pra todo lado.

—Alô, GOG, é o Buzo.

—Tá onde, Buzo? – perguntou, vendo que a chamada era local.

—No aeroporto de Brasília, indo pro Acre. Mas meu vôo é só daqui a 4 horas e meia.

—Em no máximo 40 minutos estarei aí.

O GOG me pediu para ficar no lugar tal, onde permaneci por volta de meia hora até ele chegar de carro – um Golf da hora–, então entrei e partimos. Ele disse que me mostraria um pouco a cidade. Passamos pela região nobre – próxima ao aeroporto, é claro–, onde só havia mansão. Tudo igual por fora – muros altos da mesma altura, e plantas cobrindo de verde o cinza –, quar-teirões e mais quarteirões de mansões e muros iguais. Achei incrivelmente podre, e o GOG me confirmou que era mesmo. Só deputado, senador, embaixador, enquanto nas quebradas...

Assim que acabou essa sessão de mansões, vinha a novíssima Ponte JK, que, acredite, custou 70 milhões de reais. Nunca tinha passado em cima de tanto dinheiro. O GOG fez até uma música sobre ela, junto com o Lenine. A ponte milionária liga as man-sões aos três poderes, e chegamos ao lugar onde fica o Lula, onde vários deputados mamam a nossa grana. O GOG me con-tou que as favelas próximas foram removidas.

Seguimos e fomos para outra realidade. Passamos no centro de Brasília, do lado de fora dum shopping popular. O GOG me mostrou, pela porta de vidro, a sua loja Só balanço, que é selo também.

Fomos, então, a uma escola, buscar sua esposa e seus filhos, que lá estavam numa festa. Eles também deram carona para

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uma amiga e a sua filha, antes de pararmos num local que ven-dia lanche, o superdog – um mega hotdog que daria trabalho para comer, se não fosse a fome com que eu estava naquela hora. De lá, fomos conhecer a casa dele, simples e grande, uma casa em que se via muito respeito e união. Conheci a senhora sua mãe, que fala na introdução do álbum Tarja Preta. Fiquei muito emocionado de conhecê-la. Estava também o irmão do GOG, super gente boa e, fácil de perceber, fã número 1 do GOG. Ficamos lá até se aproximar a hora de meu vôo. E, então, o GOG me deixou no aeroporto – valeu, mano, por esse dia.

Aí é que começou o terror. Se em SP peguei uma hora de caos aéreo, de Brasília para o Acre foram cinco, além das de espera normal – que passei de boa com o GOG. Ou seja, ainda quebrei a cara mais cinco horas no aeroporto, e, desta vez, sem poder sair, pois o horário do vôo mudou umas quatro vezes até se con-firmar para as duas da manhã. Puta complicação. No Acre, é outra hora por causa do fuso horário e, ainda por cima, eu não tinha como avisar o mano Augusto, que me pegaria no aeroporto de Rio Branco. O que eu fiz? Se está no inferno, abraça logo o capeta. Tomei umas quatro latinhas de cerveja e uns quatro campari a R$5 a dose, era o forte mais barato ali. Fiquei doi-dão e, quando o avião resolveu voar, cinco horas depois, eu e os demais passageiros caímos no sono. Eu, mamado.

Uma hora acordei e parecia um filme de terror: um silêncio abso-luto, todos dormiam e, lá fora, apenas uma luz piscando na asa. Imaginei, pela tremenda escuridão, que estávamos por cima da floresta. Lembrei do avião da Gol, depois da minha família, e bateu um certo medo. Mas fechei os olhos e dormi de novo. Já no Acre, foi tudo sem novidade. Cobri o evento, e saiu uma grande matéria na revista Rap Brasil.

Outra grande viagem de 2007 foi para Salvador, na Bahia. Paixão à primeira vista. Fui levado pelo meu amigo Nelson Maca, da Blackitude – tal como o GOG, um dos autores da coletânea –, para uma sessão de palestras em universidades, a começar

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pela Católica de Salvador, onde o Maca é professor de litera-tura. Depois, UNEB de Salvador e de Alagoinhas, onde íamos – ou melhor, fomos – também numa quebrada, conhecer os manos do Rap local.

Entre palestras e passeios, fiquei 4 dias. A Marilda junto comigo, curtimos bastante. Vi ali o Corinthians cair para a segunda divi-são, vi o Martinho da Vila ao vivo no Pelourinho, vi praias mara-vilhosas e muita gente boa – inclusive a Ana, esposa do Maca, e suas filhas, Luiza Gata e Lucinha Black Power. Um dia, eu volto. Mas vamos falar desse livro coletânea que organizei.

