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No regresso à escola, os gaiatos quase-felizes de Cristina Lourido + valter hugo mãe em entrevista por Fernando Nunes + Exposição de fotografia “Plásticos” de Pedro Escobar + Festival Walk & Talk contado per quem lá andou e falou + A cura para o cancro no mar dos Açores por Sílvia Lino + e muito mais novidades: lugares açorianos, nobeliárquicos, intervenção, 20 cantigas dos açores, diferenças... a curiidade salvou o gato* O BOLETIM DO QUE POR CA DE FAZ QUINZENAL 24 SET A 6 OUT 2011 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA º 65 ´

Fazendo 65

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boletim do que por cá se faz

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Page 1: Fazendo 65

No regresso à escola, os gaiatos quase-felizes de Cristina Lourido + valter hugo mãe em entrevista por Fernando Nunes + Exposição de fotografia “Plásticos” de Pedro Escobar + Festival Walk & Talk contado per quem lá andou e falou + A cura para o cancro no mar dos Açores por Sílvia Lino + e muito mais novidades: lugares açorianos, nobeliárquicos, intervenção, 20 cantigas dos açores, diferenças...

a curiosidade salvou o gato*

O BOLETIM DO QUE POR CA DE FAZQUINZENAL 24 SET A 6 OUT 2011 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

º65

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Page 2: Fazendo 65

O Walk&Talk foi o primeiro festival de arte urbana dos Açores, invadiu as ruas de Ponta Delgada com intervenções de três dezenas de artistas portugueses e estrangeiros. Este festival inédito propõe a reflexão sobre a dicotomia do espaço público, desafiando os artistas e a população local a contribuírem para a transformação da capital insular num museu ao ar livre, global e onde todos participam e comunicam.“O espaço público é o local privilegiado para a apresentação, discussão e interpretação de novas problemáticas e paradigmas sócio-culturais por estar acessível a todos, independentemente do género, raça, etnia, idade ou status. Quando nos oferece razões para aguçar o nosso sentido critico, acabamos por ser envolvidos num

processo criativo que indica novas perspectivas. Numa sociedade que pouco se pronuncia e que não participa na dinâmica social, é preciso haver confronto.Daí o WALK&TALK, um movimento para a fim das paredes brancas e do povo mudo.” A ideia surgiu desse pressuposto. Queríamos provar que é possível descentralizar a cultura dos grandes centros urbanos, mas também cativar novos

públicos e desmistificar a velha dicotomia arte/vandalismo. Principalmente nos Açores onde a arte tende e ter dois extremos: o popular e o elitista. Faltava um meio termo, algo que atingisse de diferentes formas um publico mais vasto. Quando não somos obrigados a determinada situação usufruímos muito mais dela, daí a insistência em criar um “museu” ao ar livre onde as pessoas são confrontadas com a arte de uma forma ocasional. Com o importante apoio da DRJ | DRT e de mais 40 entidades e indivíduos, demos inicio à contribuição e mobilização por uma

cidade com mensagem. 30 artistas de todo a parte ofereceram a sua arte às ruas e ajudaram a criar o museu.No final, a receptividade da população local foi surpreendente. Gerou-se uma conversa muito saudável à volta da arte urbana, dos artistas preferidos, das intervenções pela cidade, da exposição colectiva e das interpretações artísticas.

Houve um diálogo no espaço público e a sociedade sentiu que podia participar nessa

conversa. É sinal que não somos tão amorfos quanto isso. Para o ano há mais WALK&TALK e novas intervenções. Mais info em www.facebook.com/walktalkmovement”Promotor: ANDA&FALA Interpretação Cultural www.walktalkazores.govJesse James Moniz e Diana Sousa

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Estamos no início de setembro, a viagem é feita num barco que

faz a travessia do canal sem grandes demoras, sem temperatura nem ziguezague para alvoroço e com velocidade de cruzeiro. O mar está calmo e o céu encoberto. De um lado está São Jorge, recortado pelas suas fajãs, estendido no seu manto verde, recolhido na sua ondulação horizontal. Quem avista repentinamente o Cais do Pico depara-se com um conjunto de edifícios virados para o mar, casas de forte personalidade caiadas de branco, com varandas de madeira enfeitadas, onde sobressaem as molduras dos vãos e os socos em pedra. São Roque do Pico caracteriza-se pelo seu combinado erudito, vetusto complexo edificado ao longo da sua marginal, pontuada pelo edifício da Casa de Despacho e pela Casa das Barcas. A onomástica da toponímia anuncia também um passado bravio – o beco dos baleeiros, a rua do poço, surgindo no horizonte uma muralha de pedra com conversadeiras (banquetas), para além da rampa onde está situada uma estátua do rei Dom Dinis, inaugurada a dia 16 de Agosto de 1940, em dia de avião com lançamento de hortênsias pelo concelho. Fernando Nunes

