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Projeto Revisoras

CAPÍTULO I

Jéssica olhou para o pai num misto de desespero e desânimo.Entretanto Hal Prescott não estava disposto a ouvi-la. Com arindiferente, apertou o botão que fechava a divisória de vidro entreeles e o motorista da limusine.

— Mas você vai mesmo para Madri, pai?! — ela quis saber,amuada. — Acabei de chegar de Londres e só tenho dois dias para

ficar com você!— A culpa é sua. Se tivesse me avisado que viria, eu lhefalaria da viagem. Francamente, Jéssica, você sabe o quanto souocupado. Que insensatez pegar um avião para Nova York sem falarcomigo antes!

Jéssica baixou a cabeça. De certo modo, o pai tinha razão.Mas não sabia para onde ir depois da discussão que tivera com amãe. Precisava do apoio do pai, pois o fato de ter fugido da escolanove dias antes do feriado da Páscoa a estava deixando muitoinsegura.Procurou se distrair com a paisagem, olhando pela janela doautomóvel. Manhattam era sempre um cenário muito bonito aocair da tarde. As vidraças dos edifícios altos, modernos, refletiamas cores rosadas do azul do céu, compondo um espetáculobelíssimo.

Embora gostasse muito de Nova York, Jéssica não se sentiaem casa naquela cidade. Aliás, nenhuma parte do mundo lheproporcionava uma sensação de aconchego, de identificação.

O pai tinha razão, admitiu para si mesma com um suspiro.Devia ter avisado antes que viria. Isso já fazia parte dos hábitos dafamília: se quisesse ver os pais, precisava combinar a visita comatecedência. No início, sofrera muito com a solidão decorrentedesse estilo de vida, mas acabara se acostumando. Habituara-se amuitas coisas, apesar de ainda não entender o estranhorelacionamento de Hal e Mauren Prescott.

Os dois haviam se separado quando Jéssica estava com

apenas sete anos. No entanto, continuavam legalmente casados,embora Hal morasse em Nova York e Mauren em Londres.Jéssica passava quase o ano todo num colégio interno ao sul

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da Inglaterra. Só via os pais nas férias e feriados prolongados.E ambos pareciam muito contentes com a situação, Jéssica

pensou com amargura. Dedicavam-lhe só as sobras de tempo,sempre ocupados com assuntos particulares. Mas em breve elanão dependeria mais de nenhum dos dois. Terminaria o cursosecundário e, então, decidiria ela própria o que fazer!

Ainda não resolvera nada a respeito, mas de uma coisaestava certa: não iria para a escola na Suíça! Não se submeteriade modo algum àquele curso preparatório para o casamento. Lá sóse ensinava as moças a se comportarem como esposas de homensimportantes e Jéssica queria muito mais da vida.

— Ei, moça! Estou falando com você!Jéssica voltou-se assustada com a aspereza na voz do pai.

Não gostava daquele tipo de tratamento, e nos últimos temposestava irritada com ele, com a mãe... com o mundo inteiro! Sentia-se rejeitada e sozinha, como se todos a encarassem como umestorvo.

— Claro que sei que estou nove dias adiantada — afirmou,cáustica. — Mas os filhos e as doenças nunca têm dia certo paraaparecer!

Pela primeira vez gritava com o pai e ficou satisfeita com aexpressão pasma do rosto dele.— Por que isso agora, Jéssica? Você fugiu da escola, sabia?— É... sei que estou errada, mas agora não dá para voltar

atrás.— E sua mãe?— Mamãe e eu tivemos uma discussão daquelas!Hal recostou-se no banco luxuoso da limusine com ar de

enfado.— E então, o que mais me conta de novidade?Jéssica não respondeu. Hal olhou de novo para a filha, dessa

vez com mais atenção. Não entendia o que estava acontecendo.Percebia nela ressentimento e rancor e se perguntava por queJéssica lhe dedicava sentimentos tão negativos.

— Ei, o que há de errado com você?— Depois do modo como me recebeu hoje, ainda pergunta? A

verdade é que está mais preocupado com seus negócios do quecomigo. Aliás, como sempre aconteceu.

— Jéssica, só porque eu tenho de viajar...— Não estou falando disso! Sei que vim antes do que

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havíamos combinado, mas por que aquela chata da sua secretárianão me disse nada sobre essa viagem para a Espanha quandotelefonei?

— Porque você não lhe deu tempo; desligou antes dela falarqualquer coisa. Depois, não pudemos mais nos comunicar comvocê. Afinal, fez o telefonema do aeroporto, antes de embarcar.

Jéssica lamentou não ter aceitado o convite de CarmemRomero, sua melhor amiga, para uma viagem até a Escócia. Sónão fora com ela porque queria ter uma conversa séria com o paisobre seu futuro. Afinal, não concordava com nada do que haviamprogramado para ela. Não iria para nenhuma escola na Suíça, nemqueria fazer nenhuma universidade que realmente não lheinteressasse! Se o pai precisava viajar, não tinha importância.Esperaria que voltasse...

Hal não sabia o que fazer para acalmar a filha. Na verdade,nunca a vira tão zangada.

— Olhe, Jéssica, não vou lhe dizer que essa sua vindaantecipada não me causou apreensão e um certo transtorno. Mas oque interessa é que está aqui agora e eu me sinto muito contentepor vê-la de novo.

Jéssica não respondeu ao comentário do pai. Continuouolhando pela janela do carro, emburrada.— Podemos dar uma solução para isso tudo — Hal atalhou,

por fim. — Você irá comigo para Madri, que tal?Jéssica olhou para o pai, espantada.— Mas pensei que você fosse à Espanha a trabalho...— E vou.— E quer que eu vá com você?— Por que não? — Hal encarou a filha com um meio sorriso.O espanto de Jéssica se devia ao fato de que nada para ospais era mais importante que os negócios. E aquele convite,

assim... Levá-la junto numa viagem de trabalho a pegara desurpresa.

— A que horas tomaremos o avião? — quis saber, empolgada.— Onde ficaremos hospedados? Em algum hotel? Quanto tempoficaremos lá?

Hal sorriu da repentina mudança de humor da filha. Ela ficavamais bonita quando sorria, mais semelhante à mãe. Adoravaaqueles olhos verdes, grandes e expressivos. Os cabeloscastanhos, curtos e encaracolados, e as sardas encantadoras

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faziam-na parecer bem mais jovem que seus dezessete anos.— Ficaremos lá uns cinco dias. Depois, voltaremos para cá e

iremos para a Califórnia, como havíamos combinado. — Halrespirou fundo, procurando, de brincadeira, responder àsperguntas tão rápido quanto ela as fizera. — Não ficaremos emnenhum hotel, nos hospedaremos na casa do falecido RamónColchero... Você se lembra dele, não?

Jéssica possuía na mente uma imagem bem clara do amigodo pai. Era um homem de meia-idade, que jantara com eles umavez. Na época devia ter uns onze ou doze anos, e ficara encantadacom a cordialidade daquele homem alto, robusto e elegante. Oscabelos grisalhos conferiam-lhe uma aparência muito aristocrática.Além disso, não era carrancudo como os outros banqueiros queconhecia...

Jéssica ficou séria de repente e olhou para Hal enquanto ocarro trafegava pela Quinta Avenida. Pensava na carta querecebera dele há três meses, mencionando a morte do amigo.Sentira muito não estar ao lado do pai naquele momento de perda.

— Lembro-me muito bem do sr. Colchero, papai... Fiqueimuito triste quando me contou sobre a morte dele.

Hal balançou a cabeça com ar sombrio.— Ramón era um homem forte. Escapou de dois ataquescardíacos, mas, no terceiro... Ele devia ter se aposentado porcausa da saúde. Mas, também, quem se conforma em ficar inativocom apenas cinquenta e cinco anos?!

Ainda bem que o pai tinha quarenta e quatro anos, Jéssicasuspirou, aliviada. Mas se continuasse trabalhando tanto...

— Um dos irmãos dele assumiu a presidência do banco — Halexplicou, pensativo..

— E ele mora na casa do sr. Ramón?— Não.— E quem está morando lá agora?— Os filhos e a mãe de Ramón. Ele tem... tinha dois filhos e

uma filha. O mais novo ainda está fora da Espanha, estudandonuma universidade, mas o mais velho, o braço direito do pai, éclaro, está em Madri.

— Por que é clarol— Porque essa é uma tradição da família. Aliás, os Colchero

são uma família muito tradicional. E sempre houve pelo menos umbanqueiro em cada geração.

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voltando a abraçá-la em seguida.— A sra. Freer vai preparar uma refeição bem gostosa para

você — anunciou com um sorriso de desculpas. — Infelizmente,não vou poder ficar, tenho um jantar de negócios daqui a pouco...Você entende, não é?

Jéssica suspirou, resignada. Conhecia bem a rotina do pai enão se surpreendeu pelo fato de não vê-lo mais naquele dia.

Na manhã seguinte, também não foi possível encontrá-lo,pois Hal saiu de casa muito cedo e só voltou tarde da noite.

Na véspera da viagem para a Espanha, Jéssica acordou antesque de costume, na esperança de falar com o pai. De fato,encontrou-o na sala de refeições, lendo um jornal e já vestido parasair.

— Algum problema? — ele perguntou, erguendo os olhos do jornal por alguns instantes enquanto Jéssica se servia. — Ainda émuito cedo.

— Preciso falar com você, pai.Hal dobrou o jornal, colocando-o sobre a mesa.

— Agora não vai dar. Quero estar no banco por volta das oitohoras... Conversaremos mais tarde, está bem? — Acariciou oscabelos da filha num gesto displicente e ergueu-se da mesa semesperar qualquer resposta. Na porta, voltou-se para ela com atesta franzida. — É melhor fazer algumas compras. A não ser quetenha trazido uns vestidos bem bonitos para a viagem.

Jéssica tomou um gole de café, desanimada. Não puseranenhum vestido na mala. Afinal, esperava passar as férias naCalifórnia e, por isso, só trouxera roupas esportes.

Terminado o café da manhã, Jéssica vestiu-se sem pressa efoi para o Central Park. Pensou em dar apenas um passeio rápido,mas acabou ficando lá a manhã inteira tomando sol e observandoas brincadeiras das crianças.

Por volta do meio-dia, resolveu andar um pouco pelas ruas deNova York.

Porém, o dia claro e um pouco frio só contribuiu paraaumentar-lhe a melancolia. Quase entrou em algumas lojas paracomprar alguns vestidos, mas magoada com o pai, desistiu. Jéssicanão gostara da atitude dele pela manhã: nem havia se preocupadoem saber o que tinha para lhe dizer...

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disse isso a mamãe e repito agora para você!— Sua mãe já me falou sobre esse assunto.Jéssica afundara-se na cadeira com um gemido de desânimo.

— É, eu devia saber que ela contaria sobre nossa discussãoantes de mim. Mamãe sempre faz isso!

— Claro, por que não faria? Ela me telefonou algumas horasantes de você chegar a Nova York. Mauren estava preocupada,Jéssica. Contou que a tratou como a uma estranha e isso amagoou muito... Agora ouça, você está cansada, vem dedicando-se demais aos estudos e teve uma porção de preocupações. Énatural que esteja um pouco descontrolada, eu entendo. Pensa quenão passei por essa fase? Por isso mesmo sei que não é o melhormomento para se tomar decisões importantes, filha. Raciocine comcalma e acabará vendo a situação com mais clareza.

— Mas...— Faça isso por mim.Jéssica concordara com o pedido do pai, porém, naquele

momento, já estava arrependida. "Se eu conseguisse falar comcalma, aqui seria o local ideal para conversarmos. Com um bomdiálogo, poderia expor-lhe meu ponto de vista..."

Quando por fim desembarcaram no aeroporto de Madri,depois de uma parada imprevista em Portugal por causa de umdefeito em uma das turbinas do avião, Jéssica já estava maisconformada. Contudo, perdera o entusiasmo pela viagem.

Passaram pela alfândega e pela imigração. Já no saguão doaeroporto, pai e filha esperavam pelo motorista que os levaria paraa casa de Ramón Colchero. Mas algo deveria ter acontecido, pois ohomem não aparecia.

Desanimada e confusa com tanta gente ao redor, Jéssica ia sesentar quando ouviu uma voz grave chamar o nome do pai. Olhouao redor e viu um homem alto caminhando na direção deles compassos decididos.

Sem cumprimentá-la, o desconhecido aproximou-se de Hal e,colocando-lhe as mãos nos ombros, apertou-os com força numcumprimento amistoso. Devia ser alguém da família Colchero, elapensou. O estranho vestia-se com elegância irrepreensível, comroupas caras e bem talhadas. Entretanto, ao fitar-lhe o rostomoreno, Jéssica percebeu um toque selvagem nas feiçõesangulosas e másculas. Os cabelos, negros e encaracolados,acentuavam-lhe o ar exótico, e Jéssica só encontrou uma palavra

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para descrevê-lo: cigano, um lindo cigano!Jéssica o olhava fascinada enquanto o pai entabulava com ele

uma conversa animada. Deviam ter a mesma altura, quase ummetro e noventa. Embora fosse magro, o desconhecido possuíaombros largos e uma estrutura física sólida e elegante. Aparentavauns trinta anos, entretanto guardava um toque infantil no sorrisocharmoso, de dentes muito alvos e perfeitos.

Quando se voltou para ela, ficou impressionada com os olhosque a fitavam. Eram negros, penetrantes, misteriosos e, noentanto, serenos como um lago escuro.

— Esta é minha filha — Hal a apresentou. — Jéssica, querida,este é o senor Ricardo Juan Antônio Colchero de Castilla.

— Ricardo — ele disse, sorrindo. — Para você, só Ricardo.Estendeu-lhe a mão com um sorriso que, na certa, ele próprio

julgava encantador. Jéssica detestou esse convencimento e retiroua mão rapidamente da dele. Devia ser uma pessoa insuportável,diferente em tudo do sr. Ramón.

Nesse momento, o motorista de Ricardo se aproximou parapegar a bagagem e os três saíram do saguão do aeroporto. Jéssicaestava decepcionada em todos os sentidos com aquela viagem.

Com um suspiro resignado, preparou-se para os cinco diasenfadonhos que teria pela frente. Só esperava que Mercedes fossebastante diferente do irmão...

CAPÍTULO II

Enquanto o automóvel luxuoso caminhava suavemente pelasruas de Madri, Jéssica sentia-se deprimida. Lá fora tudo eraescuridão. No carro, um silêncio incômodo dominava o ambiente eJéssica se arrependia por ter aceitado o convite do pai. Talvez

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tivesse sido melhor esperá-lo voltar da Espanha em Nova Yorkmesmo.

— É a primeira vez que vem à Espanha, Jéssica? — Ricardoperguntou.

— É a primeira vez, sim.— Vamos nos esforçar para lhe dar uma boa impressão de

nosso país. Madri tem muitas coisas interessantes, tenho certezade que vai gostar da cidade.

— Eu também tenho certeza disso — ela mentiu.Não estava disposta a fazer turismo. Em todo caso, a única

coisa que de fato gostaria de conhecer em Madri era o Museo deiPrado. Mesmo assim, se seu humor melhorasse.

— Minha irmã tem a sua idade, Hal lhe contou?— Contou, sim. E estou ansiosa por conhecê-la — Jéssica

acrescentou, forçando um sorriso.Em seguida, voltou a fitar a escuridão. Um instante depois,

por curiosidade, virou-se de novo para ele. Ricardo ainda a olhavade maneira penetrante. Jéssica encarou-o por alguns momentosem desafio, depois ignorou-o, iniciando uma conversa com o pai.

Mais uma vez, lamentou ter ido à Espanha. Só o que lhe

faltava era ter um anfitrião que a irritava tanto. Parecia tão segurode si, tão prepotente... De certo, não gostara do fato de ela terinterrompido a conversa que iniciara.

"Sinto muito, sr. Colchero... Mas não gostei do senhor, e nãoconsigo disfarçar..."

Quando chegaram ao centro de Madri, Jéssica teve bonsmotivos para olhar pelas janelas do automóvel. As ruas eramarborizadas como as de Londres, embora largas como as de NovaYork. Pessoas interessantes, bem vestidas e apressadas percorriamas calçadas, entrando e saindo das lojas iluminadas por letreiroscoloridos. De repente Jéssica sentiu uma vontade imensa deconhecer a cidade à luz do dia.

Por fim, o carro parou diante de um enorme portão de ferrosustentado por altos muros. Estava, ainda no coração da cidade,numa área não muito residencial. O motorista desceu do veículo eabriu o portão. Logo a seguir, atravessaram o vasto jardim,estacionando em frente a uma casa branca, bem grande, dearquitetura simples e sóbria.

Contudo, a aparente simplicidade se restringia apenas àfachada da residência. Jéssica logo o percebeu ao entrar num

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querendo parecer indelicada, sorriu para o dono da casa com arinocente.

— É muita gentileza de sua parte, senhor, mas não estou nemum pouco cansada. Talvez, se tomar um pouco de vinho, o sonochegue mais depressa...

Ricardo ergueu uma das sobrancelhas, manifestando surpresaem ver uma garota tão jovem pedindo-lhe vinho.

Jéssica reprimiu um sorriso ao notar a reação dele, mas nãofez nenhum comentário. Em vez disso, reparou em Mercedes, que,ainda sentada, fitava o irmão como se lhe perguntasse algumacoisa.

— Boa noite, nina.O cumprimento, feito de modo carinhoso e natural, deixou

Jéssica horrorizada. Então, Mercedes estivera esperando apermissão dele para se retirar?! Ainda atônita, perguntou-se seaquele hábito, tão medieval em pleno século XX, constituía umcostume espanhol ou era privilégio da família Conchero. Se aprimeira hipótese fosse a verdadeira, não suportaria mais de doisdias naquele país!

Mercedes se retirou, mas Jéssica permaneceu na sala.

A conversa sobre negócios entre Ricardo e Hal excluiu-a porcompleto. Depois de uma hora quase dormindo na cadeira, Jéssicamanisfestou sua vontade de dormir. A empregada levou-a até umquarto arejado a muito confortável, onde, depois de deitar-se, elapegou no sono sem nenhum esforço.

Na manhã seguinte, acordou bem-disposta e refeita da longaviagem. Abriu as pesadas cortinas de veludo e ficou encantadacom o céu todinho azul, tão diferente do eterno cinzento deLondres. Tomou um banho demorado e, após vestir uma calça

jeans e um suéter, desceu para o andar de baixo.O relógio do hall de entrada marcava sete horas."Agora, terei a chance de admirar a casa e as esculturas sem

ninguém por perto", ela pensou, feliz.Quando chegou na sala de jantar, viu uma moça pondo a

mesa para o café da manhã. Após desejar-lhe um bom-diasorridente, informou a Jéssica que Mercedes estava no jardim dosfundos.

Jéssica seguiu o caminho indicado pela empregada,

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maravilhando-se a cada passo. Jamais vira nada igual àquela casa,em luxo e tradição.

Nos fundos da mansão, encontrou um chafariz, com serafinsnus e vasos de plantas ornamentais ao redor. Os arbustos bemtratados e as trepadeiras davam ao lugar um, aspecto idêntico àspraças espanholas do século XVI, cuja arquitetura Jéssica tantoadmirava das figuras dos livros.

Estava tão deslumbrada com a beleza do jardim que demoroualguns instantes para notar a presença de Mercedes. Sentada numbanco de pedra sob algumas árvores, a moça tinha no rosto um arcompenetrado e distante.

Jéssica observou-a em silêncio por alguns instantes. Por queuma garota tão jovem usava sempre roupas sóbrias, de cores tãoausteras? Vendo-a tão triste e abatida, sentiu uma imensa vontadede consolá-la, e lembrou-se de algo importante: Mercedes perderao pai há pouco tempo, portanto ainda estava de luto.

Ao perceber a presença de Jéssica, a moça se levantou,sorrindo cordialmente.

Bom dia, Jéssica. Dormiu bem?— Muito bem, obrigada. — Jéssica aproximou-se dela e com

muito tato falou: — Bem... eu devia ter dito isso ontem, Mercedes,mas quero dizer que sinto muito o que aconteceu com seu pai. Euo conheci e... — Emocionada, não conseguiu acabar a frase.

Mercedes baixou os olhos escuros, muito semelhantes aos deRicardo.

— Obrigada — murmurou. — Na verdade, eu estava pensandonele agora.

— Então desculpe por perturbar você. Se soubesse que iriaincomodá-la não teria vindo para cá.

— Imagine, você não está me incomodando! Que tal irmostomar o café da manhã?— Acho uma excelente idéia.Durante todo o caminho para a sala de jantar, as duas

conversaram bastante à vontade.A mesa fora posta de maneira exemplar. Além dos frios, uma

cesta grande cheia de frutas estava colocada no centro da mesa.Ao terminarem a refeição, Mercedes se desculpou:— Infelizmente, agora tenho de ir para o meu quarto me

aprontar. Tenho aula de inglês às nove. Eu já devia falar inglêsbem melhor e Ricardo não está nada contente com isso.

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— Pois é... Ele vai ter de se conformar...— Mas é uma escola tão boa... Como pode jogar fora uma

oportunidade dessas?— Oportunidade de quê?! De aprender a andar como se

tivesse uma pilha de livros na cabeça? A colocar uma mesa de jantar, a se comportar na presença de um embaixador?

Mercedes olhava para Jéssica, sem entender por que elaestava tão exaltada.

— Você não quer aprender nada disso?! — a garotaperguntou, incrédula.

— Para quê? Onde pretende utilizar esses conhecimentos?— No meu casamento, é claro.— Não acha que está se antecipando demais? Nem sabe se

vai se casar!— Não estou, não. Já estou comprometida.

Jéssica encarou com ar de horror o rosto sereno deMercedes.

— Não me diga que foi sua família que lhe arranjou essecasamento!

— Não... Emílio e eu nos conhecemos desde pequenos, mas

nossas famílias nunca nos pressionaram.— Ah, e ele deve ser de muito boa família também...— É lógico! Não entendo você. Nós nos amamos e é por isso

que vamos nos casar. Que mal há nisso?— Nenhum, é claro. E onde está seu namorado? Fiquei

curiosa para conhecê-lo.— Acho que não vai ser possível. Ele está servindo o Exército

em outra cidade. Emílio e eu ficaremos noivos assim que elecumprir o serviço militar. Mas só nos casaremos quando eleterminar os estudos.— Pelo jeito, o seu futuro já está inteirinho traçado.

— Não é bem assim, acho que está com uma impressãoerrada da situação. É verdade que todos aprovam meu casamentocom Emílio, mas...

— Mercedes, me desculpe, mas será que não consegueenxergar que estão controlando o seu futuro?

— Mas eu quero me casar com Emílio!— Será que quer mesmo? Já parou para pensar o que isso

significa? Acho que você ouviu falar tanto sobre isso que acabou seacostumando.

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— Mas, Jéssica, eu...— Pois é... Pense um pouco sobre o assunto, Mercedes, e vai

ver que tenho razão.— Mas você não pretende se casar?— Não, de jeito nenhum. E também não quero ter filhos.

