12
FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA 1 Sara Rogéria Santos Barbosa 2 Cristiane Tavares Fonseca de Moraes Nunes 3 RESUMO Este trabalho consiste em investigar o processo de formação da literatura brasileira e cânones literários, tendo como teórico principal da historiografia literária o francês Ferdinand Denis, e é o resultado das leituras feitas durante a disciplina acadêmica História dos Cânones Escolares, ministrada no Mestrado em Letras da UFS. Denis, primeiro teórico a separar a história literária do Brasil da de Portugal, é considerado um dos precursores da historiografia da literatura nacional, especificamente o viés nacionalista que caracterizou os escritores românticos do século XIX, e responsável também pela inclusão de autores brasileiros nos anais da literatura universal. O objetivo deste artigo é analisar as contribuições feitas pelo francês Ferdinand Denis na consolidação do nacionalismo romântico brasileiro e do indianismo. Como pressupostos teóricos da historiografia literária e cânones serão utilizados BLOOM (1994), CÉSAR (1978), REIS (1992), ROUANET (1991), SOUZA (2007) e WEBER (1997). Palavras-chave: Nacionalismo. Indianismo. Historiografia e Cânones literários. Para se pensar a literatura brasileira na atualidade, faz-se necessário visitar os precursores da historiografia literária produzida em Portugal no século XIX, e verificar como os escritores brasileiros adentraram no cânone literário estabelecido 1 Este trabalho foi apresentado originalmente em 2009, no Senalic/UFS. 2 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe, pós-graduada em Didática e Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade São Luís de França, membro do Grupo de Pesquisa História do Ensino das Línguas no Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Meneses de Oliveira, e Professora no curso de Letras da Faculdade São Luís de França. 3 Mestre em Recursos Humanos, Professora das disciplinas Informática Educativa e Gestão do Processo Criativo da Faculdade São Luís de França e membro do Grupo de Pesquisa História do Ensino das Línguas no Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Meneses de Oliveira.

FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA1

Sara Rogéria Santos Barbosa2

Cristiane Tavares Fonseca de Moraes Nunes3

RESUMO

Este trabalho consiste em investigar o processo de formação da literatura brasileira e

cânones literários, tendo como teórico principal da historiografia literária o francês

Ferdinand Denis, e é o resultado das leituras feitas durante a disciplina acadêmica

História dos Cânones Escolares, ministrada no Mestrado em Letras da UFS. Denis,

primeiro teórico a separar a história literária do Brasil da de Portugal, é considerado

um dos precursores da historiografia da literatura nacional, especificamente o viés

nacionalista que caracterizou os escritores românticos do século XIX, e responsável

também pela inclusão de autores brasileiros nos anais da literatura universal. O

objetivo deste artigo é analisar as contribuições feitas pelo francês Ferdinand Denis

na consolidação do nacionalismo romântico brasileiro e do indianismo. Como

pressupostos teóricos da historiografia literária e cânones serão utilizados BLOOM

(1994), CÉSAR (1978), REIS (1992), ROUANET (1991), SOUZA (2007) e

WEBER (1997).

Palavras-chave: Nacionalismo. Indianismo. Historiografia e Cânones literários.

Para se pensar a literatura brasileira na atualidade, faz-se necessário visitar os

precursores da historiografia literária produzida em Portugal no século XIX, e

verificar como os escritores brasileiros adentraram no cânone literário estabelecido

1 Este trabalho foi apresentado originalmente em 2009, no Senalic/UFS.

2 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe, pós-graduada em Didática e Metodologia

do Ensino Superior pela Faculdade São Luís de França, membro do Grupo de Pesquisa História do

Ensino das Línguas no Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Meneses de Oliveira, e

Professora no curso de Letras da Faculdade São Luís de França.

3 Mestre em Recursos Humanos, Professora das disciplinas Informática Educativa e Gestão do

Processo Criativo da Faculdade São Luís de França e membro do Grupo de Pesquisa História do

Ensino das Línguas no Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Meneses de Oliveira.