açorianoslugares

Luna, a um tempo no-mundo e fora-do-mundoEstreante na Escola dos Flamengos, 6 anos.Flamengos – uma das freguesias mais sofridas no sismo de 98, atingiu o triângulo Faial-Pico-S.Jorge. Nenhuma casa ficou inteira, nenhuma casa ficou de pé. Foi apenas há 10 anos. Estive presente nas memórias de dor e susto, arrepia ouvir os testemunhos. As casas recomeçaram, novas. Assim também: a escola, a junta de freguesia, o salão, o campo de jogos; permanece fendida a Igreja e o Farol, deus manco e a marinha falida.A Luna desenha divinalmente bem, utiliza perspectiva, ponto de fuga, sombra; é tão real que inadvertidamente toco o papel para sentir a textura, o alto-relevo e acreditem (quase) tem. No recreio questiona-me sobre a constituição das plantas, a resistência dos muros – verdadeiro espírito científico; mas nas outras áreas de estudo pé-coxeia como quando joga à “Macaca”.Associal, autónoma e independente é excluída pelos/as parceiros/as e sub-compreendida pelos/as profs. Sugeri uma observação especializada para despistagem de um provável talento-extra, anuíram. Enquanto esperamos a Luna derrete-se no seu mundo mágico, alheia à trivialidade quotidiana. Tem um incrível sentido de justiça: só chora se despeitada, não pela violência física da agressão, nunca acusa os/as colegas explica neutralmente a ocorrência. Que lição de dignidade! É difícil olharmos o mundo de frente se tivermos os olhos constantemente abertos.

Flamengos (Faial), Nov. 10

Estado de Direito Precisa-seCaro cidadão, pela sua legítima defesa pessoal, e consequentemente a legítima defesa do país, fazemos-lhe um convite à ocultação e manipulação de quaisquer dados relativos aos seus rendimentos que o façam pagar menos impostos e receber a maior quantia possível ao final do ano. Caso algum agente da autoridade ou do ministério público o abordar reaja com: (1) Uma gargalhada (2) Uma

foto do actual Presidente da Região da Autónoma da Madeira.

Xénio, o justo-e-o-injusto Miúdo de cerca-de-8-anos, garoto com menos de 4000 dias, puto que não viveu ainda 100 mil horas; frequenta o 1º ano na Escola da Montanha. Família de problemas exponencialmente complicados. Pais separados: pai impedido pelo tribunal de se aproximar dele, da casa, da escola; mãe, pelo mesmo tribunal, em situação de perder a custódia do Xénio.Filho/a sobra, quase sempre, muito.De 2ª a 6ª feira o Xénio estaciona numa instituição para crianças órfãs, aos fins-de-semana a carreira devolve-o a casa. Mas é mesmo só casa: paredes, cadeiras, …, as pessoas evaporadas; e quando estão o Xénio vê coisas que-não-são-não-podem-ser-verdadeiras, os próprios pés a querer fugir dali para fora.Este rapaz passa do estado de semi-graça em desgraça para semi-graça em desgraça para …; todas as semanas, cansadamente há pelo menos 6 meses; vomita injúria atrás de injúria, os lábios desacostumados de sorrir há-que-tempos. Não é fatalidade, talvez lentidãozinha dos serviços, do sistema. Felicidade de gente estagna em saldo, em salga, até desenferrujarem as instituições de apoio e depois, …, depois fica-se hipotecado, resistindo na margem da folha, à espera da hora de voltar a Ser, desejando ter sido querido.Na escola é vê-lo correndo com vento e bola, fazendo rampas incríveis de skate, rebolando nos relvados e pelados, empinando outros/as meninos/as; também pirateia zanga, bate, graffita paredes e descansa.Porra de vida ser órfão/ã de pais/mães-vivos/as.

