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o boletim do que por cá se faz SÊ O MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL JULHO 14 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Fazendo 94

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Page 1: Fazendo 94

1o b o l e t i m d o q u e p o r c á s e f a z

s ê o m e i o d e c o m u n i c a ç ã o s o c i a l

j U l h o 1 4 d i s t r i b U i ç ã o g r at U i ta

Page 2: Fazendo 94

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Capitão é Rodrigo Von Schanderl, também conhecido por Cpt. Luvlace, é Designer, Ilustrador, DJ, Curador de eventos, Filantropo, Alquimista e mais ainda.Natural da Ilha de São Miguel, mudou-se para Lisboa em 2001, passou pela Faculdade de Arquitectura, Faculdade de Belas Artes e Ar.Co.Como Designer dedica-se especialmente ao mundo da musica, ao qual está ligado directamente.Ao longo destes anos teve o prazer de trabalhar com alguns dos artistas, clubes e promotores mais influentes a nível nacional e internacional, o seu trabalho é visível nos milhares de cartazes que são afixados por Lisboa e Porto, pelos sinais luminosos dos clubes, ou pelas capas de discos e CDs à venda em lojas como a Fnac, e claro no vasto universo da internet.facebook.com/Capitaodesign instagram.com/cptluvlace

É nesse ano do século passado que se dá o eclipse total do Sol, último eclipse solar total do milénio e que o CADEP-CN (Clube dos Amigos e Defensores do Património-Cultural e Natural de Santa Maria), fundado três anos antes na Escola Sol Nascente-Santa Bárbara, arranca com o salvamento de cagarros naquela ilha. A Escola Secundária da Horta adopta para seu patrono o faialense Dr. Manuel de Arriaga, recuperando uma antiga designação que vigorou de 1918 a 1947: o Liceu Dr. Manuel de Arriaga, passando a designar-se de Escola Secundária Manuel de Arriaga. Sai “Pai, a Sua Bênção!” (Antologia Comemorativa do Ano Internacional da Família), organizada por Álamo de Oliveira, Ana Maria Bruno, Maria Mesquita e Sousa Rocha, numa edição da DRAC. João de Melo edita o livro de crónicas “Dicionário de Paixões”, Judite Jorge publica o livro de poesia “Setembro e outras estações”, Maria Luísa Soares lança o romance “Quatro Vozes e Virgínia” e Rui Duarte Rodrigues edita “Com Segredos e Silêncios”, pelo Instituto Açoriano de Cultura. A peça “Antes que a noite venha”, de Eduarda Dionísio estreia em Angra do Heroísmo, na recuperação e reabertura do Teatro Angrense pela companhia “Outro Teatro”. O Prémio Camões é atribuído ao escritor brasileiro Jorge Amado. O filme Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, ganha a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Na música portuguesa é também o ano de todas as homenagens: José Afonso (“Os Filhos da Madrugada”); Amália Rodrigues (Dulce Pontes com “Lágrimas”) e António Variações (“Variações”). No cinema chega às salas o filme “Três Irmãos” de Teresa Villaverde e Maria de Medeiros vence o prémio de Melhor Actriz no Festival de Veneza. Nelson Mandela assume presidência e é o primeiro presidente negro da África do Sul. A selecção brasileira de futebol conquista o tetra campeonato mundial na Copa do Mundo da FIFA, realizada nos Estados Unidos.

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ca

pit

ão

ca

pa

d i r e c ç ã o

aurora ribeiro

tomás melo

c a p a

rodrigo von schanderl

c o l a b o r a d o r e s

ana maria nóvoa

carlos alberto machado

carolina cordeiro

cristina lourido

dulce cruz

fernando nunes

fernando resende

francisco henriques

inês martins

inês ribeiro

joão stattmiller

leonardo sousa

luís henriques

micael nunes

a m i g o s f a z e n d o

maria noémia pacheco

terry costa

zumo massimo gelich

p a t r o c i n a d o r

imar-dop

d e s i g n e d i t o r i a l

ambas as duas

p a g i n a ç ã o

tomás melo

r e v i s ã o

foi de férias

p r o p r i e d a d e

associação cultural fazendo

s e d e

rua conselheiro medeiros

nº 19 — 9900 horta

p e r i o d i c i d a d e

mensal

t i r a g e m

500 exemplares

i m p r e s s ã o

gráfica o telégrapho

d i s t r i b u i ç ã o n o f a i a l

associação cultural fazendo

d i s t r i b u i ç ã o n o p i c o

mirateca arts

d i s t r i b u i ç ã o n a t e r c e i r a

mah

d i s t r i b u i ç ã o e m s ã o m i g u e l agecta

registado na erc com o nº125988

este jornal comunitário,

não-lucrativo e independente

está a ser financiado pela

comunidade de leitores,

colaboradores e parceiros.

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c r ó n i c a

“ t u n ã o é s b u r r o ! ”Há um poema da Sophia (de Mello Breyner Andresen), Cantata da Paz, que diz “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Aqui, agora, vai ler sobre um assunto escondido, silenciado – por ignorância, por vergonha e às vezes também por maldade -, e só por isso fá-lo-á despontar mais um pouco. O assunto é a inclusão. Não é fácil à generalidade das pessoas que se encaixam (e são encaixadas) na normalidade darem pela falta de inclusão; toda a organização das nossas sociedades está construída para um certo tipo de, digamos, regularidade… Mas há pessoas diferentes, quer queiramos, quer não, e mais cedo ou mais tarde, quer queiramos, quer não, a nossa sociedade vai ter de olhar de frente para elas e incluí-las (não “encaixá-las”, note-se), com as suas diferenças, se quisermos orgulhar-nos dela. Falamos de pessoas diferentes por condição; aquelas pessoas que nos habituámos a encaixar num estreito conceito de deficiência. No caso concreto, falamos de crianças, das crianças do Faial e do Pico que têm perturbações de desenvolvimento – sobretudo ao nível cognitivo. Crianças diferentes, que precisam de um sistema de saúde, de ensino e de vida diferente; um sistema que as inclua em vez de as encaixar num compartimento à parte, e lhes garanta a oportunidade de serem pessoas inteiras. É por esse sistema que luta um grupo de pais com filhos diferentes, ao qual se juntaram técnicos da área social, cuja vontade comum de intervir para a mudança gerou o Movimento de Pais pela Inclusão (apoiado pela APADIF

f a z e n d o o f r i n g eE, fazendo, vamos. Entre um ano passado e um ano presente sente-se o crescendo do trabalho, o brotar de experiências, um aumento de esperanças. Tudo se resume ao simples instante onde se envia um querer e um espelho se nos mostra. Começa-se a fazer parte de um mundo desejado. Um mundo que aspiramos ser inteiro. Um mundo sem um nome, sem uma cor, sem um tom nem uma imagem. Um mundo onde tudo é um completo tear, tão completo que não tem precisa de rótulo: é-o! E, fazendo, vamos. Uma ação aqui. Uma pessoa acolá. Uma manhã, tarde e noite. Uma madrugada. Todos os espaços entram na sintonia de um único acorde de vontades. Uma sinestesia de vida. Uma dança de sentimentos. Uma curta de vibrações. Uma risada de criança. Um acorde de olhares. Uma mão amiga. Um apoio constante. Uma base sem medida. No final, não existe tempo controlado, não existe a real sujeição ao já. E, fazendo, vamos. Senta-se à beira mar, em todo o mar que a vista alcança, e soletra-se a voz do pensamento. Expira-se a emoção da ocasião nos imaginários tremores do mais querer. E, num abraço ao sol, num alçar de pernas, numa subida pelos terrenos serpenteados, corrige-se a ansiedade intrínseca e sente-se a presença de existir. E, fazendo, vamos. Num só dia. Numa só semana. Numa só altura. E sem dias, nem semanas, nem alturas a existirem, cumpre-se o calor humano de levar os sonhos nossos às realidades dos outros. E, fazendo, vamos ao Fringe! C a r o l i N a C o r d E i r o

– Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da ilha do Faial). O Movimento constituiu-se no início deste ano e não mais parou: reuniões de grupo, reuniões com responsáveis políticos partidários e do governo regional ligados às áreas da saúde, da educação e da solidariedade, responsáveis pela administração das instituições de saúde e ensino na ilha do Faial, técnicos; iniciativas públicas destinadas a mobilizar outros pais e a sensibilizar a comunidade para a causa (a última foi um mega-piquenique pela inclusão que juntou à volta de 200 pessoas, de todas as maneiras e feitios, no parque de campismo da Praia do Almoxarife,

e deu novo fôlego ao Movimento)… uma lufa-lufa! E uma constatação decepcionante: ao nível mais elevado da decisão política que afecta a cadeia hierárquica de avaliação, diagnóstico e tratamento das crianças com perturbações de desenvolvimento, no Faial, o desconhecimento da realidade era confrangedor. Dizemos “era”, porque agora já nenhum responsável político da região com deveres públicos nestas áreas pode dizer que ignora os problemas existentes. Explicamos-lhe a si, aqui, telegraficamente, quais são esses problemas, para que o leitor também não os ignore: o processo de avaliação e diagnóstico das perturbações de desenvolvimento é desesperantemente lento e a intervenção precoce praticamente inexistente (uma coisa e outra, convém dizer, são essenciais para potenciar o crescimento destas crianças); o desígnio da “escola inclusiva”, consagrado na lei, não tem tradução prática; o apoio dos serviços públicos, nomeadamente ao nível do encaminhamento e acompanhamento clínico, é, na maior parte dos casos, arrancado à força de muitas portas de gabinetes insistentemente batidas. Diante dos obstáculos, o Movimento de Pais pela Inclusão desencadeou o processo (irreversível, espera-se) de iluminação de uma realidade quase subterrânea nesta pequena ilha. Acreditamos que a conjugação da vontade de todos - outros pais; todos os pais, políticos, governantes, técnicos… e também a sua, enquanto membro da comunidade – será capaz de impulsionar a transformação

que dará origem, na prática, a um trabalho técnico de avaliação e tratamento multidisciplinar mais eficaz – nas áreas da pedopsiquiatria, da psicoterapia, da psicomotricidade, da terapia da fala, da terapia ocupacional, da integração sócio-profissional, etc. Coisas de que a partir de agora, quando ouvir falar, já sabe. E por isso “nada poderá apagar o concerto dos gritos”, como diz mais adiante a Cantata da Paz da Sophia, e a sua voz poderá sempre juntar-se à daquele pai que inspirou o título deste texto, assegurando ao filho autista: “tu não és burro!”M o v i M E N t o d E Pa i s P E l a i N C l U s ã o

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j a f o n e c a :u m a n o d e p o i s

j a f o n e c a : o m a i s a n t i g o m a r i n h e i r o d e p o r t o j u d e u

Um ano depois de me ter cruzado com o “Jáfoneca” na Praça Velha, na cidade de Angra do Heroísmo e, que deu origem a um texto para a edição nº 85 do Fazendo dedicada à Ilha Terceira, quis confirmar se o “mais antigo pescador terceirense em actividade” recebeu o jornal pelos correios. Por motivos obscuros e indecifráveis, a entrega do jornal nunca aconteceu e, por mais estranho que pareça, ninguém soube do seu paradeiro. Sugeri, por isso, a Dulce Cruz que me acompanhasse a Porto Judeu e a Pedro Valim que imaginasse a vida deste pescador e do seu barco “Foguete”. O resultado não podia ser outro senão este, feito de forma surpreendente e entusiasmante, pois assomou-se sob a forma de texto e ilustração com mar dentro. Desta feita, será nossa vontade e intenção entregar um exemplar deste jornal em mãos na Canada Corte Real. O José Tomás de Menezes bem o merece! F E r N a N d o N U N E s

Confiante de que o marinheiro mais antigo de Porto Judeu, e quem sabe de toda a ilha Terceira, terá alguma presença no mundo virtual, faço uma pesquisa rápida pelo seu nome e apenas encontro o registo da Portaria Nº SN/1984 de 31 de Dezembro, da Secretaria Regional da Agricultura e Pescas, que concede “Ao pescador JOSÉ TOMÁS DE MENEZES, residente em Porto Judeu, Terceira, a quantia de 814.000$00 (oitocentos e quatorze mil escudos) destinada a aquisição de um motor para equipar a sua embarcação de pesca artesanal AH 654 L «MENEZES».”

Mas eu conheço este homem de lugares reais. Conheço-o da memória de Fernando Nunes no Fazendo nº 85 e conheço-o de sua casa no Corte Real, em Porto Judeu, onde um dia o próprio Fernando me levou para conhecer o “Jáfoneca”, a pretexto do envio pelo correio desse número do jornal que afinal ficamos a saber que nunca chegou. Nesse dia ele falou-nos deste subsídio: “A gente tinha o barco na praia, éramos seis e tomávamos café na praia. Passamos por uns gajos que estavam no areal e diziam assim: opá os pescadores agora é que estão bem, têm dinheiro para tudo! Eu ouvi aquilo e peguei e fui ao rapaz que trabalha ali em baixo e pedi para ir à advogada e ela disse: Eh Sr. José, como é que você sabe disso, que a gente aqui não sabe de nada? Mas depois ela foi perguntar e veio dizer-me que havia dinheiro, sim senhor. Chamou-me teimosinho e então na lota tive tudo o que precisava.”

“Jáfoneca”, sempre lhe chamaram assim, é um homem esguio, alto e magro. Tem oitenta e três anos e uma aparência demasiado elegante e doce para o meu imaginário de homem pescador.

Quando fomos procurá-lo, achámos que não o encontraríamos porque era dia de futebol. Mas ele já não frequenta tanto o futebol. Falou-nos à porta de sua casa e poderíamos ter passado ali a tarde inteira: pode passar-se uma vida inteira a ouvir estas histórias férteis que discorrem com um simples cumprimento e um minuto de atenção. Contou-nos que a sua mãe morreu quando ele tinha sete anos, o pai morreu quando ele tinha dez anos.

Trabalhava para sustentar o irmão, no barquinho do vizinho. Trabalha o mar e a terra desde os dezasseis anos e esteve quarenta anos na estiva. Nunca foi à escola, não sabe ler. A sua mulher interrompe para explicar como é a assinatura dele: “ele assina “assim, assim e assim, ó, é assim… e tem que fazer sempre igual!” e gesticula energicamente como quem esboça uns rabiscos.

Estes homens que contam estas histórias ficam-nos na memória. Ainda os ouço falar. Eles falam e eu estou presa na cor dos olhos do “Jáfoneca”. Azul. O azul. O mar tem-lhe regado os olhos de luz: são cristalinos, vivos, audazes. Pergunto: “Como é que mantém esse azul nos olhos?” O Fernando adianta-se: “É o mar.” E sugere: “Havia de ser lindo quando era novo…”. “Pois, e atrevido!”, responde a mulher, “O olho azul diz tudo… mas agora é cada vez menos.”

Eu e o Fernando rimos.

Volta-se à conversa e eu volto aos olhos azuis inesgotáveis. O mar está ali dentro.

O barco chama-se afinal Foguete. Está na praia, e já não vai à pesca como dantes. José Menezes ainda trabalha na terra, mas, como diz a sua mulher, tem mais vontade que outra coisa: “Já não pode das costas e das pernas, o foguete também já não pode”. Há-de haver um fim para tudo. Menos para este azul. Aqui a última coisa a morrer é o olhar. Morre primeiro a esperança, o dia, a vida, e só depois, aposto, o olhar.d U l C E C r U z

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h o u v e u m d i a e m q u e s o u b e q u e i a c a n t a r p a r a o r e s t o d a v i d a sobre Romeu Bairos

Nasceu em 1992 e conheceu os palcos muito cedo: a mãe cantava fado. Aos quatro anos, venceu, em conjunto com o irmão, também músico, o festival Caravela d’Ouro, na Povoação; aos seis, inscreveu-se na Academia da Ribeira Grande; frequentou o conservatório; chegou a tocar em bandas filarmónicas; chegou a cantar em coros de igreja; domina vários instrumentos: guitarra, cavaquinho, piano e clarinete.

