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FERDINAND - Visionvox · onde ir quando os meus indesejados hóspedes partissem. A noite estava chegando. Na penum-bra seus rostos eram ainda menos simpáticos. Apanharam seus frascos

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FERDINAND OSSENDOWSKI

BESTAS, HOMENS E

DEUSESO ENIGMA DO REI DO MUNDO

Tradução de AGATA M. AUERSPERG

LUTANDO CONTRA A MORTE

1Na Floresta

No começo do ano 1920 eu estava em Krasnojarsk, na Sibéria. A cidade encontra-se à beira do rio Ienissei, um rio imponente que nasce nas montanhas ensolaradas dá Mongólia, levando calor e vida para o mar Ártico. Nansen veio duas vezes até a sua foz para abrir ao comércio europeu uma rota até o coração da Ásia. Nessa cidade, no meio do calmo inverno siberiano, eu fui alcançado pelo vendaval da

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revolução que estava varrendo toda a Rússia, semeando naquele pais rico e pacífico a vingança, o ódio, o assassinato e toda espécie de crimes não previstos pelos códigos penais.Ninguém conseguia imaginar qual seria seu des-tino. As pessoas viviam de um dia para o outro, saíam de casa sem saber se voltariam ou se seriam presas na rua e jogadas nas masmorras da comissão revolucionária, uma paródia da justiça mais terrível e mais sedenta de sangue que a Inquisição. Apesar de sermos estrangeiros, não estávamos a salvo desse tipo de per-seguição.Uma manhã, visitando um amigo, fui avisado subitamente de que vinte soldados do exército vermelho tinham cercado minha casa para prender-me, e que eu devia fugir. Pedi ao meu amigo umas roupas de caçador, algum dinheiro e fui embora às pressas, a pé, pelas estreitas ruas da cidade. Consegui chegar rapidamente até a estrada onde contratei os serviços de um camponês que em quatro horas levou-me a uma distância de trinta quilômetros, deixando-me numa região de mata cerrada. Durante a viagem adquiri um fuzil, trezentos cartuchos, um machado, um facão, agasalho de pele de carneiro, chá, sal, biscoitos e uma chaleira.Adentrei a mata até encontrar uma cabana aban-donada e semi-destruída. Comecei a levar vida de caçador, sem saber que iria fazê-lo durante muito tempo. Na manhã seguinte tive sorte e consegui abater dois tetrazes. Também descobri pegadas de gamos e notei que teria alimentação

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sem dificuldades. Contudo não consegui permanecer muito tempo naquele local. Cinco dias após, regressando de uma caçada, percebi que rolos de fumaça elevavam-se da chaminé da cabana. Aproximei-me com cuidado e vi, perto da cabana, dois cavalos surreados e fuzis de soldado presos à sela. Calculei que dois homens sem armas não ofereciam nenhum perigo, pois eu estava armado; atravessei rapidamente a clareira e entrei na cabana.Dois soldados que estavam sentados sobre um banco levantaram-se assustados. Eram bolcheviques. Pude ver as estrelas vermelhas em seus barretes de astracã e os galões vermelhos de suas túnicas. Cumprimentamo-nos e sentamos. Os soldados já haviam preparado o chá e o tomamos juntos, falando e observando-nos com um certo ar de desconfiança. Para que não começassem a suspeitar de mim, contei que era caçador e que não era daquela região, mas que eu a escolhera por ser muito rica de zibelinas. Disseram-me que faziam parte de uma patrulha de soldados que estavam em perseguição de possíveis fugitivos.— Camarada, compreenda que estamos procu-rando contra-revolucionários para fuzilá-los, disse um deles.Não estava precisando dessas explicações para saber o que eles queriam. Esforcei-me ao máximo, com minhas palavras, em convencê-los de que eu não passava de um simples camponês e caçador, e que nada tinha a ver com os contra-revolucionários. Estava também pensando para

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onde ir quando os meus indesejados hóspedes partissem. A noite estava chegando. Na penum-bra seus rostos eram ainda menos simpáticos. Apanharam seus frascos de vodka, começaram a beber e o efeito do álcool manifestou-se logo. Suas vozes aumentaram de volume, interrompiam-se um ao outro para gabar-se do número de burgueses que haviam massacrado em Krasnojarsk, e do número de cossacos que haviam enterrado no gelo, dentro do rio. Enfim, começaram a discutir, cansaram logo e iniciaram os preparativos para dormir. De repente, sem nenhum sinal, a porta da cabana abriu-se bruscamente, e o vapor do ambiente superaquecido saiu para fora como uma nuvem de fumaça. Quando o ar clareou, um homem apareceu na soleira da porta, assemelhando-se a um daqueles gênios do canto oriental que surgem da fumaça; era alto, de rosto magro, vestido como um camponês, com um barrete de astracã e uma capa comprida de pele de carneiro. Da soleira, ele apontava seu fuzil para nós. Trazia um machado no cinto, indispensável aos camponeses da Sibéria. Seus olhos, vivos e brilhantes como os de um animal selvagem, perscrutavam cada um de nós. Bruscamente retirou o barrete, fez o sinal-da-cruz e perguntou:— Quem é o chefe?— Eu, respondi-lhe.— Posso passar a noite aqui?— Claro, respondi, aqui há lugar para todos. Você vai tomar uma xícara de chá. Ainda está quente.

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O desconhecido encostou seu fuzil em um canto e começou a tirar sua capa de pele, enquanto nos examinava e a todos os objetos espalhados pelo local, seus olhos indo rapidamente de um lado para o outro. Vestia um velho gibão e calças de couro, e altas botas de feltro. Tinha o rosto jovem, de traços finos e uma expressão de escárnio. Seus dentes alvos e aguçados brilhavam, e os olhos pareciam transpassar tudo o que fitava. Percebi que havia mechas grisalhas entre seus cabelos emaranhados. Duas rugas amargas dos lados da boca revelavam uma vida agitada e rodeada de perigos. Sentou-se perto de seu fuzil, pondo o machado no chão, ao seu lado.— Que é que há? É a tua mulher? perguntou um dos soldados bêbados, referindo-se ao machado.O camponês olhou calmamente para ele, e seus olhos eram frios sob as grossas sobrancelhas; respondeu com tranqüilidade:— Nestes tempos nunca sabemos que tipo de gente encontramos; um bom machado nos dá mais segurança.Começou a tomar o chá, bebendo avidamente. Seus olhos fixaram-se repetidamente no meu rosto, parecendo interrogativos, e voltavam para a cabana, como à procura de resposta às suas dúvidas. Terminando de tomar o chá quente, ele respondia pausadamente às perguntas dos soldados: pousou a xícara de boca para baixo, significando que tinha terminado, colocando sobre a xícara o pedaço de açúcar que sobrara. Depois falou aos soldados:

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— Vou cuidar de meu cavalo, e tirarei as selas dos seus também.— Está bem, respondeu um deles que já estava quase dormindo. Traga-nos também nossos fuzis.Os soldados deitaram-se sobre o banco e para nós sobrou o chão. O desconhecido voltou logo, trazendo os fuzis e as selas. Depositou os fuzis num canto escuro, jogou as selas no chão, sentou sobre uma delas e começou a descalçar as botas. Num instante os soldados e meu novo hóspede estavam roncando, porém eu perma-necia acordado, perguntando a mim mesmo que atitude tomar. Adormeci quando já estava clareando, e só acordei com o sol já alto. O desconhecido não estava na cabana. Saí e vi que estava selando um magnífico garanhão baio.— Você vai embora? perguntei.— Vou sim, mas quero sair junto com os cama-radas, murmurou. Voltarei logo.Não lhe fiz mais perguntas; disse-lhe que o aguardaria. Ele retirou as sacolas que estavam suspensas à sela, escondendo-as num canto da cabana em seguida examinou os estribos e as rédeas; tendo terminado de selar o cavalo disse, sorrindo:— Estou pronto. Vou acordar os camaradas.Meus três hóspedes tomaram chá e despediram-se meia hora depois. Saí para fora e comecei a rachar lenha para o fogo. Repentinamente ouvi tiros ao longe, na floresta: um tiro, e logo mais, outro. Novamente reinou o silêncio. Percebi que alguns tetrazes alçaram vôo, assustados pelos estampidos. Passaram por cima de minha

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cabeça, vindo da direção dos disparos. Um gaio lançou seu grito no topo de um pinheiro. Agucei os ouvidos durante um longo tempo para saber se havia alguém se aproximando da cabana, porém nada quebrava o silêncio.Na região do baixo Ienissei anoitece ainda cedo. Pus lenha no fogão da cabana e comecei a preparar minha sopa, com os ouvidos atentos, o tempo todo, ao barulho que vinha do lado de fora. Tinha ciência de que a morte estava sempre a meu lado e que ela apossar-se-ia de mim a qualquer hora e por qualquer meio: homem, animal, frio, acidente ou doença. Eu sabia que não havia ninguém por perto para prestar-me assistência; o socorro só podia chegar pelas mãos de Deus, pelo vigor das minhas próprias mãos e pernas, pela precisão de minha pontaria e pela minha presença de espírito. Mas de nada adiantou minha vigília: não percebi quando o desconhecido se aproximava. Como na véspera, apareceu repentinamente na soleira da porta. Através do vapor eu podia ver seus traços finos e seu olhar risonho. Entrou na cabana, e os tres fuzis que ele atirou a um canto fizeram barulho.— Dois cavalos, dois fuzis, duas selas, duas latas de biscoitos, meio pacote de chá, um saquinho de sal, cinqüenta cartuchos, dois pares de botas, disse sorrindo. A caça hoje foi boa.Eu o olhava, surpreso.— O que é que há, porque está admirado? per-guntou rindo. Komu nujny eti tovarischi? Quem vai se preocupar com essa gente? Vamos tomar chá e depois dormir. Amanhã levarei você para

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um lugar mais seguro, e você poderá continuar sua viagem.

2O Segredo de meu Companheiro de

Viagem

Deixamos o meu primeiro refúgio e nos pusemos a caminho quando o dia estava clareando. Todos os nossos objetos pessoais foram colocados numa sacola que foi atada a uma das selas.— Teremos que percorrer quatrocentos ou qui-nhentos quilômetros, falou calmamente meu companheiro, que se chamava Ivã. Esse nome nada significava numa terra onde em cada dois homens um se chamava Ivã.— Teremos que viajar por muito tempo então? perguntei meio aborrecido.— Não mais que uma semana,, talvez um pouco menos, respondeu ele.Aquela noite nos acomodamos na floresta, embaixo dos largos galhos de abetos. Era minha primeira noite na floresta, a céu aberto. Mas quantas noites semelhantes eu teria que passar durante os dezoito meses de andanças que se seguiram... Durante o dia, o frio era intenso. A neve gelada se esmigalhava sob as patas de nossos cavalos, grudava embaixo dos cascos, desprendia-se e rolava sobre a dura superfície à semelhança de vidro quebrado. Os tetrazes preguiçosamente levantavam vôo das árvores, as lebres mansamente desciam ao longo das

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ribanceiras dos córregos de verão. À noite, o vento começava a silvar e a gemer em cima de nossas cabeças, por entre as copas das árvores, enquanto que, sob as árvores, tudo era calma e silêncio. Paramos num barranco fundo, contornado de altas árvores. Havia abetos caídos, e nós os cortamos para ter lenha para o fogo. Depois de preparado o chá, começamos a jantar.Ivã trouxe dois troncos, aplainou-os de um lado com o machado, colocou-os um em cima do outro pelo lado plano, depois enfiou entre os dois, nas extremidades, duas lascas que os deixavam separados de nove a dez milímetros. Espalhamos algumas brasas entre as duas superfícies e vimos o fogo correndo rapidamente todo o comprimento aplainado.— Desse jeito teremos fogo até o amanhecer, disse. Esta é a naidaI dos garimpeiros. Quando andamos numa floresta, seja verão ou inverno, sempre nos deitamos ao lado de uma naida. É maravilhoso... Aliás, você mesmo verá, continuou ele.Ele cortou galhos de abeto que colocou em cima de dois suportes, formando um teto inclinado em direção da naida. Por cima de nosso teto de galhos e de nossa naida erguia-se, protegendo-nos, um imenso abeto. Recolhemos mais galhos que pusemos no chão, sobre a neve coberta pelo teto; colocamos em cima dos galhos nossos cobertores de sela, e Ivã sentou-se e começou a retirar seus agasalhos, ficando só com a blusa.

I Um glossário de termos russos e asiáticos acha-se no fim do livro.

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Percebi, a seguir, que o suor banhava a testa e o pescoço e ele ia enxugando-se com as mangas.— Agora, sim, temos um calorzinho agradável! disse ele bem alto.Logo em seguida eu também me vi obrigado a retirar minha capa, deitei-me para dormir sem precisar de cobertor: além dos galhos de abeto e fora da naida o frio era atroz, mas nós estávamos confortavelmente protegidos contra ele. Depois daquela noite o frio deixou de ser motivo de apreensão. Durante o dia, cavalgando, eu me sentia regelado, mas à noite eu era bem aquecido pela naida, e podia repousar sem minha pesada capa, vestindo apenas a blusa sob os galhos de pinheiro e de abeto, e bebendo as sempre bem-vindas xícaras de chá.Durante nossas paradas diárias Ivã contou-me histórias de suas viagens entre as montanhas e as florestas da Transbaikalia, à procura de ouro. Eram histórias repletas de acontecimentos, de aventuras deliciosas, mas também de perigos e de lutas. Ivã era o garimpeiro típico, desses que na Rússia, e talvez em outros países, conseguem descobrir as mais ricas jazidas, porém continuam pobres como mendigos. Ele não me contou o motivo por que deixara a Transbaikalia, vindo para a região do Ienissei. Compreendi, pelas suas atitudes, que não desejava transparecer o assunto, e não insisti. Mas um dia, por acaso, descobri a razão que o levava a fazer tanto mistério desse período de sua vida.Já tínhamos atingido a região que representava a etapa final da nossa viagem. Durante todo o dia

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avançamos com muitas dificuldades entre densas moitas de salgueiro em direção da ribanceira do Mana, o grande afluente da direita do Ienissei. Em volta podíamos ver pistas batidas pelas patas das lebres que viviam naquelas matas. Esses animaizinhos brancos corriam por todos os lados, à nossa frente, sem nenhuma desconfiança. Uma vez conseguimos ver a cauda ruiva de uma raposa que nos observava meio escondida atrás de uma pedra.Já fazia algum tempo que Ivã não pronunciava palavra. Enfim, disse-me que a pouca distância corria um pequeno afluente do Mana e que perto de sua foz havia uma cabana.— O que você prefere fazer? Quer chegar até lá ou prefere pernoitar ao lado da naida?Achei ótimo chegar até a cabana, pois queria tomar um banho e estava pensando que seria agradável poder passar a noite embaixo de um teto de verdade. Ivã franziu as sobrancelhas, porém concordou comigo.A noite já estava descendo quando nos aproximamos da cabana que era cercada de uma floresta espessa e muitos pés de framboesa selvagem. A cabana constava de um pequeno quarto com duas janelas minúsculas e uma imensa lareira russa. Ao lado da parede havia ruínas de um telheiro e de um celeiro.Acendemos o fogão para preparar nosso modesto jantar. Ivã bebeu do frasco usurpado dos soldados, e em breve tornou-se loquaz. Seus olhos brilhavam e suas mãos percorriam freqüentemente seus longos cabelos. Começou a

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narrar uma de suas aventuras, porém parou de repente e fixou os olhos cheios de espanto para um canto sombrio.— Será um rato? perguntou-me.— Não percebi coisa alguma, respondi-lhe.Calou-se novamente, parecendo refletir com as sobrancelhas franzidas. Não me admirei disso, porque freqüentemente ficávamos em silêncio horas a fio. Ivã reclinou-se até ficar encostado a mim e começou num murmúrio:— Quero contar-lhe uma velha história. Na Trans- baikalia eu tinha um amigo. Lá se achava condenado ao desterro. Seu nome era Gavronsky. Estávamos procurando ouro entre todas aquelas montanhas e florestas, e tínhamos concordado em repartir todos os lucros. Mas um dia Gavronsky partiu, repentinamente, para a taiga próxima do Ienissei e desapareceu. Cinco anos mais tarde soubemos que ele descobrira uma jazida de ouro muito rica e que se tornara um abastado proprietário; depois soubemos que ele e sua mulher tinham sido assassinados...Ivã calou-se para logo continuar:— Esta é a velha cabana deles. Ele vivia aqui com a mulher e lavrara o ouro na ribanceira, em algum lugar perto daqui. Ele nunca disse a ninguém onde o encontrara. Todos os moradores das redondezas sabiam que ele tinha muito dinheiro depositado no banco, e que vendia ouro ao governo. Foram assassinados aqui.Ivã aproximou-se do fogão, retirou um tição em chamas e inclinou-se para iluminar uma mancha no assoalho.

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— Está vendo estas manchas no assoalho e na parede? É sangue, o sangue dos Gavronsky. Morreram sem revelar onde se encontra o veio de ouro. Eles o extraíam numa vala muito funda que tinham aberto na ribanceira, mas não queriam dizer onde... Meu Deus, como os torturei... Eu os queimei, quebrei seus dedos, arranquei seus olhos, mas Gavronsky morreu sem falar.. .Refletiu por um instante, e acrescentou depressa:— Todos os detalhes, eu os ouvi dos camponeses.Voltou a por a acha no fogão e estirou-se em cima do banco.— Está na hora de dormir, acrescentou aspera-mente. Depois fechou-se no silencio.Fiquei muito tempo ouvindo-o respirar e murmu-rar para si mesmo, enquanto se virava de um lado para 0 outro, fumando o cachimbo.Na manhã seguinte deixamos a cena de crimes e sofrimentos e após sete dias de viagem alcançamos a densa floresta de cedros que cobre os primeiros contrafortes de uma vasta cordilheira.— Estamos a oitenta quilômetros da vila mais próxima, explicou-me Ivã. Os camponeses chegam até a floresta para recolher nozes de cedro, mas somente durante o outono. Antes da volta dessa estação você não verá ninguém. Há grande fartura de aves e caça, e também grande quantidade de nozes. Por aqui você terá boas possibilidades de viver. Está vendo aquele rio?

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Quando quiser encontrar os camponeses, você terá que descer por ele e os encontrará.Ivã ajudou-me a construir uma cabana de terra, apesar de ela não ser propriamente de terra; apoiava-se nas raízes de um grande cedro caído, provavelmente arrancado com as raízes por alguma furiosa tempestade. Havia sobrado um grande buraco que me serviu para quarto, fechado de um lado por uma parede de terra, reforçada pelas raízes levantadas. Outras raízes horizontais para armação do telhado, formado por estacas e galhos entrelaçados. Para maior estabilidade, coloquei em cima destes algumas pedras, e cobri tudo de neve para conservar o calor. A parte da frente ficava sempre aberta, mas protegida pela naida que fornecia o aque-cimento.Nessa toca coberta de neve consegui passar dois meses que pareceram meses de verão, sem nunca ver outro ser humano, e sem qualquer contato com o mundo onde, durante a mesma época, ocorriam coisas muito importantes.Naquele túmulo, entre as raízes de cedro caído, vivi no mais estreito contato com a natureza, tendo como única companhia de todos os instantes minhas provações, as preocupações a respeito de minha família, e a árdua luta pela sobrevivência.Ivã foi-se embora no segundo dia, deixando-me uma sacola de biscoitos e um pouco de açúcar. Nunca mais tive notícias dele.

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3A Luta pela Sobrevivência

Estava só. À minha volta, imensos cedros sempre verdes e cobertos de neve, moitas secas, o rio gelado e, até onde minha vista alcançasse, só divisava uma vastidão imensa de cedros e de neve. A taiga siberiana...Quanto tempo permaneceria ali? Estava eu a salvo dos bolcheviques? Saberiam os meus amigos que eu estava ali? Que teria acontecido com a minha família? Todas estas perguntas aguçavam constantemente o meu cérebro, queimando como fogo. Não demorei muito a compreender porque Ivã tinha sido meu guia por tanto tempo. Durante nossa viagem tínhamos passado por muitos lugares ocultos e distantes de centros habitados, porém Ivã não queria que eu ficasse neles, apesar de seguros. Repetia continuamente que queria levar-me a um lugar onde fosse mais fácil sobreviver.De fato, meu solitário refúgio oferecia muitos atrativos: florestas de cedro, montanhas cobertas por essas florestas, chegando até o horizonte, em todas as direções. O cedro é uma árvore imponente e magnífica. Seus fortes galhos espalham-se ao redor formando uma tenda sempre verde que atrai, sob sua proteção, todas as criaturas da floresta. A vida fervilhava embaixo dos cedros. Os esquilos faziam muito barulho saltando de uma árvore para outra; os

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quebra-nozes lançavam gritos agudos; revoadas de piscos, com o peito encarnado, passavam entre as árvores lembrando chamas; bandos de pintassilgos apareciam, de repente, enchendo a floresta de silvos e trinos; uma lebre pulava entre os troncos, seguida sorrateiramente por um arminho branco que rastejava, quase invisível, na neve. Eu ficava muito tempo esperando ver o ponto preto que sabia estar na extremidade de sua cauda. Às vezes um belo gamo avançava cautelosamente sobre a neve dura e um dia o rei da floresta siberiana, um urso pardo, desceu da montanha para me visitar. Tudo isso representava um entretenimento que afastava o pessimismo do meu espírito, ajudando-me a resistir.Gostava também, apesar da dificuldade, de escalar a montanha; ela dominava a floresta e daquelas alturas eu conseguia alcançar com a vista a ribanceira avermelhada do lado oposto do Ienissei que aparecia no horizonte. Daquele lado estavam os países, as cidades, os amigos e os inimigos; eu acreditava conhecer a direção exata em que vivia minha família. Por isso Ivã levara-me até lá. Os dias iam passando e naquela imensa solidão comecei a sentir muitas saudades do meu companheiro, apesar de ser o assassino de Gavronsky, ele tinha cuidado de mim como um pai. Sempre selava meu cavalo, rachava a lenha e fazia o possível para me dar todo o conforto. Ele passara muitos invernos na mais completa solidão, acompanhado só pelos seus pensamentos, perante Deus e a natureza;

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conhecera o desespero da solidão, aprendendo como vencê-lo. Às vezes eu pensava que se tivesse que morrer naquele lugar, eu ia empregar minhas últimas energias para subir a montanha e poder olhar, antes de morrer, além daquele oceano de montes e florestas, a direção do lugar onde moravam os meus entes queridos.Passava a maior parte do dia caçando. Compreendi que precisava dividir o meu tempo entre várias tarefas para afugentar os pensamentos negros e deprimidos.Geralmente, depois de tomar meu chá da manhã, andava pela floresta procurando tetrazes. Depois de matar um ou dois, começava a preparar o meu jantar, onde nunca apareciam pratos complicados. Era sempre caldo de caça com um punhado de biscoitos, seguido por um sem-número de xícaras de chá, que é uma bebida indispensável na floresta. Um dia, entrando entre espessas moitas, percebi um movimento; olhando com muita atenção, vislumbrei as pontas dos chifres de um gamo. Tentei aproximar-me cautelosamente mas o animal, desconfiado, me pressentiu. Desvencilhou-se da moita, com muito barulho, consegui vê-lo claramente correr cerca de trezentos passos e parar contra o flanco da montanha. Era um animal esplêndido, de pelagem cinza-escuro, a espinha dorsal quase preta, do tamanho de uma pequena vaca. Disparei o fuzil, apoiando-o a um galho. O gamo pulou alto, correu alguns passos e tombou. Esforcei-me para correr até ele o mais rapida-

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mente possível, porém ele levantou-se e começou a subir a montanha entre pulos e arrastões. Disparei uma segunda vez, e ele morreu. Conseguira um aconchegante tapete para minha toca, e uma boa quantidade de carne. Coloquei os chifres entre os galhos da minha parede, onde serviram muito bem para pendurar minha capa.Presenciei um fato muito curioso a alguns quilômetros do meu abrigo. Havia um pântano, coberto de vegetação e salpicado de airelas, onde os tetrazes e as perdizes costumavam comer bagos. Um dia aproximei-me sem fazer barulho e vi um grande número de tetrazes raspando a neve à procura de bagos. Estava apreciando o espetáculo quando, de repente, uma das aves surgiu no ar e as demais, assustadas, levantaram vôo e fugiram, O tetraz subiu no ar, em espiral, enquanto eu olhava estarrecido, e depois caiu de uma vez, morto. Aproximei-me: um arminho voraz pulou e foi esconder-se embaixo de um tronco de árvore caído. O pescoço da ave estava estraçalhado. Compreendi, então, que o arminho tinha atacado o tetraz e, sem largar sua presa, tinha sido levado para o alto pela ave, enquanto sugava seu sangue. Assim tinha provocado sua queda e sua morte.

4Pescaria

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Um dia, durante a caçada, aproximei-me da bar-ranca do rio e vi um grande número de peixes graúdos, com as costas vermelhas, parecendo cheias de sangue. Eles estavam nadando na superfície, gozando os raios do sol. Quando o rio ficou livre dos blocos de gelo apareceram cardumes enormes de peixes. Percebi logo que estavam subindo a correnteza para a desova nos pequenos rios. Pensei em aplicar um método de pesca que é proibido por lei em todos os países: acredito, porém, que os homens da lei serão generosos com um homem que, vivendo numa toca ao abrigo das raízes de uma árvore caída, teve a audácia de infringir uma lei mais do que justa.Andei catando galhos de bétula e de faia e construí, no rio, um dique que os peixes não conseguiam transpor. Vi que estavam tentando pular por cima. Perto dá margem abri, no meu dique, uma passagem a cinqüenta centímetros da superfície, e à montante fixei um alto cesto que trançara com galhos flexíveis de salgueiro, onde o peixe entrava, vindo da abertura. Enfim, fiquei de tocaia, e quando aparecia um peixe, batia fortemente na sua cabeça usando um grosso pau. Todos os peixes que apanhei com este sistema pesavam mais de treze quilos. Apanhei alguns com aproximadamente trinta e cinco quilos. Estes peixes são chamados taimen, pertencem à família das trutas, e não existe outro melhor no Ienissei.

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Após duas semanas percebi que todos os peixes já tinham passado e meu cesto já não tinha serventia; então voltei a caçar.

5Um Vizinho Perigoso

Dia a dia a caça se tornava cada vez mais abun-dante e agradável à medida que a primavera trazia vida novamente. Desde os primeiros albores do dia a floresta ecoava de vozes estranhas e incompreensíveis para os habitantes das cidades. Os tetrazes cacarejavam e, empoleirados nos altos galhos dos cedros, lançavam seu canto de amor, contemplando admirados as fêmeas cinzentas que, mais abaixo, ciscavam as folhas secas. Era fácil chegar perto de um tenor plumado, derrubando-o das mais líricas alturas, a fuções bem mais utilitárias, com um tiro certeiro. Sua morte era uma eutanásia no meio de um devaneio amoroso que o deixava surdo. Na clareira, galos negros com vistosas caudas sarapintadas, lutavam, enquanto as fêmeas, pavoneando-se por perto, tagarelavam e fofocavam, admirando a guerra dos galãs.Havia por perto outro animal, e cedo ou tarde um de nós dois devia ceder o lugar. Num dia que eu estava voltando da caçada com um belo tetraz, vi de repente, entre as árvores, um vulto escuro que se movia. Parei para observar melhor e deparei com um urso que, com toda sua energia, cavava um formigueiro. Ele me pressentiu,

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resmungou com violência e afastou-se com uma pressa que me deixou admirado por ser um animal tão pesado. Na manhã seguinte, estando ainda deitado, coberto por minha capa, tive a atenção despertada por um movimento atrás da minha cabana. Olhei, com muita cautela, e vi o urso. Estava erguido sobre as patas traseiras, fungando com força, talvez perplexo pelo fato de haver outra criatura que, como os ursos, tinha-se entocado durante o inverno embaixo de uma árvore caída. Gritei e bati com o machado contra a chaleira. Meu visitante fugiu a toda velocidade, contudo, a visita não deixava de ser desagradável. Isto aconteceu no começo da primavera e o urso normalmente não deixa sua toca invernal tão cedo. Era um urso formigueiro, um urso totalmente anormal e ignorante das boas maneiras, que caracterizavam as espécies superiores da sua raça.Eu sabia que os ursos formigueiros eram irrita-diços e audaciosos, e comecei meus preparativos para a defesa e o ataque. Os preparativos foram rápidos. Cortei as pontas de cinco cartuchos, transformando-os em "dum-dum", achando que eram os melhores argumentos para convencer meu desagradável vizinho. Apanhei minha capa e fui até o local onde pela primeira vez tinha-me defrontado com o urso, e onde se encontrava grande número, de formigueiros. Contornei a montanha, olhei em todos os barrancos, mas não vi rastro do urso. Cansado e um pouco decepcionado, estava já nas proximidades do meu abrigo e não desconfiava de nada. Fiquei

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surpreso quando vi o rei da floresta que saía da minha toca e, parado na entrada, estava chei-rando a parede de alto a baixo. Atirei. A bala entrou-lhe pelo flanco. Rugiu de raiva e de dor e levantou-se sobre as patas traseiras. O segundo tiro quebrou-lhe uma das patas. Caiu, mas logo levantou-se, esforçando-se por ficar de pé e, arrastando a pata, veio ao meu encontro para atacar-me. Só parou após o terceiro disparo que o atingiu em cheio, no peito. Pesava entre noventa a cento e dez quilos, a meu ver, e sua carne era muito saborosa. Preparava com ela almôndegas que assava sobre pedras aquecidas, observando-as quando cresciam, ficando tão leves quanto as gostosas fritadas "soufflées" que costumávamos apreciar no "Medved" em Leningrado. Vivi desta reserva de carne, conseguida com tanta sorte, até que o sol começou a esquentar realmente e o nível das águas baixou o suficiente para poder descer ao longo do rio até a aldeia indicada por Ivã.Tomando sempre todas as cautelas, andei a pé seguindo o curso do rio e levando nas minhas costas, na pele do gamo amarrada pelas patas, todos os meus utensílios. Com meu fardo às costas passei pelo vau dos pequenos riachos e chafurdei nos pântanos que encontrava pelo caminho. Depois de percorrer cerca de oitenta quilômetros cheguei à aldeia Sifkova, onde o camponês Tropoff tinha uma cabana. Ela estava à margem da floresta, e a floresta tinha-se tornado o meu ambiente natural. Permaneci algum tempo com ele.

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6Um Rio Agitado

Minha estada em Sifkova não durou muito, todavia, aproveitei muito bem o tempo. Escolhi um homem em quem podia confiar e mandei-o para Krasnojarsk, ao endereço dos meus amigos. Enviaram-me roupa de baixo, botas, dinheiro, uma bolsa com remédios e, mais importante que o resto, um passaporte falso, porque os bolcheviques acreditavam que eu tinha morrido. Em seguida comecei a verificar quais eram as melhores oportunidades nas circunstâncias em que eu me achava. Não decorreu muito tempo, e o povo de Sifkova ficou sabendo que o comissário do governo soviético estava para chegar a fim de requisitar gado para o exército vermelho. Demorar mais tempo em Sifkova podia ser perigoso. Queria esperar até que o Ienissei estivesse livre de sua espessa capa de gelo que ainda o estava bloqueando, apesar de os rios menores já estarem livres do gelo, e as árvores já estivessem revestidas de suas folhagens de primavera.Contratei um pescador que, por mil rublos, estava disposto a levar-me até uma mina de ouro abandonada, situada a oitenta quilômetros à montante do rio, logo que as águas estivessem livres de gelo. O rio livrava-se do gelo aos poucos. Certa manhã ouvi violentos estrondos, parecendo canhoneio, e corri para ver: a água havia levantado a capa de gelo, que recaía

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quebrando com estalos. Cheguei à barranca e pude presenciar uma cena terrível e majestosa.O rio estava carregando uma quantidade enorme de blocos de gelo que já se tinham desprendido ao sul e estava transportando-os para o norte, forçando-os embaixo da espessa capa de gelo que ainda cobria o rio em alguns trechos: este impacto continuado rompeu, finalmente, a barragem invernal, ao norte, liberando essa quantidade fantástica de blocos de gelo para a última investida em direção do Oceano Ártico. O Ienissei — o pai Ienissei, o herói Ienissei — é um dos mais compridos rios da Ásia, fundo e majestoso em todo o trecho médio do seu curso, passando por um "cânon" ladeado por altas serras escarpadas. A correnteza carregava ex-tensas zonas de gelo, triturando-o nas corredeiras e contra as rochas isoladas, revirando-o em redemoinhos vertiginosos, levantando trechos inteiros marcados pelas escuras estradas do inverno, arrastando as tendas construídas para as caravanas que, naquela estação, se dirigem de Minusinsk a Krasnojarsk, por sobre o leito do rio congelado.Eu estava contemplando a épica retirada do gelo e sentia-me cheio de terror e de revolta olhando os macabros despojos que o Ienissei levava consigo nessa sua investida anual. Eram os cadáveres dos contra-revolucionários executados, dos oficiais, dos soldados, e dos cossacos do antigo exército do governador, general de toda a Rússia antibolchevista, o almirante Kolchak. Era o resultado do trabalho

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sanguinário da Cheka de Minusinsk. Centenas de cadáveres decapitados, com as mãos decepadas, os rostos mutilados, os crânios esfacelados; os corpos semi-carbonizados estavam flutuando na correnteza, misturando-se aos blocos de gelo, ou giravam nos redemoinhos entre o gelo esmiuçado, sendo esmagados e dilacerados, reduzidos a uma massa informe que o rio, como se estivesse enjoado dessa tarefa, largava sobre os bancos de areia e sobre as pequenas ilhas. Percorri todo o curso médio do Ienissei, encontrando continuamente essas provas putrefatas e horríveis da obra dos bolcheviques. Numa curva do rio deparei com uma grande quantidade de carcassas de cavalos, deveriam ser pelo menos trezentas. À um quilômetro da vazante, topei com um espetáculo terrível: um grupo de salgueiros tinha sido arrastado pela correnteza e entre seus galhos arqueados, como entre os dedos de uma mão, tinha recolhido corpos humanos de todas as formas e em todas as poses, que conservavam uma aparência tão natural que a horrível visão ficou marcada para sempre na minha memória. Contei setenta cadáveres, neste grupo macabro e lastimável.Finalmente as montanhas de gelo passaram. Se-guiram-se enchentes de águas barrentas que levavam troncos de árvores, galhos e corpos e mais corpos. O pescador e seu filho embarcaram-me em sua canoa feita de tronco de choupo e empurrado com duas varas começaram a subir o rio, beirando a margem. É muito difícil subir contra uma correnteza rápida. Nas curvas mais

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fechadas tínhamos que remar com todas as nossas forças contra a violência da água. Havia trechos nos quais só podíamos progredir agarrando-nos às rochas. Várias vezes, nos lugares onde havia corredeiras, levamos muito tempo para avançar cinco ou seis metros. Demo-ramos dois dias para chegar ao fim da viagem.Passei alguns dias na mina de ouro, onde habitavam o vigia e sua família. Eles estavam com falta de mantimentos e não podiam oferecer-me nada. Tive que recorrer novamente à minha espingarda para comer e para contribuir com a alimentação dos meus hospedeiros.Num determinado dia chegou um engenheiro agrônomo. Eu não estava me escondendo, ainda mais que durante o inverno tinha deixado a barba crescer e acredito que nem minha própria mãe conseguiria reconhecer-me. Nosso visitante era um homem muito esperto e desconfiou logo de minha identidade. Eu não o temia, porque vi logo que não era um bolchevique, e ele mais tarde confirmou isto. Acabamos descobrindo que tínhamos amigos comuns e que nossas opiniões sobre os acontecimentos também eram idênticas. Ele estava vivendo nos arredores da mina de ouro numa pequena aldeia onde supervisionava alguns trabalhos públicos. Tomamos a decisão de fugir juntos. Fazia muito tempo que eu estava pensando nisso, e meu plano de fuga estava pronto.Conhecendo bem a situação na Sibéria e também sua geografia, eu achava que o melhor caminho seria pelo Urianhai, que é a região

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sententrional da Mongólia, perto das nascentes do Ienissei, atravessando em seguida a Mongólia para alcançar o Extremo Oriente e o Pacífico. Antes de cair o governo de Kolchak, tinha sido encarregado de estudar o Urianhai e a Mongólia ocidental: nessa época eu estudara com o maior cuidado todos os mapas da região e todas as obras a respeito. Eu tinha, também, como poderoso estimulante para conseguir o sucesso nessa audaciosa empresa, a firme determinação de sobreviver.

7Atravessando a Rússia Soviética

Pusemo-nos a caminho alguns dias mais tarde, atravessando a floresta na margem esquerda do Ienissei, indo para o sul. Evitávamos as aldeias, toda vez que fosse possível, porque estávamos preocupados em não deixar pistas que pudessem facilitar a nossa perseguição.Cada vez que éramos obrigados a entrar numa aldeia, éramos bem recebidos pelos camponeses que não desconfiavam dos nossos disfarces. Também era claro que eles detestavam os bolcheviques porque estes tinham arrasado um grande número de aldeias. Numa dessas localidades ficamos sabendo que um destacamento do exército vermelho tinha sido enviado de Minusinsk para caçar os Brancos.

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Tivemos que nos afastar das margens do Ienissei, ficando escondidos nos bosques e nas montanhas. Passamos quinze dias nesta situação, e durante todo esse tempo, os soldados vermelhos cruzavam a região, capturando nos bosques, os oficiais desarmados. Estavam esfarrapados e escondiam-se, temendo a vin-gança dos bolcheviques. Mais tarde passamos por uma floresta e encontramos os corpos de vinte e oito oficiais enforcados nas árvores, com os rostos e os corpos mutilados. Decidimos então que jamais os bolcheviques conseguiriam pegar-nos vivos. Para isso tínhamos nossas armas e certa quantidade de cianureto de potássio.Atravessando um afluente do Ienissei descobrimos um dia uma passagem estreita e pantanosa, em cuja entrada estavam empilhados cadáveres de homens e de cavalos. Mais adiante achamos os destroços de um trenó, malas arrebentadas e papéis esparsos ao redor. Por perto jaziam roupas rasgadas e mais cadáveres. Quem seriam os infelizes? Que horrenda tragédia se desenrolara embaixo das grandes árvores? Esforçamo-nos por encontrar indícios que nos ajudassem a desvendar o mistério, examinando todos os documentos encontrados. Eram cartas oficiais endereçadas ao Estado-Maior do general Popelaieff. Chegamos à conclusão de que provavelmente uma parte do Estado-Maior havia chegado até a floresta, durante a retirada das tropas de Kolchak, tentado esconder-se; mas o inimigo estava ao encalço e eles foram presos pelos vermelhos e massacrados. Ainda um pouco

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mais adiante deparamos com o corpo de uma infeliz mulher, e as condições em que estava diziam claramente o que se tinha passado com ela antes que um tiro piedoso a livrasse dos sofrimentos. O corpo estava deitado ao lado de um abrigo de folhas, repleto de garrafas e de latas de conservas que comprovavam a medida da orgia que tinha precedido o crime.Quanto mais nos adentrávamos nas regiões ao sul, mais podíamos constatar a amabilidade do povo, francamente hospitaleiro e inimigo dos bolcheviques. Afinal chegamos ao ponto onde terminava a floresta e começavam as estepes de Minusinsk, atravessados pela alta serra de montanhas vermelhas chamadas Kizili-Kaiya, e entremeadas de lagos salgados. Esta é a região dos túmulos, de milhares de dólmens grandes e pequenos, monumentos funerários dos primeiros dominadores desse país: pirâmides de pedra de dez metros de altura aí estão, marcando o caminho seguido por Gengis Khã para as suas conquistas, e depois por Tamerlão.Milhares de dólmens e pirâmides se enfileiram a perder, de vista, em direção ao norte. Os Tártaros moram agora nessas planícies. Eles foram saqueados pelos bolcheviques e os odeiam. Dissemos francamente a essa gente que estávamos fugindo. Eles nos deram alimentos, providenciaram guias, explicaram onde podíamos parar com segurança, e também onde esconder-nos em caso de perigo.Alguns dias mais tarde conseguimos ver, do alto da ribanceira do Ienissei, o primeiro navio a

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vapor, o "Oriol", que de Kransnoiarsk estava levando a Minusinsk um grande número de soldados vermelhos. Chegamos rapidamente à foz do Tuba, rio que íamos beirar durante nossa viagem para o leste até chegarmos aos montes Sayan, onde começa a região do Urinhai.Esta parte da viagem, beirando o Tuba e em se-guida seu afluente, o Amyl, era por nós considerada a mais perigosa. De fato, nos vales destes dois rios encontrava-se uma população numerosa que tinha fornecido muitos soldados aos dois comissários comunistas, Schetinkin e Krafchenko.Um Tártaro ajudou-nos a passar, com os nossos cavalos, para a margem direita do Ienissei. Ao despontar do dia ele mandou-nos alguns Cossacos como guias até a foz do Tuba. Descansamos durante todo o dia, comendo groselhas e cerejas selvagens.