Mercedes, será que é tão difícil para você entender que aprogramaram como a um robozinho?

Mercedes não respondeu, apenas encarou Jéssica como seestivesse diante de algo muito raro. Uma aberração, talvez. Derepente, uma voz grave e sonora rompeu o silêncio, provocandonas duas um ligeiro sobressalto.

— Por que não responde à pergunta da nossa hóspede,Mercedes?

Jéssica virou-se na cadeira, espantada. Era Ricardo quemestava encostado no umbral da porta, numa atitude calma erelaxada. Trajava um terno escuro impecável e uma camisa de umbranco reluzente.

— Há quanto tempo estava ouvindo nossa conversa, senhorl— Jéssica perguntou, com ar de reprovação.

— Desde o começo — ele retrucou, entrando na sala. — E,

confesso, achei muito interessante. E então, nina, responda àpergunta.Mercedes olhou para Jéssica e disse num tom seguro:— Não concordo que tenham me programado como a um

robô, muito pelo contrário. Quero realmente me casar com Emílioe ter muitos filhos. O que há de mal nisso?

Ricardo olhou para Jéssica, como se achasse a situação muitoengraçada.

— Sr. Colchero, não gosto da maneira como olha para mim, etambém não gostei que ficasse ouvindo a conversa que estavatendo com a sua irmã. Mas o senhor há de convir comigo: ela nãoestá tendo outra opção na vida.

— Não entendi direito o que você quis dizer, Jéssica.— Ah, não entendeu? — ela perguntou com petulância. —

Arranjaram uma maneira muito eficiente de obrigá-la a se casar.— Você acredita no que ela está dizendo, Mercedes?— Não. Estou fazendo o que eu quero. Fico contente que

minha família concorde, mas me casaria com Emílio de qualquermaneira.

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Jéssica sentiu um

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constrangimento terrível. Estava a ponto de se desculpar e sair daliquando Ricardo consultou o relógio de pulso.

— Nina, não queremos que chegue atrasada à aula. Tenhocerteza de que Jéssica compreende...

Mercedes se levantou, sorrindo.— Vejo você na hora do almoço, Jéssica — disse, retirando-se

apressada.Jéssica olhou para Ricardo e falou.— Com licença, senor, eu vou...— Fique, por favor. Gostaria de falar um pouco com você.— Parece que não temos mais nada a dizer um ao outro,

senor.— Por que não me dá uma chance? Ainda nem comecei a

falar.Apesar de já haver se levantado, Jéssica sentou-se de novo.

Não custava conversar um pouco com seu anfitrião. Por longossegundos, contudo, Ricardo apenas olhou para ela com evidentecuriosidade.

— Por que está olhando para mim desse jeito? — ela indagou,mal-humorada.

— De que você tem tanta raiva? Por que é sempre tãoagressiva? E por que essa visão deformada do casamento? Você étão nova! Tem só dezoito anos.

— Dezessete. E idade não significa nada. Enxergo muito bemas coisas.

Ricardo olhou-a, suspirando desalentado.— Você e minha irmã têm a mesma idade No entanto, você é

bem mais imatura que ela.— Pelo contrário! Tive chance de aprendei a pensar por mim

mesma, enquanto ela...Interrompeu-se, contrafeita. A ironia do olhar de Ricardofalava por si mesma. Jéssica sentiu-se estremecer e não gostoudaquela reação. Ricardo a perturbava, e muito. Nele tudo eraintenso: o jeito de olhar, falar, se mover...

Reagindo contra o sentimento que a deixava insegura, Jéssicachegou à conclusão de que a única coisa que Ricardo queria delaera intimidá-la. Ergueu o queixo e enfrentou-lhe o olhar.

— Você acha que se conhece, que sabe o que quer da vida,não é, Jéssica?

— Disso não tenho a menor dúvida.

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Jéssica respondeu-lhe com tanta segurança que até ela seespantou, pois sabia que estava muito longe de se conhecer. Pelocontrário, não conseguia compreender a raiva que sentia da vida edo mundo. Não sabia o que queria, nem mesmo se era umacriança ou uma mulher.

Ricardo inclinou-se um pouco, os olhos negros, ciganos,parecendo vasculhar-lhe a alma.

— Tenha muito cuidado com o que quer, nina — ele disse porfim, em tom calmo. — Porque é isso mesmo o que a vida vai lhedar.

Hipnotizada por aqueles enormes olhos negros, Jéssica nemmesmo entendeu o que ele quisera lhe transmitir. Mas uma palavracaptara daquilo tudo: nina. E não gostara.

— Não gosto quando me chama assim — afirmou, num tomde desafio.

— De nina? Por quê? Significa...— Menininha ou menina-moça, sei muito bem. Mas não gosto,

especialmente vindo de você.De novo o silêncio se instalou entre eles. Jéssica se

perguntava por que simplesmente não se levantava e ia embora

dali. Não tinha obrigação nenhuma de ouvir sermões de umestranho. Estava agindo como Mercedes ao obedecê-lo.— Onde está meu pai? — ela quis saber, de repente.— No escritório, dando uma olhada nos jornais. Não vai

demorar muito... E então?— Então o quê?— Gostaria de saber o que realmente quer da vida.— Nada de especial. Quero viajar, viver...— E o fato de você terminar seus estudos na Suíça

atrapalharia tanto assim seus planos?Irritada com o modo dele observá-la, Jéssica não souberesponder à pergunta de pronto. O melhor seria escapar dali dealguma forma.

— Por favor, sr. Colchero...— Ricardo.— Está bem, Ricardo. Eu agradeceria se não comentasse esse

assunto com meu pai. Ainda não tive tempo de conversar direitocom ele sobre isso e...

— Eu nem pensaria em fazer isso — Ricardo a interrompeu.— Posso ir, agora?

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— Mas é claro! Só me diga uma coisa: seu pai e eu vamos aobanco dentro de uma hora, mais ou menos. Como vai se distrairaté a hora de almoço?

— Não se preocupe, estou acostumada a me distrair sozinha.Jéssica levantou-se e se dirigiu para a porta, apressada.

Ricardo continuava a perturbá-la. Ele era estranho, enigmático,imprevisível... Já estava deixando a sala de jantar quando ele achamou.

— Sim? — Jéssica voltou-se, preocupada.— Acha tão difícil assim conversar comigo?— Se quer uma resposta franca, acho, sim.Saiu da sala sem olhar para trás. Depois de pegar a jaqueta

no quarto, Jéssica saiu para conhecer as redondezas.Antes de mais nada, foi ao hotel mais próximo e pediu que

lhe fornecessem um mapa da cidade. O gerente, um espanholbastante simpático, além de lhe fornecer o mapa, lhe indicouexatamente o local da cidade cm que se encontravam.

Depois de agradecer tanta gentileza, Jéssica se aventuroupela cidade. Ela pretendia apenas visitar o Museo dei Prado evoltar para casa. Entretanto, resolveu fazer um caminho por El

Retiro, um enorme parque no coração da cidade, e se distraiu como movimento. Lá havia de tudo para se comprar: jóias,antiguidades e um artesanato muito variado.

O local, muito animado, estava repleto de pessoas remandono lago, conversando em grupos, sentadas nos bares ao ar livre.Os espanhóis pareciam alegres com o dia ensolarado. E não erapara menos. A beleza da paisagem, o céu azul eram um conviteirresistível à alegria. As árvores centenárias estavamesplendorosas, magníficas.

Encantada com sua primeira grande descoberta em Madri,Jéssica logo descobriu também que não pederia conhecer o parqueinteiro num só dia.

Sentou-se ao lado de uma fonte para descansar e logoencontrou companhia. Uma velhinha excêntrica, carregando umgato numa sacola de feira, veio conversar com ela. Antes de deixá-la seguir para o Museo dei Prado, fez questão de levá-la até umbarzinho para lhe oferecer um delicioso café ao ar livre. Jéssica,feliz como não se sentia há muito, resolveu também pedir umlanche.

Depois de despedir-se da velhinha, finalmente se dirigiu ao

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Prado.O museu era um dos poucos lugares que não fechava para asiesta, o descanso que os espanhóis faziam depois do almoço.

Jéssica passou a tarde inteirinha maravilhada com as obras deGoya, Velázques e El Grego que aprendera a admirar nos livros.Ficaria ainda mais tempo se não consultasse o relógio pelaprimeira vez no dia e constatasse que já eram cinco horas.

Saiu apressada do museu e tomou um táxi, indo direto para acasa dos Colchero. Ao chegar, deparou-se com Mercedes no salãode entrada, com uma expressão aflita no rosto moreno. Jéssicaquis se desculpar com a anfitriã ali mesmo. Para espanto dela,porém, a outra lhe fez sinal para calar-se. Quase ao mesmotempo, levou-a às pressas para uma saleta à direita da entrada.Mercedes parecia cada vez mais aflita e Jéssica quis saber a razão.

— É o seu pai — a garota revelou-lhe, angustiada. — Disseque queria falar com você quando chegasse. Meu irmão disse amesma coisa. Os dois estão muito bravos, especialmente Ricardo.É melhor pedir desculpas para eles.

— Para seu irmão também?! Mas por quê? O que ele...— Por favor, Jéssica, faça isso! Não deve falar com Ricardo do

jeito que fala!— E por que não? Não é porque você morre de medo do seuirmão que eu também vou ter medo dele.

— Não é medo que eu sinto por Ricardo, mas respeito. Vocênão entende? Foi muito indelicada com ele hoje de manhã, Ricardosó queria ajudá-la. Meu irmão é uma pessoa muito gentil eamável, mas quando se irrita...

— Onde eles estão? — Jéssica interrompeu-a com indiferença.— No escritório de Ricardo e...Sem dar ouvidos a mais nada, Jéssica encaminhou-se para ointerior da mansão a passos decididos. Bateu à porta do escritório

e entrou em seguida com ar confiante.— Por que todo esse carnaval? — quis saber, com ironia.Contudo, logo se conteve ao notar o clima pesado provocado

por sua entrada. Com mudo espanto, olhou a expressão exaltadano rosto do pai. Hal estava lívido de raiva e Jéssica nunca o viratão transtornado.

— Então você resolveu aparecer! — Ele apagou o charuto comforça no cinzeiro, levantando-se num gesto brusco. — Onde vocêesteve o dia inteiro? Exijo que peça desculpas a Ricardo

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imediatamente! Você é hóspede nessa casa, como se atreve acausar tanta preocupação? E quem lhe deu permissão para sairsozinha numa cidade estranha? Ficou maluca ou quis mesmo meenvergonhar?!

Jéssica olhava para o pai boquiaberta e não sabia o que dizer.— Hal... — Ricardo tentou intervir.— Pode deixar, sei o que estou fazendo, Ricardo. — Hal fez

um gesto com uma das mãos, deixando claro que não queriainterferências naquele assunto. Não parava de olhar para Jéssica, eela, para se defender, encarava-o com insolência.

— Não sei o que está acontecendo com você, menina — eleprosseguiu, em tom abafado. — Até bem pouco tempo agia comouma garota normal, como todas as de sua idade, e agora foge docolégio, briga com a mãe... Por que saiu sozinha numa cidadeestranha, como se fosse dona do mundo?

— Papai, tenho dezessete anos e há muito vivo sozinha! Vaime desculpar, mas não acredito que ficou preocupado só porque eusaí sozinha. O problema é ele, não é verdade? Está zangadoporque o sr. Colchero pode achá-lo um pai omisso.

— Agora chega, Jéssica! Peça desculpas. Já!

Com os olhos flamejando, ela ergueu o queixo num gestoorgulhoso. Estava a ponto de mandar o pai para o inferno, masfaltou-lhe coragem. Uma reação dessas só pioraria a situação.Contudo, jamais pediria desculpas naquele momento. Mesmoporquê, não conseguiria fazê-lo sem chorar e não lhes daria talprazer.

Por um momento, pai e filha se encararam com incrívelrancor. Passado o primeiro impulso de ira, porém, Jéssica baixouos olhos. Percebendo-lhe a humilhação, Ricardo se ergueu dacadeira.— Acho melhor eu conversar a sós com sua filha, Hal —afirmou, num tom calmo. — Você se importaria?

Para surpresa de Jéssica, o pai ficou satisfeito com aintervenção do amigo. Quase sorriu para ele.

— De modo algum — respondeu de pronto. — Acho mesmoque ela está precisando de uma boa descompostura. As coisas nãochegariam a esse ponto se eu tivesse feito isso sempre que elamereceu!

Virou as costas e saiu sem dizer nada. Jéssica voltou-se eenfrentou Ricardo, que se aproximava, com ar de desafio. Não o

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considerava com autoridade para dar palpites em sua vida, mesmocom o consentimento do pai.

— Qual é o próximo passo, senorl — perguntou com cinismo.— Vai me dar umas palmadas?

Ricardo não respondeu, apenas continuou se aproximando. Jáestava bem perto quando Jéssica recuou um passo, colocando asmãos na cintura.

— Se encostar um dedo em mim, faço um escândalo -ameaçou, ressabiada.

Ricardo suspirou, impaciente.— Sente-se, nina, e me diga...Tocou-lhe um dos braços espontaneamente. Contudo, Jéssica,

transtornada pela raiva, entendeu mal o gesto e tentou afastá-loaos murros. Entre surpreso e irritado, Ricardo segurou-a pelospulsos.

— Quer se acalmar, por favor?— Largue-me!Com essas palavras, Jéssica expressou um ressentimento

muito maior do que o que sentia por Ricardo. Tratava-se de umarevolta crescente dentro dela, após longos meses de solidão e

abandono. Ninguém se importava com ela de verdade, só queriamque parasse de incomodar.— Já estou farta de receber ordens! Sou uma pessoa, não um

fantoche! Tenho o direito de fazer de minha vida o que bementender!

— Não tenho nada contra, mas...Num gesto ágil, porém, Jéssica desvencilhou-se das mãos

dele. Fora de si, esbofeteou-o com força. Ao ver o rosto de Ricardotranstornar-se, percebeu que fora longe demais. Paralisada demedo, esperou pelo revide.Entretanto, Ricardo apenas segurou-a pelos braços e forçou-a asentar-se na poltrona. Jéssica não se atreveu a reagir, mantendoos olhos fixos no carpete.

Passaram-se alguns segundos sem que nenhum dos dois semovesse ou falasse. De repente, Ricardo colocou as mãos nosbolsos da calça e caminhou até a janela, dando-lhe as costas.

Jéssica mal respirava de tanta angústia. Talvez, aguentarcalada o resto da humilhação fosse a maneira mais rápida de pôrum fim àquela situação terrível.

Longos minutos transcorreram. Jéssica esperava, no mínimo,

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receber uma furiosa lição de moral.Ricardo continuava à janela, absorto.Aos poucos, Jéssica conseguiu recuperar o controle de suas

emoções. Enfrentaria com dignidade as consequências de seusatos, jurou para si mesma. Porém, o mais terrível era suportaraquela espera.

No entanto, Ricardo não sabia como lidar com o problema.Precisava deixar Jéssica em paz, ela já passara por muitashumilhações. De modo algum usaria as técnicas de Hal, mesmo setivesse o direito de fazê-lo. O amigo do pai dele podia ser umgênio em questões financeiras, contudo não demonstravanenhuma habilidade para lidar com a filha. Por isso, ela era tãoinsegura, sempre tão assustada. Jéssica trazia no olhar umasombra constante de medo... Ricardo lembrou-se do pai eagradeceu pelo modo como fora educado.

Quando intuiu que ela estava mais calma, sentiu umaprofunda sensação de alívio. Pelo menos, poupara-lhe ahumilhação de chorar diante dele.

— Pode ir, Jéssica — disse, em espanhol, sem se voltar.— Como?! — perguntou, também em espanhol, aturdida.

Na certa, entendera mal o que Ricardo havia dito.— Você pode ir, agora. Nos reuniremos às oito e meia.Convidamos algumas pessoas de nossa família para o jantar dehoje. São muito simpáticas, acho que você vai gostar delas.

Ricardo finalmente se afastou da janela, sorrindo para elacom tranquilidade como se acabassem de ter uma conversa muitoagradável.Jéssica estava desconfiada.

— O que houve? — ele indagou com gentileza. — Parece quea idéia não a deixou muito satisfeita...— Não é isso. Bem... quero dizer... pensei que estivessezangado comigo.

— Diga-me uma coisa, Jéssica. Como consegue falar tão bemespanhol?

— Não sei... Dizem que tenho um dom especial para línguas.— Acho que não é só isso. Você fala perfeitamente o meu

idioma.Ricardo sorriu, encorajando-a a fazer o mesmo.— Está bem, você está certo. Minha melhor amiga no colégio

é venezuelana. O pai dela está trabalhando na Inglaterra. Somos

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Inglaterra e dos Estados Unidos?— Conheço a França, mas estive lá só por duas semanas. Foi

numa excursão da escola. — E, como Ricardo a olhasse cheio deexpectativa, completou, meio sem graça: — É só isso.

— Mas você não viaja quando passa as férias com seus pais?— Quando meu pai tem tempo, vamos para Califórnia, temos

uma casa em Carmel.— E com sua mãe?— Ela nunca tem tempo para viajar comigo.

Ricardo teve vontade de insistir no assunto, mas achoumelhor não fazê-lo. De qualquer maneira, as palavras de Jéssica jáhaviam revelado muita coisa. Resolveu mudar o tema da conversapara algo mais ameno.

— Que países você gostaria de conhecer? Tem algumacuriosidade especial para ir a algum lugar?

— Gostaria de conhecer o mundo inteirinho.— Mas isso demoraria muito tempo, nina — Ricardo

argumentou, sorrindo.Jéssica já não se irritou com aquele tratamento. Não via nada

demais, pois era assim que ele chamava a irmã. Com certeza, via-

as ainda como meninas.— Posso perguntar uma coisa, Ricardo? Quantos anos vocêtem?

— Ah, já estou ficando velho... Tenho vinte e nove.Jéssica pendeu a cabeça para o lado, observando-o com

atenção.— Pois eu pensei que fosse muito mais velho — confessou,

distraída.— Muito obrigado. Puxa, Jéssica, vou ficar vaidoso depois

desse elogio!— Desculpe, não quis ofendê-lo! — Começou a rir ao vê-lofranzir a testa brincando. — E você? Já viajou muito?

— Bastante. Por causa do trabalho, já viajei boa parte domundo.

— Que maravilha!— Pensou que eu ficasse o dia inteiro numa cadeira? Deixo

isso para os meus tios. Eles até gostam que eu saia pelo mundobuscando bons negócios... Está realmente interessada no que eufaço?

— Não — ela respondeu sem pensar.

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Ricardo desatou a,rir, e Jéssica fez o mesmo.— Você é sincera, considero isso uma qualidade.Ricardo a encarou com interesse. Mais alguns anos e Jéssica

se tornaria uma mulher muito interessante, e não só no aspectofísico. Era sensível, carinhosa, inteligente... Por enquanto, nãopassava de uma adolescente bonitinha, precisando terrivelmentede cuidado e compreensão.

Mas sabia que a situação dela só tenderia a piorar. Hal estavaquase tão confuso quanto a filha. No mundo dele, não havia lugarpara uma garota revoltada e assustada.

— Gostaria de conhecer melhor Madri amanhã com Mercedes?— Ricardo perguntou.

— Muito. Fiquei apaixonada pela cidade.— Então vou organizar um roteiro bem interessante para

vocês duas.Jéssica agradeceu e foi para o quarto, a fim de se aprontar

para o jantar. Encontrou Mercedes sentada numa poltrona,esperando-a com ar apreensivo.

— Espero que não se importe por eu estar esperando porvocê aqui... Você está bem?

— Claro que estou!Com um sorriso largo, Jéssica pediu que a outra falasse eminglês, para praticar.

— Ainda bem! Ricardo estava tão bravo com você...— O diálogo sempre é a melhor solução para qualquer

desentendimento... E seu irmão é uma pessoa bastante estranha...— E, mudando completamente de assunto, falou: — Puxa, vocêpodia ter me avisado que teriam visitas no jantar de hoje! Nãotenho nada para vestir, além de jeans e camiseta.

— Não trouxe nenhum vestido?! — Mercedes perguntou,incrédula.— Não. Nem uma túnica... Nada!— Tudo bem. Vamos até o meu quarto. Lá você pode escolher

o que quiser. Tenho uma porção de vestidos, um deles vai lhe cairbem.

— Só uma coisa: vou me vestir bem hoje porque estou comvontade, não porque alguém quer que eu faça isso, entendeu,Mercedes? — a outra retrucou com simplicidade.

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CAPÍTULO III

Na manhã seguinte, Mercedes e Jéssica acordaram cedo e

saíram para passear de carro. O motorista, muito sério, seguiadevagar pelas ruas de Madri. Quando chegaram na Calle deSerrano, uma das ruas mais elegantes da cidade, Mercedes pediupara que fossem deixadas em frente à galeria Preciados.

As duas entraram e saíram de várias lojas e, por mais quetentasse, Jéssica não conseguia se interessar por nada. Mercedessempre se espantava quando Jéssica rejeitava uma roupa que lhesugeria.

— Não adianta, Mercedes. Se não gostar da roupa, se não

sentir que vai fazer parte de mim, nunca conseguirei usá-la.Por fim, numa loja pequena, Jéssica se interessou bastantepelos artigos que vendiam e acabou comprando um vestido e umcasaco. A diferença de comportamento e opiniões existente entreas duas ficava mais evidente a cada minuto que passava.

Ao caminharem para a saída da galeria, Jéssica pediu:— Dispense o motorista.— Dispensar o motorista? E como visitaremos a cidade?— A pé!— A pé?! E você acha saudável ficarmos perambulando por aí a pé?Jéssica encarou Mercedes, contrariada. Andar era excelente

para a saúde, e não estava disposta a ficar trancada dentro de umcarro o resto do dia. Mesmo assim resolveu ceder um pouco:

— Bem, se você não gosta de andar a pé, podemos usar ometro.

— Metrô?!— Por que não? Eu trouxe um mapa da cidade, poderíamos...— Está brincando? Sabe o que o meu pai acharia disso se

estivesse vivo? E minha avó? Teriam um colapso nervoso só de

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pensar numa coisa dessas!— Por quê? Só por causa...Jéssica interrompeu-se de repente. A expressão no rosto de

Mercedes era mais eloquente que qualquer explicação. Ela nãoandava de metrô como as pessoas comuns. Por um momento,sentiu-se como diante de um passarinho na gaiola. E temeusubmeter Mercedes a qualquer coisa fora da rotina a que estavaacostumada.

— Talvez tenha razão. — Jéssica suspirou, resignada. — Achomelhor irmos de carro, mesmo.

Naquele dia, mais ou menos uma hora depois de chegaremem casa, a empregada bateu na porta do quarto de Jéssica. Traziaum recado de Ricardo, que estava no escritório e desejava falarcom ela.

Sobressaltada, Jéssica desceu logo em seguida. Enquanto iaao encontro dele, pensava, aflita, se fizera alguma coisa errada.Encontrou Ricardo sentado à escrivaninha.

— Boa noite, fiz algo errado? — Jéssica perguntou assim quefechou a porta.