Aos vinte e um anos, Romeu Bairos é indubitavelmente um dos músicos mais promissores que se dá a conhecer nas ruas e nos bares da ilha de São Miguel. Actuou no Moche Fest, em Ponta Delgada, e é convidado pelos diversos festivais que percorrem o arquipélago dos Açores. Está a trabalhar com o Fred Cabral, que já dispensa apresentações; vai actuar no festival Monte Verde, como vocalista dos Bilf. Vive apenas da música e di-lo com um certo orgulho: senta-se, munindo-se somente da guitarra, a tocar nas ruas da cidade.

De resto, vai sendo convidado por bares locais, onde toca horas sem fim, muitas vezes — sou testemunha disto — por insistência dos públicos que lhe reconhecem o indelével talento. Cita influências como Amália Rodrigues, António Variações, Miles Davis; em concerto, percorre o repertório mais conhecido de figuras e bandas

como Bob Marley, The Beatles, Pink Floyd e Nirvana — para além de variadíssimas composições da lusofonia e alguns originais. O que assusta no Romeu não é tanto as músicas que executa: afinal, ou assim se pensa frequentemente, não é difícil fazer covers; o que assusta no Romeu é o engenho técnico no instrumento, a voz que, apesar de muito particular — reconheço-a em qualquer lado —, cabe em músicas de géneros diversos, a capacidade de encaixar, na música que está a tocar, um excerto de uma qualquer outra, para depois retomar a inicial: brinca e diverte-se com a arte musical, o que, se quisermos, é uma forma de a questionar, de a infringir. É, parece-me, um artista completo, não na medida em que não haja espaço para o amadurecimento que tanto promete, mas na medida em que, com tão poucos anos de carreira, tem a capacidade rara de se distinguir da infindável mata de bandas de covers que resistem por estes lados; não porque sim, por escolha minha, porque me apetece: porque outro apuro técnico, outra expressividade, outra criatividade, enfim, a competência de incorporar, na música de outro, uma comoção própria, acrescentando-lhe, com uma espantosa leveza, pontes e solos, retoques vocais, sem, todavia, desfigurar a composição inicial. Disse-me: houve um dia que soube que ia cantar para o resto da vida; a história por detrás da afirmação não cabe já neste espaço, mas creio que quem o vir actuar no seu melhor não terá argumentos para não acreditar. Não estamos, pois, a falar de alguém que dá uns toques: estamos a falar de alguém de quem eu nunca vi uma interpretação mecânica, a quem reconheço carisma e sensibilidade incomuns; estamos, pois, a falar de alguém que anda perto do milagre.

Estou sentado numa esplanada a escrever isto enquanto o Romeu toca: um público composto maioritariamente de turistas bate palmas entusiasticamente, requisita músicas que gostava de ouvi-lo tocar, levanta-se do lugar para o ir cumprimentar e congratular. Os portugueses estão, claro, ocupados com os empatas da selecção nacional — e, amanhã, os jornais também só falarão disso.l E o N a r d o s o U s a

m ú s i c a

u m a h i s t ó r i a a o c a l h a s

Ora, Bico Bicudo, grande senhor do seu nariz, galanteador de belas moças e aventureiro de raiz, levantou-se ontem do seu sofá e sentou-se na cadeira.

M i C a E l N U N E s

C a r o l i N a C o r d E i r o

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f á b r i c a s :p o r t o d o c a s t e l osanta maria

Terá sido em 1896 que começou a captura de cachalotes ao largo de Santa Maria, com base na ponta do Castelo, onde confinam as costas oriental e meridional à guarda do farol de Gonçalo Velho. Aí se encontram amplos pontos de vigia sobre as extensões do Atlântico e o acesso facilitado, por cabotagem, à baía de Vila do Porto, por onde se estabelecia todo o comércio da ilha com o exterior.

A baleação costeira principiara décadas antes nos grupos ocidental e central depois de fracassarem os intentos de armar navios para a pesca em alto mar, e por outros motivos complexos como a compensação ao declínio dos modelos agro-exportadores (laranja e vinho), o aumento da procura de óleos nos países europeus em fase de industrialização e o regresso inesperado de baleeiros açorianos que haviam embarcado anos antes nos navios norte-americanos. De tudo isto parte a iniciativa no extremo oriental do arquipélago, nos finais do século XIX, onde confluem para a nova faina homens de São Miguel, marítimos especializados do Pico e até alguns cabo-verdianos – como afiança a tradição oral – também adestrados na gesta americana que, tal como nos Açores, escalava os portos insulares do Atlântico Sul.

O começo em Santa Maria foi breve e hesitante; interrompe-se logo em 1905, com capturas inferiores a 5 cachalotes por temporada. A ilha não acompanha a conjuntura de subida de preços do óleo durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que permitirá nos anos seguintes melhorias substanciais. A mais reconhecível será o surgimento de lanchas a motor para segurança e reboque, perfil excepcional no cenário da pesca costeira insular dos anos vinte e trinta.

A baleação mariense só retoma em 1937. Ultrapassada a Grande Depressão que afecta o comércio internacional (1929-1933), aumentam as exportações de óleo para a Alemanha e com elas surgirão os primeiros projectos de industrialização. Em 1936 forma-se a Companhia Baleeira Mariense, composta por uma ampla base de 46 sócios entre comerciantes, proprietários, funcionários e trabalhadores agrícolas. Com o estalar da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) os preços do óleo voltam a multiplicar, apesar dos difíceis bloqueios impingidos ao comércio marítimo. Durante e após o conflito a Mariense aumenta a tonelagem da pesca (com embarcações construídas sobretudo na ilha do Pico) e as capturas, sem contudo aproveitar a conjuntura para reformar as estruturas artesanais no porto do Castelo.

Depois da aguda crise comercial que encerra os anos quarenta, a exportação de óleos recebe novo impulso com a Guerra da Coreia (1950-1953) e a entrada na Mariense de Pedro Cymbron como principal acionista – gerente das Armações de São Miguel que também se havia expandido à Madeira – contribuindo para um novo apetrechamento marítimo, a construção de vigias e a introdução de rádios. Integrados na organização corporativa das pescas, os armadores baleeiros concorrem aos planos de fomento do Estado que concediam empréstimos a juro baixo por intermédio do Grémio dos Armadores da Pesca da Baleia. Oportunidade que leva finalmente a Mariense à remodelação das suas instalações terrestres, entre 1953 e 1956, com a construção de uma rampa de alagem e uma plataforma de desmancho com uma caldeira a vapor e dois modernos autoclaves.

Mas a inovação pecava, certamente, por tardia. O final de cinquenta e todos os anos sessenta são tempos de desafio para a baleação costeira, afectada pelo surto migratório do Vulcão dos Capelinhos, a concorrência de outras pescas e as progressivas dificuldades em escoar nos mercados externos as produções de óleo. Em 1966 a Mariense encerra actividade sem ter conseguido amortizar os empréstimos que lhe permitiram sonhar com uma indústria moderna.

