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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
FEMININO, MASCULINO E MEMÓRIA FAMILIAR
Luana Borges Lemes1
Resumo: A estrutura familiar é uma referência fundamental ao promover percepções e
preconceitos de gênero em sociedade. Através da educação familiar é possível perpetuar
tradições e valores morais, bem como desconstruir comportamentos sexistas, mudança
que exige uma postura contestadora dos estereótipos de gênero. Para isso, os valores
feministas de igualdade de direitos e oportunidades de gênero se tornam decisivos ao
identificar a memória familiar essencialista de feminino e masculino para desfazer essa
base história patriarcal. Nessa reconfiguração de relações de poder de gênero desiguais
é possível promover uma nova educação geracional cooperativa, menos machista e
sexista, de respeito e valorização à diversidade de mulheres e homens. Isso é
apresentado no presente estudo através da entrevista realizada com Ligia Moreiras Sena,
uma mulher mãe e que se identifica como feminista e também é fundadora do site
Cientista Que Virou Mãe 2 . Busca-se assim, evidenciar a importância da memória
familiar e do feminismo na experiência de mulheres mães que, há algum tempo, buscam
construir uma nova forma de educar suas famílias.
Palavras-chave: feminismo; geração; gênero; memória; famílias.
Eu acredito que as crianças aprendem com modelos de vida, com formas de
viver e a minha forma de viver é feminista. então a Clara vive isso também.
Os momentos que eu preciso ativamente defender os valores feministas,
nesse momento que ela está com seis anos é a luta contra o sexismo na
infância, é o brinquedo de menina, o brinquedo de menino (...) eu não deixo
passar nada! Cada coisinha que falam eu: “não, mas por quê?” e faço ela
pensar também. Não vou lá e doutrino: “não e fim”. Faço ela pensar também
“filha, mas o que tem ali que você não pode brincar?”. Então, ela acaba
construindo isso junto (LIGIA SENA, 2016).
A memória familiar de Ligia Sena e seu posicionamento no feminismo basearam
os valores de igualdade que refletem na educação feminista que ela constrói hoje com
sua filha. Assim como Ligia Sena, muitas mulheres mães promovem educações
diferentes que rompem com a tradição machista transmitida por gerações. Pensando
nisso, há uma geração que já pode se tornar feminista ou até mesmo nascer feminista?
Isso certamente pode encontrar resposta na representação das mulheres na família, que
1Mestranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do CAPES. Orientanda da
Profa Dra. Joana Maria Pedro. E-mail: [email protected] 2 Site brasileiro fundado em 2009 por Ligia Moreiras Sena, que atualmente reúne diversas mulheres, mães
e feministas produzindo textos críticos acerca de temas como empoderamento feminino, maternidade e
infância. Juntas já lançaram dois livros baseados nos textos do site, o livro Educar Sem Violência -
Criando Filhos Sem Palmadas (2014) e o Mulheres Que Viram Mães (2016).
2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
atualmente tem formado um novo sentido de poder social despertado, muitas vezes,
com o maior número de mulheres líderes de suas famílias. Essa mudança de
comportamento se deve ao maior número de mulheres no mercado de trabalho, com
maior fonte de renda e poder de decisão na família. Mas, isso não necessariamente
significa autonomia, pois deve-se considerar as mulheres que assumem sozinhas o lar
devido aos respectivos maridos e pais de seus filhos que são omissos, mesmo quando
presentes ou quando estes abandonam a família.
Esse cenário retratado em dados do IBGE3 é também reflexo de um novo olhar
sobre a importância das mulheres em sociedade que se deve, em grande parte, à
consciência feminista por igualdade de gênero em direitos e oportunidades, que
desconstrói papéis sexistas como um novo valor geracional. Para isso, precisa-se
repensar a cultura de princípios androcêntricos que conforme Bourdieu (2002, p. 04)
necessita de uma socioanálise para “quebrar a relação de enganosa familiaridade que
nos liga à nossa própria tradição”. O autor trata da memória coletiva social que produz
uma construção naturalizada sobre os sexos junto a moralismos de papéis sociais de
gênero discriminativos que presumem o feminino e o masculino. Nisso é importante
ponderar, como cita Louro (2003, p. 23), que gênero “passa a exigir que se pense de
modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens
são diversos”.