— Que eu saiba, nada — respondeu, com um sorriso amigo.

Jéssica sentou-se diante dele, aliviada.— Mercedes já lhe contou sobre o nosso dia?— Não, queria saber isso de você.— De manhã, fomos fazer compras, aliás discordamos sobre

quase tudo o que experimentei. Paramos um pouco quando nosdeu fome e discutimos meia hora se deveríamos almoçar ou tomarum lanche. Ah... antes disso, eu queria dispensar o motorista econhecer a cidade a pé ou de metrô. Mas Mercedes achou que euestava louca só de pensar nisso. Disse que sua avó teria umcolapso nervoso. Se importaria de me dizer por que sua irmã nãopode andar de transporte público? Não consigo entender o modocomo ela vive. Para ser franca, não consigo entender vocêtambém...

— Pois eu entendo você muito bem, nina — Ricardo afirmou,depois de observá-la com atenção. — Você e minha irmã são muitodiferentes em tudo. Não admira que discordem em tantas coisas.

— Acho Mercedes muito esnobe... Por favor, não me leve amal, gosto de sua irmã... Mas às vezes fica até engraçado tantadiferença...

— Que bom que você pensa assim! — Ricardo reprimiu um

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sorriso e assumiu um ar de seriedade. — Minha irmã cresceu sobos cuidados da família. Sempre foi protegida pelos meus pais,quando eram vivos, pelos irmãos, tios, tias, primos... É umcostume da minha família, embora pareça tolice para muita gente.De fato, minha avó teria um calapso se soubesse que vocês duassaíram pela cidade sozinhas. Na verdade, duas meninas ingénuas ebonitas ficam muito vulneráveis. Não se esqueça de que Madri éuma cidade grande, de regiões perigosas para quem não asconhece... Em especial para alguém rico e com um nome famosoem todo o país.

— Quer dizer que ela poderia ser sequestrada ou algumacoisa desse tipo?!

— Poderia sim.— Que preço horrível para se pagar por ser rica! Nada disso

me ocorreu na hora, acho que é porque não corro esse perigo.Afinal, meu pai não é tão rico quanto você.

— Não entendi quando você falou em preço horrível.— E você não acha horrível viver sem liberdade nenhuma?!— Mas Mercedes tem toda a liberdade que deseja.— Não concordo! Ela não pode nem...

— Mas eu disse que ela deseja. Já comentamos o quanto vocêe ela são diferentes... Agora me diga, o que viram hoje?Jéssica não insistiu no assunto. Ricardo estava certo.

Mercedes parecia muito satisfeita com seu modo de viver. Parecianão sentir necessidade de experiências novas, se satisfazia comuma rotina que, para Jéssica, seria insuportável.

Contudo, apesar de não admirar o tipo de vida que a garotalevava, a invejava por algumas coisas. Pelo menos, Mercedes tinhauma família carinhosa e protetora, disposta a lhe dar todo amor ecompreensão.— Ah, nós fomos ao Palácio Real, à Plaza de Espanha,visitamos o museu de cera... Bem, mas você deve saber; não foivocê quem organizou o roteiro? E só colocou nele visitas paraturistas.

Ricardo observou-a por um instante, inclinando-se sobre aescrivaninha e apoiando a mão no queixo.

— E essas visitas para turistas, como você diz, não asatisfizeram? Não gostou do passeio?

— Não é bem isso... Queria ver como as pessoas vivemrealmente nessa cidade, o que fazem, os lugares que

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pálido e sardento, os cabelos castanhos e encaracolados. E sorriu,contente por não ver nos enormes olhos verdes a menor sombrade medo.

— Que bom que você gostou, nina Fazia muito tempo que eunão me divertia tanto.

Jéssica encarou-o para saber se ele dizia a verdade. Havia umbrilho diferente nos olhos de Ricardo. Ela nunca o vira antes e nãoidentificava o significado daquela luz. Talvez por isso o achasse tãofascinante. Sem pensar no que fazia, passou os braços em tornodo pescoço dele e deu-lhe um beijo no rosto. Surpreso, Ricardolevantou as sobrancelhas e desvencilhou-se dela, embora numgesto muito gentil.

Não escapou a Jéssica uma súbita mudança na expressãodele. Meio sem graça, disse que precisava se aprontar para o

jantar. Desceu do carro e entrou depressa na mansão, muitíssimoarrependida por aborrecê-lo com aquele gesto impulsivo e infantil.

Ricardo a viu entrar em casa e seguiu para seuquarto,pensativo. Depois de se despir foi fazer a barba e, sorrindopara a própria imagem diante do espelho, lembrou-se dasinúmeras perguntas que Jéssica lhe fizera durante o dia. Era

fascinante sentir o entusiasmo dela pelo novo, pelo desconhecido.Ouvia com avidez as explicações que lhe dava, expressando compaixão as próprias opiniões. Pena que não fosse um pouco maisvelha, senão poderia levá-la para conhecer a vida noturna deMadri.

Mercedes voltou do casamento por volta das oito da noite efoi direto procurar Jéssica no quarto. Parecia ansiosa por contar aalguém tudo o que vira na festa.

Jéssica, mesmo não estando interessada na descriçãodetalhada do vestido da noiva, ouviu a amiga com atenção. Porém,depois de dez minutos escutando sobre um assunto que não lhedespertava o menor interesse, resolveu ser sincera:

— Para ser franca, não consigo me interessar por essascoisas. Casamento sempre me deprime.

Mercedes suspirou, exasperada. Não estava zangada com afranqueza de Jéssica. Achava até bom terem liberdade uma com aoutra. Afinal, iam estudar na mesma escola e se ver todos os dias.

— Jéssica, você é um caso perdido! — exclamou, sacudindo acabeça.

— Tudo bem, mas me fale de alguma coisa interessante, o

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que havia para comer na festa, por exemplo.Não dando importância ao pedido, Mercedes falou:— Tire esse vestido! Não fica bem em você, bem que eu disse

para não comprá-lo. Essas listras verticais a deixam mais magra doque já é, não percebe?

Jéssica olhou-se no espelho. Achou-se muito bem vestida como traje preto e branco e não viu por que mudar de roupa.

— Não tem importância — disse com ar cínico. — Estoupretendendo comer um boi no jantar. Será que engordo?

— Tire já isso, está horrível! Vou procurar um vestido maisadequado para você no meu guarda-roupa.

Após um repentino ataque de riso, Jéssica olhou paraMercedes com certo respeito.

— Sabe, acho que tem razão. Só que você está mandonademais hoje.

— É a única maneira que encontrei para lidar com você,sabia? É muito teimosa. Não tem o mínimo bom gosto para sevestir, é magra demais, pálida demais, teimosa demais e... e...

Rindo, Jéssica pediu:— Agora fale tudo isso em inglês, e bem rápido!

Mercedes voltou a repetir o que dissera em espanhol numinglês titubeante.— Um dia você chega lá! — Jéssica brincou. — Sabe que eu

gosto de você?De fato, começava a gostar de Mercedes tanto quanto

gostava de Ricardo. Sempre desejara ter irmãos e, agora, já sabiacomo queria que eles fossem.

A afeição que, sem perceber, desenvolvera pela famíliaColchero era tão grande que o convite feito a ela na manhãseguinte pareceu-lhe uma deliciosa tentação. Estava sozinha comMercedes perto do chafariz do jardim quando a garota a convidoupara ficar na Espanha por mais algum tempo.

Jéssica se espantou com o convite. E Mercedes insistiu:— Fique, Jéssica. Nossa família tem uma casa em

Guadalajara, onde passamos férias. Na verdade, temos outraspropriedades, mas prefiro essa. Pertence a Ricardo e fica nasmontanhas, perto de um lago. Vamos sair daqui na quinta-feira epassar os feriados da Páscoa lá. Aceite, Jéssica. Vai ser muitodivertido.

Jéssica logo se animou com a idéia. Na certa, o pai não se

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importaria. Não sentiria falta da companhia dela na viagem queplanejara para os feriados. Talvez até aproveitasse e voltasse parao escritório em Nova York, o local onde se sentia melhor.

— Seria ótimo! Quem mais vai para Guadalajara?— Meu tio, minha tia, aqueles que vieram jantar outro dia, e

os filhos deles. Tio Augusto, que você ainda não conhece, eu,vovó, Ricardo e a namorada dele, Joelle. Você vai gostar dela, éfrancesa, mas mora aqui em Madri... Mas por que essa cara deespanto?

— A casa deve ser enorme!— E é, mas também somos uma família bem grande.— E sua avó vai mesmo?— Vai, sim.— É que ela quase não sai do quarto...— Mas vovó adora ir para Guadalajara. E gostou muito de

você também.— Que ótimo! Pode me dar um tempo para decidir, Mercedes?

Não sabe o quanto fiquei contente com o convite, adoraria ir,mas... — Pensou no pai e na conversa inacabada sobre o colégiona Suíça. — Dou a resposta na hora do almoço, está bem? Só mais

uma coisa: você falou com Ricardo sobre isso? Ele não fariaobjeção?— Claro que não, já falei com ele. Ricardo achou a idéia

excelente.De fato, tudo parecia perfeito. Mas Hal não concordou com o

pedido de Jéssica. Numa conversa particular que tiveram, disseque queria passar algum tempo sozinho com ela. Conversariambastante e, quem sabe, se entenderiam melhor depois disso.

Apesar de animada com a idéia da viagem, Jéssica nãoinsistiu. Era um grande prazer saber que o pai desejava acompanhia dela e se interessava em entendê-la melhor. Dessaforma, Jéssica estava até feliz quando chegou o momento departirem de volta para Nova York.

CAPITULO IV

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Os feriados da Páscoa na Califórnia com o pai foram bastanteinteressantes para Jéssica. Os dois conviveram intensamente,chegando a um entendimento razoável.

De lá mesmo Hal Prescott telefonara para o colégio naInglaterra e, depois de uma longa conversa com a diretora daescola, a volta da filha ficou acertada.

Quando partiu para a Inglaterra, Jéssica sentia-se maistranquila e até havia tomado a decisão de ir estudar na Suíça.

Mais de um ano e meio havia se passado desde então. Agora,Jéssica e Mercedes eram companheiras de quarto na escola deLucerna, na Suíça.

— Esse sutiã me deixa agoniada, está apertado demais! —Jéssica disse, olhando-se no espelho.

Mercedes não fez nenhum comentário. Baixou os olhos para a

carta que havia recebido de Ricardo.— Que acha se eu usar esse suéter sem sutiã, Mercê? Querfazer o favor de olhar para mini?

— Não me chame assim — a outra protestou, continuando aolhar para a carta. — Quantas vezes tenho de pedir a mesmacoisa?

Insatisfeita, Jéssica voltou a se olhar no espelho. Desde quechegara na Suíça sofrera uma grande transformação em seu corpo.Estava mais robusta, mais mulher... Mas, em vez de ficar contente,achava que tinha engordado e temia a obesidade.Voltou-se para a amiga, a testa franzida demonstrandodesagrado.

— Acha que estou bem assim? Não estou gorda demais?Mercedes por fim a encarou, mas com um ar de inequívoco

desapontamento.— Meu irmão terminou com Joelle — anunciou, guardando a

carta no criado-mudo. — Eles já namoravam há dois anos! AgoraJoelle voltou para a França e isso significa o fim do relacionamentodeles. Ricardo diz que a amizade não acabou, mas...

Jéssica olhou para a amiga sem entender por que a notícia a

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abalara tanto.— E o que é que tem isso?— Esse tipo de comentário quer dizer que o namoro acabou

de verdade.— E daí?— Eu queria que eles se casassem!— Ah, Mercê! Lá vem você de novo! Casamento não é tudo na

vida. Há milhões de coisas interessantes no mundo para seexperimentar e aprender...

Por isso mesmo, detestava aquela prisão, Jéssica completouem pensamento. O mundo a esperava do outro lado dos portõesdo colégio, cheio de surpresas e revelações. Contava os dias para oNatal, quando iria para a casa dos Colchero em Madri. Pelo menosseria uma oportunidade de se ver livre daquele inferno.

Perdida em pensamentos, Jéssica não se deu conta de queMercedes a olhava furiosa. Quando apercebeu-se do fato, começoua rir.

— Tudo bem... sei que rompi o nosso acordo de nãodiscutirmos sobre o que divergimos... Mas foi você quem falouprimeiro sobre casamento, lembra?

A convivência as ensinara a respeitar os pontos de vista umada outra. Mas de vez em quando se esqueciam do combinado e sepegavam discutindo acaloradas um assunto qualquer.

Mercedes pegou uma outra carta que deixara sobre a cama eJéssica riu da maneira carinhosa como a amiga o fazia. A carta erade Emílio e com certeza Mercedes não a abriria naquele momento.Sempre que recebia correspondência do homem que amava, ela setrancava no banheiro e ficava lá por um bom tempo. Fazia issomais para evitar provocações do que por uma questão deprivacidade.— Por que está tão preocupada com Ricardo? — Jéssicaperguntou com meiguice.

— Quando me casar, vou morar com a família de Emílio emValência.

— Você já me contou, mas o que isso tem a ver com Ricardo?— Ele vai ficar sozinho em Madri.— E o que tem isso?— Quem vai dirigir a casa para ele quando eu não estiver lá?— E quem a dirige agora que você não está lá?— Minha avó e a governanta.

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— Então!— E depois, Ricardo vai fazer trinta e um anos agora em

dezembro.— E o que tem isso?— Já está na hora de meu irmão se casar, de formar uma

família.As duas se entreolharam e caíram na gargalhada.— Você tem razão, Jéssica... Sei exatamente no que está

pensando: não paro de pensar em casamento!— Viu só?— Mesmo assim fico preocupada.— Sabe, Mercedes, concordo que Ricardo não seja mais

criança, mas pode ser que ele não queira casar e ter filhos.— Imagine! Ricardo adora crianças.— As crianças dos outros. Quem garante que ele gostaria de

ter filhos?— Ora, Jéssica. Um homem precisa de uma esposa que cuide

dele para que possa seguir o caminho que escolheu na vida e...— E a mulher, Mercedes? Será que não precisa da mesma

coisa?

— Ricardo tem uma vida social muito agitada — Mercedesinsistiu sem ouvir a pergunta de Jéssica. — Precisa de uma esposa,por causa dos negócios e da posição social dele. Fico preocupada,pois com tanta gente para receber.

Jéssica não estava conseguindo continuar com aqueleassunto. Inspirando profundamente, disse:

— Pare de se preocupar! Quantos empregados trabalhamnaquele casarão de Madri?

— Cinco, incluindo o cozinheiro. Se contarmos o chofer, seis.— Vamos contar o chofer. Afinal de contas, ele também ajudaa cuidar de um homem de trinta anos que pode muito bem tomar

conta de si mesmo. Ou ainda não notou? Ricardo enfrentaqualquer situação com facilidade.

— Sei disso, mas mesmo assim ele precisa de uma...— Pelo amor de Deus. Mercedes! A governanta de vocês não

é competente?— Muito. Está conosco há muitos anos.— Então! Se Ricardo tem uma governanta competente, para

que precisa de uma esposa? Nem todas as esposas cuidam bem deuma casa, sabia? Na certa Ricardo sabe disso. Talvez seja essa a

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causa de ele não estar morrendo de tristeza por ter se separado deJoelle.

— Como sabe disso?— Não sei, estou só supondo. E Joelle voltou para a França,

não para a lua. Nada o impede de procurá-la, caso achenecessário.

— De novo você tem razão. — Mercedes suspirou. — Ricardodeve ter feito o que é melhor para ele...

Mercedes lançou um olhar de gratidão para Jéssica e pensou:"Quando não é agressiva demais, até que ela pensa com bastanteclareza..."

— Agora, Mercedes, que tal sair dessa cama logo? Merecemospassear um pouco. Já não aguento mais ficar trancada aqui!Vamos!

Era sábado, o único dia da semana que as internas do colégiotinham permissão para sair. Vendo a inquietação de Jéssica,Mercedes sentiu pena do homem que se apaixonasse por ela.Quando Jéssica conseguiria se tornar uma moça mais tranquila? “Amaior dificuldade do homem que se apaixonar por Jéssica serávencer essa insatisfação, esse descontentamento eterno que nunca

a abandona."Mercedes começou a se vestir, achando graça de Jéssica, quetrocava de roupa pela terceira vez naquela manhã. Sentia-selisonjeada quando a amiga lhe pedia opinião sobre a maneira de sevestir. Para alívio de Mercedes, isso acontecia cada vez com menosfrequência. "Em breve, quando ela desenvolver por completo umestilo pessoal para se arrumar, será uma moça muito charmosa eelegante. Só precisa confiar um pouco mais na própria beleza.Apesar do gênio forte e estourado, Jéssica é uma excelentegarota..."E Mercedes, com relação ao estilo que Jéssica ia aos poucosdesenvolvendo, estava absolutamente certa. Estava certa tambémem considerá-la bonita. Pena Jéssica acreditar que tratava-seapenas de gordura as formas sinuosas que a idade ia lheproporcionando.

Se olhasse no espelho com mais atenção, Jéssica perceberia oquanto seus enormes olhos verdes haviam adquirido vida depoisque se mudara para a Suíça. As faces estavam mais coradas e oscabelos, naturalmente cacheados e brilhantes, chegavam a fazercerta inveja a Mercedes. Possuía também uma inteligência aguda e

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bastante desenvolvida. E, contrariando as expectativas gerais,Jéssica era quase uma aluna modelo. Quase, pois às vezes tinhauma recaída e assobiava enquanto cozinhava. Ou andava com ascostas arqueadas olhando para o chão, para desespero de madameVilier, a diretora da escola. Entretanto, falava francês comespantosa facilidade e isso a redimia um pouco de taiscomportamentos tidos como impróprios no estabelecimento.

Na primeira semana de internato, mesmo tendo prometido aopai e à mãe que seria uma aluna exemplar, Jéssica mais pareciaum animal enjaulado. Até Mercedes, conformista como era, tinhaachado os regulamentos muito rigorosos e sentira falta do carinhoe da compreensão da família. Entretanto, jamais revelara isso aJéssica, com medo de dar à amiga razões para se revoltar aindamais.

Depois de indignar-se com tantas regras de disciplina queteria de seguir, Jéssica resolvera aproveitar ao máximo a estada naescola, alimentada pela expectativa do dia que sairia de lá.

Ao contrário da maioria das garotas do colégio, Jéssica não semostrava interessada em namorar. Nem com Klaus Schultz, umrapaz alemão, filho do dono de um supermercado em Lucerna,

com quem iriam almoçar naquele dia. Jéssica conhecera Klaus numsábado, quando procurava um professor de alemão. O rapazparecia interessado nela de verdade, contudo Jéssica ignorava porcompleto todas as tentativas de aproximação que ele fazia.Sempre insistia para Mercedes acompanhá-la aos encontros paranão dar a Klaus nenhuma esperança de romance.

— Não entendo muito bem uma coisa — Mercedes comentou,como se pensasse em voz alta. — Madame Vilier vive impondoregras para nos proteger. No entanto, podemos sair aos sábadossem acompanhante.— Mas não se iluda, madame Vilier não confia nem um poucoem nós. Acontece que, para nossa sorte, deve acreditar que asmulheres só engravidam durante a noite. Portanto, para ela,continuaremos virgens para sempre se só sairmos à luz do dia.

Mercedes riu muito diante da ousadia daquelas afirmações.— Já pensou a reação de nossa conselheira de classe se

ouvisse você falar desse jeito? Jéssica, não carregue muito nessebatom, é vermelho demais para o tom da sua pele!

— A irmã Mary teria um enfarto. — Jéssica removeu todo obatom que passara nos lábios. — Gosto dela, sabe? Ao menos não

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é hipócrita, é ingênua mesmo... Como fica esse vestido sem sutiã?— Ótimo, caiu muito bem em você.— E a parte de cima? — Jéssica insistiu, examinando os

próprios seios. — Meus seios não estão gordos demais?— Mas quem enfiou na sua cabeça que é gorda?! Você está

com o corpo super bonito! E, depois, não se fala que seios sãogordos.

— Não?— Não, senhora. Quando nos referimos aos seios, dizemos

volumosos.— E os meus não estão volumosos demais?— Estão perfeitos, ficam até mais bonitos sem sutiã. Tenho

certeza de que Klaus vai gostar.Mercedes logo se arrependeu de ter dito a última frase.

Demoraram mais alguns minutos para sair, pois Jéssica resolverausar sutiã. Segundo ela, não estava disposta a se exibir paraninguém.

As duas caminharam de braços dados pelas ruas, distraídasem amassar a neve acumulada nas calçadas durante a noite.

— Não vejo a hora que chegue o Natal... — Mercedes falou.

— E eu não vejo a hora de sair desse colégio para sempre!— Você não pensa em outra coisa, não?— E você acha alguma coisa mais importante que a

liberdade?

CAPÍTULO V

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Finalmente chegou a época das festas natalinas. Felizes,Jéssica e Mercedes viajaram para a Espanha.

A chegada das duas foi uma festa, até Vicente viera maiscedo de Oxford para receber a irmã caçula. Trouxera consigo umamoça inglesa que conhecera na universidade e Jéssica simpatizoucom ela logo ao ser apresentada. Emílio, como sempre, estavaapaixonadíssimo por Mercedes e Jéssica se via obrigada a admitirque os dois faziam um belíssimo par.

Jéssica nunca se sentira tão bem quanto naquele momento,em Madri. A cidade se tornara especial para ela. Era o lugar ondehavia aquela casa tão bonita... e Ricardo.

Era bom olhar nos olhos dele, dizer o que sentia sem censura.Ricardo conversava com ela de uma maneira toda especial. Sabiaouvir sem recriminá-la, e Jéssica, mesmo nas outras vezes que jáestivera em Madri, nunca lhe dissera algo por obrigação e nuncaprecisara dissimular os próprios sentimentos.

— Sei que já disse isso para você antes, mas detesto cadaminuto que passo lá — Jéssica confessou, em desabafo. — Odeioser obrigada a fazer as coisas, detesto receber ordens semsentido. Além de tudo, lá só ensinam inutilidades.

Todos dormiam na mansão. Era a primeira oportunidade quetinham de ter uma conversa longa e sem testemunhas desde achegada de Jéssica. No dia seguinte, chegariam os outrosmembros da família, pois já seria véspera de Natal.

— Engraçado você continuar detestando tanto o colégio.Pensei que com o tempoacabaria por se adaptar. Como consegueser tão boa aluna, Jéssica?

— Faço de tudo para me manter ocupada. É o mínimo queposso fazer por mim mesma, não acha?

Ricardo observou-a com interesse.— É uma maneira muito lúcida de enfrentar o problema —

comentou. — Acho que você amadureceu bastante.Era verdade, mas só em alguns aspectos. Jéssica conservava

ainda o jeito espontâneo e simples de adolescente e a insegurança

também continuava idêntica. Mercedes estava certa: Jéssica nãoconfiava nem um pouco em si mesma. Mas talvez ele pudesseajudá-la nesse sentido.

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— Não sei se isso é lucidez — Jéssica objetou, depois derefletir um pouco. — Talvez seja apenas desespero.