Page 2: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

naquela época. Diante disto, convém apresentar alguns conceitos formulados para o

termo cânone.

Harold Bloom (1994) estabelece considerações sobre o que se conceitua

como cânone literário e aponta ser este a seleção de grandes escritores da literatura

mundial e suas obras; textos que resistiram ao tempo e tendências e continuam sendo

consumidos por leitores diversos; uma obra literária que o mundo não deixasse

voluntariamente morrer; livros escolhidos pelas escolas, academias, instituições de

ensino e lista de livros de leitura obrigatória como discriminações do que seria um

cânone, dentre outras variações:

[...] textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, quer se

interprete a escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes,

instituições de educação, tradições de crítica, ou, como eu faço, por

autores que vieram depois e se sentem escolhidos por determinadas

figuras ancestrais (BLOOM, 1994, p. 28).

A ideia de um cânone perpassa pela figura do leitor e o citado autor faz uma

aproximação entre a extensão das obras canonizadas e o fluxo de leitura, sendo

impossível àquele, por mais assiduidade que tenha e ignorando todas as outras

atividades cotidianas em detrimento da leitura, conseguir ler todas as obras literárias

estabelecidas como cânone, restando apenas debruçar-se sobre grandes escritores

previamente selecionados. A construção de um cânone, infere-se, está associada à

figura de bons leitores e a ausência destes últimos poderia prejudicar a consolidação

do primeiro (BLOOM, 1994):

Infelizmente, nada será o mesmo, porque a arte e a paixão de ler bem, que

era a base de nossa empresa, dependia de pessoas que eram leitoras

fanáticas quando ainda crianças. Mesmo leitores dedicados e solitários se

acham agora sitiados, porque não podem ter certeza de que vão surgir

novas gerações para proferir Shakespeare e Dante a todos os demais

escritores (BLOOM, 1994, p. 24).

As obras que alcançam status canônico respondem à expectativa lançada

sobre elas e, quando assim não acontece, perdem seu encanto. A formação de cânone

Page 3: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

encontrou, ao longo de seu surgimento, defensores e opositores e ambos os lados

possuem argumentos para ratificar suas posições, sejam de cunho estético ou não,

querendo-o fixo e mantendo apenas autores clássicos, ou aberto a novas

possibilidades (abrir o cânone seria algo redundante, conforme afirma Harold Bloom

na página 43, pois o cânone secular jamais se fecha e sofre mais inclusões que

exclusões).

Bloom sugere alguns condicionantes para se chegar a ser canônico: domínio

da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento e dicção

exuberante (1994, p. 36), para logo depois afirmar que o teste para nova

canonicidade é simples e claro: “não deve e não pode ser relido, porque sua

contribuição ao progresso societal é a generosidade de oferecer-se a uma rápida

ingestão e descarte” (1994, p. 37).

Além de Harold Bloom, teceu considerações acerca de cânone Ricardo Reis

(1992). Para ele, havia cumplicidade entre a obra literária e o leitor, sendo que a

interpretação definiria o gosto atribuído à leitura, se agradável ou não. Reis utiliza

um dos aspectos correlacionados à canonização por ele defendido: “o leitor acumula

um repertório de pré-noções e é munido deste aparato que se acerca de um texto,

com o qual seu conjunto de expectativas passará a atritar” (1992, p. 65 ). A

interpretação nunca se dá sozinha, pois o texto, quando lido, passa a ser “o lugar de

interseção de uma complexa teia de códigos culturais, de convenções e de outros

textos, numa espécie de mosaico de citações” (1992, p. 69).

