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Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro Centro de Cincias Sociais Departamento de Geografia

Eduardo Bertoche Gryzagoridis

A Fazenda da Esperana e a reabilitao de jovens dependentes qumicos: reinventando o gnero de vida rural

Rio de Janeiro 2011

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Eduardo Bertoche Gryzagoridis

A Fazenda da Esperana e a reabilitao de jovens dependentes qumicos: reinventando o gnero de vida rural

Monografia apresentada, como requisito parcial para obteno do diploma de Bacharel em Geografia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Leonardo Name

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Eduardo Bertoche Gryzagoridis

A Fazenda da Esperana e a reabilitao de jovens dependentes qumicos: reinventando o gnero de vida rural

Monografia apresentada, como requisito parcial para obteno do diploma de Bacharel em Geografia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

Aprovada em Banca Examinadora: __________________________________________ Leonardo Name (Orientador) Departamento de Geografia, PUC/Rio __________________________________________ Augusto Csar Pinheiro da Silva Departamento de Geografia, PUC/Rio __________________________________________ Monica Sampaio Machado Departamento de Geografia, PUC/Rio

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DEDICATRIA Quero de maneira especial lembrar de toda minha famlia que sempre esteve ao meu lado nos momentos difceis. Dedico cada pgina escrita a minha querida e amada Me, guerreira e amiga, pessoa que hoje me faz a pessoa que sou. No poderia deixar de lembrar e dedicar cada pargrafo destes a minha irm, exemplo de dedicao e amizade, sempre presente ao meu lado. Exemplos como o seu me fazem buscar cada vez mais o conhecimento. Querido Pai, esta monografia sua! Obrigado pelo seu amor e presena. Voc muito importante na minha vida. Existem pessoas que ocupam um lugar especial em nossos coraes e no poderia deixar de lembrar e dedicar este trabalho a minha amada Tia Valria, pessoa que no cansa de me incentivar a crescer como pessoa. Quero dedicar cada palavra aos jovens que hoje se recuperam, aos que j se recuperaram e aos que ainda vivem nas garras das drogas. Que a esperana nunca deixe de existir em suas vidas. Enfim, dedico esta monografia a toda obra Fazenda da Esperana, comunidade que hoje d sentido a minha existncia e de maneira especial aos fundadores desta comunidade: Nelson Giovanelli, Frei Hans, Iraci Leite e Lucilene Rosendo. De maneira especial dedico cada pargrafo aos meus amigos queridos Pe. Csar Alberto dos Santos e Pe. Mrcio Geira. A todas as irms que se dedicam recuperao destes jovens e cada voluntrio que hoje doa sua vida pelo prximo. Ao grupo esperana viva da PUC que me ajuda a cada dia ser uma pessoa melhor. Vocs so parte deste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer sempre. Agradecer umas das melhores coisas que encontrei em minha vida. Quando agradecemos nos fazemos satisfeitos com a vida e de certa maneira conseguimos crescer e conquistar ainda mais. Agradeo a Deus por me mostrar uma nova realidade. Por me fazer hoje uma pessoa feliz, alegre e disposta a crescer em todos os sentidos. Quero agradecer a todos que me ajudaram durante o ano de 2008, perodo mais importante da minha vida, de maneira especial ao meu grande pai Marquinhos, Sr. Joo, Sidney, Ney, Joey, Juninho, Irm Gema, Irm Viba e tantos outros que me ajudaram a dar novo sentido a minha vida. Agradeo de maneira especial aos meus amigos do Centro de Pastoral Anchieta/PUC-Rio que me incentivaram a retornar a Universidade. Quero agradecer ao meu padrinho e orientador espiritual Rafael Bokor e minha querida amiga Tmer. Agradeo ao meu xar Pe. Eduardo e ao querido Pe. Alfredinho que sempre apoiaram minhas ideias e projetos. Muito obrigado. No posso deixar de lembrar dos meu amigos da Vice-Reitoria Comunitria que sempre me apoiaram e possibilitaram meu retorno a Universidade. Ao querido professor Augusto Sampaio que sempre acreditou na minha recuperao, pelo carinho e ateno de sempre. Muito obrigado. No posso deixar de lembrar do meu grande orientador Leonardo Name sem o qual no teria realizado este trabalho. Obrigado pelo respeito a minha crena, por me ajudar a separar, na medida do possvel, o trabalho cientifico da minha f. Obrigado pela sua ateno, colaborao e pacincia. Obrigado pelo grande Professor que voc . De maneira mpar agradeo a todos do Departamento de Geografia da PUC/Rio pelo grande esforo e colaborao com minha formao acadmica e pessoal. De maneira especial aos inesquecveis Joo Rua, Rita Montezuma e Regina Mattos que sempre foram alm de professores exemplos para minha vida. A minha querida Edna pela pacincia e ajuda de sempre. Alm claro dos to estimados professores Augusto Csar Pinheiro da Silva e Monica Sampaio Machado pela disponibilidade, respeito e carinho em coloborar na avaliao deste trabalho. Agradeo a todos que me ajudaram a escrever esta monografia. Que me deram foras para no desanimar. S tenho mesmo que agradecer. Muito Obrigado!

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RESUMO

GRYZAGORIDIS, Eduardo Bertoche. A Fazenda da Esperana e a reabilitao de jovens dependentes qumicos: reinventando o gnero de vida rural 62f. Monografia (Bacharelado em Geografia) - Faculdade de Geografia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

A presente monografia tem como objetivo, em primeiro lugar, destacar a importncia da religio enquanto objeto da cincia da Geografia bem como compreender de que forma estes estudos acontecem e qual o enfoque/recorte que alguns autores dentro desta realizam em seu trabalho. Neste sentido servir de base acadmica alguns autores que notadamente vm construindo um pensamento sobre desta temtica. Alm disso, ser objeto deste estudo uma comunidade que se dedica a recuperao de dependentes qumicos e que oferece aos jovens em recuperao uma forma de viver distinta. Nesse sentido, cada autor analisado, servir para uma melhor apreenso das comunidades Fazenda da Esperana, localizadas em reas distantes do ambiente urbano, e suas clulas urbanas, conhecidas como Grupo Esperana Viva. Ao longo deste trabalho iremos atentar nosso olhar sobre o resgate de um gnero de vida rural/tradicional muito presente em ambientes rurais onde existe maior contato com a natureza alm de prticas cotidianas que aliadas a estratgias religiosas favorecem o resgate de uma pessoa mais subjetiva, valor este que vem sendo esquecido nos grandes centros urbanos. A partir desta relao dicotmica entre campo e cidade surgem nestas comunidades certas oposies entre valores antigos e novos que so por seus membros chamadas de homem novo e homem velho, respectivamente, e que sero discutidas no trabalho.

Palavras-chave: Fazenda da Esperana. Gnero de vida. Religio. Urbano. Rural.

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SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................7 1 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 A TEMTICA DA RELIGIO SOB O PRISMA DA GEOGRAFIA ................12 Territorialidade catlica: espao sagrado e hierpolis................................... 14 Espao de representao: um conceito chave para o estudo geo-religioso ..19 O movimento pentecostal ..............................................................................26 Umbanda: identidade, simbolismo e sustentabilidade ...................................30 Uma proposta de anlise.................................................................................32

2 FAZENDA DA ESPERANA: FORMAO E CONSOLIDAO DE UM GNERO DE VIDA PRPRIO.................................................................................34 2.1 O resgate dos valores tradicionais: Gnero de vida rural ..............................46 2.2 Oposies: Urbano X Rural Homem Velho X Homem Novo..................50 CONCLUSO ..........................................................................................................59 REFERNCIAS .............................................................................................62

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INTRODUO

A Fazenda da Esperana um conjunto de comunidades teraputicas de base catlica que busca atravs da espiritualidade, do isolamento atravs do afastamento dos grandes centros urbanos, do trabalho e da convivncia reabilitar jovens dependentes qumicos, de modo a reinseri-los na sociedade de forma digna e humana. Territorialmente esto se espalhando com velocidade imensa, j havendo ao todo mais de setenta fazendas mundo afora. A primeira unidade deste projeto surgiu na cidade de Guaratinguet/SP, mais especificamente no bairro das Pedrinhas, conhecida como a Fazenda-me, que serve de modelo para as demais, e por isso ser o foco deste estudo. O retiro espiritual nestas comunidades dura em mdia um ano e tem como intuito, segundo seus lderes e gestores, fazer estes jovens formarem/criarem valores que os tornem capazes de viver de forma equilibrada. Esse processo de recuperao ocorre em meio ao ambiente natural, distantes dos espaos cosmopolitas que, para os mesmos gestores, dificultam a recuperao dos jovens por oferecerem um emaranhado de informaes. Alm de todo um estilo de vida que passam a ter que viver no processo de recuperao, os jovens permanecem os trs primeiros meses sem poder receber visita e se comunicam apenas por cartas. Tal isolamento e incomunicabilidade, proporcionado no s pelo afastamento de suas ms influncias e da famlia, mas do ambiente urbano em que vivia, seriam um adicional de facilitao para que o jovem entre na dinmica e nas prticas espaciais propostas. Minha vontade de entender a dinmica de formao, atuao e consolidao da Fazenda da Esperana no mundo surgiu a partir da minha prpria experincia de converso (mais do que no sentido religioso, no sentido da vida, valores, tica etc.) quando, em 2008, morei por um ano nesta comunidade, mais precisamente na unidade de Terespolis, localizada na Regio Serrana do Estado do Rio de Janeiro. Desde ento, mantenho contatos com esta obra social atuando como voluntrio da esperana, levando jovens em dificuldades a conhecer este espao. Alm disso, desde maio de 2010 atuo oficialmente como membro desta comunidade e no ms seguinte, fui um dos trezentos membros escolhidos para viajar at Roma para assistir ao reconhecimento da Famlia da Esperana como parte integrante do corpo Eclesial pelo representante da Igreja Catlica Apostlica Romana, o Papa 7

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Bento XVI.