Ribeirinha (Pico), Fev. 11Cristina Lourido

quaseEstórias de gaiatos

felizes

,CRONICA

Gato caseiro, matreiro, useiro, mia enrolado, pede biqueiro. Exige afecto, o chão, o tecto e deixa o dejecto fora da caixa. Mando-o ‘pra rua que é nua, que é crua mas ele recua. Prefere o divã, a manta de lã, a lata aberta, comida que é certa e nunca lhe falta. E assim ficou e o ano passou, outro e mais outro até que pensou: É tudo igual, normal, banal. Só sei dormir, pedir, existir. Olhou para porta, que é torta, que é morta e a Curiosidade gritou: “Anda ‘pra fora, Vai-te embora!” O gato assustado negou o recado. “Que gatos, que patos, que cactos conheces? Casas, estradas, ruas, pessoas? E outras tantas coisas boas!” A porta fechou-se e o gato pensou no que se passou. Dormiu sobre o assunto. Acordou, comeu presunto. Saiu para a rua e não voltou. Pensa-se que a curiosidade o matou, mas a verdade é que ela o salvou. Lia Goulart

*

O Fazendo - um conjunto de 8 pequenas folhas e, quem diria, com estatuto de Sr. jornal, publicado quinzenalmente e impresso apenas 400 vezes por edição para uma população mundial de 6 biliões de leitores - tem, apesar da sua aparente pequenez, tendência para a elaboração de planos megalómanos, irracionais e de incrível ousadia. Ilustremos com um exemplo: o Fazendo pensa que os Açores são uma só ilha. Imaginem então o espanto de qualquer um quando o Fazendo diz que os barcos servem apenas para andar à roda. Perguntam-lhe: ouviste falar da viagem terrível do cruzeiro do canal quando este ia do Faial para o Pico? O Fazendo fica confuso porque sempre que olha para o Pico não vê mar e, quando olha para o cruzeiro do canal, está sempre encalhado. O paradoxo, explica-se, reside na raiz do conceito de ‘distância’ entre uma coisa e outra. As pessoas pensam que ‘distância’ se mede em metros, quilómetros ou milhas mas não é bem assim. A ‘distância’ entre uma e qualquer outra coisa é relativa: depende da vontade. Se a vontade é pouca há mais mar e menos terra e se a vontade é muita há mais terra e menos mar. É por isso que o Fazendo diz, de quando a quando, que um dia, durante uma travessia do Faial ao Pico, os 400 metros de profundidade do canal se vão reduzir a 10 centímetros, o cruzeiro vai encalhar sem o mestre Almeida entender bem porquê e as pessoas vão calçar as suas melhores botas de cano ou montar as suas vacas mais robustas e continuar a travessia até ao Pico. Ainda assim, mais tarde aparece um espertalhão que exclama: a distância pode reduzir-se mas cada ilha continuará pintada da mesma cor. É verdade, a cada ilha a sua côr: o Faial é azul, a Graciosa é branca, o Pico é cinzento… o problema é que o Fazendo sofre de um agudo e extremo daltonismo. Mostram-lhe uma bandeira azul e ele vê uma verde, mostram-lhe uma amarela e ele vê uma vermelha, e por aí fora. A discussão foi sempre tanta que o Fazendo resolveu comprar uns óculos da Ray Ban, da mais alta categoria, com os quais qualquer cor aparece como a junção de todas as cores e tudo aquilo que não tem cor não aparece. Resumindo, a megalomania ingénua do Fazendo tem como objectivo pegar em nove pequenos pedaços de terra e fazer deles um só, sem cantos, sem partes e sem bandeiras.Esta 4ª versão do Fazendo com um design fresco, elegante e moderno, cuidadosamente criado por Lia Goulart, é um pequeno passo na direcção de encalhar o cruzeiro do canal. A partir de agora a grande e majestosa agenda cultural que se encontra no verso do jornal será conjunta com a programação cultural do Pico, onde constará também o horário das lanchas. Mas não é tudo. As portas estão abertas no que diz respeito a colaboradores e coordenadores residentes ou naturais da ilha do Pico e mais além, como a artistas e designers. Entretanto, a tiragem aumentou para 500 exemplares, alguns dos quais serão transportados por couriers, treinados na arte de Moisés, até ao Pico. Para além de projectos megalómanos, o Fazendo tem uma agenda escondida de menor escala: a de reduzir a distância entre as pessoas através da colaboração e cooperação conjunta. Com este propósito foi introduzido no jornal uma temática extra com o intuito de dar lugar a intervenções artísticas, poemas, divagações inter-galácticas ou de promover a plena e simples discussão do panorama actual. Convidamos, como sempre, todos os interessados a participarem e esperamos que novos laços se criem, novas ideias se formem e que a vontade cresça. Jácome Armas

Editorial A Megalomania do Fazendo

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ENTREVISTA

Valter Hugo Mãe escreveu um novo livro, desta feita com maiúsculas, e com o título “O Filho de Mil Homens”. O livro narra a história de Crisóstomo que, ao completar os quarenta anos de idade, não sabe o que é a paternidade. Um homem quer ser pai e para que isso aconteça vai inventando uma família, tão clara e essencial como qualquer outra. O Fazendo esteve à conversa com o escritor que esteve já na Ilha Graciosa e quer voltar o mais brevemente possível ao arquipélago.

