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IHU ON-LINE Revista do Instituto Humanitas Unisinos Nº 463 | Ano XV 20/04/2015 ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online) Maria Cláudia Dal’Igna: Governamentalidade, gênero e educação, uma relação complexa Fernando Seffner: Sexualidade, vivência e pesquisa. “O pessoal é político!” Jamil Cabral: A Queerização da vida Lúcia Pedrosa: A mística teresiana como veículo para a verdadeira e profunda transformação Pedro Lucas Dulci: O que significa pensar o cristianismo hoje? 70 anos sem Bonhoeffer Jeannine Gramick: LGBT. Esperança de mudança na acolhida e no ensino da Igreja Todas as possibilidades do Gênero Novas identidades, contradições e desafios

Fazendo Gênero - Nossos corpos, nossas regras

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Reportagem publicada na Revista IHU On-Line. Apresenta um panorama das questões de gênero no Brasil

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  • IHU ON-LINERevista do Instituto Humanitas Unisinos

    N 463 | Ano XV 20/04/2015

    I S S N 1 9 8 1 - 8 7 6 9 ( i m p r e s s o )

    I S S N 1 9 8 1 - 8 7 9 3 ( o n l i n e )

    Maria Cludia DalIgna: Governamentalidade, gnero e educao, uma relao complexa

    Fernando Seffner: Sexualidade, vivncia e pesquisa. O pessoal poltico!

    Jamil Cabral: A Queerizao da vida

    Lcia Pedrosa: A mstica teresiana como veculo para a verdadeira e profunda transformao

    Pedro Lucas Dulci: O que significa pensar o cristianismo hoje? 70 anos sem Bonhoeffer

    Jeannine Gramick: LGBT. Esperana de mudana na acolhida e no ensino da Igreja

    Todas as possibilidades do GneroNovas identidades, contradies e desafios

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    TEMA DE CAPADESTAQUES DA SEMANA

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    #Reportagem

    Fazendo gnero. Nossos corpos, nossas regras

    Por Andriolli Costa

    Desde 2013 ele passou a se apresentar como Eric (foto). O nome ele esco-lheu, mas sua identidade de homem trans nunca foi alvo de escolha, mas de descoberta e aceitao. Os fami-liares, na medida do possvel, foram compreensivos. Ainda hoje escor-regam em artigos ou pronomes de tratamento adequados. No entanto, comemora, ao menos no o haviam expulsado de casa.

    Eles entenderiam melhor se eu assumisse a narrativa de que eu era um homem em corpo de mu-lher. Se dissesse que estava no cor-po errado. No entanto, isso no era verdade para Eric. Nunca foi. Meu corpo nunca esteve errado. Eu sempre fui homem, mesmo que no me parecesse com o que se espera de um homem, esclarece. Eric Seger, aos 28 anos, nos lembra que a questo de gnero transcen-de a questo biolgica.

    Maria Fernanda faz do corpo uma mensagem poltica de autoa-firmao. Ostenta com orgulho os pelos debaixo do brao, cultiva-dos ao longo de quase dois anos. Uma lembrana para a sociedade e para ela mesma de que no precisa seguir padres de qualquer tipo para ser mais ou menos mu-lher. Simpatizante das vertentes mais radicais do feminismo, con-corda com a ideia de que o homem (como classe, no indivduo) um inimigo. Uma relao semelhante aproximao desconfiada entre pa-tro e empregado, que no perde de vista a estrutura de dominao.

    No questo de dio, mas de medo. Eu me relaciono sexualmen-te e afetivamente com homens,

    sou amiga deles, mas em ltima instncia eles ainda so homens, lembra, mencionando casos de vio-lncia e abuso que ocorrem todos os dias. O esclarecimento, entre-tanto, no a livrou do sofrimento. Por diversas vezes esteve em rela-cionamentos abusivos, marcados por chantagens e jogos emocionais.