Estou ciente da influncia desta minha inclinao tica, religiosa e

filosfica na escolha do tema e dos riscos que, por conta da dimenso religiosa nela presente, podem ocorrer no desenvolvimento do presente trabalho, se entendida uma monografia no sentido mais tradicional de estudo cientfico, isento, neutro etc. Mas acredito que se por um lado, quando se pensa em produo cientfica, no sentido mais tradicional, espera-se uma separao entre sujeito e objeto, que proporcionaria maior rigor na anlise acadmica, por outro lado quase sempre a produo cientfica est aliada experincia pessoal de quem a produz, mas nem sempre isto dito de fato. Este o ensinamento de Boaventura de Sousa Santos (1985), que analisa o atual perodo de transio das cincias, no qual o prprio cientista deveria, segundo ele, se questionar sobre qual o sentido de se fazer cincia. O autor nos lembra algumas perguntas simples que Rosseau outrora levantou: existe alguma relao entre cincia e virtude? Por quais motivos estamos substituindo o conhecimento vulgar que partilham homens e mulheres da sociedade por um conhecimento produzido por poucos e inacessvel maioria? A produo cientifica ir reduzir o abismo entre a teoria e a prtica? Mais de duzentos anos aps as palavras proferidas pelo filsofo h que se realizar perguntas simples na hora de se produzir cincia. Aonde queremos chegar? O que estou querendo provar? Uma das questes levantadas pelo autor e de grande importncia, quando se pensa o tema da religio dentro da Geografia e mais especificamente estes espaos naturais da Fazenda da Esperana cheios de significados simblicos que se transformam em centros de recuperao para dependentes qumicos , a constante acusao proferida contra as cincias sociais (a includa a Geografia) sobre sua grande dificuldade em formular regras, normas ou leis. Isto porque seu carter seria, supostamente, quase que totalmente subjetivo, por isso sendo constantemente acusadas pelas cincias mais duras de no serem cincia. No existe um consenso paradigmtico nas cincias sociais e, por isso, se poderia perceber tal situao como um atraso em relao as cincias naturais, que formulam leis e regras aceitas pela comunidade cientifica com mais facilidade. Mas de acordo com Santos (op. cit.) as cincias naturais tambm esto em crise, por seu atual modelo de produo no estar dando conta de suprir a necessidade da atual sociedade moderna. Tal situao passa a constituir e dar lugar a um novo paradigma, que o autor chama de paradigma de uma vida decente. Cincias 8

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naturais e sociais deveriam, segundo ele, passar a se relacionar e assim comear a se formar um novo quadro na produo do conhecimento, em que experincia pessoal e ideologia no devem ser negligenciadas por serem, na verdade, invariavelmente parte da produo desse conhecimento. Alm disso, outra coisa certa: todo conhecimento dito cientifico capaz de ser refutado e dar lugar a um novo pensamento. As cincias, portanto, esto em constante questionamento e sob mudanas de paradigmas. Nesse sentido, vejo minhas inclinaes tico-filosficas e religiosas como excelente oportunidade para me debruar com maior paixo e determinao no tema da espacialidade da religio, bastante caro na geografia clssica e na geografia cultural, mas hoje mais deixado de lado. Assim, o presente trabalho, aps reflexo a partir de alguns autores ligados ao estudo geogrfico da religio, tem como objetivo principal discutir os discursos, prticas e significados transmitidos aos jovens dependentes atravs da experincia do isolamento nestes espaos das unidades de recuperao da Fazenda da Esperana. Ver-se-, ao longo do trabalho, que as Fazendas da Esperana

espacialmente se organizam da seguinte maneira: as unidades de recuperao esto localizadas em espaos distantes dos ncleos urbanos, sendo, portanto, rurais ou supostamente rurais; alm destes, grupos1 de apoio a jovens j recuperados esto localizados nos centros urbanos. Na construo das representaes espaciais ligadas instituio, pode-se perceber as fazendas rurais como indutoras do encontro entre o homem e o sagrado2, atravs de certo contato com a natureza (o suposto rural) e a partir da execuo cotidiana de tarefas artesanais (tradicionais, do passado). Desta forma, so proporcionadas aos jovens novas formas de se relacionar e vivenciar a cidade, aps o perodo de recuperao ou retiro espiritual que estes realizam durante um ano nas Fazendas da Esperana espalhadas pelo mundo. Em cada uma destas unidades, rurais, so executadas prticas tradicionais,

Segundo regulamento prprio da Fazenda da Esperana, estes grupos conhecidos como GEV (Grupo Esperana Viva) so uma extenso da prpria fazenda nas cidades. Sua principal funo o apoio aos jovens que j passaram pela Fazenda bem como o acolhimento de pessoas que queiram viver este estilo de vida, como familiares destes, voluntrios e qualquer tipo de pessoa que se sinta bem atravs da espiritualidade. (Regulamento interno Grupo Esperana Viva, 2010) O sagrado se manifesta na vida do homem quando este surge como algo distinto ao profano; as manifestaes do sagrado podem ser chamadas de hierofanias (revelaes de algo sobrenatural). As hierofanias anulam a homogeneidade do espao dando significado vida do homem-religioso que no consegue mais viver sem a abertura para o transcendente.(ELIADE, 1992)2

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muito ligadas aos espaos rurais, tais como lidar com a terra, plantar e colher, fazer artesanato, cuidar de animais entre outras. de suma importncia ao atentarmos nosso olhar sobre estas comunidades saber que o processo de recuperao ocorre de forma separada entre homens e mulheres, ou seja, existem unidades masculinas e femininas de forma que para cada uma dessas existe uma forma de se aplicar o modelo de recuperao proposto pelos responsveis da Fazenda da Esperana. Ao longo da presente monografia, objetiva-se compreender e analisar a territorialidade das Fazendas da Esperana, estabelecendo a relao dos espaos rurais com os demais grupos localizados em ncleos urbanos. Esta investigao foi amparada pela argumentao de Haesbaert (2007) sobre os chamados territrios alternativos e o tradicional conceito vidalino de gneros de vida, que parecem se revalidar, ainda que com certa dose de simulacro, nos espaos da Fazenda da Esperana. De modo a dar conta, o primeiro captulo desta monografia uma reviso bibliogrfica dos estudos de geografia e religio, apresentando os seguintes autores: Zeny Rosendahl, Sylvio Fausto Gil Filho, Monica Sampaio Machado, Marcelo Alonso Morais e Aureanice de Mello Corra. Com base em alguns de seus trabalhos e artigos , pode-se compreender de que forma a Geografia atualmente trata a temtica da religio. Nesse sentido, possvel claramente tomar um posicionamento diante deste fenmeno religioso, que o presente estudo acadmico se prope a analisar. O segundo captulo mostra a genealogia destas comunidades bem como sua expanso e consolidao como uma associao privada de fiis, ligada Igreja Catlica Apostlica Romana. A partir disso, aprofunda-se uma discusso acerca da formao destes ncleos rurais (destinados recuperao) e ncleos urbanos (grupos de apoio), estabelecendo um paralelo com os discursos religiosos (franciscanos e focolarinos)3 que influenciaram a criao destas comunidades. Surge, nesse contexto, ora um embate, ora um dilogo entre rural versus urbano onde podemos perceber o urbano muitas vezes como o espao da perdio e o rural como resgate de um gnero de vida mais tradicional. Este estilo de vida (como dizem os gestores da Fazenda) torna-se ento uma3

A Fazenda da Esperana tem como base de sua vida a espiritualidade do movimento dos focolares, obra social criada em 1943 em Trento na Itlia por uma jovem chamada Chiara Lubich, e tambm o carisma de So Francisco, que fundou a ordem religiosa dos franciscanos tambm na Itlia e mais precisamente em Assis. Estatuto da Famlia da Esperana, recebido durante o reconhecimento papal, no encontro dos membros da Fazenda com representantes da Igreja Catlica Apostlica Romana no ano de 2010)

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ferramenta de cura-libertao para estes jovens, que chegam dos ambientes urbanos com uma maneira prpria de enxergar e vivenciar a realidade. Prope-se, por fim, ento discutir a relao entre homem velho e homem novo que surge simbolicamente entre os internos das unidades de recuperao das Fazendas da Esperana.

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A TEMTICA DA RELIGIO SOB O PRISMA DA GEOGRAFIA

A necessidade de se aprofundar e conhecer os caminhos cientficos que a cincia da religio, mais especificamente dentro da Geografia, tem seguido ao longo dos ltimos anos, vai ao encontro do pensamento do gegrafo Mauricio de Almeida Abreu (1994), que nos mostra a importncia em se realizar ao longo do tempo a pesquisa bibliogrfica sobre aquilo que os gegrafos, ao longo dos anos, publicam e se dedicam, para assim perceber a grandeza dos estudos j realizados, bem como apontar crticas e novos caminhos a seguir. Assim teremos a capacidade de compreender como se estuda a religio dentro da perspectiva da geografia seguindo o melhor caminho para a compreenso do objeto de estudo proposto neste trabalho final de curso. Neste primeiro captulo, percebemos a necessidade de entender este campo, estudo da Religio, dentro da perspectiva dos estudos acadmicos j realizados, e de maneira espacial dentro da cincia geogrfica. Para isso faremos um apanhado geral4 sobre o estudo das religies nas cincias humanas e mais especificamente dentro da Geografia. Ao longo do tempo diversas disciplinas observaram no estudo da religio uma grande oportunidade de focar seus estudos. Como o caso da psicologia que atravs da religio procura entender o comportamento das pessoas. Autores clssicos da Sociologia como, mile Durkheim e Max Weber, tambm perceberam na religio um objeto de interesse. Ao perceber este panorama, Rosendhal (1995) levanta um questionamento muito importante: em qual sentido o estudo da religio, dentro da perspectiva geogrfica, se diferencia das outras cincias como a sociologia, a psicologia, a antropologia e outras? Quando analisamos a raiz deste campo de estudo focado na religio percebemos que os trabalhos cientficos que se destinam ao fenmeno religioso esto crescendo no mbito das cincias sociais. No entanto, devemos reconhecer que por muito tempo existiu uma barreira entre cincia e religio. Neste sentido os trabalhos acadmicos que voltavam seus olhares aos fenmenos religiosos nem sempre recebiam a ateno necessria da comunidade acadmica. Com o passarA reviso que se seguir partiu do princpio de que dentro dos limites de tempo e escopo de uma monografia de fim de curso, a anlise de uma quantidade menor de autores, mas com expressiva relevncia para os temas que relacionem geografia e religio, seria suficiente. Para um estudo mais aprofundado, recomenda-se a leitura da dissertao de mestrado defendida por Lopes (2010), na UERJ, intitulada Estudando um subcampo intelectual acadmico: a geografia da religio no Brasil 1989 -2009.4

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do tempo, sociologia e antropologia reconstruram suas maneiras de olhar a religio e, assim, perceberam que ainda haveria muito que compreender sobre este to complexo objeto de estudo. Notadamente este subcampo das cincias humanas desenvolveu um carter interdisciplinar que possibilita o aprofundamento e compreenso dos fenmenos religiosos. Em um primeiro momento, quando pensamos nas palavras espao e religio, podemos erroneamente imaginar que no se estabelece uma relao geogrfica entre elas, no podendo, portanto, realizar-se um estudo cientfico. Porm percebemos que a religio enquanto prtica social se origina dentro do espao geogrfico seja ele concreto ou simblico. O ser humano, mesmo nos primrdios da civilizao, sempre fez Geografia mesmo que no houvesse uma disciplina institucionalizada e a religio sempre esteve presente no cotidiano do ser humano como ferramenta que facilita o seu entendimento sobre a realidade. Geografia e religio, portanto, se encontram na dimenso espacial, pois a primeira analisa o espao e suas transformaes e a outra enquanto uma prtica social ocorre dentro deste espao. (ROSENDHAL, 1995) Segundo Flickeler (1990, apud Lopes, 2010, p. 31),[...] j que todas as religies criaram, no curso do seu desenvolvimento, um cultus mais ou menos manifesto, sendo o mesmo espacial e temporal perceptveis atravs de eventos mgicos ou simblicos, de objetos e comportamentos, os fenmenos religiosos aparecem em relao real com a superfcie terrestre, podendo ser, portanto estudados pela Geografia.