— Mercedes também mudou. Acho que a convivência devocês duas está fazendo bem a ela. Está mais extrovertida, menostímida.

— Nos damos muito bem, bem mais do que eu esperava.Talvez isso tenha acontecido por sermos tão diferentes — Jéssicadisse, feliz pela primeira vez, consideravam-na uma influência boapara alguém.

Pensando nisso, fitou a lenha queimando na lareira diantedeles. Ali na mansão dos Colchero sentia-se em casa e agradecia aRicardo por isso. Entretanto, lembranças desagradáveis invadiam-lhe a mente. O Natal se aproximava, o fim do ano e mais uma veznão os passaria com os pais. Gostaria de falar sobre esse assuntocom Ricardo, mas temia ser indelicada, ingrata, talvez. Tentandodemonstrar indiferença, perguntou:

— Tem notícias de meu pai? Esteve com ele nesses últimosmeses?

— Infelizmente, não. Os negócios o mantém mais em contatocom meu tio do que comigo.

— E sua empresa, como vai?— Muito bem, Jéssica.— Como consegue dar conta da empresa, do banco e ainda

ter tempo para sua família? Meu pai mal tem tempo para...— Para quê?— Para nada que não seja trabalhar. E minha mãe..— Continue... — Ricardo pediu.— Não é nada — retrucou, dando de ombros achando melhor

esquecer o assunto. — Mas me explique uma coisa: as casas quevocê constrói são aquelas pré-fabricadas?— Não. Minha empresa se dedica à construção de todos ostipos de casa.

— Mas casas de veraneio, não é?— Exatamente.— E tem muita gente que se interessa por casa de veraneio

em Madri?— Não construo em Madri, nina, a maior parte das casas que

fizemos está em Andalusia. Só podia ser na costa sul, onde há solquase o ano todo.

— Aposto que em Marsellha também.

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Ricardo sorriu ao vê-la bocejar.— Você vai pegar no sono se continuarmos falando sobre os

meus negócios — ele assegurou. — Conte mais de você. Já definiuque carreira prentende seguir?

— Ainda não. Talvez eu monte um negócio como autônoma.Mas, para ser franca, ainda não pensei muito sobre isso.

Jéssica bocejou outra vez, e Ricardo percebeu que continuarcom aquela conversa ficaria cada vez mais difícil.

— Você tem muito tempo para pensar nesse assunto —afirmou, compreensivo. — Por enquanto, acho melhor irmos deitar.Amanhã, teremos um dia cheio.

A previsão de Ricardo estava certa. Logo pela manhã, Jéssicafoi comprar alguns presentes. Não teve a companhia de Mercedes,pois a amiga fizera todas as suas compras com muita antecedênciana Suíça, aproveitando os passeios dos sábados.

Nas primeiras horas da tarde, a mansão já começou a seencher de vozes e risos. Para Jéssica foi um prazer poder organizaros detalhes de última hora. Para surpresa dela própria, descobriuter um jeitinho todo especial para distrair crianças choronasenquanto as mães tratavam de outros assuntos. Ao vê-la assim

atarefada, dona Teodora sorriu em sinal de aprovação.— Você é uma boa menina, Jéssica — a velha senhoraafirmou, segurando-lhe a mão num gesto carinhoso. — Você já fazparte de minha família e isso me causa muito orgulho.

Surpresa com aquela demonstração de afeto, Jéssica encaroua anciã que só se vestia de preto. Dona Teodora era a própriaimagem da severidade. Apenas os olhos, muito semelhantes aosde Mercedes, transmitiam bondade e doçura, só se tornandorepreensivos quando não aprovava alguma coisa.

Jéssica sentia um carinho enorme por aquela mulher.Respeitava e admirava dona Teodora como, aliás todas as pessoasda família Colchero.

— Você não concorda comigo, Ricardo? — perguntou ao neto,que se encontrava bem próximo das duas.

Ricardo concordou com um gesto de cabeça quando a avórepetiu suas impressões sobre Jéssica.

— E ela não está elegante hoje? — a senhora continuou,como se Jéssica não estivesse presente. — Da minha parte, estáaprovada.

— Da minha também — Ricardo concordou, lançando a

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Jéssica um olhar demorado. — Só que eu não usaria a palavraelegante. Atraente me parece o termo mais apropriado.

Desconcertada com tantos elogios, Jéssica sentiu um alívioenorme quando Ricardo desviou o olhar do rosto dela. Ainda bemque ninguém mais ouvira aquela conversa, senão morreria devergonha!

Na manhã seguinte, Jéssica, como sempre, acordou cedo.Tomara um banho de imersão e estava em frente ao espelho dobanheiro penteando os cabelos quando alguém bateu à porta.

— Senorita, sua mãe está ao telefone — uma das empregadasanunciou em espanhol.

Jéssica sentiu um choque, mas logo recuperou a presença deespírito. Correu para perto da banheira e mexeu bastante na água.

— Estou no banho, não posso atender. Diga a ela que eu lhedesejo um feliz Natal.

Jéssica não pretendia ser hipócrita. Já lhe bastava otelefonema do pai na noite anterior, que a deixara bastantedeprimida. Não tinha vontade nenhuma de falar com a mãe e não

se forçaria a isso apenas por ser Natal. Além de tudo, aqueletelefonema era só o cumprimento de uma obrigação social paraMauren Prescott.

Logo depois do café, Ricardo a chamou ao escritório. Comdelicadeza recriminou-a por não falar com a mãe ao telefone.

— É uma época muito especial, Jéssica — ele argumentou. —Acho que seria uma gentileza de sua parte ligar para sua mãe edesejar-lhe um feliz Natal. Talvez já esteja na hora de vocêdemonstrar o amor que tem por ela.

Jéssica o encarou com ar indignado.— Não sei fingir tão bem assim! Amo minha mãe tanto quantoela me ama!

— Não diga isso, Jéssica. Como pode pensar...— Que ela não me ama? Disso eu tenho certeza absoluta!Virou as costas e se retirou sem dar a Ricardo chance de

contradizê-la. Apesar de dizer para si mesma que o incidente nãotivera a mínima importância, Jéssica passou o resto do diabastante deprimida. Como sempre, a estadia na casa dos Colcherofoi deliciosa.

Na última semana do ano, a agenda social de Jéssica

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mulher, por isso a convidara.— Não sei o que ela vai pensar, nem me importo. Além disso,

a festa será na casa de uma pessoa importante para o banco. Nãocomparecer seria uma grande desfeita.

Jéssica aceitou o convite, sorridente. Antes de ir embora,Ricardo avisou-a de que sairiam às dez da noite.

Ao contrário do que havia pretendido, ela não conseguiudormir. Várias vezes durante a tarde quase foi procurar Ricardopara lhe dizer que não iria à festa. Por fim resolveu que o melhorque tinha a fazer seria acompanhá-lo.

Horas depois, Jéssica, no quarto de Mercedes, experimentavao vestido que a amiga lhe emprestara. Embora tivesse acatado aopinião da outra sem discutir, não se sentia à vontade dentro daroupa. O traje era um pouco justo e, na opinião dela, deixava-lhe otraseiro volumoso demais. A parte de cima também não lheagradava, pois expunha-lhe os ombros e os braços, deixando àmostra o que considerava seu ponto fraco: o tom pálido da pele.Para piorar a situação, Jéssica acreditava que a cor azul-royalacentuava-lhe ainda mais a palidez. Mas gostara das sandáliasdelicadas que Mercedes lhe emprestara. Para seu alívio, eram

dotadas de um tamanho de saltos bastante confortável.— Bem, Mercedes, vou confiar no seu bom gosto. Usarei estevestido — afirmou com resignação, tirando a roupa queexperimentara. — Agora, vou tomar um banho. Mas, depois de memaquilar, quero que dê uma olhada em mim e diga se está tudobem.

— Jéssica, eu e Emílio vamos sair daqui a cinco minutos. Sãoquase oito horas!

— E eu? O que vou fazer? — perguntou, colocando o jeans e acamiseta.—Ora, você não precisa de minha inspeção. Sabe muito bemse arrumar e vai se portar como uma lady, tenho certeza !

— Ainda bem que você tem essa certeza, porque eu nãoestou tão segura assim!

— Não se preocupe tanto. Relaxe e divirta-se. Afinal decontas, irá a uma festa e não a um velório.

Jéssica parou na porta do quarto e olhou para a amiga comum ar desanimado. O difícil seria relaxar até a hora de sair.

Ao ver no relógio de cabeceira que eram dez horas, Jéssicanão teve coragem de descer. Achava-se horrível!

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Por saber que não se sentiria à vontade maquilada, resolveraaplicar apenas um pouco de rímel nos cílios e um brilho labial, masnão sabia se estava bem. Mas o maior problema eram os cabelos!Jéssica arrependeu-se por não ter aceitado o conselho deMercedes. De fato, devia ter colocado bobes grandes para alisá-losum pouco. Nesses momentos, invejava os cabelos longos elevemente ondulados da amiga. Os dela não eram nem curtos nemcompridos, nem castanhos nem loiros! Estava na altura dosombros e, volumosos demais, lhe davam a aparência de um leão!Desgostosa, acabava de escová-los quando Ricardo bateu à portado quarto. Jéssica ergueu-se apressada e alisou o vestido,olhando-se no espelho uma última vez. Prestaria bastante atençãoà expressão dele quando lhe abrisse a porta. Se percebesse amenor sombra de desaprovação, desistiria da festa. Melhor ficarem casa do que passar por um vexame.

Contudo, ao abrir a porta, esqueceu-se por completo daprópria aparência. Ricardo estava elegantíssimo numa calça pretae num impecável paletó branco, cuja cor ressaltava-lhe o tommoreno da pele.

Admirada, Jéssica olhou-o como se o visse pela primeira vez.

Redescobriu-lhe a beleza máscula do rosto, do porte, o charme dosolhos ciganos...Ricardo sorriu de leve, mas logo alargou o sorriso ao vê-la

ficar vermelha.— Você está linda, Jéssica!Embaraçada, afastou-se com o pretexto de buscar a bolsa

para sair. Ricardo a observava, enquanto ela se movimentava peloquarto, agitada.

Reparou nas formas do corpo dela quando colocou-lhe aestola sobre os ombros, esforçando-se para que Jéssica nãopercebesse o quanto sentia-se perturbado. O vestido acentuava-lhe a beleza do corpo sem, contudo, revelá-lo. Além disso, a corfora muito bem escolhida. Mesmo assim, ela não demonstravasegurança. Ainda se comportava como um patinho feio.

— Não acredita em mim? — Ricardo perguntou, distraído emobservá-la, enquanto Jéssica já o esperava com a bolsa na mão. —Desde quando eu minto para você?

Contente, mas nada convencida, Jéssica segurou o braço queele lhe oferecia.

— E meus cabelos? Como estão?

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Depois de sentarem-se lado a lado no local indicado pelo anfitrião,Jéssica comentou baixinho:

— Estou morrendo de fome... Espero que não seja muitodeselegante comer de verdade num lugar desses...

— Nina, no mínimo você é uma companhia muito divertida!— Não me chame assim, por favor! Já me basta todo o

mundo estranhar eu ter vindo aqui com você. Já estou cansada deexplicar que sou amiga da sua irmã...

— Pelo menos uma pessoa neste salão deve estar muito gratapor eu ter feito isso... O pobre Miguel Buendia faz os maioresmalabarismos para sempre ficar perto de você. E não venha medizer que não notou.

Jéssica olhou na direção do homem que estava sentado umpouco afastado deles.

— Você está brincando! — exclamou, quase indignada. —Ricardo, ele deve ter uns quarenta anos...

Por um instante, ele fitou-a sério, mas logo voltou a sorrir.— Miguel é apenas três anos mais velho que eu... Mas me

diga uma coisa, o que achou de nosso anfitrião?— Um homem muito simpático. Agora, a mulher dele é muito

linda... Por falar nisso, você já a viu?— Quem? A esposa do nosso anfitrião?— Claro que não. Estou falando da mulher que você está

morrendo de medo.Ricardo encarou-a por um momento, as sobrancelhas

erguidas.— Quantas taças de champanhe já tomou? — quis saber.— Duas.— Pois essa é a terceira e será a última!Jéssica arrependeu-se de ter feito aquele comentário.— Eu estava só brincando, Ricardo — explicou, em tom de

desculpas.— Nunca devemos tirar conclusões sobre assuntos que não

conhecemos direito.Jéssica baixou a cabeça com tristeza. Havia irritado Ricardo

com o que falara sobre Miguel Buendia. Agora aquela brincadeiraidiota havia piorado a situação...

Entretanto, Ricardo sentiu uma ponta de remorso aoperceber-lhe o desapontamento. A ceia foi servida e Jéssica nãomais conseguiu conversar com Ricardo. Depois da sobremesa,

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percebendo que ela continuava muito deprimida, Ricardo pousou-lhe a mão no ombro, num gesto carinhoso:

— Não a ensinaram a dançar naquela escola? — perguntou,esboçando um sorriso.

Jéssica ergueu para ele os enormes olhos verdes, e sorriutambém, feliz por ele não estar mais zangado com ela.

— Nem foi preciso — retrucou com ar maroto. — Certascoisas a gente aprende sozinha.

Ricardo conduziu-a em silêncio para o outro salão, onde umgrupo de pessoas dançava. Estava intrigado com o própriocomportamento. Não gostara nada da maneira como MiguelBuendia olhara para Jéssica durante a ceia. Mesmo naquelemomento, Miguel não parava de olhá-la, e isso o irritava, muito.Tinha medo só em pensar nas outras coisas que ela aprenderiasozinha, além de dançar...

Contudo, logo deixou de lado o mau humor, impressionadocom a leveza de sua parceira. Sem perceber, puxou-a um poucomais para si enquanto acompanhavam o ritmo da música suave.Ricardo nunca imaginara que ela dançasse tão bem.

Quando começou a tocar outra música, Jéssica aconchegou-se

mais a Ricardo. Aquele contato, aparentemente inofensivo, bastoupara provocar nele uma torrente de reações inesperadas eindesejáveis. Num impulso, afastou-se um pouco.

— O que houve? — Jéssica quis saber, assustada. — Pisei noseu pé?

Apesar de ainda perturbado, Ricardo sorriu. Havia uma graçainfinita na inocência dos olhos verdes de Jéssica. Eram como o marrefletindo as primeiras luzes da manhã.

— Claro que não — respondeu com naturalidade. — Vocêdança muito bem.Entretanto, a partir daquele instante, tomou cuidado paramanter uma distância segura enquanto dançavam.

Jéssica mal continha a alegria enquanto voltavam para amansão. Fora emoção demais para apenas uma noite e ela sesentia como se redescobrisse o mundo. Não parava de comentarsobre as pessoas com quem conversara, as coisas que vira, numafelicidade febril.

Ricardo a ouvia com paciente atenção. Na verdade, pelo

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menos metade daquela euforia era por causa do champanhe.Afinal, Jéssica não estava acostumada a beber. Sabendo disso,logo que entraram em casa ele lhe sugeriu que tomasse um café.

A mansão estava mergulhada em silêncio. Todos dormiam,inclusive os empregados. Jéssica e Ricardo foram para a cozinha.Quando o café estava quase pronto, Ricardo foi verificar setrancara bem as portas.

Jéssica colocou duas xícaras com café numa bandeja e aslevou para a sala, onde encontrou Ricardo lendo um bilhete.

— Sua mãe telefonou de novo — informou, estendendo-lhe obilhete. — Queria lhe desejar um feliz ano-novo.

Jéssica ignorou o gesto, sentando-se ao lado dele no pequenodivã diante da lareira. Manteve os olhos baixos enquanto olhavapara a bandeja que colocara sobre uma mesinha.

Ricardo tomou-lhe uma das mãos, apertando-a num gestocarinhoso.

— O que houve, Jéssica? Porque está chorando?Ela não conseguiu responder. Estava com muita raiva, um

sentimento repentino, corrosivo, incontrolável.— Por que não se abre comigo? — Ricardo insistiu com

brandura. — Por que não quer falar com sua mãe? O que ela fez detão terrível?— Para falar a verdade, nada... pelo menos não de propósito.

É a maneira dela de lidar com os problemas que me incomoda... —Agitada, Jéssica levantou-se e começou a andar pela sala. — Ficomuito confusa quando o assunto é esse! Nem ela nem meu painunca se importaram comigo! Agora também não preciso maisdeles! Minha mãe diz que detesta casamento, mas ainda estácasada com meu pai... Você entende uma coisa dessas?!

— Você não está tão zangada só por isso, não é? Por que nãome conta tudo direitinho?Jéssica,foi, aos poucos, recuperando a calma. Contou a

Ricardo um pouco de sua infância, inclusive a separação dos pais.— Eu tinha sete anos, mas me lembro de tudo muito bem —

ela começou num tom soturno. — Minha mãe não suportava morarem Nova York, mas meu pai não podia mudar de lá. Todos osnegócios dele estão nos Estados Unidos, ele ia falir se abandonassetudo. Quando os dois se conheceram, minha mãe ia abrir um salãode beleza de alto luxo em Londres. Esperava ganhar muito dinheirocom isso, acho mesmo que ganharia, ela é uma grande esteticista.

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Tinha se empenhado muito para conseguir subir na vida. Meusavós eram pobres, não puderam ajudá-la financeiramente... Aliás,ela e meu pai têm isso em comum: os dois vieram de famíliashumildes. Talvez por esse motivo sejam tão gananciosos.

— Ambiciosos, eu diria... Mas por que não me contaexatamente por que está chateada com sua mãe?

Jéssica sentou-se de novo no sofá com um suspiro. Olhoupara Ricardo e a maneira compreensiva com que ele a fitavaserviu-lhe de consolo.

— Bem... eu... — ela titubeou com ar triste. — Sabe, eusempre quis acreditar que meus pais se preocupavam comigo,embora não demonstrassem... Da última vez que eu estive comminha mãe, disse a ela que, depois de terminar esse curso naSuíça, eu iria cuidar da minha própria vida. Ela não gostou ecomeçou a discutir comigo. E eu não conseguia entender por que,de repente, ela estava tão preocupada com o meu futuro... Perdi acabeça e lhe perguntei por que havia me posto no mundo. Disseque ela nunca levou muito a sério o fato.de ser mãe... Foi entãoque ela disse...

Embora aflito, Ricardo não fez nenhum comentário. Não

queria forçá-la, pois temia que Jéssica se intimidasse. Notouquando ela baixou a cabeça, como se estivesse envergonhada.— Aí ela disse: "Tomara Deus que você nunca tivesse nascido!

Fui obrigada a me casar, nunca quis isso! Também nunca penseiem ter filhos, seu nascimento não esta va nos meus planos"!

Durante alguns minutos, um silêncio pesado tomou conta doambiente. Ricardo não se iludiu com a maneira fria com queJéssica concluíra o relato. Ela sofria muito por causa da rejeição aque fora submetida durante toda a vida.

— Entendo perfeitamente como se sente, nina — elecomentou por fim. — Também sofreria muito se tivesse ouvidoessas palavras da boca da minha mãe. Mas chegou a hora deencarar a situação sob um outro ângulo: ela, como milhares deoutras mulheres, engravidou sem querer... E deve ter sidoterrível... Mas hoje o importante é você... que apesar de tudo setransformou numa mulher maravilhosa... Acredito que sua mãe teame e...

— Por favor, pare com isso! — Jéssica gritou, exasperada. —Ela não se importa comigo, nunca teve tempo para mim! Não soumais criança, vou ter de encarar isso de frente, parar de me

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enganar. Acontece que... — A voz dela sumiu, enquanto aslágrimas banhavam-lhe o rosto. — Eu preferia não saber disso...que ela nunca me quis...

Jéssica desatou num pranto convulsivo e Ricardo abraçou-acom carinho.

— Isso, nina, desabafe...Ela chorou por longos minutos abraçada a ele. Aos poucos, foi

se acalmando, mas manteve a cabeça aninhada ao peito forte.— Só quero que acredite numa coisa, nina — Ricardo falou,

acariciando-lhe os cabelos. — Você é uma garota maravilhosa.Acredite!

Jéssica não acreditou em tal afirmação, mas ficou quieta. Ocontato com Ricardo era tão reconfortante que, naquele momento,nada mais importava.

Ele ainda procurava mais palavras de conforto para dizer, masdesistiu. Só o tempo aplacaria a mágoa de Jéssica... E era umalívio o fato de ela não encará-lo, pois Ricardo estava com muitaraiva. Embora entendesse a situação que Mauren Prescott haviavivido quando jovem, acreditava que ela não tinha o direito de terfeito uma revelação tão cruel para a filha.

Depois de alguns minutos de silêncio, ele resolveu continuar,animando-a:— Jéssica, preste antenção: você é uma moça inteligente,

talentosa e muito bonita. Não importa que seus pais não tenhamplanejado seu nascimento. Eles têm tudo para se orgulharem devocê.

Jéssica ouviu-o em silêncio, a cabeça ainda aconchegada aopeito dele. Não acreditava em nenhum daqueles elogios, mas a vozgrave de Ricardo agia como um bálsamo sobre ela. A boa intençãobastou para relaxá-la... ou talvez fosse o compasso regular e fortedo coração que ouvia... Nunca chorara na frente de ninguémantes. Contudo, em vez de vergonha, sentia um alívio imenso...

Ricardo então começou a divagar sobre o comportamentohumano, de como as pessoas tinham dificuldade de se expressar,principalmente quando o assunto era amor... Segundo ele,algumas não sabiam demonstrar quando queriam bem, emboradedicassem aos outros sentimentos muito profundos...

Nem sempre as palavras de Ricardo se referiam apenas aMauren e Hal, o que ficou claro para Jéssica. E naquele momentoela não se importava mais com a falta de afeto que os pais sempre

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lhe haviam negado. Só se importava com o carinho que recebia deRicardo.

Impulsionada por uma imensa ternura, ergueu o rosto eroçou-lhe os lábios nas faces, numa carícia quase imperceptível.Logo em seguida, voltou à posição anterior, temendo que ele seafastasse. Porém Ricardo nem se moveu. Continuou a confessar-lhe sua afeição, envolvendo-a num abraço amigo.

Quase sem dar conta, Jéssica colocou a mão dentro do paletóde Ricardo. Entretanto, arrependeu-se do gesto no mesmoinstante, pois ele emudeceu de repente. Ficou exasperada aointerpretar o silêncio como um sinal de rejeição. Justo no momentoque queria e precisava muito daquela proximidade...

De fato, ao sentir o toque da mão de Jéssica, Ricardo seassustara. Tanta proximidade o deixava confuso.

— Nina, acho que está na hora...Jéssica ouviu-o dizer que estava na hora de irem dormir, mas

a voz dele parecia, de repente, muito distante. Após mergulhar nomar escuro dos olhos ciganos, Jéssica observou-lhe longamente oslábios. Apenas poucos centímetros separavam as duas bocas e elavenceu a distância quase sem perceber... Cobriu-lhe a boca com

um beijo muito suave e fez menção de se afastar para lhe dizerboa-noite... Foi quando sentiu as mãos de Ricardo deslizarem-lhepelos braços, apertando-a contra si.