Ele nasceu de uma reunião do Núcleo de Literatura Periférica – realizada na sede da ONG Ação Educativa -, em que o Eleilson Leite disse que a Ação apoiaria, com 50% dos custos gráficos, oito livros em 2007, e que alguns já estavam definidos, como, por exemplo, o Trokando umas idéias e rimando outras, do meu amigo Walter Limonada – de que acabei fazendo o prefácio. Aí eu disse que queria organizar uma coletânea com autores de todo o Brasil, e o Eleilson deu o OK. O Sacolinha – outro escritor de periferia presente – também organizou uma coletânea com autores de Suzano-Sp, do Projeto Literatura no Brasil.

Havia prazo para escolher os autores, receber os textos, a grana – cada autor deu R$ 100,00 para pagar os outros 50% da grá-fica e pegou de retorno trinta exemplares do livro pronto –, foto, release, etc., mas o processo foi bem bacana e reuni 12 autores de sete estados – um deles, o Nelson Maca, foi o meu revisor.

Lançamos, em 25 de setembro de 2007, o livro: Suburbano Convicto – pelas periferias do Brasil. A organização e o prefá-cio eram de Alessandro Buzo, e os autores: GOG (DF), Nelson Maca (Ba), Jota C NPN (MG ), Preto C (MG), Dudu de Morro Agudo (RJ(, DJ TR (RJ), Jéssica Balbino (MG), Mary do Rap (RS), Nando Tau (SC), Michel da Silva (SP), Róbson Canto (SP), e Renan Inquérito (SP).

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O lançamento foi na sede da Ação educativa, quando eu com-pletava 35 anos de vida – nasci em 1972. Mesmo não tendo verba no projeto para trazer os autores, só 3 não puderam estar presente – Preto C, Mary do Rap e DJ TR –, o restante chegou chegando e foi uma festa maravilhosa.

A fase era muito boa nesse momento. Dez dias depois de lançar essa importante coletânea, lançava meu primeiro livro por uma grande editora. O Guerreira saía pela Global e o lançamento era na Livraria Nobel do Center 3, na avenida Paulista. Não posso negar, sempre quis lançar numa livraria assim. Depois do sonho realizado, fomos todos beber num boteco da rua Augusta.

Só que não dava tempo de ficar comemorando. Sete dias depois de lançar o Guerreira, era a vez do 14º “Favela toma conta”. E, dessa vez, além dos doces, demos também brinquedos, bolas – a Conduta deu 700 com seu logo –, bonecas e carrinhos – comprados pela DGT Filmes e Torresan –, foi um sucesso total. Abaixo, a programação da festa.

14º Favela toma conta – Dia das Crianças12 de Outubro de 2007 no CDHU do Jardim Olga – Itaim Paulista.Shows comDMNTribunal MCsSpainy & TruttyPeriafricaniaDCM9 Volts – rock – com participação do EXL – rap.O MarreteiroMc Tabaco & ElaineInvasãoPremonição – de Itaquaquecetuba.

Além de, no teatro, um monólogo com o ator Emerson Alcade. O mais importante é que o evento voltava para rua, que é o seu lugar, por mais bacana que seja a quadra da Santa Bárbara.

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O ano de 2007 estava bom demais para ser verdade, mas era. E, para fechá-lo com chave de ouro, ganhei pela terceira vez o Prêmio Cooperifa, e fui indicado pela terceira vez seguida ao Prêmio Hutúz – na categoria Ciência e Conhecimento. Nesse ano, eu concorria com o livro Guerreira, o Róbson Canto com o livro Noite Adentro, Fuzzil com o seu Presente para o Gueto, além dos documentários É tudo nosso!, do Toni C, e Favela no Ar, da 13 Produções. A parada era dura, mas dessa vez levei o prêmio. Estávamos na cidade maravilhosa, no Canecão – local da entrega do Hutúz–, cheio de gente famosa e a nata do Rap, aí chegou a vez da nossa categoria. Por dois anos, fiquei no quase, e, dessa vez, quando anunciado “O vencedor é Guerreira, de Alessandro Buzo”, fiquei feliz. Na nossa banca, tinha eu, minha amada Marilda, Dudu de Morro Agudo, Dumontt, Toni Nogueira e Trutty. Depois, ainda fomos a uma balada comemorar, na Boate Six, foi da hora.