Duas breves conclusões: por um lado, o final precoce da baleação mariense em 1966 parece justificar-se por causas económicas e de gestão empresarial; se o argumento é valido para este caso, devemos então compreender porque não o é para outras ilhas onde a baleação resiste até aos anos 80. Em segundo lugar, sobreviveram a esta história as instalações do Porto do Castelo, infelizmente já muito degradadas, embora se perceba o seu enquadramento singular num anfiteatro natural, isolado de qualquer povoação, e o seu carácter híbrido único, pela coexistência de tecnologias a vapor e dos tradicionais caldeiros de ferro. A conservação do que existe parece urgente e complicada. Urge reinventar em Santa Maria, como já se fez no grupo central ou em São Miguel. O debate está vivo: o processo de patrimonialização da baleação costeira deve estender-se a todo o arquipélago. F r a N C i s C o h E N r i q U E s

Texto inserido no projecto de divulgação Port of Call: The Western Islands

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Uma falha mecânica, que resultou num acidente ecológico na Fajã da Praia do Norte (Faial), em 2005, e, finalmente, tornou-se num refúgio para a vida marinha de profundidade.Tudo começou no dia 9 de dezembro de 2005. Uma falha num dos motores do navio porta-contentores “CP Valour” de 9600 t, que navegava a norte do Faial e tinha como destino o porto de Valência (Espanha), deixava ao comandante duas opções: continuar seu rumo a baixa velocidade ou parar para fazer a reparação estimada em 12 horas. O chefe de máquinas e o primeiro-oficial decidiram optar pela segunda alternativa e aproximaram-se da costa da Praia do Norte para proceder à reparação num fundeadouro que consta nas cartas náuticas. O comandante do navio pediu permissão à capitania de porto da Horta para fundear no local, sendo esta concedida embora advertindo para as mudanças nos ventos e marés. Por volta de 15:55 h desse fatídico dia, o Porto da Horta recebe a mensagem de que o navio tinha encalhado num baixio. Apesar de terem feito manobras para o desencalhar, não tiveram sucesso, devido às condições do mar e vento que complicaram a operação. O navio ficou com rombos no casco e por onde, nos dias seguintes, se deu a fuga de parte do seu combustível (“nafta”). A cada dia que passava tornava-se mais difícil a libertação do navio. A crescente instabilidade do navio associada ao mau tempo fez com que alguns dos contentores caíssem ao mar. A 25 de dezembro foram suspensos os trabalhos de resgate e o navio foi considerado como perdido, decidindo-se salvar a carga que ainda estava a bordo e, posteriormente, remover o navio encalhado. Temendo que o desastre fosse ainda maior, dado que havia alguns contentores com mercadorias perigosas, o armador solicitou a intervenção de um helicóptero “Kamov 32” de transporte de cargas pesadas. Este aparelho veio expressamente do Canadá e assim retiraram-se 8 t de fosfato de trifenil, 6 toneladas de líquidos inflamáveis, incluindo tintas, e 19 t de persulfato de sódio que estavam nos contentores.Este acidente não só gerou o derrame de combustível na praia, como espalhou uma grande quantidade de resíduos sólidos provenientes dos 13 contentores e equipamentos (9 “Bob-Cats”, entre outros) que caíram no mar. Um destes contentores tinha material do grupo de teatro italiano “Piccolo di Milano” que, na maioria, acabou por ser recuperado e gerou um interessante intercâmbio entre a Horta e Milão. Estimou-se que se derramaram 450 metros cúbicos de combustível, causando um considerável impacto ecológico nesta área da ilha do Faial, afetando sobretudo as espécies costeiras sésseis (algas e invertebrados). Por ação do vento, o derrame acabou por se espalhar para locais mais afastados (Pico e São Jorge), embora de forma pouco significativa. Atualmente, os locais mais impactados já não apresentam quaisquer sinais visíveis deste acidente. Note-se que este derrame constitui o segundo maior registrado nos Açores. Apesar de tudo, foi uma sorte o navio não ter encalhado no verão, quando há colónias de aves marinhas em reprodução nos Açores. Por fim, a 19 de julho de 2006, o que restava do “CP Valour” foi rebocado para águas mais profundas, onde acabou por afundar. Hoje é, provavelmente, o refúgio de muitos animais marinhos.

Para saber mais: “Encalhe do “CP Valour” na Praia do Norte”. 2006. Departamento de Oceanografia e Pescas. Universidade dos Açores. On line: http://www.horta.uac.pt/projectos/cp_valour/“Report on the investigation of the grounding of the vessel “CP Valour” in Baia da Praia do Norte, Faial, Azores on 9 december 2005”. Report No. 22/2006 August 2006. Marine Accident Investigation Branch, Department of Maritime Administration – Bermuda Goverment, Institute of Portss and Shipping Marine Safety Division. 38p.

a N a M a r i a N o v o a Pa b o N – E s t U d a N t E d E M E s t r a d o d o d o P / U a ç

o q u e a c o n t e c e u a o c p v a l o u r ?

a p o l u i ç ã o n a t u r a l t a m b é m e x i s t e ?Na Wikipédia (enciclopédia web multilingue de licença livre) “poluição” é a introdução pelo homem, directa ou indirectamente, de substâncias ou energia no ambiente provocando um efeito negativo no seu equilíbrio. No entanto existem fenómenos absolutamente naturais muito parecidos com eventos de poluição que resultam em ecossistemas equilibrados. Refiro-me, por exemplo, ao ecossistema associado às fontes hidrotermais. Os fluidos hidrotermais são o resultado da entrada de água do mar pelas fissuras da crosta terrestre que, ao aproximarem-se da câmara magmática, aquecem e sobem novamente pela crosta até encontrar uma outra fissura por onde escapar. Durante a aproximação à câmara e posterior subida, a altas temperaturas, a água do mar interage com a rocha basáltica tornando-se num fluido enriquecido em metais, enxofre, gases tóxicos e minerais. Quando entram em contacto com a água fria do fundo do oceano, ao sair das tais fissuras, precipitam formando as chamadas chaminés hidrotermais. O ambiente tóxico junto às fontes hidrotermais levaria qualquer pessoa a acreditar que jamais um organismo marinho conseguiria viver em tão inóspito lugar. Para total surpresa de todos, numa expedição às fontes hidrotermais das Galápagos, em 1977, foi descoberta uma vasta comunidade de amêijoas, mexilhões e poliquetas tubulares de grandes dimensões associada ao ambiente hidrotermal. Como é possível existir uma comunidade de organismos aparentemente saudáveis num ambiente onde os elementos básicos de suporte da vida como a luz e o oxigénio é inexistente? Ao longo dos anos, em novas expedições, foram descobertas outras fontes hidrotermais e a diferentes profundidades. Muitas delas apresentavam luxuriantes ecossistemas, compostos por novas espécies de mexilhões, camarões, caranguejos e até mesmo peixes que se alimentavam desses organismos, completando assim uma verdadeira teia trófica hidrotermal. As condições extremas que caracterizam o ambiente hidrotermal, incluindo as elevadas temperaturas, a pressão hidrostática, as concentrações elevadas de metais, os radioisótopos, os gases tóxicos, como o metano (CH4), o dióxido de carbono (CO2) e o sulfureto de hidrogénio (H2S), aparentemente nocivas para os organismos, tornam este ecossistema um verdadeiro “Laboratório de Poluição Natural”. Aqui, a definição de colonização, adaptação e sobrevivência além-fronteiras ganha outra dimensão. O que para o conhecimento humano se qualifica como autêntica poluição natural para um vasto leque de organismos marinhos é um ambiente natural que, ao longo de séculos de adaptação, resultou numa adaptação fisiológica distinta, mas nem por isso impossível. Será que podemos tirar daqui uma espécie de lição de vida? Este “laboratório” permite à comunidade científica estudar e compreender os mecanismos adaptativos seguidos por estes organismos para ultrapassar um ambiente nefasto e, assim, ter a percepção das diversas estratégias fisiológicas envolvidas no sucesso adaptativo de outros organismos que colonizam ambientes realmente poluídos.

i N ê s M a r t i N s – i M a r / d o P d a U N i v E r s i d a d E d o s a ç o r E s