Tomando

estes

ensinamentos

como

fundamentais,

propem-se

um

aprofundamento sobre alguns autores da Geografia brasileira que perceberam na religio um rico objeto de estudo dentro da cincia geogrfica. Quando se pensa em religio, podem existir diversos caminhos e linhas de pesquisa dentro das cincias sociais e da prpria Geografia. Para que se possa ter uma ampla noo da variedade de temas e reflexes, iremos analisar alguns textos e artigos de Zeny Rosendhal, Sylvio Fausto Gil Filho, Monica Sampaio Machado, Aureanice de Mello Corra e Marcelo Alonso Morais. Tomando como referncia estes pensadores, notadamente percebemos que para cada um existe um olhar diante da religio enquanto objeto de estudo. Isso porque, em primeiro lugar, cada um deles observa um grupo etno-religioso distinto em seus trabalhos. Nos artigos e textos selecionados vamos conhecer um pouco sobre a expresso de diversas denominaes religiosas sob o ponto de vista do 13

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gegrafo. Alm disso, nota-se que para cada estudo em particular temas e conceitos distintos, analisados sob o prisma da Geografia, fica mais evidente, tais quais territrio/territorialidade, poder, sustentabilidade, gesto, simbolismo, identidade, poltica, espao de representao, entre outros.

1.1 Territorialidade Catlica: espao sagrado e hierpolis

Para Rosendhal(1994), a temtica da religio segue algumas linhas de pensamento que de certa forma podem nortear estudos subseqentes: F, espao, e tempo difuso e rea de abrangncia, centros de convergncia e irradiao, territrio e territorialidade, espao e lugar sagrado e, por fim, percepo, simbolismo e vivncia. Essas temticas podem ser analisadas de forma distinta, mas esto em constante troca, sendo assim complementares umas s outras. A f ganha importncia dentro deste estudo a partir do momento que percebemos que ela se manifesta, enquanto base daqueles acreditam em determinada religio, dentro de uma esfera de tempo e espao e, portanto necessita ser compreendida. De que forma determinada comunidade ou religio passa se disseminar ao longo do espao? Quais suas estratgias? E quais reais intenes possuem ao dominar mais e mais territrios? So questionamentos necessrios quando temos a inteno cientfica de compreender a dinmica das religies. O estudo de gegrafos como Jackson e Hudman (apud ROSENDHAL, 1995) mostram como as grandes religies se difundiram pelo mundo e de que forma influenciam o ambiente que ocupam. Tomando como exemplo o Cristianismo, percebemos o seu carter hierarquizado no que diz respeito a sua difuso, isto porque foi a partir da expanso do imprio Romano que adotou a religio como parte do Estado que os valores e prticas da religio foram sendo incorporados medida que o imprio se expandia para outras regies, povoados e grandes cidades. Podemos perceber que esse arcabouo cultural que compreende as religies s se pode ser ampliado medida que se convertem novos adeptos para sua crena. Em sua maioria, as esferas religiosas possuem centros de convergncia, onde seus fiis podem estar em contato direto com seu Deus, nas religies monotestas e deuses, nas religies politestas. A partir disso muitos estudos que visam a analisar este deslocamento espacial (fluxos) surgiram dentro da Geografia. Esses processos de migrao momentnea em direo aos santurios onde 14

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indivduos buscam benefcio espiritual e tambm prestar homenagem a determinada divindade possuem nveis internacionais, regionais e locais. So inmeros os exemplos de centros de peregrinao no territrio brasileiro, porm poucos gegrafos mergulharam sobre esta temtica de grande importncia para a compreenso das alteraes que o sagrado gera na construo de determinadas espacialidades. Seguindo a linha de pensamento e estudo proposto por Rosendahl(1995), no que diz respeito relao entre religio e espao dentro da cincia da Geografia, podemos tomar dois conceitos como fundamentais para entendermos a prtica religiosa: Territrio e territorialidade. Em outras palavras: nesta poderosa estratgia de controle de pessoas e coisas, ampliando muitas vezes o poder sobre territrios que a igreja se estrutura enquanto instituio. Territorialidade, por sua vez, significa o conjunto de prticas desenvolvido por instituies ou grupo no sentido de controlar um dado territrio. (ROSENDHAL, 1995, p.56).

Dentro do contexto da Geografia, a religio ganha fora, na medida em que atua na apropriao de determinados segmentos do espao, dotando-os de prticas culturais, que passam a afirmar determinada instituio como

dominadora/controladora de determinado territrio. A Igreja catlica ao longo do tempo e atravs de suas prticas religiosas foi, cada vez mais, ampliando seus territrios e de forma hierrquica e burocrtica se consolidou como uma instituio presente em todos os continentes. As religies podem ser vistas como prticas transformadoras dos espaos. Como se percebe no estudo Espao e Religio uma abordagem geogrfica (Rosendahl, 1996) a religio remete a algo sagrado que caracteriza e diferencia os lugares dando novos significados as relaes entre o homem e o espao. Se pensarmos a reflexo do sagrado estaremos levando em considerao o profano, ambos se manifestam nas cidades e podem ser percebidos no espao. O sagrado surge na vida do homem a partir do desejo eterno dos seres-humanos: sade, prosperidade e amor. A religio, portanto, assume papel fundamental na formao do sagrado. Segundo Durkheim (apud Rosendhal, 1994), o culto possui a funo primordial que aproxima, estreita a relao entre o fiel e o seu Deus. O espao sagrado pode ser considerado:Um campo de foras e de valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo, que o transporta para um meio distinto daquele no qual transcorre sua existncia. por meio de smbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua funo de

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mediao entre o homem e a divindade. E o espao sagrado enquanto expresso do sagrado, que possibilita ao homem entrar em contato com a realidade transcendente chamada deuses, nas religies politestas e Deus, nas monotestas. (ROSENDHAL, 1994, p.42).

Podemos considerar como sagrado toda a manifestao que se diferencia da rotina comum. Fica evidente que nem todas as marcas e rugosidades que se expressarem dentro de determinado espao sero expresses do sagrado. A palavra sagrado, por si s, pode ser vista como uma expresso puramente religiosa, porm ao pensar no conceito espao sagrado percebemos nitidamente a manifestao do sagrado em determinado lugar. A manifestao do sagrado no espao foi analisada primeiramente por Eliade (1995) em O Sagrado e o Profano: A essncia das Religies. Nesta obra, o historiador e mitlogo aponta para as hierofanias. Estas podem ser entendidas como manifestao do sagrado inseridas na experincia religiosa de determinado indivduo ou grupo. Seria a ruptura, o momento em que determinado espao passa a ter outra dimenso, neste caso Sagrada. Podemos dizer que o espao sagrado uma categoria criada por homens e mulherese que os fazem entender a realidade em que vivem. Outro fator marcante para o homem-religioso seria a natureza, sempre dotada de um valor sagrado. Para melhor entendermos:A ideia de que existem espaos sagrados e que pode existir um mundo no qual as imperfeies estaro ausentes, conduz o homem a suportar as dificuldades dirias. O homem no somente suporta as infelicidades da vida como tambm conduzido a imaginar realidades mais profundas, realidades mais autnticas do que aquelas que seus sentidos revelam. O homem consagra o espao por que sente necessidade de viver num mundo sagrado, de mover-se em um espao sagrado. O homem religioso desta maneira se exprime de formas simblicas que se relacionam no espao. (ROSENDHAL, 1995, p. 64).

Um carter marcante ao atentarmos nosso olhar para as cidades do mundo moderno sua intensa diviso territorial do trabalho, ou seja, cada vez mais as cidades possuem funes distintas/especficas, que passam a guiar suas relaes sociais, polticas e econmicas. Esse pensamento nos de suma importncia quando queremos perceber a dinmica que determinadas prticas religiosas geram nos grandes centros urbanos. Nesse sentido, talvez a maior contribuio de Rosendahl (1999) seja a de apontar para o surgimento do que a autora d a alcunha de hierpolis5 ou cidades-santurio, entendidas como certos centros de5

Para um estudo aprofundado acerca do conceito recomenda-se: Hierpolis: O Sagrado e o Urbano (ROSENDAHL,1999)

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convergncia religiosa, que por atrairem fluxos de peregrinos seja em perodos de festas religiosas ou contnuos ao longo do tempo, acabam por determinar a dinmica dos locais onde se localizam. Essa expresso do sagrado no espao gera, segundo a autora, consequncias concretas na dinmica destas localidades, que precisam criar condies de acesso e receptividade ao sagrado e seus espaos correlatos. As hierpolis, portanto, praticamente vivem em funo deste fluxo de peregrinos, seja esse semanal, mensal ou anual.6 Uma caracterstica marcante destas cidadessanturio seu alto grau de isolamento, normalmente localizadas em ambientes rurais distantes das grande cidades. Estas localidades normalmente precisam se estruturar (com estacionamento, acomodao, servios) para atender a este peregrino ou romeiro, como so chamados os devotos da f catlica. Alm disso, sempre se encontram lojas e barracas destinadas a vender objetos de devoo ao peregrino. O surgimento de restaurantes, farmcias e comrcios de artigos noreligiosos se faz como expresso do espao profano, isto , o lugar do no-sagrado, onde se destacam as atividades corriqueiras do cotidiano. Seguindo esta linha de pensamento a autora analisou dois santurios no interior de Gois e Piau, Muqum e Santa Cruz dos Milagres respectivamente. Neste estudo percebe-se um intenso fluxo de peregrinos que buscam nestes espaos sagrados o beneficio espiritual, bem como prestar agradecimento aos santos de sua devoo. Ao longo dos perodos em que os romeiros se instalam nestes espaos, pode-se perceber a intensa dinmica que geram sobre os mesmos. Nos perodos de maior fluxo, as cidades, que no ultrapassam 2.000 habitantes, podem chegar a receber 30.000 peregrinos, no caso de Santa Cruz dos Milagres; e 60.000 peregrinos, em Muqum. Uma das questes levantadas pela gegrafa a coexistncia entre sagrado e profano e as dificuldades analticas para se estabelecer onde um comea e o outro termina (ver Figura 1). Percebe-se, ento, uma teia de simbolismos onde:O Sagrado est no alto da colina, onde abriga o smbolo da devoo e se confunde com a igreja. O espao profano, na parte mais baixa do terreno, o espao destinado ao comrcio e ao lazer, numa espetacular mescla entre cerimnia

Esses lugares sagrados podem ser oriundos do local onde surgiu determinada religio ou serem criados e manifestados a partir de hierofanias como o caso da cidade de Lourdes na Frana, onde se deu a apario de Maria, me de Jesus Cristo e para onde se dirigem milhares de fieis catlicos. Esses centros de convergncia podem ser percebidos nas grandes religies disseminadas pelo mundo: Islamismo, Catolicismo e Budismo. Como exemplo: Meca, Jerusalm e Lubini, respectivamente.