— Não fique bravo comigo, Ricardo — murmurou, encabulada.— Por favor, não pense que eu... Eu só queria...

— Não estou bravo, Jéssica... Você parece que não entende...Ricardo baixou os olhos, assustado com a intensidade do

próprio desejo de beijá-la. Porém ficou ainda mais confuso aoadivinhar-lhe a forma dos seios sob a roupa, para onde sem quererolhou.— Jéssica, vá para a cama — murmurou quase numa súplica.

— Está vendo? Você ficou zangado... .— Não, não, eu...

Ricardo perdeu a noção das palavras sob a mira daquelesolhos verdes.

Por nervosismo, Jéssica umedeceu a boca com a ponta dalíngua... Ricardo não viu nem pensou em mais nada. Mal se deuconta de que a tomava nos braços e provava-lhe os lábios compaixão. De repente percebeu que Jéssica estava assustada e,controlando o desejo que o invadira, tornou o beijo mais suave. Ao

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separar-se dela, olhou-a nos olhos temendo encontrar no fundodeles uma sombra de decepção.

Contudo, o olhar de Jéssica estava límpido. Ela o encarava defrente, sem censura, sem medo.

— Jéssica, um dia você vai entender...Ela riu.

— Por que está tão preocupado? Já fui beijada antes, sabia?— mentiu.

Ricardo ergueu as sobrancelhas, demonstrando espanto. EJéssica viu que ele não acreditava nas palavras que acabara deproferir.

"Ele percebeu... Tenho certeza de que percebeu que estoumentindo..."

— Nina, eu...— Ricardo, você está apertando meus braços...— Desculpe, não percebi que estava machucando você.— Não se preocupe, não estava me machucando, mas... o

que acabou de acontecer foi culpa minha..."Não, a culpa não foi somente sua, Nina...", ele pensou.Perturbado, tomou-lhe as mãos. Jéssica apertou-lhe os dedos,

ficando quieta, o coração batendo forte dentro do peito.E de novo Ricardo sentia-se assustado, confuso... Sempreachara Jéssica inteligente e divertida, contudo agora taisimpressões haviam tomado outra forma. Ela assumira de repenteuma imagem misteriosa e fascinante, a imagem de uma mulherirresistível.

— Ricardo? O que houve? Você está me deixandopreocupada...

— Não houve nada, Jéssica. Nada... E, por favor, não sepreocupe.— Então me beije de novo — ela ousou pedir.

— Não, Jéssica, não podemos...— É, tem razão... Sou criança demais para você, e não sei

mesmo beijar...— Nina, não se menospreze desse jeito... Acredite, querida,

você é uma pessoa maravilhosa e...Jéssica sorriu, agradecida, e, afastando-se um pouco,

levantou-se, deu um rodopio e falou:— Sou mesmo? Vou começar a acreditar nisso.Ricardo também levantou-se. Num impulso, Jéssica abraçou-

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o com força.— Obrigada pela noite maravilhosa...Fascinado, Ricardo estreitou o abraço e deixou-se mergulhar

no mar do próprio desejo. Tomou o rosto de Jéssica entre as mãos,beijando-a de leve, mas de modo a entreabrir-lhe os lábios. Elacorrespondeu-lhe à carícia com ardor, num misto de excitação emedo.

Não era a reação de Ricardo, mas sim as suas próprias o quea assustava. O coração continuava descompassado dentro dopeito. O prazer que desfrutava com aquele contato íntimo, jamaissonhado, a atordoava. Sentia todo o corpo vibrar, embora emoçõescontraditórias a confundissem: ora queria fugir, ora insinuar-semais e mais. Não sabia qual dos dois impulsos era mais imperioso.

Ficou aliviada e desapontada quando ele se afastou. MasRicardo ainda manteve-lhe o rosto entre as mãos, como se lhecustasse afastar-se de vez.

Ele procurava recuperar o autocontrole. Estava descontentecom a própria atitude. Afinal, era mais velho e mais experiente.Não devia ter se entregado com tanta facilidade a um impulsocomo aquele. Com esforço, esboçou um sorriso.

— Boa noite, Nina. Vá dormir.Jéssica obedeceu, deixando a sala um tanto apressada.Quando se viu sozinho, Ricardo sentou-se no sofá, contrariado. Oque estava acontecendo com ele, afinal? Mais de dez anos osseparavam... A diferença de idade assumira o aspecto de umabismo medonho, intransponível...

Apesar de inteligente, Jéssica era muito ingênua.Comportava-se como uma menina em assuntos em que as outrasmoças da mesma idade já eram mulheres... Como fora deixar-seenvolver daquela forma pelo charme ingênuo, um tantodesajeitado daquela... quase criança?

Talvez fosse esse o componente principal do encanto deJéssica... O fato de ignorar o quanto era sensual só a deixavaainda mais atraente.

Ricardo passou a mão pelos cabelos num gesto nervoso.Jéssica poderia se apaixonar por ele e isso seria péssimo. "Vocêprecisa de mim como amigo, para superar essa sua eternainsegurança... Caso contrário, jamais atravessará essa crise deidentidade e nunca será de fato feliz..."E Ricardo jurou a si mesmo nunca mais encostar um dedo em

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de amor para Emílio.Mercedes logo notou as mudanças de Jéssica, e gostou de vê-

la feliz com a vida.Mas, quando a nova viagem a Madri estava prestes a

acontecer, Jéssica começou a se sentir tão insegura que quasedesistiu de ir. Temia que Ricardo tivesse arrumado uma novanamorada, e não sabia como enfrentar a situação.

Na noite que antecedeu a viagem para a Espanha, Jéssicaquase não dormiu de ansiedade. Mas os feriados de Páscoa,entretanto, só lhe trouxeram desilusões. Dona Teodora adoeceu enão pôde viajar. Preocupado, Ricardo não quis deixar a avó sozinhacom os empregados e ficou em Guadalajara apenas um dia.

Mesmo assim, o tempo que passaram juntos foi muito paraJéssica. Embora a tratasse com a mesma atenção e gentileza desempre, Ricardo não a olhava como ela desejava e fazia questãode manter uma certa distância entre ambos.

Em todas as atitudes, ele deixava claro que só podia lheoferecer sua amizade. Apesar de triste, Jéssica compreendia aatitude dele: ainda se arrependia do que acontecera entre os dois.

"Ricardo nunca vai entender que a diferença de idade que

existe entre nós não é importante...", ela pensava. "Não gostodessa distância toda, mas pelo menos ele não arrumou umanamorada..."

De volta a Madri, Mercedes e Jéssica só dormiram uma noitena mansão. Na manhã seguinte, partiram para a Suíça ainda pelamanhã. Jéssica acordou cedo e já estava pronta para a viagemquando uma empregada bateu à porta do quarto. Trazia um recadode Ricardo: ele a esperava no escritório.

Ao contrário das outras vezes, Jéssica desceu a escadadevagar. Não havia medo ou ansiedade dentro dela, tampoucoalegria. Com certeza, Ricardo só lhe desejaria boa viagem, nomáximo lhe daria um beijo terno e fraternal no rosto.

Diante da porta do escritório, que estava aberta, parou algunssegundos, inspirou profundamente e entrou.

— Bom dia, nina. — Ricardo lhe sorriu com naturalidade.Jéssica forçou um sorriso ao sentar-se diante dele.— Bom dia, Ricardo. Não posso demorar muito, ainda não

terminei de fazer as malas...Na verdade, a bagagem estava pronta desde a véspera. Mas

era terrível demais estar a sós com ele, tão próxima e tão distante

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ao mesmo tempo.— Senti sua falta à mesa do café da manhã. — Ele sorriu,

encarando-a com o mesmo olhar demorado de sempre.— É que eu e Mercedes acordamos bem mais cedo que você.— Então foi por isso... Já está mesmo quase na hora de

partirem, por sinal para a sua última etapa na Suíça, não é? Em julho você acaba o curso, e depois, Jéssica? Já resolveu o quepretende fazer?

— Ainda não. Talvez eu viaje... Só sei que estou aberta paraqualquer experiência que a vida quiser me oferecer...

Ricardo a observou por um instante, Jéssica ainda estava setransformando, embora as últimas mudanças fossem mais sutis.Era um prazer vê-la naquele momento, mais confiante, madura...Contudo, nem por isso estava menos preocupado.

— Admiro sua disponibilidade em relação à vida, mas... umbarco sem leme não chega a lugar nenhum. É claro que podeencalhar num lugar seguro, mas ninguém pode garantir. E depois,se não se controla o rumo, como evitar que o casco se quebre deencontro a uma rocha ou que a embarcação naufrague?

— Não sei...

— Precisamos descobrir o que queremos da vida, Jéssica. Eperseguir nossos sonhos com paixão.De repente, Jéssica sentiu uma vontade imensa de chorar.

Aquilo mais parecia uma despedida, uma despedida definitiva!Mas, em vez de deixar as lágrimas rolarem pelo rosto, encolheu osombros fingindo displicência.

— Para ser franca, não há nada que eu queira tanto assim.Por enquanto só desejo minha liberdade e um pouco de aventura.

Ricardo baixou os olhos por um momento. Não sabia comocontinuar a aconselhá-la.— Meu primo de Guadalajara comentou comigo ao telefoneque você disse que só deseja se divertir... E ele ficou muitopreocupado. Talvez pela sua maneira de falar...

Ricardo olhava para ela com um sorriso largo. Contudo,Jéssica não achou graça nenhuma no comentário.

— Quer dizer que a família inteira vem lhe fornecer relatóriossobre o meu comportamento? Ontem à noite você me elogiou pelamaneira como cuidei dos filhos dele... E agora...

— Mas por que está tão ressentida? Acha ruim que nosinteressemos por você? Que gostemos de você?

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Para Jéssica, os últimos meses no colégio foram os maisdifíceis. Se esforçava para não pensar em Ricardo, mas nemsempre conseguia. A única maneira que encontrou para afastar omedo do futuro, da nova vida que a esperava foi se entregandototalmente aos estudos.

Um dia antes dos festejos do final do curso, Jéssica sedespediu de todos e partiu. Só em outubro Mercedes recebeu oprimeiro cartão-postal de Jéssica. Imediatamente escreveu-lhe em

resposta. Contudo, a carta remetida para Dijon, na França, foidevolvida.Depois disso, só em novembro Mercedes recebeu um cartão

de Jéssica postado em Luxemburgo, seguido por uma carta deBruxelas.

Em janeiro do ano seguinte, chegou uma carta de Rotterdam,com a promessa de notícias mais detalhadas em breve.

Tais notícias chegaram em abril e deixaram Mercedeschocada. Imediatamente, foi procurar Ricardo.

Quando entrou no escritório ele já estava de saída, mas aoperceber o nervosismo da irmã resolveu saber o que estavaacontecendo. Foram para a sala principal, onde ele ouviu comatenção Mercedes ler em voz alta a carta da amiga.

— O que acha disso? — a garota perguntou ao terminar aleitura. — Jéssica trabalhando num Kibbutzl

Para Mercedes, Jéssica fora longe demais. Ela jamais pensariaem trabalhar numa das comunidades espalhadas por Israel!

— Que idéia, Ricardo! Ela não serve para aquele trabalhobraçal, na terra. A vida lá é muito dura.

— Quem pode afirmar isso? Jéssica é uma pessoa muito forte,embora não pareça. Talvez tenha ido para Israel à procura de umamaneira útil para empregar tanta vitalidade.

— Então, ela escolheu um caminho bem difícil para isso!Ricardo sorriu. Mercedes jamais entenderia as atitudes de

Jéssica.— Nina, considero essa estada dela num Kibbutz uma opção

bastante interessante! Acredite em mim. Nada vai acontecer aJéssica. Pelo contrário, ela vai aprender muito por lá, não sepreocupe.

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Mercedes encarou o irmão com dureza.— Preocupo-me, sim! Ricardo, você encorajou Jéssica a fazer

isso?— O quê?!— Tudo, não só essa idéia do Kibbutz! Acho que você apoiou

essa loucura toda. Afinal, você também já fez isso...— Claro que não a encorajei! Se quer saber, nunca comentei

minhas viagens com ela, exatamente para não influenciá-la...Bem, pelo menos agora Jéssica tem um endereço fixo... Quandoescrever para ela, diga que eu mandei lembranças.

Ricardo tomou a carta das mãos da irmã com gentileza ereleu alguns trechos. Especialmente o último, dedicado só a ele!

"Mande lembranças minhas a Ricardo", Jéssica escrevera comsua letra bonita e firme.

Jéssica procurou um lugar tranquilo para ler a última carta deMercedes. Isso acontecia duas ou três vezes por mês e quasesempre o local escolhido era o pomar do Kibbutz, no final da tarde.

Sorriu ao ler a primeira frase, a mesma em todas as cartas:

"Quando você volta para casa?" Apesar de sempre repetida, apergunta ainda provocava em Jéssica uma sensação de bem-estar.Mercedes se referia à casa de Madri, à casa dos Colchero. Alirealmente encontrara um lar... Mercedes, porém, ainda nãoconseguira entender a opção de vida de Jéssica. Mesmo agora,passados quase dois anos, não havia uma carta em que Mercedesnão a chamasse de louca. De nada adiantava explicar que otrabalho duro no Kibbutz a ajudava muito que ali aprendera a ver avida de uma outra maneira que o caráter cooperativo e solidário dacomunidade a influenciara muito. Ver gente de todas as partes domundo convivendo em harmonia a fizera compreender o quantoseus problemas pessoais eram insignificantes. David Lazarus, umnova-iorquino simpático e bem humorado, tinha razão ao chamá-lade dramática...

Jéssica soltou um suspiro profundo ao pensar em David.Quando ele se fora, há uma semana, perdera muito mais que umnamorado, pois existia na relação deles uma cumplicidade gostosae saudável, da qual sentia muita falta.

Durante tantas viagens, Jéssica conhecera muitas pessoas.Em Israel, em especial, fizera muitos amigos, alguns dos quais

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nunca mais veria. Entretanto, todos eles haviam dado suacontribuição para moldar a Jéssica de hoje, mais tranquila, maissegura... mais madura.

Mais uma vez, Mercedes lhe cobrava a promessa feita quandose separaram de não perder o casamento dela e Emílio. Jéssicasacudiu a cabeça com um sorriso. Não faltaria àquele casamentopor nada desse mundo! Mais adiante, Mercedes informava que acerimônia seria no próximo ano, quando Emílio terminasse osestudos.

Meses mais tarde, Jéssica se encontrava a bordo de um aviãopara a Inglaterra. Estavam em fevereiro e, de repente, o Kibbutzcomeçara a lhe parecer árido, sem vida. Passara o Natal muitotriste e percebeu que precisava continuar a busca de algo que asatisfizesse completamente como ser humano.

A primeria idéia de Jéssica fora ir direto para Madri, masdepois resolveu visitar a mãe. Finalmente conseguia admitir que,apesar de tudo o que acontecera, gostava dela. Madri podiaesperar um pouco mais...

Olhou para as mãos e sorriu. "Minha mãe vai ter um ataquequando ver como estão ásperas e calejadas...", ela pensou. "Eminhas roupas então... Bem, é melhor não pensar nisso agora... Ésó comprar umas roupinhas melhores em Londres..."

Também visitaria o pai em Nova York. Quem sabe até oconvencesse a passar a Páscoa na Inglaterra.

“Não entendo como os dois continuam casados até hoje...Realmente, é difícil entender meus pais..."

Jéssica esboçou um leve sorriso. Suas opiniões sobre ocasamento não haviam mudado. Mas já sabia o que fazer daprópria vida: montaria uma loja de plantas exóticas em Londres. Omercado era bom para negócios desse tipo. Além disso, aprenderavárias técnicas de cultivo e conservação de plantas ornamentais noKibbutz. Em suas viagens, trabalhando como garçonete e outrostipos de serviço, descobrira em si mesma um tino comercialbastante desenvolvido, na certa o herdara dos pais...

De repente lembrou-se de Ricardo e dos conselhos que lhedera. Com certeza, ficaria feliz quando soubesse que, enfim, elaencontrara um caminho.

Jéssica sorriu de novo ao pensar em sua paixão de

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adolescente por Ricardo. Ainda bem que ele nunca soubera denada. Talvez contasse a ele quando se reencontrassem, e teriamum bom motivo para rir juntos...

Só agora compreendia com clareza os conselhos do amigo,inclusive o que se referia aos pais... Mais amadurecida,compreendia melhor a vida, embora ainda houvesse muita coisapara superar... entender...

A lembrança de Ricardo infundiu-lhe carinho e admiração.Seria bom revê-lo, compartilhar com ele todas as conquistas queele a ajudara a alcançar...

CAPÍTULO VIII

Ricardo olhou para o relógio de pulso pela décima vez empoucos minutos e achou graça da própria ansiedade. Ainda nãofazia meia hora que esperava a saída dos passageirosinternacionais do aeroporto de Barajas, em Madri. Além do mais,estava perto da alfândega, passagem obrigatória para sair do local.Era impossível que ela passasse por ali sem que percebesse.

Mesmo sabendo disso, continuou impaciente. Aquela espera

parecia não ter mais fim quando, de repente, avistou um grupo depassageiros se aproximando da porta magnética. Lá estava ela!Jéssica parou a poucos metros de distância e olhou ao redor,

à procura de Mercedes.Ricardo não a chamou e, mesmo se quisesse, não o

conseguiria. Mudo de espanto, admirou por um curto instante ovulto esguio de Jéssica, num misto de fascinação e de orgulho.Como havia mudado...

Calma a confiante, usava um conjunto esportivo de calças epaletó de linho creme, sobre uma blusa de seda rosa. No pescoço,uma echarpe do mesmo tom da blusa. Acenou para ela e sorriu ao

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Jéssica achou graça da observação. Seria muito difícil um livrosobre teoria orçamentaria, que nunca seria um best-seller,aumentar a fortuna de Ricardo.

— Estou doidinha para lê-lo — afirmou com falsa seriedade.— Acredito piamente! Só não lhe dou um exemplar com

dedicatória ainda hoje porque não quero que passe essamadrugada em claro.

Apesar das brincadeiras, uma leve tensão se instalou entre osdois quando se acomodaram no interior do veículo. Contudo,nenhum deles estranhou o constrangimento inicial. Era de seesperar uma certa sensação de estranheza após tanto tempo deseparação.

Jéssica olhou para Ricardo de modo disfarçado enquanto eleguiava. Vestindo uma calça e camisa pretas de corte esporte emoderno, parecia mais jovem e bem-disposto do que quando ovira pela última vez. Engordara um pouco, concluiu, reparando-lhenas pernas musculosas e no peito largo...

Cigano! Continuava sendo a única palavra adequada paradescrevê-lo. Os cabelos negros e encaracolados tinham um cortemoderno e combinavam mais com os traços marcantes de seu

rosto. Desviou o olhar. Não queria ser pega em flagranteexaminando-o com tanta insistência.Um sentimento estranho, misto de alegria e emoção,

apoderou-se dela ao rever a mansão. Nada mudara, nem osempregados nem a casa. As esculturas foram uma visãoacolhedora para ela, uma espécie de símbolo de boas-vindas.Sorrindo, olhou para Ricardo, que a encarava com um brilhointenso nos olhos negros.

— Vou levar suas malas para cima, Jéssica . Você é de casa,sabe o caminho da sala... Ah, Cristina está trabalhando essa noite.Se quiser comer alguma coisa, é só pedir a ela.

Jéssica entrou na sala de estar e colocou a bolsa sobre o sofá.Mais uma vez admirou o requinte da decoração, exatamente amesma de antes.

— Chamou a empregada? — Ricardo perguntou, voltando àsala.

— Ainda não. Não estou com fome, mas gostaria de tomar umdrinque.

— E o que prefere?— Gim-tônica com bastante gelo.

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Após tirar os sapatos, Jéssica sentou-se sobre as pernas nosofá. Ricardo sorriu, satisfeito por vê-la tão à vontade... Observou-a enquanto removia os grampos dos cabelos, fascinado com agraça de seus movimentos. Sacudindo a cabeça, Jéssica espalhousobre os ombros a longa cabeleira, farta e brilhante. O corteaproveitava o volume natural dos cabelos encaracolados,deixando-a com uma aparência sofisticada e sensual.

Ele só conseguiu deixar de fitá-la quando a empregada entrouna sala. Quase se esquecera de que havia tocado a sineta sobre alareira.

Iniciaram uma conversa banal enquanto esperavam asbebidas. Quando a empregada trouxe os coquetéis, Ricardodispensou-a por aquela noite.

— A você, Jéssica — disse, erguendo o copo após sentar-seno sofá diante dela. — Soube que passou um bom tempo com suamãe...

— É verdade... Só hoje posso dizer que a conheço deàverdade, e tenho de lhe agradecer por isso.

— A mim?!— Claro! Não se lembra da nossa conversa?

— Claro que sim... lembro-me muito bem. Mas naquela noitesó lhe falei o que sentia sobre o problema. Atingir umacompreensão real sobre ele foi uma conquista sua.

— Talvez, mas a conversa serviu para me abrir os olhos. Hojesei o quanto minha mãe me ama. Percebo isso nas atitudes dela,embora não seja de demonstrar afeto abertamente.

Jéssica contou a Ricardo como havia sido fácil convencer o paia viajar para a Inglaterra na Páscoa. Fora uma reunião de famíliamuito agradável. Havia uma união muito forte entre os três agora,baseada na compreensão e no respeito mútuo. Mesmo depois dosferiados, o clima de harmonia permanecera entre ela e Mauren.Haviam feito compras em Londres e aproveitado o tempo para seconhecerem de verdade.

— Ficou quieta de repente, Jéssica — Ricardo observou. —Algum problema?

— Não, estava só me lembrando do tempo que passei comminha mãe. Trabalhei no escritório do salão de beleza delaenquanto estive lá.

— E ela se enjoou da sua companhia? — Ricardo perguntounum tom jocoso.

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pouco. Nunca gostara muito de jogos de mistério.— E a que conclusões você chegou depois de tantas

experiências interessantes? — Ricardo quis saber por fim, como selhe adivinhasse os pensamentos.

Jéssica tomou um gole de gim-tônica e consultou o relógio depulso.

— É um pouco tarde para iniciar uma conversa desse tipo. Sequer saber se eu já decidi o que fazer da minha vida, a resposta ésim. Quero montar uma loja em Londres, de plantas ornamentais.Ainda tenho de alugar um apartamento, talvez comprar um carro.Mas por enquanto tudo o que tenho está naquelas malas lá emcima.

Tomou o último gole da bebida e levantou-se, seguida peloolhar um tanto decepcionado de Ricardo.

— Você não está muito acessível, Jéssica — comentou emtom de queixa.

— Desculpe, não queria ser indelicada. É que estou muitocansada.

Erguendo-se também, Ricardo caminhou na direção dela.Tocou-lhe de leve os ombros e deu-lhe um beijo em cada face.

— Seja bem-vinda.Jéssica espantou-se com o cumprimento tardio. Perturbadacom a proximidade e com o toque sutil das mãos dele, afastou-seum pouco. Mas o que estava acontecendo? Superara a paixão porele há tanto tempo.Sem dúvida, Ricardo era muito atraente, masnão servia para ela.