    Quando vivemos essas situa-es, no percebemos o abuso. Para chegar ao ponto de admitir isso em uma entrevista, foi pre-ciso primeiro admitir para mim mesma, assinala. Assim como ela, uma em cada trs mulheres em todo o mundo sofre violncia por parte de seus parceiros, segundo a ONU. Militantes ou no. Maria Fer-nanda Salaberry, tambm aos 28 anos, nos lembra que gnero um campo de enfrentamento.

    Pouco depois de iniciar seu pro-cesso de transio, j com mais de 30 anos de idade, Luisa entrou em depresso e esteve reclusa por longos perodos. Tinha medo da re-ao que as pessoas viriam a ter. Familiares, conhecidos da rua, co-legas de trabalho, todos pareciam pression-la. Antes de qualquer cirurgia a dignidade comeou a re-tornar a sua vida com a alterao de seu nome social. Os implantes de silicone e a redesignao sexu-al, por sua vez, vieram para torn--la uma pessoa completa. No era uma troca de sexo, como se diz no popular. Era uma readequao. Algo que ela mesma pde atestar juridicamente, ao dar entrada, como advogada, em seu prprio pedido de alterao documental.

    Eu queria me olhar no espelho e me ver com uma aparncia femini-

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    Volta e meia aparece no jor-nal uma matria sobre um pai heri que criou sozinho um fi-

    lho aps o abandono da me

    na. Antes disso, meu subconsciente parecia bloquear qualquer relacio-namento que eu pudesse ter. A vontade de estar com homens veio apenas com a transio pronta. No com a cirurgia feita, mas com a identidade feminina formada. Luisa nunca se sentiu gay, mas uma mulher (trans) heterossexual. Essa no a regra, e h diversos casos de gays e lsbicas entre os trans-gneros, o que gera ainda mais in-compreenso. Luisa Helena Stern, 48 anos, nos lembra que sexuali-dade e identidade de gnero so tpicos totalmente independentes.

    Quando o filho de Fabiane nas-ceu, seu primeiro brinquedo foi uma bonequinha negra. O pai quis protestar mais por boneca, que por negra. Em nada adiantou. No seriam coisas to pequenas que determinariam a masculinidade de seu filho, ela sabia. Quem, afinal, havia inventado que aquele era um brinquedo s de meninas? Para Fa-biane, categorizar o mundo entre coisas de menino e de menina nun-ca fez muito sentido. Ainda assim, mesmo na idade adulta, as oportu-nidades continuavam a seguir essa lgica. Para ela, diziam, bastava o magistrio. Era uma atividade ade-quada para uma mulher, e ela esta-ria cercada de crianas e de outras senhoras. Ignorou. Formou-se em Direito.

    Longe de escritrios de advoca-cia ou de estgios no Ministrio P-blico, ela encontrou seu lugar logo cedo em uma ONG de empodera-mento feminino, a Themis, e nela permanece atuando at hoje. Para ela, ser mulher nunca se reduz maternagem, mas a conscincia adquirida acabou incorporada em

    sua vida. Algo que transparece na educao de seu filho, com 10 anos de idade. Esses dias mesmo ele pegou meu suti do cho, colocou e comeou a brincar. Ela se diver-tiu com a cena, e entrou na onda. , t faltando um pouco de peito a, hein? Fabiane Simioni, 35, re-corda que aquilo que consideramos masculino ou feminino construdo com base em convenes sociais.

    Vivncias de gnero

    Eric, Maria Fernanda, Luisa e Fabiane nos lembram de muitas coisas, mas a principal delas de que ainda h muita confuso e de-sinformao envolvendo questes de gnero na nossa sociedade. Conforme o avano das dcadas, o antigo adgio de que a anatomia o destino vem paulatinamente caindo por terra. Tanto que, para evitar uma distino baseada entre pessoas trans e pessoas normais,

    utiliza-se o termo cissexual para se referir queles que se identifi-cam com o gnero ao qual foram impostos. Mas, se gnero no si-nnimo de sexo biolgico, e mui-to menos est ligado orientao sexual, como possvel defini-lo?