8Três dias à Beira do Abismo

Tínhamos passaportes falsos e iniciamos a subida pelo vale do Tuba. A cada dez ou quinze quilômetros encontrávamos grandes aldeias. Havia algumas com até seiscentas casas; toda a administração estava nas mãos dos bolcheviques, e havia espiões examinando os viajantes. Não podíamos evitar as aldeias por

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duas razões: em primeiro lugar, continuamente encontrávamos camponeses da região, e qualquer tentativa de evitá-los levantaria suspeitas; podíamos ser presos por um revolucio-nário e mandados à Cheka de Minusinsk, o que para nós significaria o ponto final. Em segundo lugar, meu companheiro de viagem tinha documentos que o autorizavam a usar as mudas de cavalos do governo para ajudá-lo em sua viagem. Dessa forma éramos obrigados a visitar os soviéticos das aldeias, para trocar os cavalos. Tínhamos deixado nossas montarias com o Tártaro e com o Cossaco que nos ajudara na foz do Tuba, e o Cossaco levou-nos numa carreta até a aldeia mais próxima, onde conseguimos cavalos de muda.Todos os camponeses, com raras exceções, eram hostis aos bolcheviques, e faziam o possível para nos ajudar. Eu retribuía a gentileza clinicando para os doentes e meu companheiro dava conselhos práticos sobre lavoura. Os velhos dissidentes e os Cossacos eram os que mais nos ajudavam.Vez ou outra encontrávamos aldeias totalmente comunistas, mas aprendemos rapidamente a reconhecê-las. Quando entrávamos numa aldeia com os guizos dos arreios tilintando e víamos que os camponeses, sentados na soleira das casas, franziam o cenho e davam sinais de querer levantar, num burburinho que com cer-teza queria dizer "olha aí, tem mais desses diabos chegando", tínhamos absoluta certeza de que a aldeia era anticomunista e que aí

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podíamos apear com segurança. Quando, porém, os camponeses vinham ao nosso encontro com expressões de alegria, chamando-nos de camaradas, sabíamos que estávamos no meio de inimigos, e tomávamos todas as precauções.Estas aldeias não eram mais povoadas pelos siberianos amantes da liberdade, mas por emigrantes da Ucrânia — eram bêbados e preguiçosos, vivendo em choças imundas e sórdidas, apesar de as aldeias serem cercadas pelas terras negras e férteis da estepe.Passamos momentos perigosos mas também agradáveis na grande aldeia, ou mais propriamente, na cidade de Karatuz. Em 1912 haviam sido inaugurados lá dois colégios, e a população chegou a 15.000 habitantes. Era a capital da região dos Cossacos do Ienissei do sul. Quando passamos por lá era difícil ver como já tinha sido a cidade. Os emigrantes do exército vermelho tinham chacinado a população cossaca, destruindo e queimando a maioria das casas. Naquele momento era a central do bolchevismo, da região e do distrito de Minusinsk.Tivemos que ir ao prédio do soviet para trocar nossos cavalos, e quando chegamos lá havia uma reunião da Cheka. Fomos logo cercados, examinaram nossos documentos. Não tínhamos; muita certeza da impressão que nossos documentos causaram, e procurávamos evitar a visita. Meu companheiro de viagem comentava freqüentemente, em seguida:

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—- "É sorte nossa que, entre os bolcheviques, os incompetentes de ontem sejam os governantes de hoje e que, ao contrário, a gente culta esteja varrendo as ruas e limpando as estrebarias da cavalaria vermelha. Posso sempre conversar com um bolchevique porque ele não conhece a diferença entre desinfetado e desafetado e nem entre antracite e apendicite; encontro sempre um jeito de fazê-lo concordar com o meu racio-cínio, e até convencê-lo a não me executar."Conseguimos um meio para convencer os membros da Cheka a dar-nos tudo o que estávamos precisando. Executamos para eles um magnífico projeto para organizar a região: compreendia a construção de pontes e estradas que facilitariam o escoamento das madeiras do Urianhai, do ouro e do ferro dos montes Sayan, do gado e das peles da Mongólia. Este empreendimento criador seria um verdadeiro triunfo para o governo dos soviets! A composição dessa ode lírica tomou-nos mais ou menos uma hora e depois disso, os membros da Cheka esqueceram nossos papéis, deram-nos cavalos novos, içaram nossa bagagem na carreta e nos desejaram boa sorte. Foi a última das nossas provações dentro das fronteiras da Rússia.A sorte nos acompanhou quando saímos do vale do Amyl. Na passagem da barreira encontramos um membro da milícia de Karatuz. Carregava na sua carreta alguns fuzis e pistolas automáticas, na maioria Mauser, para armar um destacamento que devia adentrar-se no Urianhai à procura de alguns oficiais cossacos que causavam muitos

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aborrecimentos aos bolcheviques. Ficamos alvoroçados. Poderíamos cruzar facilmente com aquela expedição e não tínhamos certeza de que os soldados aceitariam nossas explicações da mesma forma que os membros da Cheka de Karatuz. Com muito tato tentamos interrogar o homem a respeito da rota da expedição. Na primeira aldeia entramos na mesma casa que ele escolheu. Tive que abrir minha alma e surpreen-di-me com o olhar de admiração que ele fixou sobre o conteúdo.— O que lhe causa tanta admiração? perguntei.Ele murmurou:— As calças... as calças...Meus amigos presentearam-me com calças de montaria novas, de espesso e belo pano preto. O soldado olhava fascinado para as calças, sem disfarçar sua admiração.— Se você realmente não tem outra... falei, re-fletindo como podia tirar proveito da situação.— Não tenho, não, explicou entristecido, os soviets não nos fornecem calças. Eles disseram que também não têm. E as minhas estão completamente gastas. Veja só...Assim falando suspendeu um lado da capa, e não consegui entender como o homem conseguisse montar com calças que tinham mais rasgos que pano.— Vende-me as calças — suplicou.— Impossível — retruquei decidido — preciso delas.Ele pensou um pouco, depois aproximou-se de mim:

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— Vamos sair um pouco, aqui não podemos conversar.Do lado de fora ele virou-se para mim:— Ouça. Quero saber sua opinião. Vocês vão ao Urianhai e o dinheiro soviético não tem valor naquela região. Vocês não poderão comprar nada, ao passo que há, por aí, grande quantidade de zibelinas, arminhos, além do ouro em pó que o povo da terra gostaria de dar em troca de fuzis e de cartuchos. Vocês já tem seus fuzis. Dar-lhe-ei mais um com uma certa quantidade de cartuchos, em troca das calças.— Nós não estamos precisando de mais armas. Nossos documentos são uma proteção suficiente — respondi, fingindo não entender o que ele estava insinuando.— Não se trata disso — interrompeu — eu queria dizer que vocês podem trocar o fuzil por peles ou por ouro. Quero dar-lhe o fuzil já.— Desse jeito, um fuzil é pouca coisa em troca de um par de calças. Atualmente você não conseguiria encontrar calças desse tipo em toda a Rússia. Aliás, a Rússia toda anda sem calças, e seu fuzil serve apenas para trocá-lo por uma pele de zibelina. Uma pele não dá para nada.Aos poucos, regateando, consegui o que eu queria. O miliciano ficou com as calças e eu recebi um fuzil com cem cartuchos e duas pistolas automáticas com quarenta cartuchos cada uma. Estávamos bem armados agora, e podíamos defender-nos. Consegui até a con-vencer o feliz dono das minhas calças em nos dar

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uma licença de porte de armas. Estávamos, portanto, com a força e a lei do nosso lado.Numa aldeia afastada, contratamos um guia e compramos biscoitos, carne, sal, manteiga e, após descansar vinte e quatro horas, reiniciamos nossa viagem, subindo o Amyl em direção dos montes Sayan, na fronteira de Urianhai. Esperávamos, lá chegando, não ter mais que reencontrar os bolcheirques, por mais inteligente ou estúpidos que fossem.Três dias após ter deixado a foz do Tuba, estáva mos atravessando a última aldeia na proximidade da fronteira com o Urianhai: foram três dias entre pessoas sem fé nem lei, entre perigos contínuos, e com a possibilidade sempre presente de encontrar morte súbita. A vontade ferrenha, a presença de espírito e a perseve-rança sem limites conseguiram proteger-nos de todos os perigos e evitar que caíssemos no abismo, como tantos outros infelizes que não lograram, na sua escalada aos cumes da liberdade, aquilo que agora estávamos desfru-tando. Talvez lhes faltassem vontade ou presença de espírito, talvez não tivessem inspiração poética para cantar hinos de glória às pontes, às estradas e às minas de ouro, ou talvez simplesmente não tivessem calças de reserva.

9Rumo aos Montes Sayan e a Liberdade

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Estávamos cercados por espessas matas virgens. Nosso caminho serpenteava, quase invisível, entre a erva alta e amarelecida entre moitas e árvores que perdiam suas primeiras folhas multicoloridas. Estávamos seguindo o traçado da velha estrada do vale do Amyl que já tinha sido esquecida. Vinte e cinco anos antes, por esta estrada, passavam os mantimentos, as máquinas e os trabalhadores em direção das minas de ouro que agora estavam abandonadas. A estrada seguia o curso sinuoso do Amyl que naquele ponto era largo e rápido, em seguida mergulhava na mata fechada, contornava pântanos repletos de perigosos atoleiros, e continuava entre matas, montanhas e pastos. Nosso guia devia ter opinião formada a respeito das nossas verdadeiras intenções, e, às vezes, olhando preocupado para o solo, dizia:Três cavaleiros que montavam cavalos ferrados passaram por aqui. Talvez fossem soldados.Mas ele voltava a acalmar-se quando via que o rastro saía do caminho para voltar logo em seguida.— Eles não foram para mais longe — observava maliciosamente e sorria.— Que lástima! — disse-lhe eu — teria sido agra-dável viajar juntos.Contudo o camponês não respondeu e cofiou a barba, rindo. Era evidente que nossas afirmações não o convenciam.Passamos perto de uma mina de ouro que, em tempos idos, estava organizada e equipada da forma mais racional; agora, porém, estava

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abandonada e os prédios todos destruídos. Os bolcheviques tinham levado as máquinas, os mantimentos e também parte dos barracos. Ao lado encontrava-se uma igreja triste e sombria com as janelas quebradas; o crucifixo tinha desaparecido e o campanário estava queimado, típico e lastimável símbolo da Rússia daqueles dias. O vigia e sua família, quase mortos de fome, viviam na mina, expostos a privações e perigos contínuos. Narraram que naquela região cheia de florestas um bando de vermelhos percorria as aldeias, roubando tudo que podiam levar da mina e extraíram o que podiam, na parte mais rica; cheios de pepitas de ouro eles iam beber e jogar nos botequins das aldeias próximas onde os camponeses destilavam vodka de batatas e bagos que vendiam de contrabando a peso de ouro. Se tivéssemos a desdita de encontrar o tal bando, seria nosso fim. Três dias mais tarde atravessamos a parte setentrional da cordilheira do Sayan, e passando o rio que marca a fronteira e que é chamado Algiak, entramos no território de Urianhai.Estávamos tomando chá quando ouvimos a filha de nosso hospedeiro gritar:— Aí vem os Soyotes!Quatro homens armados de fuzis e com chapéus pontudos entraram rapidamente.Mendé, disseram; a seguir passaram a examinar-nos sem nenhuma cerimônia. Não houve botão ou costura, ou objeto de nosso equipamento, que escapasse à sua curiosidade. Em seguida um deles que parecia ser o "Merin", ou governador

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do lugarejo, começou a fazer perguntas para inteirar-se de nossas opiniões políticas. Vendo que estávamos criticando os bolcheviques, ficou muito satisfeito e começou a conversar sem rodeios.— Vocês são boa gente. Vocês não gostam dos bolcheviques e nós vamos ajudar vocês.Agradeci, e ofereci-lhe uma grossa corda de seda que usava como cinto. Eles saíram antes do anoitecer prometendo que voltariam na manhã seguinte. A noite estava chegando. Fomos até o relvado para cuidar de nossos extenuados cavalos que lá estavam pastando e voltamos. Estávamos conversando alegremente com nosso amável hospedeiro quando, de repente, ouvimos barulho de cascos de cavalos no pátio e vozes roucas; a seguir cinco soldados vermelhos, armados de sabres e fuzis, entraram ruidosamente. Senti um calafrio e meu coração disparou. Sabíamos que os vermelhos eram nossos inimigos, e esses homens tinham estrelas vermelhas nos barretes de astracã e um triângulo sobre a manga. Eram membros do destacamento que estava perseguindo os oficiais cossacos. Olhando-nos de esguelha tiraram as capas e sentaram. Começamos a conversar com eles, explicando que estávamos viajando a procura de pontes, estradas e minas de ouro. Ficamos sabendo que o comandante estava por chegar com mais de sete homens, e que eles queriam contratar nosso hospedeiro como guia para chegar até o Seybi, crendo que ali estavam escondidos os oficiais cossacos. Dissemos que

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nos considerávamos com sorte porque íamos prosseguir nossa viagem em companhia dêles. Um dos soldados respondeu que isso dependia do camarada-oficial.Enquanto estávamos conversando, chegou o governador soyote. Ele observou atentamente os recém-chegados e perguntou:— Por que vocês tiraram os cavalos bons dos Soyotes e deixaram os seus que não valem nada?Os soldados começaram a rir.— Lembrem-se que estão num país estrangeiro — falou o Soyote com voz ameaçadora.— Por Deus e pelo diabo! — gritou um dos ofi-ciais. Mas o Soyote muito calmo sentou à mesa e aceitou uma xícara de chá que nossa hospedeira estava-lhe oferecendo. A conversa cessou. O Soyote tomou seu chá, fumou seu comprido cachimbo e, levantando-se, falou:— Se amanhã de manhã os cavalos não forem devolvidos a seus donos, viremos buscá-los.Logo em seguida foi-se embora.Percebi que os soldados ficaram preocupados. Um deles afastou-se para levar uma mensagem e os outros ficaram em silêncio e cabisbaixos. Durante a noite chegou o oficial com os sete soldados. Depois de ouvir o que ocorrera, franziu o cenho.— Que enrascada — disse. — Teremos que atra-vessar um pântano, e aí atrás de cada árvore haverá um Soyote de tocaia.Ele parecia realmente aborrecido e por essa razão não prestou muita atenção aos nossos

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papéis. Tentei acalmá-lo dizendo que ia ajeitar as coisas com os Soyotes, no dia seguinte. Este oficial era um brutamontes simplório, criatura grosseira e sem inteligência, cuja ambição era prender os oficiais cossacos para ser promovido, e temia que os Soyotes não o deixassem alcançar o Seybi.Saímos juntos com o destacamento vermelho ao raiar do dia. Depois de percorrer cerca de quinze quilômetros vimos dois cavaleiros atrás de algumas moitas. Eram os Soyotes. Levavam a tiracolo seus fuzis.— Espere por mim — disse eu ao oficial. — Quero ver se consigo conversar com eles.Galopei rapidamente naquela direção. Um dos cavaleiros era o governador dos Soyotes que me disse:— Fique atrás do destacamento e dê-nos uma mão.— Está certo, respondi-lhe. — Mas fique falando um pouco comigo para eles pensarem que estamos negociando um acordo.A seguir apertei a mão do Soyote e voltei para perto dos soldados.— Está tudo combinado — gritei. — Podemos continuar nossa marcha. Os Soyotes não se oporão.Continuamos avançado, e quando estávamos atravessando um grande pasto pudemos ver, bem longe, dois Soyotes galopando a rédeas soltas, subindo pela encosta da montanha. Aos poucos completei a manobra necessária para ficar com meu companheiro atrás do destaca-

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mento. Só havia um soldado atrás de nós, de aparência idiota e visivelmente hostil. Tive o tempo de soprar ao ouvido de meu companheiro uma única palavra: "mauser" e percebi que estava cautelosamente abrindo seu bolso e livrando a coronha da grossa pistola.Não demorei muito a entender porque os soldados, apesar de serem excelentes mateiros, não queriam tentar o caminho até o Seybi sem um guia. Toda a região entre o Algiak e o Seybi é formada por estreitas serras, separadas por vales profundos e pantanosos. Era um lugar maldito e perigoso. Os cavalos afundavam na lama, avançando com dificuldade, e depois caindo e arrastando seus cavaleiros. Mas adiante, os cavaleiros montados estavam com a água até os joelhos. Meu cavalo sumiu, peitoril e cabeça, na lama vermelha e fluida, e tivemos um trabalho enorme para livrá-lo. O cavalo do oficial arrastou seu cavaleiro na queda O oficial feriu-se na testa, batendo numa pedra. Meu companheiro feriu-se no joelho batendo contra uma árvores. Outros homens caíram, ferindo-se. Os cavalos fungavam ruidosamente. Por perto ouviu-se o crocitar de um corvo.Três disparos ecoaram de repente. O ruído não foi muito mais intenso que a detonação de uma carabina Flobert, mas os tiros eram reais porque dois soldados e o oficial caíram ao solo. Os soldados apontavam seus fuzis, olhando em volta à procura do inimigo. Logo mais quatro tombaram e percebi que o soldado brutamontes da retaguarda estava apontando a arma em

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minha direção. Minha pistola Mauser, porém, foi mais rápida.— Atirem! gritei, e entramos no tiroteiro.Em breve o relvado estava repleto de Soyotes que revistavam os mortos, dividiam os despojos e recuperavam seus cavalos. Num certo tipo de guerra não é aconselhável permitir que o inimigo retome as hostilidades com forças esmagadoras. Depois de uma hora de caminho difícil começamos a subir a montanha e em pouco tempo alcançamos um planalto repleto de árvores.— Parece-me que os Soyotes não são totalmente pacíficos — falei enquanto me aproximava do governador.Ele me encarou com um olhar severo.— Eles não foram mortos pelos Soyotes.Era a verdade. Os bolcheviques tinham sido mor-tos por Tártaros de Abakan que usavam trajes dos Soyotes. Esses tártaros estavam atravessando o Urianhai porque estavam levando rebanhos de vacas e cavalos da Rússia para a Mongólia. Eram acompanhados por um guia e intérprete que era um Calmuco budista. No dia seguinte aproximávamo-nos de uma pequena colônia russa quando notamos alguns cavaleiros nos espreitando num bosque. Um jovem tártaro do nosso grupo dirigiu-se corajosamente para aquela direção, mas voltou logo ao galope e falou-nos com um largo sorriso:— Está tudo bem, podemos continuar!Seguimos então por uma bela e larga estrada beirando uma cerca alta que demarcava um

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pasto onde vimos um rebanho de "izubr". Os colonos criam esses alces por causa dos chifres que eles vendem aos mercadores de remédios do Tibete e da China, quando ainda estão recobertos por sua fina película e recebem por eles um preço muito alto. Os chifres, depois de fervidos e secos, são chamados "panti" e são vendidos aos chineses por muito dinheiro.Os colonos estavam nos esperando, muito assus-tados:— Graças a Deus! gritou nossa hospedeira. Está-vamos já acreditando que... mas não continuou e olhou para o marido.

10A Batalha do Seybi

Viver continuamente em contato com o perigo desenvolve o senso de vigília e a capacidade de percepção. Apesar de estarmos muito cansados, não retiramos nossas roupas e deixamos os cavalos selados. Coloquei minha Mauser no bolso inteiror da capa e comecei a olhar em volta, examinando as pessoas. Logo descobri que havia uma coronha de espingarda aparecendo embaixo dos travesseiros que estavam amontoados em cima da grande cama dos camponeses. Percebi que os empregados do meu hospedeiro entravam continuamente na sala, pedindo ordens. Não pareciam simples camponeses, apesar das longas e sujas barbas. Pareciam exa-minar-me com muita atenção e não deixaram

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meu companheiro e a mim a sós com nosso hospedeiro. Não conseguíamos entender o motivo disso. O governador dos Soyotes entrou e observando que o ambiente estava um pouco tenso, começou a explicar ao nosso hospedeiro tudo que ele sabia a nosso respeito, falando no idioma dos Soyotes.— Peço desculpas — disse-nos o colono em se-guida — mas vocês devem saber que hoje em dia para cada homem honesto há, pelo menos, dez mil ladrões e assassinos.Depois disso a conversa foi mais fácil. Ficamos sabendo que nosso hospedeiro fora avisado de que um bando de bolcheviques iria atacá-lo durante a expedição à procura dos oficiais cossacos, já que estes ficavam na casa dele de vez em quando. Sabia, também, que um destacamento tinha desaparecido. O ancião, todavia, não se acalmou com as informações que pudemos dar-lhe, porque sabia que um forte grupo de bolcheviques estava chegando da fronteira do distrito de Usinsky, procurando os tártaros que estavam fugindo com seu gado para a Mongólia.— Receamos vê-los chegar a qualquer momento — disse-nos. Meu Soyote acaba de dizer-me que os vermelhos estão atravessando o Seybi e que os tártaros estão prontos para iniciar o combate.Saímos em seguida para verificar as selas e as albardas, e conduzimos os cavalos para um matagal, não muito afastado, para escondê-los. Nossos fuzis e nossas pistolas estavam em ordem e tomamos nossas posições dentro do

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recinto, esperando a chegada do inimigo comum. Esperamos nervosamente durante uma hora. Enfim um trabalhador chegou correndo do bos-que, e falou num murmúrio:— Estão atravessando nosso pântano... O com-bate já vai começar.Confirmando essas palavras, veio do bosque o som de um disparo, seguido por intensa fuzilaria. A luta aproximava-se da casa. Não demoramos a ouvir o pisotear dos cascos dos cavalos e os gritos selvagens dos soldados. Logo três deles entraram na casa para proteger-se dos tártaros, cujos disparos varriam a estrada de um lado ao outro. Proferindo blasfêmias, ura deles atirou em nosso hospedeiro que vacilou e caiu de joelhos, enquanto procurava com a mão a espingarda oculta embaixo dos travesseiros.— Quem são vocês? perguntou outro soldado encarando-nos e apontando seu fuzil. Respondemos acertando-o com as pistolas e somente o soldado que estava mais recuado escapou, saindo pela porta: um dos tra-balhadores, porém, o estrangulou no pátio. O combate continuava. Ouvimos soldados gritando e pedindo reforços. Os vermelhos estavam entrincheirados perto da vala, à margem da estrada, a trezentos passos da casa, e respondiam aos tiros dos tártaros que os cercavam. Alguns soldados correram em direção da casa para ajudar seus camaradas, porém a essas altura ouvimos uma fuzilaria ordenada. Os empregados de nosso hospedeiro atiraram com calma e precisão como se estivessem nas

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manobras. Cinco soldados vermelhos jaziam na estrada, e os outros continuavam entocados na vala. Em seguida, vimos que eles estavam rastejando para a extremidade da vala perto do bosque, porque lá estavam seus cavalos. Os tiros estavam ficando mais distantes, e logo vimos cinqüenta ou sessenta tártaros perseguindo os vermelhos pelo relvado.Ficamos dois dias à margem do Seybi, descansando. Os oito trabalhadores de nosso hospedeiro eram, na realidade, oficiais que estavam ocultando-se. Pediram licença para nos acompanhar no que consentimos.Quando eu e meu companheiro continuamos a viagem, tínhamos uma guarda de oito oficiais armados e três cavalos de carga. Passamos por um estupendo vale entre o Seybi e o Ut. No centro de uma relva vimos uma grande tenda com dois abrigos de galhos e, em volta, um grupo de cinqüenta ou sessenta pessoas. Quando perceberam que estávamos saindo da floresta, todos vieram alegremente nos dar as boas-vindas. Tratava-se de um grande campo de oficiais e soldados russos fugidos da Sibéria e que tinham sido hospedados pelos colonos e pelos camponeses ricos do Urianhai.— Que é que vocês fazem aqui? — perguntamos, muito surpreendidos.— Será que vocês não sabem o que está aconte-cendo? — falou um homem de idade cujo nome era Coronel Ostrowski. No Urianhai o comissário militar ordenou a mobilização de todos os homens acima de vinte e oito anos e estes

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milicianos estão avançando de todas as direções para a cidade de Belotzarsk. Eles roubam tudo que é dos colonos e dos camponeses e matam todos aqueles que caem em suas mãos. Estamos aqui para nos esconder desses bandos.No acampamento havia dezesseis fuzis e três granadas, que pertenciam a um tártaro que estava viajando com seu guia Calmuco e ia ver seu gado na Mongólia ocidental. Explicamos as razões de nossa viagem, e como tínhamos a intenção de atravessar a Mongólia, para chegar ao porto do Pacífico mais próximo. Os oficiais disseram que queriam acompanhar-nos e eu consenti.Saímos em patrulha e vimos que não havia soldados perto da casa do camponês que devia ajudar-nos a atravessar o pequeno Ienissei. Pusemo-nos a caminho depressa, para sair o mais rapidamente possível daquela zona perigosa do Ienissei e penetrar na floresta que havia além. Começou a nevar, mas os flocos derretiam ao contato como o solo. Antes que chegasse a noite, começou a soprar um vento gelado do norte e que trouxe uma tempestade de neve. Chegamos ao rio com a noite avançada. O colono recebeu-nos com simpatia e ofereceu-se para nos transportar para a outra margem, no seu barco. Os cavalos teriam que passar a nado apesar dos blocos de gelo que ainda boiavam no rio. Enquanto conversávamos vi um dos braçais do camponês, um moço ruivo e vesgo, que prestava muita atenção, andando continuamente

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ao nosso redor. Sumiu de repente. O camponês, percebendo isso, falou temeroso:— Acho que ele correu para a aldeia e vai trazer os soldados. Vocês devem atravessar o rio sem demora.Começou, então, a mais terrível noite de nossa viagem. Pedimos ao camponês que pusesse no barco somente os alimentos e nossa munição; era nossa intenção atravessar a nado junto aos cavalos, para evitar a perda de tempo em repetidas passagens. Naquele ponto o Ienissei tem aproximadamente trezentos metros de lar-gura. A correnteza é muito forte e as margens são escarpadas. A noite era negra, sem sequer uma estrela no céu. O vento soprava forte e a neve fustigava-nos o rosto Na nossa frente a água escorria escura e rápida, levando finas e afiadas chapas de gelo que flutuavam tumultuo-samente, chocando-se e quebrando-se nos redemoinhos. Meu cavalo recusou-se algum tempo a entrar na água, empinando e resistindo. Fustiguei-o com toda minha força no pescoço e, finalmente, gemendo, jogou-se no rio. Ambos afundamos e tive dificuldade para manter-me na sela. Logo ficamos alguns metros da ribanceira. Meu cavalo esticava a cabeça e o pescoço no esforço de nadar e fungava ruidosamente. Eu percebia os movimentos de suas pernas que remexiam na água e tremiam pelo esforço. Chegamos ao meio do rio onde a correnteza era tão forte que começou a arrastar-nos. Ouvir, dentro da noite, os gritos dos meus companheiros e os gemidos de pavor e

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sofrimento dos cavalos. A água gelada chegava-me até o peito. As chapas de gelo flutuantes batiam em mim, enquanto a água esguichava no meu rosto, e eu não tinha sequer tempo de olhar em volta, ou me lembrar que fazia frio. Estava dominado pela vontade animal de viver. Preocupava-me somente a possibilidade de meu cavalo não agüentar a luta contra a correnteza, e eu estaria perdido. Minha atenção estava concentrada em meu cavalo, em seus esforços e em seu medo. Ouvi quando deu um gemido e tive a impressão de que estivesse afundando. Pensei que a água estivesse cobrindo-lhe as ventas, porque não o ouvia mais fungar com tanta freqüência. Um volumoso pedaço de gelo bateu contra sua cabeça fazendo com que mudasse de direção, e agora estava deixando-se levar pela correnteza. Com muito esforço dirigi-o para a margem, puxando as rédeas, mas estava percebendo que ele estava perdendo as forças. Repetidamente sua cabeça enfiou-se na água. Não havia alternativas, e larguei a sela. Agarrando-a com a mão esquerda, comecei a nadar com a direita ao lado do meu animal, animando-o com a minha voz. Ele flutuava, os beiços entreabertos e os dentes cerrados, e seus olhos expressavam terror. Depois que saí da sela ele voltou a nadar mais calmo e mais rápido. Finalmente ouvi os cascos ferrados bater em pedras. Também os meus companheiros estavam chegando à ribanceira, um após outro. Os cavalos bem treinados conseguiram levar seus cavaleiros para a outra margem do rio. Mais

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longe, na vazante, o camponês estava chegando com seu barco e nossos pertences. Sem perder tempo carregamos tudo nas albardas e prosseguimos viagem.Continuamos andando durante o dia todo sob temperatura de zero grau até menos. Alcançamos as montanhas cobertas de florestas de lárices ao calar da noite; finalmente fizemos grandes fogueiras, secando nossas roupas e aquecendo-nos. Os cavalos famintos não qui-seram sair de perto do fogo e permaneceram atrás de nós, dormindo com as cabeças baixas. No dia seguinte, logo cedo, alguns Soyotes chegaram até nosso acampamento.— Ulan? (vermelho) —- perguntou um deles.— Não, não! os companheiros gritaram.— Tzagan? (branco) — insistiu.— Sim, sim — disse o tártaro — todos eles são brancos.— Mendé, mendé! cumprimentaram os Soyotes e, tomando uma xícara de chá, eles começaram a dar-nos importantes e úteis informações. Ficamos sabendo que os milicianos vermelhos, saindo das montanhas de Tannu Ola, estavam agora ocupando toda a fronteira da Mongólia para prender os Soyotes e os camponeses que estavam levando para lá seu gado. Não era mais possível passar pelas montanhas de Tannu Ola. Dessa forma achei que somente sobrava uma possibilidade: ir para sudeste, atravessar o vale pantanoso do Buret Hei e alcançar a margem sul do Lago Kosogol que se encontrava no território da Mongólia. As notícias realmente eram

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péssimas. O primeiro posto mongol do Samgaltai estava a apenas noventa quilômetros, ao passo que o Lago Kosogol encontrava-se a uma distância de pelo menos quatrocentos e cinqüenta quilômetros. Nossos cavalos já haviam percorrido mais de novecentos quilômetros por péssimos caminhos, sem descanso e freqüentemente sem ração suficiente e eu acreditava que eles não venceriam mais aquela distância. Analisando bem a situação decidi, porém, não tentar a passagem pelos montes Tannu Ola com meus novos companheiros. Eram homens moralmente cansados, nervosos, maltrapilhos, mal armados, e havia alguns que nem arma possuíam. Eu sabia que não havia coisa pior, num combate, do que ter homens desarmados. Eles podiam ser fácil presa do pânico, e perdendo a cabeça poderiam pôr-nos também a perder. Após consultar os meus amigos, decidi tomar o rumo do lago Kosogol. Todos concordaram. Preparamos uma refeição de sopa com grandes nacos de carne, comemos biscoitos, bebemos chá e partimos novamente. Perto das duas da tarde começamos a ver as montanhas na nossa frente. Eram os contrafortes do nordeste do Tannu Ola, e atrás deles encontrava-se o vale do Buret Hei.

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A Barreira Vermelha

Num vale encaixado entre duas serras escarpadas descobrimos um rebanho de "yacks" e de vacas: dez Soyotes montados estavam levando-o rapidamente para o norte. Eles aproximaram-se cautelosamente, mas acabaram por contar que o Noyon (príncipe) de Todji tinha ordenado que levassem o gado pelo Buret Hei até a Mongólia, pois estava preocupado em perdê-lo por obra dos vermelhos. Durante a viagem souberam por caçadores Soyotes que aquela região do Tannu Ola estava ocupada por milicianos vindos de Vladimirovka, e tiveram que voltar novamente. Após perguntar onde estava a vanguarda dos vermelhos e quantos havia pela montanha, mandamos o tártaro e o Calmuco fazer um reconhecimento, enquanto fazíamos preparativos para prosseguir a marcha, envolvendo os cascos dos cavalos nas nossas camisas e amarrando seus focinhos com correias é pedaços de cordas para que não relinchassem. Os nossos batedores voltaram quando já era noite informando-nos que havia uns trinta milicianos acampados a dez quilômetros, aquartelados em duas "yurtas" de Soyotes. Na colina havia dois postos avançados, um com dois homens, o outro com três. Entre os postos avançados e o acampamento havia mil e oitocentos metros. Nossa estrada passava entre os dois postos de sentinelas. Eles podiam ser vistos claramente do alto da montanha de onde

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seriam facilmente alvejados. Chegando no alto, separei-me do grupo levando comigo meu companheiro, o tártaro, o Calmuco e dois jovens oficiais. Já no alto da montanha percebi, a quinhentos metros à frente, duas fogueiras. Ao lado de cada fogueira havia um soldado armado de fuzil, e os outros estavam dormindo. Não estava nas minhas previsões envolver-me numa luta com os milicianos; precisávamos, porém, eliminar os dois postos avançados, evitando tiros, caso contrário jamais conseguiríamos superar aquele trecho. Eu não acreditava que os vermelhos conseguissem mais tarde encontrar nosso rastro porque o solo estava sulcado de marcas de cavalos e vacas.— Escolhi aquele — disse meu companheiro, ace-nando para a sentinela da esquerda.Os restantes ocupar-se-iam do outro posto. Saí rastejando entre as moitas atrás de meu companheiro para auxiliá-lo em caso de necessidade, porém, confesso que não me preocupava com ele. Ele media aproxima-damente 2 metros de altura e era tão forte que, quando um cavalo se recusava a aceitar o freio, ele punha um braço em volta do pescoço do animal e chutando suas pernas, jogava-o ao chão, quando seria mais fácil arriá-lo. Chegando a cem passos de distância, ocultei-me atrás de um arbusto para observar. Podia ver claramente o fogo e a sentinela sonolenta. O soldado estava sentado com o fuzil entre as pernas. Seu colega dormia imóvel ao lado. Suas botas de feltro branco reluziam na escuridão. Não vi meu

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companheiro durante algum tempo. Ao redor da fogueira tudo era calma. De repente, do outro posto, chegaram gritos abafados; a seguir, silêncio total. A sentinela levantou vagarosamente a cabeça. Naquele instante a gigantesca figura do meu companheiro surgiu entre mim e o fogo; apanhou o soldado pelo pescoço, e logo as pernas deste passaram no ar, reluzindo, e seu corpo voou além das brasas. Meu companheiro estava invisível, porém logo reapareceu e aplicou com o fuzil uma violenta coronhada no crânio do vermelho. Depois da batida surda, o silêncio. Meu companheiro voltou-se para o meu lado e sorriu, confuso:— Está feito. Por Deus e pelo diabo! Quando era garoto, minha mãe queria fazer de mim um padre. Cresci e formei-me engenheiro agrônomo... só para estrangular gente ou esfacelar crânios. Que coisa estúpida, essa revolução!Ele cuspiu de raiva e nojo, e depois acendeu o cachimbo.Também o outro pequeno posto estava liquidado. Naquela noite chegamos até o cume do Tannu Ola descendo depois para um vale coberto de moitas espessas ligadas por uma rede de riachos. Eram as nascentes do Buret Hai. A uma hora da madrugada paramos e deixamos nossos cavalos pastar porque a relva era boa. Acreditávamos estar em segurança por uma série de razões: na montanha podíamos ver grupos de renas e "yacks", e alguns Soyotes recém-chegados confirmaram que tudo estava

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calmo. Eles não tinham visto soldados vermelhos além das montanhas do Tannu Ola. Demos um pacote de chá aos Soyotes e eles saíram felizes e convencidos que éramos todos "Tzagan", boa gente.Enquanto nossos cavalos descansavam e pastavam no capim alto, sentamos em volta da fogueira para traçar nossa rota. Logo estávamos divididos em dois grupos, discutindo duas opções: um grupo, chefiado por um coronel, juntamente com mais quatro oficiais, estava tão impressionado pela ausência de vermelhos ao sul do Tannu Ola que estava decidido a continuar para oeste até Kobdo; de lá eles pretendiam chegar às campinas ao longo do Emil, onde as autoridades chinesas haviam internado seis mil homens do General Bakitch que adentraram o território mongol. Meu companheiro, eu e mais dezesseis oficiais preferíamos seguir a rota preestabelecida, passando pelo Lago Kosogol e alcançar o Extremo Oriente. Já que nenhuma das opiniões dos dois grupos conseguiu prevalecer, decidimos separar-nos. Ao meio-dia do dia seguinte, fizemos as despedidas.Nosso grupo, de dezoito, passou por numerosos combates e dificuldades de toda espécie, e tendo seis perdido a vida. Todavia, aqueles que chegaram até o final da viagem estavam tão unidos pelos laços da devoção mútua, reforçados pela lembrança dos perigos afrontados em lutas onde nossa vida esteve em jogo, que mantivemos depois os mais cordiais sentimentos de amizade. O outro grupo, chefiado pelo Coronel

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Jukoff, desapareceu. Eles tiveram que defrontar-se com um forte contingente da cavalaria vermelha e morreram após dois combates. Somente dois oficiais conseguiram escapar ilesos. Relataram os tristes fatos e narraram-nos todos os detalhes da refrega quando os encontrei em Urga, quatro meses mais tarde.Nosso grupo, composto de dezoito cavaleiros com cinco cavalos de carga, subiu o vale do Buret Hei. Chafurdamos nos pântanos, passamos a vau de inúmeros riachos barrentos, os ventos frios nos regelando, andamos encharcados de neve e de chuvas geladas. Continuamos, porém, marchando em direção da extremidade sul do Lago Kosogol. Nosso guia tártaro dirigia-nos seguramente, seguindo as pistas marcadas pelas passagens de inúmeros rebanhos entre o Urianhai e a Mongólia.

12No País da Paz Eterna

Os Soyotes, habitantes do Urianhai, orgulham-se de ser os verdadeiros budistas e de ter mantido pura a doutrina do santo Rama e a sabedoria profunda de Sakia-Muni. Eles são inimigos jurados da guerra e do derramamento de sangue.No século XIII preferiram emigrar, refugiando-se ao norte para não combater ou tornar-se uma parte do império sanguinário do conquistador Gengis Khã, que queria incorporar no seu

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exército aqueles maravilhosos cavaleiros e fabulosos arqueiros. Durante o transcorrer de sua história, os Soyotes emigraram três vezes para o norte a fim de evitar a guerra, e agora ninguém pode dizer que as mãos dos Soyotes tenham alguma vez se tingido de sangue humano. Aos males da guerra eles opuseram seu grande amor à paz. Até os severos administradores chineses não conseguiram aplicar todo o rigor de suas leis implacáveis naquele país de paz. Os Soyotes se portaram da mesma forma com os russos quando, sedentos de sangue e de crimes, eles invadiram o país.Avançamos rapidamente seguindo o sinuoso Buret Hei e, após dois dias, chegamos às colinas que ligam os vales do Buret Hei e do Kharga. O caminho era íngreme; encontrávamos troncos caídos e, apesar de incrível, também pântanos onde os cavalos chafurdavam de forma lastimável. Enfrentamos trechos perigosos, onde as pedras rolavam por sob os cascos dos cavalos, rolando no abismo que beirávamos. Os cavalos cansavam-se, rapidamente, passando por essa moraina ali deixada por alguma geleira pré-histórica. Às vezes o caminho serpenteava à beira do precipício, e os cavalos ocasionavam grandes deslizamentos de areia e pedras. Lembro-me de uma montanha inteiramente coberta por essas areias movediças. Tivemos que apear e andar aproximadamente dois quilômetros nas areias escorregadiças, segurando a rédea na mão, às vezes, afundando até o joelho e deslizando até a beira do abismo.

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Qualquer movimento em falso nos teria levado ao fundo. Exatamente isso sucedeu com um cavalo de carga. Preso até o ventre nas areias movediças, não conseguiu mudar de direção, e foi escorregando até à beira do abismo, onde caiu. Ouvimos os barulhos dos galhos que se partiam em sua queda. Conseguimos descer com grandes dificuldades e salvar a albarda e nossas bagagens. Mais adiante fomos obrigados a abandonar outro cavalo de carga que vinha conosco desde a fronteira norte do Urianhai. De início, tiramos-lhe parte da carga, a seguir toda ela; de nada adiantou, nem mesmo as ameaças, para que ele se locomovesse. Ficou cabisbaixo e imóvel, visivelmente esgotado; estava evidente que o cavalo chegara ao limite extremo de resistência. Alguns Soyotes que estavam conosco quiseram examiná-lo; apalparam os músculos das pernas dianteiras e traseiras, seguraram sua cabeça com as mãos e sacudiram-na de um lado para o outro; depois disseram:— O cavalo não pode ir mais longe. Seu cérebro está insensível.Não tivemos alternativa senão abandoná-lo.Naquela noite chegamos a um planalto com bos-ques de lárices e presenciamos a uma maravilhosa mudança de panorama. Descobrimos algumas "yurtas" de caçadores Soyotes, coberta de cortiça e não de feltro como já estávamos acostumados a ver. Dez homens armados de fuzis vieram rapidamente ao nosso encontro. Eles nos informaram que o príncipe de Soldjak não permitia a ninguém passar por ali

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porque receava que ladrões e assassinos entrassem nos seus domínios.— Voltem para o lugar de onde vieram — disse-ram, e seus olhos espelhavam medo.Não respondi, mas acabei com uma discussão entre um velho Soyote e um de meus oficiais. Apontei com o dedo para um riacho que corria no vale e perguntei qual era seu nome.— Oyna — disse o velho. — Ele marca a fronteira do principado, e é proibido atravessá-lo.— Muito bem — falei. — Acredito que vocês nos darão licença de descansar e de nos aquecer.— Com certeza — gritaram os Soyotes que são muito hospitaleiros, e nos levaram para suas tendas.A caminho ofereci cigarro a um velho Soyote e dei a um outro uma caixa de fósforos. Estávamos cavalgando em grupo, menos um Soyote que ficara na retaguarda, segurando o nariz com os dedos.— Ele está doente? — perguntei.— Está — respondeu o velho Soyote tristemente. — É meu filho e já faz dois dias que seu nariz está sangrando. Ele está muito fraco.Parei e chamei o moço:— Desabotoe a capa — ordenei. — Exponha o pescoço e o peito e levante a cabeça o mais alto que puder.Pressionei a veia jugular dos dois lados de sua cabeça durante alguns minutos; depois disse:— Seu nariz não vai sangrar mais. Vá para sua tenda e deite por algum tempo.

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O Soyote ficou muito impressionado com os movimentos misteriosos dos meus dedos. Cheio de respeito e medo ele murmurou:— Ta Lama, Ta Lama! (grande médico).Na "yurta" eles nos ofereceram chá; o velho Soyote estava aparentemente mergulhado em profundas meditações. Depois de falar com seus companheiros ele me disse:— A mulher de nosso príncipe tem uma doença da vista, e acredito que o príncipe ficará satisfeito se eu levar Ta Lama até ele. Ele não vai querer punir-me, porque se ele me deu ordem de não deixar passar gente ruim, isso não quer dizer que gente boa não possa nos visitar.— Faça como quiser — respondi-lhe, fingindo que o assunto não tinha importância. — Realmente sei tratar das doenças da vista, mas se você quiser, voltaremos pelo mesmo caminho.— Não faça isso — gritou o ancião assustado. — Eu mesmo serei seu guia.Ele estava sentado perto do fogo; acendeu o ca-chimbo com uma pederneira e, depois de limpar a ponta na própria manga, ofereceu-me o cachimbo em sinal de amizade. Eu conhecia esse costume, portanto fumei. Ofereceu seu cachimbo a todos do grupo e recebeu em troca, de cada um, um cigarro, um pouco de fumo e fósforos. Dessa forma confirmamos nossa amizade.Passamos a noite com eles; ofereceram-nos um lauto jantar com carneiros gordos. Na manhã seguinte reiniciamos a marcha, conduzidos pelo velho Soyote, seguindo o vale do Oyna onde não havia nem montanhas nem pântanos. Sabíamos

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que alguns dos nossos cavalos estavam por demais esgotados para chegar ao Lago Kosogol e decidimos comprar outros naquela região. Passamos por pequenos aglomerados de "yurtas" soyotes, com gado e cavalos ao redor, e finalmente chegamos à capital móvel do príncipe. Nosso guia foi à frente para anunciar nossa chegada, ele dizia que o príncipe ficaria feliz em receber o "Ta Lama", contudo sua fisionomia refletia preocupação e angústia. Chegamos a uma grande planície onde medravam muitos arbustos. Vimos que havia grande número de "yurtas" nas quais se viam hasteadas bandeiras amarelas e azuis à margem do rio e deduzimos que devia ser a sede do Governo.Nosso guia voltou logo. Seu rosto iluminara-se com um sorriso; agitava as mãos, gritando:— Noyon (o príncipe) pede que vocês se apro-ximem. Ele está muito feliz...Tive que me transformar de soldado em diplomata. Chegando à "yurta" do príncipe fomos recebidos por funcionários que usavam a touca pontuda dos Mongóis, adornadas de penas de pavão presas na parte traseira. Inclinando-se profundamente eles pediram ao Noyon estrangeiro que entrasse na "yurta". Entrei, levando comigo meu amigo tártaro. No interior da suntuosa tenda, toda drapeada de seda, encontramos um velho miúdo cujo rosto parecia de pergaminho. Ele estava barbeado, sua cabeça completamente raspada e usava um barrete alto e pontudo de castor, terminando em seda

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escarlate e um botão vermelho escuro. Longas plumas de pavão estavam presas ao lado da nuca. Grandes óculos chineses estavam equilibrando-se sobre o nariz. Estava sentado sobre um divã baixo, e as contas do terço tilintavam nervosamente entre suas mãos; era o Ta Lama, o príncipe de Soldjack e grande sacerdote do templo budista.A acolhida foi amável e ele nos convidou a sentar em frente ao fogo que ardia num braseiro de cobre. A princesa, uma moça lindíssima, serviu-nos chá, confeitos chineses e doces. Fumamos nossos cachimbos; embora o príncipe, sendo um Lama, não fumasse, cumpria sua obrigação de hospedeiro levando o cachimbo até os lábios toda vez que lhe era oferecido, e oferecia-nos sua tabaqueira de nefrita verde. Depois de observar esta primeira fase do protocolo, esperamos que o príncipe falasse. Perguntou-nos ele se a viagem tinha sido feliz e quais eram nossos propósitos. Respondi-lhe muito fran-camente e pedi-lhe hospitalidade para todos nós e nossos cavalos. Ele a concedeu sem hesitação e mandou que quatro "yurtas" fossem aprontadas para nós.— Soube que o Noyon estrangeiro é um ótimo médico.— Conheço algumas doenças e trago comigo alguns remédios, mas não sou médico. Sou um estudioso de outras ciências.O príncipe não entendeu o que eu queria dizer com isso. Na sua ingenuidade, ele estava

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convencido de que um homem que sabe tratar doenças é médico.— Já faz dois meses que minha mulher sofre da vista. Trate dela.Pedi à princesa para examinar seus olhos e percebi imediatamente que ela estava sofrendo de conjuntivite provocada pela contínua fumaceira dentro da "yurta" e pela sujeira que havia por toda parte. O tártaro foi buscar minha pasta de remédios. Lavei os olhos da princesa com água boricada e pinguei neles um pouco de cocaína e uma solução fraca de sulfato de zinco.— Eu suplico a você, cure meus olhos — pediu a princesa. — Fique aqui até que eles estejam curados. Daremos a você e a todos os seus amigos carneiros, leite e farinha. Eu choro muito porque antes meus olhos eram lindos e meu marido dizia que eles brilhavam como estrelas. Agora estão avermelhados, e eu não consigo mais suportar isso.Bateu o pé no chão e depois perguntou-me com jeito brejeiro:— Você vai curar-me, não vai?A personalidade e o jeito de uma mulher bonita são idênticos em todos os lugares: na cintilante Broadway, nas margens do Tâmisa, nos boulevares de Paris e na "yurta" drapeada de seda da princesa Soyota, por trás dos montes Tannu Ola, cobertos de lárices.— Vou fazer o que puder — respondeu com segurança o neo-oftalmologista.Ficamos dez dias gozando do carinho e da amizade da família do príncipe. Os olhos da

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princesa, que oito anos antes tinham enfeitiçado o príncipe Lama, apesar de ele estar numa idade bastante avançada, estavam curados. Ela não cabia em si de alegria e não largava o espelho nem por um instante.O príncipe deu-me cinco bons cavalos, dez car-neiros e um saco de farinha que transformamos imediatamente em biscoitos. Meu amigo deu ao príncipe uma nota de quinhentos rublos dos Romanoff onde aparecia o rosto de Pedro, o Grande. Eu lhe ofereci uma pepita de ouro que tinha encontrado no leito de um rio. O príncipe cedeu-nos, ainda, um guia Soyote para acom-panhar-nos até o Lago Kosogol. A família inteira quis levar-nos até o mosteiro que se encontrava a dez quilômetros da Capital. Não visitamos o mosteiro, mas paramos no Dugung, uma loja chinesa. Os comerciantes chineses nos encararam com hostilidade, contudo nos ofereceram toda espécie de mercadorias, pensando que íamos ficar tentados especialmente pelo "maygolo", uma espécie de licor de anis, em seus frascos redondos (lan-hon). Não tínhamos dólares chineses, nem em prata nem em lingotes, e só podíamos olhar para aque-les frascos tentadores até que o príncipe percebeu a situação e ordenou que os chineses pusessem cinco frascos nas nossas sacolas.