Autores ou obras canonizados mostram-se atemporais e envoltos numa a-

historicidade, oriundos de uma decisão de cúpula e de alto nível que, “por uma

espécie de mandato divino, houvesse traçado os contornos do cânon, elegendo tais

obras e autores e varrendo do mapa outros autores e obras” (1992, p. 71):

o texto praticamente não existe sem o leitor: é a leitura que dá sentido ao

texto, ainda que seja cabível cogitar que este cristalize um mundo de

significações e contradições. O ato da leitura é um fenômeno altamente

complexo e possui um caráter eminentemente dialogal: na leitura

interagem não apenas o leitor e o texto mas, através do texto, o leitor

entabula uma conversação com o autor, com o contexto histórico e social,

Page 4: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

plasmado no texto, com uma cultura, uma tradição literária, uma visão de

mundo, um acervo linguístico (REIS, 1992, p. 76).

Existem sujeitos atuantes no processo de leitura e canonização e Reis

argumenta que não é um fato isolado, ele é o reflexo dos valores de todos os sujeitos

envolvidos. O problema então, não está na canonização de umas obras em detrimento

de outras, mas no fato de ela reproduzir “as relações injustas que compartimentam a

sociedade” (1992, p.77).

As relações de poder e leitura não foram diferentes no Brasil em relação ao

resto do mundo no século XVIII. Os letrados brasileiros faziam parte da classe

dominante e não poderia haver conflitos, subtende-se, entre os iguais. O domínio da

leitura era a chave que abria as portas da “sociedade colonial”. Data desse século o

conceito de nacionalidade. O nacionalismo passa a ser a “ideologia que costura os

projetos das elites e a valorização da natureza tropical correspondeu às necessidades

ideológicas de uma recém-emancipada aristocracia” e “um sistema literário pouco a

pouco engendra uma norma estética e regras de controle, capazes de conservar a

identidade destes intelectuais” marginalizando as manifestações literárias que não se

conformassem com as preestabelecidas (1992, p. 78).

Reis afirma que o cânon brasileiro tem início durante o período romântico,

mas os escritores que fazem parte dessa primeira canonização não são românticos, e

sim árcades. A temática nacionalista cantada nas primeiras obras canônicas atendia

ao “projeto de consolidação do Estado nacional” e seus personagens correspondiam

às camadas sociais de seus idealizadores:

Um exame cuidadoso do nosso oitocentos, entretanto, revelaria como

aquela ficção acaba dizendo mais a respeito das camadas sociais que a

escreviam e a fruíam do que dos índios ou sertanejos que supostamente

pretendia captar, tomados estes como heróis dos textos em que se

comparecem (REIS, 1992, p. 80).

Dois precursores relevantes e um indispensável

Page 5: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

Findas as breves considerações acerca do cânone, volta-se para os precursores

da historiografia literária. A exemplo das primeiras reformas pedagógicas ocorridas

no Brasil, iniciadas no século dezoito e que adentraram pelo seguinte, data do século

XIX o estabelecimento da tipografia neste país e consequentemente a produção de

livros. Até então, os poetas nacionais faziam a reprodução de suas obras na Europa e

passaram a despertar interesse no público leitor português, que considerava a

produção dos poetas brasileiros portuguesa. Os poetas mantinham com Portugal, mas

precisamente com o Marquês de Pombal, dependência política e financeira, versando

sobre o que convinha àquele que os patrocinava e, talvez por isso, fossem

considerados literatos portugueses, ignoradas as peculiaridades que diferenciavam os

dois povos e não havia mecanismos que pudessem individualizar as singularidades

de cada escritor (CÉSAR, 1978):

A dependência política fez com que todos eles fossem considerados

portugueses; ninguém procurou, todavia, discernir nos diferentes grupos,

e em cada autor em particular, o vinco psicológico e a dicção divergente,

a cor local sul-americana garridamente nossa (CÉSAR, 1978, p. 9)