    O psiclogo cis Lucas Goulart, militante da ONG Somos e mem-bro do Ncleo de Pesquisa em Se-xualidade e Relaes de Gnero UFRGS o NUPSEX, esclarece que gnero uma construo

    social. Ou seja, para alm do ma-cho e da fmea, a forma como os papis de masculino e feminino so atribudos, transformando os sujeitos em homens e mulheres. A orientao sexual, por outro lado, diz respeito ao interesse sexual por pessoas. E ainda que muitas vezes haja relao entre os dois termos, aquele que se identifica como gay no deseja ser uma mulher. O fato indica apenas que ele um homem gay.

    Basta olhar o cotidiano para ver como as questes de gnero esto presentes desde o nascimento at o fim da vida. No se trata apenas de escolher um enxoval azul ou rosa para os bebs, ou de comprar carrinhos para um e panelinhas para o outro. Parte desde a deci-so de ter ou no uma criana, e as consequncias disso. Volta e meia aparece no jornal uma mat-ria sobre um pai heri que criou

    O psiclogo Lucas Goulart explora os dilemas que envolvem corpo e gnero na sociedade

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    sozinho um filho aps o abandono da me, resgata Lucas. Mas se a mdia escrevesse uma matria para cada me solteira que faz o mes-mo, no haveria jornal para dar conta.

    Entretanto, o assunto no se res-tringe s questes do feminino. O garoto proibido de fazer dana ou cursar uma faculdade de artes plsticas por ser coisa de menina; o rapaz que se fecha com os amigos para no parecer emotivo e afemi-nado; ou a pessoa trans que desen-volve transtornos psicolgicos por temer a reao dos pais, todas es-sas so questes de gnero, que se inserem em uma lgica fundamen-talmente machista e patriarcal.

    Tal lgica desgastante, e afeta a todos. Mesmo os homens, ainda que sejam seus maiores beneficia-dos. Deles, a sociedade exige de-monstraes de fora e resistncia que no combinam com cuidados com o corpo ou emotividade. Se-gundo o Centro de Referncia da Sade do Homem, de So Paulo, a cada ms cerca de 60% dos pa-cientes procuram o local j apre-sentando enfermidades em estado avanado.

    Ser o homem da casa uma responsabilidade adoecedora. Con-tudo, sempre importante relem-brar que os homens ainda que possam sofrer com restries em relao a seu gnero so ainda privilegiados socialmente, cabendo a eles questionar esses privilgios. Discutir questes de gnero no apenas retirar privilgios de um grupo, mas libertar a todos.

    Feminismo e enfrentamento

    Se gnero um campo de enfren-tamento, a era da internet e das redes sociais torna esses embates mais pblicos e frequentes. De ma-neira que, muitas vezes, o assunto pode parecer ultrapassado e o dis-curso vitimista. No entanto, no preciso muito para perceber que ainda h tanto a ser discutido. E nem mesmo os direitos j conquis-tados com anos de luta so pontos pacficos.

    Em dezembro de 2014, o depu-tado federal do PP-RJ, Jair Bolso-naro, defendeu o pagamento de salrios menores para mulheres, frente ao iminente risco de gravi-dez.1 Poxa, essa mulher daqui a pouco engravida e fica seis meses de licena-maternidade. Quem que vai pagar a conta? O empregador. Quando ela voltar, vai ter mais um ms de frias. Ou seja, ela traba-lhou cinco meses em um ano.

    De modo parecido, quando a pas-sista Fabiana Vilela desfilou gr-vida este ano, no carnaval de So Paulo, no faltaram aqueles para botar em xeque a necessidade de

    dar assento no nibus ou de deixar a gestante passar na fila do banco. O patriarcado tem dificuldades em abrir mo de qualquer direito, por mais simples que seja.

