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Fenomenologia Volume 1 Número 2

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Fenomenologia e Direito

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  • CADERNOSDA ESCOLA DA

    MAGISTRATURA REGIONALFEDERAL DA 2 REGIO

    EMARF

    Tribunal Regional Federal da 2 Regio

  • REVISTAFENOMENOLOGIA

    E DIREITO

    TCNICA E DIREITO

    Tribunal Regional Federal da 2 Regio

    Volume 1, Nmero 2Out. 2008/ Mar. 2009

  • Esta revista no pode ser reproduzida total ou parcialmente sem autorizao

    Cadernos da Escola da Magistratura Regional Federal da 2 Regio : fenomenologia e

    direito : tcnica e direito / Escola da Magistratura Regional Federal, Tribunal Regional

    Federal da 2 Regio. Vol. 1, n. 2 (out.2008/mar. 2009). Rio de Janeiro : TRF 2.

    Regio, 2008 -

    v. ; 23cm

    Semestral

    ISSN 1982-8977

    1. Direito. 2. Filosofia. 3. Filosofia Jurdica. I. Escola da Magistratura Regional

    Federal (2. Regio)

    CDU: 340.12

  • Diretoria da EMARF

    Diretor-GeralDesembargador Federal Andr Fontes

    Diretor da RevistaDesembargador Federal Cllio Erthal

    Diretor de EstgioDesembargador Federal Luiz Antonio Soares

    Diretora de Relaes PblicasDesembargadora Federal Maria Helena Cisne

    Diretora de PesquisaDesembargadora Federal Liliane Roriz

    EQUIPE DA EMARFLenora de Beaurepaire Schwaitzer - Assessora Executiva

    Carlos Jos dos Santos DelgadoEdith Alinda Balderrama Pinto

    Leila Andrade de SouzaLiana Mara Xavier de Assis

    Lucia Helena de Souza FernandesMargarete de Castro Amaral

    Maria de Ftima Esteves Bandeira de MelloReinaldo Teixeira de Medeiros Jnior

  • Expeditente

    Conselho EditorialAquiles Crtes Guimares - Presidente

    Joo Otvio de Noronha - Ministro do STJAlberto Nogueira

    Andr Ricardo Cruz FontesAylton Barbieri Duro

    Fernanda Duarte Lopes Lucas da SilvaFernando Augusto da Rocha Rodrigues

    Gilvan HansenGuilherme Calmon Nogueira da Gama

    Emanuel Carneiro LeoMarcus Vinicius Machado

    Maria Stella Faria de AmorimRoberto Kant de Lima

    Comisso editorialAquiles Crtes GuimaresAdriana Santos Imbrosio

    Ana Claudia Torres da Silva EstrellaEduardo Galvo de Andra Ferreira

    Marcia de Mendona Machado Iglesias do CoutoNathalie Barbosa de la Cadena

    Editado porEscola da Magistratura Regional Federal da 2 Regio - EMARF

    Projeto Grfico e Editorao EletrnicaLeila Andrade de Souza

    Foto da CapaEdmund Husserl

    ImpressoTribunal Regional Federal da 2 Regio - SED/DIGRA

    Tiragem

    600 exemplares

  • Presidente:Desembargador Federal CASTRO AGUIAR

    Vice-Presidente:Desembargador Federal FERNANDO MARQUES

    Corregedor-Geral:Desembargador Federal SERGIO FELTRIN CORRA

    Membros:Desembargador Federal PAULO FREITAS BARATA

    Desembargadora Federal TANIA HEINEDesembargador Federal ALBERTO NOGUEIRADesembargador Federal FREDERICO GUEIROS

    Desembargador Federal CARREIRA ALVIMDesembargador Federal PAULO ESPIRITO SANTODesembargadora Federal MARIA HELENA CISNE

    Desembargadora Federal VERA LCIA LIMADesembargador Federal ANTNIO CRUZ NETTO

    Desembargador Federal RALDNIO BONIFCIO COSTADesembargador Federal FRANCISCO PIZZOLANTEDesembargador Federal ANTONIO IVAN ATHIDesembargador Federal SRGIO SCHWAITZERDesembargador Federal POUL ERIK DYRLUND

    Desembargador Federal ANDR FONTESDesembargador Federal REIS FRIEDE

    Desembargador Federal ABEL GOMESDesembargador Federal LUIZ ANTNIO SOARESDesembargador Federal MESSOD AZULAY NETO

    Desembargadora Federal LILIANE RORIZJuiz Federal Convocado MARCELO PEREIRA DA SILVA

    Juza Federal Convocada MRCIA HELENA PEREIRA NUNESJuiz Federal Convocado LUIZ PAULO DA SILVA ARAJOJuiz Federal Convocado JOS ANTONIO LISBA NEIVA

    Juiz Federal Convocado CARLOS LUGONESJuiz Federal Convocado RENATO CESAR PESSANHA DE SOUZA

  • SUMRIO

    APRESENTAO ..................................................................................... 13

    O DESAFIO DA TICA HOJE EM DIA ...................................................... 15

    Emmanuel Carneiro Leo

    AS CONCEPES FENOMENOLGICAS ELEMENTARES DO ESTADO E DO

    DIREITO ................................................................................................. 29

    Andr R. C. Fontes

    TCNICA, DIREITO E CRISE DE LEGITIMIDADE ....................................... 41

    Jorge Luis Fortes Pinheiro da Cmara

    O QUE IDENTIFICA UMA UNIO DE PESSOAS COMO COOPERATIVA? ........65

    Guilherme Krueger

    DIREITO, VALOR E TCNICA ................................................................... 87

    Aquiles Crtes Guimares

    A TCNICA E OS VALORES TICOS ........................................................ 99

    Denise Quinto

    GERHART HUSSERL: O JULGAR HOJE, NA PERSPECTIVA

    FENOMENOLGICA ............................................................................. 115

    Adriana Santos e Eduardo Andrea

  • APRESENTAO

    O segundo nmero do volume um dos Cadernos da Escola daMagistratura Regional Federal da 2 Regio - EMARF -, publicaoconveniada com o Programa de Ps-graduao em Filosofia da UFRJ,por intermdio do seu Seminrio de Filosofia Jurdica e Poltica, estdedicado s questes atinentes tcnica e suas relaes com oDireito e os valores na nossa contemporaneidade.

    A aridez da tcnica como um fim em si mesma e sua foradesespiritualizadora do mundo constitui hoje a encruzilhada dadestinao das instituies humanas. E nesse oceano global deincertezas, as instituies mais atingidas so as educacionais ejurdicas, cujas tarefas articulam a transmisso e a interpretao dacultura na concretude da nossa vivncia histrico-social. Nomomento em que o Supremo Tribunal Federal inaugura uma fasehistrica de notvel ativismo judicial, nada mais oportuno do quepensar a tcnica frente aos valores positivados nos princpiosconstitucionais que orientam esse saudvel impulso normativo.

    O Conselho Editorial

  • O DESAFIO DA TICA HOJE EM DIAEmmanuel Carneiro Leo - Professor Emrito da UFRJ

    No aspecto dinmico de sua constituio, toda tica , na

    experincia de todos e de cada um, luta obstinada e sem trguas

    contra as abstraes na conduta individual e social dos homens.

    Por isso, em suas atitudes, os homens contestam, de fato se no

    de direito, toda ao ou reao encarcerada dentro de ideologias,

    sejam do centro, da direita ou da esquerda. Esta ojeriza ao abstrato

    explica, em grande parte, a atrao duradoura que as grandes

    personalidades exercem sobre os homens. que, apesar de todas

    as aparncias, a pessoa o maior esforo para salvaguardar o

    primado do singular no concreto. Em hiptese alguma, porm, deve-

    se confundir singular e concreto com o imediato, com o conhecido,

    com o consciente e/ou o incosciente.

    Esta igualmente uma das origens da descrena humana, se

    no nas instituies em si mesmas, pelo menos numa certa

    presuno das instituies de poder substituir a vida e sua

    originalidade por funes e sua funcionalidade. Entendida apenas

  • O desafio da tica hoje em dia

    16 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    como norma e prescrio, a lei uma poderosa pretenso abstrataque no consegue inspirar totalmente nos homens a menoradmirao ou mesmo um pouco de simpatia. Pois, no sentido denorma e prescrio, toda lei supe e se funda na pior das abstraes:na imposio de um fanatismo igualitrio. E, como todo fanatismo,o imprio da lei se estriba tambm em mecanismos de defesa. Porisso que os atos violentos das diferenas impressionam muitomais os homens, sempre estranhos para si mesmos e para os outros tanto para os outros de si mesmos, como para os outros dos outros do que os estados de violncia da igualdade legal.

    Como seria possvel ao homem renunciar s diferenas, toprofundamente plantadas na raiz de sua humanidade, em favor deum nivelamento montono e repetitivo da igualdade? - Cada umde ns se pergunta, em todo encontro e em qualquer desencontro,se no subsiste alguma conexo essencial e secreta entre o horror abstrao igualitria, estandartizao niveladora e o horror violncia sistmica? E a resposta tem sido sempre uma experinciaassertria, uma reao positiva, embora se trate de um elo nemsempre explcito e reconhecido. E por um motivo bastante simples.O esforo da abstrao de natureza passional e toda paixo gerae provm do abstrato, sempre o indispensvel para sustentar asinstituies e promover a igualdade. Ora, impossvel alicerarqualquer equilbrio ou integrao de foras reais em abstraes,tanto em nvel biogrfico e individual, como em sentido histrico esocial. Esta tambm a verdade profunda da falncia de todaetnarquia, como foi outrora a Sociedade das Naes ou como sohoje as Naes Unidas, a Organizao dos Estados Americanos , aComunidade Europia ou qualquer outra instituio transnacionalou super individual de pretenses polticas.

    Caracteriza toda atitude tica ser polivalente e, nunca, poruma operao dolosa de m f, levar a crdito de uns o que inscreve

  • Emmanuel Carneiro Leo

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 17

    a dbito de outros. Assim, se, de um lado, o homem-bomba, amulher-bomba, a criana-bomba so terrorismo, do outro lado, otanque-bomba, o avio-bomba, o foguete-bomba no o so. Soat tidos e havidos, como legtima defesa contra o terrorismo. Portoda parte vai prevalecendo a convico de que a morte, oassassinato, a destruio podem se transformar em legtima defesada vida contra qualquer ameaa de morte que surja. a ordem dadesordem, a crise radical da tica com que nos sufoca e nosconfunde hoje o mercado, arrogando-se a competncia de supremotribunal de deciso para qualquer valor. Ora a discriminao otrao caracterstico e a marca registrada de certa dogmtica histricahoje ainda muito em voga. Julgam-se com extrema benevolnciaos crimes de direito comum, chegando-se ao cmulo de idealiz-los com justificativas ridculas de vitimizao, enquanto secondenam com toda a severidade os crimes de natureza poltica eideolgica com estigma social. No passado, o difcil, o grandedesafio para todo mundo, tanto indivduos, como grupos, erachegar a ser tico e moral em todas as atitudes e aes. Hoje, no!Inverteu-se a situao, o grande desafio, no mbito da tica, conseguir ser imoral e violar os princpios ticos, chegar a praticarum crime, cometer uma abominao ou tomar uma atitudereprovvel. Pois todos somos vtimas. Ningum pode ser ou sentir-se culpado quando tudo permitido e a permissividade campeiapor toda parte, como o ideal supremo do valor e a liberdade setransforma cada vez mais em licenciosidade, em iseno dequalquer dever ou interdio: liberou geral!