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religiosa e atividades profanas. A missa, a procisso oficial. A dana, as frequentes bebedeiras e as brigas testemunham o profano. (ROSENDAHL, 1999, p. 49).

Podemos perceber que estes locais de peregrinao possuem um centro bem definido, onde se localiza a igreja, que seria o centro csmico, onde o poder sagrado est bem definido; e que fora dele, na periferia deste espao consagrado, esto as pessoas que rendem louvor ao santo (procisso). Existe, portanto, uma relao direta entre sagrado e profano, porm ambos no se misturam. (Rosendahl,1999).

Figura 1 Esquema do Espao Sagrado em Santa Cruz dos Milagres FONTE: ROSENDAHL (1999, p. 48)

Notadamente, estes espaos sagrados podem servir at mesmo de instrumentos polticos, visto que, em anos de eleies, muitos candidatos passam a fazer propagandas durante celebraes religiosas, demostrando assim, o carter poltico que as prticas religiosas carregam dentro de si. Outro fator de grande relevncia indagado pela autora sobre qual motivao esta multido de fiis traz no seu imaginrio para se submeter a situaes at mesmo inspitas nestes locais 18

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de peregrinao. Fica evidente o carter social que leva estas pessoas a buscar ajuda sobrenatural para seus anseios materiais. A partir deste panorama, podemos perceber nas prticas religiosas uma gama imensa de simbolismos que nos facilitam entender a realidade social que envolve os espaos sagrados.

1.2- Espao de Representao: um conceito chave para o estudo geo-religioso.

Quando se pensa em uma Geografia do Sagrado, Gil Filho (2001) nos orienta que devemos estar atentos teia de relaes que se estabelecem na experincia do sagrado, ou seja, devemos ir alm da espacialidade pura e simples do sagrado. Quando coisificamos determinada categoria de anlise podemos perder o essencial que so as relaes sociais e modificaes espaciais que o sagrado gera em determinado local. Esta categoria, Geografia do Sagrado, diz ele, pode ser dividida em trs dimenses, que de certa forma devem guiar um estudo cientfico que queira captar o que est no mago das prticas religiosas. Em primeiro lugar devemos olhar o indivduo enquanto produto de determinada prtica social, neste caso a religio. Sendo assim este evento ocorre em determinada escala temporal e espacial e ao mesmo tempo est em constante transformao. Esta prtica e discurso construdos ganham sentido pleno dentro de uma determinada instituio religiosa. A segunda dimenso est associada aos indivduos que fazem parte de determinada organizao/instituio e que de certa forma transmitem os discursos para determinados grupos. Seria o momento em que o discurso entra no contexto e passa a ser incorporado. Neste mbito percebemos subordinaes, divises, classes e julgamentos diferenciados. A terceira e ltima dimenso de anlise seria a instituio religiosa propriamente dita. Neste sentido percebemos a instituio como o reino de controle do indivduo, grupo e dizer. Seria o espao de representao enquanto expresso de determinada organizao, tendo carter plural e diverso no que tange sua formao. Podemos pensar em territorialidades tendo as instituies como principais agentes dentro de determinado territrio. A instituio seria, portanto, autora da prpria histria e detentora de uma forma de organizao vertical e hierrquica. O autor supracitado faz uma crtica ao pensamento geo-religioso que muitas das vezes desconsidera a principal questo referente ao sagrado: o sentimento religioso. Este sentimento gera marcas dentro do espao e portanto deve ser 19

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considerado em estudos que queiram compreender a dinmica de determinada prtica religiosa. Outro carter muito marcante nos estudos de Gil Filho seu carter interdisciplinar valorizando a contribuio de outras cincias, tais como, Sociologia, Antropologia, Psicologia e Teologia como contributos para maior compreenso dos fenmenos espaciais. Seu conceito mais trabalhado seria o espao de representao que para o presente trabalho servir de grande auxilio a partir do momento que percebe-se os espaos sagrados como representaes de determinadas instituies que se fazem presentes em determinado espao atravs de prticas religiosas e tradicionais que do forma e sentido ao territrio. Claramente inspirado por Lefebvre, o autor afirma que atravs das suas prticas sociais e mentais que os diversos grupos humanos geram modificaes na natureza e configuram uma grande miscelnea de relaes que por sua vez podem ser vistas como a representao do espao. J a teia de simbolismos que construda pode ser considerada o espao de representao propriamente dito. O espao de representao estaria, ento, intimamente ligado s relaes cotidianas, onde percebemos um grande lao afetivo. Sua natureza, essencialmente simblica, apresenta um dinamismo imenso. Esse conceito nos serve no sentido que buscamos entender a dinmica entre o fato religioso e a prtica social. A instituio religiosa, na qualidade de uma entidade que possui legitimidade diante da sociedade, pode ser considerada a manifestao concreta de afirmao da religio dentro de determinado espao. Outro ponto de suma importncia e que percebemos ao analisar os espaos sagrados que a instituio religiosa busca atravs do seu poder exercido, consciente e intencional controlar a sociedade. Surgem ento diversas territorialidades sagradas que passam a consolidar a instituio dentro do territrio. Como afirma Raffestin:O territrio [...] um espao onde se projetou um trabalho, seja energia e informao, e que, por consequncia, revela relaes marcadas pelo poder. O espao a priso original. E o territrio a priso que os homens constroem para si. (RAFFESTIN, 1993, p. 143-144).

Podemos perceber ao longo do territrio brasileiro que a Igreja Catlica tem grande impacto sobre os espaos, tornando-se assim uma instituio hegemnica. As polticas exercidas por esta instituio exercem influncia direta e indireta nos

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grupos e entidades religiosas a ela ligadas alm, claro, de estar sempre em conflito direto com outras entidades religiosas. O conceito de hegemonia, quando pensado no mbito das instituies religiosas, est ligado expanso de uma cultura e afirmao espacial dentro de determinado territrio. No inteno deste conceito apontar para o discurso religioso catlico como uma verdade mais prxima da salvao, to investigada pela cincia teolgica, apesar, claro, de muitas vezes a prpria instituio deixar transparecer tal ideia. Para as cincias humanas, o discurso catlico a formao institucional aliada construo de espaos de representao, que por si s a torna hegemnica. (GIL FILHO, 2003). Segundo o autor, a representao uma forma de conhecimento e independente do tempo e do espao, as formas de representar de determinado grupo social esto ligadas relao dual entre sujeito e objeto. Alm disso, a palavra representar nos remete muito mais que uma simples maneira de enxergar determinada realidade e nos direciona a algo mais profundo que pode ser caracterizado como uma viso de mundo articulada que possibilita a formao de modelos que organizam a realidade. Desse modo, Gil Filho afirma que um dos conceitos-chave para que se possa pensar e fazer um estudo cultural/religioso dentro da cincia geogrfica o espao de representao que pode ser entendido como:Uma instncia da experincia da espacialidade originria na contextualizao do sujeito. Sendo assim, trata-se de um espao simblico que perpassa o espao visvel e nos projeta no mundo. Desta maneira, articula-se ao espao da prtica social e de sua materialidade imediata. (GIL FILHO, 2003, p. 3).

O espao subjetivo, ou seja, no algo esttico mas sim produto de uma srie de reaes que um indivduo ou grupo realizam dentro de determinado territrio. Portanto os agentes sociais que do sentido e significado ao espao, dotando-o de uma natureza social. Indivduos e grupos cumprem o papel de transformadores e organizadores de determinadas representaes espaciais que iro variar de acordo com a inteno, seja ela poltica ou religiosa. Quando se pensa em produzir e pensar uma Geografia da Religio este conceito de representao espacial deve ser tratado e esmiuado. Sendo assim, tambm nos ensina Gil Filho que necessria a anlise profunda sobre como estes espaos de representaes se manifestam e, mais ainda, como funcionam e nos possibilitam entender a realidade social que vivemos ou analisamos enquanto objeto de estudo.

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O espao de representao na qualidade de categoria analtica da geografia se caracteriza como a expresso espacial de determinadas prticas sociais. Seguindo o pensamento de Durkheim(1994) podemos perceber que a partir das relaes coletivas e individuais com o espao que determinado grupo ou pessoa constri o seu universo representativo, ou seja, aquilo que guia sua relao com o espao e tambm com a sociedade. Quando se pensa no conceito de espao de representao deve-se considerar o pensamento do Historiador Mosse (1991, apud GIL FILHO, 2003) que faz uma ligao entre os sistemas nacionalistas totalitrios e a liturgia crist. O seu pensamento quer mostrar que atravs da apropriao de determinados discursos possvel dar novo sentido prtica espacial. Em outras palavras:Um culto religioso do poder poltico e do Estado, de certo a divindade seria o lder poltico revestido atravs da consagrao ritual, da representao, da investidura do Estado. Analogamente os sacerdotes seriam os polticos identificados com este poder temporal e talvez a oferenda s guerras inspiradas por ideologias nacionais. (GIL FILHO, 2003, p.5).

No podemos dizer que o espao de representao seja uma categoria do mundo moderno dessacralizado, mas sim uma ferramenta utilizada por instituies, comunidades e grupos sociais que, atravs do seu poder imanente em determinado territrio, tm o intuito de dar nova forma e significado aos espaos. Outro ponto muito importante quando se procura entender e analisar as representaes sociais diz respeito s relaes tempo-espao que se estabelecem, dando origem a relaes de poder. O poder nos remete idia de apropriao e relaes

hierarquizadas e consequentemente uma das formas de se manter esta hierarquia estabelecendo territrios. Estes ento originam um processo de legitimao e consolidao que conhecemos como territorialidade. O esquema a seguir (Figura 2) proposto pelo autor nos mostra como os espaos de representao constituem uma relao entre o fato religioso e a prtica social.

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Figura 2 Espao de Representao FONTE: GIL FILHO (1999)

Da periferia ao centro, podemos distinguir as seguintes relaes:(i) os reinos da poltica, do sagrado e do ethos que se expressam enquanto representao social; (ii) o crculo das categorias de mediao, o mito, o discurso, a identidade e o smbolo que permitem a visibilidade e as nuanas das categorias centrais; (iii) o crculo das categorias centrais, o poder, o fato religioso e a prtica social, cujo movimento de interao deriva do conceito de espao de representao. (GIL FILHO, 2003, p. 6).