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a p o l u i ç ã o n a t u r a l t a m b é m e x i s t e ?Na Wikipédia (enciclopédia web multilingue de licença livre) “poluição” é a introdução pelo homem, directa ou indirectamente, de substâncias ou energia no ambiente provocando um efeito negativo no seu equilíbrio. No entanto existem fenómenos absolutamente naturais muito parecidos com eventos de poluição que resultam em ecossistemas equilibrados. Refiro-me, por exemplo, ao ecossistema associado às fontes hidrotermais. Os fluidos hidrotermais são o resultado da entrada de água do mar pelas fissuras da crosta terrestre que, ao aproximarem-se da câmara magmática, aquecem e sobem novamente pela crosta até encontrar uma outra fissura por onde escapar. Durante a aproximação à câmara e posterior subida, a altas temperaturas, a água do mar interage com a rocha basáltica tornando-se num fluido enriquecido em metais, enxofre, gases tóxicos e minerais. Quando entram em contacto com a água fria do fundo do oceano, ao sair das tais fissuras, precipitam formando as chamadas chaminés hidrotermais. O ambiente tóxico junto às fontes hidrotermais levaria qualquer pessoa a acreditar que jamais um organismo marinho conseguiria viver em tão inóspito lugar. Para total surpresa de todos, numa expedição às fontes hidrotermais das Galápagos, em 1977, foi descoberta uma vasta comunidade de amêijoas, mexilhões e poliquetas tubulares de grandes dimensões associada ao ambiente hidrotermal. Como é possível existir uma comunidade de organismos aparentemente saudáveis num ambiente onde os elementos básicos de suporte da vida como a luz e o oxigénio é inexistente? Ao longo dos anos, em novas expedições, foram descobertas outras fontes hidrotermais e a diferentes profundidades. Muitas delas apresentavam luxuriantes ecossistemas, compostos por novas espécies de mexilhões, camarões, caranguejos e até mesmo peixes que se alimentavam desses organismos, completando assim uma verdadeira teia trófica hidrotermal. As condições extremas que caracterizam o ambiente hidrotermal, incluindo as elevadas temperaturas, a pressão hidrostática, as concentrações elevadas de metais, os radioisótopos, os gases tóxicos, como o metano (CH4), o dióxido de carbono (CO2) e o sulfureto de hidrogénio (H2S), aparentemente nocivas para os organismos, tornam este ecossistema um verdadeiro “Laboratório de Poluição Natural”. Aqui, a definição de colonização, adaptação e sobrevivência além-fronteiras ganha outra dimensão. O que para o conhecimento humano se qualifica como autêntica poluição natural para um vasto leque de organismos marinhos é um ambiente natural que, ao longo de séculos de adaptação, resultou numa adaptação fisiológica distinta, mas nem por isso impossível. Será que podemos tirar daqui uma espécie de lição de vida? Este “laboratório” permite à comunidade científica estudar e compreender os mecanismos adaptativos seguidos por estes organismos para ultrapassar um ambiente nefasto e, assim, ter a percepção das diversas estratégias fisiológicas envolvidas no sucesso adaptativo de outros organismos que colonizam ambientes realmente poluídos.

i N ê s M a r t i N s – i M a r / d o P d a U N i v E r s i d a d E d o s a ç o r E s

m a i o r d e r r a m e d e h i d r o c a r b o n e t o s n o s a ç o r e s - a i m p o r t â n c i a d o z e r o !O derrame de hidrocarbonetos no mar dos Açores em 1969 chegou a constar na 13a posição mundial por estimativa errada do total de crude derramado.

O encalhe da embarcação alemã “Julius Schindler” a 11 de fevereiro de 1969 na ilha de São Miguel provocou aquele que foi considerado o maior derrame de hidrocarbonetos nos Açores.O navio vinha das Antinhas Holandesas, transportava combustível para aviões e tinha o Reino Unido como destino final. Porém, quando se desviou do rumo para desembarcar um acidentado (um dos tripulantes tinha-se magoado numa rixa com o comandante), acabou por bater num baixio na zona exterior do porto de Ponta Delgada. Na tentativa de evitar o naufrágio, tentando ganhar f lutuabilidade, foi propositadamente bombeado para o mar grande parte do combustível que o petroleiro transportava, num processo que durou vários dias. O acidente consta na 13a posição do “Maritime Business Strategies”, tendo sido estimado o derrame de cerca de 90 000 toneladas de óleo no mar. Contudo, como a embarcação só tinha capacidade para 18 mil toneladas, este é um valor claramente impossível. De facto, o “Julius Schindler” transportava apenas 16 mil toneladas e o valor derramado deverá rondar as 9 mil toneladas. Ou seja, felizmente, há um zero a mais no valor total estimado na hierarquização mundial. Apesar de ter sido uma tragédia, sempre foi uma tragédia dez vezes menor do que referido internacionalmente.Posteriormente, o navio foi desencalhado e seguiu para um estaleiro no porto de Lisboa para ser reparado.Os derrames de hidrocarbonetos põem em risco os habitats e ecossistemas. Estes impactos podem também variar com o tipo de hidrocarboneto e a época do ano em que ocorre o acidente. As consequências de um derrame de hidrocarbonetos são mais graves para alguns grupos de animais marinhos do que para outros. Por exemplo, no caso das aves, à medida que a plumagem fica impregnada de óleo, a água penetra debaixo das penas retirando o ar aí aprisionado. Sendo precisamente este ar que permite às aves f lutuarem e regularem a temperatura corporal, perante o contacto com um derrame, entram em hipotermia ou simplesmente afogam-se. Já no caso dos peixes as consequências são diferentes. Estes animais, no caso de ficarem presos na camada de petróleo, deixam de poder respirar normalmente, acabando, na maioria dos casos, por morrer rapidamente. A simples ingestão de petróleo provoca lesões hepáticas, acabando por provocar a inevitável morte. Os mamíferos marinhos sofrem um tamponamento das vias respiratórias, morrendo por asfixia. Em todos os casos, o destino da fauna marinha perante um derrame de petróleo é, quase inevitavelmente, a morte. Apesar de ter sido o maior derrame de hidrocarbonetos jamais registado nos Açores, as consequências não foram muito gravosas. Porque ocorreu no inverno e porque se tratava de um combustível volátil acabou por não criar uma maré negra e não foram registadas consequências nefastas permanentes desta poluição no meio marinho.

Fontes:http://de.wikipedia.org/wiki/Julius_Schindler_(Schiff) http://estragodanacao.blogspot.pt/2004/02/margem-ambiental-xvii-razo-principal.html http://www.mohid.com/PublicData/Products/Thesis/TFC_RodrigoFernandes.pdf http://searcharchives.vancouver.ca/s-s-julius-schindler;dc

M a r í l i a o l i o , E s t U d a N t E d E M E s t r a d o E s t U d o s i N t E g r a d o s o C E â N i C o s d o d o P / U a ç

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á u r e o c a s t r o : u m a n o t a b i o g r á f i c al i t e r a t u r a