    Vivemos uma aberrao tica. O crime poltico consideradocrime supremo, por ir de encontro e violentar o sentido da histria.Em contrapartida, o crime comum, no interessando pretensamente histria, tratado, como direito universal do homem. Pordesencadear uma virulncia marginal, o crime comum visto

  • O desafio da tica hoje em dia

    18 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    como essencialmente venial, quando no uma virtude social. Assimno de se admirar a simpatia que criminosos inveteradosencontram entre as chamadas elites progressistas, que seconsideram e se tm por revolucionrias. O conformismo daesquerda, os poderosos da esquerda, os bem pensantes daesquerda no so menos reacionrios, nem menos prepotentesdo que o conformismo, os poderosos, os bem pensantes do centroe da direita. O intelectual progressista se julga revolucionrio, por sentir-se inferior ao criminoso, por ter vergonha de sua folha corrida limpa. tido de mente tacanha e mentalidade careta quem continua achandoo roubo ato eticamente reprovvel em si mesmo, qualquer que seja ocontexto social e a condio de vida de quem o tiver praticado.

    A nossa poca d um espetculo de verdadeira m f noabsurdo e de incoerncia no reino dos valores. Do ponto de vistatico, bem e mal no so dois princpios separados que seopusessem, como a imperfeio se ope perfeio.. O bem e omal constituem ambos o mistrio insondvel de toda tica dignadeste nome. Mistrio, porm, no um letreiro de propagandanem uma referncia ao sentimento ocenico da indiscriminao edo indiferenciado, em qualquer nvel que seja. Todo mistrio seordena e sintoniza com uma atitude de meta-tcnica, condio depossibilidade para todos os desempenhos de valor. uma atitudesempre refratria, mas sempre empenhada em determinar escolhase definir decises. O mistrio se faz assim o indeterminveldeterminante de toda determinao tica.

    Ningum sabe os limites do progresso tcnico, mas, em cadaetapa de seu crescimento, todo mundo sabe, com sabor oblquo eincorporado, que o progresso , de sua natureza, opaco para simesmo e obtuso para as condies de suas prprias possibilidades,cego para os valores ticos e para a operao de seus limites.

  • Emmanuel Carneiro Leo

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 19

    aqui que emerge a experincia mais do que lcida, a experinciatranslcida de uma conexo ntima e reciprocamente constitutivaentre tica e mistrio. Quanto mais as tcnicas progridem, tantomais a tica regride em vigncia formativa e em espontaneidadecriativa. O progresso tende a disseminar uma atmosfera desfavorvelpara o exerccio da tica e o vigor da criao. Por isso cresce hojecada vez mais a metamorfose das comunidades em ajuntamento,das sociedades em adestramento, dos grupos em massa. o caldode cultura e da cultura do virtual e dos meios eletrnicos derelacinamento e comunicao de massa. Ora a tica s pode afirmar-se, florescer e viger, fora e contra as massificaes e osautomatismos.

    A criao contra as repeties, o universal contra o abstrato, aoriginalidade contra as reposies, a personalidade contra asmassas, a diferena contra as uniformizaes de igualdade: tal overdadeiro desafio da tica, no contexto sem vio nem vitalidade,em que hoje nos descobrimos inseridos, a cada passo e por todaparte. O apelo de originalidade, que nos trazem a criao, ouniversal e a diferena, interessa tica de nossos encontros edesencontros em nossos empenhos de ser e realizar, tanto o quetemos e no somos, como o que somos e no temos. Aqui, porm,o universal no uma abstrao que vale igualmente de qualquerdiferena e para toda individualidade, por deixar-se reduzir afrmulas de comunicao de massa, suscetveis de veiculaorepetitiva. O universal, que a tica supe e promove, concreto.Ora, este universal concreto se concentra na criatividade do espritoe se realiza no acolhimento das diferenas. Pois todo esprito ou amor e criao ou um nada negativo, descambando para aimposio de esteretipos em estribilho. a mensagem tica quenos deixou a experincia de pensamento radical dos gregos, emcada nvel e em toda fase de seu percurso histrico. Entre amor e

  • O desafio da tica hoje em dia

    20 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    tica no pode haver excluso. Toda vez que se instala uma ciso,ou o amor se degradou em interesse ou a tica se cerebralizou emrepeties abstratas. A massificao provm e se instala na faltadesta integrao. por isso tambm que uma tica para as massas uma bandeira de pirata. Pois s a pessoa pode ser educada. Foradisto, tudo se reduz a treino e adestramento. As massas s podemmesmo ser fanatizadas por abstraes ideolgicas. oamestramento. Toda propaganda visa a garrotear a vida e a substituir-lhe as foras de criao por uma agitao padronizada e automtica.A vitalidade dos tumultos, das rebelies, das revolues s seconserva at s vsperas da vitria e tomada do poder. A partirda tudo so massificaes, e a possibilidade de um homem livrefica na saudade de um ontem cada vez mais sem amanh.

    Que homem livre?

    Como toda pergunta essencial, tambm esta no umapergunta que se possa discutir em abstrato, sem referncia asituaes histricas e s condies da existncia. O prprio dohomem est em realizar-se dentro de uma tradio e arraigado nummundo. Pois bem, no mundo, em que vivemos e na situao histricacom que nos defrontamos, a liberdade se d e chega ao homemde hoje no retraimento e na recusa, como negao e negaceio. Hum sculo, depois de Nietzsche ter anunciado a morte de Deus,um outro anncio se vem impondo, menos proferido numa dennciado que sentido nos murmrios da angstia: o homem est emagonia. No se trata de uma profecia para o futuro. umaexperincia que se faz a cada passo. Dizer que o homem est emagonia no julg-lo ameaado de fora por uma catstrofe ou pelafatalidade de uma destruio gentica de toda espcie. A agoniado homem corresponde a uma angstia muito mais radical. Equivalea reconhecer que as possibilidades de eliminao da vida na terra

  • Emmanuel Carneiro Leo

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 21

    brotam das profundezas ontolgicas do prprio modo de ser dohomem. Hoje j no possvel esconder o elo intrnseco de ligaoque prende o progresso violncia. Esta pertinncia recprocadistingue e caracteriza a situao da tica em nossos dias.

    O desafio da tica hoje no est em transformar-se numa ticada situao. Toda tica da situao inclui uma abstrao nevoenta.O desafio concreto da tica est em entregar-se toda espera doinesperado. Uma espera que vive e vivifica a vida do pensamento.Pois pensar, como pensam os pensadores, no conhecer comoconhecem os conhecedores. , perseverando na espera doinesperado, deixar-se transformar pelo vigor originrio do nosaber. Trata-se de tarefa difcil. Uma ascese rigorosa se impe e umesforo continuado se recomenda: a ascese de se despojar de todapresuno de ser e o esforo de renunciar a toda pretenso de jsaber o futuro. O que quer que ainda venhamos a ser, ns j somos,embora sem t-lo em nosso poder. Tudo que ainda est por vir, nsj somos, embora sem o saber, de vez que estamos sempreempenhados num empenho de ser e num esforo de realizao.

    Mas o que assim se nos prope no mera tarefa de tomarconscincia. Toda conscincia um modo de ter. sobretudo umdesafio histrico de desempenho de ser. S fomos o que somos,s somos o que havemos de ser, na medida em que nuncaconseguimos ter tudo que nos dado ser. Nossa dificuldade radicalno est, nem no futuro, nem no passado. Est no presente. Oesprito do presente no apenas a presena; tambm a ausnciado pensamento. As pretenses com o futuro e as saudades dopassado nos atropelam o esforo do presente. Somos sempre seresdo instante, como nos vem recordando ao pensamento a OitavaOde Ptica de Pndaro, h mais de vinte sculos:

    Seres de um dia: o que ser algum?

  • O desafio da tica hoje em dia

    22 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    O que ser ningum? Um homem,

    sonho de uma sombra

    Com nos trazer desafio e provocao, a situao atual da ticadesmascara tambm uma presuno: a presuno da razo dedominar e ter em mos o prprio ser, a prpria realidade. Umatentativa, sempre de novo ensaiada, mas sempre de novo frustrada.E por que? Porque a razo nunca pode ser nova. Foi, e sersempre velha. O seu tribunal o supremo tribunal da repetio demoldes e do estribilho de modelos. E por que? Porque, por suaprpria natureza, a razo impe padres e exige a observnciaestrita de paradigmas. Ora, modelos e paradigmas estabelecemregras, prescrevem normas. E como um processo normatizador podeaceitar o novo? Por sua prpria natureza, a razo produzconhecimentos. E como pode o j conhecido ser novo? Por suaprpria natureza, a razo traz consigo o passado. E como pode oque j foi e passou instalar o novo? Toda derivada contnua. Tudo,que a razo carrega, acarreta o velho, to velho, que no pode nemmorrer nem viver. Ora, para nascer o novo, necessrio acontradio de viver e morrer ao mesmo tempo a cada instante. oque nos convida a pensar com nosso prprio ser o epitfio de RainerMaria Rilke:

    Rose, oh reiner Widerspruch, die Lust niemandes Schlaf zusein unter so vielen Lidern

    Rosa, pura contradio: a volpia de ser o sono de ningumdebaixo de tantas plpebras!