— Não vou segurá-la por mais tempo a não ser para lhe dizerque... você está muito bonita.

Jéssica sorriu, erguendo a cabeça numa atitude altiva.— É só isso, Ricardo?— Sabe muito bem que não é só isso! Você é linda e tem

plena consciência de sua beleza. E acho que está querendo brincarcomigo.

Ainda sorrindo, Jéssica abaixou-se para pegar os sapatos e abolsa. Ao chegar à porta, voltou-se. Ricardo estava no mesmolugar, os olhos penetrantes fixos nela.

Jéssica ria ao entrar no quarto. Tudo parecia estranho efamiliar ao mesmo tempo... como Ricardo. Havia algo diferentenele. Seria o fato de, agora, se relacionarem de igual para igual?

Ele já não a tratava mais como uma menina, mas sim como

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escrevi sobre economia! Farei muitas conferências pela Espanha eestava pensando se você não gostaria de me acompanhar.

— Eul Mas por quê? Em que poderia ajudá-lo?— Em muita coisa. Além de falar nossa língua corretamente,

você sabe datilografia e taquigrafia.— Mas já esqueci quase todos os sinais de taquigrafia.— Não faz mal. Preciso de um acompanhante, mas tanto meu

assistente quanto minha secretária já estão sobrecarregados.Quero alguém que atenda os telefonemas, lide com acorrespondência e se reveze comigo para dirigir o carro. Como asviagens são curtas, não é vantagem ir de avião, perde-se muitotempo em aeroportos... Será um trabalho remunerado, é claro.Afinal, vou roubar cinco semanas do seu sossego.

— Pode contar comigo, mas não quero pagamento. Acho aidéia muito estimulante e tenho certeza de que vai ser umaexperiência muito rica.

— Não, senhora! Estou contratando você, não lhe pedindo umfavor. Você terá um salário e todas as despesas pagas. Só que temum detalhe, o trabalho não é nada divertido, pelo contrário: émuito maçante e cansativo.

— Tudo bem, não pode ser pior que o colégio na Suíça.Quando partimos?— Depois do casamento de Mercedes. Vou providenciar uma

cópia do nosso itinerário para você assim que puder... Agora, seme der licença, preciso continuar esse trabalho.

Jéssica saiu do escritório surpresa com a maneira formal comque Ricardo a tratara. Porém resolveu não se preocupar. Pensar naviagem que faria pela Espanha lhe parecia muito mais estimulante.

Durante toda a semana seguinte, um clima de tensão invadiua mansão dos Colchero. O casamento de Mercedes seria nodomingo e, com a proximidade do dia, apareciam mais e maisdetalhes de última hora para serem resolvidos.

Jéssica não teve outra chance de conversar com Ricardo.Ocupado como nunca, ele quase não parava em casa. Entretanto,uma manhã ela passou no corredor diante do escritório e ouviu-ochamá-la pela porta entreaberta.

— Bom dia, senor Colchero — ela cumprimentou-o,sorridente.

Ricardo a encarou por um momento. Jéssica parecia uma flornaquele festivo rosa-claro.

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— Você está linda! — exclamou, sorrindo pela primeira veznaquela semana. — Aonde vai?

— Buscar o presente que encomendei para Mercedes ealmoçar em algum restaurante tranquilo.

— Faz muito bem... essa casa está uma loucura! Não vejo ahora que chegue o domingo, assim essa correria também acaba.

— É, isso aqui está realmente uma loucura.— Pensei em convidá-la para almoçar comigo bem longe

daqui. Mas, já que tem um compromisso, por que não jantamos juntos hoje, só nós dois?

— Infelizmente, não posso. Já assumi um compromisso.— Para jantar?— Isso mesmo, com Miguel Buendia. Encontrei-o outro dia na

rua. Ele me reconheceu assim que me viu.A decepção do rosto de Ricardo pela recusa do convite

transformou-se em raiva de repente.— Engraçado você se interessar por ele...— E por que não? Ele é casado?— Não, ele não é casado, mas...— Mas o quê, Ricardo?

— Nada, desculpe... É que ele adora garotas bonitas e achoque você não sabe lidar com esse tipo de homem.Jéssica ficou muito irritada. Devia muito a Ricardo e o

estimava. Mas isso não dava a ele o direito de se meter em seusassuntos particulares.

— Ricardo, gostaria que lembrasse que não tenho maisdezessete aninhos. Por favor, não interfira na minha vida.

— Como queira! — ele exclamou, alterado. — Você continuateimosa como sempre! Depois não diga que não lhe avisei!

Nesse momento, Mercedes apareceu na porta do escritório.— Mas o que está havendo com vocês dois? — perguntou,espantada, enquanto se aproximava.

Jéssica não queria causar preocupações à amiga. Por isso,disfarçou a irritação e voltou-se sorrindo para ela.

— Nada, Mercê — respondeu com calma. — Apenas temosidéias diferentes. Ricardo não acha bom que eu saia com MiguelBuendia hoje à noite. Considera-o a reencarnação de Barba Azul,ao que parec..

— Bem, acho isso um pouco injusto. — Mercedes encarou oirmão, curiosa.

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Jéssica ergueu o rosto numa atitude arrogante. Por quedeveria dar explicações a Ricardo?

— Talvez — falou, misteriosa. — Boa noite, senor Colchero.Estou cansada demais para me submeter a um interrogatório.

— Jéssica, ainda não terminei de falar!O tom brusco da afirmação só a fez sair da sala mais

depressa. Estava aborrecida com o rumo estranho da amizadeentre ela e Ricardo. Ele estava muito mudado. Talvez só agora eladescobrisse uma faceta do caráter de Ricardo contra a qualMercedes a previnira desde o começo. Só ela não quisera enxergaro mau gênio e o despotismo dele.

Nos outros dias, Ricardo continuou tratando Jéssica como seestivesse muitíssimo ofendido. A tensão entre os dois cresceraainda mais quando ela saiu com Miguel Buendia pela segunda vez.Jéssica agradecia ao alvoroço reinante na mansão por causa docasamento de Mercedes. Se não fosse por isso, todos os membrosda família perceberiam a frieza existente agora entre os dois.

Na véspera do casamento, Mercedes estava nervosíssima.Jéssica se esforçava ao máximo para ajudá-la, fazendo, inclusive,as vezes de anfitriã para os convidados vindos de todas as partes

do país.Por isso mesmo, foi Jéssica quem levantou naquela noitequando uma das crianças acordou aos gritos no meio damadrugada. Logo ao entrar no quarto, constatou que fora apenasum pesadelo de Paço, filho de um primo de Ricardo.

À luz fraca do abajur, Jéssica tranquilizou o garoto econversou com ele até fazê-lo adormecer de novo.

Quando estava para sair do quarto, deparou-se com Ricardo,observando-a da porta. Surpresa, Jéssica o encarou por ummomento. Ele ainda vestia o mesmo terno do jantar, sinal evidentede que ainda não fora dormir.

Jéssica fechou a porta com cuidado, só então dando-se contade um detalhe importante: usava uma camisola transparente. Napressa de acudir o menino, esquecera-se de vestir o robe. Talvezpor isso Ricardo a olhasse com tanta intensidade.

— Para quem não gosta de crianças, você se sai muito bem —comentou. — Tem muito jeito com elas.

— Nunca disse que não gosto de crianças. Não quero terfilhos, só isso.

— Por que não, Jéssica?

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— Já lhe expliquei isso há muito tempo.— É verdade. E não mudou de idéia até hoje?— Por que deveria? Não há lugar para crianças na minha vida.Ricardo sorriu de um modo um tanto cínico, mas encantador.— Por que crianças acordam no meio da noite?— Claro que não! Porque elas atrapalham a carreira das

mães.— Pois quer saber o que eu gostaria de ver, Jéssica?Ricardo se aproximou dela e, num gesto instintivo, Jéssica

recuou um passo. Sem querer encostou-se na parede,perguntando-se por que tremia tanto. Ricardo apoiou as mãos naparede, prendendo-a num espaço reduzido entre a parede e ocorpo dele.

— O que você gostaria de ver? — perguntou, encabulada.— Gostaria de vê-la com um filho nos braços...Jéssica o encarou com frieza. Ele estava muito enganado se

pensava que todas as idéias dela não passavam apenas depalavras.

— É muito tarde para uma conversa tola como essa, Ricardo.Agora, se me der licença...

— Não vou lhe dar licença, não, senhora! Por que lhe daria?Dizendo isso, Ricardo tirou as mãos da parede e segurou-acom firmeza pelos ombros. Em vão, Jéssica debateu-se para selibertar.

Ricardo a beijou de uma maneira urgente, avassaladora.Todas as defesas de Jéssica desmoronaram. Fechando os olhos,entregou-se às emoções perturbadoras que aquela boca lhedespertava. Era como se nunca tivesse sido beijada. Ou como se otempo voltasse àquela noite de ano-novo...

Alarmada com a própria reação, Jéssica desviou o rosto comviolência— Bem, você é que quis assim... — ele disse com calma. —

Mas pode ficar sossegada que isso jamais acontecerá de novo.Jéssica afastou-se dele num gesto impetuoso e se trancou no

quarto. Deitou-se em seguida, mas não conseguia paz de espíritopara dormir. Não entendia mais Ricardo, não identificava mais neleo amigo de tanto tempo. Da mesma forma, confundia ossentimentos que dedicava àquele homem, e assustava-se comeles. Ainda estaria apaixonada por Ricardo?

"Mas como é possível?", Jéssica se perguntou, angustiada.

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"Não sou mais uma adolescente ingénua! Viajei bastante, conhecimuitos rapazes..."

Entretanto, nenhum deles despertara nela tanta emoção... ecom um simples beijo.

CAPÍTULO X

Na manhã seguinte, a mansão dos Colchero estava maistumultuada do que nunca. Mercedes começou a se arrumar para acerimônia às oito horas, auxiliada por profissionais e familiares.

No andar debaixo, havia intenso movimento. Os hóspedesconversavam em meio aos últimos preparativos para a festa. Ascrianças ficaram por conta de Jéssica. Para não deixá-las sesujarem, contava-lhes histórias e inventava brincadeiras. Ajeitavaa gravatinha de uma delas quando Ricardo entrou na sala.

Jéssica disfarçou a admiração ao vê-lo naquele smokingpreto. Ele estava elegantíssimo... apesar da frieza. Apenasmurmurou um cumprimento formal ao passar por ela a caminho doescritório. "Ricardo se comporta como se nada tivesse acontecidoentre nós dois na noite passada...", pensou com certa tristeza.

Mas Jéssica logo se deu conta de que ele estava certo: seriamelhor considerar aquele beijo como um incidente semimportância.

"Terá sido mesmo um incidente sem importância?", ela seperguntou alguns instantes depois.Jéssica ainda se assustava com a própria reação na noite

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anterior. Tinha medo dos próprios sentimentos, de cair naarmadilha de uma paixão indesejável. Por isso, já estavareconsiderando a decisão de viajar com Ricardo. Passar cincosemanas sozinha com ele seria um teste muito arriscado...

Mas como se safar do compromisso agora? Mercedes e donaTeodora já sabiam da viagem e adoravam a idéia.

E além de tudo iria dar a Ricardo o gostinho de achar queestava com medo dele.

Tudo estava perfeito no casamento de Mercedes, até o solbrilhava mais naquela manhã. No altar, o noivo não disfarçava oorgulho e a emoção quando Mercedes entrou.

Sentada num dos primeiros bancos da capela, Jéssica viuRicardo entregar a irmã a Emílio. Misturada à emoção natural domomento, uma sombra de tristeza nublava os olhos dele. Jéssicaficou imaginando por que Ricardo nunca se casara. Certa vez,Mercedes lhe dissera que o irmão nunca amara ninguém, mascomo isso era possível?

Mesmo mais tarde, durante a esplêndida recepção após acerimônia religiosa, Ricardo manteve a expressão sombria nosolhos.

— Ela não está linda? — dona Teodora perguntou.Jéssica voltou-se para a velha senhora com um sorriso.Ambas olharam com admiração para os noivos. Por fim, os doisdeixavam a pista de dança, depois de muitas fotos e sorrisos.

— Linda, linda! — Jéssica concordou. — Parece que foramfeitos um para o outro, não acha, dona Teodora?

— E nasceram mesmo, minha filha... Acho que vou chorar denovo, mas não se importe, as pessoas da minha idade têm odireito de ser sentimentais.

— Só as pessoas da sua idade? Não concordo...Nesse momento, ouviram o riso de Ricardo atrás delas.— Pelo jeito estão trocando segredos... Vovó, vou tirar Jéssica

da sua companhia senão ela também vai começar a chorar...— Isso, filho, divirtam-se...— Venha, Jéssica, vamos dançar.Jéssica não queria dançar, mas não pôde recusar o convite.

Quando começaram a rodopiar pela pista, ela quase inventou umpretexto para se afastar. A proximidade a perturbava, mas, aomesmo tempo, sentia-se cativa daqueles braços.

— Relaxe — Ricardo sugeriu, num sussurro.

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— Sinto-me muito à vontade, obrigada.Apesar da irritação, Jéssica ficou impressionada ao olhar para

o parceiro. Ricardo estava cada dia mais bonito! Essa constataçãodeixou-a com uma sensação de perigo.

— Mas o que há com você, Jéssica? — Ricardo quis saber,intrigado. — Olha para mim como se eu fosse um desconhecido.

— Quer que eu seja sincera, Ricardo? É assim mesmo que eume sinto: diante de um estranho!

— Não pense que comigo é diferente. No entanto, estou meesforçando para aceitá-la como é. Não pode fazer o mesmo, aomenos hoje? Mercedes me perguntou duas vezes se alguma coisagrave estava acontecendo conosco.

— Ela me fez uma pergunta. A única resposta que encontreifoi que você mudou. Para pior, infelizmente.

— Minha querida, não mudei coisa nenhuma. E gostaria desaber o motivo de tantos desentendimentos entre nós dois. Sevamos passar cinco semanas juntos, é melhor resolvermos essasituação. Qual é o problema, Jéssica?

— Vocêl Não consegue enxergar que eu cresci, esse é oproblema! No fundo, não me respeita como pessoa.

Ele riu como se ouvisse uma tolice.— Está vendo? Esse tipo de riso para mim é uma falta derespeito.

— Ah, Jéssica, tudo isso porque achei que você não devia saircom Miguel Buendia.

— E você acha pouco?— Jéssica, acho melhor não discutirmos nada agora. Não é

nem o local, nem a hora apropriada.— Também acho, e gostaria que soubesse que, se não fosse

por Mercedes, eu o deixaria aqui plantado no meio de toda essagente.— Olhe, Jéssica, eu não quero mesmo discutir, mas gostaria

que você começasse a me ver como um ser humano. E qualquerser humano, você bem sabe, é cheio de falhas... Não sou nem umherói, nem um príncipe encantado.

— Sei disso, não se preocupe.— Ótimo. Então vamos parar com esse mal-entendido entre

nós, caso contrário a nossa viagem vai se tornar um inferno.Nesse momento, a orquestra parou de tocar. Ricardo a soltou

mais ainda e a segurou pelo braço por um momento.

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— Melhorou? — ele perguntou, baixinho.Jéssica o encarou, furiosa. Era óbvio que Ricardo se

aproveitara do olhar carinhoso de dona Teodora sobre os dois! Paranão prolongar aquela situação por mais tempo, voltou para o ladoda velha senhora.

— O que aconteceu, menina? — dona Teodora indagou,curiosa. — Pela cara, brigou com Ricardo, acertei?

— Não, não foi uma briga.— Então eu fico mais tranquila...Dizendo isso, dona Teodora olhou para Ricardo, que as fitava

de longe, com um sorriso enigmático nos lábios.No quarto que pertencera a Mercedes, Jéssica acompanhava

com tristeza alguns carregadores levarem as caixas com ospertences da amiga. Era sexta-feira, dois dias antes da viagem queiniciaria com Ricardo.

Ela havia decidido nunca mais voltar àquela casa. Quando asaudade apertasse, visitaria Mercedes em Valência. Na certa, nãofaltariam oportunidades para isso: aniversários, festas,nascimentos dos filhos.

Desde o casamento, Jéssica assumira a direção da mansão.

Organizara até um jantar de negócios para Ricardo e cuidara dedona Teodora como uma verdadeira neta. A velha senhora estavacom outra crise de bronquite.

Jéssica desceu a escada em direção ao escritório de Ricardo.Não queria interrompê-lo, mas dona Teodora insistira tanto...Ainda hesitou por um momento antes de bater à porta.

Quando, por fim, entrou no escritório, Ricardo estava aotelefone. Esperou até ele terminar a conversa para lhe dar orecado da avó.

— Dona Teodora pediu para você subir e falar com ela —Jéssica anunciou, sentando-se na poltrona diante da escrivaninha.— Acho que não quer que contrate outra enfermeira.

— Não vai adiantar nada, a moça já está vindo para cá. Nãoestou gostando nada dessa tosse, ela piorou muito.

— Eu também estou preocupada... Acho que só viajaremostranquilos se essa enfermeira ficar com ela. A mulher é muitocompetente.

— Nós vamos conseguir convencê-la. Por favor, diga a ela que já estou subindo.

Jéssica se conformava com a maneira ostensivamente fria

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com que Ricardo passara a tratá-la após o casamento da irmã. Eratriste uma amizade tão bonita acabar daquela forma.

— Mais alguma coisa? — ele quis aber, olhando-a comcuriosidade.

— Não. Só confirmar o recado: você já está subindo. Elembrá-lo que só começo a trabalhar para você daqui a dois dias.Portanto, não me dispense como a uma empregada.

— Está me entendendo mal! Sabe o quanto estou grato pelasua companhia e sua ajuda, já lhe disse isso!

Jéssica levantou da poltrona, desanimada. Não queriagratidão, muito menos elogios. Desejava apenas o fim daquelatensão insuportável.

— Faço isso com prazer — ela afirmou. — Por falar nisso, vaialmoçar em casa hoje?

— Não, marquei um almoço com Miguel Buendia.— Então ele já voltou da Alemanha?A expressão de Ricardo se transformou em poucos instantes

ao ouvir a pergunta.— Está com muita saudade dele?Jéssica ignorou a provocação. Miguel era superficial demais

para inspirar-lhe tal sentimento.— Não sabia que vocês eram amigos a ponto de almoçarem juntos! — ela gracejou.

— E não somos mesmo. E um almoço de negócios. Nãoesqueça que Miguel é cliente do banco. Se me convidou paraalmoçar, é porque quer alguma coisa... Mas vou dizer a ele oquanto você está com saudade.

— Faça-me esse favor. Diga também para ele ligar para mim.Estou livre esta noite.

A raiva estampada nos olhos de Ricardo a fez sentir-sevingada. Contudo, a satisfação desapareceu quando ele fechou aporta pelo lado de fora. Agora, a cada encontro com Ricardo,Jéssica se perguntava qual seria o motivo que arrumariam paradiscutir.

Miguel não telefonou para Jéssica e o humor de Ricardomelhorou bastante durante o jantar daquela noite.

Dona Teodora dormia. Melhorara um pouco da tosse, masrecusara a comida. Contudo, o médico os tranquilizara quanto aseu estado de saúde. Agora só precisaria de inalação e repouso.

Após tomarem o café na sala de estar, Ricardo convidou

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Jéssica para dar uma olhada no itinerário da viagem. Foram,então, para o escritório, onde ele abriu um mapa e explicou-lhe arota planejada. Estavam muito próximos e isso a deixava muitoperturbada.

— Quer saber-mais alguma coisa? — ele perguntou aoterminar as explicações.

— Só uma: por que não vai fazer conferências em Madri?— Vou fazer, mas quando voltarmos... Agora, que tal darmos

um passeio de carro? A noite está muito agradável; além, disso,você precisa treinar um pouco no volante. Meu carro esporte émeio complicado para quem não conhece...

— Hoje não; não estou com vontade de dirigir— Você me desaponta, Jéssica. Perdeu a qualidade que eu

mais admirava em você, a sinceridade.Ela o encarou fingindo inocência: daquela vez, não

conseguiria enervá-la, prometeu a si mesma.— Não entendo por que está dizendo isso — afirmou.— Porque você me evita desde que chegou nessa casa.— Ah... eu evito você... sei... mas, voltando ao assunto do

carro, não quero experimentá-lo no centro de Madri. Prefiro pegá-

lo na estrada para me acostumar com ele antes de entrar notrânsito. Agora, se me desculpar...Jéssica fez menção de se afastar, mas Ricardo a deteve.

Segurou-a pelos ombros com ternura, obrigando-a a encará-lo.— Concordo quanto ao carro, mas você continua me evitando.

Ou estou enganado?Sem esperar resposta, Ricardo a beijou, colando o corpo ao

dela num abraço envolvente. Mesmo um tanto ressentida com aforma abrupta como tudo acontecera, Jéssica correspondeu àcarícia com intensidade. E, quando ele a soltou, não sabia comoagir.

Ricardo, contudo, estava muito à vontade. Aproximou-se delaum pouco mais, os olhos brilhantes de desejo ao abraçá-la denovo. Tocou-lhe a coxa num carinho sensual, tateando-lhe o corpocom habilidade em busca dos seios. Chocada e humilhada, Jéssicasentiu o rosto em brasa.

— Solte-me, Ricardo, por favor! — a ordem saiu-lhe dagarganta numa voz rouca, indignada.

— Não precisamos mais desse tipo de moralismo, Jéssica.Somos adultos e você é uma mulher linda. Não há mais razão para

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fugirmos um do outro... Mas, se facilitar para você, faça de contaque não sou Ricardo Colchero, mas qualquer outro...

Qualquer outro! Lágrimas de raiva subiram aos olhos deJéssica. Com um gesto brusco e decidido, empurrou-o para longede si.

— Não se atreva a me tratar assim! — exclamou num tomsibilante. — Com quem pensa que está falando?! Olhe na minhacara e, se for capaz, diga que eu mereço esse tratamento!

— Perdoe-me, Jéssica — Ricardo murmurou, passando asmãos pelos cabelos.

Jéssica percebeu que ele estava sendo sincero; parecia muitoarrependido. Aliviada, resolveu encerrar aquele assunto parasempre.

— Não fui para a cama com Miguel — declarou com calma. —Era isso o que você queria saber, não era?

— Ainda bem, confesso que detestava a idéia de você ter umcaso com Miguel.

— Detestava por quê? Você também já namorou muito navida, Ricardo. Ou estou enganada? Será que não tenho o mesmodireito?

— Jéssica, você me deixa confuso.— Tenho ou não tenho o mesmo direito?— ela insistiu.— Tem, claro que tem. E acho melhor a gente mudar de

assunto.— Não quero mudar de assunto, quero dormir.— Jéssica, por quê? Por que você sempre arruma um jeito de

brigar comigo?— Se você tivesse a lucidez de antes, senhor, veria que quem

arruma pretexto para brigas não sou eu. E agora, se me permite,vou mesmo dormir.— Jéssica, eu...