Áureo da Costa Nunes e Castro nasceu na freguesia da Candelária, ilha do Pico no ano de 1917 e morreu em Macau a 21 de Janeiro de 1993. Chegou a Macau em 15 de Setembro de 1931 entrando nesse ano para o Seminário Diocesano de S. José. Aí estudou teoria musical, solfejo e harmonia com os padres Wilhelm Schmid e António André Ngan. Foi ordenado sacerdote em 8 de Setembro de 1943, servindo como capelão e vigário na Sé de Macau. Foi também mais tarde pároco na paroquial de São Vicente, ocupando ainda os postos de professor no Seminário Diocesano e professor de canto coral e religião e moral no Liceu de Macau e na Escola Comercial Pedro Nolasco. Em 1951 ingressou no Conservatório Nacional, onde estudou canto com Ans Biermann, piano com Arminda Correia e composição com Jorge Croner de Vasconcelos. Recebeu o diploma em Composição, com distinção, em 1958. Foi ainda, durante a sua estadia em Lisboa, assistente de Mário de Sampayo Ribeiro no coro da Universidade de Lisboa. Regressado a Macau, fundou em 1959 o Grupo Coral Polifónico e em 1962, em colaboração com o padre César Brianza, a Academia de Música de S. Pio X que se transformou numa importante instituição de ensino musical nesta cidade. Para além das actividades com estas instituições, também organizou inúmeros concertos públicos gratuitos para os quais convidou vários músicos com carreira internacional. Ainda em 1983, em colaboração com o compositor inglês Stuart Bonner, fundou a Orquestra de Câmara de Macau, com músicos amadores e professores da Academia, mais tarde incorporada no Instituto Cultural de Macau.A obra musical de Áureo Castro é um reflexo tardio das directrizes teológico-musicais que se desenvolveram ao longo da primeira metade do século XX, após a publicação do Motu Proprio sobre a música sacra por Pio X em 1903. A sua música sacra tem uma forte influência da tradição canto gregoriano e na polifonia vocal, como é o caso dos Três corais sobre melodias gregorianas (completados em Lisboa) e do Te Deum, sendo neste último visível a influência do compositor romano Lorenzo Perosi, e ainda outras obras sacras com a incorporação de piano e órgão. Para além da produção vocal sacra também escreveu obras sobre textos chineses e para piano como duas sonatas, duas sonatinas ou Nostalgia, assim como várias sinfonias e, eventualmente, outras obras que ainda se encontram inéditas.

l U í s C . F. h E N r i q U E s

Bibliografia“Academia de música macaense fundada por padre português apresenta concertos em Lisboa e nos Açores” http://www.snpcultura.org/academia_musica_macaense_fundada_por_padre_portugues_apresenta_concertos_portugal (consultado 2014-07-01).BISPO, António. “Mudanças de referenciais culturais de portuguseses no Extremo Oriente à época da expansão do colonialismo britânico: II Música sacra em Macau” http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Musica-sacra-Macau (consultado 2014-07-01).HENRIQUES, Luís. “Ensinar segundo o modelo do Motu Proprio de Pio X: A Schola Cantorum instalada na Sé Catedral de Angra do Heroísmo”, Revista Nacional de Educação Artística, 2 (2012), pp. 53-58.

a v i a g e m

F E r N a N d o M a N U E l r E s E N d E

No momento da viagem,A expetativa, o nervosismo dominavam o meu intimo.

Mudo, tentava encarar como mais uma das muitas viagens que tinha por fazer...que tenho! À chegada apaixonei-me pelo verde e pelo azul!O verde predominante da terra e o azul do mar.

A minha insegurança...o abraço das cores.Tudo conjugado, despertou em mim o sentimento de pertença.

À chegada àquele local sonhado anos atrás...O meu lugar!

O dia estava escuro, nublado, chuvoso e eu amei...Ávido, tudo devorava com o olhar,

A paixão crescia a cada minuto de contemplação...O fascínio pela Ilha mal era contido por mim...

Tudo era tão belo e aconchegante,Uma experiência nova, fascinante.

O escuro da terra, os tons de verde, as cores...Desejei neste mundo entrar e o meu espaço criar!

Apenas no sonho a base...o meu pilar!A imponência frontal do Pico...

Cheguei, afoguei-me no que senti...por aqui fico!

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“ p e d r a - i l h a ” d e b a l t a s a r p i n h e i r o n o M a hQuem foi que disse que uma pedra não “perturba” a nossa visão do mundo? Quem é que nos assegura que a energia que dela erradia não põe em causa este frágil equilíbrio ilhéu em que assenta a nossa existência? As respostas poderão estar na Sala Dacosta do Museu de Angra do Heroísmo onde estará patente, até Outubro, uma mostra de peças escultóricas de Baltazar Pinheiro.

O autor das peças é terceirense, tem trinta e oito anos de idade, começou por tirar um curso de cerâmica na Casa do Sal, orientado por Renato Costa e Silva, frequentado durante muito tempo o atelier deste artista plástico. O escultor vive actualmente na Suécia, em Uppsala, estudando escultura no Gothenburg Art College daquele país escandinavo e é lá que actualmente trabalha.

O título escolhido para esta mostra foi “Pedra-Ilha” apontando assim para uma familiaridade e pertença dos materiais expostos com o espaço envolvente. O conjunto das peças exposto revela uma escultura com alma e criatividade próprias de quem pretendeu mergulhar nas suas raízes e aprofundar o berço que cada ilhéu transporta. É, portanto, uma escultura de afectos, memórias, força telúrica, exaltação artística de quem faz das formas vida e dedicação. A exposição transporta-nos para um mundo de revelação, tornando esse invisível que nos habita parte do mundo que é nosso. De origem vulcânica e fruto de laboriosa celebração da energia, as peças contém elementos naturais e culturais da sua ilha de nascimento. Desta feita, quem vê esta exposição interroga-se na razão do porquê da arte poder mudar e perturbar, exaltar a cada instante a beleza das coisas que se encontram em nosso redor. Destaque-se assim as peças “Anoitecer” e “Amanhecer” que reflectem o encontro com o tempo, esse testemunho individual da nossa relação com a visão fragmentada da mutação, da vida que nos escapa e segue a “inevitável marcha do tempo”. O que dizer ainda de “Celebração” ou “Pequeno monumento às memórias que se perdem”? Baltazar Pinheiro procura assim a comunhão das emoções com os materiais vulcânicos, tentando expressá-los e harmonizá-los com o que de mais táctil e depurado existe nos nossos gestos. “Pedra-Ilha” é, sem dúvida, um encontro feliz pois tal como o autor escreve no catálogo da exposição: “Tenho a necessidade de tornar visível o que sinto que existe, mas que nem sempre se compreende. A minha intenção não é acrescentar nada à natureza, mas sim conhecê-la como um participante activo, não tentando imitá-la, mas querendo que a sua energia seja o alfa e o ómega da obra de arte”. É possível, na arte de Baltasar Pinheiro tudo é possível, até celebrar o nascimento da Lua. F E r N a N d o N U N E s

b i o m o r p h i c a b s t r a c t i o n s exposição de tatiana pototskayaEsteve patente na Biblioteca Pública da Horta uma exposição de pintura da artista Tatiana Pototskaya. Esta pintora apresentou um trabalho de natureza abstracta criado sob a influência da natureza selvagem e especial e da história da ilha do Faial, tais como o Mistérios dos Capelinhos, a Caldeira da ilha do Faial, que considera um templo de paz e beleza e as cavernas e grutas pitorescas da costa da Feteira. Na sua opinião, as pinturas abstractas, como os poemas que nascem dos mistérios do subconsciente, são tecidas numa canção de imagem e cor, seja em papel ou tela. A originalidade e a exclusividade destas imagens só fica patente aos olhos do espectador quando este está pronto para “pisar” uma lâmina instável.

Para finalizar, uma citação de Louise Borgeois: “A work of art requires no explanation. The work has to speak for itself. It may be the subject of many interpretations, though the artist only had one in mind. Some artists say it’s their responsability to make the work understandable for the public, but I don’t agree with that. The only responsability lies in being completely truthful to yourself.”