Assim, se encerrou 2007. Será que ainda tinha alguma coisa pra melhorar no profissional? “Pior” que tinha. O que até agora falta melhorar é o pessoal, pois ainda, apesar de estar de boa, não consegui juntar grana para comprar minha casa. Esta pode ser no Itaim Paulista mesmo, mas não pode ser de dois cômodos, porque moro assim há dez anos e não dá mais.

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Cap.24

Poesia

Vou pôr uma poesia aqui, porque acabar o livro no capítulo 24 não dá, é igual a chamar rapaziada de moçada. Então aí vai:

MEU LUGAR(por Alessandro Buzo)

Me chamo Alessandro Buzo.Orgulho de ser brasileiro,Não só em ano de Copa.São Paulo, metrópole.Minha Terra, meu lugar.Sou lá do fundão da Leste.Lugar de cabra da peste.O Itaim é Paulista, não é o Bibi dos Boy1

Gueto, Periferia, Favela.É tudo isso que eu vejo, olhando da minha janela.Lugar melhor que aqui não existe.É aqui que cresce meu filho.É aqui que escrevo meus livros.Gosto tanto do lugar.Que costumam me chamar... de Suburbano Convicto.Se duvidar é só fazer o DNA – como disse o Grupo de Rap Inqué-rito, em sua música Favela até o fim.

1 Em alusão ao bairro classe A da elite paulista, o Itaim Bibi.

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Cap.25

2008: segue o jogo da vida

2008o jogo da vida

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o jogo da vida

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Enfim, chegamos a 2008, e o barato ficou loko de vez. Em 2007, tínhamos – a DGT – apresentado uma proposta de programa para a TV Cultura: o Buzão – Circular Periférico., E então, no começo do ano, a TV Cultura nos procurou e fez uma contrapro-posta. Disse que o quadro Mano a Mano, que o Rappin’ Hood apresentava no programa “Metropolis”, viraria um programa de uma hora, o “Manos e Minas”. Então, perguntou se nós não nos interessávamos por transformar o Buzão num quadro do programa do Hood. Topamos na hora e, assim, dia 7 de maio de 2008, estreou na grade da TV Cultura o programa “Manos e Minas”, com uma hora em horário nobre – 19:30h. O programa é semanal, e meu quadro quinzenal.

No momento em que finalizo esse livro, já foi pro ar o Buzão, em Pirituba com RZO e Elo da Corrente, e na Cidade de Deus, com MV Bill. Os próximos são Parque Bristol, Itaim Paulista, Piraporinha/Chácara Santana, São Matheus e por aí vai o Buzão, pelas quebradas desse país. Estou muito feliz por estar no “Manos e Minas”, porque, além de ser numa TV aberta, é um programa bem feito, que respeita a periferia.

Além dessa grande novidade, tem outra. O “Favela toma conta”, na sua última edição realizada até aqui, no caso a 15ª, em 27 de Abril de 2008, teve apoio da Claro Telefonia. Um fato inédito. Uma empresa desse porte investir no hip-hop e, ainda por cima, numa festa na favela. Só assim pudemos, enfim, pagar algum

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dinheiro para todo mundo que trabalhou, na parte artística ou de produção, dessa vez. Pode ainda não ter sido o ideal, mas já foi um grande começo. Agradecimentos à Ponte – empresa de eventos – e a Tatiana Ivanovic, que indicou o “Favela toma conta” à Claro.

Nesta 15ª edição – com o apoio da Claro – finalmente encon-tramos o formato ideal, o de seis grupos. Confira a programação abaixo.

15º Favela toma conta27 de Abril de 2008 n CDHU do Jardim Olga, no Itaim Paulista.Shows com ThaídeTribunal MCsRosana Bronk´sDudu de Morro Agudo – RJ –, lançando o CD “Rolo Compressor”Beto Guilherme – samba – e Carlão + Um Guerreiro da Leste.

Graças a Deus, correu tudo bem, como sempre. Agora planeja-mos a 16ª edição, e estamos aguardando para ver se o apoio da Claro terá continuidade. Esperamos que sim, e que cresça.

O Buzão, na TV Cultura, anda afinado. A equipe DGT manda bem nas filmagens e edições. Nosso time tem o Buzo – vale nada –, Sérgio Gag, Toni Nogueira, Mauricio Falcão, e o apoio de Silvia Roses e Marilda Borges. Vamo que vamo.