Ao analisar a abordagem lefebvreriana, Gil Filho (2003) percebe que o autor realiza uma crtica ao modelo ocidental atual, que ao pensar a realidade social, acaba por no levar em conta a questo da espacialidade, para ele primordial quando se pretende entender as relaes sociais estabelecidas em determinado territrio. Ainda segundo o autor quando se pensa em espao social deve-se levar em conta diversos fatores como a ao de grupos sociais, fatores relacionados ao conhecimento, ideologias e representaes espaciais. Quando se pensa na configurao e formao do espao social devemos sempre ter em mente que este possui uma gama de objetos naturais e sociais que por sua vez esto imbudos de redes e vias que servem de caminho para a circulao de materiais, coisas e informaes. Os objetos dos quais Lefebvre nos fala tambm significam as relaes que se estabelecem. Portanto podemos concluir que o trabalho social transforma os objetos estabelecendo uma nova contextualizao espacial e temporal dos mesmos. Gil Filho ento esquematiza a formao da espacialidade a partir de trs dimenses, conforme a Figura 3, abaixo.

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Figura 3 Dimenses da Espacialidade FONTE: GIL FILHO (2001)

Para uma anlise mais profunda sobre o espao, o conceito de representao se faz muito importante, permitindo que se compreenda melhor a dinmica espacial. Podemos dizer que as representaes espaciais os espaos de representao e a prtica espacial so diferentes formas de se reproduzir o espao. Estas dimenses da espacialidade possuem um carter fluido sofrendo influncias umas das outras a todo momento. O processo histrico de formao do espao no pode estar preso a determinado perodo ou ordem vigente, pois ele est em constante formao e possui particularidades que muitas das vezes vo contra o modelo atual. O cotidiano uma expresso dos espaos de representao. J as representaes do espao do origem ao mundo das idias(Filosofia, Religio, tica) e a partir dessa interconexo e relao entre estes que se originam determinados espaos geogrficos. Com o passar do tempo e o desenvolvimento desta histria se articulam/formam redes que esto ao mesmo tempo subordinadas a estruturas polticas. Em outras palavras:A prtica mental e social do homem imprime transformaes na natureza que, atravs do entrelaamento das relaes sociais, configuram uma particular representao do espao. Por outro lado, a ao simblica aponta para um espao de representao. Cabe asseverar que espao e tempo no so inseparveis, mas um implica o outro. (GIL FILHO, 2003, p.12).

Gil Filho (2001) aponta para uma limitao da Geografia da Religio ao deixar de lado seu aspecto mais importante: sua sacralidade. Segundo ele, atualmente a abordagem religiosa dentro da Geografia estaria focada na relao entre religio, sociedade, cultura e meio ambiente, assim limitando a religio a uma instituio 24

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estritamente humana. Seguindo essa linha de pensamento, podemos ento definir a religio sob dois prismas distindos: sistemas simblicos e ideolgicos. Segundo GEERTZ (1989, apud GIL FILHO, 2001, p.182):[...] um sistema simblico que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposies e motivaes nos homens atravs da formulao de conceitos de uma ordem de existncia geral e vestindo essas concepes com tal aura de fatualidade que as disposies e motivaes parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1989, p.104,105)

Seria ento uma forma de camuflar a realidade social moldando as relaes e mantendo a ordem dentro da sociedade. J quando pensamos em um sistema ideolgico religioso admitimos a presena da religio como mantenedora da ordem atravs de um discurso, verdadeiro ou no, que possibilita a determinada ordem religiosa se manter no poder. A ideologia religiosa volta os seus discursos aos indivduos tornando-os sujeitos e parte daquele discurso transcedental que sempre proferido pela Divindade. Os sistemas simblicos e ideolgicos se enquadram dentro do estudo da Religio, porm no podemos limit-lo a isso. Devemos estar atentos sua profundidade e perceber um de seus aspectos mais particulares: sua sacralidade. A religio, portanto, a manifestao do sagrado no espao. Devemos ampliar nosso olhar; sempre atentos realidade social que engloba o sagrado. (GIL FILHO, 2001). O sagrado deve ser visto, portanto, como uma categoria de interpetrao e avaliao que est dentro de um sistema religioso. O sagrado possui seu aspecto racional, ou seja, at certo ponto pode ser explicado e definido atravs de conceitos e teorias. No entanto existem caractersticas no racionais inerentes ao sagrado que podem ser entendidas como sentimento religioso7 e que fogem ao entendimento conceitual puro e simples. Com isso cria-se um embate profundo entre racionalismo e religio. (OTTO, apud, GIL FILHO, 2001) Ao analisar a expericia do sagrado dentro de determinado espao e admitindo a existncia de sentimentos religiosos podemos perceber a exteriorizao do sagrado, ou seja, marcas, rugosidades, transformaes de carter real ou simblico que do nova forma ao espao. Seria como olhar a Deus na qualidade deQuando falamos em sentimento religioso estamos nos referindo a proposio de Otto (1992, apud GIL FILHO e GIL 2001) acerca do sentimento numinoso que trata-se de um estado afetivo especfico. Alm da emoo convencional o sentimento numinoso em si o que escapa a razo conceitual, s sendo possvel apreend-lo na medida em que observamos a reao por ele provocada (GIL FILHO e GIL, 2001, p.49)7

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um ser racional e, portanto, olhar a religio sob o aspecto racionalista. A experincia religiosa como uma representao humana.

1.3- O movimento pentecostal

Ao estudar a territorialidade Catlica no Estado do Paran Gil Filho (2003) aponta para uma mudana no que diz respeito ao crescimento e hegemonia da instituio. Percebe-se que o nmero de fiis catlicos a partir da dcada de 1950 comea a diminuir, em contrapartida o nmero de cristos evanglicos tende a aumentar em funo dos novos pentecostais e neopentecostais que surgem no Brasil a partir de 1910 com o aparecimento da Congregao Crist Brasileira e Assembleia de Deus, ambas com forte influncia dos movimentos oriundos dos EUA. As regies metropolitanas esto cada vez mais marcadas por esse acontecimento que podemos chamar de movimento pentecostal brasileiro que passa a nos mostrar uma ampliao cada vez maior desta nova instituio dentro do territrio nacional. Nas palavras do autor define-se territorialidade do sagrado como sendo a percepo das limitaes imperativas do controle e gesto de determinados espaos sagrados por parte de uma instituio religiosa (2003, p.96), ou seja, configura-se uma nova ordem sobre o territrio sagrado. Este movimento pentecostal entra em conflito com a lgica hegemnica catlica que passa a sofrer com a grande e ostensiva poltica pentecostal voltada aos grandes meios de comunicao, teologia da prosperidade, apelo emocional, retomada de prticas exorcistas entre outras caractersticas passando a moldar esta nova relao de poder religioso no brasil. Em outras palavras:O impacto regional do embate entre uma territorialidade catlica conservadora e hierrquica com uma temporalidade de longa durao e uma territorialidade pentecostal fragmentada, flexvel, e com uma temporalidade de curta durao se expressa na organizao espacial. (GIL FILHO, 2003, p. 97).

Diversos autores na Geografia esto percebendo este novo movimento pentecostal que surgiu no Brasil como um objeto de estudo interessante quando buscamos entender a lgica territorial que este estabelece com o espao. Nesse sentido a autora Monica Machado Sampaio (1992) realizou um estudo de caso em Niteri que busca compreender esta territorialidade pentecostal em formao. Como vimos anteriormente vrios autores, dentre eles grandes socilogos, se debruaram 26

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sobre a questo da religio afim de compreender as relaes sociais que estas formam. Segundo a abordagem Durkheimiana a questo da religio esta intimamente ligada a questes coletivas. O autor aponta para a coletividade como base da formao de Igrejas e formar Igrejas seria uma condio essencial de qualquer religio. Nesse sentido, as manifestaes coletivas to presentes no Pentecostalismo Protestante iro de certa forma favorecer a expanso da crena religiosa visto que uma comunidade de fieis que partilham da mesma crena e prtica religiosa passam a ajudar uns aos outros no que diz respeito as coisas materiais. Seria a afirmao do aspecto coletivo destas Igrejas. (MACHADO, 1992, p.40) E ainda baseada em seu resgate sociolgico afirma:[...] O pentecostalismo, enquanto uma crena protestante, vem desempenhar, embora em condies de desenvolvimento capitalista diferente das analisadas por Weber, um papel importante, com referncia a manuteno das relaes capitalistas de produo, que no pode ser negligenciado. Este papel refere-se conservao da ordem social vigente. De acordo com o que ser apresentado, a crena pentecostal vem funcionar como um instrumento de poder, de legitimao do status quo, um instrumento de controle social capaz de reunir, em uma mesma comunidade moral, um significativo nmero de fiis portadores de linhas de conduta de carter fundamentalmente passivo e contra-revolucionrio (MACHADO, 1992, p.41)

Ao longo deste trabalho Machado aponta para as ramificaes presentes dentro do protestantismo a fim de desmistificar o pensamento de que todo cristo protestante Pentecostal. Nesse sentido buscando na raiz da formao de cada um dos segmentos da f protestante percebe-se que a ramificao originria do Pentecostalismo provem do incio do sculo XX pautado por uma tica puritana que segundo Weber foi de suma importncia para a formao e consolidao do esprito capitalista moderno, ou seja, o pentecostalismo ao comportar uma raiz puritana, ir, de maneira incontestvel, auxiliar a reproduo das relaes sociais capitalistas(ibid, 1992, p.48). Percebe-se claramente o pensamento poltico-social que a referida autora aplica em sua dissertao de mestrado quando afirma sobre os crentes Pentecostais para eles esse mundo melhor no ser produto da ao do homem como ser social, mas do julgamento e ao do referido messias(ibid, 1992, p.50). Nesse sentido podemos perceber que este movimento pentecostal to presente e difundido no Brasil a partir do sculo XX como um importante objeto de estudo para a geografia

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da religio visto que suas prticas religiosas esto imbudas de carter poltico, social e econmico podendo assim ser muito esclarecedor para as cincias sociais. As Igrejas pentecostais apresentam um carter mais flexvel e

descentralizado no estando submetidas a decises de um clero profissional, ou seja, sua capacidade de expanso e tomada de decises se d mais no mbito pessoal podendo assim transpor territrios com maior facilidade. A questo estratgica marcante de difuso pentecostal so conhecidas como nucleao (clulas) que se tratam de um pastor ou crente que rene em sua prpria casa um grupo de pessoas no-crentes que tenham curiosidade em conhecer mais da Bblia. Desta forma se estabelecem estratgias de converso que at os dias de hoje so muito bem sucedidas (MACHADO, 1992, p.82) Outro fator de suma importncia quando atentamos nosso olhar s Igrejas seria percebe-las como uma instituio, ou seja, como qualquer grupo de pessoas constitudo para a realizao de tarefa especfica, de cunho econmico, social, poltico ou religioso(ibid, p.87). Nesse sentido todos estes atores sociais exercem poder sobre a sociedade nas mais variadas formas. No caso especfico percebe-se nestes territrios pentecostais uma forma clara de exercer seu poder sobre os espaos atravs de prticas que podemos denominar como territorialidades. Podemos perceber que toda a instituio, sendo ela religiosa ou no possui uma estratgia de ao que ir favorecer e criar as condies necessrias para o mantimento e crescimento desta dentro do espao geogrfico. Ao mesmo tempo que atravs de estratgias de ao dentro de determinado territrio instituies visam manter o seu poder e controle social de determinado espao as instituies pentecostais tambm no podem ter o seu carter religioso deixado de lado, ou seja, uma instituio que possui sua natureza essencialmente religiosa mas que utiliza de estratgias territoriais que possibilitam sua difuso no espao. As Igrejas Pentecostais no que diz respeito a suas territorialidades podem ser definidas da seguinte forma:[...] dinmica, incisiva e descentralizada, o que vem permitir muito facilmente sua difuso. Enquanto, por exemplo, a Igreja Catlica tem um territrio e uma territorialidade definida e at certo ponto esttica, a igreja pentecostal desenvolve uma estratgia espacial que vem apontar para um outro tipo de territrio e de territorialidade essencialmente informal e transitrio. Acredita-se que tal informalidade e transitoriedade so elementos fundamentais desta crena religiosa, que determinam no s seu sucesso em termos de expanso, como tambm especifica configurao espacial, configurao esta que no tem limites nem fronteiras. (MACHADO, 1992, p.159)