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c o n t o

a v e n t u r a s d e e z e q u i e l m a l a q u i a s n o p a r a í s o(continuação do número anterior)Carla ajudou Ezequiel Malaquias a sair da viatura que ficara muito próxima de uma parede da Residencial, depois de a besta do Idalécio a ter espetado num dos pilares de betão. Malaquias responde à amável senhora que está bem e que só traz aquela maleta e que o resto da sua bagagem não chegou à ilha. «Mas o senhor tem um pequeno ferimento na cara!» «Acha?» «Com licença», disse, passando-lhe ao de leve um dedo no rosto e mostrando-lhe depois um pouco de sangue. «Não parece ser nada de grave, eu desinfecto-lhe aqui a ferida e depois levo-o ao hospital, só por cautela.» Malaquias entregou-se aos cuidados da senhora. «Já está, parece estar bem. Agora, se não se importa, vou deixar a sua malinha no seu quarto e depois vou consigo ao hospital, está bem?» Malaquias fez um sim silencioso. Em menos de um nada, Carla estava de novo junto dele. «Vamos? Vou só afastar a viatura daquele parvo para podermos sair daqui.» Fez o que disse, ajudou Malaquias a entrar numa outra viatura e saíram para o hospital, que era muito perto dali.Carla, depois de estacionar o carro, entrou com Ezequiel Malaquias no pequeno átrio das urgências do hospital, que não era mais do que o centro de saúde da vila. Um funcionário bigodudo, encafuado num estranho cubículo onde mal se podia mexer, cumpriu uma formalidade qualquer e depois Malaquias e Carla entraram numa espécie de enfermaria. «É grave?», perguntou uma enfermeira, jovem. «E eu é que sei?» «Vamos ver.» A dita enfermeira começou a revirar Malaquias por todos os lados, «Deite-se, levante-se, sente-se, assim, sossegado, olhe para ali, não esteja nervoso, agora para ali, levante-se…» «Ó mulher, este senhor tem apenas uma pequena ferida no sobrolho!» «Já podias ter dito! Vamos já tratar da coisa.» De um

pequeno armário começou a retirar frascos e tubos, gaze, seringas. Malaquias fechou os olhos. «Sente-se bem?» Acenou que sim com a cabeça e manteve-se de olhos fechados, resignado. «Embora lá!» Pôs-lhe a manápula na cara e espetou-lhe uma agulha. «Vai ficar sossegadinho», dizia, enquanto o líquido penetrava violentamente o rosto de Malaquias. Em menos de um minuto, sentiu-se desfalecer e deslizou sobre a marquesa para se entregar a um sonho paradisíaco. «Ai, ai, não me desmaie, home!» «O que é que lhe fizeste»? «Uma anestesiasinha…» «Tu tás mas é doida, puseste o desgraçado a dormir, deste-lhe dose de vaca, ou quê?» «Ai que me desgraço!» «Tu desgraças é o homem, chama aí um médico qualquer para ver isto!» «Ó sotôr, ó sotôr, venha cá depressa, por Nossa Senhora de Lourdes!» Do compartimento ao lado, ouviu-se «Cala a bocarra, não me desassossegues, cum caraças!» Arrastar de cadeira metálica em chão de mosaico industrial, estrondo de porta a fechar-se com violência. «O que é que foi, desgraçada?» «Ai sou desgraçada, sou, veja o sotôr isto que me aconteceu!» O sotôr é um gigante moreno com ar bonacheirão, ventre de entranhas inchadas, hálito de uísque matinal. «O que é que fizeste ao desgraçado?» «Acho que abusei da anestesia local…» «Achas… anestesia local… além de burra és estúpida!» Observa Ezequiel Malaquias, ausculta-o. «Está tudo bem. Deixa-o dormir. Ele veio cá porquê?» «Parece que bateu no vidro de um carro e deitou um bocadinho de sangue do sobrolho. Desinfectei a ferida e ela deixou de sangrar. É nosso hóspede, foi só por precaução.» «Fez bem.» Para a enfermeira: «Faz-lhe um pequeno curativo. Pequeno, ouviste, minha estúpida?» «Sim…» «Logo que ele despertar, leve-o de volta. Se o senhor sentir alguma indisposição ou tiver sintomas estranhos, venha até cá com ele, mas fale logo comigo. Comigo, está a perceber?» «Sim, senhor doutor. Obrigada.» (continua)

C a r l o s a l b E r t o M a C h a d o

F a C a n o s a ç o r e s antevisãoAinda antes das férias levantamos já o véu de uma iniciativa a ter lugar no mês de Outubro, resultado se uma colaboração do Fazendo com o festival FACA (Festa de Antropologia, Cinema e Arte). Em todas as sextas feiras desse mês teremos projecções de cinema documental no auditório da Biblioteca (Horta), no que será uma extensão deste festival que teve lugar em Lisboa há uns meses atrás. Será uma oportunidade de ver e pensar sobre realidades, culturas e pensamentos da nossa e de outras culturas. Coetaneamente acontecerão também extensões deste festival nas Ilhas do Pico, Terceira e São Miguel, produto da colaboração com outras entidades, como Museus, Bibliotecas e Cineclubes.

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i n m e m o r i a m José Martins Garcia (1941-2002)

BOCA ABERTAPaulo RamalhoEdição: Companhia das Ilhas, 2014 (64 páginas)

Um poeta que deve palavras ao mar abre a boca para saldar a sua conta. No vaivém das marés, as ondas arrastam também o lamento do mundo para dentro dos versos:

mergulha então por dentro de tino mar é onde se erguem os barcos comsuas proas femininas seus dorsosesquivos no mar se convocam os ventosalguém chama por ti no silêncioondas incham e desincham velascantam a canção do desejo ocultoentre as palavras só falta ao corpoum mastro um rosto um poemauma virgula húmida um lemepara rasgar o mar uma línguapara lamber o sal que há nas coxas.

Paulo Ramalho (1960) é antropólogo e vive na ilha de Santa Maria, Açores. Obras publicadas: O Crescer do Silêncio (Fora do Texto, 1992); Ofício Imperfeito (A Mar Arte Editora, 1994); Histórias do Reino Distante (A Mar Arte Editora, 1996); Exorcismo dos Anjos (A Mar Arte Editora, 1997); As Duas Sombras (Íman Edições, 2003 - Bolsa de Criação Literária - IPLLB); Ilha Entre Linhas (Novo Imbondeiro, 2008 - Bolsa Criar Lusofonia - CNC).

m o n t r a d e l e rl i t e r a t u r a

José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, e na cidade da Horta fez uma parte dos seus estudos liceais, concluídos no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Nesta cidade, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar mais tarde. Em 1964-65 foi professor eventual do então Liceu Nacional da Horta. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial, e que Rui de Azevedo Teixeira inclui entre os “oito romances obrigatórios, canónicos” da literatura da Guerra Colonial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, o conjunto da obra de José Martins Garcia. Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris. De 1971 a 1979 leccionou na Faculdade de Letras de Lisboa.Durante os anos sessenta e até aos anos 70 «foi um dos mais assíduos colaboradores de Fernando Ribeiro de Mello nas Edições Afrodite» , onde, aliás, publicou parte da sua obra. Este foi também um período

de colaboração regular na imprensa de Lisboa, em especial no suplemento Letras e Artes do jornal República (1972-1974): aqui publicou uma boa parte das críticas e ensaios reunidos em Linguagem e Criação (1973), bem como das crónicas de Katafaraum é Uma Nação (1974), num tempo de atropelos por parte da censura e de subterfúgios para escapar-lhe (Katafaraum, resultado da amálgama da frase «Cada um fareja um», pode funcionar como exemplo). Entre 1973 e 1975 foi crítico literário da Vida Mundial; neste último ano colaborou n’A Capital e no Diário de Notícias, prolongando-se a colaboração no DN até Fevereiro do ano seguinte, altura em que passou a exercer as funções de director-adjunto do Jornal Novo. Este facto estaria, aliás, na origem do seu rompimento definitivo com o Partido Socialista: o partido proibiu a aceitação desse cargo a qualquer dos seus militantes; em carta divulgada na imprensa José Martins Garcia «proíbe ao PS qualquer interferência na sua vida profissional». Além da repetida denúncia, por escrito, dos novos totalitarismos que se desenhavam em 1975, José Martins Garcia teve ainda intervenção directa na publicação em Portugal da célebre entrevista de Álvaro Cunhal a Oriana Fallaci, aquela em que o líder comunista afirmava à jornalista italiana que Portugal nunca teria uma democracia burguesa. Em 1979 rumou aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte e no devastador livro de poemas Temporal (1986). De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002.[Urbano Bettencourt: “Notas Biográficas” de “Signo Atlântico”, posfácio a Português, Contrabandista, de José Martins Garcia, Lajes do Pico, Biblioteca Açoriana nº 3, colecção dirigida por Urbano Bettencourt e Carlos Alberto Machado, 2009]

C a r l o s a l b E r t o M a C h a d o , E s C r i t o r E E d i t o r d a C o M Pa N h i a d a s i l h a s

P o r v o N ta d E E x P r E s s a d o a U t o r , E s t E t E x t o N ã o o b E d E C E à a C t U a l N o r M a

o r t o g r á F i C a .