    Quando se conhece uma situao ou se percebe umaconjuntura, elas no so mais, j passaram. Todo real umarealizao incessante que no se repete mais. Trata-se de umapalavra, que, uma vez pronunciada, j no se pode dizer outra vez.O que se nos afigura repetio nas realizaes do real no passa

  • Emmanuel Carneiro Leo

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 23

    de um efeito tico da razo. Para poder oper-las em apresentaes,a razo paralisa em abstraes suas representaes e acha que,com tais ferramentas, conhece e controla o real. Mas justamente aparalisao torna a razo velha. Um clculo e um padro, umparadigma e uma amostra, um modelo e uma representao nuncapodem ser novos. que, por nunca poder ser originria, mas porfuncionar sempre em derivaes, a razo no cria nada de original.Sua fora derivar, seu poder , como todo poder, repetir-se emdedues, sejam formais, sejam transcendentais, sejam empricas.E, na linhagem das repeties, trata-se de um poder sem fim nemlimites. No gnero de sua ao, a razo pode tudo. A razo s nopode pensar e criar, porque, para tanto, preciso encontrar-se coma jovialidade das realizaes do real, renunciando a todo controle,respeitando o mistrio da realidade e deixando vir ao encontro ofrescor e o vio, a juventude do novo.

    que, para se deparar com o novo, h de se abandonar a simesmo todo paradigma de desdobramento e deixar ser todoparmetro de derivao. Gerar paradigmas e construir parmetros,para neles tentar enquadrar o real, a grande presuno da razo.Por isso somente desfazendo-se de toda pretenso que os ouvidosse abrem para o inaudito e os olhos se liberam para o invisvel. Aboa viso no a que v tudo que visvel. Esta a viso racional.A boa viso a que v o invisvel em tudo que visvel. Suave, amelodia que se ouve, criadora, a msica, que no se ouve, mas seescuta em toda melodia. para esta experincia criativa que nosconvida todo empenho tico pela tica.

    Certa vez Nietzsche escreveu que feliz e bem-aventurado no quem no v e cr, como est no Evangelho de So Joo (felizesos que no tendo visto, tm crido). Para Nietzsche, feliz e bem-aventurado quem v e ainda assim no cr. Pois bem, para sepensar a crise da tica hoje, necessrio, num mesmo el de ser,

  • O desafio da tica hoje em dia

    24 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    tanto ver e crer, como ver e no crer como crer e no ver. Todos osmtodos e todos os esforos da tica, ao longo destes dois milniose meio de Histria Ocidental, nada mais fizeram do que desprendero homem de todas as pretenses e deixar emergir a integridadede sua conduta na irrupo inesperada da realidade nas realizaesdo real. Em cada ao e/ou omisso de todos ns, luta e se empenhapor chegar a si mesma uma nica experincia: a saber, o homemtem de conquistar-se, deixando ser as virtualidades de sua prpriahumanidade. Por isso, a todo momento, deve abandonar tudo eser abandonado por tudo, a fim de se recuperar e se recolocar, emcada situao, de maneira sempre mais livre. Nenhuma ideologiaserve liberdade, supe e encoraja a tica. Pois a essncia dequalquer ideologia sempre discriminar e excluir tudo que lhe diferente e contrrio. Deve, portanto, despir-se de toda ideologiaquem quiser remontar ao ponto de origem de uma realizaolibertadora. Aqui tambm valem as palavras do Evangelho em Lucas17 , 33 quem quiser conservar sua vida perd-la- mas quem aperder h de ger-la de novo. Todavia, ger-la de novo, como? no de certo, na monotonia das repeties, nem num vazio cheiode aspiraes e desejos e sim pelo encontro com o inesperado naliberdade de ser e transformar-se. a experincia a que nos remetetoda eloqncia de pensamento da expresso grega: gerar a vidade novo. S alcana o fundo de si mesmo e s pensa asprofundezas da tica na existncia quem deixar tudo e for deixadopor tudo, aquele para quem tudo desapareceu e se viu a ss com onada. o passo constitutivo da postura do filsofo, em todo homem,que, de certa feita, Plato comparou com a morte: empenho damorte, uma das definies platnicas da filosofia.

    A histria da humanidade se move em ciclos de vinte e cincosculos. A cada dois milnios e meio se fecha um ciclo, se atingeum clmax e se instala um fim. o instante propcio para se

  • Emmanuel Carneiro Leo

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 25

    transformar e ser mais livremente o que somos. Pois tudo se tornafludo e nada se fixa. Os velhos padres se esboroaram e os novosparmetros ainda no se instalaram. Aparecem, ento, mais clarasas limitaes da razo e se fazem mais sensveis as perdas daracionalidade. O mundo todo entra em transio e sente anecessidade de passar. Dois mil e quinhentos anos atrs, surgiramBuda na ndia, Lao-Tzu na China, Zaratustra na Prsia, os Pr-socrticos na Grcia.

    Hoje em dia, estamos de novo nos interstcios da histria, depassagem para outro dia histrico. Todos os parmetrosdesvaneceram, todos os valores se gastaram, todos os princpiosperderam fora. Vivemos num estado fluido, elstico, malevel. Ovelho j no tem importncia. O passado enfraqueceu seu poder eo futuro ainda no chegou de todo. Estamos num intervalo histrico. tempo de transformao. dia de libertao. Por isso toda ticaest em crise de fundamentos. Impe-se uma mudana deprincpios, urge uma transformao de paradigmas. Na experinciahistrica de Nietzsche, comea a descida de Zaratustra, paraanunciar o super-homem, der ber-mensch. No prlogo doprimeiro livre de Also sprach Zarathustra, escreve Nietzsche comletras de sangue:

    Queria presentear e distribuir at que os sbios entre oshomens se tenham alegrado de sua loucura e os pobres entreos homens se tenham alegrado de sua riqueza. Para tanto,tenho de descer ao fundo, como tu fazes no fim do dia,quando afundas no mar e levas luz para o mundo de baixo,tu, astro acima de qualquer riqueza.

    nesta ambivalncia de uma passagem histrica e de umatransio paradigmtica que temos de aprender a conviver numverdadeiro vazio, num vazio esvaziado de toda pretenso de valore de valores, de decidir e decises, de ser e de essncias, de ordem

  • O desafio da tica hoje em dia

    26 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    e ordenaes. neste aprendizado que nos chega o desafio datica nos dias de hoje. Justamente porque nos devemos aventurarna grande e longa misso de construir um mundo verdadeiramentenovo, temos de aprender novamente a pensar, radicalmente, novo.E temos de aprend-lo de modo ainda mais rigoroso do que todasas pocas anteriores e ticas passadas. Pois somente o pensamentomais radical nos pe diante do que h de extraordinrio nestedesafio e h de preservar-nos contra uma exploso de merarepetio e estril imitao.

    O que se trata de ultrapassar hoje neste desafio radical da tica,o que se tem de esperar agora radicalmente no determinadainterpretao do sujeito. determinar o homem como sujeito. Estadeterminao caracteriza os tempos modernos e hoje alcana, naexpanso essencial da tcnica, uma fora planetria. to profundoseu vigor histrico que permite concepes diferentes e at contrrias,reivindicar, com o mesmo direito, a linhagem da modernidade.Idealismo e realismo, materialismo e espiritualismo, racionalismo eexistencialismo, capitalismo e socialismo tm em comum necessidadehistrica de no se desenvolverem nem se afrontarem senoplantados no sol,o de um mesmo niilismo, em que o mistrio darealidade e do realizar-se no tempo j no nada e o nada se reduzsempre a algo simplesmente negativo, a mera ausncia de qualquercoisa. Centro de um mundo quase que s feito de sujeitos e deobjetos, de funes e operaes, de dispositivos e disjuntores, aarmao da tcnica se vai tornando o fundamento comum de todosos sistemas e organizaes modernas, a alavanca de todo humanismocristo, ateu ou indiferente, a meta de todas as revolues, sejamcapitalistas ou comunistas.

    No imprio das funes politnicas, o desafio da tica nosfaz sentir hoje a urgncia de se pensar a questo de fundo de toda

  • Emmanuel Carneiro Leo

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 27

    a existncia atual: ser mesmo que continuaremos prisioneiros dainsurreio da tcnica e condenados para sempre a desenvolver,sem nem mesmo pressentir, suas conseqncias monstruosas? Ouos tormentos que nos atormentam nas tormentas de hoje nopodero vir a transformar-se de repente no preldio, por maisdoloroso que seja, de uma nova aurora dos dedos de rosa ou nofnix de uma outra ressurreio? com estas esperanasanimando-nos o pensamento que somos chamados a assumir odesafio da tica nos dias de hoje.

  • AS CONCEPESFENOMENOLGICAS ELEMENTARES DO

    ESTADO E DO DIREITOAndr R. C. Fontes1

    O Direito pressupe o Estado, que, por sua vez, pressupe asociedade; e a sociedade, por fim, pressupe o indivduo. Esse erao postulado sobre o qual se assentavam as concepesconsolidadas entre Estado, Direito e indivduo, no Sculo XIX, porocasio do surgimento da Fenomenologia.

    No sculo do liberalismo, a compreenso do Direito e doEstado no poderia ser reputada completa se no fosseconsiderada a relao de interdependncia e integrao entreeles, j que nem o Direito estaria fora ou acima do Estado, nem oEstado poderia ter forma, organizao ou fazer atuar a sua prpriavontade, sem o Direito.

    1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Desembargador doTribunal Regional Federal da 2 Regio (Rio de Janeiro e Esprito Santo).

  • As concepes fenomenolgicas elementares do Estado e do Direito

    30 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    Por outro lado, no se poderia conciliar a evoluo dopensamento contemporneo com a afirmao universalmenteaceita, de que seria a chancela do Estado que norteia os destinosdo Direito. A afirmao trivial de que os Estados empenham-se emaperfeioar os direitos fundamentais de seus integrantes, em umaarena no-estatal, no se sustenta. Essa concepo desautorizadapor expressivos estudos filosficos, que desencadeiam certezacientfica de que um no precede o outro. Em torno dessacompreenso, impositivo reconhecer que a relao entre o Estadoe os direitos fundamentais no de causa inspiratria ou ideal,mas, ao contrrio, operante e material, de modo que oreconhecimento objetivo e causal desses fenmenos independenteda vontade e do reflexo mais ou menos fiel da chamada conscinciado homem. Os mais idealistas at poderiam negar umcondicionamento necessrio com a realidade e, muitas vezes,deduzem motivos de conscincia, a razo, ou mesmo a ao deforas sobrenaturais e naturais, como verdadeiramente era de seesperar, pelo resultado imediato e direto do mundo objetivo. Mas,o reconhecimento de que os direitos fundamentais soindependentes das atitudes engendradas pelos Estados prevalececomo causa finalis autntica de todas as coisas.

    Os antigos romanos j haviam se deparado com a questo e,pautados pela sua perspectiva prtica e objetiva, conceberam oconceito de jus (vocbulo reconhecido como Direito), muito antesde qualquer formulao objetiva sobre a idia de Estado. E osgregos, que no conheceram aquilo que entendemos por Direito,no deixaram de estruturar uma idia do justo. Recorde-se, ademais,que os gregos no ignoravam a idia de polis, a cidade-estado,termo equivalente a civitas dos romanos. sabido que o conceitode Estado, no sentido contemporneo do vocbulo, o de sociedadepoliticamente organizada, de origem recente, pois foi idealizado

  • Andr R. C. Fontes

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    e divulgado pela pena de Maquiavel (1469-1527). Maquiavel iniciousua obra prima, O Prncipe (1513), com a seguinte proposio: Todosos Estados, todos os domnios que tm havido e que h sobre oshomens foram e so repblicas ou principados.

    atual a idia de que o Estado um complexo poltico, sociale jurdico, que envolve a administrao de uma sociedadeestabelecida, em carter permanente, em um territrio dotado depoder autnomo, com uma nao encarada sob o ponto de vistade sua organizao poltica, servida pelo Direito.