Ademais, a autonomia das mulheres é construída em grande parte nas relações
de gênero presentes na memória familiar. Para Halbawchs (1990) a memória, mesmo
sendo eminentemente individual, não é restrita a pessoa, e sim, está imbricada com os
grupos sociais aos quais se relaciona. Assim, para Halbawchs (1990, p. 46) “cidade,
amigos e família constituem como sociedades complexas. Então nascem as lembranças,
compreendidas em dois quadros de pensamentos comuns aos membros dos dois grupos”.
Essa memória costumeira gera um senso comum e permite questionar a tradição
ou memória familiar que perpetua o machismo, o que exige uma reconstrução de
valores pautados em uma cultura geracional que não mais sobrecarregue as mulheres.
Desse modo, desfaz-se a cultura que essencializa o masculino e o feminino na
tradicional educação familiar mostrando que o cuidado do lar e dos filhos não é
3 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – o censo pesquisado de 2004 a 2014 revela ter triplicado
o número de famílias brasileiras chefiadas por mulheres. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv66777.pdf;
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/12/1714906-proporcao-de-familias-chefiadas-por-mulheres-
chega-a-40-em-2014.shtml
3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
habilidade nata das mulheres. Connell e Messerschmidt (2013) reforçam tal contestação
ao pensar a masculinidade como um "projeto" ou prática social que ganha sentido tanto
coletiva quanto individualmente. Ou seja, masculinidade e feminilidade não são
identidades natas ou polos fixos e excludentes, e sim construções sociais misturadas em
mulheres e homens. Isso demonstra segundo Scott (1990, p. 86), a urgência do gênero
como categoria de análise na história, pois “é um elemento constitutivo de relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é um primeiro
modo de dar significado às relações de poder”. Percebe-se então, que gênero permeia as
percepções da memória familiar sobre feminino e masculino, as quais devem considerar
pessoas como ponto de intersecções de um contexto social não sexista.
Em razão do poder cultural da família ao formar essa memória de valores aos
indivíduos e seus preconceitos de gênero, o presente estudo busca entender como a
experiência de uma mulher, mãe e feminista contemporânea como Ligia Moreiras Sena
pode inspirar e conduzir a uma educação diferente, com empoderamento feminino e
direitos igualitários de gênero. A entrevista4 realizada com Ligia confere a relevância da
história oral como entendimento da memória que remonta à riqueza citada por Perrot
(2005, p. 15): “a memória das mulheres é verbo. Ela está ligada à oralidade das
sociedades tradicionais que lhes confiava a missão de narradoras da comunidade”.
Tradição que visibiliza e legitima a história das mulheres e os estudos de gênero para o
centro do saber historiográfico. Para Perrot (2005, p. 16) “é por isso que o
desenvolvimento recente da história dita ‘oral’ é de certo modo uma revanche das
mulheres”, em que elas escrevem as próprias histórias e quando verbalizadas, muitas
vezes, se tornam histórias feministas, devido à convergência de desafios e conquistas
nas experiências das mulheres. A história feminista que as mulheres estão construindo
também é ratificada por Salvatici (2005, p. 29), pois “desde seus primórdios, a história
oral e a história de mulheres têm mostrado significativas similitudes em propósitos e
objetivos, bem como em campos de interesse”.