F: O teu livro de poemas “Contabilidade” esteve nas livrarias por alturas do Natal. Depois, estiveste a escrever o teu novo romance que sairá a 23 deste mês. Como é que foi escrever a aventura de um homem que chega aos quarenta anos sentindo tremendamente a falta de um filho?

VHM:Escrever O filho de mil homens foi muito especial. Arranjo sempre modo de os meus livros me servirem de escola, e eu precisava de aprender muito sobre esta sensação nova de uma certa solidão. Há uma solidão específica para quem não tem filhos. Não tenho filhos e isso não me sai da cabeça. Não é que tenha escrito algo autobiográfico no sentido factual, escrevi algo ficcionado cujos sentimentos são verdadeiros. F: Uma pergunta fundamental: quando é que começaste a escrever?

VHM: Desde de muito miúdo que escrevo versos e pequenas histórias. Logo na escola primária, ao dominar as primeiras palavras, comecei a inventar pequenas frases que julgava bonitas. Depois, aos dez anos, quando a minha família se mudou de Paços de Ferreira para Vila do Conde, a poesia, de um modo mais consciente, passou a ser algo de todos os dias. Era-me a companhia mais desejada para carpir as saudades que sentia da minha antiga terra e de tantos amigos que lá deixara. Creio que depois passei para a fase dos amores. Com chorrilhos intermináveis

de desejo, dor de corno e sensualidade. Era para conquistar namoradas. Deu certo algumas vezes.

F: Como é que te defines: poeta, músico, escritor ou artista plástico?

VHM: Sou um escritor, o que incluirá o ser poeta também. O resto é tudo pela experiência, nunca pela expectativa de profissionalização. O resto, dito de outro modo, não é para ser levado demasiado a sério.

F: Qual foi a importância da escola na tua formação literária?

VHM: Sobretudo a formação universi-tária foi-me muito cara. Licenciei-me em Direito e considero que durante este curso fui submetido a uma disciplina de rigor discursivo que muito aproveita a quem quer ser escritor. O Direito é o domínio esplendoroso da semântica e da retórica. Se soubermos o que quere-mos de um curso assim, pode ser a mel-hor formação de todas.

F: O que é que gostavas mais na escola do teu tempo?

VHM: Gostava das aulas de Ciências da Natureza, Filosofia e Psicologia. Odiava Matemática e odiei Latim. Gostava muito dos professores que privilegiavam a oralidade em detrimento dos testes. Gostava que pudéssemos debater assuntos nas aulas. Gostava de colocar questões que fugiam aos programas mas que iam ao encontro real das minhas curiosidades.

F: O que é que gostarias de dizer aos alunos que querem ser escritores?

VHM: Ler e escrever muito e nunca de-sistir. Observar. Ouvir. É importante ser-se um bom ouvinte. Quem nunca ouve os outros corre o risco de não ter nada para dizer.

F: Há muito que tencionas regressar ao arquipélago açoriano. O que esperas reencontrar?

Hugo MãeValterO Filho de Mil Homens

novo livro de Valter Hugo Mãe

VHM: Passei uma semana na Ilha Graciosa e tenho dito a toda a gente que é o lugar mais belo do mundo. Já viajei muito e continuo a adorar a memória que tenho dessa ilha. Imediatamente tive von-tade de escrever um livro so-bre o arquipélago. A expecta-tiva em relação a São Miguel, por exemplo, é absoluta. Vou amar a oportunidade de ir às ilhas. Será muito significativo para mim.

F: Para terminar, qual é a importância da arte no teu quotidiano?

VHM: Sem arte ficaria como sem alma. Só consigo gostar de estar vivo se puder emocionar-me com a bela expressão da arte. Os livros, a música, os filmes, a pintura, tudo me é essencial todos os dias. Preciso de me rodear de criatividade. Não concebo a vida como um percurso sem criação. Preciso de criar e de ver o que criam os outros. Preciso sempre de me maravilhar.Fernando Nunes