    E nesse processo de desenvolvimento que o individuo visto muito mais como fator humano, do que como uma unidadede pressuposio. a sua generalidade integral e integrada que pro indiviso; uma organizao social, reunida em um s embrio,retiraria do Estado o raio de ao esperado na sua formao. Apeculiaridade fenomenolgica dessa frmula exigiria um acrscimo:o de que o indivduo pressupe a conscincia. Essa conscincia no a do povo, que somada s necessidades sociais, levaria o Direito asempre responder s suas exigncias, mas aquela identificadaintuicionalmente, como um centro de referncia, a dar ao sujeito acompreenso pura de um objeto que ele pretende conhecer.

    O esclarecimento fenomenolgico do sujeito atribui sentido sua prpria existncia e afasta a idia de que ele seria, apenas,mais um ser no mundo. Ao contrrio, o sujeito que permite que omundo seja concebido. E isso ocorre pela estrutura fenomenolgicada chamada conscincia intencional. A conscincia a que nosreferimos aquela que sempre conscincia de algo, de modoque o pensar no acerca de mim ou de como percebo o livro,mas, diversamente, o pensar (ou a conscincia) do livro ou deoutro objeto imaginado. O aperfeioamento da conscincia queenumeramos est assentado nessa relao intencional entre o

  • As concepes fenomenolgicas elementares do Estado e do Direito

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    sujeito que pensa, que conhece, e o objeto conhecido. Devemosconcentrar nessa premissa toda a nossa ateno, porque est nelaa base e o desenvolvimento da Fenomenologia.

    A conscincia no um repositrio de informaes, tal comouma caixa fotogrfica, mas conscincia de algo. Podemosconsiderar na crena da intencionalidade da conscincia que elavisa a um objeto que no ela prpria, e que tambm no podeestar contido nela. A isso se atribui o carter de ser a conscinciatranscendente. Ou seja: a conscincia no um dentro, umaintimidade; mas, sim, um foco de luz, um raio que ilumina a coisa,levando-a a patentear-se com a sua significao prpria. O mundoexiste para e pela conscincia significante. Os objetos identificadospela conscincia constituem regies do ser (objeto matemtico,fsico, ser vivo, ser cultural, incluindo o ser psquico), que deveroser, sistematicamente, explorados, segundo o mtodo eidtico.

    A conscincia pode apreender-se a si mesma comoconstituinte, isto , no seu ato que consiste em atribuir um sentido,em constituir um mundo dotado de uma significao. AFenomenologia descobre, ento, as estruturas transcendentais daconscincia, o que est presente em todo ato que representa omundo. E o emprego dessa experincia tem o significado muitoimportante e especial de tornar o sujeito absolutamente irredutvela um contedo da conscincia, e, nesse sentido, o sujeito passa aser uma pura fonte de iluminao. A atividade intelectual atravsda qual o sujeito suspende toda afirmao realista sobre o que lhe dado, e, por isso, sobre o todo transcendente, chama-se reduoe leva a considerar o sujeito como origem da significao. Essatendncia da Filosofia husserliana classificada sob a denominaode idealismo transcendental.

    O marco do que se poderia chamar de estratgia fundamentalde Husserl foi o de elevar a Filosofia ao patamar de uma cincia

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    rigorosa. Essa iniciativa afigura-se apropriada e compatvel com aformao de Husserl, antes de tudo um matemtico. E a maneiraque ele encontrou para esse fim foi a de pressupor oestabelecimento de uma base segura, liberta de todas aspressuposies, e buscar a suprema fonte legtima de todas asafirmaes, mediante uma conscincia doadora originria, deavanar para as prprias coisas; esse processo ficou conhecidocomo o retorno s prprias coisas. Foi decisiva para a idia de Husselfazer uma cincia realizada em virtude de evidncias ltimas, asquais o sujeito encontraria e poderia chamar de justificaoabsoluta. Na formulao da nova cincia, partiu Husserl doimediatamente dado na conscincia, isto , aquilo que conhecemospor fenmenos. Esse poder que a conscincia possui para superara si mesma e para pretender o objeto o conceito daintencionalidade, um dos principais legados de seu professor FranzBrentano, que se reportava filosofia medieval e, finalisticamente,a Artistteles. Por essa perspectiva, fenmeno seria o aspecto doobjeto presente e atual na conscincia, em uma experinciaqualquer. Por essa razo, Husserl distinguiria duas espcies deexperincias: a sensvel e a fenomenolgica.

    A preocupao, consistente na anlise das concepes dapoca, tornou-se a base do que se queria propor. que a ditaexperincia sensvel tem por objeto as cincias particulares, muitoem voga na poca, ao passo que a experincia fenomenolgicatem por objeto a essncia ou, como Husserl preferia denominar, oeidos. A apreenso imediata de uma essncia ou eidos realiza-sepela intuio, que, desse modo, denomina-se eidtica ou essencial.Para ir at as coisas preciso suspender o assentimento em tornode tudo aquilo que no seja plenamente evidente. Ora, a atitudenatural do homem inclui muitas convices, necessrias vidaquotidiana, mas no plenamente evidentes. Essas convices,entretanto, no so to consistentes de modo que possam ser

  • As concepes fenomenolgicas elementares do Estado e do Direito

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    estabelecidas como fundamento de uma Filosofia que pretendeser, no uma bela construo, mas uma cincia rigorosa, queprecisar pr em prtica a sua posio terica para eliminar essespreconceitos. A definio da Fenomenologia como cincia descritivados fenmenos equivale, pois, cincia descritiva das vivncias daconscincia ou cincia eidtica descritiva das essncias.

    Husserl estabelece a diferena entre as cincias de fatos ouempricas e as cincias de essncia ou eidticas. Aquelas sefundamentam na experincia sensvel, tm por objeto o real e soa posteriori; essas ltimas baseiam-se na experinciafenomenolgica ou na intuio, tm por objeto o ideal e so a priori.Para Husserl, isso significava superar o Empirismo e o Kantismo deseu tempo, em todas as suas vacilaes e indecises.

    O mais importante na anlise fenomenolgica que nela ficasolidamente estabelecida uma converso intelectual, de modo ahaver um abandono da atitude natural de considerar a realidadesensvel. Numa primeira vista, importante assinalar que esseabandono refere-se mais percepo simples de algo objetivo econcreto, do que ao pensamento ou ao juzo a respeito do que nos dado. Os fatos, as realidades naturais, os acontecimentos reaisque tm uma existncia efetiva no mundo espacial-temporal,concebidos como ominitudo realitatis, so restitudos a umaautoridade diversa pela Fenomenologia: so reduzidos suaessncia. O desenvolvimento do nosso processo emancipador doconhecimento no est em um juzo concreto de um homem, masno contedo desse juzo, na sua significao, que pertence, semdvida, a uma ordem ideal.

    O amplo emprego desse desenvolvimento seria umasuspenso da afirmao espontnea de existncia do mundo. No que essa existncia seja negada, mas o juzo que a considera

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    reservado, retido, situado entre parnteses no mundo; e, com ele,todo o sistema de cincias terreno universal onde elas sealimentam. Com a reduo eidtica, procura-se atingir o dadofenomenolgico puro. Consiste, pois, em pr a realidade entreparnteses ou deixar suspensos os juzos de realidade, para que arealidade do mundo natural no entorpea a descriofenomenolgica. Tal processo chama-se epoqu e com ele no senega o mundo natural, nem se pe em dvida sua existncia. Aepoqu caracteriza-se por no tomar posio diante do problemada realidade e por no se imiscuir na questo realismo-idealismo.

    Correlativamente, o sujeito imagina que este mundo assimreduzido no o eu emprico, seno o eu puro, o sujeitotranscendental. Esse eu no fica ante uma pura negao, pois areduo deixa subsistir o mundo, no como existncia, mas comosimples fenmeno, como um objeto cujo ser se confunde com asua apario. O mundo se converte, assim, em um fenmeno domundo, pode ser ele o objeto de uma cincia rigorosa, ao se referirsomente ao que absolutamente dado. E essa cincia tem pormisso descrever a conscincia pura, nas diversas formas em quese pretende seus objetos, quer dizer, dar-lhes um sentido.

    Todo estado de conscincia , em si mesmo, conscincia dealguma coisa, seja qual for a existncia real desse dito objeto.Existem variedades na relao intencional: ser juzo, dvida,previso, esperana, desejo, dentre outros, mas a margem do tipode intencionalidade, o termo pretendido existe somente por e paraa conscincia. Falando-se presente o objeto da conscincia que opretende sob a exclusiva forma de significado, a intencionalidade assimilvel a uma doao dos sentidos, de modo que todaconscincia do mundo impe um sentido ao mundo.

    A Fenomenologia quer ser ento a cincia universal daconscincia intencional e de suas variedades especficas: assinala-se,

  • As concepes fenomenolgicas elementares do Estado e do Direito

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    assim, a tarefa de pr de manifesto no s a essncia dos diversostipos de objetos intencionais, mas tambm a essncia dos atos queos pretendem, como, por exemplo, o eidos da percepo, assim comoo eidos do objeto de percepo enquanto tal. o lugar central deuma cincia eidtica, que versa, exclusivamente, sobre essncias.

    A essncia e o sentido dos atos e dos objetos o feixepermanente dos predicados que, necessariamente, incidem e semos quais no seriam eles mesmos, por exemplo, percepes ouobjetos de percepes. tambm uma unidade de sentido objetiva,de espcie ideal, que determina as fronteiras do possvel e pode,ento, ser dita a priori por relao com as realidades empricas. Pormais que a essncia seja de espcie ideal, a intuio que capta podeser assimilada com a percepo sensvel: podemos ver as essnciasto imediatamente como os objetos individuais. Existe, assim, umaintuio eidtica: uma intuio doadora original, que capta aessncia em sua individualidade metafsico-corporal. Essa intuioeidtica supe a reduo fenomenolgica. A reduo eidtica,mtodo que trata de determinar as habilidades constitutivas de umaessncia, imaginada sucessivamente em uma experincia mental,no permita j calibrar dita essncia em sua especialidade.