Tais reflexões conduzem à libertação de muitas mulheres e de suas famílias de
tradições machistas com o apoio de valores feministas, mas não sem esforço, tampouco
de modo rápido e acabado como cita Ligia Sena (2016) “é uma postura de vida, é full
time (...) Ser feminista tem muito de não aceitar algumas coisas seja para mim, ou seja,
4 Disponível na íntegra com a autorização da entrevistada, a quem interessar, através do e-mail da
entrevistadora [email protected]
4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
para você e pra qualquer outra mulher”. A identificação de Ligia Sena com o feminismo
reflete no seu trabalho que constrói narrativas junto a outras mulheres como forma de
empoderamento feminino. Nessa produção de saber de influência social elas fomentam
o questionamento das tradições familiares e culturais, pensando novas formas de educar
com posturas feministas. Assim, elas expõem situações de exclusão e iniquidade em que
vivem, algo ratificado por Davis apud Salvatici (2005, p. 30): “a maior parte do que
conhecemos nos é transmitida por homens. Em trabalhos literários, textos normativos,
tratados morais e expressões artísticas (...) Mulheres, por si mesmas, falam mais
diretamente”.
Diante disso, torna-se importante exaltar a narrativa de mulheres, que junto às
fontes orais estão criando uma nova história segundo Salvatici (2005, p. 31), que
valoriza as entrevistas em que “a história oral de mulheres é um encontro feminista,
mesmo se a entrevistada não for uma feminista”. Isso por causa das questões de gênero
em comum vivenciadas por mulheres, o que reforça a empatia entre elas e revela o
poder das entrevistas causarem identificação entre grupos oprimidos conforme Salvatici
(2005, p. 32), pois “as histórias faladas de mulheres foram consideradas um novo tipo
de verdade” e assim expandiram as teorias críticas sobre memória e gênero. Esse
trabalho feminista e militante confere voz a muitas mulheres e as fortalecem:
o feminismo me motiva a continuar, muitas vezes eu tô deprimida, tô
desanimada, mas não tenho como voltar atrás, o feminismo é isso, eu vivo
assim. Eu posso parar, mas eu alcancei uma coisa que as pessoas em geral
não têm, que é voz. É um privilégio e quando eu falo privilégio eu falo de
coisas ruins. Aí eu fico pensando, eu tenho direito de não fazer uso desse
privilégio?! (...) É um privilégio que eu tenho e eu preciso fazer uso dele
para defender alguém. Feminismo é isso, é um senso de responsabilidade,
não é só defesa pessoal dos meus direitos (LIGIA SENA, 2016).
Torna-se possível entender como as memórias de mulheres alteram as
significações historiográficas em que “feminismo e história oral convergiram
adicionalmente tanto no avanço da metodologia quanto da interpretação”, como cita
Salvatici (2005, p. 33) que completa: “para Luisa Passerini a conceituação de
subjetividade (como força e não limitação) foi o maior impacto da história de mulheres
na história oral”. Essa chamada guinada subjetiva5 na história evidencia a experiência
dos sujeitos comuns e as intersecções dos discursos de mulheres, que pondera
indivíduos desnaturalizados, que não nascem mulheres, nem feministas, tornam-se isso
em uma construção social do feminino.
5 SARLO, Beatriz.
5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Scott (1990, p. 6) demarca essa questão ao citar que “o termo ‘história das
mulheres’ revela a sua posição política ao afirmar (contrariamente às práticas habituais),
que as mulheres são sujeitos históricos legítimos”. Nessa busca por legitimidade as
mulheres se organizam e se identificam no feminismo como uma descoberta e estilo de
vida:
quando você passa por uma situação de vulnerabilidade muito explícita, você
começa a se questionar sobre as coisas ‘por que que é assim? Tem que ser
assim? Eu não aceito, então como que eu posso mudar?’. Tinham algumas
coisas que me incomodavam, mas eu não sabia como tornar isso uma
ferramenta de problematização. Não foi nem na gravidez, foi depois que eu
comecei a ler mais sobre o assunto. Terminei meu primeiro Doutorado, a
Clara nasceu e eu decidi fazer o outro eu fui para a Ciência Sociais, aí eu
comecei a me identificar mesmo. (...) É descoberta, posicionamento,
segurança, porque não adianta você descobrir, tem que se posicionar (LIGIA
SENA, 2016).