— Boa noite — ela disse, dando-lhe as costas.— Espere um minuto.— Não!Jéssica ia sair, mas Ricardo a impediu. Num gesto firme,

segurou-a pelos ombros, obrigando-a a sentar-se numa poltrona.— Vou resolver esse problema agora, nem que seja a última

coisa que eu faça na vida! — ele disse, afastando-se um pouco eolhando com indignação.

— Não há nada para resolver, seu brutamontes! E é estupidez

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de sua parte fazer uso desses músculos todos para me submeter.— Veja lá como fala! Não tolero esse tipo de tratamento nem

de você nem...— Ah... Não seja tão infantil!Jéssica passou por ele, furiosa. A meio caminho da porta,

contudo, torceu o pé e perdeu o equilíbrio. Ricardo a segurou, mastambém se desequilibrou e ambos acabaram no chão. Passados osprimeiros instantes de susto, os dois caíram na gargalhada.

— Meu Deus! — Jéssica exclamou, ainda rindo. — E eu que sóqueria sair dessa sala com dignidade...

— Por essa eu não esperava.— E a culpa foi sua! Se você não...— Claro que foi. A culpa é sempre minha...Por brincadeira, Ricardo prendeu-lhe os ombros no chão,

inclinando-se sobre ela com ar ameaçador. Jéssica ria sem parar,os cabelos espalhados sobre o tapete, os olhos brilhando.

— Mas foi! — ela teimou. — Quero dizer...— Jéssica, fique quietinha.Ricardo a beijou de novo. Um beijo envolvente, ao mesmo

tempo doce e provocante, ao qual ela não resistiu. Abraçou-o

também, entregando-se por completo à sedução daquela carícia.Enredou os dedos nos cabelos de Ricardo enquanto sentia as mãosdele pousando-lhe sobre os seios com suavidade. Desejou que otempo parasse, mas uma batida na porta a fez voltar a si.

— Ricardo, me solte! — pediu, afastando-se . — Tem alguémaí fora.

Ele ergueu a cabeça com ar contrariado.— Um momento — disse, por fim, num tom alto, levantando-

se.Jéssica fez o mesmo, sentando-se na poltrona.Era a governanta trazendo um recado de dona Teodora, que

queria falar com o neto ainda naquela noite. Ricardo agradeceu e aempregada perguntou algo que Jéssica não ouviu.

— Sim, a srta. Prescott está aqui... Boa noite.Quando Ricardo fechou a porta, Jéssica sentiu-se

constrangida.— Por que disse que eu estava aqui? — quis saber, sem

encará-lo.— Porque você está. Não há motivos para embaraço, Jéssica.

Se eu quiser fazer amor com você no meu escritório, ninguém tem

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nada a ver com isso.— Só eu. — Ela suspirou, levantando-se. — Acho que sua avó

está querendo companhia...— Por que tanta pressa? Estávamos nos entendendo tão

bem... — ele disse, abraçando-a.Desvencilhando-se do abraço, Jéssica o encarou com

seriedade, pedindo:— Quero que prometa que isso não vai se repetir.— Isso eu não vou prometer a você: estaria mentindo.Alarmada, Jéssica pensou nas cinco semanas em que viajaria

a sós com ele. Ricardo sorriu como a lhe adivinhar ospensamentos.

— Qual é o problema? Não quer mais viajar comigo?— Não.— Mas você não pode desistir agora.Jéssica o encarou, confusa. Trabalho e vida pessoal deviam

ser coisas diferentes, mas se misturavam agora de uma formaperigosa e traiçoeira.

— Se fizéssemos amor, iria me detestar na manhã seguinte —ela declarou.

— Não acredito.— Atração física não significa nada. Quero uma relação ondeeu possa me realizar como pessoa, alguém com quem eu meidentifique. Esse não é bem o nosso caso. Existe uma atraçãomuito forte entre nós, concordo, mas é só isso.

— Esse discurso acaba com o entusiasmo de qualquerhomem! Pensei que você tivesse se tornado uma mulher adulta.

— Só pelo fato de não querer fazer amor com você, acreditaque eu seja uma criança?

— Mas você quer fazer amor comigo.— Você é muito convencido, senor Colchero. — Jéssica oencarou furiosa. — E um grande cretino!

— Cretino por quê? Você é uma mulher adulta, com plenodomínio de seus desejos, Jéssica. Por isso mesmo, vou esperá-latomar a iniciativa da próxima vez. Está bem assim? Talvez isso arealize como pessoa...

Jéssica o olhou, estupefata.— Pois então prepare-se para esperar por muito tempo!Dizendo isso, saiu do escritório.

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CAPITULO XI

A viagem pela Espanha estava sendo uma experiênciafantástica para Jéssica, e ela realizava o trabalho que lhe foradesignado com prazer e disposição.

Mas não era nada fácil acompanhar o ritmo de Ricardo. Alémde passarem muito tempo na estrada, cabia a ela, quandochegavam a algum hotel, ligar para Madri, anotar para ele osrecados importantes e confirmar os próximos compromissos.

Jéssica sabia que aquela era uma oportunidade única, poisseria muito difícil, depois que montasse a loja em Londres, poderviajar pela Espanha e conhecer cidades como Segóvia, Santander,Valladolid, Salamanca, Cárceres...

— Você me surpreende cada vez mais — Ricardo afirmou, derepente, desviando os olhos da paisagem da estrada. Os dois sedirigiam a Cordoba. — Faz tudo com uma eficiência espantosa.Trazê-la comigo foi a melhor idéia que tive nos últimos tempos.Queria agradecê-la por ter aceitado o convite.

Jéssica sorriu, espantada com os elogios inesperados.

— Muito obrigada, senor! — agradeceu, mudando a marchado carro por causa da subida que tinham diante deles.Na verdade, ela também estava impressionada. Ouvira

Ricardo nas conferências e sentira crescer dentro de si a admiraçãopor ele. Em todos os lugares por onde passava, eram acolhidoscom entusiasmo e respeito. O prestígio dè Ricardo Juan AntônioColchero de Castilla reinava nos quatro cantos do país.

Algumas horas mais tarde, Jéssica estacionou o veículo comcuidado na porta de um hotel luxuoso. Ricardo adormecera naúltima parte da viagem e ela não queria acordá-lo.Jéssica o observou por um momento e lembrou-se das.

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palavras dele: "Vou esperá-la tomar a iniciativa da próxima vez".Na verdade, ela gostaria de abraçá-lo e beijá-lo, mas não sepermitiria tais gestos. Não podia se envolver com ele, tinha umavida toda pela frente.

Ricardo abriu os olhos ainda sonolento e sorriu ao encará-la.— Já chegamos? — perguntou, espreguiçando-se. — Por que

não me chamou?— Acabamos de chegar... Você estava dormindo tão

profundamente que fiquei com pena de acordá-lo.Ele esboçou um sorriso cínico.— Ora! Mas isso é uma grande novidade!— Acho melhor se apressar — ela avisou, já descendo do

carro. — Temos muita coisa para fazer ainda hoje.O hotel ficava ao norte de Cordoba, uma região cujas

paisagens encantaram Jéssica.Durante o jantar, admirava a vista magnífica pela janela

ampla do restaurante do hotel quando ocorreu-lhe uma pergunta:— Por que você faz essas conferências, Ricardo? Só para

aumentar a venda de seu livro?— Não é por isso. É mais por uma satisfação pessoal. Sinto

prazer em compartilhar o que sei com os outros. Afinal, é muitagentileza dos reitores das universidades me convidarem.— Às três semanas restantes, então! — Jéssica brindou,

erguendo o copo de vinho. — Tudo correu muito bem até agora,não acha?

— Graças a você, que se adapta com muita facilidade àssituações novas e me ajuda demais com o que sabe de línguas,especialmente do alemão.

Cabia também a Jéssica organizar e datilografar ascorrespondências dele. Várias vezes durante as viagens, enquantoele dirigia, Ricardo lhe ditava cartas. Na maioria, taiscorrespondências eram endereçadas aos outros países da Europa,onde o Banco Colchero possuía filiais.

— Nunca vi ninguém trabalhar tanto, Ricardo. Pretendecontinuar sempre assim?

— Não, de jeito nenhum. É que de repente tudo se acumulou:bons negócios, as conferências:..

Apesar de tratarem de assuntos tão impessoais, havia umclima de intimidade entre ambos. Isso se devia, talvez, ao fato deestarem tão próximos um do outro, compartilhando todas aquelas

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experiências.— Vou dar uma volta antes de dormir, quer ir comigo? — ela

sugeriu.— Estava pensando em sugerir a mesma coisa. Esse lugar é

muito bonito, especialmente à luz do luar.De fato, uma enorme lua cheia iluminava o céu salpicado de

estrelas.Terminada a refeição, ambos saíram pelas ruas, desertas àquelahora. Num gesto natural e espontâneo, deram-se as mãos numcontato simples, porém muito intenso.

— Ricardo... eu sempre quis lhe perguntar uma coisa.— Então pergunte.— Como conseguiu ganhar tanto dinheiro nas suas viagens?

Não faça essa cara de espanto, foi Juan quem me contou. Oupensava que eu não ia descobrir suas andanças pelo mundo? Eleme contou também que você era muito novo e que resolveu seencontrar como pessoa, por isso viajou.

— É... ganhei muito dinheiro mesmo. Primeiro trabalhei comomecânico numa oficina em Roma. Com a sobra do meu primeiroordenado, comprei um carro caindo aos pedaços e, depois de

reformá-lo, vendi-o com um bom lucro. Com esse dinheiro,comprei uma coleção de moedas antigas e revendi depois dealgum tempo por um bom preço. Foi então que descobri que tenhomesmo jeito para lidar com dinheiro.

— E se descobrisse que não tinha jeito para isso?— Teria seguido outro caminho, fosse qual fosse.— Mas a sua família? A tradição dos Colchero?— Isso não me atrapalharia em nada. Quando tiver um filho,

quero que ele faça o mesmo.— Filho?!— Por que tanto espanto? Não pretendo ficar solteiro pelo

resto da vida.— Não?— Claro que não! Ao contrário de você, não tenho nada

contra o casamento. Um dia, vou encontrar uma mulher que queiraficar comigo para sempre.

— Duvido! Quem vai querer se casar com um chato comovocê?

— Uma outra chata!— Será? Acha que...

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Ricardo pousou-lhe a mão sobre os ombros, puxando-a parasi com suavidade. Jéssica esqueceu o que estivera por dizer...

— Continue — ele pediu.— Nada, não ia dizer nada de importante... Não seria melhor

voltarmos para o hotel?Ricardo parou e olhando-a nos olhos de modo penetrante,

falou baixinho:— Em outras palavras: chega de mim por hoje?— Não foi isso que eu quis dizer.Sem querer, Jéssica olhou para os lábios de Ricardo. E

desviou os olhos rapidamente, pois sentira uma vontade imensa debeijá-lo.

— Por que não faz o que tem vontade? — ele a instigou comum sorriso. — Quando a conheci, você convivia com seus desejoscom muito mais naturalidade, era muito mais espontânea.

— Não entendi sobre o que você está falando...— Mentirosa...Voltaram para o hotel bem devagar, usufruindo da calma da

noite. Ao chegarem, Ricardo fez questão de acompanhá-la até aporta do quarto.

— Por que não me convida para entrar, Jéssica? — sugeriu,quase num pedido. — Tenho uma garrafa de brandy no meuquarto. Posso ir buscá-la e...

— Boa noite, Ricardo. E obrigada pelo passeio.Jéssica fechou a porta do quarto num gesto decidido, mas

sentia-se mal, ansiosa. Olhou com tristeza para a cama, umaenorme cama de casal.

— Como eu desejo esse homem. — murmurou.

Dois dias depois estavam a caminho de Sevilha. Enquantodirigia, Jéssica se lembrava da estada dos dois em Cordoba.Haviam conversado muito durante as horas de folga. Ricardo lhecontara sobre as viagens que fizera quando rapaz, sobre ainfância, sobre a família. Aprendera a conhecê-lo melhor.

Também a programação para os próximos dias a agradava.Em Sevilha, teriam um jantar formal, uma reunião de negócios eduas conferências. Depois disso, haveria uma folga de quatro diasem Marbella. Ao menos para ela, pois Ricardo visitaria osescritórios da construtora nas cidades vizinhas.

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De repente, Jéssica virou a direção para a direita nummovimento brusco. Quase ao mesmo tempo, pisou no freioparando o carro num violento solavanco. Quando viu o precipício àdireita, começou a tremer de modo incontrolável. Por pouco nãohaviam morrido!

Ricardo saiu do carro e logo viu o motivo daquele transtorno:um bode, parado no meio da estrada, o olhava de modoimpassível. Ele levou o animal para o outro lado da pista, fazendo-o sumir no meio do mato. Depois voltou para junto de Jéssica,convencendo-a a sair do carro para tomar um pouco de ar.

— Fique calma, querida — ele disse, abraçando-a. — Estátudo bem agora. O bode não saiu da frente porque se espantoucom a sua beleza.

Jéssica estava abalada demais para rir do gracejo. Olhou denovo para o precipício e desatou a chorar. Ricardo abraçou-a comcarinho. Enquanto isso, Jéssica comentava sem parar o quepoderia ter acontecido com os dois.

— Mas não aconteceu nada. Estamos muito bem graças a suahabilidade. Está melhor agora?

Aos poucos, Jéssica foi se acalmando. Não chorava mais,

embora o tremor continuasse. Ricardo encostou a cabeça dela emseu peito, acariciando-lhe os cabelos.Jéssica ergueu o rosto devagar e surpreendeu nos olhos dele

uma doçura infinita. De repente, suas bocas se uniram num beijoardente e nenhum dos dois sabia quem o provocara.

— Ricardo...— Eu sei, precisamos continuar a viagem.— Se importaria de dirigir? Acho que não vou conseguir.— Desculpe... Mas, se não continuar no volante, vai perder a

coragem para sempre.Ela concordou. De fato, dez minutos depois, tudo voltava ànormalidade, pelo menos no que se referia ao acidente que quaseacontecera, pois Jéssica se perguntava se fora ela a responsávelpor aquele beijo.

Uma hora mais tarde, Ricardo tomou a direção. E Jéssicaaproveitou para apreciar a paisagem. Como Cordoba, Sevilhaficava às margens do rio Guadalquivir. De onde estavam, podiamver o Palácio Mourisco, o Alcazar e a Catedral Gótica, cujas torresbrancas contrastavam contra o céu azul.Conversavam sobre o mais célebre dos sevilhanos, o pintor

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— Mas não vou fazer isso, tranquilize-se — ele prosseguiu,com um suspiro. — Eu a quero muito e não conseguiria parar numsimples beijo. Você é uma mulher incrível, Jéssica... E é umverdadeiro tormento tê-la por perto...

Embora embaraçada, Jéssica resolveu falar com honestidadeo que estava lhe passando pela cabeça.

— Acho que você está falando tudo isso para ver comoreajo... Mas, Ricardo, nós dois nunca teremos um caso.

— Posso saber por quê?— Prefiro não falar sobre isso. E acho melhor fazer as

compras logo para podermos descansar.Sair daquele quarto foi um alívio para Jéssica. A caminho do

supermercado, porém, sentiu uma vontade enorme de chorar.Desejava Ricardo com loucura, mas, ao mesmo tempo, tinhavontade de tomar o primeiro avião para os Estados Unidos. Talvezsó assim, com um oceano os separando, se livraria daquele medo,indefinido, corrosivo, poderoso.

CAPÍTULO XII

Em Marbella, Ricardo estacionou o carro diante de um hotellocalizado a uns quinze minutos do centro da cidade. Jéssica oencarou, confusa. Afinal, Ricardo queria tanto ficar na casa depraia dele.

— Mudou de idéa? — quis saber, intrigada. — Pensei quefôssemos nos hospedar na sua casa. Eu já disse que não meimporto...

— Mas eu me importo — ele disse, sorrindo.Jéssica franziu a testa. Nunca conseguiria entendê-lo.

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Haviam passado por um belo apuro na tarde anterior, mas tudo jáestava superado!

E tudo porque no apartamento em que haviam ficado emSevilha só havia um banheiro! Ricardo passara o dia inteiro fora eJéssica tinha certeza de que ele não voltaria antes das cinco datarde. Por volta das três horas, ela resolveu tomar um banho.Como estava sozinha, havia deixado a porta do banheiro semtrancar.

Quando começara a se pentear, ainda totalmente nua, Ricardoentrara no banheiro.

Por alguns segundos, os dois apenas se olharam. Jéssicaficara petrificada.

— Por que não tranca a porta se pretende...— Porque não o esperava antes da cinco! E você? Por que não

bateu antes de entrar?A zanga de Jéssica era mais uma tentativa de superar o

embaraço que sentia. Deixara o robe no quarto e a toalha estavabem ao lado de Ricardo. Simulando naturalidade, ela segurava amaçaneta da porta.

— Importa-se, Ricardo? Saio em um minuto se me deixar...

A voz sumira-lhe na garganta ao ver a expressão do rostodele mudar.— Pensei que você estivesse dormindo — ele retrucara,

devagar.A irritação desaparecera de repente. O olhar de Ricardo

percorria o corpo dela, numa carícia lenta.Incapaz de dar um passo, Jéssica se mantinha imóvel. No

entanto, perdera o embaraço de repente. Em vez disso, sentia-selisonjeada com a admiração de Ricardo.

E sentia como se ele a tocasse. E o tempo parara, tudo aoredor parecendo silencioso e perfeito. Muito devagar, Ricardoaproximara-se dela. Trazia um brilho intenso nos olhos aoacariciar-lhe as costa.s em movimentos suaves.

Contudo, o toque arrastara Jéssica do torpor que seencontrava. Afastara-se num gesto brusco, impedindo o beijoinevitável. Ricardo não fizera nada para retê-la.

— Jéssica, por favor. Diga-me do que tem tanto medo.Ela baixara a cabeça, confusa. Embora reais, seus receios não

faziam muito sentido nem mesmo para ela própria. Como explicá-los, então?

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— Você me deseja, Jéssica — a voz dele era ao mesmo tempocarícia e desafio. — Tem idéia de como será maravilhoso quandofizermos amor?

— Pare com isso! Nunca teremos um caso, eu já lhe disse...— E acha que vai suportar esse desejo pelo resto da vida?

Não percebe que essa atração vai ficar sempre entre nós? Ela nosatormenta e é a única causa de nossos desentendimentos. Estarápresente a cada olhar, a cada toque, mesmo nos mais inocentes...

— Por favor, saia — ela pedira num fio de voz. — Você me fezuma promessa.

— Fique tranquila, nada vai acontecer conosco. Sou muitopaciente quando quero. Esperarei até você me procurar.

Ricardo saíra do banheiro e depois, quando se reencontraram,nenhum dos dois mencionara o que acontecera.

Mas agora, diante do Hotel de Los Monteros, Jéssicacompreendia que a decisão de Ricardo era definitiva. Não iriamesmo forçá-la a nada.Retribuindo o sorriso dele, desceu do carro. Em seguida

caminharam de braços dados até a recepção.— Aqui, em apartamentos separados, estaremos a salvo umdo outro — Ricardo comentou, sorrindo. — Você vai gostar dolocal.

De fato o lugar era lindíssimo. Além do luxo dasacomodações, a vista era magnífica. Da janela do apartamento emque ficara, Jéssica via a Sierra Blanca erguer-se imponente,rodeada pelo azul infinito do Mediterrâneo.

Meia hora mais tarde os dois saíram para um passeio nos jardins do hotel. Era sábado e os dois só teriam trabalho nasegunda-feira. Depois disso, viajariam para Málaga, Murcia,Alicante e Valência. Nessa última cidade, ficariam hospedados nacasa de Mercedes, que então já teria voltado da lua-de-mel.

Os jardins do hotel eram magníficos. Por entre os canteirosbem cuidados, flamingos desfilavam a plumagem rosada ebrilhante com garbosa aristocracia. Sentada num banco ao lado deRicardo, Jéssica riu, muito feliz.

— É um lugar maravilhoso, Ricardo! Mas essa despesacontinua sendo desnecessária, na minha opinião.

— Assistentes bonitas merecem lugares bonitos.

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— Não me venha com essa conversa! Fez isso porque nãoqueria dividir um banheiro comigo.

— Minha casa tem três banheiros, sua bruxa! Mas não temum parque como esse... Venha, estou morrendo de sede, vamostomar alguma coisa.

Almoçaram no hotel mesmo e, à tarde, Ricardo a levou paraconhecer a cidade. Comprou uma porção de presentes para Jéssicae, por volta das cinco da tarde, foram para Puerto Banus. Lá,sentados num barzinho elegante, ficaram conversando enquantoolhavam os iates no ancoradouro próximo. Para Jéssica, o mundo ea vida pareciam perfeitos pela primeira vez.

Já era bem tarde da noite quando, depois do jantar, voltarampara o hotel. Ao entrar no quarto, Jéssica encontrou um vaso cheiode rosas vermelhas. Emocionada, acariciou as pétalas aveludadas.

E precisou de um copo de vinho para criar coragem etelefonar para Ricardo agradecendo as flores.

Um outro copo de vinho calou um pouco dentro dela o medode amar Ricardo. Não podia se dar ao luxo de nutrir talsentimento. Nem por Ricardo, nem por ninguém.

No dia seguinte, almoçaram no La Cabane, o clube particulardo hotel. Depois, passearam pela cidade. Ao final do passeio,Jéssica quis conhecer a casa de praia de Ricardo.

Como ela esperava, a casa era, de fato, especial. Construídasegundo as especificações de Ricardo, trazia a marca inconfundívelda personalidade do dono: ousada, sem se tornar extravagante;luxuosa e confortável, mas sem exageros.

Ricardo ofereceu-lhe um café e ele mesmo fez questão deprepará-lo. Enquanto o esperava, Jéssica admirou a decoraçãoonde a cor branca, predominante, iluminava ainda mais oambiente. Logo Ricardo voltou com a bandeja, colocando-a sobre amesinha de centro da sala. Sentaram-se então num dos sofás eapreciaram o mar pela enorme porta de vidro.

— Não sabia que você gostava tanto de branco — elacomentou, distraída. — Muito menos desses móveis tão modernos.

— Não fui eu quem decorou a casa, foi Mercedes. Dei à minhairmã plena liberdade e acho que ela abusou um pouco.

— Mercedes? Mas o estilo dela é outro.— Pra você ver... Minha irmãzinha resolveu experimentar logo

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— Não diga nada. Vamos embora daqui.Um silêncio pesado e tenso se estabeleceu entre os dois

durante todo o caminho de volta. Jéssica se sentia culpada einfeliz. Mas não poderia ter feito outra coisa a não ser afastá-lo desi...

Ricardo desceu do carro sem encará-la. Apenas disse quepassaria no quarto dela às nove horas e se afastou.

Jéssica sentia-se aliviada por se ver livre daquela tensão, pelomenos por algumas horas. Contudo, passou o resto da tarde selembrando da expressão do rosto de Ricardo; na certa secontrolara muito para não lhe dizer umas verdades. Se o fizesse,ela não retrucaria. Fora uma temeridade seguir seus impulsoscomo uma adolescente irresponsável. Agora, lhe devia umaexplicação.