    Fabiane Simioni, advogada e ati-vista, defende que para a reso-luo de situaes como essa que surgem os movimentos feministas. Feminismo no o contrrio de machismo, mas um processo polti-co de transformao da sociedade. a ideia radical de que homens e mulheres devem ter direitos iguais, como diz o chavo. Fabiane no nega as diferenas entre os sexos, mas luta para que estas no se re-

    1 Ver entrevista publicada em 10-12-2014 no jornal Zero Hora, disponvel em http://bit.ly/zhbolsonaro. (Nota da IHU On-Line)

    flitam em hierarquias e posies desiguais de poder. E, no mundo do trabalho, a gravidez um dos exemplos mais evidentes deste tra-tamento desigual.

    Ainda hoje temos mulheres que so estimuladas dentro da empresa a programarem a maternidade, em uma poltica invasiva e coercitiva, expe. o caso de uma empresa de telemarketing de Juiz de Fora, que estabeleceu uma escala de gravidez para suas funcionrias.2 Quem quisesse ter filhos, deveria obedecer ao perodo estabelecido pelo local. Na poca, o ministro Claudio Brando, do Tribunal Su-

    perior do Trabalho, se posicionou. O empregador tem o controle do trabalho do empregado, mas no da sua intimidade, da sua privaci-dade. O empregado no deixa de ser cidado quando vai trabalhar.

    por essas e outras que a advo-gada, que tambm d aula em um curso de aperfeioamento em Di-reitos Humanos na UFRGS, sempre chama a ateno de seus alunos para essas temticas. No entanto, ela deixa claro: ningum precisa virar ativista ou feminista depois de sua disciplina. Ainda assim,

    2 Ver matria Empresa cria escala de gra-videz e diz quando funcionrias podem ter filho, publicada em 22-09-2014 no Jornal Hoje, disponvel em http://bit.ly/jhgravidas. (Nota da IHU On-Line)

    Fabiane Simioni defende o feminismo como mudana poltica da sociedade

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    para entender o feminismo, pre-ciso fazer um exerccio de alterida-de. O rechao a priori ruim para todos. Ouvir essa vivncia pode ser libertador para quem consegue dar o primeiro passo.

    Um processo natural para o ho-mem que simpatiza com a causa das mulheres buscar o engaja-mento nos movimentos feminis-tas. Foi o que fez o publicitrio cissexual Lucas Rodrigues Koehler, antes de compreender seu papel nesta luta. Eu sou branco, hte-ro e homem. Eu no posso assumir o protagonismo desta causa, mas posso ser um apoiador. A reflexo amadurecida s veio com o passar do tempo. No incio, questionava o porqu certos grupos eram to contrrios participao do ho-mem no movimento. Mais do que isso, tentava dizer para as prprias mulheres o que deveria ser o femi-nismo e como agir. A pacincia e a empatia foram fundamentais para compreender que a melhor forma de ajudar era apoiar de fora. Hoje, faz o papel contrrio. ele quem explica a outros homens o modo adequado de apoiar o movimento.

    A energia que as mulheres gas-tam explicando para os homens o que eles fazem de errado poderia ser muito melhor empregada em-poderando mais mulheres, prope Fabiane. Na capa do Facebook da ativista Maria Fernanda Salaberry, uma assertiva parece pr um ponto final na ideia: Ningum pergunta por que os patres no fazem par-te do sindicato dos trabalhadores. Ento, por que questionar o motivo de os homens no fazerem parte do feminismo?.

    Relaes de poder

    Pensar questes de gnero no simplesmente reconhecer as dife-renas, mas identificar a disparida-de das relaes de poder. nesse sentido que se diz que este um campo de constante enfrentamen-to. No entanto, para a publicitria e ativista Maria Fernanda Salaber-ry, mais que isso. Gnero no uma guerra. Guerra quando os dois lados atacam. Gnero um

    massacre. Ao seu lado esto os dados. No Brasil, a cada 10 minutos uma pessoa estuprada, conforme o Frum Brasileiro de Segurana Pblica. Outra pesquisa, do IPEA, aponta que 88% das vtimas de es-tupro no pas so do sexo feminino.