Eis que surge o poder da vulnerabilidade ou poder de agência6, próprio das
mulheres como minoria social, que se fortalecem ao se posicionarem politicamente a
partir da percepção dos problemas de gênero que prejudicam a autonomia delas, o que
impulsionou Ligia a repensar a essencialização social de feminino e do masculino
através do feminismo. Nisso, valida-se questionar como cita Nicholson (2000, p. 15) as
diferenças entre mulheres “são restritas as margens da história humana ou às supostas
qualidades ‘secundárias’ da feminilidade — aquelas que não afetam a definição básica
do ser mulher”. Por isso, precisa-se um olhar construcionista sobre a feminilidade, que
reconheça as distintas posições em que se constroem as mulheres como indivíduos
sociais.
Ligia Sena (2016) combate essa naturalização machista do masculino e do
feminino em sua memória familiar: “hoje estou exatamente no momento da
desconstrução. (...) Eu acho isso um erro, a gente dizer que tem determinadas coisas que
são valores femininos, porque se não significa que a gente deve aceitar que certas coisas
são valores masculinos”. Com isso, enfatizou a busca por equidade de gênero
reconhecendo as diferenças, mas não inferindo valores essencialmente femininos e
ressalta:
se a gente defender a paz para todos, a não violência, os direitos para todos,
isso não é um valor feminino, é um direito humano. (...) quando eu digo
‘vocês precisam valorizar o feminino’ não tô falando de um feminino como
instituição holística, tô falando presença, sujeito. A representação disso não
como valores intrínsecos, porque foi isso que nos acorrentou por muito tempo
(LIGIA SENA, 2016).
6 Spivak (1988)
6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Nesse sentido as feministas buscam ressignificar a representação social das
mulheres pelos direitos humanos, o que implica reconhecer os privilégios destoantes.
Por isso, a luta chama-se feminismo, pois defender os direitos das mulheres apenas
como direitos humanos seria inócuo e muito amplo, mesmo que claramente seja um
tema inserido no feminismo. Ser feminista é destacar o problema de gênero, que Louro
(2003, p 17) afirma em relação as mulheres: “tornar visível aquela que fora ocultada foi
o grande objetivo das estudiosas feministas. A segregação social e política a que as
mulheres foram historicamente conduzidas tivera como conseqüência a sua ampla
invisibilidade como sujeito”. Nessa autoafirmação as feministas promovem reflexões e
mudanças educacionais focadas no caráter fundamentalmente social do gênero.
Com isso, o feminismo refuta o determinismo biológico desconstruindo atributos
socialmente aprendidos como femininos, conforme Zaidman (2009, p. 83) também
sobre a reflexão: “por que negar o que a especificidade feminina – mesmo tendo nascido
da opressão – poderia nos dar?”. Afinal, todo o mundo pode e deve aprender sobre
compaixão, afeto, gentileza e respeito que o feminino remete. Esse não nasce com as
mulheres, é aprendido. Nesse sentido, possibilita-se a ruptura da educação tradicional
que hierarquiza papéis sociais sexistas e para Zaidman (2009, p. 82) “enfatiza o aspecto
coercivo e repressivo da transmissão de modelos” da aprendizagem intelectual à
submissão, em que lembra como Beauvoir7 descreve tal educação limitante à autonomia
das mulheres e suas afirmações como sujeitos aptos a disputa de poder social.
Nesse feminino e masculino que devem integrar personalidades individuais com
autonomia, há a questão da maternidade imposta às mulheres como natural, que Ligia
Sena (2016) trata como experiência ímpar para cada mulher, o que rompe também com
o estigma de feminilidade. A divergência dessa subjugação do feminino é perceptível na
história de Ligia porque sua mãe era a chefe de decisões em casa e, ao mesmo tempo,
era quem mais trabalhava pelo lar e pelas filhas, por isso também educava de modo
mais rígido e menos afetuoso que o pai, por vezes era violenta e autoritária, deixando
claro as responsabilidades desiguais no lar:
minha mãe me educou e meu pai me mimou, meu pai não participou da
minha educação, se eu dissesse ‘pai vou lá na China’ ele dizia ‘tá bom, vai lá
confio em você’, isso meio que me desesperava. E outra, isso é uma omissão,
deixa para a mãe todas as decisões importantes de três filhas, três crianças,
então foi muito complicado para minha mãe também (LIGIA SENA, 2016).