Não havia em Portugal história literária até o século XIX, e as poucas

informações sobre a produção daquele país restringiam-se à Biblioteca Lusitana do

abade Barbosa Machado. Mas esta escassez não se restringia apenas a Portugal, a

Europa como um todo também sofria do mesmo mal, sendo incapazes de elaborar

um cânone de obras literárias daqueles idos que pudesse “abranger, englobar e

iluminar e a mais secular atividade de seus escritores” (CÉSAR, 1978). Somente em

1845 é que se tem o Primeiro Ensaio Sobre a Literatura Portuguesa, de Francisco

Freire de Carvalho. Convém salientar que a mesma temática fora tratada 19 anos

antes pelo francês Ferdinand Denis na obra intitulada Resumé de l’Histoire Littèraire

du Portugal, suivi du Resumé de l’Histoire Littèraire du Brasil (1826) (idem), só que

em língua francesa e não vernacular, como é o caso da obra de Francisco Freire de

Carvalho, e diferenciando escritores portugueses dos brasileiros.

Page 6: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

Dentre os precursores da historiografia literária, obtiveram maior destaque:

Friedrich Bouterwek: foi o pioneiro nesta área, porém seus relatos não tiveram tanta

relevância para os futuros críticos brasileiros por não terem acesso ao texto História

da Poesia e da Eloquência Portuguesa (1801-1819), e, principalmente, porque o

teórico em questão não despertou interesse sobre o que escreveu acerca dos

brasileiros, apontando-os apenas como continuidade da produção literária

portuguesa. Merece mérito, no entanto, por ter sido o primeiro a utilizar o método

histórico no estudo da literatura portuguesa e a dedicar algum espaço, mesmo que

reduzido, aos escritores brasileiros.

Bouterwek apropriou-se da ideia de uma literatura diferenciada a partir do

local de nascimento de seu escritor – determinante de caráter e potencialidade –,

reproduzindo o que defendia Madame de Staël: precursora do romantismo francês,

fez distinções entre a literatura típica do homem do Norte e a do homem do Sul. Um

dos fatores que impediram a observação mais detalhada da obra de Bouterwek em

Portugal, segundo César, 1978, foi a conjuntura política daquele país em XIX, já que

estava sendo invadido por Napoleão, intelectuais sendo exilados e a família real

vindo para o Brasil.

Em História da Poesia e da Eloquência Portuguesa, seu autor discrimina o

que seria o primeiro cânone em que figura escritores brasileiros:

Apenas dois autores brasileiros figuram na História da Poesia e da

Eloquência Portuguesa de Bouterwek: Antônio José da Silva, o Judeu, e

Cláudio Manuel da Costa. Na obra de ambos, como era de seu hábito, o

autor procura discernir os traços nacionais e censura a influência

espanhola, mas exalta o papel de Cláudio Manuel como inovador, ao

influxo de “poetas italianos mais antigos”, o que “bastou naturalmente

para que surgissem também melhores tempos para a poesia portuguesa”

(CÉSAR, 1978, p. 23).

O segundo precursor é Simonde de Sismondi. Ele trata a literatura como

história político-social-literária e classifica pela primeira vez a literatura portuguesa

como lírica e por isso foi considerado o inventor do lirismo português, pois o lirismo

encontrado nas trovas portuguesas interessou a Sismondi muito além de seu valor

Page 7: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

artístico. Em De la Littérature du Midi de l’Europa, 1813, subdivide o estudo da

história literária em quatro partes e reserva na última um espaço para os escritores

brasileiros. Sua intenção foi louvável, no entanto, “faltou-lhe o conhecimento íntimo,

a compreensão, a chama afetiva, o calor humano” (p. 30):

a parte restante (pp. 260-588) é dedicada à literatura portuguesa e aí faz

referencia a autores brasileiros, não pelo fato de terem nascido na então

colônia de Portugal, mas precisamente por se acharem integrados no

sistema (CANDIDO, apud CÉSAR, 1978, 24).