    Compreende-se que, vista desse esquema, Husserl tenhasubtrado a necessria vinculao entre a Fenomenologia, tal comoele a concebeu, e o idealismo. Se o princpio do regresso s coisasmesmas parece inicialmente realista, sabemos pelo que foi dito,que a reduo fenomenolgica e do fenmeno do mundo daimanncia que fica aqui no se incorpora de modo algum. AFenomenologia objeta todas as constataes na intuio puramenteimanente e probe rebaixar a esfera do que dado em pessoa intuio. Husserl tenta construir todo o pensamento a partir do eupuro. Embora os pensamentos no sejam produtos do pensar, nemestejam neles contidos, so, todavia, dados do pensar. Isso significa

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    que, h, pois, uma relao que os une e essa relao que os une justamente a intencionalidade. A intencionalidade se manifestana conscincia, que se v obrigada com ela a se empregar, de modoque a simples anlise de querer conhecer algo significa conheceralguma coisa.

    Algo sempre algum objeto conhecido. O sujeito, ou melhor,o eu quem o conhece. O conheo ou o conhecer a conscincia.A conscincia consubstancia um simples conhecer (do latim cum +scientia = com conhecimento). O conhecer um simples ato, avivncia, que jamais se confunde, nem com o objeto, nem com osujeito. Um passo importante nessa compreenso o de que ficasolidamente estabelecido o carter bipolar da vivncia intencional: osujeito aparece como essencialmente voltado ao objeto, e o objetocomo essencialmente dado ao sujeito puro. Quando estamos dianteda realidade o que nem sempre o caso, porque um ato intencionalno necessrio para o ser da conscincia pura por outro lado, omundo das coisas transcendentes depende totalmente daconscincia atual. A realidade essencialmente privada deautonomia, carece de carter do absoluto, e somente algo que, emprincpio, no seno intencional, cnscio, algo que aparece.

    Muitos viram a Fenomenologia como uma via para o idealismoe acreditaram que poderiam pr a Fenomenologia a servio daontologia do conhecimento do ser, tal como ele . A determinaoontolgica deve ser utilizada, por via de conseqncia, pela correnteque mais se debruou na compreenso dos objetos: aFenomenologia. A partir do retorno s prprias coisas, constitui elaa verdadeira forma tcnica e rgida de bem compreender o objetosubmetido anlise. possvel com ela, de forma mais pura, aferir-se o contedo inteligvel ideal dos fenmenos, a partir de uma visoimediata, destinada busca da sua essncia. A Fenomenologia no

  • As concepes fenomenolgicas elementares do Estado e do Direito

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    desembocou no idealismo transcendental dos neokantianos,porque no reduziu objetos a leis formais e admitiu umapluralidade de sujeitos, ao rechaar o que poderamos concebercomo categorias.

    O estar no mundo, a experincia da mundanidade inexorvele faz parte da existncia humana. neste mundo em que vive ohomem. E este mundo pertence tambm ao Direito. Negar que aatitude natural e o mundo da vida quotidiana sejam o ponto departida da investigao filosfica no significa desvalorizar o sabercientfico. Pr entre parnteses a convico de que debaixo dosmeus ps h um assoalho que me sustenta, no significa que euesteja me agarrando, desesperadamente, s vigas do teto para nocair; do mesmo modo, pr entre parnteses as concluses dascincias no significa rejeit-las, significa, simplesmente, que elaspressupem o mundo da vida quotidiana. Ao declarar que o homemvive no mundo e que esse mundo pertence ao Direito, no se devequerer que a apreenso do Direito se faa da mesma maneira quea captao das coisas naturais. O mundo das coisas naturais, emque vive o homem, orientado para um acabar-se no tempo, tudoquanto lhe dado no mundo natural perecvel. A autoridade dotempo e da perenidade, como expresso suprema do porvir, nopermite que o direito queira se valer para sempre e s pode serdado ao homem sobre a base de um comportamento quetranscenda o mbito do vivido, constitudo pela conscincia naturaldo tempo e que tenda a uma radical destemporizao. O espaoque um dia Einstein formulou pressupe o espao da experinciacomum, pois as teorias de Einstein encontraram conformao nosexperimentos de Michelson, que supe aparelhos que so coisasexistentes no mundo. A esfera prpria da natureza comea almdo dado da experincia comum e consiste na interpretao dessedado e, na interpretao do dado, as cincias da natureza procedem

  • Andr R. C. Fontes

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    de forma crtica, rigorosa; isto , procedem de forma crtica aoestabelecer leis e teorias que permitam prever e dominar os fatos;mas aceitam o dado ingenuamente, ou seja, no perguntam seesse dado corresponde realidade ltima, incontestvel. A Filosofia,ao contrrio, enfrenta esse problema, e, por isso, suspende,inicialmente, o assentimento quilo de que se pode duvidar.

    O Direito obra da vontade, algo operado volitivamente; ,a seu turno, uma grande vontade operante, a voluntas populi. ODireito descansa sobre a vontade reconhecedora de normascorrespondentes das pessoas que dele participam. So justamenteessas pessoas, esses, por assim dizer, consortes jurdicos, as forasque logram e criam as grandes perspectivas e cobram daFenomenologia a construo do Direito e do Estado sobre a intuiodas essncias.

  • TCNICA, DIREITO E CRISE DELEGITIMIDADE

    Jorge Luis Fortes Pinheiro da Cmara*

    Introduo

    Dentre os temas que ocupam com assiduidade o cenriojurdico nacional se encontra o da dita crise da justia. Temaenfocado diretamente por Calamandrei em seu famoso opsculohomnimo1, recebe tratamento diferenciado conforme a abordagemque se faa. Uma das abordagens mais usuais tem sido inserir aquesto na perspectiva da funcionalidade do direito. Com isso, porexemplo, no campo processual, este tema vem constantementeassociado a noo de implementao de uma efetividade da tutelajurisdicional em substituio ao paradigma patrimonialista, ou aindaa uma celeridade na prestao. Em todas as reas do sistema jurdiconormativo (ordenamento) existem reformulaes mais ou menosradicais sendo levadas a efeito. Estas reformulaes no so meras

    * Professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutorem Filosofia pelo IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro1 A crise da justia. Piero Calamdrei. 1 edio. Porto Alegre. Editora Lder. 2002.

  • Tcnica, direito e crise de legitimidade

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    adequaes sistmicas. Em sua maioria atingem aspectos essenciaisde cada rea. O certo que a todas estas questes subjazem duasindagaes fundamentais: H efetivamente uma crise defuncionalidade no direito? Qual o fundamento desta crise?Conforma inicialmente estabelecido, h uma evidente relao destacrise com a percepo do direito por parte da sociedade. Afinalquestes como efetividade, celeridade, justia, etc ... que permeiamas crticas mais comezinhas, so detectveis, sobretudo no mbitoda expectativa mantida pela sociedade em relao ao direito. Talse d por envolver questes que, embora atingindo o mago doque seja o fenmeno jurdico, tem seu nascedouro fora destembito, na relao que o direito mantm com os destinatrios finaisdo ordenamento, os setores da sociedade organizada, os membrosdesta sociedade e as expectativas e anseios que so nutridos porestes. O presente artigo visa, primeiramente, situar de forma claraa referida crise, estabelecendo seu fundamento. Nodesenvolvimento buscar-se-o critrios de verificao que confirammaior rigor cientfico as proposies, at o momento algoespeculativas, sobre o fenmeno. concluso devero estardelineados critrios que apresentem maior rigor na aferio deaspectos relevantes do acontecer do direito em sociedade.

    Identificando uma crise no direito

    O delinear da crise encontra-se na relao que o direito,assumido enquanto sistema autopoitico2, estabelece com a

    2 Num plano geral a teoria dos sistemas autopoiticos tenta descrever o modo de funcionamentode todos aqueles sistemas que produzem a si mesmos, ou seja, que (i) definem a sua identidade poroposio ao exterior (ambiente) e definem as das (sic)transaces entre sistema e ambiente; (ii)constroem os seus prprios elementos; (iii) constroem a gramtica do seu prprio ciclo defuncionamento; (iv) constroem a (meta)gramtica que comanda as transformaes da primeira, deciclo para ciclo (i.e., no plano do hiperciclo). antnio Manuel Hespanha Panorama histricoda cultura jurdica europia. Sintra Portugual. Publicaes Europa-Amrica. Pgina 260.

  • Jorge Luis Fortes Pinheiro da Cmara

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 43

    sociedade e com os perfis que esta sociedade passou a adotarcontemporaneamente. Sendo por princpio o sistema jurdicopositivo autnomo e pretensamente plenificador em suas alocuese seu sentido tcnico geral, seu papel ante a sociedade, dar-se-iaem termos de regulao e funcionalidade3, justificando-se assim,tanto sua existncia quanto sua incidncia na(s) funo(es) ques-lhe fossem atribudas.

    Em seus primrdios, o direito cumpria apenas uma funo depacificao, ou seja, evitar conflitos agindo em substituio daspartes envolvidas na aplicao das normas jurdicas. Posteriormentea regulao passou a constituir um dos ncleos da funo normativado direito. Porm com a propagao dos modelos de cidadania ejustia auridos na democracia representativa dominante no mundoocidental, agregaram-se a estas funes outras, tais como a deestabelecer as condies necessrias ao desenvolvimento plenodos membros das sociedades. Surgem com isso as chamadasconstituies dirigentes que conferem grande valor aos objetivosde mudana social e econmica4. Nestas os agentes do poderconstituinte originrio submetem os futuros governos realizaodos princpios constitucionalmente aventados para a transformaoda sociedade5. Com isso cidadania, justia social, igualdade,dignidade adquirem o status de preceitos constitucionais aplicveis,em detrimento de uma percepo puramente programticaanteriormente vigente.

    Com o advento deste tipo de constituio, passou a ser lugarcomum a questo da aplicabilidade de princpios constitucionais,de garantias fundamentais, e de valores imutveis (as chamadas3 Com isso quer se dizer que o direito no representa aspecto ontolgico em relao a sociedade. no reconhecimento de sua funcionalidade ante ela que o direito relaciona-se com a mesma. Se, porhipteses fosse suprimida o papel desempenhado por ele ante a sociedade, indagar-se-ia,inevitavelmente sobre: por qu o direito existe?4Zimmermann, Augusto. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro Editora Lmen Juris,2002. Pgina 114.5 Idem.

  • Tcnica, direito e crise de legitimidade

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    invariantes axiolgicas de Reale)6 na tentativa de implementaoconcreta de uma justia efetiva e no mais meramente formal.Regras claras e direitos definidos tornaram-se mesmo requisitosde racionalidade normativa inerente a ordem mundial regida porConvenes e Tratados protetores dos diversos aspectos em quese desdobra a existncia do homem na sociedade globalizada.Contudo, o implemento de demandas desta natureza, mormenteem um Pas ainda tbio quanto aos sentido de republicanismo,cidadania e responsabilidade, inevitavelmente resultam em umadissonncia entre a pretenso jurdica abstrata e a prtica socialocasionando com isso a dita crise.