7 Segundo Sexo (1949)
7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Esse poder das mulheres no ambiente doméstico é um problema, pois se torna
uma sobrecarga para elas devido à omissão dos pais de família no lar. Mas, segundo
Grossi (2004, p. 16) “como explicaríamos o fato de que em nossa cultura brasileira são
as mães que mandam em casa? (...) Este é um dos elementos estruturais de nossa cultura,
o fato de haver uma divisão de poderes sociais, cabendo aos homens o poder sobre a
instância pública e às mulheres o privado”. Isso tem o suporte do “binômio dominação
masculina / submissão feminina” segundo a autora, que tem sido questionado nos
estudos gênero, pois afinal, é dessa limitação às mulheres que, em grande medida,
fortalece-se o patriarcado instituído em nossa história, sendo uma forma de organização
social segundo Scott (1990) que perpetua valores machistas.
Sobre isso, o trabalho doméstico é incutido erroneamente como competência
“natural” do feminino associado às mulheres que traz a noção de flexibilidade e
qualidades de minúcia, paciência e empatia, o que mostra segundo Molinier e Lang
2009, p. 104) “a positividade da relação entre feminilidade e trabalho, numa relação
oposta à da virilidade”. Entretanto, contrapondo o sexismo, tais habilidades devem ser
desenvolvidas por toda pessoa que almeja realizar um trabalho com excelência. A mãe
de Ligia não converge integralmente com tal comportamento esperado do feminino,
enquanto seu pai também rompe com a expectativa de masculino que educa os homens
para a agressividade, a insensibilidade e rigidez disciplinar, o que possibilita pensar a
diversidade entre homens e mulheres dissociado de padrões excludentes da educação
machista.
Sobre isso Ligia comenta que seu pai era afetuoso com as filhas: “ele tinha uma
noção de solidariedade, gentileza e amorosidade muito grande, era um cara bem
pacífico, ele me inspirava nesse sentido”, mas isso não abrangia o cuidado cotidiano
segundo Ligia: “carinho e cuidado são coisas bem diferentes, para ele era muito
diferente, hoje a gente já tem outra consciência de que as coisas têm que caminhar
juntas”. Então, havia uma sensibilidade limitada, assim como em muitos homens, o pai
de Ligia não exerceu a paternidade integralmente, pois foi omisso em suas
responsabilidades como trocar fralda, levar e buscar na escola, compartilhar as tarefas
domésticas. Segundo Ligia Sena (2016): “minha mãe fazia tudo isso. Meu pai era
aquele pai anos 80 que saía de manhã para o trabalho e voltava à noite e a gente só
convivia no final de semana”. Esse perfil de pai é datado do século XIX e ainda persiste
na atualidade, uma vez que consiste em um problema geracional de educação machista.
8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Na resolução disso, necessita-se repensar as noções sobre virilidade associadas
ao masculino e aos homens, que expressam a dominância masculina nas relações sociais
e para Molinier e Lang (2009, p. 101) se reveste de atributos sociais como “a força, a
coragem, a capacidade de combater, o ‘direito’ à violência e aos privilégios associados à
dominação daquelas e daqueles que não são – e não podem ser – viris: mulheres,
crianças, etc.” Nesse contexto a masculinidade e a feminilidade se definem em sua
relação e por meio dela, o que se fortalece nas tradições familiares como na história de
Ligia, que está sendo a precursora ao romper essa continuação geracional de “papeis
tradicionais” extremamente sexistas, que frequentemente exploram o trabalho
doméstico das mulheres. Ainda, segundo Scott (1990) ao citar a teoria de Chodorow8,
o sentido feminino do Eu é fundamentalmente ligado ao mundo, o sentido
masculino do Eu é fundamentalmente separado do mundo’(...) se os pais
fossem mais envolvidos nos deveres parentais e mais presentes nas situações
domésticas os resultados do drama edipiano seriam provavelmente diferentes.