É seguro dizer que o jovem Mowgli, a pantera negra Bagheera, o urso Baloo e o tigre Shere-Khan são hoje personagens mais conhecidas devido ao último filme de animação produzido pelo próprio Walt Disney - O Livro da Selva (1967). O filme foi baseado no livro com o mesmo título (1894), um conjunto de histórias em tom de fábula em que os animais são antropomorfizados e em que a personagem principal é um rapazinho abandonado em bebé na selva e criado por lobos desde então. As “crianças selvagens” e o seu isolamento completo face à sociedade era um tema caro ao mundo desde os ensaios de Rousseau a que as descobertas de Lévi-Strauss dos meninos-lobo encontrados precisamente na Índia em 1911 vieram avivar em termos de teorias de aquisição da linguagem e de psicologia do desenvolvimento. Mas a ideia de Kipling - nascido e criado na Índia, embora súbdito britânico – era fazer contos alegóricos da sociedade da época, metaforizando a sua política, movimentos nascentes, costumes, leis morais, ética, e perigos. A comunidade da selva do livro de Kipling tem um código ético tão interessante e corajoso que inspirou muitos na época – inclusivé Baden-Powell, fundador do Escutismo, que assim teve a ideia para os jovens Lobitos. Kipling ganhou o Nobel da Literatura em 1907 “pelo seu poder de observação, imaginação original, virilidade de ideias e extraordinário talento narrativo”. Foi o primeiro escritor de língua inglesa a recebê-lo. Continuam a ser polémicas as suas obras: ora é visto como um emblema do colonialismo, ora se detêm nele como um génio versátil e inovador. Certo é que as suas histórias são ainda hoje atractivas, sobretudo para os rapazinhos aventureiros. Carla Cook

NOBE

LIAR

QUIC

OS Kipling,Rudyard

Autógrafo seguido de Autocolantes é a estreia literária de Paulo Campos dos Reis. O autor nascido em 1974, diga-se, é do melhor que há a dizer poesia a viver em terras portuguesas. Editado pela extinta “Quasi edições” no ano de 2005, o livro conta também com delicadas e singelas ilustrações de Alex Gozblau. O opúsculo

abre com um poema de cariz confessional: “Eu acredito no meu pai/nascido em 1941/ quando vem, de manhã, todo nu/ tapar-me com um cobertor.” Dos três autógrafos iniciais em forma de verso passamos para os três autocolantes a roçar o surrealismo em prosa escorreita. “Morcego”; “Helder”; “A Chave” são os títulos destas narrativas promissoras. Registe-se assim a clarividência, a sagacidade e ritmo de “Helder” para nos perguntarmos por onde andará este amador de palavras que nos prometeu letras há cinco anos atrás. Fernando Nunes

Paulo Campos dos ReisLITERATURA

A Pata da TartarugaUma circunferência incompleta,

a pata da tartaruga.Na realidade são o monte que guia ao queimado

e o vale sem nome que os separa,para que o que guia não se queime.

Tudo tem um sentido e todos os montes o têm… o do alto…Mas só alguns chegam ao alto tão alto

que passam a ser o mais alto…e de monte passam a um nome bem mais imponente,montanha.Ou pico do pico, pico dos picos.

Picus, porque vinifica.Quando o negro vapor de água esconde a ilha da mesma

cor,a tartaruga sente-se só no oceano.

Como se o Pico fosse literalmente Picus, um Deus,uma miragem, uma sensação,uma religião que está nos olhose não interfere no rumo da pequena tartaruga.Também a sua pata se enche de bruma nesses dias de solidão…mas a solidão é hipnotizante, vazia de ruído,

cheia de silêncio, baía de calma...em que só as águas vivas se mexem e todo o mar

parece adormecido.Parece.

Se esses dias não existissem, talvez a tartaruga não soubesse a falta que a montanha lhe faz. Catarina Krug

POEMA PORTO PIM

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4 FAZENDO + 24 SET A 6 OUT 2011 5 FAZENDO + 24 SET A 6 OUT 2011

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É com enorme prazer e redobrada energia que a secção de música do Fazendo prepara as malas para mais uma viagem alucinante, desta vez pelo fantástico 4. O quarto ano, a quarta viagem. O quarto escuro da cultura veraneante abre agora as janelas aos ensolarados dias de Outono, Inverno, Primavera e restantes estações, e ler a página de música do Fazendo combina com as folhas caducas a caírem, autêntico veículos de mudança dando lugar a uma nova folhagem, um novo ímpeto criador. Consta pelos meandros dos percursos cavernosos das decadentes instalações do jornal, que o assunto promete. Haverá música para todos! Desde o rock, o pop-rock, o pop-pop, o super-pop, o alternativo, o índie (música de índios), o jazz, o reggae, o dub, o trip, o freak, o chick, o frip, entre outros. Teremos música para bebés, música para adultos, música para a pré--adolescência, música para momentos difíceis, para momentos fáceis, e para momentos mais ou menos, música para casamentos e baptizados, música para os sábados, domingos e feriados, música a metro, música no metro, nos autocarros e nas linhas ferroviárias de todo o país, música comovente, envolvente, deprimente, e tudo o que é preciso para se sentir feliz, música para chorar, para rir sem parar, e até música para parar. Parar e ouvir, é urgente nos desenfreados dias da sociedade moderna. É por isso que não lhe damos música nenhuma, apenas o motivamos