13Mistérios, Milagres e Novas Lutas

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À noite daquele mesmo dia chegamos às margens do lago sagrado de Teri Noor, um espelho de águas amarelas e lodacentas, com oito quilômetros de largura, cujas margens baixas e cheias de buracos não apresentavam qualquer atrativo. No centro do lago ficavam os restos de uma ilha que estava desaparecendo. Havia nela algumas ruínas e algumas árvores. Nosso guia explicou que dois séculos antes não havia lago nenhum, mas, sim, uma importante fortaleza chinesa que se erguia no centro da planície. O chefe chinês da fortaleza ofendeu um velho Lama que amaldiçoou o local e disse que ele seria destruído. No dia seguinte a água começou a surgir do solo, destruindo a fortaleza e afogando os soldados. Mesmo hoje, quando a tempestade revolve as águas do lago, os vagalhões levam para a margem as ossadas dos homens e dos cavalos que lá perderam a vida.O lago de Teri Noor cresce todos os anos, aproxi-mando-se cada vez mais das montanhas. Seguimos pela margem oriental e começamos a escalar uma serra cujos cumes estavam cobertos de neve. De início o caminho pereceu-nos fácil, todavia o guia nos avisou que o trecho difícil estava mais adiante. Atingimos esse ponto dois dias mais tarde, e vimos que havia um declive escarpado, coberto de florestas cheias de neve. Pouco mais adiante achava-se a zona das neves eternas, com cordilheiras revestidas de uma capa branca que reluzia ao sol, entremeada de rochas escuras. Eram as montanhas mais orientais e mais elevadas do Tannu Ola.

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Passamos a noite embaixo das árvores e iniciamos a travessia na manhã seguinte. Pelo meio-dia, nosso guia nos levou por uma pista em ziguezague, cortada por profundos barrancos e obstruída por árvores e rochas que tinham desli-zado da montanha. Durante várias horas andamos por caminhos íngremes, esgotando a energia dos cavalos; de repente ei-nos no mesmo local de onde tínhamos partido. Era evidente que nosso guia tinha perdido a direção e seu rosto refletia angústia.— Os demônios da floresta maldita não querem nos deixar passar — disse ele com os lábios trêmulos. — É um mau sinal. Precisamos voltar a Kharga e ver o Noyon.Eu o ameacei, e ele voltou a tomar a dianteira do grupo, porém estava visivelmente desanimado e sem vontade de fazer qualquer esforço para localizar o caminho. Felizmente um caçador do Urianhai que estava no nosso grupo viu as marcas nas árvores que indicavam o rumo que nosso guia tinha perdido. Seguindo as marcas, atravessamos a floresta alcançamos e passamos uma zona de lárices queimadas, e mais além voltamos a penetrar num bosque que seguia o pé de uma montanha em cujo cume havia neves eternas. A noite já estava chegando e resolvemos acampar. O vento esfriou, levantando uma grande quantidade de neve que caiu em nossa volta, ocultando toda e qualquer visão. Os cavalos permaneceram perto de nós, assemelhando-se a fantasmas brancos e recusando-se a comer ou a sair de perto do fogo.

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O vento levantava os pelos de suas crinas e caudas, mugindo e silvando entre as pedras da montanha. Ouvíamos à distância o uivar dos lobos, e de vez em quando o vento trazia uivos agudos.Estávamos descansando perto do fogo quando o Soyote aproximou-se e disse:— Noyon, venha comigo até o "obo". Quero mos-trar-lhe algo.Saí atrás dele e começamos a escalar a montanha. Aos pés de um penhasco havia um amontoado de troncos de árvores e pedras, formando um cone de mais ou menos três metros de altura. Estes "obos" são marcos sagrados que os Lamas colocam em lugares perigosos, altares para os maus espíritos que moram nas cercanias. Os viajantes Soyotes e Mongóis deixam suas oferendas para os espíritos, dependurando nos galhos do "obo" os "hatyks", longas tiras de seda azul, pedaços rasgados dos forros de suas capas ou simplesmente mechas de pelos cortados das crinas de seus cavalos; em frente ao "obo" eles colocam sobre as pedras pedaços de carne, xícaras de chá ou sal.— Veja — disse ele — todos os "hatyk" foram arrastados pelo vento. Os espíritos estão zangados. Por isso eles não querem deixar-nos passar...Pegou na minha mão e falou com voz suplicante:— Voltemos, Noyon, voltemos! Os demônios não querem que passemos pela montanha. Faz vinte anos que ninguém se atreve a travessá-la e os

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poucos que tiveram essa audácia, morreram. Os demônios os atacaram durante uma tempestade de neve. Agora ela já está começando. Voltemos para perto de nosso Noyon para esperar a boa estação e depois...Não quis ouvir mais nada. Voltando para o acampamento eu quase não podia ver o fogo devido à neve que estava me cegando. Estava preocupado com a possível fuga de nosso guia e coloquei um homem para vigiá-lo. Mais tarde, durante a noite, a sentinela acordou-me:— Posso estar enganado, mas parece-me ter ou-vido um disparo...Quem podia ser? Talvez outros que, como nós, tinham perdido a direção e atiravam para avisar seus companheiros onde estavam. Talvez o rapaz tivesse confundido por um tiro a brusca queda de um rochedo ou de um bloco de gelo. Voltei a dormir e, de repente, apareceu-me em sonho uma visão muito clara. Um grupo compacto de cavaleiros estava avançando pela planície coberta de neve. Vi nossos cavalos de carga, nosso Calmuco e nosso simpático cavalo malhado com seu nariz arqueado. Vi que descíamos da planície nevada até um despenhadeiro da montanha onde medravam lárices e murmurava um córrego. Enfim vi um fogo que brilhava entre as árvores e acordei.O dia estava claro. Acordei os outros, pedindo para apressar os preparativos afim de não perdermos tempo. A tempestade estava rugindo. A neve penetrava em nossos olhos, cegando-nos, e destruía qualquer vestígio de pista. O frio

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aumentava de intensidade. cada vez mais. Enfim montamos. O Soyote ia à frente, procurando adivinhar o caminho. Como sabíamos, nosso guia perdia freqüentemente a noção do caminho. Caímos em buracos fundos cobertos de neve, tropeçávamos sobre pedras escorregadias. A um certo ponto o Soyote virou seu cavalo e, aproximando-se de mim, falou decidido:— Não quero morrer com vocês. Não vou mais além.Meu primeiro impulso foi de pegar o chicote. Es-távamos tão perto da Terra Prometida, a Mongólia, e este Soyote pretendendo atravessar meu caminho e atrapalhar meus planos, pareceu-me o meu pior inimigo. Mas abaixei a mão e tive uma idéia ditada pelo desespero:— Ouça — disse-lhe — se você voltar seu cavalo meto-lhe uma bala nas costas, e você não irá morrer no topo da montanha, mas aos pés dela. Agora vou explicar a você o que vai nos acontecer: quando chegarmos àquelas rochas lá no alto, não teremos mais vento e a neve terá parado de cair. O sol estará brilhando quando atravessarmos a planície nevada mais embaixo, e em seguida desceremos para um pequeno vale onde há lárices e um córrego que murmura a céu aberto. Lá acenderemos nosso fogo e passaremos a noite.O Soyote começou a tremer de medo.— Noyon já passou por estas montanhas de Darkhat Ola? — perguntou ele estupefato.

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— Não — respondi-lhe, — mas durante a noite eu tive uma visão e sei que podemos ultrapassar a crista sem nenhum perigo.— Então vou abrir caminho — gritou o Soyote.Chicoteou seu cavalo e colocou-se na dianteira dacoluna pelo declive íngreme que levava aos cumes nevados.Passando pela estreita orla de um precipício o Soyote parou examinando a pista com muita atenção.— Hoje muitos cavalos ferrados passaram por aqui — gritou ele em meio à tempestade. — Alguém arrastou um chicote na neve e os cavaleiros não eram Soyotes.O mistério foi logo desvendado. Ouvimos uma fuzilaria e um dos meus companheiros deu um grito, levando a mão ao ombro. Um cavalo de carga caiu morto depois de receber um balaço atrás da orelha. Apeamos rapidamente, abrigando-nos atrás das rochas de onde estudamos a situação. Um pequeno vale de mais ou menos setecentos metros de largura separa-va-nos de uma escarpa da montanha. Vimos cerca de trinta cavaleiros que, de suas posições, estavam atirando contra nós. Eu não autorizara nenhum disparo antes da iniciativa de nossos adversários. Mas como o ataque vinha deles, dei ordem para fazer fogo.— Atirem nos cavalos — gritou o Coronel Ostrowski. Em seguida mandou que o tártaro e o Calmuco fizessem deitar nossos animais. Abatemos seis cavalos dos nossos inimigos,

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ferindo sem dúvida alguns outros, porém não tínhamos a possibilidade de averiguar. Apon-távamos nossas armas contra aqueles que se atreviam a levantar a cabeça atrás das rochas. Ouvíamos os gritos de raiva e palavrões dos soldados vermelhos, cuja fuzilaria aumentava de intensidade.Vi, de repente, nosso Soyote chutar três cavalos que se puseram se pé. Saltou na garupa, e puxando os outros dois cavalos pelas rédeas, saiu a galope. Estava apontando meu fuzil para ele para alvejá-lo, quando percebi que o tártaro e o Camulco corriam atrás dele em suas maravilhosas montarias. Senti-me tranqüilo. Os vermelhos dirigiram alguns tiros contra os três que, porém, conseguiram escapar e desapareceram atrás dos rochedos. O tiroteio continuava sempre mais intenso e eu não sabia o que fazer. Tínhamos que economizar munições.Olhando para o lado inimigo notei que havia dois pontos pretos, avançados, na neve por cima deles. Eles progrediam lentamente na direção dos vermelhos e ficaram escondidos de nossa vista atrás das rochas. Quando conseguimos vê-los novamente eles estavam exatamente na borda da escarpada de pedras em cima de onde os vermelhos tinham-se entocaiado. Não tinha mais dúvida de que os dois pontos pretos eram as cabeças de dois homens. Eles se levantaram bruscamente e percebi que seguravam algo que jogaram com força no vale. Seguiram-se duas violentas explosões, que ecoaram longamente. Houve uma terceira explosão, seguida por gritos

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selvagens e tiros desordenados do lado vermelho. Alguns cavalos fugiram pela neve da encosta e os soldados, rechaçados pelo nosso fogo, fugiram descendo rapidamente pelo vale de onde nós tínhamos vindo.Mais tarde o tártaro explicou-me que o Soyote tinha-se oferecido a levá-los até uma posição atrás dos soldados vermelhos, para atacá-los pelas costas com as granadas.Depois de fazer um curativo no ombro do oficial ferido e tirar a albarda do cavalo morto, reiniciamos a caminhada. Nossa situação era realmente delicada. Não restavam dúvidas de que os vermelhos tivessem vindo da Mongólia. Logo, havia vermelhos na Mongólia. Mas quantos? E onde iríamos encontrá-los de novo? A Mongólia não parecia mais a terra prometida e todos estávamos acabrunhados.

14O Rio do Diabo

A floresta de Ulan Taiga e as montanhas Darkhat Ola já tinham ficado atrás de nós. As planícies mongólicas começavam aí e estávamos avançando rapidamente, sem obstáculos montanhosos. De vez em quando encontrávamos pequenos bosques de lárices. Atravessávamos algumas torrentes, passando a vau sem dificul-dade. Após dois dias de marcha pela planície de Darkhat começamos a encontrar Soyotes que estavam levando rebanho, rapidamente, para a

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região de Orgarkha Oola, mais a noroeste. Deram-nos informações desagradáveis.Os bolcheviques do distrito de Irkutsk tinham invadido a fronteira da Mongólia, capturando a colonia russa de Khatyl, na margem sul do Lago Kosogol, dirigindo-se em seguida para o sul, em direção a Mureu Kure, uma colônia russa que se encontrava perto de um grande mosteiro lamaísta, a noventa quilômetros ao sul do lago. Os Mongóis disseram que não haviam, no momento, forças russas entre Khatyl e Muren Kure; assim decidimos passar entre estas duas localidades para chegar a Van Kure, mais para leste.Despedimo-nos de nosso guia Soyote, mandando para frente três batedores para reconhecimento; pusemo-nos novamente em marcha. Do alto das montanhas que contornam o Lago Kosogol pudemos admirar aquele maravilhoso lago alpino, coroado de colinas cor de ouro velho, realçado pelo verde-escuro das florestas circun-dantes, ricas e sombrias. Ao cair da noite estávamos nos aproximando de Khatyl, com muita precaução, e paramos à margem de um rio que sai do Lago Kosogol, chamado Yaga ou Egingol. Encontramos um mongol que prometeu levar-nos para a outra margem daquele rio gelado por um caminho seguro, entre Khatyl e Muren Kure. Por toda parte, ao longo do rio, víamos grandes "obos" e altares dedicados aos espíritos do rio.— Por que há tantos "obos"? — perguntamos ao mongol.

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— Este é o rio do Diabo, muito perigoso e cheio de truques — respondeu. — Dois dias atrás uma caravana de carretas passou por aqui. A capa de gelo cedeu e três carretas com cinco soldados foram tragados pelas águas.Começamos a atravessar o rio. A superfície pare-cia uma espessa chapa de vidro, transparente e sem neve. Nossos cavalos andavam cautelosamente, mesmo assim alguns caíram e ficaram debatendo-se antes de poder levantar-se. Puxávamos os animais pelas rédeas. Cabisbaixos e tremendo muito, eles andavam fixando com olhos aterrorizados a capa de gelo. Compreendia o medo dos animais. A chapa de gelo transparente, de mais ou menos trinta centímetros, deixava transparecer claramente o fundo do rio. Mesmo com uma profundidade de dez metros, as pedras, os buracos e as plantas aquáticas apareciam claramente à luz da lua. A correnteza do Yaga passava embaixo do gelo a uma velocidade espantosa, marcando a direção da correnteza com longas estrias de espuma e bolhas.Parei de repente, sobressaltado. Um estrondo, como de canhão, ouviu-se na superfície gelada, seguido de outro, e mais outro ainda.— Rápido! Mais rápido! — gritou o mongol ace-nando com a mão.Ouviu-se um estrondo seguido por estalidos bem ao nosso lado. Os cavalos empinaram e caíram, alguns deles batendo a cabeça no gelo. Em seguida, o gelo partiu-se e apareceu uma fenda de aproximadamente 60 cm que ia se alargando

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no sentido da corrente. A água jorrou violentamente pela abertura.— Apressem-se, apressem-se! — continuava gri-tando nosso guia.Foi difícil conseguir que nossos cavalos se deci-dissem a pular a fenda e continuassem a marcha. Tremiam e não queriam obedecer; somente as chicotadas fizeram com que eles esquecessem seu pavor.Mais tarde, salvos no meio da floresta do outro lado do rio, nosso guia mongol contou-nos com o rio, de tempo em tempo se abria daquela maneira misteriosa, deixando livres grandes extensões de água. Então os homens e os animais que se encontrassem em cima do gelo estavam fadados a morrer. A correnteza gelada e violenta os arrastava para baixo do gelo. Às vezes, as fendas se produziam debaixo dos cascos do cavalo, e quando ele tentava safar-se pulando, caía na água e as fauces de gelo fechavam-se de novo, cortando-lhe as pernas.Dois dias mais tarde, quando estávamos nos aproximando do Rio Uri, encontramos dois soldados russos. Eram cossacos de um tal Atamã Sutunin que estava lutando contra os bolcheviques no vale do Selenga. Eles levavam uma mensagem de Sutunin para Kaigorodoff, chefe dos antibolchevistas da região do Altai. Explicaram-nos eles que as forças vermelhas estavam esparsas por toda a fronteira russo-mongólica e que os agitadores comunistas tinham penetrado até Khiakta, Ulankin e Kobdo, convencendo as autoridades chinesas a entregar-

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lhes todos os refugiados russos. Ficamos sa-bendo que perto de Urga e de Van Kure travaram-se choques entre as forças chinesas e os destacamentos do general russo Ungern Sternberg e do Coronel Kazagrandi que estavam lutando pela independência da Mongólia Exterior. O barão Ungern levara a pior duas vezes, os chineses tinham estabelecido uma espécie de sítio em Urga e todos os estrangeiros eram suspeitos de ter relações com o general russo.Vimos que a situação mudara por completo. O caminho para o Pacífico estava fechado. Depois de examinar muito atentamente o problema cheguei à conclusão de que só nos restava uma única possibilidade de evasão. Precisávamos, para tanto, atravessar a Mongólia de norte a sul, evitando aquelas cidades que tinham administração chinesa, passando pelo deserto ao sul do principado de lassaktu Khã e entrando no Gobi, a oeste da Mongólia Interior, para superar, o mais rapidamente possível, os noventa quilômetros do território da província chinesa de Kansu e alcançar o Tibete. Lá eu esperava descobrir o paradeiro de algum cônsul inglês e pedir sua ajuda para chegar a um porto qualquer na Índia.Eu sabia perfeitamente o sem-número de dificuldades a superar num empreendimento desse gênero, mas achava que não havia alternativa. Era nossa última oportunidade; caso contrário, morreríamos fuzilados pelos bolcheviques ou íamos cair numa masmorra chinesa. Quando expus meu plano aos

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companheiros, sem ocultar nenhum dos perigos que poderíamos correr durante o desesperado empreendimento, eles responderam unânimes: "Dirija-nos, iremos com você".Havia uma circunstância a nosso favor: não pre-cisávamos temer a fome. Tínhamos chá, fumo, fósforos, cavalos, selas, fuzis, capas e botas que podiam servir para trocas. Começamos então a traçar o itinerário da nova expedição. Pretendíamos rumar para o sul, deixando à nossa direita a cidade de Uliassutai, seguindo para Zaganlik, daí atravessando a região árida do dis-trito de Balir, e na região de Jassaktu Khã, o Naron Gobi, indo, a seguir, para as montanhas de Boro. Poderíamos parar demoradamente naquela região, para descansar e para que os cavalos recuperassem suas energias. A segunda parte de nossa viagem passaria pela parte ocidental da Mongólia Interior, pelo pequeno Gobi, os territórios dos Torguts, os montes Kara e Kansuf onde precisaríamos escolher um caminho a oeste de Sutcheu. A essa altura penetraríamos nos do-mínios de Kulu-Nor, rumando depois para o sul até as nascentes do Yang-Tze. Além deste ponto, minhas noções eram um pouco vagas, mas assim mesmo consegui verificar, num mapa da Ásia, que pertencia a um dos oficiais, que a cordilheira a oeste das nascentes do Yang-Tze separava a baciá desse rio da bacia do Bramaputra, no próprio Tibete, e era aí que eu esperava encontrar ajuda dos ingleses.

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A Marcha dos Fantasmas

Nossa viagem desde o Ero até a fronteira do Tibete seguiu realmente este itinerário. Foram mil e oitocentos quilômetros de estepes cobertos de neve, de montanhas e de desertos que conseguimos atravessar em quarenta e oito dias. Ocultamo-nos dos habitantes, parando brevemente nos lugares mais isolados e durante semanas a fio nos alimentamos unicamente de carne crua gelada, porque não queríamos atrair a atenção de ninguém fazendo fogueira. Cada vez que queríamos comprar um carneiro ou uma vaca para o nosso suprimento, mandávamos somente dois homens desarmados que diziam aos nativos que eles eram empregados de colonos russos. Tínhamos receio até de caçar, apesar de termos encontrado um rebanho de antílopes com mais ou menos cinco mil cabeças. Após Balir, nas terras do Lama Jassaktu Khã que tinha herdado o troco depois de envenenas eu irmão, em Urga, por ordem do Buda encarnado, encontramos alguns tártaros russos nômades que tinham trazido seu gado do Altai e do Abakã. Fomos por eles recebidos carinhosamente e deram-nos algumas vacas e trinta e seis pacotes de chá. Eles também salvaram nossas vidas explicando-nos que naquela estação era impossível atravessar a cavalo o deserto de Gobi, onde não havia forragem alguma. Por isso adquirimos camelos, trocando-os pelos nossos cavalos e uma parte de nossas provisões. Um tártaro foi procurar um rico mongol no

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acampamento dele e o negócio foi fechado. Ele nos deu dezenove camelos em troca de todos os nossos cavalos, um fuzil, uma pistola e nossa melhor sela cossaca. Recomendou-nos visitar sem falta o mosteiro sagrado de Narabanchi, último dos mosteiros na rota entre a Mongólia e o Tibete. Explicou-nos que iríamos magoar o santo Hutuktu, o buda encarnado, se não fôssemos visitar seu santuários das Bênçãos, onde todos os viajantes que iam ao Tibete paravam para fazer suas preces. Nosso Calmuco, sendo budista, fez iguais recomendações; decidi, então, ir ao mosteiro com ele mesmo. Os tártaros deram-me grandes "hatyks" de seda que eu ia levar de presente e nos emprestaram também quatro cavalos robustos. Apesar do mosteiro estar a noventa quilômetros, às nove da horas da noite entrei na "yurta" do santo Hutuktu.Ele era um homem de meia idade, de cabelo e bigode raspados, miúdo e magro, e seu nume era Jelyo Djamarap Hutuktu.Ele nos recebeu com demonstrações de amizade, e ficou muito satisfeito de receber os "hatyks" que eu trazia de presente, como também gostou de ver que eu não ignorava o protocolo mongol. Meu amigo tártaro tinha gasto muito tempo e muita paciência para que eu o aprendesse. O Hutuktu me ouviu com muita atenção, deu-me conselhos preciosos para a viagem e presenteou-me com um anel que mais tarde abriu para mim todas as portas do mosteiros lamaístas. O nome desse Hutuktu é tido na maior consideração não

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somente na Mongólia, como também no Tibete e em toda a China budista.Passamos a noite na sua suntuosa "yurta" e no dia seguinte fomos visitar o santuário onde estava se desenrolando um ritual solene acompanhado de música, gongos, atabaques e apitos. Os Lamas entoavam as orações com suas vozes graves, e os acólitos respondiam às antífonas. Nas respostas, a frase sagrada "Om! Mani padme Hung" era continuamente repetida.O Hutuktu desejou-nos boa viagem e nos acom-panhou até o locutório do mosteiro. Quando já estávamos montados, ele disse:— Lembrai que sereis sempre bem-vindos aqui. A vida é muito complicada e tudo pode acontecer. Quem sabe mais tarde sereis obrigados a voltar para esse canto da Mongólia: lembrai de passar por Narabanchi Kure.Naquela mesma noite chegamos ao acampamento dos tártaros e, no dia seguinte, reiniciamos a viagem. Eu estava muito cansado e o movimento lento e sinuoso do camelo me embalava, descansando-me. Durante todo o dia cochilei e, às vezes, chegava a conciliar o sono. Isso provocou um desastre: quando meu camelo subia uma ribanceira, enquanto eu estava dormindo, caí e bati a cabeça, perdendo os sentidos. Voltando a mim vi que minha capa estava ensangüentada. Os meus amigos estavam ao meu redor com a preocupação estampada nos rostos. Enfaixaram minha cabeça e continuamos o caminho. Somente depois de muito tempo soube, por um médico que me

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examinou que, por querer fazer minha sesta, tinha fraturado o crânio.Superamos a parte oriental da cordilheira do Altai e do Karlig Tag, extremos contrafortes da cordilheira de Tian Chan para leste, em direção do Gobi; depois atravessamos o Kubu Gobi de norte a sul em toda a sua largura. O frio era intenso e as areias geladas nos permitiram, felizmente, avançar com maior rapidez. Antes de atravessarmos as montanhas Khara trocamos nossos camelos, cuja marcha nos embalava tão suavemente, por cavalos. Fizemos o negócio com os torguts que nos enganaram, como verdadeiros gatunos que são.Chegamos à província de Kansu contornando as montanhas. Isso era perigoso porque os chineses prendiam todos os refugiados e estava preocupado pelos meus companheiros russos. Durante o dia ficávamos escondidos nas moitas, florestas e matagais, forçando a marcha durante a noite. Levamos quatro dias para atravessar a província de Kansu. Os poucos camponeses chineses que encontramos eram todos aparente-mente pacíficos e mostraram-se muito hospitaleiros. Eles estavam especialmente interessados em conversar com o Calmuco porque este conhecia um pouco o idioma chinês e mostravam curiosidade pela minha maleta de remédios. Por todos os lugares encontramos muitas doenças de pele.Quando estávamos nos aproximando das monta-nhas Nan Chan, a nordeste da cordilheira dos Altyn Tag (sendo que os Altyn Tag são o lado

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oriental do grupo do Pamir e do Kharakhorum) alcançamos uma importante caravana de comerciantes chineses que iam ao Tibete e nos agregamos a eles.Durante três dias seguimos o curso sinuoso, por inúmeras torrentes daquelas montanhas, superando as colinas. Observei que os chineses sabiam encontrar as melhores pistas naquele terreno difícil. Andei por aquele trecho todo num estado de quase inconsciência. Estávamos nos dirigindo para um grupo de lagos pantanosos que alimentam o Kuku-Nor e mais um certo número de grandes rios. O cansaço, a contínua tensão nervosa e a pancada que eu tinha levado na cabeça davam-me alternadamente ataques de febre e calafrios: ardia em febre ou batia os dentes de tal forma que meu cavalo, assustado, fez-me cair da sela repetidas vezes. Delirava, gritava ou então tinha ataques de choro. Nos meus devaneios chamava pelos meus e ex-plicava a eles como chegar perto de onde eu estava.Lembro-me vagamente de que meus companheiros me tiraram da sela e me deitaram no chão, dando-me aguardente chinesa para beber. Quando os sentidos, voltaram eles me disseram:— Os comerciantes chineses irão para oeste e nós devemos ir agora para o sul.— Não — retruquei — temos que ir para o norte.— Olha, devemos ir para o sul — repetiram eles.

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— Por Deus e pelo diabo — gritei furioso — acabamos de atravessar o pequeno Ienissei e o Algyak está ao norte!— Estamos no Tibete — explicaram os compa-nheiros — e agora devemos alcançar o Brahmaputra.— Brahmaputra!... Brahmaputra!...Na minha cabeça em chamas, a palavra ia e voltava provocando uma confusão e um ruído terríveis. De repente lembrei-me de tudo e abri os olhos. Consegui apenas mexer os lábios, e voltei a desmaiar. Meus companheiros me levaram ao mosteiro de Charkhe onde um Lama médico fez-me rapidamente recobrar os sentidos com uma solução de "fatil" ou ging-seng chinês. Conversou conosco sobre nossos planos e mostrou duvidar da possibilidade de atravessarmos o Tibete, sem querer explicar seus motivos.

16No Tibete Misterioso

Saímos de Charkhe tomando uma estrada que passava pelas montanhas e, cinco dias após nossa saída do mosteiro, desembocamos naquele anfiteatro montanhosos em cujo centro se estende o grande lado de Kuku-Nor. A Finlândia é conhecida como a "terra dos dez mil lagos", mas a região do Kuku-Nor poderia ser chamada com muita propriedade de o "país de um milhão de lagos". Contornando o lago pelo oeste, entre a

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sua margem e Doulan Kitt, andamos em ziguezague entre os numerosos pântanos, lagos e riachos fundos e lodacentos. As águas ainda não estavam cobertas de gelo e os ventos muito frios açoitavam-nos somente nos topos das montanhas. Víamos raramente alguns nativos e nosso Calmuco conseguiu encontrar o caminho certo com muita dificuldade, perguntando aos poucos pastores que conseguimos ultrapassar. Chegando à margem oriental do Lago Tassun desviamos a nossa rota até um mosteiro que havia por perto e lá paramos para descansar alguns dias. Junto conosco havia naquele lugar sagrado outro grupo de visitantes: eram tibetanos. Eles se portaram de forma impertinente, recusando-se a falar conosco. Todos eles estavam armados de fuzis russos, levando cartucheiras a tiracolo, e cada um tinha duas ou três pistolas enfiadas no cinturão, também guarnecido de cartuchos. Vimos que nos estavam observando muito atentamente e compreendemos que estavam calculando nossas possibilidades em caso de combate. No mesmo dia em que eles foram embora mandei nosso Calmuco falar com o mais importante dos sacerdotes do templo para saber quem eram aqueles homens. O monje respondeu de uma forma evasiva durante algum tempo. Decidi mostrar-lhe o anel do Hutuktu de Narabanchi e ofereci-lhe um grande "hayk" amarelo de presente; então ele se mostrou mais comunicativo

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— É gente ruim — disse finalmente. — Vocês devem desconfiar deles.O monje, porém, recusou-se a dizer seus nomes, invocando uma lei dos países budistas que proibe falar o nome do próprio pai, do mestre ou do chefe. Descobri que no Tibete do norte e na China setentrional vigora o mesmo costume. Bandos de hunghutzes andam a esmo pelo país. Eles aparecem nos escritórios das grandes em-presas comerciais e nos mosteiros onde cobram contribuições e, em seguida, intitulam-se protetores da região. Possivelmente aquele bando era o protetor daquele mosteiro.Quando voltamos à nossa rota, observamos com freqüência cavaleiros solitários que de longe, quase no horizonte, pareciam seguir atentamente possos movimentos. Todas as tentativas de aproximação para tomar contato foram inúteis. Montados em seus pequenos e rápidos cavalos eles desapareciam como sombras. Quando estávamos próximos da escarpada e da difícil passagem do Ham Chan e estávamos nos preparando para pernoitar naquele sítio, mais ou menos quarenta cava-leiros, todos montados em cavalos brancos, apareceram de sopetão na crista de uma elevação acima de nós e, sem qualquer aviso, mandaram-nos uma saraivada de balas. Dois de nossos oficiais deram um grito e caíram. Um deles estava morto e o outro só viveu alguns minutos mais; todavia não deixei que meus companheiros respondessem ao fogo. Juntamente com o Calmuco avancei em direção a

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eles agitando um trapo branco. Eles dispararam mais duas vezes contra nós, sem atingir-nos e depois mandaram um grupo de cavaleiros em nossa direção. Entabolamos conversa. Os tibetanos explicaram que o Han Chan era um monte sagrado e que era proibido passar a noite ali. Aconselharam-nos a seguir viagem até um ponto mais adiante em que podíamos considerar seguro. Depois de inquirir de onde vínhamos e para onde íamos e qual era a finalidade de nossa viagem, declararam que eles conheciam os bolcheviques e os consideravam os libertadores dos povos da Ásia do jugo da raça branca. Não tinha intenção nenhuma de meter-me em discussões políticas naquelas circunstâncias e voltei junto aos meus companheiros. Durante a descida que nos levava ao acampamento, eu esperava a qualquer instante um tiro nas costas, contudo os hunghutzes tibetanos deixaram-nos em paz.Seguimos nosso caminho, deixando entre as pedras os corpos de nossos dois companheiros como um triste tributo às dificuldades e aos perigos de nossa expedição. Andamos a noite toda e nossos cavalos esgotados paravam continuamente, alguns até deitavam, mas conse-guimos forçá-los a continuar. Paramos quando o sol já estava no zênite. Sem tirar os arreios dos cavalos, deixamos que eles deitassem selados para descansar um pouco. Estávamos em frente a uma vasta planície cheia de pântanos onde, sem dúvida, deviam encontrar-se as nascentes do rio Ma-Tchu. O Lago Arugn-Nor achava-se

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próximo, do outro lado. Acendemos uma fogueira com esterco de vaca, pondo a ferver a água para o chá.Novamente, sem nenhum aviso, os tiros começaram a espocar em nossa volta. Rapidamente nos abrigamos atrás de algumas rochas e esperamos. O tiroteio aumentou e aproximou-se, e os atacantes começaram a apa-recer ao nosso redor. Tínhamos caído numa cilada e não havia esperança alguma de escapar. Parecia mesmo que só nos restava morrer. Tentei novamente entrar em negociações, mas quando estava para levantar-me com uma bandeira branca os disparos vieram na minha direção e um balaço, ricocheteando numa pedra, entrou na minha perna esquerda. Já não havia mais alternativas e decidimos responder aos tiros, O combate durou duas horas. Três dos meus companheiros ficaram levemente feridos. Resistimos até que foi possível. Os hunghutzes estavam se aproximando cada vez mais e a situação estava ficando desesperadora.— Não há alternativas — falou um de nossos companheiros, um coronel muito corajoso. — Temos que voltar a montar e fugir... não importa para,onde!— Não importa para onde!A perspectiva era terrível. Tínhamos poucos mo-mentos para tomar uma decisão. Também era evidente que tendo aquele grupo de bandoleiros em nosso encalço, quanto mais adentrássemos no Tibete, menores seriam nossas possibilidades de sair com vida da aventura.

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Decidimos voltar para a Mongólia. Mas como? Não havia praticamente nenhuma possibilidade. Nossa retirada começou assim mesmo. Atirando continuamente, começamos a movimentar-nos para o norte. Mais três companheiros nossos caíram, um após o outro. Meu amigo tártaro morreu com um tiro na pescoço. Em seguida dois jovens e fortes oficiais tombaram dando o último suspiro, enquanto seus cavalos fugiam aterrorizados em direção à planície, símbolos do nosso próprio estado de alma. Os tibetanos deram-se conta disso e começaram a ficar mais audaciosos. Uma bala bateu na fivela da correia de minha bota direita, enfiando-a junto a um pedaço de couro e de fazenda na minha perna, pouco acima do tornozelo. Meu velho e fiel amigo, o agrônomo, deu um grito segurando o ombro, e em seguida vi quando fazia um curativo de emergência em sua testa ensangüentada. Um segundo após, nosso Calmuco foi alvejado duas vezes na palma da mão que ficou horrivelmente mutilada. A esta altura quinze hung-hutzes decidiram fazer uma carga.— Atirem à vontade! — gritou o coronel.Seis bandidos caíram atingidos enquanto outros dois caíam da sela e voltavam correndo rapidamente atrás dos outros em fuga. Alguns minutos mais tarde nossos inimigos pararam de atirar e agitaram um pano branco. Dois cavaleiros vieram em nossa direção. Soubemos por eles que o chefe do bando tinha sido alvejado no peito e pediram-nos para socorrê-lo. Era nosso primeiro raio de esperança. Apanhei minha

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maleta de remédios e levei Calmuco comigo que sofria muito devido ao sofrimento e entremeava os gemidos com blasfêmias.— Dê àquele bandido um pouco de cianureto — disseram meus companheiros.Meus planos, porém, eram diferentes.Chegamos até o ponto onde jazia o chefe ferido. Estava deitado por cima de selas e,cobertores no meio das rochas. Ele nos disse que era tibetano, porém constatei que era turcomano, possivelmente originário do Turkestão do sul. Olhava-me com uma expressão apavorada e suplicante. Examinei-o e vi que o disparo tinha atravessado seu peito da esquerda para a direita e, tendo perdido muito sangue, estava muito fraco. Fiz por ele, escrupulosamente, tudo que podia ser feito. Experimentava com rninha própria língua todos os remédios que ia aplicando — até o iodofórmio — a fim de que ele visse que não se tratava de veneno. Cauterizei o ferimento com iodo, reguei de iodofórmio e fiz uma atadura. Recomendei para que ninguém tocasse no ferido e que ele permanecesse imóvel no mesmo lugar onde se encontrava. Mostrei a ura dos tibetanos como trocar o curativo e dei-lhe para isso algodão, gaze e um pouco de iodofórmio. O homem já estava começando a ter febre e também lhe dei uma boa dose de aspirina. Deixei também alguns comprimidos de quinino. Por intermédio de meu Calmuco falei aos homens com voz solene:— O ferimento é grave, mas dei ao vosso chefe um bom remédio e espero que sobreviva. Há,

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porém, uma condição indispensável: os maus espíritos, que o aconselharam a nos atacar, já que somos viajantes inofensivos, poderão matá-lo imediatamente se alguém, entre vocês, se atrever a atirar ainda contra nós. Vocês estão proibidos até de manter cartuchos em suas armas.Após estas palavras mandei o Calmuco desarmar seu próprio fuzil, e tirei os cartuchos de minha pistola. Os tibetanos, obedientes, seguiram nosso exemplo.— Recordai o que eu digo. Durante onze noites vocês não poderão sair daqui, nem carregar suas armas. Se vocês desobedecerem essa ordem, o espírito da morte levará vosso chefe e continuará perseguindo a todos.Depois dessas palavras tirei do dedo o anel do Hutuktu de Narabanchi e levantei-o por cima de suas cabeças.Voltei para perto de meus companheiros para ex-plicar que estávamos a salvo e não teríamos que temer novos ataques dos bandoleiros. Precisávamos somente encontrar de novo o caminho da Mongólia. Nossos cavalos estavam tão esgotados e magros que seus ossos apareciam à flor da pele. Ficamos dois dias descansando naquele lugar, e assim pude ver com freqüência meu paciente. Tratamos também de nossos ferimentos que, felizmente, não eram graves. Para meu desgosto só havia uma única faca para retirar o balaço da barriga de minha perna e extrai da minha outra perna os vários

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acessórios de sapateiro que nela se encontravam.Interrogamos os bandidos a respeito das pistas de caravanas e conseguimos facilmente o rumo para alcançar uma delas, onde tivemos a boa sorte de encontrar a caravana do jovem príncipe mongol Puntzig que levava uma mensagem do Buda Encarnado de Urga para o Dalai Lama de Lhasa. Ele nos ajudou na compra de mais cavalos, camelos e mantimentos.Todas as nossas armas e todos os nossos apetre-chos tinham servido de meio para barganha na aquisição de montarias e alimentos para a viagem, e voltamos arruinados e desprovidos de recursos ao mosteiro de Narabanchi onde o Hutuktu nos recebeu de braços abertos.— Sabia que vocês estariam de volta — disse ele. — Os oráculos me revelaram tudo.Seis companheiros nossos tinham ficado no Tibete, pagando com a vida pela audácia de nossa expedição. Éramos doze quando voltamos ao mosteiro e aí ficamos durante quinze dias para restabelecer-nos e especular de que forma poderíamos voltar a flutuar naquele mar tempestuoso, chegando ao porto que o destino nos estava reservando. Os oficiais se alistaram nos destacamentos que estavam sendo formados na Mongólia para combater os bolcheviques que estavam destruindo sua pátria. Meu primeiro companheiro e eu estávamos nos preparando para continuar o caminho pelas planícies da Mongólia, prontos para novas aventuras e novos

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perigos que poderiam ameaçar-nos pela nossa ânsia de sair daí e chegar a um lugar seguro.Relembrando agora os acontecimentos daquela expedição terrível, quero dedicar esses capítulos ao meu grande e velho amigo e companheiro de provações, o agrônomo, e aos meus companheiros russos, especialmente à memória sagrada daqueles cujos corpos repousam no último sono entre as montanhas do Tibete: o Coronel Ostrowysky, os Capitães Zuboff e Turoff, o Tenente Pisarjevsky, o cossaco Vernigora e o tártaro Mahomed Spirid. Quero também expressar minha profunda gratidão, pela assistência e pela amizade que deles recebi, ao príncipe do Soldjack, Noyon herdeiro e Ta Lama, e ao Kampo Gelong do mosteiro de Narabanchi, o venerável Jelyb Djamarap Hutuktu.