Essa interpretação limita o conceito de gênero à esfera da família e à
experiência doméstica, e para o(a) historiador(a) ela não deixa meios de ligar
esse conceito (nem o indivíduo) com outros sistemas sociais, econômicos,
políticos ou de poder (SCOTT, 1990, p. 16).
Nessas disposições sociais em que a estrutura familiar tradicional impõe uma
divisão sexual do trabalho a partir das responsabilidades domésticas excludentes a pais
e mães, o sexismo é ampliado a todos os âmbitos sociais. Isso atrasa a carreira
profissional das mulheres e também apresenta o problema de gênero como exclusivo da
esfera domiciliar. Perrot (2005, p. 16) retrata essa limitação: “o mutismo dos homens,
em um casal, ao tratar-se das recordações da infância ou da vida privada (...) que falar
de si mesmo seja contrário à honra viril que considera essas coisas negligenciáveis,
abandonando às esposas, o lugar junto ao berço e as questões relativas à casa”. Connel e
Messerschmidt (2013, p. 271) apresentam uma estreita relação sobre isso:
“masculinidades hegemônicas tendem a envolver padrões específicos de divisão interna
e conflito emocional, precisamente por sua associação com o poder generificado”. Os
autores tratam o gênero dirigido ao corpo e a tensão nas relações parentais devido à
divisão sexual do trabalho e no cuidado com as crianças que reforça o molde social
machista.
Confrontando essa realidade Ligia Sena (2016), relata: “minha mãe era muito
8 Nancy Chodorow. The Reproduction of Mothering: Psichoanalysis and the Sociology of Gender,
Berkeley, Calif. 1978, p. 169. Segundo Scott a teoria de Chodorow é mais sociológica e mais socializada,
mas ele constitui o ponto de vista dominante, através do qual a teoria das relações de objeto foi abordada
pelas feministas americanas.
9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
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determinada, muito rígida em algumas coisas, ela sempre falou assim ‘vocês têm que
ser independentes’, ela fazia questão que a gente fosse para a faculdade, se formasse e
tudo mais”. Esse propósito de educar suas meninas com independência provém em
partes, segundo Ligia, da história familiar de sua mãe descender de imigrantes
portugueses, com uma trajetória de superação e autonomia.
Esse ímpeto de independência das mulheres proveniente da família rompe com a
educação machista que aprisiona as mulheres à submissão dos homens, porém Ligia
Sena (2016) comenta: “minha mãe ficou mais no plano das ideias e a gente realmente
foi lá e fez, todo mundo hoje é independente”. Isso porque apesar de ser uma líder
familiar a mãe de Ligia casou cedo e sempre trabalhou em casa, dependia
financeiramente do marido, o que para Ligia ainda é uma problemática de gênero em
família e decisivo na autonomia das mulheres: “venho de uma linhagem de mulheres
com a personalidade muito forte, daí também vem a minha, mas todas dependentes de
um homem. Então, pra mim ser dependente de um homem é uma afronta, não tenho
como ser dependente de um homem”. Mas, Ligia também pondera: “cada um sabe de si,
a gente sabe como é importante a criação das crianças, sabe que os homens não se
dedicam e aí nós vamos abandonar também?! Não dá pra fazer julgamento, mas não
nega que é problemático”. Nessa perspectiva Ligia comenta o tabu familiar que ainda
existe sobre o trabalho doméstico e deveria ser mais digno: uma mulher que escolhe ser
dependente financeiramente do marido para cuidar da casa e das crianças precisa ser
encarada como profissional (...) ela teria inclusive direito trabalhista pago pela família,
para quando ela chegar na idade de se aposentar ela também tenha direito”.