    O problema constatado como inerente ao direito se d emseu mbito concreto pois se apresenta na incidncia concreta dasnormas abstratas assim inscrevendo-se no campo da funcionalidadedo direito. De forma que, sem dvida, na funcionalidade do direitoapresenta-se o ponto central da crise e, apenas por conseqnciadesta, reflexamente, coloca-se a questo da prpria validade dodireito brasileiro contemporneo.

    Cingindo-se o tema ao mbito de um artigo, pode-se invocarapenas um aspecto da crise, um que seja comum a todas as suasinseres tpicas. Trata-se da dimenso da crise do direito enquantouma crise de seus prprios fundamentos. Embora aparentementevinculada a temtica prpria das disciplinas bsicas, sua inseroatinge a todos os continentes jurdicos, sobretudo, como se ver,no aspecto da sua eficcia social, aspecto este indissocivel daprpria noo de direito.

    6Reale, Miguel. Paradigmas da cultura contempornea. 1 edio, So Paulo, editora Saraiva.1999. pgina 95 e ss.

  • Jorge Luis Fortes Pinheiro da Cmara

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    Sobre a noo de fundamento em direito

    Tratadista da matria, a Prof. Simone Goyard-Fabre em suaobra Os Fundamentos da ordem jurdica lana uma advertnciainicial: a de que o direito se constitui, primeiramente, por um termode carter polissmico e sendo assim, propriamente confundidocom seus atributos. Desta forma usual a substituio da expressodireito pela justia, como, alis, feito por Calamandrei no textocitado inicialmente. Alerta-nos Goyard-Fabre que:

    O pluralismo semntico da palavra direito decerto no acidental. Ele corresponde ambigidade essencial de seuconceito; na verdade, a multiplicidade de relaes que odireito mantm com outros campos da existncia humanamostra a dimenso da dificuldade existente paracircunscrever seu campo prprio o que obsta umempreendimento de definio rigorosa. Tanto em suaextenso como em sua compreenso, o conceito de direitose mostra rebelde ao aclaramento7.

    Esta questo demonstra a necessidade de se definir umaessncia ou um fundamento para o direito com o qual seja possvelconfrontar os aspectos apresentados pela referida crise no intuitode se demonstrar qual o real grau de insero desta crise na prprianoo de direito.

    Por outro lado, no mbito dos profissionais envolvidos com odireito em seu aspecto prtico, e, em razo disso, afeitos aconcepo positivista do sistema e seu carter axiolgico neutro, aaverso a questes metafsicas e transcendentes impe idia defundamento e sua relao com a sociedade uma concepopuramente normativa, relegando qualquer indagao mais profundapara uma condio antipositivista e atcnica, consequentemente

    7goyard-Fabre, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurdica.1 edio. So Paulo MartinsFontes editora.2002. Prembulo - Pgina XXVIII.

  • Tcnica, direito e crise de legitimidade

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    no jurdica. Entretanto, mesmo concebendo o direito de formapuramente normativa, a realidade de sua projeo enquantoatividade forense, onde a busca por inovaes legislativas denotaa preocupao com a efetividade, com a acessibilidade, com adeformalizao, etc ... aspecto inicialmente suscitado, denota oreconhecimento de uma esfera de funcionalidade a ser melhorcumprida pelo direito contemporneo. Assim, mesmo ajurisprudncia, no tem ficado alheia a crise em razo da realidadevivida nas lides concretas onde a necessidade de justia se impeat por imperativos de humanidade. Nestes casos a busca encetadapor novos critrios de aplicao e fundamentao do direito temse tornado imprescindvel. Sob este aspecto, ainda que concebidoenquanto exceo, lecionava Miranda Rosa:

    A maioria das decises judiciais (sic) de manter e garantira ordem jurdica, emanao da ordem social e das relaesde poder nela existentes. Essa natureza da prpria essnciado funcionamento judicial. Nada tem de surpreendente, nemde novidade. E reala, precisamente por esse motivo, aimportncia das decises que se afastam do modeloconservador e que so, elas sim, algo a merecer especialateno. Disso decorre o interasse que tem a constatao deque esse desvio do padro ocorra frequentemente, e emespecial em certos campos ou ramos do Direito; e que, mesmosurjam grandes tendncias, ou linhas de modificao, aolongo e no bojo das quais os tribunais decidem de novasmaneiras acerca de velhos problemas8.

    Conforme visto acima, a noo de crise do direito projeta suasombra inicialmente sobre os campos tcnicos de aplicao dasinstituies de direito, para, a seguir, implica-los em contradiocom seus prprios fundamentos. O que se esta vislumbrandomodernamente a implicao dos fundamentos do direito em si,

    8 Miranda Rosa, Felipe Augusto. Jurisprudncia e mudana social. Rio de Janeiro, Jorge ZaharEditor. 1988. pgina 164.

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    em todos os campos do direito e no somente em alguns destes.Alm disso, deve-se denotar o fato de que a maior parte dosproblemas que se apresentam so essencialmente novos, advindosde uma sociedade imersa na tecnolgica, na qual a produo desentidos ditada por uma razo igualmente tecnolgica. Questescomo celeridade e funcionalidade, por fora desta matriz apartama idia de reflexo e qualquer atitude espiritual a ela inerente.

    Como esclarecer esta relao que atenta contra a pretendidaautonomia sistmica do direito ? Relao que pe em questo anoo de garantia e segurana prprias do direito positivo, na buscade mudanas de paradigma ? Afinal, para Hans Kelsen, formuladorda Teoria Pura do Direito e, com ela, consagrador da idia de direitoenquanto teoria do ordenamento, esteio da segurana e garantiada ordem, a idia de sujeio do direito a fatores extra-jurdicos e,por conseqncia, a qualquer idia de valorao subjetiva, erarepulsiva face seu carter subjetivo. Para Kelsen a cincia do direitodeveria servir apenas ao conhecimento objetivo do prprio direito,s a este (o conhecimento objetivo) deve servir a cincia do direito,se quiser ser cincia e no poltica9. Reale10 porm, ainda que emacerba crtica a posio de Kelsen ante a filosofia do direito,esclarece que o jurista de Praga, ao acentuar a conceponormativista de Stammler e afastar como metajurdica toda aconsiderao sobre o justo, o social, o poltico, etc ... no nega arelevncia destes fatores, apenas entende necessria para aafirmao do direito enquanto cincia da norma que eles sejamexcludos de seu campo e relegados a dimenso prpria. Realeestabelece que para Kelsen:

    9 Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. Jos Cretella e Agnes Cretella. 3 edio. So Paulo.Editora Revista dos Tribunais. 2003. Pgina 140.10 Reale, Miguel. Fundamentos do Direito.3 edio. So Paulo. Editora Revista dos Tribunais.1998. Pg. 150.

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    48 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    o Direito vale por si independentemente de sua eficciasocial, pois o problema da positividade no seno oproblema da realidade da esfera do conhecimento normativo;que a norma no um preceito imperativo, mas um juzohipottico ou, mais claramente, um esquema de interpretaoque une um fato condicionante a uma circunstnciacondicionada; que esta referibilidade de um fato a outro,enquanto imputao da conseqncia ao condicionanterepresenta sem nenhuma referncia tica uma puraexpresso do dever ser11.

    Sem romper, apriori, com a aludida concepo, preciso quese desloque a questo para um plano igualmente objetivo daproduo do direito. Tal plano deve ser o do fundamento em s.Esta migrao se faz necessria por conta da exigncia decotejamento das noes de crise do direito com os princpiosautonomistas da Teoria Pura. Este cotejamento, por sua vez, necessrio tambm para no se eximir de uma anlise da questosob a justificativa de que o problema inerente a sociedade e noao direito. Tal afirmativa, muitas vezes recorrente no discursojurdico, encontra-se escoimada na concepo autonomistaabraada pela doutrina em geral e pelos praxistas em particular,conforme aludido acima. Ao invs de ceder a tentao de criticar anoo de autonomia como usualmente se faz, cunhando expressescomo direito alternativo ou uso alternativo do direito, deve-se, nomago do prprio discurso autonomista, procurar critrios capazesde permitir uma anlise e qui uma adequao metodolgica.Conforme se ver, a noo de fundamento, como irrefutvel mesmo Teoria Pura, apresenta, segundo os critrios que se adote comoparmetros, condies de fomentar esta anlise luz da inevitvelpercepo da funo social que o direito realiza.

    11 Idem. Pg. 156.

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    O Princpio do Fundamento e o fundamento enquantoessencialidade.

    A Teoria dos Princpios de Leibniz cunha, conforme lecionaMartin Heidegger12, um princpio do fundamento. Por ele seestabelece que nihil est sine ratione13. Este princpio contm duascaractersticas indissociveis: a da necessariedade e a da causalidade.Com isso, por fundamento de algo afirma-se o que constitu a razonecessria de seu existir e a causalidade que se estabelece comesta razo. Por exemplo pode-se citar que se a paz social a razo, acausalidade decorrente ser a pacificao social, com isso formandoa noo de causalidade necessria. O carter necessarista adotadoem detrimento da teoria da possibilidade que cunhava a noo defundamento em uma possibilidade, sem a excluso de outraspossibilidades. No caso da noo de causalidade, pode-se dizer queseja eminentemente conseqencialista, pois ao dar fundamento aalgo, s-lhe confere igualmente um sentido, uma destinao. Aofundar o direito na pura normatividade, cria-se para este o papel tantode se desincumbir da funo inerente a sua condio normativa, ouseja, a de regulao, quanto o de manter-se em relao com seufundamento necessrio a norma em si. A causalidade assim,condiciona o fundamento da mesma forma que este a direciona.

    A necessidade de estabelecer o fundamento do direitodecorre exatamente deste duplo aspecto que o ente comporta, ode causalidade necessria e o de sentido ou destinao.Reconhecendo a crise, como feito acima, na expresso funcionaldo direito, e sendo indissocivel a funo de pacificao do direitode sua razo fundante, conforme se ver, a conseqncia inegvel a de submeter ambos os aspectos a uma anlise crtica.

    12 Heidegger, Martin. A essncia do fundamento. edio bilnge. Lisboa. Edies 70.13 Heidegger, Martin. O princpio do fundamento. Lisboa, Instituto Piaget. 1957. pgina 11.

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    50 Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009

    Aceitando-se a idia de que a questo remonta tanto acausalidade necessria quanto ao sentido ou destinao dofenmeno, ento pode-se aceitar, sem receio, que a identificaodestes aspectos corresponde a apreenso da essncia do ente oufenmeno. Esta concluso decorre da aceitao prvia da idia deessncia enquanto parcela imutvel do fenmeno. Por essnciadeve-se ter, com isso, que seja aquilo que se mantido faz com queo ente seja o que e, caso suprimido, retira-lhe esta caracterstica.Adote-se a seguinte premissa, a ttulo de exemplo: considere-se ateoria de Austin14 quanto a indissociabilidade entre as idias dedireito e de coao. Tal premissa estabeleceria ento que somentepoderia ser considerado direito o ente que apresenta, ao menosem ultima ratio noo de coao. Com isso a idia de coao passariaa ser considerada como da essncia do fenmeno jurdico. Pode dizerque a essencialidade de um fenmeno apresenta-se na variao dehipteses de aparecimento do fenmeno pela percepo de umaspecto imutvel em todas as variaes. Esta constatao permiteuma identificao entre essncia e causalidade, posto que, sendo ofundamento identificado enquanto causalidade necessria,evidentemente ser igualmente imutvel. O ente encontrar suacausalidade sempre no mesmo fundamento e este se acharindissocivel de sua essncia, tautologicamente imutvel.