Assim como Bouterwek, Sismondi também defende a idéia da francesa

Madame de Staël de que há diferenças entre a literatura produzida pelo homem do

Norte da do Sul. Faltou-lhe, no entanto, documentação para arquitetar melhor suas

considerações literárias, pois as fontes eram mantidas em “conventos, igreja e

cartórios, num total desalinho” (p. 24). A obra de Sismondi apresenta alguns

deslizes, segundo César, mas, levando-se em conta “essencialmente o caráter pouco

ou quase nada crítico da historiografia literária então vigente, força é reconhecer o

sensível progresso que tal estudo representa no quadro de sua época” (CÉSAR, 1978,

p. 24).

Simonde de Sismondi apresenta seu cânone da literatura portuguesa e inclui

três escritores brasileiros, dois deles já mencionados por Bouterwek em sua análise:

Antônio José da Silva, o Judeu, Cláudio Manuel da Costa e Manuel Inácio da Silva

Alvarenga. Como aconteceu com o outro precursor, os escritores incluídos fazem

parte da segunda escola literária ocorrida no Brasil – Arcadismo – e os autores

barrocos são novamente esquecidos.

Sismondi e Bouterwek foram relevantes porque, segundo Weber (1997),

“oportunizaram aos românticos, e posteriores, o recorte de um corpus primordial da

literatura brasileira, [...] e permitiram a construção de uma história imemorial da

nacionalidade, que seria constantemente revificada pelos árcades” (WEBER, 1997, p.

27).

Page 8: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

Por fim, tratar-se-á do pai do Romantismo Brasileiro – Ferdinand Denis.

Primeiro historiador a separar a história literária do Brasil da de Portugal, Denis

manifestou grande apreço pelas singularidades aqui encontradas e defendeu que os

escritores locais, ao invés de seguirem o que ocorria na Europa no que tange à

literatura, optassem por cantar a riqueza vista na natureza e no homem nativo, em

detrimento da “alienação literária” por ele percebida. Deveria ser produzida uma

literatura em que se vislumbrasse o “influxo da natureza que os inspirou” e não o

louvor ao que vinha da Europa, como se desejasse um “quinhão de sua glória”. A

literatura aqui produzida tinha de apresentar “caráter original”. Essa insubordinação

ao preestabelecido pela Europa é justificável pela defesa do francês em tornar

conhecidas as “sociedades tropicais” e suas características, cuja produção deveria se

voltar para o que mais tarde Machado de Assis classificaria como a cor local, os

autores deveriam “olhar para dentro de si mesmos... em busca de características

originais inexploradas” e não uma sociedade apenas reprodutora, mesmo que rica de

possibilidades literárias, dos conceitos e práticas européias (CÉSAR, 1978, p. 33).

Num meio intelectual carente de guias, como o Brasil durante o Primeiro

Reinado, sua voz repercutiu imediata e intensamente. Era alguém que

alava, um europeu de Paris, convidando-nos ao conhecimento

aprofundado da terra, chamando-nos a vistoriar a floresta, a conhecer

hábitos e lendas do aborígine, a estudar velhas sagas por acaso

sobreviventes em sua literatura oral (CÉSAR, 1978, p. 33).

Para reforçar a insubordinação literária, Denis ainda propunha o “corte de

vínculos com o Velho Mundo” e pontua que “a América estuante de juventude, deve

ter pensamentos novos e enérgicos como ela mesma [...] e deve ser livre tanto na sua

poesia como no seu governo” (Souza, 2007, p. 32). Curioso, Ferdinand observava o

contexto sem atribuir juízo de valor ao que via e, ávido pelos aspectos antropológicos

culturais que pudesse identificar, não demonstrou “pretensões racistas ou

colonialistas” (p. 31), separando-se da ideia de que havia uma literatura que

diferenciasse os homens de acordo com o local de nascimento e defendendo a teoria

ambientalista e paixão pelas culturas primitivas. O Brasil foi alvo dessa curiosidade e

Page 9: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

Denis deixou registrados vários aspectos, sobretudo o que concerne à “investigação

da natureza e do meio social brasileiro” (p. 32), provavelmente frutos do que

defendeu ao longo de sua vida.