A TERRA DOS DEMÔNIOS

17A Mongólia Misteriosa

Uma região muito riea encontra-se no coração da Ásia, enorme e misteriosa. Desde os picos nevados dos Tian Chan e as areias ardentes da Dzungaria até os contrafortes cobertos de florestas dos Sayans e a grande muralha da China, ela expande-se sobre uma vasta porção da Ásia central.Berço dos povos, da história e da lenda, pátria de conquistadores sanguinários que aí deixaram

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seus elos misteriosos, suas antigas leis de nômades e suas capitais sepultadas pelas areias do Gobi; país de monjes, de demônios maus, de tribos andarilhas administradas pelos Khãs e príncipes dos ramos mais novos, descendentes de Kublai Khã e Gengis Khã.Terra misteriosa onde são celebrados os cultos de Rama, de Sakia-Muni, de Djonkapa e de Paspa sob a suprema proteção do Buda Encarnado, na figura divina do terceiro dignitário da religião Lamaísta, Bogdo Gheghen, em Ta Kure ou Urga; terra de médicos, de profetas, de mágicos e de videntes; terra de misteriosa suástica que conserva inesquecído o pensamento dos grandes personagens que outrora dominaram a Ásia e metade da Europa.Terra de montanhas desertas de planícies queimadas pelo sol ou atingidas pelo frio mortal; aí proliferam as doenças do gado e as doenças dos homens; aí nasceram a peste, o antraz e a varíola. Terra de fontes de água fervente, de passagens alpinas assombradas pelos demônios, de lagos sagrados fervilhantes de peixes; país de lobos, de antílopes, de cabras-monteses das espécies mais raras, onde as marmotas aparecem aos milhões e onde há jumentos e cavalos selvagens que nunca conheceram um bridão; terra de cachorros ferozes e de aves de rapina que devoram os cadáveres abandonados nos planaltos.Pátria de povo primitivo que outrora conquistou a China, o Sião, o norte da Índia e a Rússia, daquele mesmo povo que outrora teve seu

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ímpeto freado pela Ásia nômade e selvagem, esse mesmo povo que agora está morrendo e vê as ossadas de seus antepassados alvejar na areia e na poeira, abandonadas nas planícies.Terra repleta de riquezas naturais, terra que não produz nada, terra que precisa de tudo: a conflagração mundial tinha apressado sua ruína e multiplicado seus sofrimentos: infeliz e misteriosa Mongólia.Para essa terra o destino levou-me de novo, depois de fracassada a tentativa de alcançar o Oceano Pacífico através do Tibete, e nessa terra passei mais seis meses de lutas pela vida e pela liberdade. Meu fiel amigo e eu fomos envolvidos, muito a contragosto, nos graves acontecimentos que se desenrolaram na Mongólia em 1921. Durante todo esse período agitado tive a opor-tunidade de conhecer a calma, a bondade e a honestidade do povo mongol. Cheguei a conhecer sua alma e fui testemunha dos sofrimentos e das esperanças daquela nação: consegui conhecer o terror que os dominava, face ao mistério que envolve a vida toda naquela terra.Vi, no frio mais intenso, os rios romperem com estrondos de trovão, sua prisão de gelo; vi lagos arremessarem para a margem ossadas humanas; ouvi vozes estranhas e desconhecidas nos barrancos das montanhas e observei os fogos-fátuos correndo sobre os pântanos; vi lagos em chamas; dirigi meus olhos para cumes ina-cessíveis; encontrei, durante o inverno, valas cheias de cobras se remexendo. Passei por rios

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eternamente gelados, encontrei rochas cujas formas fantásticas lembravam caravanas de camelos, cavaleiros e carretas; e acima disso tudo havia as montanhas desertas cujas escarpas e saliências parecem a capa de Satã, coberta de sangue pelos raios do sol poente.— Olhe para cima! — gritava um velho pastor mostrando-me os penhascos do Zagastai maldito, — não é uma montanha, é "ele" deitado com sua capa vermelha, esperando o dia para se levantar e novamente recomeçar a luta contra os bons espíritos.Ouvindo suas palavras, eu me lembrava da paisagem mística de Vrubel. Eram as mesmas montanhas nuas, vestidas de púrpura e violeta, as cores de Satã cujo rosto fica meio escondido por uma nuvem cinzenta que se aproxima.A Mongólia é o terrível país dos mistérios e dos demônios. Por isso não é de se admirar que qualquer infração contra a antiga ordem que rege a vida das tribos nômades acabe em derramamento de sangue pelo prazer demoníaco de Satã, deitado em sua montanha, coberto pelo véu cinzento do desespero e da tristeza ou pela capa purpúrea da guerra e da vingança.Voltando da região de Kuku-Nor descansamos durante alguns dias no mosteiro de Narabanchi e depois rumamos para Uliassutai, capital da Mongólia Exterior ocidental. Esta é a mais ocidental das cidades puramente mongólicas, que são Urga, Uliassutai e Ulankom. A quarta cidade, Kobdo, tem características mais chinesas; de fato, ela é o centro da

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administração chinesa daquela região que é povoada por tribos nômades, as quais tem noções teóricas sobre a influência de Pequim ou Urga. Em Uliassutai e em Ulankom, além de um comissário e de destacamentos irregulares chineses, há os governadores ou "saits" mongóis, nomeados, por decreto, pelo Buda Encarnado.Logo após nossa chegada a Uliassutai fomos envolvidos pela efervescência das paixões políticas. Os mongóis estavam se agitando violentamente, protestando contra a política que os chineses impunham naquela região; os chineses estavam enfurecidos e exigiam o pagamento de impostos atrasados desde o dia em que a autonomia da Mongólia fora suprimida forçosamente por Pequim. Por sua vez os colonos russos, que muitos anos antes tinham-se estabelecido perto da cidade e em volta dos grandes mosteiros, estavam divididos em facções e lutavam entre si, e no meio de tudo isso chegava de Urga a notícia da luta para a independência da Mongólia Exterior, dirigida por um general russo, o Barão Ungern von Sternberg. Os oficiais e refugiados russos estavam se agrupando em destacamentos, contra os quais as autoridades chinesas protestavam, mas que eram vistos com bons olhos pelos mongóis. Por sua vez, os bolcheviques, aborrecidos pela formação de agrupamentos militares brancos na Mongólia, enviaram suas tropas da fronteira de Irkutsk e de Chita para Uliassutai e Urga, enquanto mensageiros levavam aos comissários

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chineses propostas bolchevistas de todos os tipos.As autoridades chinesas da Mongólia aos poucos entravam em contato secreto com os bolcheviques, entregando-lhes os refugiados russos em Kiakhta e Ulankom e violando, desta forma, os direitos humanos. Em Urga os bolcheviques estavam instalando uma munici-palidade russa comunista, os cônsules russos cessavam as atividades, enquanto os soldados vermelhos na região do Lago Kosogol e no vale do Selenga estavam envolvidos em combates sangrentos com as forças brancas. As autoridades chinesas estavam estabelecendo, postos militares nas cidades mongóis, e aproveitando-se da confusão geral, os soldados chineses estavam investigando todas as casas para roubar e saquear.Tínhamos caído numa verdadeira casa de marim-bondos, depois de fatigante e perigosa viagem que do Ienissei nos tinha levado pelo Urianhai à Mongólia, passando pela terra dos Turguts, o Kan-su e o Kuku-Nor!Qual seria o motivo real dos acontecimentos na Mongólia? O sábio "sait" mongol de Uliassutai deu-me a seguinte explicação:Pelos acordos concluídos entre a Mongólia, a China e a Rússia a 21 de outubro de 1912, em 23 de outubro de 1913 e em 7 de junho de 1915, a Mongólia Exterior recebeu sua independência. O soberano Pontífice da religião amarela, Sua Santidade, o Buda Encarnado, tornou-se o suserano do povo mongol de Khalkha e da Mon-

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gólia Exterior com o título de "Bogdo Djebtsung Damba Hutuktu Khã". Enquanto a Rússia se manteve poderosa, velando cuidadosamente a política na Ásia, a China continuou a respeitar o tratado. Mas no começo da guerra contra a Alemanha, a Rússia viu-se obrigada a retirar as tropas da Sibéria e Pequim começou novamente a reivindicar os direitos que tinha perdido na Mongólia. Os dois tratados de 1912 e 1913 tinham sido complementados pela convenção de 1915, exatamente por esse motivo. Mas em 1916, quando todas as forças da Rússia estavam concentradas em malfadados combates, e mais tarde, em 1917, na época da primeira revolução russa, quando a dinastia dos Romanoff foi derrubada, o governo chinês ocupou novamente a Mongólia. Todos os "saits" e ministros mongóis foram despedidos e substituídos por elementos que simpatizavam com a China. Muitos mongóis, partidários da autonomia, foram presos e arrastados para as prisões em Pequim. Em Urga e em outras cidades mongóis os chineses estabeleceram administradores próprios, retirando da Sua Santidade Bogdo Khã todas as gestões administrativas e fazendo dele uma máquina para assinar decretos chineses. E finalmente trouxeram suas tropas para a Mongólia. Desse momento em diante a Mongólia foi invadida por uma maré de comerciantes e braçais chineses. Os chineses começaram a exigir o pagamento de taxas e de impostos, incluindo os atrasados desde 1912. A população mongol foi despojada totalmente de todos seus

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bens, e quando nós chegamos à Mongólia, podiam ser vistas vastas colônias de mongóis, totalmente arruinados que moravam em espeluncas subterrâneas ao redor das cidades e dos mosteiros. Os chineses confiscaram todos os arsenais e todos os tesouros. Todos os mosteiros foram obrigados a pagar impostos e todos os mongóis que trabalhavam para a liberdade de seu país foram perseguidos. Os chineses conseguiram encontrar, entre os príncipes desprovidos de fortunas, alguns que se deixaram subornar com dinheiro, títulos e condecorações, tornando-se partidários do governo de Pequim.É, portanto, compreensível que as classes dirigentes, Sua Santidade, os Khãs, os príncipes e os grandes Lamas fossem hostis aos chineses, ainda mais porque estava viva a lembrança da época em que os soberanos mongóis tinham dominado Pequim e a China, fazendo dela o primeiro país da Ásia.Uma insurreição, porém, era impossível. Todos os chefes eram vigiados, e qualquer aceno de querer pegar armas só serviria para levá-los àquelas mesmas prisões de Pequim onde oitenta pessoas, entre nobres, príncipes e Lamas, já tinham morrido de fome e torturas em sua luta pela liberdade da Mongólia. Precisava-se de algo muito especial para que o povo se insurgisse.Foram os próprios administradores chineses, os Generais Chang Yi e Chu Chi-hsiang, que provocaram a revolta. Eles anunciaram que Sua Santidade Bogdo Khã estava preso em seu próprio palácio, e lembraram a ele e ao povo que

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segundo um antigo decreto do governo de Pequim, considerado ilegal e sem fundamento pelos mongóis, Sua Santidade era o último Buda Encarnado. Foi demais. Entre o povo e seu deus vivo estabeleceram-se imediatamente relações secretas. Foram feitos planos para a libertação de Sua Santidade e para a luta pela liberdade e a independência do povo. A primeira ajuda veio por intermédio do grande príncipe dos Buriats, Djam Bolon, que iniciou as negociações com o general Ungern, o qual, naquela época, estava empenhado em combates contra os bolcheviques na Transbaikalia, e que foi convidado a ir até a Mongólia para ajudar o povo na guerra contra os chineses. Naquele dia começou a guerra pela liberdade.Foi esta a explicação que o "sait" de Uliassutai me deu a respeito da situação que encontramos. Soube, a seguir, que o Barão Ungern tinha concordado em lutar pela liberdade da Mongólia e tinha pedido que as ordens de mobilização dos mongóis do distrito setentrional fossem dadas imediatamente, prometendo penetrar na Mongólia com suas próprias forças que estavam avançando ao longo do Kerulen. Pouco depois ele juntou-se às outras forças russas comandadas pelo Coronel Kazagrandi, e ajudado pelos cavaleiros mongóis mobilizados, começou o ataque contra Urga. Foi rechaçado duas vezes, mas no dia 3 de fevereiro de 1921 conseguiu apoderar-se da cidade, colocando novamente o Buda Encarnado no trono dos Khãs.

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Nós, os estrangeiros, tomamos a decisão de sair em reconhecimento para saber se estávamos ou não ameaçados pela vinda de tropas vermelhas. Meu companheiro e eu concordamos em ir nós mesmos. O príncipe Chultun Beyli deu-nos um ótimo guia, um velho mongol chamado Tzeren, que sabia ler e escrever russo. Esse homem era um personagem realmente interessante e era empregado pelas autoridades mongóis como intérprete; às vezes exercia essas funções também para o comissário chinês. Pouco antes ele tinha sido mandado a Pequim em missão especial, com despachos muito importantes; e por impossível que pareça, este incomparável cavaleiro cobrira a distância de dois mil e oito-centos quilômetros, entre Uliassutai e Pequim, em nove dias. Preparou-se para a longa viagem; enfaixando seu abdome, o peito, as pernas, os braços e o pescoço com fortes tiras de algodão para protegê-los contra os esforços musculares durante as longas horas de montaria. Afixou no barrete três penas de águia, para indicar que recebera ordens de voar com a velocidade de uma ave. Levava um documento especial, chamado "tzara" que lhe dava o direito de exigir, em cada muda, os melhores cavalos, um para montar e um outro, selado, que ele levava como reserva, e mais dois "ulatchen", ou guardas, para acompanhá-lo e trazer de volta os cavalos da muda seguinte (chamada "urton"). Conseguiu cobrir as distâncias entre as mudas, que variavam de vinte e cinco a quarenta quilômetros, num galope desenfreado, parando

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somente o tempo necessário para trocar de cavalos e de escolta. À sua frente galopava um "ulatchen" com os melhores cavalos para anunciar sua chegada e preparar as novas montarias na muda seguinte, tada "ulatchen" tinha três cavalos, podendo assim abandonar aquele que estava fatigado, deixando-o pastar até a volta. Em cada terceira muda, Tzeren, sem apear, tomava uma xícara de chá verde, quente, bem forte e salgado, e continuava sua corrida para o sul. Cada dezessete ou dezoito horas parava num "urton" para passar a noite — ou melhor, o que sobrava da noite, — devorando uma perna de carneiro fervida e dormindo. Comia uma vez por dia, e tomava chá cinco vezes — e foi dessa forma que ele fez o percurso em nove dias.Numa fria manhã de inverno pusemo-nos a ca-minho em companhia desse homem, indo em direção de Kobdo, que distava cerca de quinhentos quilômetros. Dessa cidade tinham vindo boatos inquietantes que diziam que os vermelhos teriam entrado em Ulankom e que as autoridades chinesas tinham entregue aos bol-cheviques todos os europeus que se encontravam na cidade.Atravessamos o Dzaphin gelado. Nesse rio terrível, o leito é coberto de areias movediças e durante o verão muitos camelos, cavalos e homens desaparecem em seus atoleiros. Entramos num comprido e sinuoso vale; dos dois lados as montanhas estavam cobertas por uma espessa camada de neve e de raros grupos de

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negros lárices. A meio caminho de Kobdo encontramos a "yurta" de um pastor à margem do pequeno lago de Gaga Nor, e lá paramos porque a noite estava caindo, trazendo consigo uma tempestade de neve. Perto da "yurta" vimos um magnífico cavalo baio cuja sela era ricamente ornamentada de prata e de coral. Quando estávamos nos aproximando, dois mongóis saíram apressadamente da "yurta". Um deles saltou na sela, desaparecendo rapidamente atrás das colinas nevadas que se erguiam na planície. Pudemos vislumbrar o brilho de suas roupas amarelas por baixo da grande capa, e seu facão numa bainha de couro verde; o cabo do facão era de chifre e marfim. O outro homem era o dono da "yurta", pastor do príncipe da região, Novontziran. Ele mostrou-se muito contente em ver-nos e nos convidou a entrar.— Quem era o homem montado no cavalo baio? — perguntei-lhe.Ele manteve-se em silêncio, abaixando os olhos.— Responda! — insisti. — Se não responder, vamos pensar que você está de relações com um homem perigoso.— Não, por favor! — gritou o homem levantando os braços. — É um homem ilustre, um homem excelente; mas a lei não me permite pronunciar seu nome.Não insistimos,porque era fácil compreender que o homem que se tinha afastado com tanta pressa devia ser ou o próprio amo do pastor, ou então algum importante Lama, e iniciamos os preparativos para a noite. O pastor botou a

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ferver três pernas de carneiro, tirando habilidosamente o osso com seu facão. Ficamos conversando, e soubemos que ninguém tinha visto soldados vermelhos na região, mas que em Ulankom e em Kobdo os soldados chineses achincalhavam a população, matando a golpes de bambu os mongóis que tentavam defender suas mulheres contra as iniciativas das milícias chinesas. Alguns mongóis tinham fugido para as montanhas, juntando-se aos agrupamentos comandados pelo oficial Kaigorodoff, um tártaro dos Altai, que lhes deu armas.

18O Misterioso Lama Vingador

Depois de percorrer duzentos e sessenta quilômetros em dois dias de viagem, com muita neve e um frio intenso, o descanso na "yurta" pareceu-nos muito merecido. Estávamos conversando, alegres e despreocupados durante o jantar, saboreando a gostosa perna de car-neiro, quando, de repente, ouvimos uma voz rouca e abafada.— Sayn, boa noite!Voltando-nos para a entrada, vimos um mongol atarracado, de estatura mediana, coberto por uma ampla capa de pele de gamo, com um capuz. No cinto via-se o mesmo facão na bainha de couro verde que tínhamos visto preso ao cinto do cavaleiro que fugira com tanta precipitação.— Amursayn! — respondemos à saudação.

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Ele livrou-se rapidamente do cinto e da capa. Ficou de pé à nossa frente, vestindo um maravilhoso hábito de seda amarela que brilhava como ouro lavrado e um cinto de um azul reluzente. O rosto estava barbeado, os cabelos curtos, o terço de coral rosado, o hábito amarelo: tudo indicava que ele devia ser algum grande sa-cerdote Lama. E vimos que tinha um volumoso revólver Colt enfiado no cinto...Olhando para os rostos do pastor e de Tzeren vi que neles se espelhavam o medo e a veneração. O estranho aproximou-se do fogo e sentou.— Vamos conversar em russo — disse, apanhando um pedaço de carne.Começamos a conversar. O estranho começou fazendo uma maldosa crítica ao governo do Buda Encarnado em Urga.— Em Urga eles libertam a Mongólia e põem em fuga as tropas chinesas enquanto aqui, no ocidente, ninguém sabe de nada. Ficamos parados, vendo os chineses matarem nossos patrícios, saqueando por todo lado. Tenho certeza de que Bogdo Khã poderia nos mandar mensageiros. Por que se os chineses conseguem mandar seus mensageiros de Urga e Kiakta para Kobdo para pedir reforços, o governo mongol não sabe fazer a mesma coisa? Por quê?— Será que os chineses enviarão reforços para Urga? — perguntei.Nosso visitante caiu numa gargalhada falou:— Apanhei todos os emissários, tirei suas cartas e mandei-os... para baixo da terra.

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Deu outra gargalhada e depois fixou-nos com seus olhos coruscantes. Foi então que percebi que as maçãs de seu rosto e seus olhos eram diferentes e que ele não era um mongol da Ásia central. Parecia mais um tártaro ou um kirguiz. Ficamos em silêncio, fumando nossos cachimbos.— Daqui a quanto tempo vocês pensam que o destacamento de Tchahars vai deixar Uliassutai? — perguntou ele.Disse-lhe que não tinha ouvido mencionar esse assunto. Então ele explicou que as autoridades chinesas da Mongólia Interior tinham mobilizado um forte contingente entre as tribos guerreiras dos Tchahars, que vivem nômades ao longo da grande muralha. Este contingente era comandado por um famigerado chefe de hunghutzes que tinha sido promovido a capitão pelo governo chinês, já que ele prometera às autoridades chinesas submeter a elas todas as tribos dos distritos de Kobdo e Urianhai. Quando soube para onde íamos e quais eram os motivos de nossa viagem, assegurou-nos que ele estava em condição de dar-nos todas as informações mais detalhadas e aconselhou-nos a não prosse-guir viagem.— A viagem poderia tornar-se bastante perigosa — disse — porque Kobdo será incendiada e haverá chacina. Estou bastante seguro disso.Quando ficou Sabendo que nossa tentativa de atravessar o Tibete tinha miseramente fracassado ele mostrou-se simpaticamente atencioso e disse-nos sinceramente entristecido:

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— Eu sou a única pessoa que poderia ajudar vocês nessa expedição, a influência do Hutuktu de Narabanchi não chega a tanto. Com um salvo conduto meu, vocês teriam ido a qualquer parte da Mongólia. Eu sou Tuchegun Lama.Tuchgeun Lama! Tinha ouvido inúmeras e extra-ordinárias histórias a seu respeito. Ele era um Calmuco russo que lutava pela independência do povo Calmuco e que por esse motivo tinha amiúde conhecido as prisões da Rússia dos Czar e dos soviets também. Evadindo-se da cadeia, refugiara-se na Mongólia, conseguindo imedia-tamente muita influência entre o povo mongol. Sabia-se, de fato, que ele era amigo íntimo e discípulo do Dalai Lama de Lhasa, o maior dos sábios lamaístas, conhecido também como médico e taumaturgo. Tuchegun Lama mantinha com o Buda Encarnado relações que se reves-tiam de características de independência, e obteve dele o comando de todas as tribos nômades da Mongólia ocidental e da Dzungaria, estendendo seu controle político até os mongóis do Turkestão. Sua influência não conhecia obstáculos, devido, como ele mesmo disse, ao seu conhecimento da ciência misteriosa. Soube, entretanto, que essa influência derivava em grande parte do terror que ele inspirava aos mongóis. Qualquer pessoa que desobedecesse as suas ordens morreria. Ninguém sabia quando e como, na "yurta" ou ao lado do cavalo a galope, pudesse aparecer o poderoso e estranho amigo do Dalai Lama. Então uma facada, um tiro de pistola, ou dedos poderosos comprimindo um

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pescoço... eram esses os meios sumários com os quais esse fazedor de milagres executava a justiça a favor dos seus planos.O vento uivava e rugia por fora da "yurta" arre-messando ruidosamente a neve contra o feltro esticado. Entremeados, ao clamor do vento, ouviam-se gritos, gemidos e gargalhadas. Cheguei a conclusão de que naquele país não devia ser muito difícil deixar as tribos nômades estupefatas diante de milagres, já que a própria natureza constituía com seu cenário peculiar um ambiente propício. Nem tinha acabado de formular o pensamento, quando Tuchegun Lama ergueu a cabeça è fixando seus olhos nos meus, disse:— Dentro da natureza há ainda muitas coisas desconhecidas. A arte de saber tirar proveito do desconhecido produz os milagres. Poucas pessoas detêm este poder. Quero dar-lhe uma prova, e em seguida você poderá dizer-me se já viu alguma coisa parecida.Levantou-se, arregaçou as mangas de seu hábito amarelo, pegou o facão e aproximou-se do pastor.— Michik! De pé! — ordenou-lhe o Lama.Quando o pastor se ergueu, o Lama desabotoou-lhea blusa, descobrindo o peito. Estava ainda perguntando a mim mesmo quais eram suas intenções, quando vi o Tuchegun enfiar, com força, o facão no peito do pastor. O mongol caiu, banhado em sangue, e percebi que a seda

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amarela do hábito do Lama estava salpicada de respingos de sangue.— Para que você fez isso? — gritei.— Fique quieto — murmurou, virando para mim seu rosto que agora estava palidíssimo.Com alguns golpes de facão ele abriu completa-mente o peito do homem. Vi os pulmões do homem movimentarem-se suavemente e percebi as batidas de seu coração. O Lama tocou estes órgãos com seus dedos, mas o sangue já tinha estancado e o rosto do pastor parecia completamente calmo. Estava deitado com os olhos fechados e parecia dormir profundamente. Já que o Lama estava começando a abrir-lhe o ventre, fechei os olhos, apavorado; quando os abri fiquei ainda mais confuso, porque o pastor, com sua blusa ainda aberta, e seu peito no estado normal, estava deitado sobre um lado, dormindo tranqüilamente. Tuchegun Lama, calmamente sentado ao lado do fogo, fumava seu cachimbo, e com os olhos sobre as brasas parecia dedicar-se a profundas meditações.— Achei fabuloso — confessei. — Nunca vira nada semelhante.— Você está se referindo a que? — perguntou o Calmuco.— Estou falando da sua demonstração, ou "mi-lagre" como você queira chamá-lo — respondi-lhe.— Nunca falei nada a respeito — retrucou ele friamente.— Você viu isso? — perguntei ao meu compa-nheiro.

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— Vi o quê? — farfulhou com voz sonolenta.Percebi, então, que tinha sido vítima do poder magnético de Tuchegan Lama; achei, porém, preferível que assim fosse, e que o inocente mongol não tivesse morrido, porque eu não conseguia acreditar que Tuchegun Lama, após calmamente despedaçar suas vítimas, tivesse o poder de recompô-las.No dia seguinte despedimo-nos de nossos hospedeiros. Nossa missão estava cumprida e decidimos voltar. Tuchegun Lama explicou-nos que iria "viajar no espaço". Percorria a Mongólia toda, hospedando-se quer numa simples "yurta" de um pastor ou de um caçador, quer nas suntuosas tendas dos príncipes e dos chefes de tribos, sempre cercado de profunda veneração e de pavor místico, atraindo ricos e pobres pela força de seus milagres e de suas profecias. Despedindo-se de nós, o Calmuco sorriu maliciosamente:— Não mencione meu nome às autoridades chi-nesas.Em seguida acrescentou:— Ontem à noite você viu apenas uma pequena demonstração sem importância. Vocês, europeus, não querem admitir que nós, nômades incultos, tenhamos o poder da ciência misteriosa. Se você pudesse ver e assistir aos milagres do mui santo e venerável Tachi Lama! As lâmpadas e os círios em frente à estátua do Buda acendem-se sozinhas a seu mando... e os ícones dos. deuses começam a falar, pronunciando

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profecias! Existe, porém, um homem mais santo e mais poderoso do que ele.— Você está se referindo ao Rei do Mundo na Agharta? — perguntei — interrompendo-o.Ele olhou-me fixamente estupefato:— Realmente você já ouviu falar nele? — perguntou-me franzindo as sobrancelhas e parecendo refletir. Logo em seguida olhou-me com seus olhos estreitos:— Só um homem conhece seu santo nome. Só um homem esteve na Agharta. Eu estive lá. Por isso o mui santo Dalai Lama me honra com sua amizade, e por esse motivo o Buda Encarnado de Urga me teme. Mas não adianta, porque nunca eu subirei ao trono do pontífice de Lhasa e nunca conseguirei o que nos foi transmitido por Gengis Khã e está em poder do chefe de nossa religião amarela. Eu não sou um monje. Eu sou um guer-reiro e um vingador.Saltou na sela de um só lance, chicoteou o cavalo e partiu como um relâmpago gritando por cima do ombro a saudação mongol: "Sayn! Saynbana!".Enquanto voltávamos, Tzeren repetiu centenas de lendas que são contadas a respeito de Tuchegun Lama. Lembro-me especialmente de uma história. Ela passou-se em 1911 ou 1912, quando os mongóis estavam tentando liyrar-se dos chineses pelas armas. O quartel-general dos chineses situava-se em Kobdo, na Mongólia ocidental e lá se encontravam cerca de dez mil homens comandados pelos melhores oficiais. Hun Baldun, um simples pastor que tinha se

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destacado durante a guerra contra os chineses e que recebera do Buda Encarnado o título de príncipe, de Hun, recebeu ordens de apoderar- se de Kobdo, Baldun, que era feroz, destemido e de uma extraordinária pujança física, já tinha amiúde levado os mongóis para o ataque; porém os homens estavam armados de forma sumária e viram-se obrigados a se retirar depois de deixar muitos mortos e feridos no campo da luta, devido ao fogo das metralhadoras. Tuchegun Lama chegou inesperadamente e depois de reunir os homens, disse:— Vocês não devem temer a morte. Vocês não podem retirar-se. Vocês estão lutando pela pátria, a Mongólia, e vocês morrerão por ela porque os deuses lhe previram um futuro radioso. Vejam qual será o destino da Mongólia!Esboçou um largo gesto, no ar, em direção ao horizonte e os soldados viram o país em volta deles coberto de ricas "yurtas", com vastos relvados onde pastavam rebanhos de vacas e cavalos. Muitos cavaleiros apareceram na planície e suas montarias estavam ricamente ornamentadas. As mulheres se vestiam suntuosamente com as mais ricas sedas, pesados brincos de prata cintilavam em suas orelhas e seus penteados complicados reluziam de jóias. Mercantes chineses iam, numa longa caravana, oferecendo suas mercadorias a Saits mongóis de porte altivo, acompanhados por "tziriks" ou soldados em fardas coloridas.A visão desapareceu logo e o Tuchegun falou novamente:

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— Não deveis temer a morte. Ela é a libertação de nossos sofrimentos terrenos e o caminho que leva à felicidade eterna. Olhai para Oriente! Vocês estão vendo seus irmãos e seu amigos que morreram na luta!— Sim, estamos vendo! — gritaram os mongóis estupefatos, olhando fixamente para um grupo de abrigos que tanto podiam ser "yurtas" quanto arcos de templos, e que estavam iluminados por uma luz quente e suave. Largos panos de seda escarlate e amarela cobriam as paredes e o chão; as colunas e os muros reluziam; sobre um grande altar vermelho, as velas das oferendas ardiam em castiçais de ouro, enquanto recipientes de prata estavam repletos de leite e de nozes, e sobre almofadas no chão estavam sentados os mongóis que tinham tombado durante o ataque precedente a Kobdo. À sua frente viam-se mesas laqueadas e sobre elas iguarias fumegantes, carnes suculentas de carneiro e cabrito, garrafas de vinho e de chá, pratos de "borsuk", doces perfumados, "zaturan" coberto de gordura de carneiro, queijo seco, tâmaras, passas e nozes. E todos os soldados mortos na luta fumavam cachimbos de ouro e conversavam alegremente.Esta visão também desapareceu e os mongóis, fascinados pela contemplação da cena, só viram à sua frente o misterioso Calmuco com a mão erguida.— Vamos lutar! E não voltem antes de conseguir a vitória! Estarei com vocês na batalha!

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O ataque começou. Os mongóis lutaram furiosa-mente, morreram às centenas mas o ímpeto da carga levou-os para dentro da cidade de Kobdo. Então teve início uma cena que parecia voltar aos tempos em que as hordas de bárbaros destruíam as cidades européias. Hun Baldun mandou buscar um triângulo feito de lanças com estandartes vermelhos e colocou-o à sua frente. O sinal significava que a cidade estaria entregue aos soldados durante três dias. Foi o início da chacina e do saque. Todos os chineses morreram. A cidade foi incendiada e os muros da fortaleza derrubados. A seguir Hun Baldun foi para Uliassutai e também lá a fortaleza chinesa foi destruída. Ainda podem ser vistas suas setei-ras derrubadas e suas torres desmanteladas, suas portas inúteis e os destroços dos prédios e dos quartéis enegrecidos pelo incêndio.

19.Os Tchahars

Voltando a Uliassutai ficamos sabendo que o "Sait" mongol tinha recebido notícias inquietantes. Parecia que as tropas vermelhas estavam perseguindo o Coronel Kazagrandi na região do Lago Kosopol. O "Sait" temia que os vermelhos avançassem para o sul até Uliassutai. As duas casas comerciais americanas liquidaram rapidamente suas mercadorias e todos os nossos amigos estavam prontos para partir, apesar de estarem com receio de sair da cidade, temendo

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encontrar os grupos de tchahars que tinham sido enviados do leste. Decidimos esperar a chegada desses bandos porque isto poderia mudar o rumo dos acontecimentos. Daí a alguns dias chegaram aproximadamente duzentos belicosos bandoleiros tchahars, comandados por um velho hunghutze chinês. Era ele um homem alto e magro; os braços compridos deixavam as mãos quase perto dos joelhos. O rosto curtido pelo sol e pelo vento ostentava duas cicatrizes, uma das quais passava por um olho que era vasado. O outro olho era tão penetrante quanto o de um falcão. Usava um barrete de pelo de rato. O comandante dos tchahrs era um personagem duro e sombrio, desses que ninguém gostaria de encontrar à noite numa rua solitária.O bando acampou na parte interna da fortaleza, entre os escombros, ao lado do único prédio que não havia sido demolido e que naquela época servia de quartel-general ao comissário chinês. No mesmo dia de sua chegada os tchahars saquearam um "dugun" chinês, sendo que o armazém não distava mais de oitocentos metros da fortaleza. Desrespeitaram a mulher do comissário chinês, chamando-a de "traidora". Aliás, nesse ponto, os tchahars concordavam absolutamente com os mongóis, já que o comissário Wang Tsaotsun, logo após sua chegada a Uliassutai, seguira o costume chinês, casando-se com uma mulher mongólica. O novo "Sait", um sujeito servil, querendo agradar, mandou procurar uma bela moça. Ela foi encontrada e levada para o "yamen" do

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comissário junto com seu irmão, um rapagão alto que parecia destinado a ser o guarda-costas do comissário, mas que terminou sendo a babá de um pequeno cachorro pequinês branco, que o co-missário havia dado de presente à sua nova mulher.A seguir houve furtos, rixas e orgias. Wang Tsaot-sun fez tudo o que estava a seu alcance, fazendo o destacamento de tcharhars sair da cidade o mais rapidamente possível, para que ocupassem outra guarnição mais a oeste, perto de Kobdo e em seguida fossem para o Urianhai.Numa manhã muito fria, os habitantes de Uliassu-tai, acordando, puderam assistir a uma cena de brutalidade típica. O bando estava passando pela rua principal da cidade. Os tchahars, montando pequenos cavalos peludos, marchavam em coluna de três. Usavam fardas azuis, capas de pele de carneiro e barretes regulamentares de pêlo de rato. Todos estavam armados dos pés à cabeça. Andavam lançando gritos selvagens ou berrando frases desconexas e olhando com cobiça para as lojas chinesas e para as casas dos colonos russos. Encabeçava a coluna o sinistro chefe hunghutze, seguido de três cavaleiros d,e capas brancas que levavam bandeiras flutuantes e procuravam organizar uma espécie de música, soprando em grandes conchas. Um tchahar não conseguiu resistir à tentação: saltou do cavalo em frente a uma loja chinesa e entrou. Imediatamente ouviram-se os gritos angustiosos dos negociantes dentro da loja. O hunghutze deu meia-volta com seu cavalo

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e viu o cavalo do outro bandido parado em frente à loja. Aproximou-se e com um grito rouco man-dou o tchahar sair; depois chicoteou-o violentamente no rosto. O sangue esguichou da bochecha rasgada. Todavia, o tchahar saltou na sela sem um protesto e galopou até encontrar seu lugar.Enquanto os tchahars estavam passando, o povo ocultou-se nas casas, olhando ansiosamente entre as frestas das persianas; porém os bandidos não deram mais prejuízos à cidade, e seus instintos naturais só foram novamente despertados pelo encontro com uma caravana chinesa a nove quilômetros da cidade. A caravana, que vinha da China e estava transportando vinho, foi saqueada e os tchahars esvaziaram rapidamente alguns tonéis. Caíram, porém, numa cilada perto de Kargana e a recepção preparada para eles por Tu-chegun Lama foi tal que as planícies de Tchahar nunca mais poderão festejar aqueles seus filhos guerreiros que saíram para conquistar os Soyotes à margem do antigo Tuba.No dia em que a coluna dos tchahars saiu de Uliassutai a neve começou a cair em grande quantidade, ao ponto de deixar a estrada totalmente obstruída. Os cavalos se afundavam até o joelho, cansavam-se facilmente e recusavam continuar o caminho. No dia seguinte alguns cavaleiros mongóis chegaram em Uliassutai superando grandes dificuldades, depois de terem feito apenas quarenta quilômetros em dois dias, com o maior sacrifício.

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Caravanas tiveram que acampar sobre as pistas. Os mongóis não desejavam viajar nem a lombo de "yack" ou de boi, que fazem apenas dezesseis ou vinte quilômetros por dia. Só os camelos poderiam superar uma viagem nessas condições, mas havia poucos e seus condutores duvidavam que eles conseguissem alcançar a estação da estrada de ferro de Kuku-Hoto que distava dois mil e duzentos quilômetros.Estávamos outra vez parados, obrigados a esperar: mas esperar o quê?Esperar a morte, esperar a salvação? Apenas nossas próprias energias e nossas próprias forças podiam levar-nos a salvo. Meu amigo e eu, equipados de tenda, panela e mantimentos, partimos outra vez para uma expedição de reconhecimento até as margens do Lago Kosogol, a região de onde o "Sait" temia uma avançada das forças vermelhas.

20O Demônio de Jagisstai

Éramos um pequeno grupo, composto de quatro homens montados e um camelo de carga, que levava nossos apetrechos. Viajamos para o norte, seguindo o vale do Boyagol, na direção dos montes Tarbagati. O caminho rochoso estava coberto por uma espessa camada de neve. Nossos camelos avançavam cautelosamente farejando a pista, enquanto nosso guia lançava um grito peculiar: "Ok! Ok!", que é o grito dos

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condutores de camelo para fazê-los andar. Demos as costas à fortaleza e ao "dugun" chinês, contornamos um despenhadeiro da montanha, e passado a vau um riacho, começamos a escalar a serra. A subida foi difícil e perigosa. Os camelos escolhiam com muito cuidado o melhor, caminho remexendo continuamente as orelhas, como costumam fazer nesses casos. Passamos por barrancos, transpusemos cristas, descemos vales menos profundos, subindo sempre e atingindo alturas maiores. Em determinado momento, por baixo das nuvens cinzentas que cobriam os cumes, percebemos alguns pontos pretos sobre a vasta extensão de neve.— São os "obos", os marcos sagrados e os altares construídos para os maus espíritos que guardam essas passagens — disse o guia. Esta passagem chama-se Jagisstai. A respeito dela contam-se histórias que são mais antigas que essas próprias montanhas.Pedimos que ele narrasse algumas.O mongol, balançando sobre o camelo, olhou cautelosamente para todos os lados e começou:— Muito tempo já se passou desde então. O neto de Gengis Khã estava no trono da China e reinava sobre toda a Ásia. Os chineses mataram o Khã e queriam também exterminar sua família. Todavia um velho e santo Lama conseguiu trazê-los para cá da Grande Muralha e eles chegaram às planícies de nossa terra natal. Os chineses ficaram procurando seu rosto durante muito tempo e afinal descobriram onde estavam refugiados. Enviaram, então, um destacamento

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de cavaleiros rápidos para apoderar-se deles. Os chineses quase alcançaram o príncipe herdeiro que estava fugindo, mas o Lama implorou aos céus, e a neve começou a cair espessa. Os camelos conseguiam andar, porém, os cavalos tiveram que parar. O Lama era de um mosteiro afastado. Vamos passar perto dele, é o Jahantsi Kure. Para se chegar até lá, precisa-se passar pela colina de Jagiss-tai. E foi aqui, nesse mesmo lugar, que o velho Lama de repente adoeceu, vacilou em sua sela e caiu morto. Ta Sin Lo, a viúva do grande Khã, começou a chorar. Vendo, porém, que os cavaleiros chineses estavam atravessando o vale a galope, ela apressou-se a chegar até a colina. Os camelos estavam esgotados e paravam a cada passo e a mulher não sabia como fazê-los andar. Os cavaleiros chineses estavam se aproximando cada vez mais. Ela podia ouvir seus gritos de alegria, porque eles pensavam que a recompensa prometida pelos mandarins pelo assassinato do herdeiro do grande Khã já estava em suas mãos. A cabeça da mãe e do filho deviam ser levadas a Pequim para serem expostas no Ch'ien Mên aos insultos da ralé. A mãe apavorada levantou a criança para o céu e gritou: "Terra e deuses da Mongólia! Aqui está o filho daquele que cobriu de glória o nome mongol em todos os cantos do mundo. Não deixai que o próprio sangue de Gengis Khã pereça!"Naquele instante viu perto dela um camundongo branco sentado numa pedra. O camundongo aproximou-se, pulou no seu colo e disse:

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— Fui mandado aqui para ajudar-te. Continua o caminho tranqüilamente e sem temor. Teus perseguidores chegaram ao limite extremo e teu filho terá uma vida gloriosa.Tan Sin Lo não entendia como um pequeno camundongo pudesse parar o avanço de trezentos homens. O camundongo saltou à terra e falou novamente:— Eu sou o demônio do Turbagati. Meu nome é Jagisstai. Sou poderoso e tenho o favor dos deuses. Você, porém, duvidou do poder do camundongo milagreiro e a partir desse dia o Jagisstai será perigoso para as pessoas boas e as pessoas malvadas!A viúva e o filho do Khã foram salvos, mas o Jagisstai nunca conheceu piedade. Sempre que alguém passa por aqui tem que prestar muita atenção. O demônio da montanha está sempre à espreita para levar os Viajantes à perdição.Todas as elevações do Tarbagatai são salpicadas de "obos" feitos de pedras e galhos. Num certo lugar foi levantada uma torre de pedra para que servisse de altar aos deuses ofendidos pelas dúvidas de Tan Sin Lo.Evidentemente o demônio estava à nossa espera. Quando começamos a escalada para a crista principal, ele soprou em nossos rostos. O vento era gelado e começou a silvar, a uivar, jogando contra nós blocos de neve que trazia das alturas. Não conseguíamos enxergar nada à nossa volta, apenas vislumbrávamos o camelo que nos precedia. De repente, senti um choque. Não vi nada fora do normal. Estava sentado

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confortavelmente entre duas sacolas cheias de pão e de carne, todavia não conseguia ver onde estava a cabeça do meu camelo. Ela tinha sumido. De fato, depois de escorregar, tinha caído no fundo do barranco, enquanto as sacolas que se apoiavam em seu lombo, sem estarem amarradas, tinham-se enroscado num rochedo, ficando comigo na neve. Mas para o demônio isso representava apenas uma pequena brincadeira, deixando-o ainda insatisfeito. Começou aliás a mostrar que estava sempre mais irritado. A ventania aumentou, quase nos arrancando das selas e quase derrubando os camelos; as rajadas de vento cegavam-nos, fustigando nossos rostos com neve gelada e dura e não nos deixando respirar. Durante horas a fio avançamos penosamente na neve espessa e caindo de vez em quando em algum barranco. Chegamos enfim a um pequeno vale onde o vento parecia gemer e uivar com mil vozes. Já tinha caído a noite. O mongol estava procurando a pista ao redor, mas voltou decepcionado, fazendo largos gestos com as mãos:— Perdemos o caminho. Teremos que acampar e passar a noite aqui mesmo. É muita falta de sorte, porque não há lenha para nosso fogão, e a temperatura vai baixar mais ainda.Com as mãos insensíveis pelo frio e com grande sacrifício conseguimos levantar a tenda, apesar do vento, colocando por ora o inútil fogão dentro dela. Cobrimos a tenda de neve e depois, ao lado, cavamos fundas valas na neve espessa e obrigamos os camelos a deitar nelas, gritando

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"Dzuk! Dzuk!", que é a palavra para fazê-los ajoelhar. Enfim colocamos as sacolas no interior da tenda.Meu companheiro não se conformava com a idéia de passar a noite numa tenda gelada e sem fogo.— Vou buscar lenha, falou com ar decidido e partiu, levando um machado. Uma hora mais tarde estava de volta com um grande pedaço de poste telegráfico.— Vocês, Gengis Khãs, falou esfregando energi-camente as mãos geladas, apanhai os machados. Descendo a montanha para a esquerda vocês poderão encontrar os postes telegráficos que foram derrubados. Travei conhecimento com o velho Jagisstai e ele me mostrou os postes.Perto do local onde nos encontrávamos passava a linha telegráfica que ligava Irkutsk com Uliassutai antes da revolução, e os chineses tinham ordenado aos mongóis para que derrubassem os postes e levassem os fios. Agora os postes são a salvação dos viajantes que passam por aqui. Foi assim que conseguimos passar a noite numa tenda aquecida, comendo um bom jantar com sopa quente de talharim e carne, bem no centro dos domínios do zangado Jagisstai. Cedo, na manhã seguinte, encontramos a pista a menos de duzentos metros do ponto em que estávamos e prosseguimos a viagem.Perto das nascentes do Adair vimos uma nuvem de corvos mongóis de bico vermelho voando em círculos entre as rochas. Aproximando-nos descobrimos os corpos de um cavaleiro e de um cavalo que pareciam ter tombado pouco antes.