    A norma fundamental e sua eficcia

    O exerccio da funo regulatria pelo direito, encontra-secondicionado, conforme o prprio Kelsen, em sua validade. Estavalidade representaria o aspecto conseqencialista, emboraaparentemente no encontre guarida na prpria Teoria Pura talcomo enunciada por Kelsen. Esclarea-se: segundo a Teoria Pura

    14 Austin, John, 1790-1859.

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    do Direito, apesar do carter autnomo conferido ao Direito, huma aferio de sua validade enquanto ordenamento segundo arelao que estabelea com a norma fundamental.

    Norma fundamental seria o parmetro de verificao devalidade de todo sistema do ordenamento. Por norma fundamentalidentificou-se a princpio a norma constitucional. Com isso seestabeleceu o parmetro de validade do ordenamento enquantouma correlao estabelecida entre as normas infraconstitucionaise a constituio. Para Kelsen a Teoria do Estado enquanto entejurdico dissociado de sua dimenso poltica e scio-econmica,era devedora somente da idia de validade embutida na aplicaodas prprias normas e do reconhecimento da validade daconstituio como vetor de eficcia do conjunto do ordenamento.Porm, em evidente divergncia com o pensamento de Kant, paraKelsen a instituio do Poder constituinte originrio comportavaquestionamento e at mesmo a subverso de sua condio defundamentalidade. Haveriam, segundo Kelsen, dois critrios paraestabelecer a validade da norma fundamental: I - a comprovaode que as normas esto servindo de parmetro de obedincia; eante eventual desobedincia, II - se os servidores do estado as estoaplicando. Ou seja, trata-se de uma hiptese de verificao empricada validade. A eficcia assim demonstrada por sua implementaovoluntria pelos cidados ou por sua cogente imposio pelaatuao dos servidores punindo os que no as cumprem.

    Olvidando a existncia de uma polmica quanto ao ltimaconcepo sobre normas fundamentais em Kelsen15, importa aceitar,ao menos em parte, os critrios de verificao propostos ento por

    15 P/ Goyard-Fabre em sua obra citada, sobre os Fundamentos do Direito Kelsen teria redefinido seucritrio algumas vezes e, em uma ltima definio teria substitudo a noo de constituio pela denorma pressuposta no pensamento: a partir de 1965, Kelsen, como sublinha M. Troper, renuncioua seu logicismo. De forma mais clara do que nunca distingue a cincia do direito e o direito: se aprimeira consiste em proposies de direito que dizem respeito a normas e podem ser verdadeirasou falsas, o direito, por sua vez, feito de normas que so as significaes de certos atos de vontade.

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    ele. A questo no , a toda evidncia, meramente acadmica. Trata-se de buscar aferir a validade enquanto um dos dois critriosdeterminadores de coerncia fundamental do sistema jurdico e,como tal, estabelecer sua relao com a aludida crise.

    Retornando a Leibniz e buscando relacionar sua proposiocom a questo quanto a validade substancial do ordenamentojurdico, cabe a indagao: Qual a ratio deste ordenamento ante anecessidade de estabelecer um critrio de verificabilidade vlido?Conforme parece evidente, a pretendida emancipao da cinciado direito ante qualquer aspecto subjetivo somente se refere aelaborao conceitual e ao desenvolvimento epistemolgico dacincia. Quanto a validade da aplicao dos preceitos pelocotejamento da norma fundamental com sua prpria aplicabilidade,foroso reconhecer seu mbito pragmtico. A noo de crise dajustia est assente exatamente no mbito desta crise de validade,quer porque os jurisdicionados demandem por eficcia, quer porqueos operadores clamem por legitimidade e justificao; mas o certo que questes como efetividade, morosidade, impunidade,acessibilidade exigem o reconhecimento e valorao de fatores queno so determinados exclusivamente no campo normativo, senono todo ao menos nas suas repercusses concretas, extra-jurdicas16.

    Trata-se, com isso, de estabelecer como premissa que a relaofundamental buscada como critrio de verificao se acha nachamada esfera da justificao, o que transborda, portanto a TeoriaPura, ao menos nos seus contornos clssicos. Retomem-se, assim,

    O importante aqui que impossvel conceber a norma separada do ato de vontade que a cria ou aaplica. Isso explica que a ordem jurdica seja no uma ordem esttica e rgida, mas uma ordemdinmica em que se manifestam no apenas as foras do querer humanas o carter mutvel dascondies polticas tambm elas conduzidas pela vontade do homens. Pgina 230.16 A emenda constitucional 45 alterando o artigo 5, LXXVIII instituiu a durao razovel doprocesso e a celeridade de tramitao como garantias fundamentais de todos no mbito judicial ouadministrativo reconhece a demanda por eficincia dos provimentos do Estado.

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    os critrios j estabelecidos de acordo com o Princpio doFundamento: necessidade e causalidade. Pode-se aferir ento, sobreo tpico visado, que a crise do direito ter relao com seusfundamentos se esta alcanar os aspectos quanto necessrio parafundar o direito e a sua validao causal pelo cumprimento daexpectativa funcional nele se encontra.

    A constituio do direito na conscincia

    A toda evidncia, a existncia do direito encontra-se fundadadesde seus primrdios na funo regulatria exercida por este emrazo da co-existncia forada em sociedade de pessoas dediferentes famlias. A percepo desta funo enquanto umanecessidade atributo da conscincia humana. Na conscinciaencontra-se, assim, o repositrio da funo regulatria e igualmenteda fundamentao do direito enquanto norma. Assinala AquilesCrtes Guimares que os fundamentos do direito esto vinculadosa esse ncleo comum que a conscincia doadora de sentidos,nica fonte de toda a articulao da vida social e histrica17. Comisso pode-se dizer que a conscincia que percebe o homemenquanto ser-com, ou seja, enquanto inserido no mundo. Noprprio ato de perceber esta insero, a conscincia intu anecessidade de dispor sobre os sentidos da vida em sociedadepercepcionando os riscos e desafios que esta vida proporciona,sobretudo, com a com-presena de outras conscincias sobre asquais projetam-se de forma inadequada as regras de convvio econtrole no jurdicas. Sobre isso j nos alertava Freud em suaconstatao sobre o Mal-estar na civilizao quanto a insuficinciadestes controles e a necessidade correlata de um sistema mais

    17 guimares, Aquiles C. Cinco lies de filosofia do Direito.2 edio. Rio de Janeiro, LmenJris. 2001. Pgina 16.

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    eficaz18. Desta forma o direito se erige na conscincia de forma aatender a este imperativo da razo: resguardar-se quanto aos riscosda vida em sociedade, da existncia enquanto ser-com.

    Por outro lado, a prpria conscincia a doadora de sentidospara o mundo. Ao se enfocar a inevitabilidade da intermediao daconscincia enquanto meio de apreenso dos sentidos do mundo, perfeitamente possvel estabelecer tanto uma premissa quantoum critrio que sejam suficientemente amplos para aclarar o tema. a conscincia que apreende a insuficincia do direitocontemporneo para suprir a necessidade de funcionalidade queo assedia. As cobranas que se apresentam em vrias esferas dasociedade e que brotam at mesmo do prprio sistema jurdicoso eloqentes demonstraes da forma como o direito vem sendopercebido em dbito ante a demanda existente. Esta conscincia,portanto, erige-se enquanto campo onde se descortina a crise. na apreenso que ela efetua do direito enquanto fenmeno quese percebe uma busca por efetividade, assim como na prpriaconscincia que esto sendo formulados os juzos quanto a validadeou no do sistema jurdico, em processo que conduz adeslegitimao do sistema.

    Tal assento para a conscincia junto a Teoria do Direito no secoaduna com a proposio original de Kelsen, sobretudo ante anotria influncia exercida pelo pensamento inicial de LudwigWittgenstein sobre os membros do crculo de Viena freqentadopor Kelsen. O autor do Tratactus Lgico-philosoficus preconizava arejeio de qualquer tributo devido a metafsica e a influncia daconscincia no processo de constituio do mundo. Este papel,segundo Wittgenstein era desempenhado exclusivamente pelalinguagem e qualquer obscuridade ou dvida que fosse encontrada

    18 Freud. Sigmund. O mal estar na civilizao. Trad. Durval Marcondes. So Paulo, abril culturaleditora. 1978. col. Os pensadores. Pgina 148.

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    decorreria do uso imperfeito da mesma e no do reconhecimentode questes fundamentais.

    Ocorre que a conscincia como nica instncia doadora desentidos ao mundo, constitui-se em inevitvel requisito para aconstituio de proposies filosficas apodicticas19. Somente aintuio da realidade, oriunda da conscincia perceptiva, confereum esteio seguro para aplicao de mtodos de verificao eelaborao que confiram proposio rigor prprio das chamadascincias. Com isso a conscincia percebe a necessidade do direitoe reconhece sua justificao pragmtica, tanto para afirmar suaexistncia quanto para cobrar sua ausncia e formular pretensopor maior efetividade. Com isso a crise referida passeia pelaspercepes que a conscincia humana apreende do fenmenojurdico em seu manifestar-se. A negao proposta por Kelsen,encontra-se em desalinho com a pretenso do mesmo em fundar acincia do direito em termos rigorosos. A prpria demonstrao feitaacima do processo de apreenso da crise do direito e suasrespectivas caractersticas demonstra bem a equvoca insero dametodologia autonomista na fundamentao cientfica do direito.De igual modo, quando a validade da norma ante seu paradigmafundamental cotejada com a maneira de sua imposio ao conjuntoda sociedade, temos a conscincia dos destinatrios enquanto mbitoirresistvel de produo do sentido de direito e justia. a conscinciaque levar a sujeio ou a insubordinao de cada indivduo.