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Neste caso especfico analisado por Machado podemos perceber que se desenvolve nestas igrejas pentecostais uma territorialidade informal e fugaz caracterizada pela sua intensa transitoriedade e mobilidade, ou seja, a cada instante podem ser estabelecidos novos limites territoriais para sua atuao visto que a cada momento surgem novas igrejas dentro deste espao e sendo assim sua rea de atuao vai crescendo conforme o tempo. Fazendo um paralelo com a territorialidade presentes na Igreja Catlica que segunda a autora apresenta uma territorialidade formal e perene. Atravs do esquema baseado em Machado(1992) podemos compreender melhor esta diferena:

Figura 4 Religio e Territorialidade um esquema. FONTE: MACHADO (1992)

Estes grupos distintos, Pentecostais, podem ser um interessante objeto de estudo quando se visa dentro da cincia da Geografia compreender a dinmica espacial que se estabelecem nas relaes sociais sejam elas polticas, econmicas, culturais ou religiosas. Neste sentido a religio e mais especificamente este grupo distinto apresenta caractersticas territoriais que aos olhos do gegrafo podem tornar-se um poderoso objeto de anlise. Visto que crescem vertiginosamente e que apresentram estratgias de controle do espao diferentes das que percebemos nas instituies ditas dominantes, como a Igreja Catlica, podemos relevar a importncia deste territrios pentecostais para a Geografia.

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1.4- Umbanda: identidade, simbolismo e sustentabilidade.

Outro objeto de estudo muito presente na geografia da religio so as culturas afro-brasileiras, como o caso da Irmandade da Boa Morte8, analisada por Corra (2004) em sua tese de Doutorado. Ao perceber o carter simblico que este grupo etno-religioso representava desde seu surgimento a autora mostra a importncia da Irmandade da Boa Morte que atravs de suas prticas culturais e religiosas criou uma territorialidade marcada profundamente pela sua identidade afro-brasileira. Ao debruar seu olhar sobre o contexto social desta irmandade, a referida autora percebe que suas prticas rituais servem como afirmao de uma identidade, que ao longo do tempo e em funo de uma sociedade marcada pela escravido, vinha sendo desmanchada. Ao estabelecer um paralelo com o pensamento do antroplogo Damatta (1997), que faz reflexo acerca dos uniformes e fantasias, a gegrafa nos mostra que esta irmandade possui uma marca muito forte; suas vestimentas prprias, que as caracterizam e diferenciam dos demais grupos. Podemos perceber que as vestimentas deste grupo possuem um carter simblico, que como a fantasia, as transporta para o lugar que desejam e ao mesmo tempo as afirmam enquanto um grupo distinto que possui sua prpria identidade. Para melhor elucidarmos:[...] podemos sinalizar em nossa anlise, que a Beca configura para Boa Morte como um smbolo de poder, pois, esta, remete a posio central na estrutura da sociedade baiana que estas mulheres passam a exercer at o tempo presente, significando com esta ao, uma identidade social concreta que passa a operar em todos os nveis da vida das negras da Boa Morte [...]. (CORRA, 2004, p.122).

E continua afirmando:[...] a Irmandade da Boa Morte atravs das territorialidades entendidas sob nossa tica como estratgias engendradas pelo individuo ou grupo para constituio, manuteno e controle do seu territrio cultural semiografam assim, esta qualidade de territrio marcado por uma identidade afro-brasileira e por sua posio de fora e poder diante da sociedade baiana. (CORRA, 2004, p.132).

Ao analisar territrios e territorialidades de grupos etno-religiosos, focando em aspectos simblicos que suas prticas possuem e como possibilidade de se manter

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Irmandade da Boa Morte - composta por mulheres negras de nao Keto e Gege e conhecidas como as Nags libertas da igreja da Barroquinha, logradouro localizado no seio da rea central da cidade. Em suas obras destacam que esta confraria abrigava somente mulheres - organizadas pelos elos fraternos fomentados no cerne da lgica do movimento confraternial e que estas so responsveis pela fundao do primeiro terreiro de Candombl Il Ax Iy Nass Ok - considerado sob a tica da Geografia Cultural como o prototerritrio (CORRA, 2004, p.121)

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e formar uma identidade afro-brasileira, Corra afirma haver importante ferramenta para estudos subsequentes que queiram compreender as mais diversas identidades religiosas que possam surgir, independentemente de sua denominao. A religio pode ser vista de diversos ngulos. O gegrafo Marcelo Alonso Morais (2010) prope um olhar apurado sobre as potencialidades imbricadas na religio como uma ferramenta a ser explorada pelos gestores pblicos ao elaborarem projetos de desenvolvimento da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, visando sustentabilidade ambiental, j que estes grupos etno-religiosos possuem uma grande valorao da natureza em suas prticas ritualsticas. O autor prope um estudo focado nos valores sociais que a religio, neste caso a umbanda, pode trazer enquanto elemento constituinte de uma poltica pblica eficaz. Seguindo esta linha de pensamento:[...] acredita-se que polticas eficazes de sustentabilidade ambiental sero atingidas se, alm da preocupao com o econmico strictu senso, forem valorizadas as potencialidades poltico-sociais dos diversos grupos tnico-religiosos territorializados no espao. (MORAIS, 2010, p. 12).

Esta religio, marcada pelo seu imenso sincretismo, possui funo social que resgata grupos marginalizados da sociedade, dando-lhes nova funo atravs dos cultos e prticas solidrias. Assim como em outras religies, a umbanda pode ser uma formadora de identidades, muito conectadas natureza, o que

favorece/transforma esse grupo em potencial direto, gerando assim, polticas de educao ambiental no territrio em que estiver sendo cristalizado. (MORAIS, 2010). Neste sentido, o autor nos mostra que uma sustentabilidade ambiental, to almejada na sociedade atual, s ser alcanada quando os poderes pblicos voltarem seus olhares para as idiossincrasias de cada parcela da populao e ao mesmo tempo utilizarem estas como ferramentas capazes de modelar o espao sob uma nova tica, no somente econmica, mas tica, social e por que no simblica. Segundo Masefoli (2005, apud Morais, 2010, p.7), vivemos hoje um perodo marcado pelo fim das grandes certezas ideolgicas; conscientes tambm do cansao que invade os grandes valores culturais que moldaram a modernidade devemos estar atentos aos novos acontecimentos buscando uma nova resposta ao desenvolvimento que as cincias humanas devem alcanar para a sociedade atual. Como reflexo das transformaes geradas pelo urbano dentro dos espaos percebemos que as sociedades, ditas contemporneas, formaram/criaram uma maneira de viver urbana. Sendo assim Morais (2010) nos conduz em seu trabalho a 31

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uma reflexo sobre o espao urbano da regio metropolitana do Rio de Janeiro enquanto um ambiente em constante processo de formao, recriando-se, e tomando nova forma, a cada novo acontecimento. Levando em considerao que a umbanda, enquanto expresso religiosa, surgiu a partir da mistura de prticas oriundas de diversas culturas (africana, indgena, crist-ocidental e esprita) percebe-se o choque entre o antigo e o novo. A partir disso, o autor prope discusso em que questiona o que na sociedade atual valorizado, ou seja, as coisas ditas modernas. Busca-se, portanto, a valorao daquilo que parece estar sendo perdido (culturas, valores e prticas arcaicas), mas que ao ver do gegrafo, vem sendo recriado e reapropriado, de maneira especial, dentro do espao da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro. De maneira geral podemos ento perceber que este estudo objetiva, atravs do resgate e valorizao de praticas culturais e religiosas, criar a possibilidade de uma nova forma de gesto ser implementada nesta regio, que possui anseios materiais e imateriais, que no esto sendo atendidos pelo modelo atual de desenvolvimento, que notadamente percebe-se como puramente econmico. Sendo assim aponta-se para uma resistncia com conscincia onde estes grupos podero servir como formadores de uma identidade que se sinta capaz de ocupar lugares elevados dentro da esfera social, poltica e econmica. O autor aponta, assim, para um desenvolvimento com sustentabilidades, onde a prtica religiosa ser uma grande ferramenta de valorizao e perpetuao do meio ambiente. Morais (2010) mostra, portanto, a importncia de criarmos/aprofundarmos, de modo especial os prprios umbandistas, o conhecimento sobre esta cultura religiosa, para assim deixarmos os pr-conceitos inseridos na sociedade ocidental que sataniza a umbanda e ignora o fato de sua prtica religiosa estar impregnada de valores ambientais que podem ser usados na formao social de diversos indivduos.

1.5- Uma proposta de anlise.

Aps este pequeno espectro acerca da temtica da religio, sob o prisma da Geografia, podemos apontar para o direcionamento que a anlise destes espaos sagrados denominados como Fazenda da Esperana iro seguir a partir do prximo captulo. Apesar das grandes diferenas tericas e metodolgicas que cada trabalho apresenta, com suas especificidades, cada pensamento nos servir para um olhar 32

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mais atento s realidades estudadas no presente trabalho. Neste sentido nos servir de maneira especial o direcionamento proposto por Rosendahl (1994) para a temtica da geografia e religio. Visto que, o objetivo principal deste estudo compreender a dinmica de funcionamento, bem como as relaes que se estabelecem neste espao, iremos atentar nossos olhares sobre a vivncia, percepo e simbolismos presentes nestes. Alm disso, ir validar nosso pensamento a proposta de Gil Fillho em seu artigo Por uma Geografia do Sagrado (2001), que como visto pressupe trs dimenses para anlise deste. Nesse

sentido, o conceito lefebvreriano, espao de representao, muito abordado e valorizado pelo gegrafo supracitado, servir de suporte, j que buscamos uma compreenso dos processos de construo de discursos bem como a apropriao de outros e sua influncia sobre a realidade material, os espaos. Alm disso, ao perceber o choque entre urbano e rural que se estabelece nestas comunidades iremos nos aproximar da anlise de Morais (2010) que prope um choque entre antigo e novo. A construo de identidades, atravs da formao de um estilo de vida prprio estabelece uma conexo muito interessante com o conceito vidalino de gnero de vida, e portanto, ser aprofundado. Enfim, de certa forma, todos os estudos nos servem de inspirao, uns em maior e outros em menor escala. Aprofundemos o nosso pensamento.