    Nos grupos feministas, comum a utilizao do termo sororida-de. Diz respeito relao de fra-ternidade e solidariedade que deve existir entre todas as mulheres. Com base nisso, Maria Fernanda pontua: Certa vez ouvi outras fe-ministas dizendo que sororidade mostrar para as mulheres que elas podem conviver bem com os homens. No! Dizer isso uma ir-responsabilidade. Existe um risco efetivo.

    Para ela, a questo levar em conta a socializao. A sociedade forma os homens para dominar e as mulheres para obedecer. Assim, mesmo aquele que no tem o dese-jo de oprimir acaba o fazendo sem perceber. Voc no pode chegar at a Faixa de Gaza e dizer que to-dos podem parar de se preocupar e serem amigos, sabendo que os exrcitos esto a postos.

    Maria Fernanda milita por um feminismo radical. Aquele que questiona o patriarcado desde as razes, explica ela. No entanto,

    ainda que sua denominao no derive de radicalismo, certas posturas mais extremas impactam mesmo dentro do prprio feminis-mo. Muitas dizem que o feminis-mo radical muito terico. Mas no a teoria que incomoda, a postura de vida.

    A discusso, segundo ela, diz res-peito hierarquia e explorao. A sociedade forma as mulheres para executarem tarefas para os homens. No s tarefa de educar os filhos, mas de fazer sexo com o cara. Certas correntes, inclusi-ve, afirmam que qualquer tipo de penetrao uma violncia. Pro-pe ento o lesbianismo poltico, para marcar de vez o afastamento dos homens. Maria Fernanda no segue essa linha, e continua a se relacionar com homens. Ainda as-sim, reconhece: O patriarcado o mais antigo sistema de explorao de todos os tempos. E ele s fun-ciona at hoje porque as vtimas tm uma relao afetiva com seus exploradores.

    Questo de identidade

    cone do feminismo do sculo XX, Simone de Beauvoir apontava em um famoso aforismo que no se nasce mulher, torna-se uma. Ao dizer isso, ela se referia ao modo

    Feminista radical, Maria Fernanda Salaberry questiona o patriarcado des-de as razes

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    como a sociedade molda o indiv-duo dentro do que se espera dele. Tais expectativas mudam com as dcadas, e podem ir de uma gen-til e submissa dona de casa at a mulher independente e empreen-dedora dos dias de hoje mas de quem ainda se cobra apartamento limpo e um filho bem educado. Re-vises do pensamento de Beauvoir, propostos pela teoria queer, explo-ram como esta afirmao vlida para todos os corpos e sujeitos.

    De acordo com autores da psi-cologia do desenvolvimento, a partir dos quatro anos que a crian-a passa a ter noo do gnero que lhe estabelecido. Que existem aqueles tidos como homens, os tidos como mulheres e que cada um exerce papis diferentes na sociedade, esclarece Lucas Gou-lart. E normalmente nessa idade, tambm, que a criana comea a perceber as possveis inadequa-es. Assim, chegamos questo de identidade de gnero a for-ma como a prpria pessoa se reco-nhece diante da socializao que recebe.

    Foi assim para Luisa Stern, da ONG Igualdade. Eu sonhava em ser mulher quando crescesse. J me imaginava mulher. Ela conta

    que desde a infncia sentia sua identidade feminina sendo for-mada, ainda que para conseguir processar e compreender o que acontecia fosse preciso bem mais tempo. Quando a deciso foi to-mada, no entanto, ela a assumiu sozinha e em silncio. No contou aos amigos, colegas ou familiares nem mesmo sobrinha, com quem morava na poca. Tem a ver com a questo da minha autonomia. Fa-lar com algum seria como se eu estivesse pedindo permisso para ser assim. No era o caso. Luisa o que sempre foi. E agora, tanto por dentro quanto por fora.