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g u e r r e i r o s d o m a r

milhares de pescadores açorianos e continentaisarriscaram a vida nas quatro décadas de Ditadura

Pelos mares do Norte - Terra Nova e Gronelândia - milhares de pescadores açorianos e continentais arriscaram a vida nas quatro décadas de Ditadura, aproximadamente 23.400 homens. Segundo a legislação de 1927, ao completar a sétima campanha consecutiva na Pesca do Bacalhau, livravam-se do serviço militar obrigatório, nomeadamente da Guerra no Ultramar. Foi com esse espírito que, aos 26 anos, Dâmaso (S. Miguel) entrara como “verde” no Santa Maria Manuela em 1960. Partiu de Lisboa com a bênção de Salazar e da Igreja, na chamada Frota Branca. Assim baptizada desde que, para assinalar a neutralidade do país na II Guerra Mundial, se teve de pintar de branco os navios; inadvertidamente o Maria da Glória foi abalroado por um submarino, matando 36 pescadores.Nos grandes bancos da Terra Nova navegavam veleiros e arrastões, na Gronelândia a faina maior fazia-se com lugres, como o actual navio-escola Creoula. Mas a frota bacalhoeira era antiquada e desajustada, dos 40 navios 70% laborava há mais de 25 anos, eram lentos, sem motor auxiliar, raramente cumpriam as normas de segurança no mar e absolutamente impreparados para emergência médica.Cada navio dispunha de cerca de 18 dóris. Botes de um homem só, a remos, pescando à linha. Era duríssima a vida nos dóris. Embarcações de 4 a 5m, 80 a 100kg, lidavam de pé, para isca usavam calm, cagarras e pequenas lulas. Entre os muitos perigos que enfrentavam: engolidos à socapa pelo mar ou arrastados borda fora dos próprios lugres; contam-se a névoa que se abatia repentina, as águas caramelizadas em icebergs e as borrascas. Trabalhavam em troca de um salário dependente de quanto pescassem, ao longo de seis meses, antes de o Inverno se insinuar, gelando o próprio mar; submetidos a jornadas sobejas vezes de 20 horas, que o descanso só chegava depois de escalado e salgado o peixe, e ceada a chora – soup of sorrow, sopa de bacalhau servida no rancho. Os pescadores acordavam às 4 horas, com uma oração e lançavam-se a medir forças com o mar, picado, corpo a corpo. A sobrevivência dependia da sua sagacidade e destreza no manejo das linhas de múltiplos anzóis, os próprios assumem que

nem sempre tinham cuidado, muitos arriscavam e afastavam-se demais. “Como capitão, a minha maior preocupação era não perder nenhum homem. Tentava mantê-los por perto, que o tempo mudava rapidamente. Mas eles iam, como se nada fosse, tenazes para pescar. Eram uns heróis!”, diz Ramalheira (85 anos bem contados, Flores); naquele ano de 62, chegou a temer pela vida de dois dos seus homens, ao perderem-se no nevoeiro. Em 1966, o “special” do Rio Antuã, Zé da Ferrucha, 39 anos, carregou excessivamente o seu dóri (ganhavam ao quilo) e afundou-se, sem que o capitão Medeiros (77 anos, Terceira) o pudesse socorrer.

Na Primavera de 1967, entrou naquele mesmo navio de onde o Ferrucha fora levado num caixão, sete meses antes, o seu filho Jacinto “Bexiga”, então com 17 anos. Actividade tradicional, com forte enraizamento familiar, sazonal, vivia-se desse tão poucochinho; ainda assim bem mais rentável do que a pesca local.As soldadas variavam segundo a categoria: capitão, um conto de réis por carga máxima de navio, piloto 40$00 réis/mês, marinheiro-pescador maduro 140$00 réis/campanha e “verde” até 110$00 sem direito a passagem de regresso à terra-natal. Os lucros obtidos pelos armadores eram conseguidos à custa da exploração de mão-de-obra e não da modernização da frota.Em várias comunidades do litoral, as mulheres destes pescadores tinham por hábito vestir-se de preto quando eles embarcavam, e cobrir com panos todo o mobiliário do lar, dormindo, sobre uma enxerga, no chão. Era uma espera sofrida, solidária com as provações deles, durante seis meses, por um regresso que nem sempre aconteceu.O dramaturgo Bernardo Santareno dedicou o seu livro de crónicas marítimas - “Nos Mares do Fim do Mundo” a estes valorosos homens, quando viajou como médico do Gil Eanes em 1957/58. George Sluizer gravou, em 1967, para a National Geographic o documentário “The Lonely Dorymen”. Em 2001 dá ao prelo “Terra Nova – Pesca do Bacalhau” de Jorge Matos e “A Memória dos Bacalhoeiros” de António Silva. Já em 2004 João Gomes escreve “O Homem e o Mar – Os Açorianos e a Pesca Longínqua nos Bancos da Terra Nova e Gronelândia”.Todos os bacalhoeiros mantém fresca, como que conservada em sal, a memória daqueles anos. As suas mãos grandes, cicatrizadas de silêncio e saudade, reflectem a severidade do trabalho (sem luvas); o frio, o sal, os calos rijos como a madeira do cavername, acrescentam estórias à lonjura do olhar.C r i s t i N a l o U r i d o

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n ã o o d e i e s o s m e i o s d e c o m u n i c a ç ã o s o c i a l , s ê o m e i o d e c o m u n i c a ç ã o s o c i a l .

Editorial na última página, só para dizer até já

Este é o último Fazendo da temporada. Segue-se a habitual pausa antes do regresso no Outono. Foi nesta temporada que lançámos a nossa primeira campanha de crowdfunding, em que a comunidade investiu em conjunto num projecto que já era isso mesmo, comunitário, com contributos dos leitores, dos agentes culturais, de gente que faz ou que observa o que outros fazem, de coisas mais ou menos concretas e mais ou menos abstractas. O Fazendo quer-se assim, um meio. Um meio de comunicação entre as gentes: na era da total troca de informação, aleatória e desregrada, o Fazendo é um mil-folhas de papel, o testemunho directo e carinhoso de uma realidade que existe: a realidade criativa e curiosa de um território.

“Não odeies os meios de comunicação social, sê o meio de comunicação social.” (“Don’t hate the media, become the media” - Jello Biafra)

E a partir desta frase, lança-se já o repto para o próximo ano. Sejam o meio de comunicação social, no Fazendo. Não no sentido da vossa auto-promoção (embora também se aceite alguma, vá...), mas no sentido de ser um meio. Sejam as testemunhas do que por cá se faz. Contem o que viram, o que sabem, mostrem o que conhecem. Promovam os outros, entrevistem quem faz coisas, convidem pessoas a participar e sejamos um meio de saber e de fazer acontecer.

É capaz de resultar, ou pelo menos, de ir resultando. Boas férias e bom trabalho.a d i r E C ç ã o

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Poluiçãoentender para minimizar o risco,

previnir as consequências e mitigar os efeitos

94tu não és burro

fazendo o fringe

jáfoneca, um ano depois

o mais antigo marinheiro

romeu bairos

uma história ao calhas

olhares da gente

fábricas

o que aconteceu ao cp valour?

a poluição natural existe?

derrame de hidrocarbonetos

aureo castro

a viagem

pedra-ilha

tatiana potoskaya

aventuras de ezequiel malaquias

faca nos açores

montra de ler

in memoriam

guerreiros do mar

editorial

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F a z E N d o F a z E N d o . b l o g s P o t. C o M

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