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2. FAZENDA DA ESPERANA: FORMAO E CONSOLIDAO DE UM GNERO DE VIDA PRPRIO.

A Fazenda da Esperana, teve seu incio em meados da dcada de 1980 e desde ento vem se expandindo com uma velocidade imensa. Est presente em quase todos os continentes e, ao todo, so mais de setenta fazendas espalhadas pelo mundo (Fig. 5). Podemos perceber, nestes chamados santurios modernos da nova evangelizao,9 uma maneira de viver distinta, baseada no trip: espiritualidade, trabalho e convivncia. Um dos aspectos fundamentais quando se pensa uma comunidade/unidade destas fazendas seu carter de autossustentabilidade. Cada unidade possui uma vocao10, segundo seus gestores, e, portanto, vive do prprio trabalho que varia conforme a regio e lugar.

Nome dado a estas unidades, que se destinam a recuperao de dependentes, por Dom Bernardino Marchi, Bispo de Caruaru/PE. ( www.fazenda.org.br)10

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Para entendermos melhor a vocao de cada Fazenda podemos tomar como exemplo duas unidades que servem de modelo para as demais espalhadas pelo mundo: Centro Masculino e Me da Esperana, ambas localizadas em Guaratinguet. A primeira baseia seus trabalhos em: fbrica de reciclagem de plstico, fbrica de gua sanitria, garrafas plsticas, madeira plstica, marcenaria, artesanato, horta e criao de galinhas. J a segunda, que se dedica a recuperao de mulheres, baseia seu trabalho em uma fbrica de alimentos congelados Freezing Point artesanatos e um restaurante na cidade.

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Figura 5 Representao espacial da distribuio das unidades da Fazenda da Esperana. FONTE: Agenda da Fazenda da Esperana(2011)

Podemos perceber atravs do mapa que as Fazendas da Esperana esto bem distribudas no espao, alcanando um nmero imenso de pases. Mas uma carcterstica mpar destas comunidades seu carter rural, ou seja, normalmente so afastadas dos grandes centros urbanos11, com grande rea verde que possibilitam aos jovens em recuperao um maior contato com a natureza. No necessariamente so espaos rurais12 propriamente ditos mas sim espaos com caracterstica rurais como a presena de vegetao ainda preservada, animais, horta etc.

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Cf. http://www.fazenda.org.br/localizacao/localizacao-fazendas.php Cf. http://www.youtube.com/watch?v=PU2zh-7eOB8

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Como toda instituio religiosa, as Fazendas da Esperana possuem uma histria um tanto curiosa no que diz respeito ao seu surgimento. Essa construo histrica sobre a fundao desta obra social passada aos jovens recuperandos como uma forma ldica ou at mesmo como uma parbola para que estes jovens sintam que fazem parte desta histria; que tudo comeou em um determinado ponto, mas que esse processo histrico continua com cada um que ali busca sua recuperao. O espao subjetivo, ou seja, no algo esttico e sim produto de uma srie de reaes que um indivduo ou grupo realizam dentro de determinado territrio. Portanto os agentes sociais que do sentido e significado ao espao dando a este uma natureza social. Estes atores cumprem um papel de transformadores e organizadores de determinadas representaes espaciais que iro variar de acordo com a inteno, seja ela poltica ou religiosa. Neste sentido e j fazendo uma ponte com a realidade que estamos analisando nas Fazendas da Esperana nota-se a construo de um discurso que cria e forma no imaginrio dos indivduos uma determinada viso sobre o uso e abuso de drogas que antes estes no possuam. Este discurso transmitido atravs da linguagem, do som, das idias e tambm atravs das prticas cotidianas que levam o individuo a repensar sua conduta. O estudo de Goffman(1996) nos mostra a relao entre o comportamento social de acordo com a regio o que confirma a idia de que os atores sociais constroem as representaes que configuram determinado territrio. Seus fundadores foram Frei Hans Stapel, frade franciscano, que em junho de 1979 se transferiu do Rio de Janeiro, onde realizou seus estudos de Teologia, para a cidade de Guaratinguet. L ele conheceu Nelson Giovanelli Rosendo dos Santos com o qual comeou uma relao de intensa amizade. Surgiu ento na parquia onde Frei Hans atuava um grupo que se reunia diariamente aps as missas para meditar o evangelho e trocar experincias sobre como conseguiram por em prtica s palavras tiradas como inspirao. Esta dinmica de viver a palavra foi trazida por Frei Hans que conheceu o ideal do movimento dos focolares13, na Alemanha sua terra natal. Encantado com este movimento, os focolares, Frei Hans passou a propor aos frequentadores da Parquia de Guaratinguet a viverem as palavras do

Vale ressaltar que as prticas cotidianas, como Comunho de Almas e Troca de Experincia, e a maneira de viver, pautada nos valores do evangelho posto em prtica, vivido at hoje em todas as Fazendas da Esperana, tem como inspirao este movimento conhecido mundialmente como Focolares que simboliza o fogo no lar. (SANTOS, 2009)

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evangelho at as sua maiores consequncias. Nelson, com seus dezessete anos, sempre foi um jovem inquieto que buscava grandes ideais. Ele mesmo afirma em depoimento14 que, quando criana na cidade de So Paulo ao olhar para a cidade do alto de um prdio e ver tantas coisas negativas como pobreza, violncia, abandono e as demais mazelas da sociedade que todos conhecemos, pensava e imaginava se seria possvel construir/formar um lugar onde as pessoas vivessem felizes, apesar de problemas e dificuldades. Hoje, diz ele perceber que aquele sonho se tornou realidade e muitas comunidades esto surgindo dando lugar a um novo estilo de vida construindo novos territrios que no se submetem a lgica de reproduo do espao nos moldes capitalistas atuais. O estatuto prprio desta comunidade nos diz:

Toda esta obra se chamou Fazenda da Esperana. Ningum planejou nada, s queriam viver o Evangelho. E no meio de uma cultura globalizada, secularizada, consumista, Deus revelou seu amor para estas pessoas, proveniente desta sociedade que perdeu a f e os valores do Evangelho. Ao mesmo tempo revelou a potncia de sua palavra, que vivida concretamente realiza milagres e transforma as pessoas. Esta experincia se tornou para os jovens uma luz, dando-lhes uma nova esperana. E eles se tornam simultaneamente evangelizadores. As pessoas que vem o testemunho destes homens novos , percebem que podem tocar Deus na transformao do jovem e descobrem Deus-amor [...] ( STAPEL, 2009, p.7)

Instigado pelo ideal proposto por Frei Hans, Nelson passa a buscar viver o evangelho em sua vida cotidiana, realizando vrias experincias de ajuda aos pobres e doentes entre outras atividades ligadas Igreja. Porm a mais marcante e que mudou sua vida e de milhares de jovens foi em uma esquina prxima a Parquia Nossa Senhora da Glria. Aps o trabalho Nelson seguia direto para participar da missa e sempre que voltava para casa com sua bicicleta via jovens nessa esquina, consumindo e traficando drogas. Era uma boca de fumo. Podemos resumir o sentimento deste jovem da seguinte forma:

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Cf. Da esquina para o mundo(DVD)

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Todas as noites, Nelson via esse vaivm de jovens. Meses a fio, no caminho para casa, viu a mesma cena. Dentro dele havia um misto de medo, compaixo e interesse por eles. Quem so eles? E a famlia deles? Por que consomem drogas? So violentos? [...] (SANTOS, 2009, p.52)

Certo dia ao passar pela esquina Nelson resolve se aproximar deles, e como desculpa pede para aprender a fazer uma das pulseiras de artesanato15, que um deles confeccionava por ali. Com o passar do tempo Nelson foi ganhando o respeito e amizade do grupo, que no entendiam muito bem o que um jovem como ele fazia neste lugar. Na esquina foram vrias as experincias que aos poucos lhe renderam o apelido de maninho. Depois de algum tempo um dos jovens, chamado Antonio16, resolve pedir a ajuda de Nelson para se livrar das drogas. Nasce ento a Fazenda da Esperana. Mais tarde outros tambm procuram Nelson e o grupo comea a aumentar. A primeira casa de recuperao era na cidade, com todos os perigos e tentaes, no meio do mundo.(SANTOS, 2009) Depois de algum tempo, dentro da cidade, Frei Hans decide doar um terreno distante do centro urbano para esta experincia com dependentes qumicos. Aos poucos foram percebendo como deviam lidar com os jovens e foram estabelecendo regras que deveriam ser seguidas para que se tivesse maior sucesso na recuperao. (SANTOS, 2009) Esse discurso histrico ganha importncia no presente estudo no momento que nos mostra como construdo dentro da prpria instituio uma vilanizao dos espaos urbanos como o espao da perdio, ou seja, do homem velho que deve ser combatido por meio de prticas tradicionais ligadas ao espao rural e aos valores religiosos podendo assim alcancar a construo do homem novo e de certa forma a cura/libertao das drogas. Fica evidente que as prticas cotidianas/espaciais17 que existem dentro do territrio das Fazendas da Esperana so resultado da reproduo de determinadas prticas j existentes em comunidades religiosas(Franciscanos e Focolarinos). Neste15 16

At hoje so confeccionadas pulseiras de artesanato em diversas Fazendas da Esperana.

Conhecido como o nmero um vive at hoje dentro das Fazendas da Esperana, como voluntrio, auxiliando na recuperao de dependentes. muito comum jovens largarem suas vidas para se doar nesta comunidade. Prticas Cotidianas: meditao do evangelho, orao do tero, trabalho artesanal e manual, missa e adorao, orao antes das refeies, troca de experincias e comunho de almas. Em todas elas percebemos uma valorizao da subjetividade muito ligada aos valores religiosos e espirituais.