Música Os primeiros povoadores que, a partir de meados do século XV, se fixaram nos Açores, sobretudo os mais abastados, trouxeram consigo escravos africanos em número não determinado. Sabe-se que esses escravos negros não viviam em comunidade e, por conseguinte, não procriavam entre si. Eles limitavam-se a servir os seus amos. Quem tinha o poder e o direito de fazer filhos à escrava negra era o homem branco. Ora, como comprova a genética, o filho de uma negra e de um branco ao fim de muitas gerações é branco. Isto explica a ausência de negritude nos Açores até ao século XIX, altura em que alguns negros, procedentes do Brasil, vieram parar a estas ilhas. Já no século XX alguma negritude chega até nós, por via africana e, sobretudo, devido ao processo de descolonização verificado em 1975. Mas uma negritude de raiz é coisa que nunca houve no arquipélago açoriano. Na cultura popular açoriana ficaram reminiscências dessa presença africana e dessa negritude. No Romanceiro dos Açores, recolhido por Teófilo Braga, temos os Romances Mouriscos, sendo que dois deles, o “Romance do Mouro atraiçoado” e “O cativo de Argel” chegam até aos nossos dias por via da oralidade.Na linguagem popular açoriana ainda hoje escutamos, da boca dos mais velhos, expressões como “não te metas em africanadas” (sarilhos), “foi uma africanada” (acto de intrepidez, coragem); “Ó Bijagós!” ou “Ó

bijagodes!” (referindo-se a pessoa mal ajeitada; recorde-se que Bijagós é um arquipélago que fica próximo da Guiné).No campo musical temos “Olhos negros” (ou “Olhos pretos”), canção de criação local (ilha Terceira), um verdadeiro hino de amor aos olhos da amada. Trata-se de uma cantiga que possui uma grande riqueza melódica e revela uma origem mais artística do que popular. Na minha opinião terá sido escrita e musicada por alguém com muito bom gosto musical e apurada sensibilidade poética - possivelmente um padre ou um mestre escola. Os olhos negros de que fala a canção tanto nos podem remeter para África como para o Brasil. No primeiro caso, canta-se:

“Os teus olhos negros, negrosSão gentios, são gentios da Guiné;Ai da Guiné por serem negrosDa Guiné por serem negrosGentios por não ter fé.”Mas, por razões históricas que se prendem com a emigração açoriana para o Brasil na segunda metade do século XVIII, é possível que tal negritude também tenha a ver com as terras de Vera Cruz:

“Olhos negros são cativosSão cativos do império brasileiro;Não há paixão como a últimaNão há paixão como a últimaNem amor como o primeiro”.

MUSICA

Olhos Negrosou da negritude nos Açores

Na ilha de São Miguel existe uma cantiga tradicional chamada “Merciana” que fala, essa sim, de uma negritude estritamente africana e que evoca o tempo da escravatura:

“Merciana, minha negraVai fiar teu algodãoQue estes rapazes de agoraPrometem saias e não dão”.

Ouvi, na ilha Graciosa, mas suponho que não é exclusivo daquela ilha, uma canção chamada “As Pretas”, cuja letra nos remete para o espaço brasileiro:

“Nós éramos trinta pretasTodas vindas do sertão…”

Segundo Pedro da Silveira, na ilha das Flores havia uma cantiga, chamada “Preto”, de que hoje restam versões nos Cedros e Flamengos (ilha do Faial) e Calheta de Nesquim (Ilha do Pico) e dão conta de um negro que reivindica para si o direito de amar as brancas:

“Eu sou mulato da ChinaBoneco de enfeitiçarQuando chego ao pé das brancasTambém as sei abraçar.

Também toco violãoTambém me sei menearQuando chego ao pé das brancasTambém as sei abraçar”.

