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ensaio sobre a relação entre a fé e a cura
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Fé e Cura
"QUEBRANTO
'Com dois puseram, com três eu tiro.
Com as três pessoas da Santíssima Trindade,
que tira quebranto e mau-olhado,
pras ondas do mar, pra nunca mais voltar'
ESPINHELA CAÍDA
'Barquinho de Santa Maria navega no mar
sem emborcar.
Levanta a sua espinhela, põe tudo no seu lugar'
CARNE QUEBRADA
'O que é que eu cosi?
Assim mesmo eu coso,
osso rendido,
nervo magoado, veia sentida,
carne quebrada.
Assim mesmo eu coso, em louvor a São Frutuoso'"
Rezas tradicionais de benzedeiras caboclas.
Um fato curioso a respeito dos estudos sobre religião no Brasil é a forma
como a multiplicidade de cultos e crenças se desenvolveu nos últimos 50-60
anos. Mesmo que algumas expressões já existissem antes desse espaço
temporal, o hábito, a colonização e a "religião oficial do país" faziam de todo
brasileiro católico apostólico romano. Mesmo que a maioria dos cultos ainda
sejam cristãos, a gama de possibilidades cresce inegavelmente.
Outro fato curioso é como todas as práticas religiosas se aproximam da
cura de forma cada vez mais performática. Sessões de descarrego,
exorcismos, passes, benzeções. Algumas já tradicionais e antigas, cujas
origens não alcançamos facilmente. Outras importadas de cultos e tradições
externas a si, mas procuradas pelos crentes.
A relação com a cura dentro de uma visão cosmológica, mágica e de
sabedoria e poder está presente nas mais diversas culturas e vem sido
ressignificada e transformada ao longo dos séculos. Mas a pergunta que me
ronda não é por que ela existe, mas qual a necessidade que o doente tem de
uma cura espiritual para males tidos como físicos. As aflições do corpo e do
espírito estariam interligadas?
Hoje, a medicina "tradicional", cientificista e biomédica já concorda que
sim. Mesmo que encontrando explicações diferentes. Enquanto o médico
afirma que o paciente está psicossomando estafa e ansiedade, a benzedeira
vai dizer que ele está com encosto, o padre dirá que ele está sendo tentado, o
pastor, que ele está possuído. Várias explicações para um mesmo mal.
Mesmo que não concordem em terminologia, há o consenso involuntário
de que os males que afligem o corpo são oriundos de outras esferas
(psicológica, psiquiátrica, espiritual, demoníaca). A diferença reside no
tratamento. Enquanto os médicos buscam saídas alopáticas, os lideres
religiosos buscam respostas metafísicas.
O paciente decide buscar por curas alternativas quando sente que a
medicina não é capaz de sanar seu mal. Mas o que os centros religiosos são
capazes de oferecer que o consultório médico não atinge? Supostamente
entendimento da aflição. Uma mudança na relação entre doente e doença.
Se considerarmos "mágica" toda transformação que escapa ao
entendimento comum, ao domínio publico, e ao escrutínio do método cientifico,
podemos apelar para a definição de Mauss de magia para explicar a relação
entre as pessoas e os ritos de cura. Ao escrever sobre a definição de magia,
Mauss afirma que não podemos chamar de mágico um fenômeno, apenas por
este ter sido assim considerado por meio de uma interpretação subjetiva.
Devemos considerar mágico aquilo que é considerado mágico pela
comunidade, para “toda sociedade e não apenas uma fração”. Além disso, para
ser considerado magia, o rito deve envolver agentes, atos e representações.
Os atos ritualísticos são repetidos por tradição. E tal repetição é necessária
para serem considerados atos mágicos, assim como a crença, de toda a
comunidade, na eficácia dos ritos.