    A relevncia da questo dos sentidos na produo do direito

    Outro aspecto essencial da questo que se vislumbra o quese encontra relacionado com a forma como o direito adquire sentido

    19 Conforme Abbagnano: o que referente a verdade necessria. Dicionrio pgina 73.

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    ante o mundo factual ao qual aplicado. Esclarece Orlando Secco arespeito da formao das normas sociais que o ordenamento socialse caracteriza por mtodos e conjuntos de preceitos prescritos pelogrupo sempre buscando padronizar as condutas individuais dosmembros que os constituem, num processo constante desocializao destes20. O direito devedor de um processoprodutivo semelhante na medida em que estabelece padres que,insertos no ordenamento, institucionalizam o preceito. Com isso,noes como contrato, propriedade, responsabilidade, etc ...adquirem relevncia jurdica pela forma como se tornaraminstituies do direito. O processo pelo qual estas figuras seinstitucionalizam se d, via de regra, pela doao de sentido tcnico-jurdico aos preceitos. Para tanto o direito se vale do recurso aosentido comum e ao sentido tcnico que se possa atribuir aoinstituto. Conforme visto, sendo o campo normativo o mbitoprprio de produo do direto vigente, preciso que por normasse institucionalize o preceito. Ocorre que estas normas buscam seussentidos no reservatrio dos sentidos comuns primeiramente,inclusive ante a necessidade de se expressar de forma inteligvel.Esta busca exige o recurso a reservatrios de sentidos dispostospelo conhecimento comum da sociedade.

    O advento da ps-modernidade tem produzido sensvelinfluncia sobre formao dos reservatrios de sentidos do mundo.Sendo a fragmentariedade e a descontinuidade de sentidos umatnica do mundo plural contemporneo, como estabelecer umconsenso que seja suficientemente estvel para doar significadoss instituies de direito ante as novas situaes com que sedeparam. Afinal de contas, nas sociedades modernas, aprofundou-se uma transformao das experincias da vida cotidiana, coma introduo, nos lares e mesmo na vida ntima, de uma tecnologia

    20 Secco, Orlando de A. Introduo ao Estado do Direito. 10 edio. Rio de Janeiro, Lmen Jris.2007.Pgina 14.

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    sempre em mudana. Tem-se que mudar de hbitos, idias, credos e reaprender praticamente tudo, trs vezes na vida21, Com efeitodesta constatao sobra o evidente questionamento sobre Quantotempo se consegue resistir ? Quantas vezes podem as pessoasmudar de atitude na vida ? Quantas vezes podem as pessoasmudar de profisso ? Quantas vezes podem assumir novasorientaes?22. De que forma se pode pretender conferirpermanncia e estabilidade a definies e conceituaes nestecontexto ? Por outro lado a impossibilidade de estabelecer um esteioseguro na inconstncia representada pelas questes colocadas impea ecloso de uma crise cujo mbito de incidncia ser a da prpriadoao de sentidos ao mundo e, por conseqncia, o cumprimentoda promessa de funcionalidade nsito no direito.

    Importante ressaltar que tal crise estende-se, peculiarmente,as relaes scio-polticas, culturais e econmicas atingindo,sobretudo na famlia, ncleo responsvel pela introduo doindivduo na estrutura de significaes da sociedade, e que inculcanos seus membros a noo de valores como moral,responsabilidade, justia, etc ....o seu znite. Na famlia, talvez amais antiga reserva de sentido da humanidade, constituiu-se,tradicionalmente um ncleo que alcanava e envolvia trs geraes.Conforme nos alerta Heller, homens e mulheres talvez estejamconscientes das suas responsabilidades diante das geraes futuras,mas somente em termos abstratos, pois em funo da rapidezdo processo de transformao, homens e mulheres tm poucaclareza dos resultados de suas aes ( . . . ) Dificilmente podemimaginar como seus netos viveriam e o que fariam23. A economiano fica imune a esta problemtica ante o advento de fenmenos

    21 Heller, Agnes. Artigo Uma crise global da civilizao publicado em A crise dos paradigmas emcincias sociais e os desafios para o sculo XXI. Santos, Boaventura Souza / Helles, Agnes. Rio dejaneiro: editora contraponto. 1999. Pgina 1922 Idem.23 Obra citada. Pgina 112

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    que so tratados pelo direito e cuja definio de contedo extramente difcil, tome-se o exemplo da necessidade de adequara noo de gesto temerria idia de fundo de investimento dealto risco. O legislador pretendeu punir o administrador que leseaos detentores de carteiras de investimentos com investimentosde alto risco, porm uma premissa econmica bsica nestes casos a de que h uma correlao entre lucros e riscos que estabeleceo axioma de que quanto maior o risco maiores as chances de lucro.

    Inquestionavelmente o que se coloca, portanto, umamodificao de paradigmas sobre os quais o direito contemporneoest se realinhando. Tome-se o exemplo do direito processual civil.O Cdigo de Processo implementado em 01/01/1974, possua umperfil patrimonialista evidente, no qual o paradigma daresolubilidade em perdas e danos produzia fortes efeitos sobre aeficcia processual. Modernamente, com as seguidas modificaeslegislativas e at constitucionais, realizadas, vemos tal paradigmasendo substitudo pela idia de efetividade da tutela jurisdicional.A prestao, conforme ressalta Marinoni, deve se aproximar aomximo do que corresponderia ao adimplemento voluntrio dapretenso24. Com isso pode-se dizer que o aprimoramento dastutelas jurisdicionais so uma resposta a crise de sentidos aoreformular a prpria razo de ser da demanda.

    A deficincia funcional do direito

    Conforme visto, sendo a apreenso dos sentidos objetoprprio da atuao da conscincia e esta sendo o repositrio dofundamento do direito, evidente que o direito tradicional se

    24 Marinoni, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgncia. Porto Alegre, SrgioAntonio Fabris Editor. 1994.

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    mostre despido de seus sentidos regulatrios face a inadequaodeste dinmica do mundo atual. importante frisar que a noode conscincia aplicvel a hiptese a que foi desenvolvida a partirda obra de Edmund Husserl25. Trata-se de uma conscinciaintencional que existe sempre de forma ligada a um objeto quepode ser tanto um sentimento quanto uma coisa ou pessoas26. Aconscincia assim conscincia de algo. No se cogita de umaconscincia abstrata, espectral ou puramente idealizada, mas daconscincia que se tem de algo em seu existir. Como a existncia emsi no passvel de apreenso, o que apreende o manifestar-sedesta existncia. Isto se d pela ao da prpria conscinciaintencional e no por um ato casual da prpria coisa. Tomar conscinciada coisa assim, um ato da prpria conscincia intencional.

    O mtodo que permite apreender o objeto enquantocontedo intencional da conscincia desenvolvido por Husserl sefaz evidente. Tal mtodo se designa por fenomenolgico, com elese procura um retorno as coisas mesmas, tais quais semanifestam conscincia27. Este mtodo torna o direito objetoda conscincia que o intenciona. Tal intencionalidade se d em umsentido, acontecimento que confere a ela uma direo. Com issona percepo do direito, a relao funcional deste com asexpectativas inerentes a sua produo torna-se no s evidentecomo legitimadora e fundamental deste ante a prpria conscincia.Esta percepo se faz mais aguda com a constatao da insuficincia

    25 Filsofo alemo nascido na Moravia em 1859 e morte em 1938. Tem seu nome associado afenomenologia enquanto metodologia cognitiva a qual desenvolveu em vasta obra ainda, em grandeparte indita. Huisman, Denis. Dicionrio dos Filsofos. So Paulo. Editora Martins Fontes.2001. Verbete Edmund Husserl. Pgs. 523 a 53226 A doutrina nuclear em fenomenologia o ensinamento de que cada ato de conscincia que nsrealizamos, cada experincia que ns temos, intencional; essencialmente conscincia de ouuma experincia de algo ou de outrem. Toda a conscincia direcionada a objetos.Sokolowski,Robert. Introduo a fenomenologia. Trad. Alfredo de Oliveira Moraes. So Paulo, ediesLoyola. 2004. pgina 17.27 Guimares, Aquiles Cortes. Fenomenologia e Direito. Rio de Janeiro, Editora Lmen Jris.2005. pgina 44

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    de mecanismos e normas para atender a demanda social semprecrescente. Com isso surge um dficit na prestao jurdica que atingea sua prpria legitimidade ante a desconexo deste com seusfundamentos tal como apreendidos na conscincia que ointenciona. Igualmente no campo da conscincia que se formaroos sentidos novos que tero por objetivo restaurar a funcionalidadedo direito. Esta tentativa tem diversos escopos, porm,inegavelmente o maior deles assegurar a preservao da validadedo sistema e, com isso evitar a deslegitimao por incompatibilidadedeste como o campo concreto de sua incidncia. RelembrandoKelsen, a no aplicao das normas jurdicas implica noreconhecimento do prprio estado de invalidade da normafundamental e, desta forma, o recurso a outro processoconstitucional originrio.

    Fenomenologia da crise e retorno s essncias

    Conforme apreendido acima a crise do direito submetida auma anlise fenomenolgica deixa a perceber que seu esteioencontra-se na frustrao ante seu papel de produzir nas pessoasintegrantes da sociedade a sensao de segurana e regulao.Adotando-se uma atitude na qual no sejam aceitos conhecimentosa priori depreende-se que a evidncia que emerge da crise seenquadra na forma como o direito percebido na sociedadecontempornea. A velocidade impingida a esta sociedade peloadvento de formas tecnolgicas cada vez mais eficazes e rpidas,difundindo comunicao e servios em tempo menor, trs para odireito um paradigma de difcil implementao. Afinal comoacompanhar a velocidade que a sociedade vem exigindo e, aomesmo tempo, implementar a efetiva justia como finalidade desua interveno nas relaes sociais ? Primeiramente preciso que

  • Jorge Luis Fortes Pinheiro da Cmara

    Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.1-136, out.2008/mar.2009 61

    se estabelea que a essncia do direito a pacificao atravs danormatizao das condutas e da atividade substitutiva do Estado-juiz a ao dos indivduos em prol de seus interesses. Na essnciado fenmeno encontra-se tambm a idia de justia, como sepercebe da prpria confuso terminolgica entre as expressesdireito e justia. Com isso h necessidade de uma compatibilizaoentre a percepo do direito em crise e a essncia do fenmeno.

    Concluso

    Por todo o exposto, pode-se concluir que, efetivamente, huma crise do direito, mas cujo nascedouro encontra-se tanto prpriasociedade da qual o direito no pode se afastar em razo de suarelao de fundamentalidade (conforme visto, a sociedadeenquanto composta por indivduos a razo necessria pela quala conscincia funda o direito e perante ela que o direito realizasua funo igualmente fundamental), quanto no direito. A adoode paradigmas incompatveis com a realidade social contempornea,bem como a fragmentao dos sentidos tpica da ps-modernidadeem que se inserem o direito e a sociedade, explicam em grandeparte o aspecto amplo que a referida crise assumiu.

    Sendo a crise em que submergiu o direito, uma crise que semanifesta na produo de sentidos do mundo, inevitavelmente,nesta produo ante o direito, que se devem fomentar as soluespreconizadas. O que est em jogo no simplesmente anecessidade de otimizao do direito, mas a prpria sobr