Finalmente na toponímia temos, na ilha Terceira, a Lagoa do Negro e, na ilha de São Jorge, a Baía do Negro, a Baía do Mulato e a Grota do Negro.Victor Rui Dores

para todos

Carta da Horta

Horta 20 de Setembro de 1923

Em primeiro lugar saüdamos o “Eco Cedrense” e desejamos-lhe muitas prosperidades. Retirou no “Lima” à Ilha Terceira a continuar a sua tournée artística pelos Açores a Grande companhia Internacional de Circo Equestre “América Show”, da direcção do sr. Artur Konyot e administração do português sr. José Figueroa.Apraz-nos registar o grandiosissimo

sucesso alcançado por esta companhia nesta cidade, conseguindo em 15 dias dar 12 espectáculos nocturnos e 2 matinés sempre com as maiores enchentes. Tivemos ocasião de apreciar artistas portuguêses como o ginasta sr. George, os dois irmãos Ibérios da escada da morte, o equilibrista sr. Bernardo, que nos seus trabalhos eram simplesmente admiraveis, e os palhaços Gordo e Jean a quem o “Diario de Noticias,” em seu número de 6 de Setembro na sua pàgina teatral, faz elogiosas referencias.

Tivemos tambem o praser de ver a pequena Dorita, a artista equestre mais pequena de todo o mundo, contando apenas 6 anos de idade nos seus trabalhos nos cavalos Alba e Boiara e que pela primeira vez aqui realizou a sua festa artistica. Saüdando toda a companhia, desejamos que nas restantes ilhas do arquipélago tenham o mesmo acolhimento que os faialenses lhes dispensaram.A vida desportiva tem estado agora em periodo de calma, constando que no principio da época seremos visitados

E se a cura para o Cancro estiver no mar profundo dos Açores!?Mar profundo é um conceito que embora possa alterar-se ligeiramente é geralmente aceite como áreas com profundidades maiores de 200 metros. Tendo em conta que a profundidade média na região dos Açores é de 3000 a 3200 metros e que apenas cerca de 1% da região dos Açores tem menos de 200 metros, podemos dizer que quase todo o mar da região dos Açores

por alguns teams das ilhas Terceira e S. Miguel.Muito brevemente, pela primeira vez na paroquial igreja das Angustias celebrar se-ha com toda a pompa a solene festividade do sr. Bom Jesus, e a tocante cerimónia da 1.ª comunhão solene ás crianças; reabrindo por essa ocasião pela terceira e última vez a quermesse a favor daquele templo, Arievlis

Grafia segundo o original encontrado em “O Eco Cedrense” (Revista Quinzenal), 25 de Setembro de 1923

é profundo. Nas profundezas deste mar existe todo um mundo marinho bem diferente: mais frio, a luz pouco entra e os organismos que aí vivem estão sujeitos a maiores pressões. Estas características fazem com que os animais de profundidade, para além de crescerem devagar, alcançarem a maturidade tarde e por isso demorarem muito mais tempo para se reproduzir (excepções observadas para os animais das fontes hidrotermais), tenham outras adaptações biológicas que lhes permitem viver nesses ambientes.E que adaptações são estas que os torna capazes de viver nesses ambientes?

Ainda não sabemos...mas a nossa aposta vai para os lípidos (as gorduras) e mais concretamente nos Ácidos Gordos. Há cerca de 10 anos que, no âmbito de estudos de ecologia do mar profundo e ambiente hidrotermais se estudam ácidos gordos no departamento de oceanografia e pescas (DOP) da Universidade dos Açores. Estas moléculas, porque existem em todos os organismos vivos constituem uma das mais diversificadas classes de produtos naturais: fazem parte das membranas celulares e têm um papel crucial no funcionamento e viabilidade das células. E porque existem cada vez mais estudos que referem o potencial destes compostos de origem marinha para combater várias doenças, decidimos investigar nós próprios. Aproveitando o conhecimento adquirido ao longo dos anos pelo DOP em ecologia do mar profundo e ambiente hidrotermais (fruto de mais de 30 publicações), num estudo pioneiro vão agora ser aplicadas as mesmas técnicas que permitem extrair estas moléculas dos animais de profundidade da

região dos Açores, para serem testadas as suas potencialidades no combate a duas das doenças humanas que mais impacto têm a nível mundial: o cancro e a malária. Nesta primeira abordagem de biotecnologia marinha vão ser

usados apenas animais abundantes na região, especialmente os que são trazidos pelos aparelhos de pesca (tanto da pesca comercial como a de investigação), fazendo já parte desta

bioprospecção esponjas, corais, caranguejos, ouriços, estrelas do mar, camarões e mexilhões hidrotermais. Este estudo com a duração de 4 anos é apenas possível graças à grande cooperação entre os vários investigadores e pescadores que existe desde há muito no DOP já que são os animais trazidos em excelentes condições de preservação que vão ser testados. É caso para dizer: “tudo o que vem à rede e não é peixe...vai para o laboratório para ver se cura o cancro!”.Silvia Lino