    Eric Seger de Camargo foi cursar Educao Fsica, na UFRGS, para se entender. Eu fui buscar uma verdade do corpo, que para mim no fechava. Porque havia uma verdade por trs do meu prprio corpo que eu no conseguia en-tender. No encontrou. Ao menos no ali. O curso apenas reforou esteretipos de masculino e fe-minino. Frustrado, buscou outros horizontes. Em uma disciplina de Psicanlise e Arte, escreveu um artigo sobre arte queer, inspirado no vdeo The Gender Obsolescen-ce. Nele, homens e mulheres cis e trans desmascaravam-se perante a

    sociedade. A pessoa que entregou esse artigo nunca mais voltou. No outro semestre, j pedi que os pro-fessores alterassem meu nome na lista para Eric, relata.

    Para que a pessoa trans possa se desenvolver, fundamental ter um grupo de pessoas que acreditam em ti e te legitimam socialmente, reflete. Neste sentido, ele encon-trou todo o apoio no NUPSEX, onde atualmente bolsista de Iniciao Cientfica. E esta legitimao se d em um nvel muito maior do que o de simplesmente utilizar a coloca-o pronominal adequada.

    Quando eu digo que quero ser tratado no masculino, espero que as pessoas me tratem como ho-mem. E eu sinto a diferena quan-do no para valer. A pessoa me trata de maneira adequada, mas na real parece que est falando com Napoleo Bonaparte, confi-dencia Eric. Algo como: Ah, voc Napoleo? Bom, se voc est di-zendo eu acredito...

    Disforia de gnero

    Para conseguir os tratamentos hormonais ou o encaminhamento para cirurgias pelo SUS, as pesso-as trans no Brasil devem passar por atendimento em uma das quatro Unidades de Ateno Especializa-das credenciadas. O Hospital das Clnicas de Goinia (GO) cujo projeto est em vias de ser encer-rado, o Hospital das Clnicas da FMUSP (SP), o Hospital Universit-rio Pedro Ernesto (RJ) e o Hospital de Clnicas de Porto Alegre (RS). Neles, dependendo da disponibili-dade do local, possvel realizar no apenas a hormonioterapia e a redesignao sexual, mas tambm a tireoplastia para feminilizao da voz e a mamoplastia masculi-nizadora para os seios.

    Em Porto Alegre, esse tipo de trabalho no HC realizado den-tro do Programa de Transtorno de Identidade de Gnero, o Protig. O nome j est sendo mudado, mas ainda segue a antiga forma de se relacionar com a transexualidade como um transtorno, uma parafi-lia, da mesma forma que a homos-

    Luisa Stern sempre se sentiu mulher. Seu processo de transio comeou de dentro para fora

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    sexualidade foi tratada durante muitas dcadas. O novo Manual de Diagnstico e Estatstica dos Trans-tornos Mentais norte-americano - DSM-5, traz mudanas a esta viso, propondo o termo Disforia de g-nero. As mudanas vm ocorren-do, mas de forma lenta.

    Cada vez mais, na psicologia, estamos vendo a questo da iden-tidade como sendo autocentrada, explica Lucas. Ou seja, se a pessoa se coloca como homem ou mulher, isso o que faz da pessoa homem, mulher, ou pessoa no binria. Aquele que deseja se submeter ao processo transexualizador, ou mesmo solicitar juridicamente a mudana de seu nome social, deve apresentar um laudo psicolgico atestando sua disforia.

    Lucas Goulart atua constante-mente nesta rea, graas ao pro-jeto Direito Identidade: Viva seu Nome uma parceria com o NUP-SEX, a Igualdade e o G8-Generali-zando, grupo de assessoria jurdica da UFRGS. Ele relata que seu pare-cer no psicologizante, e expli-camos como a pessoa construiu sua vida daquela maneira e como a mu-dana de nome pode minimizar a situao de vulnerabilidade. Ainda assim, reconhece que no a me-lhor maneira. Nenhum cis precisa passar por alguma avaliao para atestar ser homem ou mulher, problematiza. Ns tentamos no patologizar, mas ainda tratado como doena. A melhor soluo seria no necessitar de parecer al-gum. A soluo, no entanto, no parece estar prxima. Isto porque, com exceo de casos especficos, com o SUS no possvel realizar cirurgias plsticas por motivo est-tico. Por isso, certa patologizao acaba sendo necessria.