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Não conseguíamos entender o que sucedera. Estavam deitados lado a lado, e as rédeas estavam enroladas em volta do punho direito do homem; aparentemente não havia sinais de bala ou de facada. Não podíamos ver o rosto do homem, mas suas calças e sua capa não eram da região. Estávamos perplexos, perguntando-nos como teriam morrido.Nosso mongol abaixou a cabeça, preocupado, e falou com voz firme:— É a vingança do Jagisstai. O cavaleiro não dei-xou sua oferenda no "obo" ao sul, e o demônio estrangulou-o junto com seu cavalo.Deixamos os montes Tarbagatai para trás. À nossa frente estava o vale do Adair, estreito e sinuoso, seguindo o leito do rio entre duas serras muito próximas, e havia nele ricas pastagens. A estrada cortava o vale em dois, e ao longo dela viam-se os postes telegráficos cortados, com trechos de fios emaranhados completando o espetáculo deprimente. A destruição da linha telegráfica entre Irkutsk e Uliassutai era indispensável à política de agressão chinesa na Mongólia.Encontramos um grande rebanho de carneiros. Enquanto estávamos nos aproximando deles, percebemos que a maioria estava se afastando de nós, deixando em seguida uma metade no lugar enquanto que os outros atravessavam a planície. Deste grupo se destacaram trinta ou quarenta animais que começaram a escalar a montanha aos pulos. Apanhei meu binóculo para observá-los melhor. Aquela parte do rebanho que

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permanecera no lugar eram simples carneiros; o grande grupo que se afastara pela planície eram antílopes mongóis (gasella gutturosa) e o pequeno grupo que estava galgando as rochas da montanha eram composto de carneiros-monteses com grandes chifres. Todos estes animais pastavam em harmonia junto aos carneiros domésticos na planície do Adair, atraídos pelo bom pasto e pela água cristalina. Em alguns pontos o rio não estava gelado e podia ver-se nuvens de vapor que se despren-diam da água. Em dado momento alguns carneiros-monteses e alguns antílopes começaram a nos observar.— Daqui a pouco eles vão tentar cortar nossa pista — observou o mongol rindo. — São animais engraçados. Às vezes, os antílopes correm por quilômetros ao nosso lado para ultrapassar-nos e cruzar nossa pista. Depois vão embora tranqüilamente.Eu já tinha observado este curioso hábito dos antílopes e decidi me aproveitar disso para caçar. Deixamos, portanto, que um mongol continuasse pelo caminho com o camelo de carga. Nós três fizemos uma manobra, espalhando-nos em três direções diferentes, aproximando-nos do rebanho. O rebanho parou, confuso e estupefato, porque os animais teriam preferido apostar corrida com todo nosso grupo unido. Iniciou-se grande confusão. Havia perto de três mil, que começaram a se dividir em grupos, cada grupo tentando seguir um de nós. Grupos compactos passavam correndo, parando mais

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adiante, dando meia volta e perseguindo outro de nós. Um grupo composto por cinqüenta animais enfileirados dois a dois precipitou-se ao meu encontro. Quando se encontravam a cem metros, dei um grito e atirei. Eles estacaram e depois começaram a correr em círculos no mesmo lugar, empurrando-se uns aos outros. O pânico me favoreceu: atirei mais quatro vezes abatendo dois lindos exemplares. Meu amigo teve mais sorte ainda: atirou uma única vez contra um grupo que estava passando a toda velocidade a seu lado e, com uma única bala, abateu dois animais de uma vez.Nesse ínterim, os carneiros-monteses tinham escalado a montanha, tomando posição no alto, enfileirados como soldados, virando a cabeça para nos olhar. Apesar da grande distância eu podia ver claramente seus corpos musculosos, as cabeças majestosas e seus chifres imponentes. Apanhamos nossas presas e alcançamos o mongol que estava na dianteira. Em muitos lugares encontramos as carcassas de carneiros com o pescoço estraçalhado e a carne arrancada dos flancos.— Foram os lobos — disse o mongol. Por aqui há muitos.A noite que passamos no vale foi bastante desagradável. Acampamos perto de um rio gelado, e a alta margem dava-nos proteção contra o vento. Acendemos o fogo em nosso fogão para ferver água: a tenda era bem aquecida e confortável. Estávamos descansando na agradável expectativa do jantar que estava

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sendo preparado quando de repente um uivo prolongado e uma gargalhada diabólica explodiram na proximidade da tenda. Do outro lado da margem uivos lúgubres e repetidos levantaram-se em resposta.— São os lobos — disse calmamente o mongol.Saiu da tenda, apanhando o revólver. Depois de algum tempo ouvimos um disparo, e ele voltou em seguida.-— Consegui assustá-los — falou ele. — Estavam na margem do Adair, em volta de uma carcassa de camelo.— Nossos camelos não foram atacados? — per-guntei.— Vamos acender uma fogueira atrás da tenda, assim deixarão de nos aborrecer.Deitamos logo depois de comer; porém fiquei acordado durante muito tempo ouvindo o crepitar do fogo, o fungar dos camelos e os uivos distantes. Apesar desse barulho todo acabei adormecendo. Estava deitado contra a parede da tenda e não sei há quanto tempo estava dormindo quando fui acordado por um violento chute de um lado. Alguém, do lado de fora, tinha-me empurrado sem a menor cerimônia. Pensei logo que um dos camelos estivesse mastigando o feltro. Apanhei minha Mauser e bati contra a parede com a coronha. Ouvi um grito agudo e o barulho de alguém que estava correndo sobre as pedras. Na manhã seguinte vi os rastros de lobos, que tinham se aproximado da tenda do lado oposto da fogueira e encontrei o lugar onde tinham começado a cavar a terra; um deles

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evidentemente levou uma coronhada na cabeça, e foram obrigados a fugir.Os lobos e as águias são os criados de Jagisstai — explicou muito seriamente nosso mongol. Apesar disso os mongóis caçam os lobos em qualquer ocasião. Assisti uma vez, nos campos do príncipe Baysei, a uma caçada ao lobo. Os cavaleiros mongóis montavam os seus mais velozes cavalos e alcançavam os lobos durante a corrida, matando-os com pesados bambus, chamados Tachur. Um veterinário russo ensinou os mongóis a envenenar os lobos com estricnina, mas eles logo abandonaram este sistema porque era perigoso demais para os cachorros que são os amigos fiéis e aliados dos mongóis. Eles não matam nem águias, nem os falcões, aliás os alimentam.Quando os mongóis matam animais, eles costumam jogar para o alto nacos de carne que os falcões e as águias apanham no ar, da mesma forma que nós costumamos jogar um pedaço de açúcar aos nossos cachorrinhos. As águias e os falcões caçam e matam os corvos e outras aves que são perigosas para os rebanhos, pois costumam picar qualquer feridinha aberta em seus lombos, fazendo chagas que depois, dificilmente, podem ser curadas.

21A Morada da Morte

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A marcha dos cavalos era regular e estávamos progredindo lentamente para o norte. Precorríamos de quarenta a cinqüenta quilômetros por dia. Logo chegamos a um pequeno mosteiro que se erguia da lado es-querdo do nosso caminho; era um prédio alto e quadrado, contornado por uma alta e espessa cerca. Uma abertura no centro, de cada lado, dava acesso às quatro entradas do templo, O templo erguia-se rio meio do pátio interno; tinha colunas laqueadas de vermelho e os tetos à moda chinesa, e dominava as casinhas baixas dos Lamas.Do outro lado do caminho havia uma construção muito parecida com uma fortaleza chinesa, sendo, na realidade, um bazar, ou "dungun". Os chineses sempre edificam dessa forma, parecendo uma fortaleza, com muros duplos, distantes alguns metros um do outro, e nesse estreito espaço constroem suas casas e suas lojas. Geralmente há vinte ou trinta homens armados, prontos para qualquer eventualidade. Em caso de necessidade estes "dunguns" servem como pontos fortificados, e podem resistir a um sítio bastante prolongado.Vi que havia um acampamento de nômades perto do caminho, entre o mosteiro e o "dungun". Não vi seu gado, nem seus cavalos. Os mongóis, evidentemente, já estavam lá há algum tempo, e tinham deixado seus animais na montanha. Havia bandeiras sarapintadas sobre muitas "yurtas", em sinal de epidemia. Ao lado de algu-mas "yurtas", vi feixes de longas varas fincadas

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no solo e encimadas por um barrete, sinal que o dono da "yurta" morrera. Havia maltas de cachorros vagando pela planície, assinalando os lugares onde havia cadáveres nos arredores, nos barrancos e na margem do rio.Aproximando-nos do campo ouvimos uma melodia triste executada por uma flauta, um rufar de tambores e gritos lancinantes. Nosso mongol, que tinha ido à frente, voltou com a informação de que muitas família de mongóis tinham chegado ao mosteiro para pedir ajuda ao Hutuktu Jahantsi, que tinha a fama de realizar milagres. Esse povo tinha vindo de muito longe, atacado pela peste e pela varíola negra, não encontrando o Hutuktu no mosteiro porque ela fora a Urga fazer uma visita ao Buda Encarnado. Por isso tinham ido procurar os mágicos. Os doentes morriam em grande número e, na véspera, eles tinham levado à planície o vigésimo sétimo cadáver.Enquanto o mongol relatava esses fatos, um mágico saiu de uma das "yurtas". Era um homem velho, com um olho cegado por uma catarata e o rosto visivelmente marcado pela varíola. Estava maltrapilho e trapos de cores diferentes estavam presos ao seu cinto. Segurava um tambor e uma flauta. Espumava entre os lábios azulados e seu olhar era vago. Começou a andar em volta e a dançar, dando pulos com suas pernas compridas, agitando os braços e os ombros, batendo no tambor e tocando a flauta, gritando e acelerando sempre mais o ritmo até que caiu na neve, onde continuou a espernear e a lançar gritos agudos,

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com o rosto lívido e os olhos injetados de sangue. O mágico curava seus doentes tentando espantar, dessa forma, os maus espíritos que traziam as doenças. Soube em seguida que um outro mágico dava a seus doentes água suja e lamacenta que, explicava, era a água do banho do próprio Buda Encarnado que tinha lavrado nele seu corpo divino, nascido a na flor do lótus.— "Om! Om"! — gritavam os mágicos sem parar.Enquanto esses médicos mágicos espantavam os demônios, os doentes ficavam completamente abandonados a si mesmos. Estavam deitados sobre peles de cabra e sobre capas, agitados por uma febre terrível, delirando e torcendo-se entre espasmos. Os adultos e as crianças que ainda não haviam sido atingido, ficavam sentados perto dos fogos, conversando tranqüilamente, tomando chá e fumando. Vi doentes e mortos em todas as "yurtas", entre misérias e horrores indescritíveis.Ó grande Gengis Khã! Com sua penetrante inteli-gência você entendeu toda a situação da Ásia e da Europa, e sua vida foi consagrada a enaltecer o nome dos mongóis: por que você não esclareceu seu povo, salvando-o de uma morte tão horrível? O povo tem todas as suas tradicionais qualidades, sua moral, sua honesti-dade e seus costumes pacíficos, mas sua ossada, que o tempo está acabando de destruir no mausoléu de Kha rakorum, não deu proteção ao povo: seu povo está desaparecendo, este mesmo povo que outrora era temido pela metade do mundo civilizado.

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Eu via este campo de moribundos à minha volta, ouvia os lamentos, os gritos dos homens, das mulheres e das crianças. Os cachorros uivavam ao longe enquanto o tambor do mágico, cansado, continuava rufando.Fomos embora. Não suportava mais aqueles horrores, e não tinha recursos nem energia para combatê-los. Andamos rapidamente para distanciarmo-nos daquele lugar maldito. Estávamos obcecados pelo que víramos e tínhamos a impressão de que algum .demônio estivessé às nossas costas, perseguindo-nos na nossa fuga daquele lugar medonho. Os demônios da doença, os espectros do horror e da miséria! As almas daqueles que todos os dias são sacrificados na Mongólia pelas trevas da ignorância. Éramos presas de um terror inexperiente e não conseguíamos livrar-nos dele.Somente depois de deixar a estrada e passar por uma colina coberta por um bosque, vendo à nossa frente um anfiteatro de montanhas de onde não mais podíamos vislumbrar Janantsi Kure, o "dugun" e a morada dos mortos, conseguimos novamente respirar aliviados.Em breve chegamos perto de um grande lago: era o Tisingol. Em sua margem havia um casarão russo. Era a estação do telégrafo que une Uliassutai ao Lago Kosogol.

22Entre Assassinos

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Perto da estação do telégrafo encontramos um moço loiro chamado Kanin que era o encarregado do posto. Um pouco hesitante, ele ofereceu-se a hospedar-nos durante a noite. Entrando na sala vimos um homem alto e magro levantando-se da mesa. Aproximou-se lentamente, olhando-nos com atenção.— São hóspedes... — disse Kanin. —Estão indo para Kharyl. São estrangeiros.— Ah! — falou o outro com calma.Enquanto estávamos tirando com dificuldadesnossos cinturões e as pesadas capas mongóis, vimos que o homem falava rapidamente com Kanin. Aproximando-me da mesa, para sentar e descansar, ouvi que dizia: "Teremos que adiar". E Kanin acenou com a cabeça.Em volta da mesa havia mais gente: o assistente de Kanin, alto e loiro, falava com volubilidade de muitas coisas. Parecia um pouco esquisito, e sua loucura se manifestava quando por algum barulho, por um estrondo ou vozes muito altas ele se via obrigado a repetir as palavras de seu interlocutor, ou então falava rapida e maquinalmente, descrevendo tudo o que estava se passando em volta dele. A mulher de Kanin também estava presente: era uma moça jovem, pálida e cansada, e seus olhos febris pareciam aterrorizados. Ao lado dela estava outra moça, de uns quinze anos, os cabelos cortados curtos, trajada como um homem, e os dois filhos de Kanin. Apresentamo-nos a todos. O homem alto chamava-se Gorokoff: ele era um colono russo de Samgaltai e apresentou a mocinha de cabelo

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curto como sua irmã. A mulher de Kanin olhava-nos com terror mal dissimulado, sem proferir palavra, evidentemente aborrecida pela nossa presença. Mas não havia alternativa, e come-çamos a tomar chá. comendo nosso pão com carne fria.Kanin contou que, depois da destruição da linha telegráfica, sua família tinha sofrido muito. Os bolcheviques de Irkutsk não estavam mandando-lhe o ordenado e, asim, via-se obrigado a recorrer a expedientes para sobreviver. Vendia feno aos colonos russos, transmitia mensagens particulares e transportava mercadorias de Khatyl a Uliassutai e aos Samgaltai, comprava e vendia gado, caçava, e dessa forma conseguia manter-se. Gorokoff disse que devia ir a Khatyl a negócios e que ele e sua irmã gostariam de viajar em nossa companhia. Parecia aborrecido e tinha um ar antipático; seus olhos sem cor nunca olhavam a pessoa com quem estivesse conversando. Durante, a conversação, pergun-tamos a Kanin se havia colonos russos por perto. Ele franziu o cenho e respondeu com ar enjoado:— Um velho ricaço Bobrott. Mora a um quilô-metro daqui. Mas não aconselho visitá-lo. O velho é muito avarento e não gosta de hóspedes.Enquanto ele estava falando, a mulher abaixou os olhos e encolheu os ombros como sacudida por um calafrio. Gorokoff e sua irmã continuaram a fumar, indiferentes. Reparei ao mesmo tempo a hostilidade de Kanin, o medo da mulher, e a indiferença forçada dos Gorokoff e decidi, no mesmo instante, fazer uma visita ao velho

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Bobroff, de quem Kanin estava falando em termos pouco simpáticos. Conhecia dois homens em Uliassutai chamados Bobroff; por isso disse a Kanin que eu tinha uma carta que devia entregar pessoalmente a Bobroff, e depois de tomar meu chá, pus a capa e saí.A casa de Bobroff fora construída numa depressão da montanha. Tinha ao redor uma alta cerca e por cima dela, podia-se ver os tetos baixos das construções. Uma janela estava iluminada. Bati à porta. Ouvi cachorros latindo furiosamente. Pelas frestas da cerca podia ver quatro cachorros mongóis grandes e pretos que rosnavam mostrando os dentes. Ouvi alguém gri-tando no pátio: "Quem está aí"?Respondi que era um viajante e que vinha de Uliassutai. Alguém botou os cachorros na corrente e apareceu um homem que me olhou com atenção, examinando-me da cabeça aos pés. A coronha de um revólver saía de um de seus bolsos. Pareceu satisfeito com a minha aparência; disse-lhe que conhecia seus parentes. Depois disso recebeu-me amavelmente, e apresentou-me à mulher, uma velha senhora cheia de dignidade e a uma linda garotinha, de cinco anos, que era sua filha adotiva. Esta fora encontrada na planície ao lado da mãe morta, vítima do cansaço na sua tentativa de escapar aos bolcheviques na Sibéria.Bobroff deu-me a informação de que o destaca-mento do Coronel Kazagrandi tinha vencido as forças vermelhas do Lago Kosogol e que,

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portanto, poderíamos continuar tranqüilamente nossa viagem até Khatyl.— Por que você não veio logo até aqui ao invés de hospedar-se na casa daqueles bandidos? — perguntou-me o velho.Fiz-lhe muitas perguntas e ele me deu informações preciosas. Soube que Kanin era um agente bolchevique do soviet de Irkutsk e que estava ali como espião. A interrupção do caminho de Irkustk naquele momento tirava-lhe a periculosidade. Um comissário muito influente tinha, porém, chegado de Bissk, na região dos Altai.— Gorokoff? — perguntei.— Este é o nome que ele está usando agora: mas eu também sou de Bissk e conheço todo mundo naquela cidade. Seu verdadeiro nome é Muzikoff, e a mocinha de cabelos curtos que o acompanha é a amante dele. Ele é comissário da Cheka e ela é uma agente. Durante o último mês de agosto aqueles dois criminosos mataram a tiros de revólver setenta oficiais do exército de Kolchak que caíram em suas mãos, e atiraram neles depois de terem atado suas mãos e seus pés. São assassinos covardes. Queriam hospedar-se na minha casa, mas eu os conheço bem e recusei.— Você não tem medo dele? — perguntei, lem-brando as palavras e os olhares daqueles homens sentados em volta da mesa.— Não, eu sei defender-me, e sei como defender minha família. Tenho um bom protetor — meu filho, o melhor atirador, o melhor cavaleiro e o

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melhor combatente que existe na Mongólia inteira. Sinto que você não possa conhecê-lo, ele foi ver o rebanho e só voltará amanhã à noite.Despedimo-nos com muita cordialidade e tive que prometer que na volta me hospedaria na casa dele.— Pois, então, quais foram as lorotas que Bobroff contou a nosso respeito? — perguntaram Kanin e Gorokoff quando voltei à estação do telégrafo.— Não falou nada a respeito de vocês — respon-di-lhe, aliás quase não quis falar comigo quando soube que eu estava hospedado aqui. Que rusgas existem entre vocês e aquele homem? — perguntei com ar admirado.— É uma velha história — disse Gorokoff, ríspido.— Ele não passa de um velho malandro — falou Kanin quase na mesma hora. Os olhos tristes e assustados da mulher de Kanin agora pareciam expressar o horror de quem espera que algo de terrível aconteça a qualquer instante.Gorokoff começou a fazer seus preparativos para a viagem do dia seguinte em nossa companhia. Armamos nossas camas de campo num quarto próximo, e conciliamos o sono. Antes de dormir eu murmurara ao ouvido do meu amigo para que ele ficasse com o revólver ao alcance das mãos, mas em vez de responder ele sorriu e tirou da capa o machado e o revólver para colocá-los embaixo do travesseiro.— Aqueles homens me pareceram suspeitos logo que eu os vi — falou ele em seguida. Por sinal acredito que estejam preparando algum golpe sujo. Amanhã ficarei atrás desse Gorokoff e

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estarei de prontidão com uma de minhas fiéis balas "dum-dum".Os mongóis dormiram na tenda que foi armada no pátio, perto dos camelos, porque eles queriam alimentar os animais. Saímos pelas sete horas. Meu amigo ficou na retaguarda, atrás dos Gorokoff que estavam armados dos pés à cabeça e cavalgavam esplêndidos cavalos.— Estes cavalos estão num ótimo estado apesar de terem vindo de Samgaltai — observei olhando para as montarias.Ele explicou que os cavalos eram de Kanin e notei logo que o homem não podia ser tão pobre como queria que nós acreditássemos de fato, qualquer mongol rico teria comprado os cavalos, trocando qualquer um deles por um número de carneiros suficiente para fornecer carne durante um ano à família Kanin.Depois de algum tempo chegamos a um grande pântano contornado por uma mata espessa. Fiquei estupefato ao ver centenas de kuropatkas, ou perdizes brancas.Uma grande quantidade de patos levantou voo da água, espantados com a nossa chegada. Patos selvagens no inverno, com frio e neve? O mongol explicou-me:— Este pântano mantém sempre uma temperatura elevada e nunca gela. Os patos selvagens vivem aqui o ano todo porque encontram alimento na terra morna e fofa.Observei, então, enquanto estava conversando com o mongol, uma chama de cor amarela-avermelhada. A chama desapareceu, e vi outras

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aparecerem e desaparecerem em direção da outra margem. Eram os fogos-fátuos que aparecem em tantas lendas e que agora a ciência explica muito simplesmente: são uma combustão espontânea de metano, ou gás dos pântanos, produzido pela putrefação de matéria orgânica na terra úmida e quente.— Aqui moram os demônios do Adair — explicou prontamente o mongol — e eles estão continuamente em guerra com os outros demônios do Muren.Na Europa, ainda em nossos dias, os moradores das aldeias acreditam que os fogos-fátuos são o produto de alguma bruxaria. Nada estranho, final, refleti comigo mesmo, se nessa terra eles são considerados os demônios de dois rios, rivais e em guerra entre si.Após atravessar o pântano conseguimos ver, ao longe, um grande mosteiro. Apesar de estar a um quilômetro de nossa rota, os Gorokoff disseram que queriam chegar até lá para fazer compras. Eles se afastaram rapidamente de nós, prometendo alcançar-nos mais tarde. Porém não vimos mais os Gorokoff durante algum tempo. Desapareceram sem deixar vestígio e quando nossos caminhos se cruzaram novamente algum tempo mais tarde, foi em circunstâncias inesperadas e que acabaram sendo fatais para eles. Estávamos felizes de nos ver livres deles, e contei ao meu amigo tudo o que Bobroff me dissera.

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Em cima de um vulcão

Chegamos em Khatyl na noite seguinte. Era uma pequena colônia russa, de talvez dez casas, esparsas no vale do Egingol ou Yaga, que é um rio que sai do Lago Kosogol e começa a mais ou menos um quilômetro acima da aldeia. O Kosogol é um vasto lago alpino, frio e profundo, com cento e trinta e cinco quilômetros de comprimento e de dezesseis a quarenta quilômetros de largura. Na sua margem ocidental moram Soyotes do Darkhat, que chamam o lago de Hubsugul, e os mongóis o chamam de Kosogol. Ambos os povos acham que o lago é terrível e, portanto, sagrado. Essas crenças são facilmente explicadas: o lago se encontra numa região de atividades vulcânicas. Durante o verão, em dias tranqüilos e ensolarados, a superfície do lago às vezes encrespa-se até formar terríveis vagalhões, que são perigosos não somente para os barcos dos pescadores mas até para os grandes navios russos a vapor que transportam os passageiros de uma margem a outra. Durante o inverno a crosta de gelo que se forma sobre as. águas racha-se às vezes de uma margem a outra e; grandes, nuvens de vapor levantam-se pelo ar. Provavelmente o fundo do lago é convulsionado esporadicamente por nascentes de água quente ou talvez por erupções de lava.Em Khatyl havia pânico. As tropas russas do Co-ronel Kazagrandi tinham derrotado os bolcheviques em dois combates, e tinham

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iniciado com sucesso a marcha em direção a Irkutsk. De um dia para o outro, porém, as tropas ficaram divididas por discórdia entre os oficiais. Ficaram assim repartidas em pequenos grupos. Os bolcheviques aproveitaram-se da situação e depois de reforçar a tropa com mais mil homens, tinham iniciado ações que visavam a reconquistar o terreno perdido. Enquanto isso, o resto do grupo Kazagrandi estava se retirando em direção de Khatyl onde o coronel tencionava fazer a última e desesperada tentativa de resis-tência.Os habitantes da aldeia estavam carregando seus pertences sobre carretas, fugindo com suas famílias, e abandonando seus animais. Uma parte deles queria esconder-se a pouca distância, numa densa floresta de lárices e nos barrancos, enquanto um outro grupo queria alcançar Muren Kure e Uliassutai. Na manhã do dia seguinte o governador mongol recebeu a informação de que os bolcheviques tinham contornado o flanco da coluna Kazagrandi e estavam se dirigindo a Khatyl. O governador carregou documentos, família e criados em onze carretas e abandonou seu "yamen".Sem uma palavra sequer de aviso, nossos guias mongóis fugiram com ele levando todos os camelos. Estávamos numa situação desesperadora. Fomos apressadamente ver os colonos que ainda não tinham ido embora a fim de comprar alguns camelos, mas eles já tinham mandado seus animais a amigos mongóis longe daí para evitar as complicações que estavam se

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preparando e não puderam ajudar-nos. Procuramos em seguida o veterinário, Dr. V. G. Gay, que era conhecido na Mongólia toda pela sua luta contra as doenças de gado. Ele estava morando em Khatyl com a família; obrigado a demitir-se de seu cargo oficial, tinha-se tornado criador. Homem enérgico e inteligente, durante o regime czarista fora encarregado de comprar, na Mongólia, a carne para o exército russo no fronte alemão. Ele organizou toda a operação na Mongólia; quando os bolcheviques assumiram o poder, em 1917, ele continuou a executar o mesmo trabalho.No mês de maio de 1918 quando o exército de Koltchak derrotou os bolcheviques na Sibéria, o Dr. Gay foi preso. Foi, porém, libertado logo em seguida porque era considerado o único homem capaz de assegurar o abastecimento na Mongólia. Ele entregou ao Almirante Koltchak todas as reservas de carne e todo o dinheiro que tinha recebido anteriormente dos comissários soviéticos. E naquela época Gay estava abaste-cendo de carne as forças de Kazagrandi.Quando chegamos a vê-lo, ele nos aconselhou a tomar o que restava, ou seja, alguns pobres cavalos esgotados que poderiam levar-nos até Muren-Kuren, a oitenta quilômetros. Acreditava que lá poderíamos encontrar camelos para voltar a Uliassutai.Os cavalos, porém, estavam a uma relativa distância da aldeia e fomos obrigados a pernoitar lá, sendo que, justamente naquela noite, esperava-se a chegada dos vermelhos.

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Estávamos estupefatos de ver que Gay e sua família não davam sinais de querer fugir apesar da iminente chegada dos bolcheviques. Só restavam na aldeia alguns cossacos que tinham recebido a ordem de ficar na retaguarda para vigiar os movimentos do inimigo.Desceu a noite. Meu companheiro e eu estávamos prontos a lutar e, na pior das hipóteses, a suicidar-nos para não cair nas mãos dos bolcheviques. Deitamo-nos numa pequena casa, à margem do Yaga onde moravam alguns braçais que não tinham a possibilidade de fugir ou então não achavam que isso fosse necessário. Eles foram se postar numa colina que permitia observar toda a região, até uma elevação de onde se supunha deveriam chegar os vermelhos. Um dos braçais veio correndo desse posto de observação na floresta, gritando-nos:— Que desgraça, que desgraça para todos! Os vermelhos chegaram. Um cavaleiro passou agora a galope pela estrada da floresta. Chamei-o, mas ele não respondeu. Apesar da escuridão vi que o cavalo não era daqui.— Não fale coisas à toa — respondeu outro braçal. — Deve ter sido um mongol e você achou que era um vermelho.— Não, não era um mongol — retrucou o primei-ro. — O cavalo estava ferrado. Ouvi perfeitamente o estalar dos ferros na estrada. Que desgraça!— Dessa vez acredito mesmo que nosso fim che-gou — falou meu companheiro. — Que estupidez ter que acabar dessa forma.

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Concordava com ele. Mas naquele mesmo instante alguém bateu à porta. Era um mongol trazendo três cavalos para podermos fugir. Selamo-os apressadamente, carregando no terceiro nossa tenda e nossas provisões, e fomos até a casa de Gay para nos despedir dele.Encontramos todo o Conselho de guerra reunido na casa de Gay. Alguns colonos e vários cossacos tinham chegado a galope para anunciar que o destacamento vermelho estava se aproximando de Khatyl, mas que acamparia durante a noite na floresta, onde os homens já estavam acendendo as fogueiras. Parecia estranho que o inimigo quisesse ficar na floresta, já que estava perto da aldeia que pretendia ocupar.Um cossaco, armado entrou na sala anunciando que dois homens armados, pertencentes ao destaca mento, estavam se aproximando. Todos, na sala, começaram a prestar atenção. Ouvimos os cascos dos cavalos do lado de fora, junto a vozes de homens, e em seguida alguém bateu à porta.— Entre — gritou Gay.Entraram dois homens. Devido ao frio, suas barbas e bigodes pareciam esbranquiçados e as maçãs de seus rostos muito vermelhas. Vestiam capas siberianas e tinham barretes de astracã, mas não estavam armados. Foram interrogados. Ficamos sabendo que eles pertenciam a um agrupamento de colonos brancos do distrito de Irkutsk e estavam pretendendo alcançar o destacamento de Kazagrandi. O chefe do grupo era um socialista, o Capitão Vassilieff, que

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durante o regime czarista sofrera muitas perseguições.Estávamos mais tranqüilos, mas resolvemos da mesma forma partir imediatamente para Muren Kure, porque já estávamos na posse de todas as informações que precisávamos, e queríamos preparar nosso relatório o quanto antes. No caminho alcançamos dois cossacos que iam chamar de volta os colonos que estavam fugindo para o sul:. Assim, viajamos em companhia deles. O "Yaga" estava em péssimas condições. Apeamos, conduzindo os cavalos pelas rédeas em cima do gelo. As forças subterrâneas provocavam no rio grandes ondas que conseguiam erguer a camada espessa de gelo com estrondos, lançando para o ar blocos de gelo que recaíam, esmigalhando-se e desapareciam água abaixo, sob a crosta de gelo que estava ainda inteira. Fendas em ziguezague abriam-se na superfície em todas as direções. Um cossaco caiu numa dessas fendas mas conseguimos salvá-lo a tempo. Molhado e regelado, não teve alternativa senão voltar para Khatyl. Os cavalos escorregavam e caíam amiúde, e todos, homens e animais, estávamos pressentindo a presença da morte que nos ameaçava. Conseguimos, afinal, chegar até a outra margem e continuamos nosso caminho rumo ao sul, seguindo o vale. Estávamos aliviados por ter deixado atrás todos os vulcões, os naturais e os sociais.Após atravessar a linha divisória das águas do Egingol encontramos o colono russo D. A. Teternikoff de Muren Kure que nos convidou a

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hospedar-nos em sua casa e prometeu pedir aos Lamas camelos para nós. O frio era muito intenso, e muito desagradável porque estava acompanhado de vento. Durante o dia ficávamos gelados até os ossos, porém durante a noite conseguíamos aquecer-nos em volta de nosso fogão. Após dois dias entramos na vale do Muren, e vimos ao longe o prédio da Kure, com seus tetos chineses e seus templos vermelhos. À pouca distância distinguia-se outro prédio, que era a colônia sino-russa. Em duas horas de marcha chegamos à residência de nosso hospitaleiro companheiro de viagem e de sua simpática e jovem mulher que nos ofereceu uma maravilhosa refeição com pratos variados e saborosos. Permanecemos em Muren cinco dias aguardando os camelos. Durante esse tempo chegaram muitos refugiados de Khatyl, já que o Coronel Kazagrandi estava se retirando aos poucos. Entre outros, havia dois coronéis, Plavako e Waklakoff, que causaram a deslocação das forças de Kazagrandi.Logo que chegaram em Muren, os refugiados fo-ram avisados pelos funcionários mongóis de que as autoridades chinesas tinham ordenado que todos os refugiados russos deviam ser expulsos dali.— Onde poderemos ir agora, em pleno inverno, com nossas mulheres e crianças, já que não temos mais nossas casas? — perguntavam eles desesperados.— Não estamos interessados nisso — responde-ram os funcionários mongóis. As autoridades

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chinesas estão furiosas, e deram-nos a ordem de escorraçar vocês. Nada podemos fazer por vocês.Os refugiados tiveram que sair de Muren Kure e levantaram suas tendas perto de lá, expostos ao vento. Plavako e Maklakoff compraram cavalos e partiram para Van Kure. Após muito tempo soubemos que ambos tinham sido mortos, na estrada, pelos chineses.Conseguimos três camelos e partimos na compa-nhia de um grande grupo de comerciantes chineses e de refugiados russos que iam a Uliassutai, levando uma muito agradável lembrança de nossos hospedeiros, T. V. e D. A. Teternikoff. Tínhamos pago um preço bastante alto pelos camelos, de fato, fomos obrigados a pagar trinta e três "Ian" ou duas libras e meia de peso em prata do dinheiro que nos foi fornecido por uma loja americana em Uliassutai.

24Castigo Sangrento

Chegamos logo à pista pela qual tínhamos passado quando íamos para o norte, revendo o desfile dos postes telegráficos derrubados e que, naquela ocasião, tinham-nos fornecido aquele calor de que tanto precisávamos. Ao cair da noite chegamos às colinas cheias de árvores, ao norte do vale do Tisingol. Decidimos parar na casa de Bobroff e os outros companheiros foram pedir hospitalidade a Kanin, na estação do telégrafo. Na porta da estação encontramos um soldado armado de fuzil que perguntou quem éramos e

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de onde vínhamos e depois, satisfeito com as nossas respostas, avisou com um apito a um jovem oficial que logo saiu da casa.— Tenente Ivanoff — apresentou-se o oficial — Estou aqui como meu grupo de milicianos brancos.Ele vinha das cercanias de Irkutsk com dez homens e, depois de entrar em contato com o Tenente-Coronel Michailoff, recebeu ordem para tomar conta do posto.— Queiram entrar — falou muito amavelmente.Expliquei, então, que tínhamos a intenção de nos hospedar na casa de Bobroff. Ele fez um gesto desesperado com a mão.— Não é mais possível. Os Bobroff foram assassi-nados e a casa foi incendiada.Não consegui me controlar e lancei um grito de horror.O tenente, continuou:— Kanin e os Putzikoff mataram-nos, saquearam a casa e a incendiaram em seguida, deixando nela os cadáveres. Querem ver?Meu companheiro e eu fomos com o tenente até a casa incendiada. Prumos carbonizados erguiam-se entre vigas e tabuas enegrecidas pelo fogo enquanto a baixela, as panelas e os outros vasilhames estavam esparramados por toda parte. De um lado, cobertos por um pano, jaziam os restos dos quatro infelizes. O tenente deu-me algumas explicações:— Relatei o caso a Uliassutai e soube que os familiares viriam em companhia de dois oficiais

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para abrir inquérito. Por isso ainda não sepultei os corpos.— Como aconteceu? — perguntei, entristecido pelo espetáculo.— Foi assim, disse o tenente. Com meus dez sol-dados estava me aproximando de Tisingol. Era noite e chegamos perto da estação com muito cuidado, porque temíamos a presença de vermelhos, e olhamos pelas janelas. Vimos Putzikoff, Kanin e a moça de cabelos curtos que estavam examinando e partilhando roupas e objetos, e pesando lingotes de prata. Não me dei conta do significado da cena, mas tive o pressentimento que devia agir com muito cuidado; por isso mandei um de meus soldados pular a cerca e abrir a porta. Entramos rapidamente no pátio. A mulher de Kanin foi a primeira a sair, correndo, e gritando apavorada com as mãos levantadas: "Eu sabia que depois disso aconteceria alguma desgraça". Ela desmaiou. Um dos homens conseguiu escapulir por uma porta lateral até o galpão, tentando em seguida pular a cerca. Eu não tinha percebido nada, mas um de meus soldados capturou-o. Kanin estava na porta da casa: estava pálido e tremia. Logo percebi que algo de grave se passara, e prendi-o. Ordenei que os homens fossem amarrados e mandei vigiá-los. Ninguém queria responder às minhas perguntas. Só a senhora Kanin se pôs de joelhos, gritando: "Piedade, piedade pelas crianças! Elas são inocentes..."

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A moça de cabelos curtos olhava para todos com ar insolente e zombeteiro, soltando a fumaça do cigarro em direção do meu rosto. Não obtendo resultados, passei a ameaçá-los:— Sei — disse-lhes — que vocês cometeram um crime e não querem confessá-lo. Se vocês insistem nessa atitude vou mandar fuzilar os homens e vou mandar as mulheres para Uliassutai a fim de sprem processadas.Falei num tom firme e decidido, e realmente eu estava furioso com eles. Fiquei muito surpreendido quando a moça de cabelos curtos decidiu-se a falar:— Vou contar tudo — disse ela.Mandei trazer papel, pena e tinta. Os meus sol-dados serviram de testemunhas. Preparei o verbal da confissão de Putzikoff. Eis o que ela disse:— Meu marido e eu somos comissários bolche-viques, e fomos mandados para cá para descobrir quantos oficiais brancos estão escondidos na Mongólia. Kanin deteve-nos dizendo que Bobroff era muito rico e que já há algum tempo estava planejando matá-lo e saquear sua propriedade. Encontramo-nos com o jovem Bobroff e o convidamos a vir jogar baralho. Quando estava voltando para sua casa, meu marido seguiu-o e o matou. Depois fomos todos até a casa de Bobroff. Subi na cerca e joguei carne envenenada aos cachorros que morreram em poucos minutos. Então passamos todos pela cerca. A primeira pessoa a sair de casa foi a senhora Bobroff.

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Putzikoff estava escondido atrás da porta e matou-a com uma machadada. O velho morreu de outra machadada enquanto dormia. A menina veio correndo para o quarto porque estava ouvindo o barulho, e Kanin matou-a com um tiro de espingarda na testa. Em seguida saqueamos a casa e depois ateamos fogo, queimando também os cavalos e o gado. Tudo ter-se-ia queimado completamente, sem deixar alguma pista, porém vocês chegaram e aqueles imbecis nos traíram.Foi abominável, continuou o tenente enquanto voltávamos para a estação. Meus cabelos eriçaram na minha cabeça enquanto aquela mocinha estava relatando calmamente todas as minúcias do crime. Afinal ela é quase uma criança! Percebi naquele momento a enormidade da depravação que o bolchevismo espalhara nessa terra, sufocando a fé, o temor de Deus e a consciência. Compreendi, também, naquela mesma hora, que todas as pessoas honestas deviam combater, sem piedade esse perigoso inimigo da humanidade, enquanto tiverem vida e energias suficientes.Entrando na estação reparei que de um lado da estrada havia algo escuro:— Que é aquilo? — perguntei ao tenente.— É o criminoso Putzikoff. Matei-o com um tiro de revólver — respondeu ele. Devia ter matado também Kanin e a mulher de Putzikoff, mas tive pena da mulher e das crianças de Kanin, e por outro lado, por Deus, ainda não aprendi a matar mulheres. Vamos mandá-los para Uliassutai

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juntamente com vocês, com uma boa escolta de soldados. Por outro lado, isso não mudará nada, porque os mongóis os julgarão e os condenarão à morte.Estes foram os acontecimentos às margens do Tisingol, onde os fogos-fátuos dançam sobre os pântanos, perto de onde há uma fissura do solo que tem trezentos quilômetros de comprimento, lembrança do último terremoto que sacudiu essas terras.Será que foi desse buraco que saíram Putzikoff, Kanin e os outros espíritos infernais que vieram para manchar a terra de crimes nefandos? Um soldado do tenente Ivanoff, um moço muito pálido que murmurava orações incessantemente, chamava-os de "os servidores de Satã".A volta para Uliassutai na companhia daqueles criminosos foi muito desagradável. Meu companheiro e eu parecíamos ter perdido nossa habitual energia espiritual. Kanin estava sempre pensativo, enquanto a mocinha, que parecia não ter a mínima decência, fumava e ria, brincando com os soldados. Atravessamos finalmente o Jagisstai e, algumas horas mais tarde, perce-bemos ao longe a fortaleza e, a seguir, as baixas casas de barro agrupadas na planície: estávamos chegando a Uliassutai.

25Dias de Provações

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Voltamos a ser envolvidos pela rápida seqüência dos acontecimentos. Muitas coisas tinham sucedido durante os quinze dias de nossa ausência. O comissário chinês Wang Tsaotsun tinha mandado onze mensageiros a Urga, mas nenhum deles havia voltado. A situação na Mongólia continuava confusa. O destacamento de milícias russa aumentara bastante com a chegada de novos colonos e continuava secretamente a sua existência ilegal, apesar de que os chineses estavam sendo informados de tudo pela sua rede de espionagem que se infil-trava em todos os lugares. Na cidade nenhum habitante russo ou estrangeiro saía de casa; todos, porém, estavam armados e prestes a entrar em ação. Durante a noite havia sentinelas nos pátios. As precauções eram devidas à atitude tomada pelos chineses. O comissário chinês tinha de fato ordenado a todos os comerciantes chineses que tivessem fuzis que armassem seus dependentes e dessem as armas excedentes aos funcionários, que por sua vez armariam um grupo de duzentos "coolies" ou braçais. A seguir eles se apoderaram do arsenal mongol, distribuindo as armas lá encontradas, aos braçais do "nagan huchun", onde se encontrava constantemente uma população flutuante de trabalhadores da mais baixa categoria. Esse povinho agora se sentia forte: reuniam-se para fazer calorosas discussões e estavam evidentemente preparando alguma agressão. À noite os "coolies" tiravam caixas de cartuchos dos armazéns para levá-las ao "nagan huchun", e

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a atitude dessa corja estava ficando cada dia mais ousada. Os "coolies" e os irregulares faziam parar os transeuntes e os revistavam, tentando provocar brigas que lhes forneceriam a ocasião de se apoderar dos objetos que cobiçavam.Soubemos de fonte chinesa e secretamente que os chineses estavam preparando um "pogrom" de todos os russos e mongóis de Uliassutai. Sabíamos perfeitamente que era suficiente atear fogo a uma única casa e no lugar indicado, para que todas aquelas construções de madeira fossem presas das chamas. Toda a população começou a se preparar para defender-se. O número de sentinelas nos pátios foi reforçado, foram nomeados comandantes para os diferentes bairros da cidade, foi organizado um corpo de bombeiros e deixamos cavalos, carretas e pro-visões prontas para uma eventual e precipitada fuga.A situação piorou quando chegaram as informa-ções de Kobdo: os chineses haviam feito um "pogrom" ali, matando muitos dos habitantes e incendiando a cidade após devastações, saques e orgias. A maioria dos habitantes fugiu para a floresta, nas montanhas, porém, como era noite, não tinham levado nem agasalhos nem mantimentos. Durante os dias que se seguiram, nas montanhas, em volta de Kobdo, ecoaram gritos de desespero e de morte. O frio e a fome mataram mulheres e crianças que, sem fogo, sem agasalho e sem alimentação, ficaram expostos ao rigor de um inverno na Mongólia. Quando os chineses souberam disso limitaram-se

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a dar gargalhadas e organizaram logo uma grande reunião no "nagan huchun" para discutir se não era o caso de livrar Uliassutai do saque por parte dos irregulares e da ralé em geral.Soubemos da conspiração através de um jovem chinês, filho do cozinheiro de uma família de colonos. Decidimos imediatamente investigar o assunto. Um oficial russo juntou-se a mim e a meu companheiro e, guiados pelo jovem chinês, andamos pelas ruas da cidade. Fingimos estar apenas passeando, mas quando tentamos sair da cidade pelo caminho que levava ao "nagan huchun" tivemos que parar porque uma sentinela chinesa guardava a saída. Disse-nos em tom hostil que ninguém podia ir além. Enquanto conversávamos, notei que, pelo caminho que levava ao "nagan huchun" havia grande número de sentinelas e que uma grande massa de chineses estava se dirigindo para o mesmo lugar. Como não havia possibilidade de chegar à reu-nião por aquele caminho, procuramos outro.Saímos pelo lado leste, margeando o local onde moravam os infelizes mongóis levados à falência pelos impostos chineses. Percebemos que também aquelas pessoas estavam esperando ansiosamente o desenrolar dos acontecimentos, porque, apesar da hora avançada, ninguém estava dormindo. Fomos deslizando sobre o gelo, e por cima do rio, andando em direção do "nagan huchun". Chegando perto da cidade, avançamos com muito cuidado, aproveitando todas as pedras para nos escondermos. Estávamos armados de revólveres e granadas e sabíamos

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que na cidade um pelotão aguardava o momento para socorrer-nos em caso de dificuldade. O jovem chinês ia na dianteira, e meu companheiro seguia-o como uma sombra, lembrando-lhe de vez em quando que ia torcer-lhe o pescoço como a um frango se ele fizesse a menor menção de nos trair. Acredito que nosso jovem guia não estava se divertindo, durante aquela expedição, com meu gigantesco companheiro fungando-lhe na nuca. Chegamos perto do recinto do "nagan huchun" mas entre nós e ele havia uma planície descoberta. Decidimos atravessá-la um a um, aproveitando-lhes de moitinhas enregeladas para ocultar nossa aproximação. Íamos para o "nagan huchun" seguindo o zunido excitado das vozes da turba excitada. Estávamos aproveitando a escuridão para ouvir e observar e desse jeito conseguimos ver duas coisas fora do normal que estavam se passando por perto.Ao mesmo tempo que nós, havia outro espectador invisível assistindo a essa reunião chinesa. Ele estava deitado no chão, a cabeça metida num buraco que os chineses haviam aberto no recinto. Estava imóvel e parecia não ter percebido nossa chegada. Numa vala, por perto, estava deitado um cavalo branco com o focinho amarrado, e um pouco mais adiante havia outro cavalo selado, amarrado a um poste.Dentro do pátio reinava a maior algazarra. Dois mil homens estavam gritando e discutindo, agitando freneticamente seus fuzis, revólveres, sabres e machados. Entre o povo apinhado, circulavam os irregulares, conversando,

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distribuindo papéis e dando explicações. Um chinês alto, de ombros largos, subiu em cima de um estrado que havia no recinto, levantou seu fuzil para cima da cabeça e começou a falar com voz forte e enérgica.Ele está dizendo, traduziu nosso guia e intérprete, que eles devem fazer aqui o que os chineses fizeram em Kobdo, que devem exigir do comissário a garantia de que ele não enviará sua guarda para dificultar a execução do plano. Diz, também, que o comissário chinês deve exigir a entrega de todas as armas em poder dos russos. "Em seguida nos vingaremos dos russos pelos crimes de Blagovechensk em 1900, quando eles afogaram três mil chineses. Fiquem aqui até que eu volte depois de ter falado com o Comissário."Saltou do estrado, indo a passos largos para a saída em direção à cidade. Ao mesmo tempo vi o homem que estava deitado retirar a cabeça da abertura, mandar levantar o cavalo branco deitado na vala, correr e desamarrar o outro cavalo, trazendo-o de volta para o nosso lado, ou seja, o lado oposto da cidade. Deixou-o parado e foi ocultar-se a um canto.O orador chinês, entrementes, estava saindo do recinto e vendo seu cavalo do outro lado, botou o fuzil no ombro dirigindo-se para sua montaria. Estava já a meio caminho quando o estrangeiro que estava de tocaia atrás de um canto do recinto partiu a galope em cima dele e, num instante, agarrou o homem içando-o atravessado sobre seu próprio cavalo, e vimos que enfiava uma mordaça em sua boca, apesar do chinês

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estar provavelmente quase estrangulado. Depois partiu a galope com sua vítima para o oeste da cidade.— O que você pensa, e quem poderia ser este homem? — perguntei ao meu companheiro.A resposta veio imediatamente:— Tudo nele lembra o famoso Lama Vingador.A forma de apoderar-se de seu inimigo era bem aquela de Tuchegun.Mais tarde, durante a noite, soubemos que, pouco tempo depois da saída do orador que ia falar com o Comissário e pedir ajuda para seu plano, a cabeça decepada do homem foi jogada no recinto por cima da cerca, no meio da assistência que ainda estava lá, à sua espera. Oito irregulares tinham desaparecido misteriosamente entre o "huchun" e a cidade, sem deixar vestígio. Os acontecimentos deixaram a ralé aterrorizada, e os espíritos super-excitados se acalmaram.No dia seguinte chegou uma ajuda inesperada. Um jovem mongol chegou a galope vindo de Urga, com a capa rasgada, os cabelos soltos caindo nos ombros e um revólver metido no cinturão. Dirigiu-se diretamente à praça do mercado onde os mongóis costumavam reunir-se e gritou sem descer do cavalo:— Urga está ocupada pelos soldados mongóis e pelo "Chian Chun" (general) Ungern! Bogdo Hutuktu é agora nosso Khã! Mongóis, matai os chineses e saqueai suas lojas! Nossa paciência se esgotou!