Além disso, Ligia Sena (2016) conta sobre a educação violenta que recebeu de
sua mãe, por sua forma ditatorial de educar as filhas a serem independente e talvez por
isso não conseguir ser afetuosa: “quando eu descobri que estava grávida se tinha uma
certeza é que minha filha não seria vítima de violência como eu fui. Minha mãe era uma
pessoa muito violenta, é ainda até hoje. (...) então, quando eu me tornei mãe rompeu
geral”. Essa diferença de valores afastou mãe e filha e gerou o propósito em Ligia de
não ser uma mãe igual a sua, de quem seu pai discordava mas tinha medo: “não tinha
um ser humano que não tinha medo dela e ela achava isso bom, que as pessoas a
temessem, uma espécie da manutenção do poder”. Tal postura violenta pode ser uma
subversão do poder, a fim de compensar a dependência financeira do marido, uma
cobrança de obediência como forma de valorizar sua dedicação doméstica exacerbada.
10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
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E apesar da não identificação com a mãe, quando seus pais se divorciaram Ligia Sena
(2016) comenta: “fiquei muito mais próxima da minha mãe, porque ficou eu minha mãe
e minhas duas irmãs, meu pai não era presente, nosso vínculo se fortaleceu depois que
eu fiquei adulta”.
Nessa relação Ligia afirma que havia uma forte identificação e unidade familiar
coesa entre as mulheres, mas principalmente devido às dificuldades financeiras e
emocionais que passaram na época, que se transformou após a morte de uma irmã de
criação, em que a mãe e as três filhas afastaram-se. Então, Ligia enxergou sua referência
materna autoritária: “por muitos anos, até que eu me tornei feminista, ativista, defensora
dos direitos humanos eu me identificava muito com a minha mãe, até que eu vi que isso
não era mais motivo de orgulho pra mim, hoje eu sou muito diferente dela”. Isso conduz
à questão pertinente e abrasadora de Louro (1997, p. 112): "atitudes patriarcais e
sexistas se constituem num problema feminino ou masculino?".
Por isso também, Ligia trabalha hoje em um processo de pedagogia feminista,
desconstruindo memórias familiares e analisa no presente uma educação a ser
melhorada, por meio da lógica semelhante à citada por Louro (2005, p. 113) com
“dualismos ‘clássicos’: competição/cooperação; objetividade/subjetividade;
ensino/aprendizagem; hierarquia/igualdade — em que o primeiro termo representa o
modelo androcêntrico de educação e o segundo termo aponta para a concepção
feminista”. Esse ideal educacional possibilita um equilíbrio de potencialidades a
desenvolver em cada indivíduo para além do sexo, algo que Ligia trabalha na criação de
sua filha e reflete a sua educação também: “fui criada com uma sensação de justiça e
pertencimento grande, não sei dizer quanto isso era da minha família e quanto era meu
porque sempre tive essa noção da igualdade”.
Dessa forma, Ligia (2016) percebe a importância de uma educação não sexista
para sua filha, mas confessa: “os maiores desafios é você ter que ficar confrontando a
sociedade toda hora, toda hora e estar numa postura sempre alerta”. Isso demonstra sua
postura contínua de feminista e militante exigida para conduzir a nova educação, que
traz benefícios nítidos na vida de sua filha: “ela convive com muitas crianças, ela é
combativa ‘não, você não manda em mim, não, mas por que eu não posso brincar? Eu
também posso brincar!’ ela é combativa, ela não aceita as limitações não”. Apesar disso,
Ligia também reconhece que vive em uma redoma feminista coerente, diferente da
maioria das realidades sociais: “todas minhas amigas também tem um posicionamento
11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
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feminista e ninguém é sexista, é um critério de convivência”.
Nessa educação feminista, há o que cita Scott (1990, p. 16): “sistemas de
significações, as identidades subjetivas são processos de distinção, que exigem a
supressão das ambigüidades e dos elementos opostos a fim de assegurar coerência e
compreensão comuns”. O feminismo busca expandir isso em combate à cultura
machista que no princípio de masculinidade pressupõe necessariamente a repressão dos
aspectos de feminilidades e vice-versa e para a autora “introduz o conflito na oposição
entre o masculino e o feminino”. Isso não tem relação com sexualidade, e sim a
comportamentos e potenciais cognitivos e sensíveis.