Enquanto isso, podemos observar que a biomedicina entra em conflito
com o ponto de vista antropológico e nega a cura pela religião, pelo rito e pela
magia:
"Por sua vez, os trabalhos produzidos por cientistas e profissionais da
área de saúde a partir da perspectiva biomédica reagem fortemente contra
o que identificam enquanto o relativismo inerente aos trabalhos
antropológicos. Em geral, buscam ressaltar o fundamento biológico
comum aos processos de doença e cura, ocultos por trás das diferentes
roupagens culturais. Aplicando categorias da medicina ocidental para
analisar processos terapêuticos que escapam ao âmbito dessa medicina,
terminam não só por desconsiderar completamente seu fundamento
cultural, como por apontar um fundamento patológico intrínseco a tais
processos. Desnecessário dizer, muito pouco diálogo é possível entre
essas duas perspectivas." (Miriam Rabelo, 2007)
A negação da religião enquanto agente de cura, muitas vezes dificulta o
processo de recuperação do individuo afligido pelos males, quer eles sejam
físicos, quer sejam metafísicos.
Miriam Rabelo levanta duas questões no artigo A construção do
sentido nos tratamentos religiosos, de 2010. Uma questiona o conceito de
compreensão, a forma como tratamentos religiosos mudam a forma como os
"sofredores" compreendem seu problema. A segunda, sobre a relação entre
as experiências sensíveis vividas e a construção de novos significados para
a aflição. Ora, nem sempre o doente e o "sem saúde" são sinônimos. Os
males que caracterizam a doença podem ser sinal de falta de saúde, mas de
nada adiantaria, no contexto cosmológico, a saúde do corpo e a falta de
saúde do espírito.
Voltando a atenção para a performance, o ritual e o poder de cura,
temos Goldman nos fala das variadas formas que uma mesma entidade
pode assumir em diferentes situações. Usando como os orixás do candomblé
como exemplo, em um de seus artigos Goldam nos explica como os orixás
podem se transformas em pessoas, objetos e como a contagem nunca bate
com os 16 postulados oficialmente. Da mesma forma, as benzedeiras usam
uma série de diferentes plantas, orações, e gestos para tratar um mesmo
malefício. Ou pastores pentecostais realizam diferentes exorcismos, com
performances elaboradas, glossolalia e imagens fortes.
A biomedicina falha por várias razões, uma delas é se prender a sua
forma canônica (mas que ironia!) e evitar grandes variações na prática
médica. O conhecimento e a autoridade estão detidos por poucos e a
autonomia do paciente é tolhida de forma arbitraria pelo argumento de
autoridade. A inflexibilidade leva a uma ineficácia não prevista pelo método,
já que ele parte de um principio generalizante.
As idiossincrasias são perdidas no consultório medico e os pacientes
buscam outros ares para que possam se tratar de forma que seu mal seja
avaliado individualmente e suas peculiaridades sejam consideradas. Mesmo
que os rituais buscados sejam distintos e discrepantes, a eficácia é inegável.
O que todos esses rituais tem em comum é a fé daqueles que os
procuram. A crença de que suas dores e aflições serão sanadas através da
oração, do banho, da benção. Que o mal que sentem será expurgado pelo
poder dos xamãs, dos celebrantes, dos sacerdotes.
Não importa muito a religião praticada. Importam os significados que
os símbolos sagrados assumem, e as afeições dos convalescentes. As
experiências sensíveis e como eles se deixam afetar por elas.
BIBLIOGRAFIA:
Mauss, Marcel. “Esboço de uma teoria geral sobre a magia”. In: Sociologia e
antropologia. São Paulo, CosacNaify
RABELO, Miriam Cristina 2007. Religião e a Transformação da Experiência:
notas sobre o estudo das práticas terapêuticas nos espaços religiosos. Ilha, 7:
125-145.
RABELO, Miriam Cristina 2010. A construção do sentido nos tratamentos
religiosos. RECIIS. Revista eletrônica de comunicação, informação & inovação
em saúde 4: 3-11
Goldman, Marcio 2005. Formas do saber e modos de ser. Observações sobre
multiplicidade e ontologia no candomblé. Religião e sociedade, 25(2): 102-120.
SANCHIS, Pierre. As religiões dos brasileiros. HORIZONTE, Belo Horizonte, p.
28-43, mai. 2009. ISSN 2175-5841. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/412>. Acesso
em: 10 Dez. 2015.