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Um murmúrio surgiu entre o povo. O cavaleiro foi cercado pela multidão e todos os homens faziam-lhe perguntas. O velho "sait" mongol que havia sido deposto pelos chineses foi logo informado e pediu que alguém levasse o moço até ele. Depois de interrogá-lo, prendeu-o sob a acusação de sedição, mas recusou-se terminantemente a entregá-lo às autoridades chinesas. Eu estava junto ao "sait" e ouvi quando formulou sua recusa. O comissário chinês tentou ameaçá-lo, acusando-o de indisciplina mas o ancião ficou calmamente desfiando seu terço:— Acredito que o mongol falou a verdade e que breve nossos papéis estarão invertidos!Percebi que também Wang-Tsaotsun acreditava nisso, porque não insistiu mais no assunto. Daquele momento em diante os chineses desapareceram das ruas de Uliassutai como se nunca lá tivessem estado, e foram substituídos por patrulhas de oficiais russos e colonos estrangeiros.Os chineses ficaram em pânico quando chegou uma carta relatando que os mongóis e os tártaros dos Altai, comandados pelo oficial tártaro Kaigorodoff, tinham perseguido os saqueadores Chineses de Kobdo que estavam fugindo com o produto de sua façanha, conse-guindo alcançá-los e massacrá-los na fronteira do Sin-kiang. A carta informava, também, que o General Bakitch e os seis mil homens que tinham sido internados na margem do Amyl, pelas autoridades chinesas, tinham recebido armas, indo juntar-se ao Atamã Annenkof, internado em

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Kuldja, para em seguida pôr-se em contato com o Barão Ungern. O boato não tinha fundamento porque nem Bakitch e nem Annenkof tinham essas intenções, já que Annenkof tinha sido deportado pelos chineses para o interior do longínquo Turkestão. A informação, apesar de falsa, deixou os chineses estarrecidos.Naquela hora chegaram, hospedando-se na casa do colono russo Burdukoíf, três agentes do soviet de Irkutsk, chamados Saltikoff, Freimann e Novak: eles insistiram com as autoridades chinesas para que desarmassem os oficiais russos e para que, a seguir, os entregassem aos bolcheviques. Conseguiram ainda convencer a Câmara de Comércio chinesa a mandar uma delegação a Irkutsk a fim de pedir ao soviet daquela região que mandasse um destacamento vermelho a Uliassutai para proteger os chineses dos brancos. Freimann trouxe impressos de propaganda comunista em idioma mongol e a ordem de reconstruir a linha do telégrafo de Irkutsk. Também Burdukoff recebeu instruções dos bolcheviques. O trio negociou com bastante habilidade e conseguiu rapidamente convencer Wang Tsaotsun a fazer o que eles queriam. Voltou a reinar a mesma angústia dos dias anteriores ao projetado e não-realizado "pogrom". Os russos achavam que seriam presos a qualquer hora.Fui tratar com o comissário, acompanhado pelo representante de uma das casas comerciais americanas. Explicamos ao comissário que ele estava procedendo de forma ilegal, já que não

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estava autorizado, pelo seu governo, a tratar com os vermelhos, e que o governo bolchevista ainda não tinha sido reconhecido pelo governo de Pequim. Wang Tsaotsun e seu conselheiro Fu Hsiang ficaram visivelmente aborrecidos quando se deram conta de que estávamos a par de suas negociações com os agentes bolchevistas. Declarou-nos que sua polícia seria incapaz de impedir qualquer "pogrom".A polícia do comissário era realmente ótima, composta de soldados experimentados e disciplinados e comandada por um oficial sério e competente. Mas eram ao todo oitenta homens, e o que poderiam fazer oitenta homens contra três mil braçais e mil comerciantes armados, mais duzentos irregulares? Explicamos a Wang as razões que nos deixavam acreditar que nossos temores eram justificados. Insistimos para que ele tomasse medidas enérgicas para impedir derramamento de sangue, declarando que a população estrangeira e os oficiais russos estavam decididos a resistir, a qualquer ataque, até o último homem. Wang então deu ordem para que a polícia patrulhasse as ruas e, graças a isso, foi possível assistir, às vezes, ao curioso espetáculo de patrulhas chinesas, estrangeiras e russas percorrerem as ruas simultaneamente. Naquele tempo ainda não sabíamos que poderíamos contar com mais trezentos homens; eram os homens de Tuchegun Lama que estavam por perto, escondidos nas montanhas.A situação, porém, mais uma vez, se alterou de repente. O "sait" mongol recebeu a informação,

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pelos Lamas do mosteiro, mais próximo, de que o Coronel Kazagrandi, após ter derrotado os irregulares chineses, tinha-se apoderado de Van Kure, formando brigadas de cavaleiros russo-mongóis; para tanto mobilizara os mongóis por ordem do Buda Encarnado, e os russos por ordem do Barão Sternberg. Logo a seguir soubemos que os soldados chineses tinham matado o capitão russo Barsky no grande mosteiro de Dzain, e que as tropas de Kazagrandi, em represália, tinham desfechado um ataque contra os chineses, escorraçando-os.Quando tomaram Van Kure, os russos prenderam um comunista coreano que estava chegando de Moscou, carregado de impressos de propaganda e lingotes de ouro que ele pretendia levar para a Coréia e, em seguida, para a América. O Coronel Kazagrandi enviou o coreano e o ouro para o Barão Ungern. Logo que soube disso, o chefe do destacamento russo em Uliassutai prendeu os agentes bolchevistas, e eles foram processados ao mesmo tempo que os assassinos de Bobroff. Houve dúvidas a respeito de Saltikoff e Novak: Saltikoff conseguiu fugir, apesar de tudo, e o Tenente-CoronelMichailoff aconselhou Novak a ir para oeste, o que ele fez.O chefe do destacamento russo ordenou a mobi-lização dos colonos russos e tomou publicamente sob sua proteção Uliassutai, com a cumplicidade das autoridades mongólicas. O "sait" mongol Chultun Beyli promoveu uma reunião dos príncipes mongóis da região, entre os quais

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estava o célebre patriota mongol Hun Jap Lama. Os príncipes exigiram imediatamente que os chineses evacuassem todo o território outrora controlado pelo "sait" Chultun Beyli. Houve discussões, brigas e ameaças entre os chineses e os mongóis. Wang Tsaotsun formulou um projeto de acordo que foi aceito por alguns príncipes mongóis. Jap Lama, porém, no momento decisivo atirou a proposta ao chão e, desembainhando um punhal, jurou que preferia matar-se com as próprias mãos a assinar um acordo que ele considerava traição. As conversações entre chineses e mongóis foram interrompidas e os antagonistas começaram a se preparar para a luta. Todos os mongóis de Jassaktu Khã, de Sain Noyon Khã e dos domínios de Jahantsi Lama foram mobilizados. As autoridades chinesas deram ordem para colocar as quatro metralhadoras em pontos estratégicos e dispuseram-se a defender a fortaleza. Continuavam as negociações entre mongóis e chineses. Enfim, meu velho conhecido Tzeren veio ver-me, na minha qualidade de estrangeiro apartidário. Ele informou-me a respeito das exigências de Wang Tsaotsun de um lado e das de Chultun Beyli do outro, pedindo-me para tentar acalmar os ânimos de ambos os lados e propor um acordo que fosse aceitável para ambas as partes. Um representante de uma casa comercial americana também recebeu pedido análogo.Na noite seguinte realizamos nossa primeira reu-nião de arbitragem, na presença dos delegados

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chineses e mongóis. As discussões foram acirradas e estávamos perdendo as esperanças de cumprir nossa missão. Quando, porém, os oradores começaram a dar sinais de cansaço conseguimos um acordo sobre dois pontos: os mongóis declararam que não desejavam a guerra e preferiam resolver as questões de forma pacífica, conservando a amizade da grande nação chinesa, e o comissário chinês chegou a admitir que a China violara os tratados que reconheciam a total independência da Mongólia.Esses dois pontos transformaram-se na base das deliberações durante a segunda reunião, e deram-nos a possibilidade de conseguir uma reconciliação. As negociações demoraram mais três dias e tomaram, finalmente, o rumo certo para que formulássemos as propostas do acordo.Os pontos principais estabeleciam que as autoridades chinesas devolveriam aos mongóis os poderes administrativos e as armas, desarmar os duzentos irregulares e deixar o país, e os mongóis, por sua vez, comprometiam-se a deixar sair do país, com todas as armas e pertences, o comissário chinês e sua guarda de oitenta homens. Esse tratado sino-mongol foi assinado pelos comissários chineses Wang Tsaotsun e Fu Hsiang, pelos dois "saits" mongóis, por Hun Jap Lama e os outros príncipes, pelos presidentes das Câmaras de Comércio chinesa e mongol, e por nós dois em nossa qualidade de árbitros. Os funcionários chineses e sua escolta começaram imediatamente os preparativos para a viagem, enquanto os comerciantes chineses ficaram em

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Uliassutai, já que o "sati" Chultun Beyli, reinvestido em seu cargo, garantia sua segurança.Chegou o dia da despedida. Os camelos, com suas cargas, estavam reunidos no pátio interno do "yamen" e os homens só esperavam agora os cavalos que deviam chegar da planície. De repente espalhou-se a notícia de que os cavalos tinham sido roubados durante a noite e levados para o sul. Só um dos dois soldados que saíram para buscá-los voltou à cidade, pois o outro fora morto. A população da cidade ficou estupefata, enquanto os chineses entravam em pânico. Esse pânico aumentou ainda mais quando alguns mongóis, que estavam chegando de um posto de muda a leste, disseram que tinham encontrado, em vários lugares, os cadáveres dos dezesseis soldados que Wang Tsaotsun tinha mandado como mensageiros a Urga. O mistério foi, todavia, desvendado em breve.O chefe, do destacamento russo recebeu uma carta de um coronel cossaco, V. N. Domojiroff, na qual estava a ordem de desarmar imediatamente a guarnição chinesa, de prender todos os funcionários chineses e de mandá-los imediatamente a Urga com uma boa escolta, para serem entregues ao Barão Ungern. A carta também trazia a ordem para apoderar-se de Uliassutai mesmo que fosse à força, e para reunir-se em seguida com as tropas do coronel. Ao mesmo tempo chegou a galope um mensageiro do Hutuktu de Narabanchi trazendo outra carta que explicava que um destacamento

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russo, às ordens de Hun Boldon e do Coronel Domojiroff, tinha saqueado os armazéns chineses, matando todos os comerciantes e dirigira-se, em seguida, ao mosteiro pedir cavalos e mantimentos. O Hutuktu estava pedindo proteção, já que temia que Hun Boldon, o feroz conquistador de Kobdo, pudesse saquear também o mosteiro que ficava isolado e desprotegido.Tratamos imediatamente de recomendar ao Coronel Michailoff de não violar o tratado que acabava de ser assinado para não decepcionar os estrangeiros e os russos, imitando o sistema bolchevista que fazia da traição o principal sistema de governo. Nossa argumentação convenceu Michailoff que respondeu a Domojiroff que Uliassutai já estava sob seu controle, sem que houvesse combate e que a bandeira tricolor russa estava içada sobre o antigo consulado. Quanto às outras sugestões Michailoff explicou que não podiam ser executadas sem violar o tratado sino-mongol recém-assinado, e que os irregulares já estavam desarmados.O Hutuktu de Narabanchi mandava mensageiros todos os dias. As notícias começaram a ficar inquietantes. Hutuktu escrevia dizendo que Hun Baldun estava mobilizando os mendigos e os ladrões de cavalos, armando-os e dando-lhes instrução militar; que os soldados estavam roubando os carneiros do mosteiro e que o "Noyon" Domojiroff estava constantemente embriagado, sendo que seus próprios protestos eram respondidos com palavrões e sarcasmos.

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Os mensageiros davam informações muito contraditórias com respeito às forças do destacamento; alguns diziam que eram trinta homens, outros asseguravam que Domojiroff dispunha de oitocentos. Não sabíamos formular uma opinião a respeito e em breve os mensageiros não pararam de chegar. Todas as cartas do "Sait" ficaram sem resposta e seus mensageiros não voltaram. Não tínhamos dúvidas que eles haviam sido presos ou talvez assassinados.O príncipe Chultun Beyli decidiu ir a Narabanchi pessoalmente. Levou consigo os presidentes das Câmaras de Comércio mongol e chinesa e dois oficiais mongóis. Passaram-se três dias sem notícias. Os mongóis estavam começando a ficar inquietos. A esse ponto o comissário chinês e Hun Jap Lama pediram à colônia estrangeira para mandar alguém a Narabanchi que pudesse contornar as dificuldades, tentando convencer Domojiroff a reconhecer o tratado, para que não fosse violado aquele acordo entre dois grandes povos.Todos os estrangeiros pediram-me mais uma vez para fazer algo para o bem da comunidade. Levei comigo, como intérprete, um jovem colono russo sobrinho de Bobroff, um moço corajoso, de muito sangue-frio e ótimo cavaleiro. Deram-nos uma "tzara" como garantia de que receberíamos os melhores cavalos da muda e os melhores guias; pusemo-nos rapidamente a caminho por uma paisagem que já me era familiar, em direção ao mosteiro do meu velho amigo Jelib Djamsrap,

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Hutuktu de Nara-banchi. Apesar da espessa camada de neve que encontramos em alguns trechos, conseguimos cobrir entre cento e sessenta a duzentos e quarenta quilômetros por dia.

26O Bando de Hunghutzes Brancos

Chegamos em Narabanchi altas horas da noite do terceiro dia. Nas proximidades do mosteiro vimos vários cavaleiros que, percebendo que estávamos nos aproximando, voltavam ao mosteiro a galope. Ficamos procurando o campo russo durante algum tempo, sem achá-lo. Os mongóis levaram-nos ao mosteiro onde o Hutuktu me recebeu imediatamente. Na sua "yurta" estava também Chultun Beyli. Ele me deu alguns "hatyks" de presente e falou:— Foi Deus que nos mandou você, nesses tempos de dificuldades.Domojiroff tinha levado presos os dois presidentes das Câmaras de Comércio ameaçando fuzilar Chultun Beyli. Nem Domojiroff nem Hun Bôldon tinham um cargo oficial e Chultun Beyli estava se preparando para lutar contra eles.Pedi-lhe para levar-me até Domojiroff. Consegui ver quatro "yurtas" apesar da escuridão, e duas sentinelas mongólicas armadas de fuzis russos. Entramos na tenda do "Noyon" russo.

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Entrando vi uma cena bem estranha. No meio da "yurta" havia fogo num braseiro. No lugar onde normalmente levanta-se um altar, havia um trono, sobre o qual sentava-se o Coronel Domojiroff, um homem alto, magro e grisalho. Estava em seus trajes menores com um par de soquetes e embriagado, contava anedotas. Em volta do fogo estavam deitados, nas mais variadas e pitorescas poses, doze moços. O oficial que era meu companheiro nessa viagem, relatou a Domojiroff os acontecimentos que se desenrolaram em Uliassutai, e durante a conversa perguntei ao coronel onde estava acampado seu destacamento. Ele riu alto e fez um largo gesto com a mão: "Eis aqui meu destacamento." Retruquei que, pelo conteúdo de suas mensagens, tínhamos pensado que ele tivesse à disposição forças importantes. Em seguida expliquei-lhe que o Tenente-Coronel Michailoff estava se preparando para combater contra as tropas bolchevistas que estavam se aproximando de Uliassutai.— Como? Os vermelhos? — gritou ele enquanto o medo e a confusão transpareciam em seu rosto.Passamos a noite na "yurta" de Domojiroff, e quando já estava me preparando para dormir, o oficial murmurou:— Tenha cuidado e fique com o revólver ao alcance das mãos.Respondi rindo:— Olha, estamos no meio de um destacamento branco, e em segurança.

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— Ahn! fez ele e piscou um olho.Na manhã seguinte convidei Domojiroff para um passeio na planície, e falei-lhe Com toda franqueza sobre o que sucedera. Ele e Hun Boldon tinham recebido do Barão Ungern a ordem de se colocar à disposição do General Bakitch, mas ao invés de agir assim, puseram-se a saquear os armazéns chineses que encontravam pelo caminho, e ainda mais, ele se convencera de que queria ser um grande conquistador. Encontrando alguns oficiais desertores do agrupamento do Coronel Kazagrandi, ele formara o bando que aí estava. Consegui convencê-lo a ajeitar amigavelmente a situação com Chultun Beyli e a não violar o tratado. Ele foi imediatamente ao mosteiro.Quando voltei encontrei um mongol alto, com expressão feroz, vestido de seda azul. Apresentou-se falando russo.Mal cheguei a tirar minha capa na tenda quando um mongol chegou correndo convidando-me para ir à "yurta" de Hun Boldon. O príncipe morava ao lado numa suntuosa "yurta"azul. Como eu conhecia o protocolo mongol, saltei na sela e andei a cavalo os dez passos que me separavam da entrada de sua tenda. Hun Boldon recebeu-me com expressão fria e altiva.— Quem é ele? — perguntou ao intérprete apontando-me com o dedo.Compreendi perfeitamente que era sua intenção ofender-me, e respondi à altura: indicando-o com o dedo, perguntei a mesma coisa, mas num tom que eu consegui fazer mais desagradável ainda.

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— Quem é ele? Um grande príncipe e um guerreiro, ou um pastor ignorante?Boldon perdeu imediatamente o controle e, com voz trêmula pela raiva, gritou-me que não permitiria que eu me intrometesse nos seus assuntos, e que mataria qualquer um que desobedecesse às suas ordens. Bateu com força o punho na mesa, depois levantou-me e puxou o revólver. Eu tinha, porém, viajado por demais entre os nômades, e tinha estudado cuidadosamente os Lamas, os príncipes, os pastores e os bandidos. Por isso apanhei um chicote e, batendo-o com violência em cima da mesa, falei ao intérprete:— Diga-lhe que ele tem a honra de falar com um estrangeiro, que não é mongol nem russo, mas cidadão de um grande Estado livre. Diga-lhe que ele aprenda primeiro a ser homem e depois venha me ver, e então poderemos conversar.Dei-lhe as costas e saí. Dez minutos mais tarde, Hun Boldon estava entrando em minha tenda, apresentando suas desculpas. Consegui convencê-lo a conversar com Chultun Beyli e a deixar de ofender o povo mongol com suas ações. Na mesma noite a situação ficou em ordem. Hun Boldon mandou embora seus mongóis e voltou para Kobdo, enquanto Domojiroff e seu bando partiam para Jassaktu Khã para organizar a mobilização dos mongóis. Depois de falar com Chultun Beyli, escreveu uma carta a Wang Tsaotsun pedindo que desarmasse sua guarda, porque todos os soldados chineses de Urga tinham recebido essa ordem. A carta,

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porém, chegou tarde demais; Wang tinha conseguido camelos que substituíssem os cavalos roubados, e já estava a caminho da fronteira. O Tenente-Coronel Michailoff mais tarde mandou um grupo de cinqüenta homens comandados pelo Subtenente Strigin com a ordem de alcançar os soldados de Wang e trazer de volta suas armas.

27O Mistério de um Pequeno Templo

O príncipe Chultun Beyli e eu estávamos prontos a deixar Narabanchi Kure. Enquanto o Hutuktu estava oficiando uma cerimônia no templo em homenagem ao "Sait", eu estava passeando a esmo, andando pelas vielas estreitas entre as casas dos Lamas de diferentes graus, Gelongs, Getuls, Chaidje e Rabdjambe, pelas escolas onde ensinavam os sábios doutores em teologia (Maramba) e ao mesmo tempo os doutores em medicina (Ta Lama); pelas casas dos estudantes (Bandi), pelos armazéns, pelos arquivos e pelas bibliotecas. Quando me aproximei novamente da "yurta" do Hutuktu, ele estava lá. Ofereceu-me um grande "hatyk" e perguntou-me se queria dar uma volta pelo mosteiro. Parecia preocupado, e compreendi que estava querendo falar comigo sobre algo grave. Quando saímos da "yurta" vimos o presidente da Câmara de Comércio russa, que tinha sido solto e um oficial russo, que seguiram juntos conosco. O Hutuktu levou-nos

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até uma pequena construção atrás de um muro de cor amarela viva.— Nesta casa, uma vez, hospedaram-se o Dalai Lama e Bogdo Khã. Costumamos pintar de amarelo os edifícios onde estes santos personagens já moraram. Entrei!No interior da casa a decoração era realmente suntuosa. No térreo encontrava-se a sala de jantar, com mesas ricamente esculpidas em madeira maciça, e prateleiras carregadas de objetos de porcelana e bronze. No andar superior havia dois aposentos — um quarto de dormir com pesadas cortinas de seda amarela e uma grande lanterna chinesa ricamente ornamentada de pedras coloridas, suspensas por uma fina corrente de bronze que pendia de uma viga do forro. Havia uma grande cama quadrada com travesseiros de seda, colchão e colcha. A madeira da cama era de ébano da China e as colunas que sustentavam o dossel da cama eram finamente esculpidas com os costumeiros dragões que devoravam o sol. À direita havia uma arca, também toda coberta de esculturas que representavam cenas religiosas. Havia ainda quatro poltronas confortáveis e um baixo trono oriental sobre um estrado, no fundo do quarto.— Estão vendo aquele trono? — perguntou o Hutuktu. — Pois bem, numa noite de inverno diversos cavaleiros chegaram ao mosteiro e pediram que todos os Gelongs e Getuls, com o Hutuktu e o Kampo se reunissem nesse quarto. Então um dos estrangeiros subiu ao trono e tirou da cabeça seu barrete. Todos os Lamas caíram

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de joelhos porque tinham reconhecido o homem de quem se falava nas bulas sagradas do Dalai Lama, do Tashi Lama e de Bogdo Khã. É o homem que é o amo do mundo inteiro e que desvendou todos os segredos da natureza. Ele rezou brevemente em idioma tibetano, benzeu todos os que se achavam presentes e depois fez revelações a respeito do próximo século. Isto sucedeu há trinta anos e até hoje todas as profecias se realizaram. Enquanto estava rezando na frente do pequeno altar, aquela porta que você podem ver, abriu-se sozinha, as velas e as tochas acenderam-se espontaneamente, e os defumadores que estavam sem fogo começaram a mandar para os ares nuvens de incenso. Depois disso, sem nenhum aviso, o Rei do Mundo e seus companheiros desapareceram sem deixar qualquer vestígio a não ser as dobras na seda que cobre o trono, mas aquelas também desapareceram enquanto estávamos observando: a fazenda voltou a ficar bem esticada, como se no trono não houvesse sentado ninguém.O Hutuktu entrou no santuário, ajoelhou-se, co-brindo os olhos com as mãos e começou a rezar. Estava observando o rosto calmo e sereno do Buda dourado, onde as lâmpadas acesas deixavam sombras que se mexiam, depois olhei para o trono. Foi maravilhoso e difícil acreditar, mas eu vi um homem forte, musculoso, o rosto bronzeado, com uma expressão severa marcada na boca e nos maxilares; sua fisionomia era dominada pelo brilho dos olhos. Através de seu

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corpo transparente, vestido com um manto branco, consegui ver as inscrições tibetanas no encosto do trono. Fechei os olhos e abri-os novamente. Não havia mais ninguém, porém a almofada de seda sobre o trono parecia mexer-se.— Estou simplesmente nervoso — disse a mim mesmo. — Trata-se de uma tendência bastante normal de deixar-se impressionar, provocada por um estado de tensão fora do comum.O Hutuktu voltou-se para mim e disse:— Dê-me seu "hatyk", sinto que você está ner-voso e preocupado pelos seus entes queridos e pretendo rezar por eles. Reze você também, suplique a Deus e dirija seus olhos espirituais para o Rei do Mundo que passou por aqui e consagrou esses lugares.O Hutuktu colocou o "hatyk" no ombro do Buda e murmurou uma oração, prosternando-se sobre o tapete em frente ao altar. Em seguida levantou a cabeça e acenou-lhe com a mão:— Olhai o espaço escuro atrás do Buda e ele lhe mostrará seus entes queridos.Obedeci imediatamente à ordem dada com voz grave e fixei os olhos no nicho escuro que estava atrás do Buda. Logo na escuridão apareceram nuvens de fumaça e fios transparentes. Eles flutuavam no ar ficando sempre mais densos e numerosos até que, aos poucos, delinearam vultos humanos e contornos de objetos. Vi um aposento que eu não conhecia, e nele estava minha família na companhia de amigos e outras pessoas conhecidas. Reconheci o vestido que

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minha mulher estava usando. Todos os traços daquele rosto querido estavam claramente visíveis. Em seguida a visão escureceu e desapareceu entre os fios transparentes e espirais de fumaça. Atrás do Buda dourado só havia sombra. O Hutuktu levantou-se, tirou meu "hatyk" do ombro do Buda e devolveu-me, dizendo:— A sorte sempre acompanha você e sua família. A bondade divina não os abandonará.Deixamos o aposento do Rei do Mundo, onde este rei desconhecido tinha rezado por toda a humanidade e profetizado o destino dos povos e dos Estados. Fiquei extremamente surpreso quando soube que meus companheiros também haviam testemunhado a visão e descreveram para mim, com todos os pormenores, a aparência e as roupas das pessoas que eu vira no nicho escuro atrás da cabeça do Buda. (Para preservar o testemunho das outras pessoas que junto a mim vieram aquela aparição realmente imprescionante, pedi a todos que escrevessem um minucioso relatório de tudo o que tinham presenciado, Estes relatórios se encontram agora em meu poder).O oficial mongol disse-me também que, na véspera, Chultun Beyli tinha pedido ao Hutuktu para revelar-lhe seu destino naquela fase importante de sua vida, mas que o Hutuktu apenas fez um gesto com a mão, expressando espanto e recusou-se. Quando perguntei ao Hu-tuktu a razão da recusa, explicando-lhe que isso poderia tranqüilizar Chultun Beyli que andava

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muito nervoso, da mesma forma que a visão da minha família me havia reconfortado, o Hutuktu franziu o cenho e respondeu: — Não, a visão não seria boa para o príncipe. Seu destino será trágico. Ontem por três vezes procurei saber seu destino, observando as vísceras de carneiro, e três vezes recebi a mesma sinistra resposta. A mesma!Não continuou, mas cobriu o rosto com as mãos. Era evidente que o futuro de Chultun Beyli seria negro como a noite.Uma hora mais tarde estávamos além das colinas que escondiam, às nossas vistas, Narabanchi Kure.

28O Sopro da Morte

Chegamos a Uliassutai no mesmo dia em que o destacamento que tinha ido desarmar a escolta de Wang Tsaotsun regressava. O destacamento encontrara o Coronel Domojiroff que deu ordem não só de desarmar como também de saquear a caravana, e o Subtenente Strigin tinha, infelizmente, obedecido, a essa ordem dada, de maneira abusiva. Era realmente vergonhoso e comprometedor ver os oficiais e os soldados russos usarem as capas, botas e relógios de pulso que tinham sido roubados aos funcionários

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chineses e à sua escolta. Todos tinham moedas de prata e de ouro chinesas como parte dos despojos. A mulher mongol de Wang Tsaotsun e seu irmão voltaram com o destacamento e quei-xaram-se de ter sido assaltados pelos russos. Os funcionários chineses que faziam parte da escolta só chegaram à fronteira chinesa depois de ter passado muita fome e muito frio. A colônia estrangeira ficou chocada quando viu que o Tenente-Coronel Michailoff recebia Stringin com honras militares, todavia tudo ficou esclarecido quando, mais tarde, soubemos que Michailoff recebera sua parte em dinheiro e sua mulher se achava de posse da magnífica sela de Fu Hsiang. Chultun Beyli requereu as armas e os despojos para poder devolvê-los mais tarde aos chineses. Michailoff recusou-se a entregá-los. Daquele momento em diante a colônia estrangeira não quis mais nenhum contato com o destacamento russo. As relações entre russos e mongóis ficaram tensas. Muitos oficiais russos protestaram contra a atitude de Michailoff e Stringin, e as rusgas se tornavam cada vez mais freqüentes.Naquela época, numa bela manhã de abril, um extraordinário grupo de cavaleiros armados chegou em Uliassutai. Eles foram para a casa do bolchevique Burdukoff que, a quanto ouvi dizer, deu-lhes uma quantia muito grande em dinheiro.O grupo dizia ser formado por ex-oficiais da guarda imperial, pelos Coronéis Poletika e N. N. Philipoff e por três irmãos desse último. Anunciaram a todo mundo que pretendiam

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agrupar todos os oficiais e soldados brancos que estavam na Mongólia e na China e levá-los para o Urianhai para lutar contra os bolcheviques. Disseram também que pretendiam inicialmente arrasar Ungem e devolver a Mongólia à China. Intitulavam-se representantes da organização central dos brancos na Rússia.A sociedade dos oficiais russos em Uliassutai convidou-os para uma reunião, examinou seus documentos e os interrogou. Pelo interrogatório ficamos sabendo que todas as histórias contadas por eles a respeito de suas funções no passado eram totalmente desprovidas de fundamento. O inquérito comprovou que Poletika tinha um cargo importante no comissariado soviético da guerra; que um dos irmãos Philipoff tinha sido o ajudante de Kameneff quando da sua primeira ida à Ingla-terra; que a organização central branca na Rússia não existia; que os combates previstos no Urianhai não passavam de uma armadilha para atrair os oficiais brancos e que, enfim, o grupo estava estreitamente ligado ao bolchevique Bordukoff.Logo tiveram início as discussões a respeito do destino que se lhes devia dar. O destacamento dividiu-se em dois grupos. O Tenente-Coronel Michailoff e mais alguns oficiais juntaram-se ao grupo de Poletika exatamente na hora em que o Coronel Domojiroff estava chegando com seu destacamento. Domojiroff ouviu as duas partes e, após estudar cuidadosamente a situação, nomeou Poletika comandante de Uliassutai, e enviou ao Barão Ungern um relatório completo

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dos acontecimentos. Nesse documento ele me dedicou bastante espaço, acusando-me de prejudicar suas ordens. Seus oficiais estavam continuamente me vigiando. De toda parte che-gavam avisos para que me acautelasse. Todo o bando e seu chefe perguntavam aos brados, com que direito um estrangeiro ousava imiscuir-se nos assuntos da Mongólia. Um dos oficiais de Domojiroff provocou-me diretamente durante uma reunião, na esperança de que chegássemos a uma briga. Respondi-lhe tranqüilamente:— Com que direito os refugiados russos estão se imiscuindo, eles que não têm mais direitos, nem na terra deles e nem no estrangeiro?O oficial não disse mais nada, mas o olhar que me lançou não fazia mistério de suas intenções. Meu companheiro, sentado a meu lado, levantou-se, aproximou-se do oficial e, dominando-o com sua elevada estatura, estirou os braços como uma pessoa que acaba de acordar, e murmurou:— Tenho vontade de praticar um pouco de boxe...Certa feita os homens de Domojiroff quase conseguiram apoderar-se de mim, não fosse a constante vigilância dos meus amigos da colônia estrangeira. Tinha ido à fortaleza para negociar com o "Sait" a saída dos estrangeiros de Uliassutai. Chultun Beyli ficou conversando longamente comigo, de forma que quando eu estava de volta para casa seriam nove horas da noite. Estava ainda a três quilômetros da cidade quando percebi três homens saindo de uma vala, à beira do caminho e se lançaram sobre mim. Dei

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uma chicotada no cavalo quando percebi que, da vala oposta, outros homens surgiram como para interceptar o meu caminho. Entretanto eles se dirigiram para o primeiro grupo, dominando-o, quando ouvi a voz de um estrangeiro que estava me chamando. Voltei e encontrei três oficiais de Domojiroff cercados por soldados poloneses e por outros estrangeiros, chefiados pelo meu velho amigo, o engenheiro agrônomo. Ele estava atando os pulsos dos oficiais atrás das costas, com tanta fúria que os ossos estavam estalando. Terminada a tarefa, e sem deixar de fumar seu eterno cachimbo ele me disse, com expressão séria:— Acredito que a melhor coisa seria atirá-los à água.Achei graça em seu ar grave e no pavor patente dos oficiais de Domojiroff, e perguntei-lhes o motivo do ataque. Permaneceram em silêncio, baixando os olhos. Era um silêncio bastante eloqüente que deixava transparecer claramente suas reais intenções. Tinham ocultado seus revólveres nos bolsos.— Muito bem — falei. — Tudo está bastante claro Podem levar ao seu comandante este recado: na próxima tentativa, vocês não voltarão mais para casa.Vou ficar com suas armas e as entregarei ao comandante.Meu amigo estava aplicando a mesma energia em desfazer as ataduras e murmurava continuamente: "Se dependesse de mim, vocês iriam servir de comida aos peixes". Deixamo-los

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irem por um lado e voltamos juntos para a cidade.Domojiroff continuou mandando mensageiros ao Barão Ungern, em Urga, exigindo plenos poderes, dinheiro e insistindo em fazer relatórios sobre Michailoff, Chultun Beyli, Poletika, Philipoff e minha pessoa. Usando sua astúcia asiática ele continuava a manter boas relações com as pessoas que desejava ver mortas e que acusava continuamente perante aquele severo guerreiro, o Barão Ungern, que não recebia outras in-formações de Uliassutai a não ser as de Domojiroff. Nossa colônia andava muito inquieta. Os oficiais estavam divididos em grupos discordantes. E os soldados também se reuniam para comentar os acontecimentos do dia e criticar seus superiores. Devido à influência de alguns homens de Domojiroff eles começaram a fazer observações desse tipo:— Pois é, agora temos sete coronéis, todos que-rem comandar e vivem brigando entre si. Devíamos atar os sete em postes e aplicar-lhes algumas boas chicotadas. O que mostrasse ter mais resistência seria nosso chefe.Esse gênero de humor negro era a exata expressão da desmoralização do destacamento russo.— Até parece — dizia meu antigo companheiro — que não vai transcorrer muito tempo e teremos o prazer de ver um conselho de soldados em Uliassutai. Por Deus e pelo diabo! Aqui realmente está faltando algo importante: está faltando uma boa floresta onde as pessoas

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decentes pudessem se embrenhar, longe de todos os malditos soviets. A pobre Mongólia está por demais desarborizada e não nos pode oferecer nenhum lugarzinho que sirva de esconderijo.Havia realmente o perigo da constituição de um soviet. Um dia os soldados apoderaram-se do arsenal, retiraram as armas que foram subtraídas aos chineses, e carregaram tudo para o quartel. A cada dia que passava víamos aumentar as bebedeiras, os jogos de azar e as rixas. Os estrangeiros que estavam observando com atenção tudo o que se passava, temerosos de uma catástrofe, decidiram finalmente deixar Uliassutai que se tornara um foco de paixões políticas, de brigas e de denúncias. Ficamos sabendo que também o grupo de Poletika tencionava sair da cidade dentro de alguns dias.Separamo-nos em dois grupos. O primeiro seguiria a velha trilha das caravanas pelo Gobi, muito ao sul de Urga, na direção de Kuku Hoto ou Kweihuacheng e Kalgan, e o outro, com meu velho companheiro, dois soldados poloneses e eu, dirigir-se-ia para Urga pelo Zain Chabi, onde estava o Coronel Kazagrandi que, numa carta recente, tinha-me pedido para ir vê-lo. Assim deixamos Uliassutai onde tínhamos testemunhado acontecimentos bastante impressionantes.Seis dias após deixarmos a cidade chegou em Uliassutai um destacamento buriat-mongol, comandado por um Buriat chamado Vandaloff, e por um russo que era o Capitão Bezrodnoff.

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Encontrei ambos mais tarde no Zain Chabi. O destacamento tinha sido mandado de Urga pelo Barão Ungern para restabelecer a ordem em Uliassutai, e em seguida marchar sobre Kobdo.Vindo de Zain Chabi, Bezrodnoff encontrou o grupo Poletika-Michailoff. Começou a fazer perguntas e, a seguir, examinou as bagagens, encontrando documentos que ele considerou suspeitos. Entre as bagagens de Michailoff e de sua mulher estavam o dinheiro e os objetos roubados dos chineses. Então escolheu dezesseis homens do grupo N. N. Philipoff para serem mandados ao Barão Ungern, libertou mais três e mandou fuzilar os outros doze. Dessa forma terminaram no Zain Chabi um pequeno grupo de refugiados e as intrigas do grupo de Poletika.Em Uliassutai, Bezrodnoff mandou fuzilar alguns bolcheviques e também a Chultun Beyli por ter violado as cláusulas do tratado sino-mongol. Mandou prender Domojiroff, que foi mandado para Urga, e restabeleceu a ordem. As previsões sobre o futuro de Chultun Beyli tinham-se realizado.Apesar de estar informado sobre a natureza dos relatórios que Domojiroff enviara a Urga a meu respeito, decidi ir para aquela cidade sem contorná-la como o fizera Poletika quando caiu nas mãos de Bezrodnoff. Já estava habituado a enfrentar os perigos, e fui ao encontro do "terrível e sanguinário Barão". Ninguém pode decidir seu destino. Eu não estava me sentindo culpado, e já fazia muito tempo que o medo não morava mais com os meus pensamentos. Um

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cavaleiro mongol que nos alcançou no caminho trouxe-nos a notícia da morte de nossos conhecidos no Zain Chabi. Quando estávamos todos na "yurta" do posto de muda para passar a noite, ele contou-me essa lenda da morte:— Aconteceu em tempos idos, quando os mongóis eram donos da China.O príncipe de Uliassutai, Beltis Van, era louco. Ele mandava matar qualquer pessoa de que não gos-tasse e ninguém ousava atravessar a cidade. Os outros príncipes e potentados mongóis cercaram a cidade com seus exércitos, cortando todas as comunicações e não deixaram passar ninguém, nem para entrar e nem para sair da cidade. A fome imperou na cidade. Os habitantes comeram todos os bois, os carneiros e os cavalos. Afinal Beltis Van decidiu tentar uma saída desesperada da cidade para oeste, para o território de uma de suas tribos, os Olets. Na batalha que se seguiu, ele morreu juntamente com todos os seus homens. Seguindo o conselho do Hutuktu Buyantu, os príncipes mandaram enterrar os corpos nas escarpas das montanhas em volta de Uliassutai. Encantamentos e exorcismos foram feitos durante o sepultamento para que a violência se afastasse e para que o país fosse salvo da guerra. Os túmulos foram cobertos com pesadas pedras e o Hutuktu vaticinou que os maus espíritos não sairiam da terra até o dia em que sangue humano fosse derramado sobre aquelas mesmas pedras. Essa lenda é muito antiga. A profecia está se cumprindo agora. Naquele lugar os russos mataram três

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bolcheviques e os mongóis mataram dois chineses. O espírito mau de Beltis Van fugiu de sua prisão de pedra e está agora ceifando o povo com sua foice. O nobre Chultun Beyli morreu; o Noyon russo, Michailoff, também morreu, e a morte está se alastrando em nossas planícies sem fim; quem será capaz de dominá-la? Quem vai atar suas mãos ferozes? Os deuses e os bons espíritos estão passando por uma época de calamidade. Os espíritos maus estão em guerra com os espíritos bons. O que pode fazer um homem nessas circunstâncias? Só pode morrer, só pode morrer...