Termino esse livro, que você agora acaba de ler, e retomo a escrita de outro, Profissão MC, para 2009. Junto textos meus para também, ano que vem, lançar um livro de contos e poesias, chamado justamente Do Conto à poesia, além de estar orga-nizando, com 16 autores de sete estados, a coletânea: Pelas Periferias do Brasil – vol II.

O futuro a Deus pertence, mas nada como um dia após o outro dia.

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CAP. 01P.14 Buzo na 1ª série. Foto: arquivo pessoal do autor.P.15 Rua do Jardim Camargo Velho, Itaim Paulista, anos 1990. Foto: Alessandro Buzo.P.17 O pai, a mãe (Luzia Buzo, in memorian) e a sobrinha de Alessandro Buzo. Foto: arquivo pessoal do autor. CAP. 02P.22 Banca da rua Cinco no Jardim Olga. Foto: arquivo pessoal do autor.P.24-25 Bar Nhô Bento no Itaim Paulista. Foto: arquivo pessoal do autor.P.27 Paulão, Deni e Buzo no Tempo Livre. Foto: arquivo pessoal do autor.P.28-29 Buzo na época da contabilidade na Silveira Martins, no Centro de São Paulo. Foto: arquivo pessoal do autor.P.34 Marilda Borges. Foto: Alessandro Buzo. CAP. 03P.40-41 Os famosos “gatos” na rede elétrica. Foto: Jonilson Montalvão.P.43 Hospital Santa Marcelina do Itaim Paulista, onde o filho do autor nasceria em 2000. Foto: Jonilson Montalvão.

CAP. 04P.53 Buzo, na época de vendedor de alimentos na Super do Brasil. Foto: arquivo pessoal do autor.

Imagens: índice e créditos

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CAP. 05P.59-61 Sebo Mutante. Fotos: Jonilson Montalvão.P.62 Buzo nos trilhos do trem que o levou à literatura. Foto: Jonilson Montalvão.P.65 Antiga Estação Itaim Paulista da CPTM. Foto: Jonilson Montalvão.P.66 Reunião de amigos em São Bernardo do Campo. Foto: Marilda Borges.

CAP. 06P.71 Manos no trem da CPTM, linha Brás-Calmon Viana. Foto: Jonilson Montalvão.

CAP. 07P.81 acima: Buzo com o filho. abaixo: Evandro, filho do autor. Fotos: arquivo pessoal do autorP.82 Torcida do “Da Rocha”. Foto: Alessandro Buzo.P.86 Cido e Buzo em Limeira, Evandro no carrinho. Foto: Marilda Borges.P.93 Vários manos no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.

CAP. 08P.102-103 Lançamento do primeiro livro de Alessandro Buzo, Jardim das Oliveiras (24/12/2000). Foto: Marilda Borges.P.105 acima: detalhe do lançamento primeiro livro. Foto: Marilda Borges. abaixo: Pré-lançamento do primeiro livro no Sebo Mutante. Foto: Jorge Lins. CAP. 09P.112 Itaim Paulista, anos 1960. Foto: arquivo pessoal.P.116 Marilda Borges, Alessandro Buzo e o pequeno Evandro Borges. Foto: Jonilson Montalvão.

CAP. 10P.121 Djair e Buzo, início de carreira, colunista do jornal Página 1. Foto: Jonilson Montalvão.P.124 Revista Caros amigos, matéria sobre a literatura das periferias. Foto: Marilda Borges.

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CAP. 11P.136-137 Sandrão (RZO) e Buzo. Fotos: Marilda Borges.P.138-139 Markão, DJ Cia. e Buzo no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.P.142 Afrika Bambataa. Foto: Marilda Borges.P.143 Thaíde. Foto: Marilda Borges.P.144-145 DMN. Foto: Marilda Borges.P.147 O 1º prêmio Cooperifa 2005. Foto: Marilda Borges.P.149 Buzo e Sérgio Vaz na Bienal do Livro. Foto: Marilda Borges.P.150 Buzo na Câmara dos Vereadores de São Paulo. Foto: Marilda Borges.P.152-153 Espaço Enraizados, no Rio de Janeiro. Foto: Marilda Borges.

CAP. 12P.160 Lançamento do segundo livro na Santa Bárbara no Itaim Paulista. Foto: Marilda Borges.

CAP. 13P.167 Povo do rap. Foto: arquivo pessoal do autor.