para que a descubra, pela selva, pelos campos abertos da liberdade criativa, pelas lojas da especialidade, pelas prateleiras empoeiradas da casa dos vossos avós, pela rua, no carro, nos filmes, nas lojas de coisas infantis, nos cafés, nas repartições da tesouraria pública, ou simplesmente em casa, enquanto desfruta de uma bebida hidratante em boa companhia. Por falar em casa, daremos especial relevo à música para trabalhos domésticos; música para cozinhar, música para lidar com electrodomésticos e maridos, música para exercitar o corpo, música para problemas conjugais, e outros mais anormais. E porque o universo musical é universal e bastante musical, procuraremos trazer ao leitor o conhecimento sobre o melhor som que sai das colunas amplificadas do mundo, deste e do outro, mais além. Por fim, fica um apelo à participação livre dos prezados leitores, incluindo presidiários, de forma a enriquecer e diversificar a página musical do Fazendo, a única que ainda vai dando alguma dignidade a este jornal. Boas leituras e boas audições. Gaspar Pedro

carta da horta para os cedros

“Plásticos”, fotografias a plástico moldado. Bonecos que já não estão nas mãos de crianças há muito tempo. Do saco do lixo passaram à lixeira. Tudo exposto em materiais crus. Estão lá, assim tal e qual. Pedro Escobar é como um agente do CSI. Não mexe, só fotografa. E bem que parecem crimes. Uns mortos pelo tempo (anos e intempéries), outros mortos pelos ex-donos. Golpes, enxertos, truncagens. Isto são fotogramas de um Toy Story para maiores de 18... com todas as possam acrescentar.Pedro Escobar, cedrense sempre atento, é fotógrafo, recolector, aproveitador, realizador, explorador, cultivador, transformador, coleccionador... Não só no lixo (as molduras também são de lá) mas em todo o lado. No mar, nas hortas, nas casas, nas estradas, nas ruas, nos campos. Pensai duplamente antes de enviar os vossos crimes para o lixo. Os vossos caixotes, mesmo os que têm tampa, têm o céu aberto, como a lixeira. Aurora Ribeiro

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6 FAZENDO + 24 SET A 6 OUT 2011 7 FAZENDO + 24 SET A 6 OUT 2011

Page 5: Fazendo 65

Gatafunhos

AgendaHORTASáb_24 Set.

JORNADAS EUROPEIAS DO PATRIMÓNIO09h - “Património da Horta Sobre Rodas” Hortabike (Quiosque do Turismo na Praça do Infante)21h30 - Projecção de Fotografias Antigas da Cidade da Horta (Torre do Relógio)

Sáb e Dom_24_25 Set.

21h30Teatro FaialenseO CASTORfilme de Jodie FosterIdade: M/ 12

Sáb e Dom_24_25 Set.

RibeirinhaFESTA DE SÃO MATEUS

Sex_30 Set.21h30Teatro FaialenseRECITAL DE CANTO E PIANOFilipa Lã, sopranoFrancisco Monteiro, piano(concertos comentados)

Ter a Dom_30 Set._22 Out.

16h às 20hBanco de Portugal AO SOLExposição de Romão Peres

Tomás Melo

HoráriosHorta - Madalena

PICOaté Sex_30 Set.

Museu dos Baleeiros das LajesROSTOS DE SALExposição de fotografia de Kai-Uwe Franz

Dom_2 Out.

18hAuditório Municipal das Lajes do PicoO PANDA DO KUNG FU 2filme de Jennifer Yuh

Ficha Técnica

Qua_5 Out.

16hCentro Cultural e Recreativo da Silveira1ª FEIRA DO CHOCOLATE

FAZENDO - DIRECÇÃO GERAL Jácome Armas

DIRECÇÃO EDITORIAL Pedro Lucas

COORDENAÇÃO GERAL Aurora Ribeiro

COORDENADORES TEMÁTICOS Albino, Anabela Morais, Carla Cook, Fernando Nunes, Filipe Porteiro, Helena Krug, Luís Menezes, Pedro Gaspar, Pedro Afonso, Rosa Dart, Tomás Melo

COLABORADORES Catarina Krug, Cristina Lourido, Diana Sousa, Jesse James Moniz, Mano, Sílvia Lino, Victor Rui Dores

PROJECTO GRÁFICO E PAGINAÇÃO Lia Goulart

PROPRIEDADE Associação Cultural Fazendo

SEDE Rua Rogério Gonçalves, nº 18 9900 Horta

PERIODICIDADE Quinzenal

TIRAGEM 500 exemplares

IMPRESSÃO Gráfica O Telégrapho

[email protected] fazendofazendo.blogspot.com967567254

Mano