NO CORAÇÃO FEBRIL DA ÁSIA

29O Caminho dos Grandes Conquistadores

Filho da severa e triste Mongólia, Gengis Khã, o grande conquistador, subiu até o cume do Karasu Togol, diz uma antiga lenda, e fitou com seus olhos de águia a terra de leste a oeste. No oeste ele viu um oceano de sangue humano sobre o qual flutuava uma névoa purpúrea que escondia o horizonte. Ele não conseguiu ver seu destino por aquele lado. Os deuses, porém, mandaram que ele marchasse para leste levando consigo todos os guerreiros de suas tribos mongóis. A leste ele viu ricas cidades, templos esplendorosos, um povo feliz, jardins e campos férteis, e o espetáculo encheu-o de alegria. Ele

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falou a seus filhos: "No oeste, serei o ferro e o fogo, o destruidor, a vingança do destino, mas para leste serei o grande construtor cheio de compaixão, e trarei a felicidade ao povo e ao país".Assim dizia a lenda e havia muita verdade. Para oeste eu tinha andado, em muitos lugares, pelos caminhos de Gengis Khã e só encontrara túmulos e ruínas marcando a passagem do conquistador selvagem. Vi também uma parte do caminho de Gengis Khã para leste, o caminho que ele fez indo à China. Uma noite paramos em Djirgalanto. O velho patrão do posto de muda se lembrava de mim — durante procedentes viagens até Narabanchi eu pernoitara ali — e recebeu-nos com manifestações de alegria, contando-nos muitas histórias enquanto comíamos. Em certo ponto pediu que saíssemos da "yurta" e, apontando o dedo para um pico das montanhas que brilhava na luz da lua cheia, contou-nos a história de um filho de Gengis Khã que mais tarde foi imperador da China, da Indochina e da Mongólia; fascinado pela beleza da paisagem e pelos ricos pastos de Djirgalanto, decidiu fundar uma cidade. Logo, porém, a cidade ficou deserta, pois os mongóis são nômades e não conseguem viver em cidades artificiais. Sua moradia é a planície e sua cidade é o mundo. Por algum tempo a cidade foi teatro de lutas sangrentas entre os chineses e as forças de Gengis Khã, em seguida foi esquecida. Agora já não resta mais que uma torre arruinada, de onde antigamente grandes pedras eram arremessadas do alto sobre

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os atacantes, e uma porta que também já está em ruínas, que recebeu o nome de Kublai, o neto de Gengis Khã. Olhei para o céu esverdeado e resplandescente pelo luar, contra o qual realçavam os perfis negros das montanhas e da torre; pelas seteiras apareciam as nuvens que passavam rapidamente no céu.Saindo de Uliassutai, viajamos sem muita pressa, cobrindo apenas de cinqüenta a oitenta quilômetros por dia até que chegamos a noventa quilômetros de Zain Chabi. Despedi-me então dos outros e fui para o sul, ao encontro marcado com o Coronel Kazagrandi. O sol acabava de surgir do horizonte, quando com meu guia mongol e sem animais de carga, começamos a subir pelas primeiras elevações arborizadas de onde ainda podia vislumbrar os meus companheiros que estavam desaparecendo no vale. Não podia prever os muitos perigos que estavam à minha espreita e que quase foram fatais durante essa expedição solitária. Ela seria muito mais demorada do quanto eu havia imaginado.Meu guia mongol, ao atravessar um pequeno rio, contou-me que durante o verão seus compatriotas vinham procurar ouro nas suas águas apesar da proibição dos Lamas. Seu sistema de lavrar ouro é muito primitivo, mas os resultados obtidos comprovam que as areias são muito ricas. Os mongóis deitam de bruços e com uma pluma afastam os grãos de areia. De vez em quando param e com o dedo molhado apanham um floco de ouro ou uma pepita minúscula que

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depositam num saquinho pendurado ao pescoço. Apesar do processo primitivo eles conseguem reunir sete gramas de ouro por dia.Decidi fazer a viagem em um dia apenas. Nos postos de muda recomendava aos homens selar os novos cavalos o mais rápido possível. Numa das mudas, a quarenta quilômetros do mosteiro, deram-me um garanhão branco, grande e selvagem. Quando quis montar e já tinha um pé no estribo, ele empinou e me acertou uma patada na perna, justamente no lugar exato do meu ferimento anterior. Minha perna começou a inchar e a doer logo a seguir. Ao por do sol consegui ver as primeiras construções russas e chinesas, e um pouco mais tarde também o mosteiro de Zain. Chegamos até a margem de um riacho que contorna a montanha; em seu topo há rochas brancas que foram colocadas de tal forma que compõem as letras de uma oração tibetana. Aos pés daquela elevação vimos um cemitério de Lamas, ou melhor, ossadas e maltas de cachorros. Enfim, logo acima nos apareceu o mosteiro, que era de forma quadrada e contornado por cercas. No centro aparecia um grande templo, totalmente diferente de todos os outros que já tinha visto no oeste da Mongólia, num estilo que não era chinês e nem era tibetano; era uma construção branca, com paredes perpendiculares, com fileiras regulares de janelas emolduradas de preto, o teto de telhas pretas e, entre o muro e o teto, feixes de galhos entrelaçados de uma árvore do Tibete, cuja madeira nunca apodrece. A decoração era

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fora do comum. Na parte oriental localizavam-se algumas casas russas que eram ligadas ao mosteiro pelo telefone.— É a casa do deus vivo de Zain — explicou o mongol apontando uma delas. — Ele aprecia muito os costumes russos.Ao norte, no topo de uma colina cónica, via-se uma torre que lembrava muito o Zikkurat de Babilônia. Era o templo onde se achavam guardados os livros e manuscritos antigos, os ornamentos e objetos quebrados que outrora foram usados durante as cerimônias religiosas e os paramentos dos Hutuktus mortos. Atrás desse museu havia uma escarpa de rocha tão íngreme que seria impossível escalá-la. Na superfície da rocha viam-se esculpidas as imagens dos deuses lamaístas, colocados ali sem muita preocupação com a simetria. As esculturas mediam de dois a dois metros e meio de altura. À noite os monges acendiam lâmpadas em frente aos altos-relevos para que as imagens dos deuses e das deusas pudessem ser vistas de longe.Entramos pelo bairro comercial. As vielas estavam desertas e nas janelas só havia mulheres e crianças. Parei numa lojinha russa cujas sucursais eu já tinha visto em outras partes do país. Fiquei surpreso porque fui recebido como um velho amigo. Fiquei então sabendo que o Hutuktu de Narabanchi tinha enviado mensagens a todos os mosteiros para que, onde eu chegasse, tivesse sempre ajuda e assistência, já que eu tinha salvo o mosteiro de Narabanchi e

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porque, pelas indicações divinas, eu era um Buda encarnado e querido pelos deuses.Aquela mensagem do Hutuktu foi-me de grande valia, aliás poder-se-ia dizer que ela me salvou da morte. A hospitalidade daquela gente foi muito reconfortante, especialmente porque minha perna ferida e inchada provocava-me sofrimentos atrozes. Tirando a bota vi que meu pé estava coberto de sangue, pois a patada do cavalo reabrira o antigo ferimento. Mandaram buscar um "felcher" para que me curasse e medicasse, e daí a três dias consegui novamente andar.O Coronel Kazagrandi não estava em Zain Chabi. Após desmantelar o destacamento de irregulares chineses que tinham matado o comandante, ele havia voltado para Van Kure. O novo comandante deu-me uma carta que Kazagrandi tinha deixado para mim e na qual convidava-me a segui-lo para Van Kure, depois de devidamente descansado. Junto à carta havia um documento mongol que me autorizava a receber cavalos e carretas em cada rebanho, por intermédio da "urga" que explicarei mais adiante, e que me deu a possibilidade de conhecer a vida dos mongóis e o país por um prisma totalmente diferente de que não poderia conhecê-lo de outra forma.Eu teria gostado de desistir, se fosse possível, dessa viagem de mais de trezentos quilômetros que para mim representava mais cansaço, todavia compreendi que Kazagrandi, que eu ainda não conhecia pessoalmente, devia ter razões muito sérias para querer falar comigo.

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No dia seguinte à minha chegada, a uma hora, recebi a visita do "próprio deus" do lugar, Cheghen Pandita Hutuktu. Ter-me-ia sido impossível imaginar uma aparição divina mais estranha. Era uma moço de mais ou menos vinte e dois anos, baixinho e magro, com gestos rápidos e nervosos. O rosto expressivo era ilumi-nado e dominado, como o de todos os deuses mongóis, por grandes olhos apavorados. Estava metido numa farda russa de seda azul com dragonas douradas e com o emblema reservado ao Hutuktu Pandita, calças de seda azul, altas botas, e na cabeça um barrete branco de astracã encimado por uma ponta amarela. No cinturão levava um revólver e uma espada. Não sabia, na realidade, que opinião fazer desse deus fantasiado. Tomou comigo uma xícara de chá e começou a conversar, misturando russo com mongol:,"A pouca distância da minha "Kure" encontra-se o antigo mosteiro de Erdeni Dru, construído sobre as ruínas de Karakorum, a antiga capital de Gengis Khã. Kublai Khã esteve aí muitas vezes. Ele ia em romaria até o mosteiro e ali descansava de seus afazeres de imperador da China, das Índias, da Pérsia, do Afeganistão, da Mongólia e de metade da Europa. Hoje em dia só há ruínas e túmulos para marcar o local daquele antigo jardim dos dias felizes. Os santos monges de Barun Kure encontraram nas celas subterrâneas manuscritos mais antigos que a própria Erdeni Dru. Entre estes manuscritos meu Maramba Meetchikatak descobriu uma profecia

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que anunciava que o Hutuktu de Zain, que usaria o título de Pandita, ia ter somente vinte e um anos, nasceria no coração das terras de Gengis Khã e teria sobre o peito a marca natural de uma suástica. A profecia dizia também que esse Hutuktu seria honrado pelo seu povo numa época de grandes guerras e grandes calamidades, dizia que ele iniciaria a luta contra os criados da desgraça vermelha e que venceria e daria novamente a paz ao mundo. Enfim, que ele comemoraria esse dia feliz dentro da cidade, construindo templos brancos e tocando dez mil sinos. Eu sou o Pandita Hutuktu! Os signos e os símbolos convergiam na minha pessoa. Vou destruir os bolcheviques, esses criados da desgraça vermelha e vou descansar em Moscou após todos os meus esforços. Por isso pedi ao Coronel Kazagrandi para alistar-me no exército do Barão Ungern e para permitir que eu lute. Os Lamas estão tentando impedir minha saída daqui, mas afinal quem é o deus vivo?"Bateu o pé no chão com expressão aborrecida enquanto os Lamas e a guarda que o acompanhava curvavam a cabeça em sinal de reverência.Antes de despedir-se, ele ofereceu-me um "hatky" e remexendo em todas minhas sacolas encontrei o único objeto que eu possuía e que era digno de ser oferecido a um Hutuktu: um pequeno frasco de osmirídico, esse raro e natural associado da platina.— Aqui está o mais estável e o mais duro dos metais — disse-lhe. — Eu o ofereço para que seja

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o símbolo de vossa glória e de vosso poder, ó Hutuktu!O Pandita agradeceu e convidou-me a visitá-lo. Quando consegui novamente andar, fui até sua residência. A casa era decorada à moda européia. Tinha luz elétrica e telefone. Ofereceu-me vinho e doces e apresentou-me a dois personagens muito interessantes. Um era um velho cirurgião tibetano, com o rosto fortemente marcado pela varíola, vesgo e nariz marcante. Esse indivíduo estranho era muito conhecido no Tibete. Sua tarefa era tratar e curar os Hutuktus quando doentes e de envenená-los quando ficavam por demais independentes ou extravagantes, ou então quando sua política não coadunava com as diretrizes do conselho dos Lamas que assessoravam o Buda Encarnado ou o Dalai Lama. Acredito que o Pandita Hutuktu, a essas horas, já deve estar descansando na paz eterna no topo de alguma montanha sagrada, levado para lá pelos métodos solícitos de seu estranho médico de corte. O espírito guerreiro de Pandita Hutuktu não era visto com bons olhos pelo conselho dos Lamas que condenavam o espírito aventureiro daquele deus vivo.Pandita tinha um fraco pelo vinho e pelo baralho. Um dia estava jogando baralho com alguns russos, quando os Lamas chegaram correndo à sua residência porque já se iniciava o serviço divino no templo, e o deus vivo tinha que tomar seu lugar sobre o altar e receber as orações de seus súditos. Mas ele não estava em casa, estava jogando noutro lugar. Sem o menor sinal de

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embaraço, Pandita jogou a capa vermelha de Hutuktu nos ombros, sobre o colete e as calças cinzentas à européia, e deixou-se levar em seu palanquim pelos Lamas escandalizados.No mesmo dia em que conheci o cirurgião envenenador, encontrei na casa do Hutuktu um moço de uns treze anos, que eu julguei ser, pela idade, pela roupa vermelha e pelos cabelos curtos, um Bandi, ou estudante, a serviço na casa do Hutuktu. Descobri, porém, que me enganara. O moço era o primeiro Hubilgan, também um Buda Encarnado, um vidente hábil e o sucessor do Pandita Hutuktu. Ele andava constantemente embriagado, era um grande jogador, e vivia inventando engraçadíssimas brincadeiras que deixavam os Lamas profundamente feridos em sua dignidade.Naquela mesma noite conheci também o segundo Hubilgan quando ele veio visitar-me: era ele o verdadeiro administrador de Zain Chabi, que era um domínio independente sob o controle direto do Buda Encarnado. Esse Hubilgan era um homem de trinta e dois anos, e sua aparência era grave e ascética. Recebera uma educação excelente e conhecia profundamente as ciências mongólicas. Falava russo e lia muito nesse idioma, já que estava profundamente interessado na vida e na história dos outros povos. Admirava profundamente o gênio criador do povo americano, e disse:— Quando você for à América, diga aos ameri-canos para virem aqui tirar-nos das trevas. Os

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chineses e os russos levar-nos-ão à perdição. Só os americanos poderão salvar-nos.Estou satisfeito de poder agora transmitir as palavras desse mongol influente, que manda um apelo ao povo americano. Por que não salvar este povo honesto que vive nas trevas e na opressão? Por que deixar que pereça? O espírito mongol é rico de forças morais. Ajudai esse povo a tornar-se culto, ajudai-o a utilizar-se das riquezas de sua terra, e a antiga nação de Gengis Khã será para sempre uma amiga grata e fiel.Quando fiquei completamente restabelecido o Hutuktu convidou-me a ir em sua companhia até Erdeni Dzu e eu aceitei com muita satisfação. Na manhã seguinte chegou uma carreta leve e confortável. Nosso passeio durou cinco dias; visitamos Erdeni Dzu, Kara-korum, Hoto-Zaidam e Hara-Balgasum. São as ruínas das cidadelas e dos mosteiros construídos por Gengis Khã e seus sucessores, Ugadai e Kublai, no século XIII. Somente sobraram as muralhas e as torres, alguns grandes túmulos e livros repletos de lendas e histórias.— Veja esses túmulos! — falou o Hutuktu. — Aqui sepultaram o filho de Khã-Uyuk. Os chineses tinham-lhe dado o dinheiro para que ele assassinasse seu velho pai, mas sua irmã matou com suas próprias mãos o jovem príncipe a fim de proteger seu velho pai que era imperador. Aí está o túmulo de Tsinilla, a mulher querida de Khã-Mangu. Ela saiu da capital da China para ir até Kharga Bolgasun, e chegando ao fim da viagem apaixonou-se pelo audacioso pastor

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Damcharen, aquele que, montado em seu cavalo, corria mais célebre que o vento e pegava os "yacks" e os cavalos selvagens à unha. O Khã enfurecido mandou que a infiel fosse estrangulada, mas em seguida mandou sepultá-la com todas as honras imperiais e vinha freqüentemente até o túmulo para chorar o amor perdido.— Que aconteceu com Damcharen? — perguntei.O Hutuktu não sabia, mas seu velho criado que conhecia todas as histórias, respondeu:— Ele lutou durante muito tempo contra os chi-neses ajudado por ferozes bandidos tchahars. Contudo ninguém sabe como ele morreu.Em certas épocas os monjes chegam até as ruínas para fazer orações, e ao mesmo tempo procuram livros ou objetos sagrados que estão ocultos entre as ruínas. Recentemente foram encontrados dois fuzis chineses, dois anéis de ouro, e grossos rolos de manuscritos fechados por correias.— Por que essa região atraiu tanto os poderosos imperadores que reinaram do Pacífico até o Adriático? — perguntava a mim mesmo. Não poderia ser apenas pelas montanhas e pelos vales cobertos de lárices e bétulas, nem por causa das vastas extensões de areia, ou os lagos escondidos e as rochas estéreis.Os grandes imperadores vinham até aqui, lembrando a visão de Gengis Khã, e aqui procuravam novas visões que descortinassem seus milagrosos e majestosos destinos, cercados como eram de honras divinas, de obediência e de

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tédio. Onde poderiam eles entrar em contato com os deuses e com os bons e maus espíritos a não ser aqui, onde eles moram? A região de Zain, coberta de antigas ruínas, devia ser o local predestinado.— Só podem subir àquelas montanhas os que descendem em linha direta de Gengis Khã, explicou o Pandita. Quando chega a meia altura, o homem comum sufoca, e se ele ousar ir mais longe, acaba morrendo. Não faz muito tempo, alguns caçadores mongóis perseguiram uma malta de lobos, mas quando chegaram naquele lugar, todos morreram. Sobre os flancos da montanha podem ser vistas as ossadas de águias, de carneiros-monteses e daqueles antílopes "kabarga" que correm leves e ligeiros como o vento. Aí mora o mau demônio que é o dono do livro dos destinos humanos.Obtivera, afinal, a resposta às minhas interroga-ções.Uma vez no Cáucaso subi por uma montanha entre Sukhum Kale e Tupsei onde os lobos, as águias e as cabras-monteses morrem. Também os homens morreriam se não tivessem o cuidado de andar a cavalo por aquela região. Da terra emana ácido carbônico que se desprende dos flancos da montanha sufocando toda e qualquer vida animal. O gás fica perto do solo formando uma camada de mais ou menos cinqüenta centímetros. Os cavaleiros passam por cima da camada e os cavalos erguem a cabeça, fungam e relincham de medo até sair daquela zona perigosa. Aqui, sobre a montanha habitada pelo

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demônio que lia o livro dos destinos humanos, produzia-se o mesmo fenômeno e compreendi o medo supersticioso dos mongóis e também a atração exercida por esses lugares sobre os descendentes de Gengis Khã, cujas estaturas eram altas, quase gigantes. Suas orgulhosas cabeças pairavam bem acima do gás letárgico, e asssim conseguiam chegar ao topo daquela terrível e misteriosa montanha. O fenômeno pode ser explicado também do ponto de vista geológico, já que essa região representa o limite meridional dos depósitos de hulha que produzem o ácido carbônico e o gás metano.Não muito longe das ruínas que cobrem as terras de Hun Dopchin Djamtso, encontra-se um pequeno lago que, às vezes, cobre-se de chamas alaranjadas que aterrorizam os mongóis e seus rebanhos de cavalos. Naturalmente existem inúmeras lendas a respeito daquele lago. Neste ponto, uma vez caiu um meteoro que penetrou profundamente no solo. Na cratera formou-se o lago. Parece que os habitantes das passagens subterrâneas, metade homens e metade demônios, estão trabalhando para tirar aquela pedra do céu do seu profundo receptáculo, porém quando eles tentam erguê-la ela incen-deia o lago e a seguir, cai novamente, apesar de todos os esforços. Não vi pessoalmente o lago, mas um colono russo me disse que deveria haver petróleo na superfície da água, que pegava fogo por causa das fogueiras dos pastores ou, talvez, pelos raios quentes do sol.

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De qualquer forma, todas essas coisas concorrem para explicar o estranho fascínio que essa região exercia sobre os potentados mongóis. Karakorum provocou em mim o mais forte impacto. Naquela cidade viveu o cruel e sábio Gengis Khã. Ali ele arquitetou seus planos de gigante: afogar o oeste no sangue e cobrir o leste de uma glória tão grande que nunca mais se viu igual. Gengis Khã construiu duas Karakorum: a primeira perto de Tetsagol, na rota das caravanas, e a outra no Pamir, onde os melancólicos guerreiros sepultaram os maiores conquistadores num mausoléu construído por quinhentos escravos que foram sacrificados em homenagem ao espírito do defunto quando a obra foi terminada.O guerreiro Pandita Hutuktu elevou preces entre as ruínas, onde erravam os espíritos daqueles potentados que já tinham reinado sobre a metade do mundo; ardia nele como uma chama o desejo de realizar os mesmos feitos heróicos a fim de elevar-se à mesma glória de Gengis Khã e Tamerlão.No dia seguinte à nossa volta a Zain Chabi eu já estava me sentindo restabelecido e marquei minha saída para ir a Van Kure. Despedi-me do Hutuktu que me deu um grande "hatyk" e agradeceu mais uma vez o presente que eu lhe tinha oferecido no primeiro dia.— É um magnífico remédio! Estava um pouco cansado depois de nosso passeio; mas tomei seu remédio, e estou me sentindo perfeitamente bem. Sou-lhe por demais agradecido!

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O pobre rapaz engolira meu frasquinho de osmirídio. Eu tinha certeza que isso não poderia fazer-lhe mal, mas achei realmente extraordinário que isso lhe fizesse bem! Quem sabe os médicos ocidentais queiram experimentar esse remédio simples e barato — só existem oito libras de osmirídio no mundo todo; no caso, quero para mim os direitos para a Mongólia, Barga, Sinkiang, Kuku-Nor e os outros países da Ásia central.Levei um velho colono russo para servir-me de guia. Deram-me uma grande carroça, leve e confortável, puxada de forma estranha. Uma vara de quatro metros de comprimento era afixada nos varais da carroça. Dois cavaleiros de cada lado seguravam essa vara, amarrando-a às suas selas, e galopando, me puxavam através da planície. Seguiam-nos mais quatro cavaleiros, com quatro cavalos de reserva.

30A Prisão

Quando estávamos a dezoito quilômetros de Zain vimos, de uma elevação, uma fila de cavaleiros que andavam mais embaixo pelo vale, e que encontramos meia hora mais tarde, à margem de um rio profundo e contornado de pântanos. Dois homens cavalgavam à frente da coluna e um deles, que usava um grande barrete de astracã preto, uma capa do Cáucaso em feltro preto com

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um capuz vermelho, interceptou meu caminho e perguntou-me de forma grosseira:— Quem é você. De onde vem e para onde vai?Respondi secamente. Eles então explicaram que o destacamento fora enviado pelo Barão Ungern e era comandado pelo Capitão Vandaloff.— E eu sou o Capitão Bezrodnoff, juiz militar.De repente começou a dar gargalhadas. Não estavagostando de sua empáfia e grosseria; portanto cumprimentei-o e mandei os meus cavaleiros seguirem avante.— Não, não! — gritou, atravessando outra vez meu caminho. — Não posso deixar você seguir. Quero conversar longamente com você sobre assuntos mais sérios e receio que você tenha que voltar comigo para Zain.Protestei e mostrei-lhe a carta do Coronel Kazagrandi, porém ele falou friamente:— Os assuntos do Coronel Kazagrandi não me interessam. Interessa-me que você volte comigo a Zain. E agora dê-me suas armas.Não podia obedecer a essa ordem, mesmo que estivesse ameaçado de morte.— Espere — disse-lhe. — Quero uma resposta franca. Seu destacamento luta contra os bolcheviques, ou vocês são do exército vermelho?O oficial buriat Vandaloff aproximou-se:— Posso garantir-lhe que já faz mais de três anos que estamos lutando contra os bolcheviques.— Então não posso dar-lhe minhas armas — disse-lhe calmamente. — Eu trouxe essas armas

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da Sibéria e muitas vezes tive que usá-las em combates. E agora teria que entregá-las justamente a oficiais Brancos! É uma afronta que julgo intolerável!Em seguida joguei minha Mauser e meu fuzil no rio. Os oficiais não sabiam o que fazer. Bezrodnoff ficou fulo de raiva.— Quis poupar a vocês e a mim uma humilhação — expliquei.Bezrodnoff virou o cavalo em silêncio. O destaca-mento de trezentos homens desfilou na minha frente. Somente dois cavaleiros saíram da formação, tomando suas posições atrás do meu pequeno grupo. Eu estava preso! Um dos cavaleiros era um russo que disse estar Bezrodnoff levando consigo muitas condenações à morte. Talvez, entre elas, estivesse também a minha.Que valia ter enfrentando os vermelhos para abrir caminho, ter passado frio e fome, ter escapado da morte no Tibete, se agora devia tombar fuzilado pelos mongóis de Bezrodnoff? — Para que chegar até este ponto, vindo de tão longe? Podia ter encontrado o mesmo fim em qualquer Tcheka da Sibéria.Chegando em Zain Chabi minhas bagagens foram revistadas e Bezrodnoff começou a interrogar-me minuciosamente a respeito dos acontecimentos de Uliassutai. Falamos quase três horas, tentando defender todos os oficiais de Uliassutai, explicando que era impossível emitir uma opinião baseando-me unicamente nos rela-tórios de Domojiroff. Depois de encerrada a

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entrevista, o capitão levantou-se e apresentou suas desculpas por ter atrasado minha viagem. Em seguida ofereceu-me uma esplêndida Mauser com a coronha de prata:— Apreciei muito sua altivez — disse-me. — Peço que aceite essa arma como uma lembrança.Na manhã seguinte saí novamente de Zain Chabi, com um salvo-conduto de Bezrodnoff para não ser molestado pelas suas patrulhas.

31Viajando pela "Urga"

Voltei a passar pelos mesmos lugares conhecidos, pela elevação de onde tinha observado a coluna de Bezrodnoff, pelo rio onde jogara minhas armas, e em pouco tempo deixamos tudo isso para trás. No primeiro posto de muda tive a desagradável surpresa de não encontrar cavalos. Na "yurta" estavam o patrão e seus dois filhos. Mostrei meu documento.— O Noyon tem direito à "urga"? — gritou ele. — Vou logo achar os cavalos.Saltou na sela, levando dois dos meus mongóis. Apanharam longas varas de quatro a cinco metros de comprimento, as quais tinham na extremidade um laço feito de corda. Os três homens saíram a galope, e minha carroça em seu encalço. Saímos da estrada, atravessamos uma planície e, após uma hora, chegamos onde um rebanho de cavalos estava pastando. O mongol apanhou alguns cavalos, servindo-se da

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vara com seu laço de corda que tinha um nó corrediço, chamada "urga". Os donos do rebanho vieram correndo das colinas vizinhas. Quando o mongol mostrou meu documento, eles concordaram em fornecer os cavalos e deram-me também quatro de seus homens para substituir os que tinham me acompanhado até ali. É assim que viajam os mongóis, sem precisar depender dos postos de muda: eles vão de um rebanho para o outro, apanhando os cavalos com a "urga", e os donos dos rebanhos fornecem novos guias para substituir os precedentes. Todos os mongóis assim requisitados tem a maior pressa de chegar até o rebanho mais próximo a fim de passar o encargo, por isso galopam a rédeas soltas. O viajante que goza de direito da "urga" pode, em caso de necessidade, quando não houver ninguém por perto, apanhar pessoalmente os cavalos com a "urga" e obrigar seus acompanhantes a seguir caminho até encontrar alguém para revezá-los, enquanto os animais cansados são sempre deixados no rebanho que fornece os novos cavalos. Isto, porém, acontece raramente porque os mongóis não gostam de ir procurando seus animais em rebanhos alheios, já que isso pode ocasionar discussões.Por eu ter direito à "urga" atravessei a Mongólia por caminhos desconhecidos aos outros viajantes durante trezentos quilômetros. Pude então observar a fauna daquela região. Vi enormes rebanhos de cinco a seis mil cabeças de antílopes, carneiros-monteses, alces (wapiti) e

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antílopes almiscarados (kabarga). Às vezes, na linha do horizonte, passava rapidamente um pequeno rebanho de cavalos selvagens ou onagres.Vi também uma grande colônia de marmotas. Seus montículos e as entradas de suas tocas eram visíveis numa superfície de vários quilômetros quadrados. No meio dos montículos, os animais, de cor cinza-amarelada ou castanha, corriam em grande número; eram de todos os tamanhos e os maiores poderiam ser comparados à metade de um cachorro médio. Corriam pesadamente e suas peles pareciam chacoalhar como se fossem largas demais.As marmotas são ótimos garimpeiros: elas cavam em linha reta profundas trincheiras, separando as pedras que encontram e jogando-as à superfície. Observei, em muitos lugares, montículos de mineral de cobre, e mais ao norte, encontrei minerais que continham vanádio e wolfrâmio. Quando as marmotas ficam à entrada de suas tocas, elas sentam, imóveis, sobre suas patas traseiras, parecendo um pedaço de madeira ou uma pedra. Mas logo que percebem algo, como por exemplo um cavaleiro, sua curiosidade é despertada e elas olham com atenção, emitindo um silvo agudo. Os caçadores aproveitam-se dessa natural curiosidade, e mostram às marmotas varas com bandeiras coloridas. O animal concentra toda sua atenção no pano, e o balaço que o mata traz a explicação do estranho objeto desconhecido.

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Passando no meio de uma colônia de marmotas, perto do Rio Orkhon, assisti uma cena bem interessante. As tocas contavam-se aos milhares, e meus mongóis desdobravam-se em cuidados para evitar que os cavalos dessem um passo em falso e quebrassem uma perna. Muito alta, acima de nós, uma águia voava em círculos. De repente deixou-se cair como uma pedra, aterrizando sobre um montículo, onde ficou imóvel, à semelhança de uma rocha. A marmota saiu da toca segundos depois, talvez para fazer uma visita à sua vizinha. A águia saltou calmamente do topo do montículo, e vedou a entrada com uma de suas asas. A marmota, ouvindo o barulho, voltou e atacou imediatamente, tentando a qualquer custo entrar na toca onde, evidentemente, devia encontrar-se com seus filhotes. Iniciou-se a luta. A águia atacava usando a asa livre, uma pata e o bico, mas continuava obstruindo a entrada. A marmota atirou-se contra a ave de rapina, com muita coragem, porém caiu logo, recebendo uma bicada na cabeça. A águia aproximou-se, abandonando a entrada da toca, liquidou a marmota e, apanhando-a com suas garras com alguma dificuldade, levou-a para longe, na montanha, onde poderia saciar-se tranqüilamente.Em quase todas as regiões da Mongólia vi as per-dizes chamadas "salga", seja em casais, seja em grandes grupos. Essas perdizes são conhecidas também como perdiz-andorinha, devido às longas caudas e pelo seu voo que se assemelha muito ao das andorinhas. Essas aves não são

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selvagens nem ariscas, e pude aproximar-me delas, até dez ou quinze passos de distância; quando, porém, alçam vôo, sobem muito alto e conseguem voar por distâncias consideráveis, piando continuamente como o fazem as andorinhas. Seu colorido é geralmente cinza-claro, e amarelo; os machos tem bonitas manchas castanhas nas costas e nas asas; as patas são recobertas por uma espessa plumagem.Achei muito interessante fazer todas essas observações em regiões normalmente pouco freqüentadas; fi-lo graças à "urga", contudo essa modalidade de viagem também apresenta seus inconvenientes. Os mongóis realmente estavam conduzindo-me pelo caminho mais curto e da maneira mais rápida, e estavam muito satisfeitos com o pagamento em dólares chineses. Eu tinha, porém, coberto aproximadamente oito mil quilômetros em minha sela cossaca que agora estava oculta atrás do assento, toda coberta de poeira; sentia-me revoltado por ser sacudido e jogado de um lado para o outro nessas corridas desvairadas numa carroça que era puxada a toda velocidade por cima de pedras, montículos e valas, pôr cavalos chucros que iam a rédeas soltas. A carroça saltava e estalava; acredito que não caía aos pedaços unicamente pela preocupação de provar a um viajante estrangeiro o conforto e a resistência de uma boa carroça mongol! Todos os meus ossos estavam doloridos. Acabei soltando gemidos a cada sacudidela e sobrevieram-me ataques de ciática, muito

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desagradável, na perna ferida. À noite não conseguia dormir nem permanecer deitado; não conseguia sequer sentar-me sem sentir dores, e acabava andando durante a noite toda, ouvindo na "yurta" os roncos sonoros de seus ocupantes. Às vezes tinha que me defender dos ataques de enormes cachorros pretos. No dia seguinte consegui suportar até o meio-dia, quando mandei parar para repousar. O sofrimento era realmente insuportável. Não podia mexer minha perna nem minhas costas e acabei vítima de uma febre violenta. Uma parada e um bom descanso fizeram-se obrigatórios. Engoli todos os comprimidos de aspirina e de quinino que tinha em mãos, todavia não senti nenhum alívio. A perspectiva de outra noite sem dormir me irritava ainda mais. Estávamos numa "yurta" reservada aos visitantes, perto de um pequeno mosteiro. Meus mongóis foram procurar o Lama médico: receitou-me um pó muito amargo e disse que no dia seguinte eu poderia voltar a viajar sem complicações. Pouco tempo depois, as batidas do meu coração aumentaram muito e a dor piorou. Passei outra noite sem conseguir dormir; todavia quando o sol despontou, a dor desapareceu repentinamente. Uma hora mais tarde dei ordem de selar um cavalo para mim, porque achava que seria impossível continuar viagem dentro da carroça.Enquanto os mongóis se ocupavam em laçar os cavalos o Coronel N. N. Philipoff veio à minha tenda. Disse-me que estava protestando energicamente contra as acusações que tinham

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sido feitas contra a sua pessoa, contra seu irmão e contra Poletika, no sentido de que eles seriam bolcheviques. Bezrodnoff tinha-lhe concedido autorização de ir até Van Kure para falar com o Barão Ungern, que estava para chegar ali. Philipoff, evidentemente, ignorava que seu guia mongol tinha uma granada e que um outro mongol tinha sido enviado à sua frente com uma carta para o barão. Ignorava também que Poletika e seus irmãos estavam sendo fuzilados naquele momento em Zain Chabi. Philipoff estava muito agitado e pretendia chegar a Van Kure naquele mesmo dia. Saímos uma hora depois dele.

32Um Velho Adivinho

Prosseguimos viagem pela rota dos mensageiros. Naquela região os mongóis só tinham cavalos imprestáveis, totalmente esgotados; deviam fornecer, continuamente, montarias aos muitos mensageiros de Daichin Van e do Coronel Kazagrandi. Tivemos que parar no último posto de muda antes de Van Kure. Um velho mongol e seus dois filhos cuidavam da muda. Depois do jantar o velho apanhou a omoplata do carneiro, limpa de qualquer vestígio de carne, olhou-me, colocando o osso em cima das brasas, murmurou alguma bruxaria e disse:— Vou dizer-lhe o seu futuro. Todas as minhas previsões se realizam.

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Quando o osso ficou todo enegrecido, retirou-o do fogo, soprou para limpá-lo das cinzas e começou a examinar cuidadosamente a superfície; por fim aproximou-o do fogo, mantendo-o inclinado. O exame foi prolongado e o velho tinha uma expressão assustada. Voltou a colocar o osso no fogo.— O que é que há? — perguntei rindo.— Quieto! — falou num murmúrio. — Os signos são terríveis.Voltou a apanhar o osso e a examinar toda sua superfície. Resmungava orações e fazia gestos estranhos com a mão. Por fim falou com voz calma e solene:— A morte, na pessoa de um homem branco, alto e de cabelos ruivos; ficará perto de você, à espreita, durante muito tempo. Você ficará sabendo e ficará esperando, porém vai se afastar. Um outro homem branco tornar-se-á seu amigo. Antes do quarto dia, você perderá amigos que morrerão atingidos por uma faca muito comprida. Vejo-os devorados pelos cães. Não confie no homem cuja cabeça parece uma sela. Ele deseja sua morte.Depois das adivinhações ficamos algum tempo tomando chá e fumando, porém toda vez que o velho olhava para mim, fazia-o com expressão de medo. Calculei que os companheiros de prisão de um homem condenado à morte deviam olhá-lo mais ou menos dessa maneira.Na manhã seguinte, despedimo-nos do adivinho, antes do despontar do sol, e depois de aproximadamente vinte e cinco quilômetros

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avistamos Van Kure. O Coronel Kazagrandi estava em seu quartel-general. Era um homem bem nascido, engenheiro de muita experiência e um excelente oficial que teve atuação destacada durante a guerra na defesa da ilha de Moom, no Báltico e, a seguir, na luta contra os bolcheviques na região do Volga. O Coronel Kazagrandi convidou-me a tomar banho numa autêntica banheira na casa do presidente da Câmara de Comércio. Achava-me ainda naquela casa quando entrou um jovem capitão. Era alto, tinha cabelos ruivos compridos e encaracolados. O rosto era extraordinariamente branco, os olhos grandes e frios como aço, os lábios finos como os de uma mulher. Não denotava muita inteligência e em sua expressão, mas tão-somente crueldade fria e tão aparente que, apesar de ele ter feições agradáveis, não se podia fitá-lo sem repugnância. Quando se retirou, meu hospedeiro explicou que era o capitão Veseloffsky, oficial de ordenança do General Redzukin que estava lutando contra os vermelhos ao norte da Mongólia. Eles tinham chegado naquele mesmo dia para conferenciar com o Barão Ungern.Depois do almoço, o Coronel Kazagrandi convidou-me a entrar na sua "yurta", e começamos a comentar os acontecimentos da Mongólia ocidental, onde a situação se tornava cada vez mais delicada.— Você conhece o Dr. Gay? — perguntou Kazagrandi. — Você deve saber que ele me ajudou na formação do meu destacamento, mas Urga acusa-o de ser um agente dos soviets.

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Disse-lhe tudo que podia em defesa de Gay. Afinal ele tinha me ajudado, e era protegido pelo próprio Koltchak.— Sei, sei — tentando justificar Gay dessa ma-neira; todavia Redzukin chegou com algumas cartas que Gay mandou aos bolcheviques, mas que foram interceptadas no caminho. Por ordem do Barão Ungern, Gay e sua família estão sendo levados ao quartel general de Redzukin; temo que não conseguirão chegar ao destino.— Por que? — perguntei.— Serão executados antes — respondeu o coronel.— Que posso fazer? — gritei. — É impossível que Gay seja um bolchevique, ele é por demais culto e inteligente.— Não sei o que fazer, realmente não sei — mur-murou Kazagrandi abatido. — Você pode tentar e falar com Redzukin.Decidi ver Redzukin imediatamente, mas naquele mesmo instante entrou o Coronel Philipoff e começou a queixar-se dos erros que estavam sendo cometidos na instrução militar dos soldados. Estava vestindo minha capa quando entrou outro homem. Era um oficial de baixa estatura, com boné verde de cossaco, com viseira, uma capa mongol cinza, rasgada. Sua mão direita estava numa tipóia feita com um lenço preto, amarrado ao pescoço. Era o General Redzukin e fui-lhe imediatamente apresentado. Durante nossa conversação o general interrogou-me educada mas habilidosamente a respeito de tudo que tínhamos feito durante os últimos três

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anos, contando de vez em quando algumas piadinhas e rindo discretamente. Quando saiu, aproveitei a ocasião e saí junto.Ele ouviu atenta e educadamente o que eu queria lhe dizer, mas falou com voz tranqüila:— O Dr. Gay é um agente dos soviets; tinha-se disfarçado de branco para poder ver, ouvir e saber melhor, tudo que lhe interessava. Estamos rodeados de inimigos. O povo russo está totalmente desmoralizado e está pronto para qualquer traição, em troca de dinheiro. Este foi também o motivo de Gay. Aliás não adianta discutirmos a esse respeito. Ele e sua família já se foram. Meus homens executaram-nos, hoje, a cinco quilômetros daqui.Eu estava consternado e confuso, olhando o rosto daquele homem baixinho e cheio de vitalidade, que falava com voz suave e gestos educados. Nos seus olhos só havia ódio e determinação, e compreendi a razão pela qual seus oficiais lhe demonstravam respeito quase doentio em minha presença. Em Urga, algum tempo mais tarde, soube de outras coisas mais: o general destacava-se não somente pela sua coragem como também pela sua crueldade. Ele era o cão de guarda do Barão Ungern, sempre pronto a dar sua vida por ele ou, então, cortar a garganta de quem seu amo desejava desfazer-se.Ainda não se passara quatro dias e "meus ami-gos" tinham sido assassinados por "uma faca muito comprida". Uma parte das adivinhações já se cumprira. Podia então preparar-me para

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esperar a ameaça de morte. Não tive que esperar muito. Dois dias mais tarde chegou o chefe da divisão de cavalaria asiática. Era o Barão Ungern von Sternberg.

33"A morte, na pessoa de um homem branco,

ficará à sua espreita"

"O terrível general", "o barão", chegou de repente, sem sequer ser percebido pelos postos avançados do Coronel Kazagrandi. Depois de conversar com o coronel, convidou-me, e também ao Coronel Philipoff, a comparecer na sua "yurta". Kazagrandi trouxe o recado. Quis ir imediatamente, contudo o coronel me deteve por mais de meia hora e, em seguida, desejou-me boa sorte.— Que Deus o ajude! Pode ir!Era uma estranha saudação, bastante enigmática, que me deixava preocupado. De qualquer forma, apanhei minha Mauser e enfiei na dobra dos meus punhos, o cianureto de potássio. O barão hospedara-se na "yurta" do major médico. Quando cheguei ao pátio, o Capitão Veseloffsky aproximou-se. Tinha enfiado no cinturão um sabre cossaco e um revólver sem bainha. Entrou na "yurta" para anunciar minha chegada.— Pode entrar, falou saindo da tenda.Quando entrei, deparei com uma grande peça desangue que estava sendo lentamente absorvida pelo chão; calculei ser aquela mancha um sinal

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nefasto que parecia a marca do destino do homem que me tinha precedido. Bati palmas.— Entre! — falou uma voz aguda.No interior da "yurta" um homem, que usava uma túnica mongol de seda vermelha, atirou-se sobre mim como um tigre, apertou minha mão com um jeito apressado, atirou-se novamente em cima da cama que estava num canto da tenda.— Diga-me, quem é você? Ao redor só há espiões e agitadores — gritou o homem com voz estridente e nervosa, sem desviar os olhos de mim.Num só instante analisei todos os detalhes de sua aparência e resumi seu caráter: cabeça pequena e ombros largos; cabelos loiros em desordem; bigode em escovinha, ruivo, o rosto emaciado como o rosto de um velho ícone bizantino. Todavia esses traços passaram para um segundo plano, e eu só conseguia distinguir sua larga testa, proeminente, acima de um par de olhos de aço que me fixavam e me transpassavam como os olhos de um animal no fundo de uma caverna. Percebi tudo isso num instante e compreendi que, à minha frente, esta-va um homem perigoso, pronto a lançar-se de improviso numa situação que podia ser irrevogável. Apesar do perigo evidente, eu me sentia profundamente ressentido pelo insulto.— Pode sentar — disse com aquela voz aguda e com ar displicente, indicando uma cadeira, enquanto torcia nervosamente o bigode .Eu estava ficando bastante aborrecido e falei sem sentar:

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— Você achou por bem insultar-me, barão. Acho que meu nome é suficientemente conhecido para dispensar essa forma de tratamento. Evidentemente você pode fazer comigo o que quiser, porque a força está do seu lado, mas você nunca me obrigará a falar com alguém que me insulte.Quando terminei de falar ele se levantou da cama, olhando-me estupefato; examinou-me demoradamente, retendo a respiração e continuando a torcer o bigode. Eu procurava manter a calma, pelo menos aparentemente. Olhei em volta de mim, afetando indiferença, e percebi que também o General Redzukin estava presente. Acenei com a cabeça para cumprimentá-lo, e ele retribuiu em silêncio. Olhei novamente para o barão que agora estava sentado, a cabeça baixa e os olhos fechados. De vez em quando passava uma mão na testa e murmurava palavras incompreensíveis.Levantou bruscamente e falou com alguém que se encontrava atrás de mim:— Pode ir; não preciso mais de você.Virei-me e vi o Capitão Veseloffsky, com o seu rosto branco e frio. Não pressentira sua entrada; deu meia volta, em estilo perfeito, e saiu. O barão ficou pensativo durante algum tempo e depois recomeçou a falar, com frases truncadas:— Peço desculpas... Você compreende, há mui-tos traidores... Os homens honestos estão desaparecidos. Não posso confiar em ninguém... Existem nomes falsos... documentos falsos... Olhares mentirosos, palavras que são mentiras. A

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desmoralização cresce, o bolchevismo corrompe tudo. Acabo de mandar executar o Coronel Philipoff, aquele que se dizia o representante da organização branca na Rússia. No forro de sua túnica encontramos códigos secretos usados pelos bolcheviques. Quando meu oficial de ordenança levantou o sabre por cima de sua cabeça, ele gritou: "Por que queres matar-me"? Não posso confiar em ninguém...Calou-se e eu também permaneci em silêncio.— Peço desculpas, repetiu. Sei que o ofendi, mas eu não sou apenas um homem; sou o chefe de tropas importantes, e minha cabeça anda cheia de preocupações, de desgostos e de sofrimentos!Percebi em sua voz o desespero e a sinceridade. Estendeu-me a mão com franqueza. Permanecemos novamente em silêncio. Depois respondi-lhe:— O que você ordena agora? Lembre-se que não tenho documentos, nem falsos e nem autênticos... Conheço muitos de seus oficiais e tenho certeza de que, em Urga, poderei encontrar alguns que podem afiançar que eu não sou agitador e que eu não...— É inútil, totalmente inútil! — disse o barão interrompendo-me. — Tudo é claro, já entendi tudo! Olhei dentro de sua alma e já sei tudo. O Hutuktu de Narabanchi escreveu-me a seu respeito e ele falou a verdade! Que posso fazer por você?Expliquei-lhe, então, que meu companheiro e eu tínhamos fugido da Rússia soviética para conseguir voltar à pátria, e que um grupo de

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soldados poloneses tinha-se juntado a nós, na esperança de voltar para a Polônia. Pedia-lhe, portanto, que me ajudasse a chegar ao porto mais próximo.— Será um prazer, um prazer realmente... Quero ajudar a todos... — falou nervosamente. Vou levar você a Urga no meu carro. Viajaremos para Urga amanhã e poderemos conversar e ver o que se pode fazer.Despedi-me dele e saí da "yurta". Chegando em casa encontrei o Coronel Kazagrandi que andava para cá e para lá em passos largos dentro do meu quarto. Seu rosto denotava ansiedade.— Graças a Deus — gritou, fazendo o sinal-da-cruz.Sua alegria era realmente comovente, contudo me parecia que o coronel podia ter tomado medidas mais eficazes para me proteger, já que essa parecia sua intenção. Sentia-me esgotado pelas emoções do dia, e parecia-me ter envelhecido muitos anos. Quando me olhei no espelho, tive a impressão de que meus cabelos brancos tinham aumentado.Não consegui dormir durante a noite. Pensava no rosto jovem e fino do Coronel Philipoff, na mancha de sangue, nos olhos frios do Capitão Veseloffsky, na voz do Barão Ungern da qual transparecia o sofrimento e o desespero. Adormeci muito tarde.Fui acordado pelo Barão Ungern que viera desculpar-se de não poder mais levar-me no seu carro, porque precisava levar Daichin Van. Disse, também, que tinha dado ordens para que me

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dessem o camelo branco de sua propriedade e dois cossacos como criados. Mal tive o tempo de agradecer-lhe, porque saiu rapidamente.Não tinha mais sono. Vesti-me e comecei a fumar um cachimbo após outro, refletindo profundamente: "É bem mais fácil combater contra os bolcheviques nos pântanos do Seybi, atravessar os picos nevados de Ulan Taiga onde os demônios maus desejam matar os viajantes... Lá tudo era simples e compreensível, ao passo que aqui tudo parece um pesadelo, uma tempestade sombria e sinistra"... Eu continuava a pressentir algo de trágico, algo de aterrorizante em todos os atos do Barão Ungern, e atrás dele andavam silenciosamente o Capitão Veseloffsky... e a morte.