Tal dicotomia sexista é notada no “problema de ser princesa” para as meninas,
que sugere um modelo de vaidade e fragilidade e ainda recai na dependência de um
príncipe. Esse condicionamento do feminino para a submissão e a abnegação, perfil do
qual as feministas contestam em prol da autonomia, é relatado por Ligia: “eu tenho um
problema sério com princesas, mas a Clara se veste de princesa quantas vezes ela quiser
porque eu respeito a escolha dela. Mas, a Clara se veste de ninja, de guerreira, de tudo
(...) ela pode ser o que ela quiser, é uma coisa que eu pratico ativamente”. Uma
liberdade respeitada e um horizonte de referência amplo ofertado, por um
posicionamento familiar feminista, sem restrições mediadas por sexo biológico, assim
como a boneca ainda é, infelizmente, um tabu para educar meninos.
Essa postura de Ligia Sena (2016) como mãe se torna coerente com os ideais
feministas: “uma visão que eu acredito que seja mais democrática. É bem simples,
respeitar o direito de todos de ser quem querem ser, sem agredir ninguém. É feminismo
que eu quero para os direitos humanos, óbvio”. Esse pensamento suscita uma nova
geração capaz de valorizar, como lembra Salvatici (2000), ações de sensibilidade e
cuidado vistas como “específicas do feminino” na mentalidade machista que inferioriza
tais qualidades, para então, valorizá-las como dignidade, valor, força e coragem tanto
quanto os atributos considerados masculinos que devem ser equalizados. Essa é uma
comparação da autora com a resistência afetiva e ativa das mulheres italianas no pós-
guerra, assim como as mães feministas da atualidade que promovem novas educações
familiares ressignificando o feminino e o masculino engessado pelo machismo, a fim de
empoderar mulheres e ampliar possibilidades de educação não sexista.
Considerações Finais
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Provavelmente uma geração feminista esteja em curso, de modo ainda lento e
com alguns retrocessos políticos e sociais, mas possível de ser acreditada e promovida
quando é considerada a expansão de vivências de superação e trabalho pró-ativo como o
relatado por Ligia Sena. Portanto, se hoje existe uma força feminista sendo valorizada
se deve muito às mulheres e às mães que compartilham de uma educação não sexista,
com empoderamento feminino e materno, valorizando o respeito à diversidade e aos
direitos das mulheres. A partir desse contexto de luta social gradativo convicto da
necessidade de equidade sobre questões de gênero e direitos humanos, atualmente é
coerente pensar que há uma geração que já pode nascer e se tornar feminista. Com isso,
constroem-se novos saberes e valores em gerações feministas que promovam uma nova
cultura com políticas familiares cooperantes para as mulheres. Assim, a memória
familiar já pode se inscrever na história como importante parte da formação cultural e
de percepções sobre feminino e masculino que guiam a educação sobre igualdade de
gênero.
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Female, Male and Family Memory
Abstract: The family structure is a fundamental reference in promoting of gender
perceptions and prejudices in society. Through family education it is possible to
perpetuate traditions and moral values, as well as to deconstruct sexist behaviors,
change that demands an answering stance of gender stereotypes. To this, the feminist
values of equal gender rights and opportunities become decisive in identifying the
essentialist family memory of feminine and masculine to undo this base patriarchal
history. In this reconfiguration of unequal gender power relations, it is possible to
promote a new cooperative and less sexist generational education of respect and
appreciation for the diversity of women and men. This is introduced in the present study
through an interview with Ligia Moreiras Sena, a mother woman who identifies herself
as a feminist and is also the founder of the website Cientista Que Virou Mãe. Thus, it is
sought to highlight the importance of family memory and feminism in the experience of
mothers who, for some time, seek to build a new way of educating their families.
Keywords: feminism; generation; gender; memory; families.