Denis lança sua obra-prima – pelo menos para a historiografia literária

brasileira – Rèsumé de l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Rèsumé de

l’Histoire Littéraire du Brésil (1826) e nela aparece, pela primeira vez, a literatura

nacional separada da literatura portuguesa, ocupando 88 páginas das 625 escritas

(nota 44, p. 32).

O século XIX no Brasil é marcado literariamente pelas manifestações

românticas, a valorização da natureza, a figura do bom selvagem, e não seria exagero

dizer que Ferdinand Denis foi o “precursor” do Romantismo no Brasil na medida em

que foi o primeiro a instigar o Indianismo e exaltação nacionalista que tanto o

caracterizam, tampouco afirmar que os autores românticos, cuja temática a essas se

assemelham, não trataram do tema com tanto ardor (CÉSAR, 1978):

Nunca o Indianismo tivera, antes dele, advogado mais apaixonado. Ora,

trinta anos antes de Gonçalves de Magalhães (1811-1882), com a sua

malograda tentativa indianista d’A Confederação dos Tamois (1856),

antes do brasilianismo hirsuto de Araújo Porto-Alegre (1864-1879), e,

notadamente, antes de Gonçalves Dias (1823-1864) e de Alencar (1829-

1877), o ardor com que se exprimiu Denis, acerca das responsabilidades

do brasileiro, em face de sua literatura jovem, teve relevo e conseqüência

consideráveis (CÉSAR, 1978, p. 33).

Mesmo tendo sido considerado o precursor do Romantismo por conta de sua

temática, Ferdinand Denis não atribui ao período o início da produção literária no

Brasil. Para ele, as manifestações remontam a um passado pouco mais distante, antes

mesmo do Arcadismo a cujos autores atribui grande importância. Sobre os árcades,

Ferdinand Denis aponta Santa Rita Durão como um escritor revestido de “caráter

nacional, apesar das imperfeições” e Gonzaga pelo “reiterado emprego de metáforas

sugeridas pela mitologia” (DENIS, apud WEBER, 1997).

O início da literatura brasileira não data de época muito recuada;

entretanto, é muito difícil determinar-lhe a verdadeira origem. [...] É certo

Page 10: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

que ela começou com alguns imperfeitos relatos do século XVI, os quais

se refugiaram, em grande parte, nos arquivos da Torre do Tombo

(CÉSAR, 1978, p. 35).

Pode-se inferir, desses posicionamentos de Ferdinand Denis frente à produção

do Brasil, certa aproximação das concepções de estado-nação e fortalecimento do

nacionalismo e originalidade literária. Em o Rèsume, ficam claras tais pretensões

logo no início de suas considerações, quando abre o capítulo I com o seguinte tema:

“Caráter que a poesia deve assumir no Novo Mundo”, refletindo sobre a

nacionalidade literária e propondo a diferenciação da produção local da de Portugal

(WEBER, 1997). “O maravilhoso, tão necessário à poesia encontrar-se-á nos antigos

costumes desses povos, como na força incompreensível de uma natureza

constantemente mutável em seus fenômenos” (Denis, apud Weber, 1997).

Ferdinand Denis morou no Brasil por três anos (1816-1819), durante os quais

pôde observar a cultura, o homem, especialmente o índio, e até escrever sobre a

natureza que tanto o surpreendia. Anos mais tarde, a forma apaixonante e

abrasileirada com que se exprimiu pôde se enquadrar no conceito de obnubilação

brasílica4. Como ainda não havia sido produzido, a seu ver, algo que realmente

exaltasse a exuberância da natureza brasileira, ele próprio escreveu uma novela

intitulada Les Machakalis, considerada como precursora do indianismo romântico

brasileiro por Leon Bourdon (César, 1978, p. 35).