CAP. 14P.173 acima: Buzo e Rappin’ Hood, hoje juntos no “Manos e Minas” da TV Cultura. abaixo: Buzo, Toni C. e Mandrake. Fotos: Marilda Borges.P.175 acima: Buzo e Elizandra Souza. abaixo: Buzo, Juliana Penha e Marques Rebelo. Fotos: Marilda Borges.P.176 Buzo no extinto programa “Musikaos” da TV Cultura. Foto: Marilda Borges.P.179 acima: Buzo e Rodrigo Ciriaco. abaixo: Mano Brown e Buzo. Fotos: Marilda Borges.

CAP. 15P.184-185 A favela tomando conta. Foto: Marilda Borges.P.186 acima: Pádua (que ajudou em várias edições do “Favela toma conta”), Buzo e Tia Dag (Casa do Zezinho). abaixo: “Favela toma conta”. Fotos: Marilda Borges.

CAP. 16P.191 Grupo A Família no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.P.192 Dimenor, Buzo e Terno. Foto: Marilda Borges.P.193 Buzo declama em “O Autor na Praça”. Foto: Marilda Borges.

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P.196 Filosofia de Rua, Dimenor e Buzo no “Favela”. Foto: Marilda Borges. CAP. 17P.204-205 Oliveira, Buzo, Sacolinha e Róbson Canto em lançamento de livro do Buzo no Itaim Paulista. Foto: Marilda Borges.

CAP. 18P.213 Eduardo B.Boy. Foto: Marilda Borges.P.214 Léo da XIII e DMA no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.P.217 acima: Manos no “Favela”. Foto: Marilda Borges. abaixo: Buzo na Feira do Livro, em Porto Alegre. Foto: Arquivo pessoal.P.220 Buzo em palestra no Corredor Literário da Paulista, em hotel de luxo. Foto: Marilda Borges.

CAP. 19P.225 Buzo na Biblioteca Suburbano Convicto que montou na quadra da Escola de Samba Unidos de Santa Bárbara no Itaim Paulista. Foto: Marilda Borges.P.229 Buzo e Walter da Conduta, lançamento livro Guerreira na Livraria Nobel do Center 3, em São Paulo. Foto: Marilda Borges.

CAP. 20P.237 Molecada da favela no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.P.238-239 Expressão Ativa no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.P.240 Thaíde no “Favela toma conta”. Foto: Marilda Borges.

CAP. 21P.250-251 Buzo e internos da Febem na Bienal do Livro. Foto: Marilda Borges.

CAP. 23P.263 acima: GOG na loja Suburbano Convicto no Itaim Paulista. abaixo: Buzo e DMA em Madureira, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Fotos: Marilda Borges.P.266 acima: Buzo e Falcão no Prêmio Cooperifa. abaixo: Buzo em Salvador, Bahia com Walê, Nelson Maca e amiga. Fotos: Marilda Borges.

CAP. 25P.276-277 Montagem de jornais. Imagens: arquivo pessoal do autor.

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sobre o autor Alessandro Buzo nasceu em São Paulo e desde sempre mora no bairro do Itaim Paulista. Está casado há dez anos com Marilda Borges, com quem tem um filho, Evandro Borges, de oito anos.

Se hoje é agitador cultural, escritor e mais um monte de coisas, é porque sempre se jogou de cabeça em tudo que fez.

Já fez parte de torcida organizada, foi baloeiro, e trabalhou em diversas outras funções como empregado. Atualmente, apre-senta o quadro "Buzão – Circular Periférico" na TV Cultura, tra-balha na DGT Filmes, tem uma loja de livros, roupas, CDs e DVDs, a Suburbano Convicto, e mantém a Suburbano Convicto Produ-ções que promove os eventos "Favela Toma Conta", “Suburbano no Centro” e “Encontro com o Autor”. Atualiza diariamente o blog www.suburbanoconvicto.blogger.com.br e outras páginas na Internet.

Gosta de rap, samba, rock, reggae, cerveja, bons restaurantes e de ficar com a família. Ama viajar e já foi a diversos estados do Brasil como repórter ou palestrante.

Segue o lema: “nada como um dia após o outro dia”, título de um álbum dos Racionais MCs. Curte ler livros e entre seus favoritos está Capitães de areia, de Jorge Amado.

Faltou alguma coisa? Ah sim!, é completamente apaixonado pela Marilda Borges.

E seu maior exemplo de vida chama-se Luzia Buzo. Que Deus a tenha em um bom lugar.

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Este livro foi composto em Akkurat. O papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m2

A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica Morada do Livro, em agosto de 2008, no Rio de Janeiro.

Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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