    Mas nem todos os pareceres so assim. Para a realizao da cirurgia de redesignao sexual pelo SUS, o rgo exige pelo menos dois anos de tratamento psicolgico. Cor-rem, entre os pacientes desses cen-tros, crticas sobre a exigncia de um comportamento idealizado de homens e mulheres por parte dos pacientes. Em alguns hospitais de referncia, a equipe mdica exige

    que a mulher trans tenha aquele ar de Amlia, de dona de casa, en-quanto aqui fora a mulherada quer se livrar deste esteretipo, relata Luisa. Muitas vezes se cobra da mu-lher trans at mesmo um jeito de sentar adequado, como se fossem estes signos capazes de dizer o que ou no ser mulher.

    Em Porto Alegre, segundo Eric, o clima poderia ser mais acolhedor. No como se eles estivessem te ouvindo, mas te interrogando. Eles sempre ficam perguntando sobre a sua infncia, como se tentassem descobrir o que houve de errado. Eric entende que a prtica vem dos protocolos da psiquiatria, e no dos profissionais em si, mas sugere que estas prticas sejam desafiadas.

    Outras crticas dizem respeito ainda cobrana por uma hetero-normatividade. Eric conta que se relaciona com homens e mulheres, mas tem uma preferncia. Eu sou mais gay, na real, mas eu digo que sou bi. Eric j relatou a uma as-sistente social sua preferncia. No entanto, quando outra residente preenchia seu questionrio, per-guntou quando havia sido sua l-tima relao sexual com uma mu-lher. Com mulher?, respondeu, deixando o subtexto claro. Ela con-firmou. No passava pela cabea dela outra possibilidade. Se eu digo que sou homem, ento tem que ser com meninas, n?

    Do contato que j teve com ou-tros pacientes, ouviu que o teatro a melhor soluo. Sente-se, por vezes, como se aqueles que seguem a cartilha do homem ou da mulher ficam mais prximos da cirurgia. uma coisa meio Big Brother, meio Jogos Mortais, sintetiza.

    A psicloga e pesquisadora do Protig, Bianca Machado Borba Soll, relata que muitas vezes os pacien-tes j chegam ao Programa com um discurso pronto. Eles leem na in-ternet que para fazer a cirurgia preciso agir de tal jeito, mas aqui ns seguimos critrios diagnsti-cos. Nenhum critrio diz que pre-ciso ser heteronormativo, mas diz em relao identidade.

    Segundo ela, esta triagem im-portante para no encaminhar para a cirurgia algum que manifesta insatisfao com o corpo, mas que em verdade no deseja a redesig-nao do sexo. Pode ser fruto de um surto, por exemplo. Os crit-rios falam de um desconforto com suas caractersticas sexuais, do de-sejo de ter caractersticas de outro sexo biolgico. Algo que seja real-mente grande, a ponto de a pessoa decidir se submeter a uma cirurgia de risco. s vezes h quem nos procure para retirar o pnis, mas relata que ainda sente prazer com ele, e o utiliza para relaes sexu-ais. Ento, ser que a interveno cirrgica realmente o melhor caminho?

    Para Lucas Goulart, nossa socie-dade ainda tem uma viso muito li-mitada e binria de gnero e sexua-lidade que ligada aos genitais. E isso faz com que essas pessoas no consigam acessar os seus direitos, seja no dia a dia, seja no mercado de trabalho. Isso se comprova ao observar as estimativas. De acordo com a Associao Nacional de Tra-vestis e Transexuais - ANTRA, 90% das travestis e transexuais no Brasil esto no mercado da prostituio.

    Uma boa iniciativa se v em So Paulo, onde o governo est ofere-cendo bolsa para travestis estuda-rem. Afinal, muitas precisam largar a escola porque so expulsas de casa e precisam trabalhar. E como no tm oportunidades, a prosti-tuio acaba se tornando o nico caminho, problematiza Lucas. Para ele, as polticas pblicas bra-sileiras esto avanando mesmo com a eleio do congresso mais conservador das ltimas dcadas. Mas, claro, enquanto pessoas estiverem morrendo, os dilogos sempre sero muito vagarosos.