A obra Eternamente em berço esplêndido, (1991), de Maria Helena Houanet,

em seu capítulo 3, intitulado “A hora e a vez do Brasil brasileiro: Ferdinand Denis e

a receita do perfeito viajante, Ferdinand Denis e a literatura nacional” apresenta ao

leitor um historiógrafo que figura constantemente em notas de rodapé e referências

bibliográficas de vários textos que se propunham a estudar a história literária do

4 A esse fenômeno, durante o qual, como se vê, adelgaçaram-se, atenuaram-se todas as camadas de

hábitos que subordinavam o homem à civilização, abriu-se uma fenda na estratificação da natureza civilizada, para dar passagem à poderosa influência do ambiente primitivo; a esse fenômeno, que se acentua a cada passo no movimento da vida colonial ou aventureira do século XVI, poder-se-ia dar o nome de obnubilação brasílica (CÉSAR, 1978, p. 34, nota 47).

Page 11: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

Brasil e outros países, tornando-se ele próprio uma fonte viva de consulta além de

seus livros. Era um polígrafo em sua mais pura essência:

Da História ao romance indianista, com incursões pela arte da fabricar

artefatos e enfeites com plumas de pássaros, pelo gosto dos brasileiros

pela música ou pela introdução do dromedário no Nordeste brasileiro,

nada parece ter escapado a este homem cuja formação setecentista se

revela também no gosto muito especial pela erudição enciclopédica

(ROUANET, 1991, p. 139)

Algumas considerações

Denis deu conta dos acontecimentos no Brasil e sua relevância para o povo

local e os europeus. Envolveu-se tanto nas questões locais que chegou a se

manifestar contrariamente ao colonianismo português empregado no Brasil, mas,

como era um renomado historiador e seus textos contemplavam “gregos e troianos”,

seu posicionamento político não lhe rendeu mais infortúnios. Convém salientar que

as questões relativas ao homem negro não foram tratadas por Ferdinand Denis,

compartilhante da opinião dos demais estrangeiros de que a vida dos negros vindos

para o Brasil era “bem mais benigna do que nas outras colônias” (ROUANET, 1991,

p. 167). No entanto, em carta encaminhada a um amigo, deixa claro seu

descontentamento em relação à questão quando observa os numerosos negros que

chegam de navio vindos da Costa da África para serem escravizados aqui

(ROUANET, 1991).

Quanto à historiografia literária propriamente dita, quando Denis fez a

separação entre os escritores portugueses e os brasileiros, providenciou a inserção do

poetas nacionais no cenário da literatura universal na medida em que no cânone

forjado então os escritores figurariam com nacionalidade diversa da portuguesa,

particularizando sua temática e individualidades. Rouanet (1991) afirma que Denis

era considerado uma autoridade em historiografia, considerado uma fonte viva de

pesquisa, além, é claro, da vastidão de seus textos. Os escritos dos autores brasileiros

como sendo da história literária brasileira ficaram mais conhecidos a partir de Denis,

Page 12: FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA

pois, supõe-se, agora tinham uma nacionalidade. O que se percebe é que Denis

lançou “a pedra fundamental de uma longa construção” (Rouanet, 1991, p. 192)

quando colocou cada literatura em seu lugar.

REFERÊNCIAS

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Tradução:

Marcos Santarrita. São Paulo: Objetiva, 1994, p. 23-47.

CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e críticos do Romantismo – 1: a contribuição

européia, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos/São

Paulo: EDUSP, 1978.

REIS, Ricardo. Cânon. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica: tendências e

conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

ROUANET, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma

literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Introdução à historiografia da literatura brasileira.

Rio de Janeiro: EDUERJ, 2007.

WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na

historiografia literária brasileira. Florianópolis: EDUFSC, 1997.