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sentido, ocorre o que conhecemos como apropriao e reproduo de discursos, muito ligados a valores tradicionais, presentes nas instituies religiosas e de modo marcante na Igreja Catlica. Neste sentido os espaos da Fazenda da Esperana so construdos a partir de representaes j existentes. Ao longo do tempo estes discursos, prticas, valores que so apropriados so modelados para ganhar pleno sentido dentro do territrio. Se por um lado, existe um deslocamento dos ambientes urbanos para reas rurais, onde existe maior contato com a natureza e de certa forma prope-se uma reinveno da maneira de viver e lidar com o espao geogrfico atravs de prticas cotidianas(tradicionais e religiosas), tambm percebemos que ao trmino deste perodo nas Fazendas da Esperana, homens e mulheres, retornam para o espao das cidades tendo que transferir esta forma de viver para um ambiente totalmente diferente daquele ao qual estavam vivendo. Neste processo de migrao entre campo e cidade podemos fazer uma analogia com as instituies que influenciaram seu surgimento. So Francisco por exemplo, foi um burgus que deixou toda a riqueza para traz afim de encontrar valores maiores, subjetivos, e sempre em contato forte com a natureza. Da o isolamento dos grandes centros urbanos. J os Focolares, fundado por uma jovem Italiana durante a segunda guerra, tinham como objetivo cuidar dos feridos da guerra, abraar a humanidade, vivendo a proposta do amor na cidade de Trento onde viviam. Da o surgimento das clulas urbanas que tem como principal objetivo lutar contra os males das drogas no ceio familiar. Ambos lutavam contra a violncia. Portando a partir da apropriao de discursos j existentes surge uma nova comunidade, que resgata valores tradicionais, afim de modificar o modus-vivendi de jovens que esto nas garras das drogas. Diferente de outras entidades que buscam auxiliar na recuperao e auxlio a dependentes qumicos, a Fazenda da Esperana no oferece ajuda atravs de medicamentos, psiclogos ou psiquiatras: busca apenas oferecer ao jovem uma nova maneira de ver e lidar com a realidade, atravs de prticas cotidianas, muito ligadas espiritualidade e convivncia, onde os jovens buscam colocar em prtica uma frase tirada do evangelho. O trabalho outro item muito levado a srio dentro das Fazendas, onde o prprio jovem passa a gerar, como fruto deste, o rendimento e sustentao das fazendas. Todo os meses a partir do trabalho dos jovens produzida uma cesta no valor de um salrio mnimo que as famlias compram e passam a vender os produtos na cidade como forma de divulgar o trabalho da 39

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Fazenda e participar da recuperao e trabalho do jovem. Seria como a se a famlia pagasse pelo trabalho do jovem. Nesse sentido dentro deste espao, denominado Fazenda da Esperana, existem certas prticas cotidianas que passam a ditar a vida dos indivduos que buscam nestes espaos uma forma de deixar para traz sua vida de drogadio. Para ser aceito nesta comunidade preciso que o prprio jovem que quer mudar sua forma de viver escreva uma carta de prprio punho pedindo ajuda e contando sua experincia de vida. Aps isso, a Fazenda da Esperana emite uma carta resposta onde explica toda a dinmica do cotidiano destas comunidades para que o jovem saiba que existem regras e formas de se viver ao longo do dia na Fazenda da Esperana. O perodo de recuperao nestas comunidades teraputicas dura em mdia um ano. No que diz respeito s j referidas prticas e ao trabalho cotidiano, podemos dizer que o dia-a-dia uma constante repetio de atividades tradicionais ligadas ao ambiente rural. Dentre outras atividades, destacamos: lidar com a terra plantando e cultivando diversas culturas para a prpria alimentao; cuidar de animais como coelhos, galinhas, gado, porcos etc; produzir doces e queijos; produzir materiais artesanais muitas das vezes com materiais da prpria natureza, como cestas de cip ou outros objetos, feitos de bamb; produzir pes e biscoitos artesanalmente, em uma pequena padaria; cuidar e harmonizar18 os espaos das casas e jardins; buscar lenha na floresta para aquecer as casas em perodos de frio. Alm destas prticas cotidianas so inseridas na vida dos jovens prticas religiosas como: orao do tero; meditao do evangelho; agradecimento das refeies; missas dirias; comunho de almas;19 troca de experincia;20 catequese e acompanhamento espiritual. Todas as unidades da Fazenda so divididas em diversas casas21, que representam uma famlia, e, nestas, h dois coordenadores tm a funo de ser os

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Uma forma de linguagem muito presente na Fazenda a questo da harmonia (arrumao, organizao, limpeza etc.) dos locais onde cada um ocupa dentro do espao. Segundo Frei Hans um dos fundadores desta obra pela harmonia de uma casa voc pode perceber se os jovens esto mesmo mudando de vida.

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Comunho de Almas seria o momento onde cada jovem fala de sua vida, como est sua alma naquela semana, a partir do trip: trabalho, convivncia e espiritualidade. Troca de Experincia o momento onde cada jovem relata uma experincia concreta que viveu consigo mesmo e com o prximo, baseada no evangelho, que o fez ter atitudes novas como ser humano que quer mudar de vida.

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A estas casas normalmente se d o nome de um Santo da Igreja Catlica e entre os jovens existe a linguagem: famlia So Francisco, Famlia So Pedro etc.

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pais da casa, ou seja, tm o papel de orientar e dividir tarefas entre os seus integrantes. Normalmente em cada uma das casas moram vinte jovens divididos em vrios quartos, onde podem dormir at seis pessoas. Quando chegam Fazenda, os internos passam os primeiros trs meses sem receber visitas, comunicando-se com o mundo apenas por cartas. Aps esse tempo, o jovem, ento, recebe todo primeiro domingo do ms a visita da famlia. Um dos aspectos marcantes da dinmica espacial a intensa convivncia entre as pessoas, facilitada pela ausncia de atividades modernas como assistir televiso ou acessar a Internet, que aos olhos dos fundadores e coordenadores no geram aproximao entre as pessoas. Durante uma semana em cada casa escolhida a figura denominada como harmonia, que seria a pessoa responsvel pela arrumao e limpeza da casa, preparao da comida, organizao de uma forma geral do espao. O restante da famlia sai durante o dia para executar as tarefas cotidianas de trabalho. Nesse sentido ocorre o resgate da responsabilidade e do sentido de unio, onde cada integrante da casa possui um compromisso e deve cumpri-lo. Entre os moradores de cada quarto feita uma organizao de forma que a cada dia um faa a limpeza tanto dos quartos como dos banheiros. A questo do horrio muito valorizada entre os recuperandos e sempre respeitado o cronograma de cada atividade. Para melhor entendermos a dinmica do dia-a-dia podemos analisar a tabela abaixo:

Tabela 1 - Rotina diria nas Fazendas da Esperana

6:00h 6:30h 7:00h 7:30h 8:00h 11:45h 13:00h 16:30h 17:00h 18:00h 41

Despertar Orao do Tero e Meditao do Evangelho Agradecimento e caf da manh Harmonia dos quartos Trabalho Agradecimento e almoo Trabalho Agradecimento e caf da tarde Momento livre Lazer (futebol, rio, musculao etc.) Missa

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19:30h 20:00h 22:00h

Agradecimento e jantarComunho de almas e Troca de experincia (quartas e sbados)

Toque de recolher dormirFonte: Elaborada pelo autor ao acompanhar a dinmica das comunidades

Existem certas atividades que acontecem apenas aos finais de semana, como a exibio de filmes, escolhidos pelos coordenadores de cada unidade da fazenda. Normalmente so filmes22 que passem alguma mensagem e que estejam formando os jovens de alguma forma. Tambm nos finais de semana, aos sbados, todos assistem ao programa Fazendo Esperana23 que transmitido pela Rede Vida de televiso. Durante a semana podem mudar os dias de algumas atividades como a missa que acontece nas quartas-feiras, por exemplo, s 7h da manh. Esse dia muito interessante, pois todas as Fazendas do mundo assistem ao vivo a missa diretamente da primeira das Fazendas da Esperana em Guaratinguet, participando de forma intensa do culto como se estivesse acontecendo ali naquele determinado espao. At mesmo prticas e formas de celebrao litrgica da missa como a comunho, o ato de ajoelhar-se diante do altar so executados mesmo a celebrao ocorrendo a mais de 200 quilmetros de distncia daquele espao geogrfico. Diante desta descrio de atividades, podemos perceber que os

recuperandos passam a assumir uma proposta de vida totalmente diferente daquela que tinham antes, construindo, no espao e pela prxis da Fazenda Esperana, um homem novo, termo comumente repetido por gestores, colaboradores e recuperandos. Nesse sentido, qualquer atitude que no seja agradvel aos olhos de Deus e destoe do que proposto e acordado na Fazenda, passa a ser vista como atitude de homem-velho por parte dos prprios internos que para alm do controle de seus prprios impulsos, fazem parte, ainda que involuntariamente, de certo esquema de vigilncia. Aps este olhar sobre o cotidiano destas comunidades e suas prticas

tradicionais, muito ligadas as sociedades rurais mais antigas, que acontecem em suas respectivas unidades podemos perceber a formao de um gnero de vida22

Exemplos de filmes exibidos aos jovens: Irmo Sol, Irm Lua, Na natureza selvagem, Gran Torino, A procura da felicidade, Um sonho possvel, Duelo de Tits etc. 23 Cf. http://www.youtube.com/watch?v=KJB-bu7tKw4

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rural, muito ligado a geografia tradicional. Mesmo que este suposto rural seja uma construo da prpria instituio que se apropria de determinado espao dotando-o de valores e prticas antigas que hoje em dia no mais esto presentes nos ambientes urbanos notamos este resgate de um modus-vivendi se aproxima da abordagem de Sorre que percebe a transformao de uma sociedade rural para uma sociedade urbano-industrial onde determinadas formas de vida, valores, prticas e gneros de vida de uma forma geral passam a se transformar no mais fazendo sentido dentro de determinados territrios. Neste sentido percebemos nestas prticas cotidianas, repetidas ao longo do dia, como uma forma de resgatar ainda que inconscientemente um gnero de vida mais tradicional, ou seja, rural. Dentro dessa perspectiva de mudana e construo do homem novo, surge fora dos limites geogrficos da Fazenda da Esperana o grupo chamado Esperana Viva, que tem como principal objetivo transpor o espao da Fazenda para alm dos seu territrio, ou seja, para o mundo designao utilizada para se referir a tudo que est fora dos limites da Fazenda , criando e vivenciando novas relaes sociais dentro da cidade. Uma das caractersticas deste grupo fazer com que o recuperando mantenha, na cidade, as prticas e posturas adquiridas no ambiente rural da Fazenda. Como nos mostra o estatuto da Fazenda da Esperana:O grupo esperana viva (GEV) uma extenso da Fazenda Esperana nas cidades e uma reunio aberta a todos que desejam viver a mesma espiritualidade da Fazenda da Esperana, na qual ex-dependentes qumicos, familiares destes, voluntrios e qualquer pessoa interessada, se encontram para meditar o evangelho, trocar experincias vividas, reafirmar sua f e o propsito de viver o amor como estilo de vida (Regulamento Interno GEV 2010)

Essas clulas urbanas chamadas Grupo Esperana Viva tm como papel servir de suporte para os jovens que retornam para a sociedade. Este grupo, portanto, entendido como uma expresso da vida tradicional que fora resgatado dentro dos territrios da Fazenda da Esperana. A ideia do grupo levar a vida da Fazenda para as cidades e de certa forma romper com