    Linhas cruzadas

    Neste campo to movedio, cor-pos e sexualidade se misturam na construo da identidade de gne-ro que problematiza os binarismos tradicionais. Problematizam, mas no rompem com eles, pois ainda h a diferenciao entre masculino

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    e feminino. No entanto, existem aqueles que alegam se identificar com os dois gneros. Ou ento com gnero algum. Contra o binarismo, vertentes discutem o rompimento da barreira homem e mulher. Pen-sar em indivduos e seres humanos, sem divises estanques.

    O Centro de Equidade de Gne-ro da Universidade da Califrnia, em Berkeley, prope: Uma pes-soa cuja identidade de gnero no nem homem nem mulher est entre os sexos ou alm, ou uma combinao de gneros. E con-clui: Algumas pessoas no bin-rias se colocam sob o guarda-chuva dos transgneros, enquanto outras no. O reconhecimento do gnero neutro vem aos poucos. Em pases como Alemanha e Austrlia j possvel registrar uma criana sem especificar o sexo entre masculino

    e feminino. No Facebook da Argen-tina, o usurio pode se identificar entre mais de 50 opes de gnero e orientao sexual.

    Maria Fernanda Salaberry ques-tiona tamanha diversidade. Para ela, por vezes, uma questo de exagero. Voc pode deixar que as pessoas transitem entre dois po-los, ou acima, ou dos lados. E a se voc se diz abacaxi, voc abaca-xi. No entanto, lembra ela, pro-por a extino das divises binrias no discute a hierarquia desses lugares. Ela tambm se preocupa com as questes prticas. Como fica a questo da identidade de gnero em um hospital? Ou em um presdio?

    Eric, ainda que se reconhea como binrio, compreende como esta diviso pode no fazer sentido

    para algumas pessoas. Tem gente em que o selo do gnero simples-mente no gruda. Para ele, preciso estar aberto para compre-ender as singularidades de cada um. Algum que tem o privilgio de no precisar dizer o tempo todo o que , no pode repetir certas violncias, defende. Para ele, uma agresso fortssima dizer que uma pessoa no aquilo que ela est dizendo.

    Esse tipo de violncia frequen-temente denunciado por homens e mulheres trans, especialmente no que envolve as chamadas TER-FS sigla em ingls para Trans-Ex-clusionary Radical Feminists. So grupos dentro de vertentes radicais que excluem, agridem e silenciam mulheres trans. Em dezembro pas-sado, por exemplo, diversas ofen-sas foram pichadas nos banheiros femininos da USP. As mensagens ameaavam: Vamos cortar sua pica fora, e marcavam posio: No vamos deixar os machos ocu-parem nossos espaos. Uma das mais simblicas dizia: Ser mulher no usar nossos sapatos.

    Para Eric, h muito a se perder na excluso das mulheres trans dos movimentos feministas. Se elas dessem voz a estas pessoas, poderiam entender o que ocorre com uma mulher quando esta so-fre uma socializao masculina, e ainda assim abraa a vida de mu-lher, prope. A mesma rusga des-tes grupos, no entanto, no vista em relao aos homens trans. Com estes o problema outro. Quando elas dizem que sua sororidade no est com as mulheres trans, mas est com os homens trans, como eu falei sobre Napoleo. Na verda-de, elas continuam nos vendo como mulheres. Esta a luta de Eric, a do reconhecimento.

    - E o que ser homem, para voc?

    Eric pensa um pouco. Encara a mesa do restaurante, e alisa o queixo sob a barba escanhoada na forma de cavanhaque. Por fim, responde.

    Eu no consigo dizer o que ser homem, reflete. Eu apenas sei.

    Mensagens transfbicas no banheiro feminismo da USP. Marcas da intolerncia

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