As nove horas, em vez de passar no quarto dela, Ricardo lhetelefonou. Estava esperando-a num dos bares do hotel. Jéssicadesceu disposta a resolver definitivamente aquela situação.Escolheu para usar um vestido preto, sem mangas, de decotediscreto. Forçou o melhor dos sorrisos ao se aproximar dele.

— Está muito elegante — Ricardo comentou sem grande

entusiasmo, chamando o garçom com um gesto de cabeça. — Oque quer beber?— Um uísque. Sem gelo.Ricardo fitou-a, surpreso, e dispensou o garçom com o

pedido.— Jéssica, estou muito confuso... — Ele suspirou, num

desalento.— Eu queria falar com você, explicar...— Explicar... Não sei se você me deve alguma explicação...

Mas também estou preocupado com outra coisa. Acabei detelefonar para Madri. Minha avó sofreu uma queda. A enfermeiraestava dormindo e ela quis tomar um chá. Desceu as escadassozinha, não quis chamar nenhum empregado... Mas já contrateioutra enfermeira; agora uma para o turno do dia e outra para o danoite. Vamos ver se, assim, o problema se resolve...

— Está pensando em voltar para Madri?— Estava. Fiquei desesperado quando soube o que tinha

acontecido, mas agora acho que podemos seguir viagem. Veremoscomo ela reage amanhã e nos próximos dias. Venha, vamos jantar.

Jéssica nem tocara no uísque. Talvez a pressa de Ricardo

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fosse por causa disso mesmo. De qualquer modo, não precisariamais de coragem. Ele não parecia muito interessado em ouvi-la.

— Não estou com fome. Se não se importa, vou voltar para omeu quarto e ler um pouco.

— Venha, assim que ver a comida o apetite volta, tenhocerteza.

Jéssica cedeu a contragosto. Durante a hora que passaram norestaurante, conversaram sobre vários assuntos. Contudo, nãosurgiu nenhuma oportunidade para uma conversa decisiva. Tensacom a expectativa, Jéssica abusou um pouco do vinho.

Quando subiram, Ricardo entrou com ela no quarto e pediu nacopa quatro xícaras de café.

— Está esperando visitas? — perguntou, surpresa.— Não, as quatro são para você — ele respondeu, tirando o

paletó e sentando-se em uma poltrona. — Quero que esteja bemsóbria para conversarmos.

Jéssica não disse nada até tomar duas xícaras de café bemforte. Mesmo depois, caminhou até a janela ainda em silêncio. Nãosabia por onde começar.

— A primeira coisa que fiz quando comecei a viajar foi

providenciar pílulas anticoncepcionais — ela começou de repente.— Queria fazer amor com alguém.— Alguém em especial?— Não, qualquer pessoa que eu conhecesse, que me

parecesse confiável... Acontece que eu não posso tomar pílula.Tentei várias marcas, mas todas me faziam muito mal.

Jéssica sentou-se numa poltrona. O silêncio dele aincomodava.

— Gostaria que não ficasse tão calado, Ricardo.— Acontece que não entendi ainda qual é o problema.Existem outros meios de se evitar filhos.— É verdade.— Continue, Jéssica.— Bem, para resumir a história, quando morei no Kibbutz,

relacionei-me com um homem e...— Você ficou grávida.— Não, como você mesmo disse, existem outros meios de se

evitar filhos.— E qual é o problema, Jéssica?— E você ainda pergunta?

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— Sabe, eu deveria me ofender com essa atitude sua, vocêacha que... Jéssica, o fato de você não ser virgem para mim nãotem a mínima importância.

Jéssica o olhou nos olhos e ficou contente ao ver asinceridade no rosto dele.

— Que bom... Mesmo assim, Ricardo, não posso pertencer avocê. Não sei o que aconteceu comigo. Depois que me separeidesse namorado comecei a ter um medo imenso... Entro empânico só de pensar que posso engravidar. Agora, por exemplo,estou tremendo só em mencionar o assunto.

— Você não pode se culpar pelo que sente, querida.— É, não posso. — A voz dela agora era fria e não

emocionada como antes. — E essa atração física que existe entrenós não vai dar em nada.

— Atração física? É isso que você acha que existe entre nós?— É claro que sim!— Está mentindo, Jéssica, mentindo para você mesma! Você

me ama!Jéssica soltou uma gargalhada.— Nunca pensei que sua vaidade chegasse a tanto, Ricardo!

— Só vejo uma solução para o caso: é melhor se casarcomigo.— Isso não é hora para cinismo, Ricardo!— Não estou sendo cínico! Se ficar grávida e estiver casada,

não vai haver problemas, não é mesmo?— Não acho nada engraçado. Estou sendo sincera, falando de

meus problemas, e você trata o assunto como piada. Está certo,você não tem nada a ver com os meus problemas! Mas foi vocêmesmo quem insistiu em saber!

— Como não tenho? Acha que foi gostoso o que aconteceuhoje à tarde? E ainda temos de ficar juntos por muitos dias.— Aí é que você se engana. Posso tomar um avião amanhã de

manhã e ir para bem longe da Espanha.— Mas não vai fazer isso. Temos um compromisso profissional

e, além disso, fugir não faria você me esquecer.— Eu não acredito. Sua arrogância não tem tamanho. Olhe,

se não quer conversar com seriedade, esqueça esse assunto. Achohorrível...

— Está bem, está bem, nina — ele retrucou, erguendo-se dapoltrona. — Só quero que você entenda que o medo de ficar

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grávida...— Não é da gravidez em si. Nego-me a pôr um filho no

mundo por acidente.— Que seja isso... O que você viveu em Israel era um outro

momento, uma outra situação. Talvez esse medo, esse pânico deagora tenha a ver com essa busca constante que você faz de simesma.

— Não entendi.— Eu sei que não. Quando entender, seus problemas estarão

resolvidos.Jéssica sentiu uma sensação estranha ao vê-lo caminhar

tranquilamente para a porta. Ela o alcançou e, segurando-lhe obraço, pediu:

— Por favor, explique-me o que quis dizer.— Não posso, nina, nem adiantaria. Você precisa descobrir

por si mesma. Reflita bastante sobre nós dois, sobre suas atitudes.Só assim poderá encontrar a raiz do problema.

Ricardo saiu, deixando-a confusa e preocupada.

Pálida e trêmula, Jéssica entrou no auditório de conferênciasem Murcia. Eram dez horas da manhã de uma sexta-feira. Ricardoterminara a exposição e respondia a algumas perguntas da platéia.

Com um gesto discreto, ela chamou o organizador do evento,o senor Rodrigues. Solícito como sempre, o homem a acompanhouaté a saleta onde devia esperar por Ricardo.

Mal se viu sozinha, Jéssica começou a chorarconvulsivamente. Recebera o telefonema a menos de uma hora,ainda não assimilara a notícia por completo. Como contar aRicardo?De repente, ele apareceu na porta com um sorriso radiante.

— O senor Rodrigues disse que... O que foi querida? Por queestá chorando?

Jéssica aproximou-se dele e parou ao encará-lo.— Está tremendo... Diga: o que aconteceu?— Dona Teodora...Ricardo empalideceu, mordendo com força o lábio inferior.— Vovó sofreu outro acidente? Mas ontem mesmo eu

telefonei para lá e estava tudo bem. Falei com ela e...A custo Jéssica reprimiu um soluço. Segurou-lhe a mão,

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A frieza da voz dele a assustou. Apesar disso, manteve aomáximo a naturalidade.

— A enfermeira estava o tempo todo acordada ao lado dela.Quando foi dar-lhe o remédio, dona Teodora não acordou. Omédico disse que terão de fazer uma autópsia. Restaram algumasdúvidas sobre a causa da morte...

Voltando o rosto para a janela, Jéssica chorou em silêncio.Ricardo percebeu, mas não disse nada. Pagou o frentista do posto,deu partida no carro e continuou a viagem.

Durante todo o trajeto, Ricardo não pronunciou uma sílabasequer. Apenas quando já transpunham os portões da mansão dosColchero ele voltou a falar:

— Devíamos ter voltado dias atrás, quando minha avó sofreua queda. Pelo menos nos despediríamos dela...

Jéssica ficou preocupada com aquelas palavras.— Ninguém podia adivinhar, Ricardo. Foi uma fatalidade.

Dona Teodora não se machucou quando caiu, você sabe disso...Ricardo não respondeu. Era como se não a ouvisse.— Podíamos ter nos despedido dela — repetiu, depois de

alguns segundos, com ar indiferente.

CAPITULO XIII

Jéssica tentava manter o autocontrole. Por dentro, entretanto,seus sentimentos estavam mais confusos do que nunca.

Muitos dias haviam se passado desde o funeral de donaTeodora. Durante esse tempo, mal vira Ricardo, muito menosfalara com ele. Vivia trancado no quarto e não saía nem mesmopara as refeições. Até Mercedes se recusava a receber.

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Naquela tarde, Mercedes e Jéssica estavam sentadas perto dalareira. Todos os parentes já haviam partido, inclusive Vicente eEmílio. A mansão estava sombria e silenciosa.

— Eu não o entendo. — Mercedes disse de repente,balançando a cabeça com tristeza. — Ricardo não agiu assimquando papai morreu. Estou muito preocupada, Jéssica, e nãoposso ficar aqui por mais tempo. Minha sogra vai sofrer umacirurgia daqui a dois dias.

— Eu sei. Eu também não tenho mais nada para fazer aqui.Jéssica ainda se lembrava da reação inesperada de Ricardo

quando os dois haviam chegado à mansão. Trancara-se com omédico no escritório, exigindo satisfações absurdas, repetindoperguntas descabidas, cego pela dor. Estranhamente, o médicosaíra do escritório satisfeito com o desabafo dele.

— Jéssica, preciso mesmo voltar para Valência, amanhã.— Eu sei, não se preocupe, Mercê, eu entendo. Afinal, você

tem outra vida lá.— Mas queria mesmo ficar aqui, com meu irmão.— Não. — Jéssica sorriu para a amiga com ar compreensivo.

— Ricardo vai se recuperar. E Emílio também precisa de você...

E de que adiantaria ficar? Jéssica pensou. Ricardo não queriaajuda de ninguém. A dor o fizera ausentar-se de tudo e eleprecisava esgotá-la para depois conseguir enfrentar novamente omundo.

— Você vai ficar, não vai, Jéssica? Ricardo precisa de alguémaqui.

— Não posso.— Mas, Jéssica, ele precisa...— Ele não precisa de mim, Mercedes. Nesse momento seu

irmão não precisa de ninguém... Ele se nega a falar comigo. Nãoentendo direito o porquê, mas, se ele está agindo assim, dever terseus motivos, e é meu dever respeitá-los.

— Mas, Jéssica... Você não pode partir!— Por quê, Mercedes?— Você não tem compromissos! Nem mesmo alugou um lugar

para morar, ainda. Como pode ser tão egoísta? Acho umamesquinhez de sua parte ir embora quando...

Mercedes nunca falara com ela daquele jeito. As acusaçõescalaram fundo em Jéssica. Desatou num pranto convulsivo, diantedo qual a outra compreendeu o quanto fora injusta.

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— Desculpe, não deveria ter falado assim com você.Mas Jéssica, inconsolável, não parava de chorar. De repente

Mercedes se deu conta do que acontecia com a amiga de tantosanos.

— Sou mesmo uma idiota. Por que não me disse antes? E eu,como não percebi? E Ricardo, ele também ama você?

— Ah, Mercedes, isso eu não sei. Mas não quero que lhe diganenhuma palavra sobre esse assunto prometa-me!

— Ficou louca?! Nem consigo chegar perto dele! E, mesmo seconseguisse, não ia me meter num assunto desses.

— Eu sei disso, desculpe-me. Não sei lhe dizer direito comotudo aconteceu... Talvez eu ame seu irmão desde quando oconheci. Foi ele mesmo quem me chamou a atenção. E eu acabeirindo da cara dele...

— Jéssica, tudo o que você está falando é meio confuso, nãopercebeu?

— Acontece que eu estou muito confusa. Preciso mesmo sairdaqui, afastar-me de Ricardo. Não suporto a maneira como ele metrata. Perdoe-me, Mercê. Tente me entender...

— Claro que eu entendo. Mas por que não tenta falar com

Ricardo? Ele está no escritório.— Está? Não vi quando ele desceu...— Meu irmão me pareceu um pouco melhor, disse que vai

jantar conosco hoje à noite.O coração de Jéssica encheu-se de esperança.— Vou tentar falar com ele... Quem sabe desta vez Ricardo

me recebe?Depois de lavar o rosto e pentear os cabelos, Jéssica bateu à

porta do escritório. Como não obteve resposta, bateu de novo eabriu a porta em seguida. Para sua decepção, o escritório estavavazio. Já ia se afastando dali quando Cristina passou pelo corredor.

— Está procurando pelo patrão? Ele acabou de sair. Pediu paraavisá-la que não voltaria para o jantar.

Naquela noite, Jéssica quase não dormiu. Pensava em algopara dizer a Ricardo se conseguisse conversar com ele. Admitiriaque o amava mas... e depois? Iria embora de todo jeito, decidiu-se. Talvez por amá-lo demais e temer não ser correspondida. Naverdade, não queria amar. Sentia um medo tremendo de queRicardo não correspondesse a seus sentimentos. Ao mesmotempo, porém, tinha medo de que ele a amasse. Se fosse assim,

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cobraria dela coisas que não poderia oferecer. Então, o perderiapara sempre.

Na manhã seguinte, Jéssica foi junto com Mercedes aoaeroporto. Na volta, quando já descia do carro em frente à mansãoe agradecia ao motorista, viu que Ricardo havia chegado. O carrodele estava estacionado no jardim.

Embora houvesse se determinado a não procurá-lo mais,quando se deu conta batia à porta do escritório. Precisava tentarmais uma vez.

— Entre — a voz de Ricardo se fez ouvir.Jéssica respirou aliviada. Pelo menos a entonação dele soara

tranquila. Entretanto, o alívio logo deu lugar à desolação. Ricardonão se encontrava trabalhando, como ela esperava. Em vez disso,com olhar ausente, estava sentado numa poltrona e não haviauma folha de papel sobre a escrivaninha, apenas uma bandeja coma refeição, intacta.

— Ricardo...— Ah, é você, Jéssica. Correu tudo bem no embarque de

Mercedes?— Sim. Posso me sentar?

— Claro.Houve um longo silêncio, durante o qual ela se perguntou porque estava ali. Ricardo não parecia interessado na presença dela,sequer a olhava.

— Vim para me despedir — afirmou, forçando um sorriso. Elea encarou com olhar distante.

— Você vai embora?— Sim, vou para Londres hoje à noite.Jéssica esperou por algum tipo de reação, que não veio. Ele

apenas olhava para o nada.— Tive sorte de encontrar passagem para hoje — prosseguiu,sem jeito. — Foi graças a um cancelamento de reserva.

— Sei...Mais uma vez, Jéssica esperou. Se ao menos Ricardo lheperguntasse o motivo da partida... Desapontada, ela se levantou.

— Preciso começar minha vida, Ricardo.— Entendo. Meu motorista a levará para o aeroporto.Aquela frase encerrava a conversa em definitivo. Se ele não

se interessava nem mesmo em levá-la ao aeroporto pessoalmente,nada mais restava a dizer. Sentindo-se perdida no mundo, Jéssica

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saiu do escritório contendo as lágrimas.Contudo, logo se refez. A falta de consideração sem limites de

Ricardo endureceu-a. Era como se uma parte dela tivesse morrido.Embora fosse muito cedo, subiu para o quarto e arrumou as

malas. Fora tolice dela esperar outra reação. Fantasiara uma lindacena de amor, como uma adolescente romântica. Que direito tinhaagora de ficar tão decepcionada?

De repente, ouviu, vindo do jardim, o som da porta de umcarro, se fechando. Correu até a janela, o coração aos pulos. ViuRicardo ligar o motor do veículo e dirigi-lo devagar em direção àsaída... Estava tudo acabado, concluiu com amargura.

O dia fora terrível para Jéssica. Entretanto, no aeroporto suasesperanças ainda persistiam. Olhava para a multidão, procurandoentre tantos o rosto de Ricardo. Talvez ele mudasse de idéia,reconsiderasse...

Às sete horas, ela enterrou dentro de si a última esperança.Já deveria ter partido. Só se encontrava na Espanha por causa deum atraso do vôo para Londres. Ricardo não viria mais.

Jéssica foi a primeira passageira a apresentar o passaporte. Etambém foi a primeira a entrar no avião.Sentou-se perto da janela, observando com tristeza o

aeroporto. E durante alguns minutos lembrou-se de cadapedacinho de sua vida nos últimos anos. E tudo começaraexatamente ali...

Um desespero tremendo crescia dentro dela. Estava agindocomo uma perfeita idiota, pensou, erguendo-se de repente numimpulso.

— Com licença, preciso sair do avião!Uma senhora, vizinha de banco, sorriu para ela complacente.— Não precisa ter medo. Já viajei de avião dezenas de vezes.

É muito seguro...Contudo, Jéssica mal a ouviu. O motor já começava a

funcionar, dali a pouco seria tarde demais! Desesperada, agarrou aaeromoça, que verificava a lista dos passageiros.

— Preciso sair do avião.— Sinto muito, não dá mais tempo. Já estamos fechando...Mesmo assim, Jéssica não se deu por vencida. A porta ainda

estava aberta e a escada apenas fora afastada alguns centímetros.

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Como último recurso, ela gritou bem alto que queria descer e osfuncionários recolocaram a escada.

— E sua bagagem? — a aeromoça gritou. — Qual é seunome?

— Jéssica Prescott. Pode mandá-la no avião de retorno.Correu para a entrada do aeroporto e tomou um táxi. O

mundo se iluminara de repente diante dela, fazendo-a enxergartoda a verdade.

Como pudera duvidar do amor de Ricardo? Ele apenas nãoquisera forçar a situação e ela o interpretara mal por isso. Talvez,se ele houvesse tomado todas as iniciativas, Jéssica nunca estariasegura do quanto o amava. Por isso mesmo, não a impedira departir. Queria liberá-la para descobrir os próprios sentimentos.

Mas não havia liberdade sem Ricardo, agora ela sabia. Viajaramuito na busca de um pouco de felicidade. No entanto, os bonsmomentos de todas as viagens juntas não se comparavam àalegria de estar perto dele. Ricardo a completava, a preenchia.

Mercedes acertara ao chamá-la de egoísta. Ricardo serecuperava de uma crise de depressão e ela exigia-lhe atenção...Pior ainda, o abandonara num dos momentos mais difíceis da vida!

Só agora percebia o quanto a perda da avó fora traumatizante paraele.Mas graças a Deus percebera o erro a tempo. Por fim,

conseguira descobrir o rumo verdadeiro de sua vida. Todos oscaminhos a levavam a Ricardo, e queria passar ao lado dele o restode seus dias... se ele ainda a quisesse...

Quando Jéssica chegou à mansão, Ricardo não estava emcasa. Cristina a olhava, muito confusa ao vê-la de novo.

— Mas ele não disse para onde ia? — Jéssica perguntou,desesperada.— Sinto muito, mas não sei onde ele está, nem a que horasvoltará. Quando chegou do banco, encontrei-o parado no corredor.Perguntou-me se já havia ido embora, e eu disse que sim. Ele ficouparado mais um pouco sem dizer nada, depois saiu.

— Obrigada, Cristina, vou esperar por ele aqui na sala.

As horas se escoaram devagar. Inquieta, Jéssica andava deum lado para o outro. Sentia-se culpada pelo sofrimento deRicardo e nunca se perdoaria se algo de mau acontecesse a ele.

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Às onze horas, liberou a empregada. A mansão pareceu,então, maior do que nunca, a espera se tornou uma tortura.

À uma hora da manhã, já exausta, Jéssica encolheu-se nosofá, perto da lareira. De repente, ouviu o ruído de um carroestacionando no jardim.

Em seguida, a porta da frente abriu e fechou quase sem fazerbarulho. Jéssica ficou quieta, num misto de angústia e ansiedade.

— Ricardo...Ele acabara de acender a luz. Olhou-a incrédulo e o rosto viril

transmutou-se de incredulidade em alívio. Abriu os braços numgesto acolhedor e correu na direção de Jéssica, ajoelhando-se aolado do sofá.

Ela atirou-se nos braços do homem que amava, chorando deemoção, enquanto Ricardo a apertava contra si, afagando-lhe oscabelos.

— Está tudo bem, querida, tudo bem...Jéssica, junto ao peito dele, ouvia-lhe o bater descompassado

do coração.— Eu amo você — murmurou. — Perdoe-me, Ricardo, eu não

podia ter ido embora...

Ele abraçou-a com força e beijou-lhe os cabelos.— Não precisa se desculpar, eu entendo...Ricardo sentou-se e de novo a abraçou.

— Oh, Jéssica... Jéssica...— Não consegui deixar você — ela murmurou, olhando-o nos

olhos. — Senti-me desesperada quando estava no avião.— Chegou a embarcar?— Cheguei. De repente, senti uma espécie de... de

iluminação.Entendi definitivamente que todos os caminhos melevavam a você, que não adiantava fugir... Passei a minha vidatoda fugindo, Ricardo. E agora não quero que isso continueacontecendo. Meu grande problema foi sempre não confiar emninguém, em não me sentir amada... Mas agora sinto que cresci...E eu confio em você.

— De verdade?— De verdade, amor.— E você quer se casar comigo?— Quero, quero muito. E ter filhos com você, muitos filhos...

Se a relação entre meus pais não deu certo, a culpa não foi minha,hoje eu sei disso. E, se eles não foram felizes, isso não significa

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que eu não tenha o direito a felicidade...— Sabe o que eu queria lhe contar?— Não... O quê?— Que você me enfeitiçou desde a primeira vez que a vi. Eu

sempre te amei, Jéssica.— Você sempre me amou?— Pode parecer mentira, porém.é a mais pura verdade. Mas a

vida me ensinou que as pessoas têm o direito de encontrar eescolher os próprios caminhos. E eu nunca fiz nada para detê-lanessa busca... Ela era sua, eu não podia interferir.

— Você não existe, Ricardo...— Sou mesmo um louco, não? Mas a minha situação se

.complicou um pouco nesses últimos tempos... — Ele sorriu. — Eusabia que poderia fazê- la feliz, mas precisava esperar vocêcompreender isso também...

— Eu sei, querido. Por isso tem se mantido tão distante, nãoé?

Sentindo remorso, Ricardo abraçou-a com carinho.— Perdoe-me por aquilo,Jéssica, foi a única forma de eu lidar

com a situação. A morte de minha avó e...

— E não saber se eu ficaria com você o deixou muitodeprimido, não foi?— Deixou, sim. Ainda hoje, quando entrei nessa casa, achei

que não me restava mais nada. Estava tudo tão vazio, semsentido! Quando Cristina confirmou sua partida, eu não conseguificar aqui...

— Mas onde esteve? Fiquei tão preocupada!— Peguei o carro e saí por aí sem destino sem rumo