34Os Horrores da Guerra

Aos primeiros albores do dia seguinte, trouxeram-me o esplêndido camelo braço e partimos. Minha escolta compunha-se de dois cossacos, dois soldados mongóis e um Lama com dois camelos que levavam a tenda e nossos mantimentos. Eu estava um pouco receoso de que o barão, não querendo mandar-me matar em Van Kure, onde eu afinal tinha alguns amigos, tivesse tido a idéia de preparar minha viagem de tal forma que fosse fácil livrar-se de mim durante o trajeto. Bastava um tiro nas costas, e tudo estaria terminado. Por isso eu andava alerta, pronto a sacar o revólver para me defender. Tive

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o cuidado de manter os cossacos sempre na minha frente ou ao meu lado. Lá pelo meio-dia ouvimos à distância uma buzina de automóvel, e logo a seguir o Barão Ungern passou por nós a toda velocidade. Estavam com ele dois oficiais e o príncipe Duchin Van. O barão cumprimentou-me cordialmente, gritando:— Encontrarei você em Urga!— Perfeito, pensei, então vou chegar até Urga. Posso então viajar tranqüilamente. Em Urga tenho muitos amigos, sem contar os soldados poloneses que estavam em Uliassutai, e que já devem ter chegado à cidade.Depois de nosso rápido encontro com o barão, os cossacos desdobraram-se em atenções comigo, e tentaram divertir-me contando piadas e histórias. Falaram dos combates que travaram contra os bolcheviques na Transbaikalia e na Mongólia, e contra os chineses nos arredores de Urga; como tinham descoberto que muitos soldados chineses tinham passaportes comunistas emitidos em Moscou. Falaram da coragem do Barão Ungern que se assentava perto do fogo, na linha de frente, fumando e tomando chá, sem nunca ter sido atingido por uma bala. Uma vez sessenta e quatro tiros furaram sua capa, sua sela e alguns caixotes que estavam ao seu lado; ele, porém, saiu ileso. Essa imunidade era uma das principais razões da grande influência que ele exercia sobre os mongóis. Contaram também que antes de uma batalha ele saíra para uma ação de reconhecimento perto de Urga, acompanhado de um único cossaco e, na volta, matara a golpes de

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bambu ("tashur") um oficial e dois soldados chineses; quando viajava não levava consigo mais do que uma muda de roupas de baixo e um par de botas; durante um combate era calmo e bem-humorado, e nos dias de paz, triste e mal-humorado; enfim, durante o desenrolar da luta ele estava sempre perto de seus soldados.Por minha vez, relatei minha fuga da Sibéria e o tempo escoou rapidamente. Nossos camelos iam sempre ao trote e, dessa maneira, ao invés de fazer trinta quilômetros, diariamente, conseguíamos cobrir oitenta. Meu camelo era o mais rápido de todos. Era um animal enorme, totalmente branco e sua crina era esplêndida: o Barão Ungern tinha-o recebido de presente de um príncipe mongol juntamente com duas zibelinas pretas. O audacioso gigante do deserto era calmo e forte e tão alto que parecia-me estar no alto de uma torre.Encontramos o primeiro cadáver de soldado chinês depois de atravessar o Orkhon: estava de costas, de braços abertos, bem no centro da estrada. Depois de superar os montes Burgut, entramos no vale do Tola, e na extremidade desse vale estava Urga. A estrada estava entulhada de capas, camisas, sapatos, bonés e cantis perdidos pelos soldados chineses em fuga, e havia também muitos cadáveres. Um pouco mais adiante a estrada cortava um pântano e nas margens, viam-se amontoados cadáveres de homens, cavalos e camelos, carretas quebradas e destroços de todos os tipos. Nesse lugar os tibetanos do Barão Ungern tinham acabado com

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a coluna dos chineses em fuga. Os montes de cadáveres ressaltavam, num contraste macabro, a vida que estava renascendo com a chegada da primavera. Nos tanques, os patos selvagens de toda espécie, fendiam as águas; no capim alto os grous namoravam, ocupados com suas estranhas danças. Sobre os lagos nadavam cisnes e marre-cos em grandes quantidades; nds pântanos apareciam, como alegres manchas de luz, os turpanos, aves sagradas ornadas de cores brilhantes. Nas colinas viam-se os perus selvagens lutando, sem deixar de comer; revoadas de perdizes "salga" passavam assobiando; e nas encostas da montanha, a pouca distância, os lobos esticavam-se preguiçosamente ao sol, uivando e rosnando de vez em quando como se fossem cães novos e brincalhões.Chegamos às margens do Tola no quarto dia, ao cair da noite. Não conseguimos localizar o vau, e forcei meu camelo a entrar na água para descobrir uma passagem. Encontrei uma, felizmente, e conseguimos atravessar o rio, num lugar onde o rio não era muito fundo. Ficamos contentes de alcançar a outra margem, porque os camelos tem o péssimo costume de fazer surpresas desagradáveis para o viajante: quando o rio é muito fundo a água chega-lhe ao pescoço, o camelo ao invés de sair nadando para a frente como fazem os cavalos, simplesmente deita-se de um lado e deixa-se levar pela correnteza. Naturalmente isso pode ser bastante desa-

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gradável para o cavaleiro. Levantamos nossas tendas na ribanceira.Vinte e cinco quilômetros além, atravessamos um campo de batalha. Fora o local do terceiro grande combate para a independência da Mongólia. Neste ponto as tropas do barão tinham-se defrontado com seis mil chineses que vinham de Kiakhta para defender Urga. Os chineses foram derrotados, e quatro mil foram feitos prisioneiros. Durante a noite esses prisioneiros tentaram evadir-se e o barão mandara os cossacos da Transbaikalia e os tibetanos em seu encalço. Naquele campo de morte que estávamos atravessando vimos os resultados daquela perseguição. Havia ainda cerca de quinhentos cadáveres insepultos e, pelo que me foi dito, outros tantos já tinham sido enterrados. Os cossacos que estavam me acompanhando tinham participado do massacre. Os mortos mostravam horríveis ferimentos provocados pelos golpes de sabre. Por toda parte havia equipamentos e destroços. Os mongóis abandonaram a região levando seus rebanhos, e chegaram os lobos. Vi muitos, que ainda estavam lá, metidos entre as rochas e nas valas. Maltas de cães que tinham voltado ao estado selvagem brigavam com os lobos, disputando aquelas presas medonhas.Chegou a hora de abandonarmos aquele teatro de chacinas, consagrado ao maldito deus da guerra. Aproximamo-nos de um riacho raso e veloz; os mongóis apearam, tirando seus barretes, e começaram a beber. Era um riacho

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sagrado e passava perto da moradia do Buda Encarnado. Desse vale passamos para outro, cheio de curvas, e uma montanha coberta de densa floresta apareceu à nossa frente.— É o santo Bogdo-Ol! — gritou o Lama. — Aqui moram os deuses que protegem nosso Buda En-carnado!Bogdo-Ol é o maciço que liga três cordilheiras: Gegyl a Sudoeste, Gangyn ao sul e Huntu ao norte. Essa montanha coberta de matas virgens é propriedade do Buda Encarnado. Nas florestas vivem quase todas as espécie de animais que há na Mongólia, porém é proibido caçá-las. Todo mongol que infringe essa lei está auto-maticamente condenado à morte e os estrangeiros são expulsos do país. É também proibido, sob pena de morte, atravessar o Bogdo-Ol. Apenas um homem ousou transgredir a lei: foi o Barão Ungern, com cinqüenta cossacos, que depois de subir e descer pela montanha, penetrou no palácio do Buda Encarnado, onde o Pontífice de Urga estava mantido prisioneiro, e o raptou.

35Na Cidade dos Deuses Vivos, dos trinta mil

Budas e dos sessenta mil Monges

Estávamos finalmente admirando a residência do Buda Encarnado. Atrás de muros brancos, aos pés do Bogdo-Ol via-se um prédio branco, coberto de telhas de um azul esverdeado que

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brilhavam ao sol. Em volta, uma vegetação verde e salpicada, interrompida às vezes pelos tetos fantásticos de pequenos santuários e pequenos palácios. Frente à montanha, uma comprida ponte de madeira atravessava o Tola ligando a residência com a cidadela dos monges, a cidadela sagrada e venerada no Oriente todo com o nome de Ta Kure ou Urga.Além do Buda Encarnado, moram aqui inúmeros milagreiros, profetas, mágicos e médicos. Todos esses personagens tem procedência divina e são honrados como deuses vivos. À esquerda, no planalto, eleva-se um mosteiro dominado por uma enorme torre vermelha: é a cidadela dos Lamas do templo; nela há uma gigantesca estátua dourada do Buda, sentado na flor de lótus; há também dezenas de santuários, templos de obos, altares descobertos, torres para os astrólogos, e uma aglomeração cinzenta de casas baixas e "yurtas" onde vivem mais ou menos sessenta mil monges de todas as idades e de todas as categorias; há escolas, arquivos sagrados, bibliotecas, casas para os estudantes Bandi, e hospedarias para os visitantes que vem da China, do Tibete, da terra dos Buriats e da terra dos Calmucos.Abaixo do mosteiro situa-se a colônia estrangeira, e os moradores são, na sua maioria, comerciantes russos e chineses. Ali, no bazar oriental, encontra-se uma multidão colorida e atarefada. Um quilômetro mais adiante vê-se a cerca cinzenta de Maimachen onde está o resto das lojas chinesas, enquanto, mais à frente, uma

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fila comprida de casas russas, um hospital, uma igreja e uma prisão, além de uma estranha construção de tijolos vermelhos que já foi o consulado russo.À pouca distância do mosteiro vi alguns soldados mongóis, próximo de um barranco, arrastando três cadáveres com a evidente intenção de ocultá-los.— O que estão fazendo? — perguntei.Os cossacos sorriram, sem me responder. Porém de repente, endireitaram-se levando à direita a viseira. Um cavaleiro montado num pequeno cavalo mongol saiu do barranco. Quando passou à nossa frente vi que havia dragonas de coronel em sua túnica e que a viseira de seu boné era verde. Olhou para mim com seus olhos frios, encimados de sobrancelhas espessas. Mais adiante, retirou o boné para enxugar o suor. Era careca e olhei, surpreso para a estranha ondulação de seu crânio. Era o homem com a cabeça em forma de sela, e o velho adivinho tinha-me prevenido que eu devia me cuidar de um homem assim.— Quem é aquele oficial? — perguntei.— É o Coronel Sepailoff, comandante da praça de Urga.O Coronel Sepailoff, o personagem mais sombrio da tragédia mongol! Ele foi, noutros tempos, mecânico e depois guarda, e durante o regime czarista fizera carreira muito rápida. Costumava agitar-se sem parar, nervosamente, e falava constantemente com uma voz gutural e desagradável, molhando seu interlocutor com

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uma chuva de saliva, enquanto seu rosto parecia contrair-se por algum espasmo. O homem era, sem dúvida, louco e o barão Ungern mandou examiná-lo duas vezes por uma junta de especialistas, ordenando que ele ficasse em repouso absoluto, na tentativa de mandar para a reserva esse gênio mau. Mais tarde fiquei sabendo que ele era um sádico que gostava de executar pessoalmente os condenados, contando piadinhas e cantando enquanto os matava. A fama de crueldade atribuída ao Barão Ungern pertencia, na realidade, a Sepailoff.Alguns dias mais tarde o barão chegou a dizer-me que Sepailoff o preocupava, já que o coronel poderia executar seu próprio chefe com a mesma indiferença com a qual executava um condenado qualquer. Sepailoff dizia ter encontrado na Transbaikalia um mágico que lhe teria dito que o barão morreria se por acaso tentasse despedir o coronel. O barão, evidentemente, temia Sepai-loff, e deixava-se dominar pela superstição por causa da profecia. O coronel não conhecia a menor piedade quando se tratava de bolcheviques ou de alguém que tivesse a menor ou a mais longínqua associação com eles. Quando os bolcheviques o prenderam, ele foi torturado e depois de sua fuga toda sua família foi massacrada. Agora ele se vingara.Hospedei-me na casa de um comerciante russo e logo chegaram meus companheiros de Uliassutai que manifestaram grande alegria ao ver-me; todos andavam muito preocupados a respeito de

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minhas visitas em Zain Chabi e Van Kure. Tomei um banho, arrumei-me, um pouco e saí com eles.Dirigimo-nos ao bazar. Havia lá uma grande mul-tidão. Entre os grupos pitorescos de vendedores e compradores, ouviam-se os gritos ensurdecedores para recomendar uma ou outra mercadoria; os coloridos brilhantes das fazendas chinesas, os colares de pérolas, os brincos e as pulseiras davam um ar de festa; homens apal-pavam carneiros vivos para saber se estavam realmente bem gordos; açougueiros recortavam as carcassas de carneiros dependuradas em suas barracas e por todos os lugares viam-se os moradores da planície rindo e brincando. Mulheres mongólicas com seus altos penteados, encimados de pesados ornamentos de praia em forma de disco, escolhiam fitas de seda de todas as cores e compridos colares de coral; um mongol de estatura imponente examinava um grupo de belíssimos cavalos, discutindo o preço com o "zahachin"; um tibetano magro, de tez escura e olhos vivos, que podia ter vindo a Urga para elevar suas orações ao Buda Encarnado, ou talvez ter trazido uma mensagem secreta do outro deus de Lhasa, estava acocorado barganhando uma imagem de Buda sobre a lótus esculpida em ágata. Num outro canto vários mongóis e buriats estavam se amontoando em volta de um comerciante chinês que vendia taba-queiras lindamente pintadas de vidro, de cristal, de porcelana, de ametista, de jade, e de ágata; uma dessas tabaqueiras, de nefrite verde com estrias marrons bem regulares, estava esculpida

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em alto-relevo, representando um dragão enrolado em volta de um grupo de moças, e o comerciante queria por ela dez novilhos; o vermelho das sobrecasacas e dos pequenos bonés bordados de ouro dos buriats misturava-se ao preto das capas dos tártaros, que usavam seus gorros de veludo bem no topo da cabeça. Os Lamas representavam o fundo dessa tape-çaria colorida, com suas túnicas amarelas e vermelhas, as capas jogadas negligentemente por cima do ombro e a variedade dos chapéus, em forma de cogumelos amarelos, capacetes gregos antigos ou gorros frígios vermelhos. Eles estavam por toda parte, misturados à multidão, conversando calmamente e desfiando seus terços: faziam adivinhações, mas sobretudo procuravam os mongóis mais ricos para explorá-los, predizendo o futuro e fazendo mágicas. O serviço de informações político-religioso funcionava em ampla escala. Os mongóis que chegavam da Mongólia Interior viam-se logo cercados por uma rede invisível e eficiente de Lamas vigilantes.As bandeiras russas, chinesas e mongólicas flutuavam por cima dos prédios; uma pequena Ioga ostentava a bandeira estrelada; e sobre algumas tendas viam-se as fitas, os quadrados, os círculos, os triângulos dos príncipes e de outras pessoas que estavam morrendo de varíola ou de lepra. Tudo se misturava com cores bri-lhantes sob um sol ardente. Podia-se ver os soldados do Barão Ungern, de farda azul, os mongóis e os tibetanos de casacas vermelhas

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com dragonas amarelas, a suástica de Gengis Khã e as iniciais do Buda Encarnado, e soldados chineses de um destacamento do exército mongol. Depois da derrota do exército chinês, dois mil valentes soldados suplicaram ao Buda Encarnado para poderem se alistar em seu exército e juraram-lhe obediência. Eles foram aceitos, e arrolados em dois regimentos que usa-vam nas dragonas e nos bonés um dragão chinês prateado.Enquanto estávamos atravessando o mercado, chegou um grande automóvel buzinando. Nele estava o Barão Ungern com sua túnica mongol de seda amarela e um cinto azul, O carro rodava velozmente, porém ele me viu, mandou-me parar e desceu para convidar-me a acompanhá-lo até sua "yurta". A tenda era muito simples, e localizava-se no pátio de uma loja chinesa ("hong"). Seu quartel-general ficava em duas outras "yurtas" não muito distante, e seus criados estavam alojados numa casa chinesa.Lembrei ao barão sua promessa de ajudar-me a chegar a um porto do Pacífico. Ele me olhou com seus olhos brilhantes e respondeu-me em francês:— Meu trabalho aqui está chegando ao fim. Daqui a nove dias iniciar-se-á a guerra contra os bolcheviques, e entrarei na Transbaikalia. Gostaria que você ficasse aqui até aquele dia. Já faz anos que estou afastado da sociedade civilizada. Minha única companhia são os meus pensamentos, e gostaria muito de discuti-los com você. Vamos conversar juntos, e você poderá

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convencer-se de que eu não sou o "barão sedento de sangue", como me chamam meus amigos, nem o "austero avô" como me chamam meus soldados e meus oficiais, mas sou simplesmente um homem muito esforçado, e sobretudo um homem que sofreu muito.Ficou pensativo, e continuou:— Já pensei no que é mais conveniente para o seu grupo. Deixe-me arranjar tudo. Peço-lhe, porém, para ficar comigo durante esses nove dias.Que fazer numa circunstância dessas? Concordei. O barão apertou-me a mão e mandou servir o chá.

36Filhos de Cruzados e de Corsários

— Fale-me de você e de sua viagem — pediu.Contei-lhe tudo que me pareceu poder interessá-lo.Ele ouvia-me com muita atenção.— Agora quero falar-lhe a meu respeito, assim você saberá quem eu sou. O meu nome é circundado de tanto ódio e terror que ninguém consegue mais isolar a verdade da mentira, e a história da lenda. Quem sabe, qualquer dia você vai querer escrever um livro; então você recordará sua passagem pela Mongólia e sua estada na "yurta" do "general sanguinário".

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Fechou os olhos, e sem deixar de fumar, começou a falar nervosamente, sem completar as frases, como se o tempo fosse escasso.— A família Ungern von Sternberg é antiga; há, nas suas origens, uma mistura de alemães e húngaros, de hunos no tempo de Átila. Meus antepassados eram guerreiros e participaram de todas as guerras européias. Foram cruzados: um Ungern morreu perto das muralhas de Jerusalém, combatendo com a tropa de Ricardo Coração de Leão. Durante a trágica cruzada das crianças morreu outro, Raoul Ungern, que tinha apenas onze anos. Quando os mais valentes guerreiros do país foram enviados para as fronteiras orientais do império germânico para lutar contra os eslavos, no século XII, meu antepassado Arthur achava-se entre eles; ele era o Barão Halsa Ungern Sternberg. Os cavaleiros dessas comarcas fronteiriças formaram a ordem teutônica dos monges cavaleiros, e converteram ao cristianismo, pelo ferro e pelo fogo, as populações pagãs de lituanos, estonianos, livônios e eslavos. Sempre houve um membro da minha família na ordem dos Cavaleiros teutônicos, desde sua fundação. Quando a ordem foi desmantelada no Gruenewald, derrotada pelas tropas polonesas e lituanas, dois barões Ungern von Sternberg morreram no campo de batalha. Nossa família sempre teve espírito bélico, com tendência aos ascetismo e ao misticismo.Entre os séculos XVI e XVII vários barões Ungern von Sternberg moravam em seus castelos na

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Livônia e na Estônia. Suas aventuras inspiraram muitos contos e muitas lendas. Heinrich von Sternberg, cuja apelido era "o Machado", era um cavaleiro errante. Seu nome e sua lança eram conhecidos em todos os torneios da França, da Inglaterra, da Itália e da Espanha, e ele inspirava terror a todos os seus adversários. Morreu em Cadiz quando a espada de um cavaleiro abriu-lhe o crânio. O Barão Raoul Ungern era um bandido-cavaleiro que agia na região entre Riga e Reval. O castelo do Barão Pierre Ungern localizava-se na ilha de Dago, no mar Báltico, e daí ele saía, para as suas investidas de corsário, contra os navios mercantes.No começo do século XVIII o Barão Wilhelm Ungern ficou conhecido pelo pseudônimo de "irmão de Satã" pelas suas práticas de alquimia. Meu avô era corsário no Oceano Índico, e exigia um tributo dos navios mercantes ingleses. Durante muito tempo conseguiu fugir dos navios de guerra britânicos, mas foi finalmente capturado e entregue ao cônsul russo, que o mandou para a Rússia. Foi condenado ao desterro na Transbaikalia. Eu também sou oficial da Marinha, mas durante a guerra nipo-russa tive que abandonar minha profissão e agregar-me aos Cossacos do Zabaikal. Consagrei minha vida toda à guerra e ao estudo do budismo. Meu avô levara a doutrina budista da Índia: meu pai e eu aderimos a ela. Tentei fundar uma ordem militar budista na Transbaikalia para organizar uma luta implacável contra a depravação revolucionária.

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Calou-se por um momento, enquanto bebia várias xícaras de chá, forte e preto ao ponto de parecer café.— Ah, a depravação revolucionária! Quem se preocupa com ela, fora Bergson, o filósofo francês, e o sábio Tachi Lama no Tibete?O neto do corsário, que citava teorias e obras científicas, nomes de sábios e de escritores, a Bíblia e os livros budistas, continuou, misturando o idioma francês ao alemão, ao russo e ao inglês:— Nos livros budistas e nos antigos escritos cris-tãos encontram-se profecias importantes a respeito da época na qual deverá começar a guerra entre os espíritos maus e os espíritos bons. Então chegará a praga desconhecida que dominará o mundo, varrendo toda a civilização, calcando a moral e destruindo os povos. Sua arma é a revolução. Durante toda revolução, a inteligência criadora, auxiliada pela experiência do passado, será substituída pela força jovem e brutal do destruidor. Por isso as paixões vis e os baixos instintos dominarão. O homem se afastará do divino e do espiritual. Durante a guerra ficou provado que a Humanidade deve procurar ideais sempre mais elevados: mas foi justamente naquela época que surgiu a praga vaticinada pelo Cristo, pelo apóstolo São João, por Buda, pelos primeiros mártires cristãos, Dante, Leonardo da Vinci, Goethe e Dostoievsky. Essa maldição que apareceu estancou o progresso, barrando nosso caminho em direção ao divino. A revolução é uma doença contagiosa e a Europa prejudicou-se a si própria negociando com

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Moscou, como já tinha prejudicado as outras regiões do mundo. O Grande Espírito colocou em nossas vidas o Karma, que não conhece nem a cólera, nem o perdão. Ele regula nossa contabilidade, e o resultado será a fome, a des-truição, a morte da civilização, da glória e da honra, o fim das nações, o fim dos povos. Posso até vislumbrar esse horror, essa tétrica e louca destruição da humanidade.A porta da "yurta" abriu-se de repente: apareceu um oficial que bateu os calcanhares, ficando parado e rígido.— Por que você entrou sem pedir licença? — gri-tou muito aborrecido o general.— Excelência, nosso posto avançado na fronteira capturou uma patrulha inimiga e trouxe-a até aqui.O barão levantou-se bruscamente. Seus olhos cintilavam, e seu rosto achava-se contraído.— Traga-os todos aqui, em frente da minha "yurta"! — ordenou.A conversa inspirada, a voz envolvente, tudo per-tencia ao passado, tudo desaparecera após a ordem seca do comandante implacável. O barão colocou seu boné, apanhou a lança de bambu que sempre carregava consigo e saiu rapidamente. Segui-o. Em frente à tenda esta-vam seis soldados vermelhos, cercados por cossacos.O barão, parado, fitou-os alguns instantes. Podia-se ver no seu rosto o reflexo violento de seus pensamentos. Em seguida desviou o olhar, sentou-se na soleira da casa chinesa e ficou

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meditando longamente. Depois levantou-se, dirigindo-se para os prisioneiros, tocou leve-mente no ombro de cada prisioneiro com seu bambu:— Você à direita! Você à esquerda! — dizia ele, dividindo o grupo em duas partes, quatro soldados de um lado e dois do outro.— Revistem esses dois: devem ser comissários! — falou. Em seguida virou-se para os quatro:— Vocês são camponeses, e foram mobilizados pelos bolcheviques? — perguntou.— Sim, Excelência — gritaram os soldados, apa-vorados.— Muito bem. Apresentem-se ao comandante e digam-lhe que quero que ele aliste vocês no meu exército.Os outros dois realmente tinham passaportes de comissários do serviço político comunista. O general franziu o cenho e pronunciou vagarosamente a sentença:— Matem-nos a golpes de bambu.Dando as costas, entrou novamente na "yurta". Depois desse incidente nossa conversação tornou-se um tanto embaraçada e despedi-me do general.Vários oficiais vieram visitar a casa russa onde eu estava hospedado depois do jantar. Estávamos conversando animadamente quando ouviu-se uma buzina de automóvel, e os oficiais calaram-se.— O general está passando por aqui — disse um deles com voz alterada.

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Voltamos a conversar, mas paramos de novo quando um criado entrou correndo e anunciou:— O barão!Ele entrou e parou na soleira da porta. Estava começando a cair a noite e as lâmpadas ainda não estavam acesas. O barão, porém, reconheceu imediatamente todo mundo e, aproximando-se da dona da casa, beijou-lhe a mão. Cumprimentou a todos, com amabilidade, aceitou a xícara de chá oferecida e aproximou-se da mesa. Enfim falou:— Vim procurar seu hóspede — disse, inclinan-do-se para a dona da casa, e voltando-se para o meu lado perguntou:— Você teria vontade de dar um passeio no meu carro? Quero mostrar-lhe os arredores da cidade.Apanhei minha capa e, como era meu costume, peguei o revólver colocando-o num dos bolsos. O barão deu uma gargalhada:— Pode deixar, pode deixar! Aqui você está na maior segurança. Por outro lado, você devia lembrar a profecia do Hutuktu de Narabanchi: a Sorte estará sempre a seu lado.— Está bem, falei também rindo. Não esqueci a profecia. Mas não sei o que o Hutuktu estava na realidade chamando de Sorte. Poderia também ser a morte, depois de minha longa e aventurosa viagem, mas confesso que prefiro continuar. Realmente a morte não me atrai.Saímos. Um Fiat enorme estava à nossa espera com as lâmpadas acesas. O motorista sentado ao volante estava imóvel como uma estátua, com a mão na viseira até que acabamos de sentar.

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— Vamos à estação do telégrafo — falou o barão.O automóvel partiu rapidamente. A cidade conti-nuava, como antes, burburinhado com aquela multidão oriental. O espetáculo oferecia mais cavaleiros mongóis, buriats e tibetanos que passavam entre o fervilhar colorido do povo. Caravanas de camelos levantavam solenemente a cabeça à nossa passagem e as rodas de madeira das carretas mongóis rangiam. Tudo era iluminado brilhantemente pelas grandes lâmpadas a arco alimentadas pela central elétrica que o barão mandara construir logodepois de ocupar a cidade, junto com uma rede telefônica e uma estação de radiotelegrafia. Mandou também limpar e desinfetar a cidade que, provavelmente, não viu suas ruas varridas desde a época de Gengis Khã. Ele mandou ainda organizar um serviço de ônibus que ligava os bairros, mandou construir pontes sobre o Tola e sobre o Orkhon, editar um jornal, instalar um laboratório veterinário e um hospital, e reabriu as escolas. Em seguida encorajou o comércio, mandando enforcar sem piedade os soldados russos e mongóis que tinham saqueado as lojas chinesas.O comandante da praça mandara prender dois cossacos e um soldado mongol que roubaram aguardente numa loja chinesa, trouxe os culpados à presença do barão. Ele mandou que entrassem no carro, e fomos todos até a loja do chinês, a quem devolveu a aguardente roubada e depois ordenou que o mongol enforcasse um dos

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cossacos na porta da loja. Logo que cumpriu a tarefa, o mongol ouviu nova ordem:— Agora enforque o outro!O segundo cossaco nem tinha terminado de morrer quando o barão virou-se para o comandante, e ordenou secamente para enforcar o mongol ao lado dos dois cossacos. Pareceu-me que essa justiça sumária estava ganhando a aprovação de todo mundo, mas o comerciante chinês aproximou-se desesperado e suplicou:— General, barão! Suplico-lhe, tire esses homens da minha porta, ou ninguém mais vai querer entrar na minha loja!Em seguida passamos a toda velocidade pelo bairro comercial e, após atravessar o rio, chegamos ao bairro russo. Sobre a ponte achavam-se vários soldados russos e quatro moças mongóis, bastante bonitas. Os soldados fizeram continência, imóveis como estátuas, os olhos fixos no rosto do general. As moças, assustadas, começaram a correr, porém, depois, como contagiadas pela disciplina militar, pararam levando a mão aos seus altos penteados, prestando continência como seus companheiros. O barão olhou-me e deu uma gargalhada.— Viu como funciona a disciplina? Até as mu-lheres mongóis já obedecem.Em breve chegamos à planície. O carro disparava como uma flecha, e o vento soprando em nossa volta fazia esvoaçar nossas capas. Mas o barão, que estava sentado com os olhos fechados, dizia de tempo em tempo: "Mais depressa! Mais

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depressa!" Permanecemos calados durante algum tempo.— Ontem meu oficial de ordenança levou uma surra por ter entrado na minha "yurta" sem pedir licença e ter interrompido nossa conversa, disse ele abruptamente.— Você poderia continuar, agora — sugeri.— Você tem certeza que não vai se entediar? Muito bem, vou continuar minha história, não tenho muito a acrescentar, porém vai ser a parte mais interessante.— Já disse a você que era minha intenção fundar uma milícia budista na Rússia. Por quê? Para proteger a evolução da humanidade e lutar contra a revolução: estou convencido de que a evolução leva à divindade, enquanto a revolução só pode levar à bestialidade. Quanto trabalhei na Rússia! Na Rússia os camponeses são gente grosseira, iletrados, continuamente levados por acessos de cólera, odiando tudo e a todos sem nem saber porque. São desconfiados e materialistas; não possuem qualquer ideal. E os intelectuais vivem num idealismo imaginário que carece totalmente de realidade. Eles tendem a criticar tudo mas não possuem energia criadora. Eles não têm força de vontade; só sabem falar, falar, falar! Como os camponeses, também os intelectuais não gostam de nada e de ninguém. Seus sentimentos são completamente imaginários, seus pensamentos passam sem deixar vestígio, palavras vazias. Meus companheiros evidentemente começaram logo a transgredir o regulamento da ordem. Então

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ordenei que o celibato fosse obrigatório, assim como a abstenção total de contato com mulheres, dos confortos da vida e de tudo que é supérfluo, segundo os ditames da religião amarela, Para ajudar os russos a dominar seus instintos, mandei que eles consumissem álcool, haxixe e ópio em quantidades ilimitadas. Hoje eu mando enforcar os soldados que ingerem álcool; naquela época, porém, nós bebíamos quantidades incríveis, até contrairmos a "febre branca", até o "delirium tremens". Não consegui manter a ordem, mas agrupei à minha volta trezentos homens nos quais eu tinha instilado uma audácia extraordinária e uma ferocidade sem limites. Durante a guerra contra a Alemanha eles portaram-se como heróis, e tiveram a mesma atuação contra os bolcheviques. Restou apenas um pequeno grupo.— A estação do telégrafo, Excelência! — falou o motorista.— Pode entrar — ordenou o general.A poderosa estação estava no topo de uma colina. Tinha sido parcialmente destruída pelos chineses durante sua retirada, mas fora reconstruída graças a genialidade do exército de Ungern. O general tomou conhecimento dos telegramas e deixou que eu os visse. Vinham de Moscou, de Chita, de Vladivostok e de Pequim. As mensagens em código estavam marcadas sobre folhas amarelas, e o general enfiou-as no bolso, explicando:— Essas mensagens vem de nossos serviços de informações em Chita, Irkutsk, Kharbin e

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Vladivostok. Meus agentes são todos judeus, gente hábil e muito corajosa, e todos meus amigos pessoais. Tenho também um oficial judeu, Vulfovitch, que comanda minha ala direita. Ele é mais feroz que Satã e também inteligente e corajoso... Agora vamos correr como o vento.Partimos novamente a grande velocidade, atravessando a escuridão. Foi uma corrida louca. O carro sacolejava por cima das pedras, atravessando valetas, e passando por riachos estreitos. Parecia que o motorista só desviava das rochas mais avantajadas. Enquanto passávamos como furacão pela planície, eu notava pontos brilhantes que se acendiam e logo se apagavam.— Olhos de lobos — disse meu companheiro sorrindo. — Eles engordaram comendo a carne dos nossos e também dos inimigos — acrescentou calmamente, e voltou-se outra vez para o meu lado, para continuar sua declaração de fé:— Durante a guerra vimos como o exército russo estava sendo aos poucos corrompido; previmos que a Rússia trairia seus aliados e compreendemos os perigos que adviriam da revolução. Então para reagir contra tudo isso, planejamos reunir os povos mongóis que não olvidaram sua antiga fé, nem esqueram seus antigos costumes, para formar um único Estado asiático, composto de tribos autônomas, sob a soberania moral e jurídica da China, pátria da mais antiga e da mais evoluída civilização. O

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Estado compreenderia os chineses,, os mongóis, os tibetanos, os buriats, os kirguizes e os calmucos. O Estado devia ser material e moralmente poderoso a fim de poder agir como uma barreira contra a revolução e poder preservar cuidadosamente a filosofia e a política do respeito à pessoa, sendo esta uma célula daquele. Se a humanidade louca e corrupta con-tinua afrontando o espírito divino que está no coração dos homens, a derramar o sangue e a impedir a evolução moral, então esse Estado asiático tem por obrigação sustar com qualquer meio a marcha para a destruição e restabelecer a ordem, e uma paz que seja estável e dura-doura. Durante a guerra essas idéias se propagaram até entre os turcomanos, os kirguizes os buriats e os mongóis.— Pare! — gritou o barão.O carro parou com uma violenta freiada. O general saltou, convidando-me a segui-lo. Fomos andando pelo relvado. O barão estava inclinado como que à procura de uma pegada.— Ah, sim! — murmurou finalmente. — Ele já se foi...Estava observando-o, sem entender nada.— Aqui ficava a "yurta" de um rico mongol. Esse homem mantinha negócios com um comerciante russo chamado Noskoff. Esse Noskoff era um homem feroz e os mongóis apelidaram-no de "Satã". Quando alguém ficava devendo-lhe dinheiro, ele mandava prender os devedores ou mandava surrá-los por intermédio das au-toridades chinesas. Noskoff tinha arruinado o rico

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mongol, que perdeu toda sua fortuna e teve que fugir com a família a quarenta e cinco quilômetros daqui. Noskoff, todavia, foi atrás dele e confiscou o pouco gado e os cavalos que sobraram, deixando o mongol e sua família na miséria, destinados a passar fome. Quando conquistei Urga, o mongol foi procurar-me juntamente com mais trinta famílias que se encontravam nas mesmas condições, todas elas arruinadas por Noskoff. Eles pediam sua morte... Mandei enforcar Satã.O carro corria novamente pela planície, descre-vendo uma grande curva e o barão estava tecendo considerações sobre a vida asiática, com aquela sua voz rude e nervosa.— A Rússia traiu a França, a Inglaterra e a Amé-rica quando assinou o tratado de Brest-Litovsk, e com isso trouxe o caos. Naquela ocasião decidimos mobilizar a Ásia contra a Alemanha. Nossos enviados penetraram na Mongólia, no Tibete, no Turquestão e na China. Foi nessa mesma época que os bolcheviques iniciaram a matança dos oficiais russos; por esse motivo tivemos que abandonar nosso projeto pan-asiático, concentrando todo nosso esforço na guerra civil. Esperamos que mais tarde tivéssemos a possibilidade de acordar a Ásia in-teira, e devolver, com a sua ajuda, o reino de Deus e a paz ao mundo todo. Estou muito satisfeito de ter contribuído para essa obra, libertando a Mongólia.Ficou algum tempo calado, refletindo.

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— Alguns dos meus associados nessa obra não gostam de mim, pelo meu rigor e por aquilo que eles denominam de minhas atrocidades — acrescentou tristemente. — Eles parecem não ter ainda compreendido que não estamos apenas lutando contra um partido político, mas contra uma horda de assassinos, contra os destruidores da civilização contemporânea. Por que os italianos executam os anarquistas que jogam bombas? Por que então não me reconhecem o direito de livrar o mundo da corja que quer destruir a calma do povo? Eu, descendente de cavaleiros teutônicos, de cruzados e de corsários, só reconheço a morte como castigo adequado para os assassinos!... Podemos voltar! — gritou ao motorista.Meia hora mais tarde estávamos de volta entre as luzes elétricas de Urga.

37O Campo dos Mártires

Estávamos para entrar na cidade quando vimos um automóvel parado em frente de uma pequena casa.— O que é isso? — gritou o barão. Vamos ver já!Logo nosso carro estava ao lado do outro. A portada pequena casa abriu-se bruscamente e alguns oficiais saíram correndo, tentando esconder-se.— Parados! — bradou o general. — Entrem no-vamente.

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Eles entraram, e o general seguiu-os, apoiado no bambu. A porta permaneceu aberta, e eu podia presenciar e ouvir tudo.— Que falta de sorte — disse o motorista em voz baixa. — Nossos oficiais sabiam que o general ia sair comigo da cidade, e isso significa uma ausência mais ou menos prolongada. Eles quiseram se divertir um pouco, e agora vão levar uma surra.Podia ver um canto da mesa coberta de garrafas e latas de conservas. De um lado permaneciam sentadas duas jovens que se levantaram apressadamente quando o general entrou. Ouvia a voz rouca do barão, que pronunciava frases breves, secas e severas.— A pátria está morrendo... a vergonha vai re-cair sobre vocês... vocês não entendem... vocês não sentem nada... vinho e mulheres! Animais! Estúpidos!... Cento e cinqüenta golpes de bambu para cada um!Abaixou a voz, e continuou falando num mur-múrio:— As senhoras estão se dando conta da ruína de sua pátria? Não? Para vocês isso não tem importância. As senhoras não estão lembradas que tem maridos que estão na primeira linha e que talvez, a essa hora, estejam correndo perigo de morte? Vocês não são mulheres... Admiro as mulheres, porque seus sentimentos são mais fortes e mais profundos que os sentimentos dos homens: vocês, porém, não são mulheres... Estou avisando: se eu as encontrar mais uma vez assim, serão enforcadas!

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Aproximou-se do carro e acionou a buzina repeti-das vezes. Logo um grupo de cavaleiros mongóis chegou a galope.— Levem os homens até o comandante. Enviarei minhas ordens mais tarde.Ficamos em silêncio. O barão estava visivelmente nervoso, e fungava ruidosamente, acendendo um cigarro após o outro, e jogando-os depois de uma ou duas baforadas.— Você vai jantar comigo — falou.O outro convidado era chefe do Estado-Maior, um homem muito reservado e de poucas palavras, mas de uma delicadeza extrema. Os criados serviram um prato chinês quente, depois carne fria e, para sobremesa, uma compota de frutas da Califórnia, tudo regado pelo onipresente chá. Comemos tudo com pauzinhos chineses. O barão tinha uma expressão aborrecida.Com muito cuidado, comecei a levar a conversa para o lado dos oficiais culpados, esforçando-me para encontrar desculpas para sua conduta e considerando as circunstâncias realmente penosas nas quais eles estavam vivendo.— São uns corruptos. Eles perderam todos os bons sentimentos. Caíram no abismo — murmurava o general sem parar.O chefe do Estado-Maior falou também, no mesmo sentido que eu o tinha feito; finalmente o barão mandou-o telefonar ao comandante para que os soltasse.Na manhã seguinte estava passeando outra vez nas ruas da cidade, admirando-me pela sua animação. A energia do barão exigia uma

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atividade constante que ele impunha também a todos os seus colaboradores.Ele estava em toda parte, via tudo, mas nunca atrapalhava as atividades de seus subordinados. Todos estavam trabalhando.Naquela noite fui convidado para ir à casa do chefe do Estado-Maior, onde encontrei grande número de oficiais, todos inteligentes. Fiz uma narrativa sobre a minha viagem e estávamos todos conversando animadamente quando o Coronel Sepailoff entrou. Estava cantarolando. Todo mundo parou de falar e os oficiais começaram a retirar-se, um a um, dando as mais variadas desculpas. Sepailoff entregou alguns papéis ao chefe do Estado-Maior, e em seguida dirigiu-se a mim:— Essa noite vou mandar-lhe, para o jantar, um excelente patê de peixe e um creme de tomates.Quando saiu, nosso hospedeiro pôs as mãos à cabeça, num gesto de desespero:— Agora, depois da revolução, somos obrigados a colaborar com a pior corja!Alguns minutos depois, um soldado trouxe uma terrina e o patê de peixe mandados por Sepailoff. Enquanto o soldado estava colocando os pratos sobre a mesa, o chefe do Estado-Maior fez-me um sinal com os olhos, falando entre os dentes:— Olhe bem para o rosto dele.Quando o homem saiu, ele ficou de escuta até que os passos se afastaram.— Era o carrasco de Sepailoff, o tal que enforca e esgana os infelizes condenados à morte.

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Para minha grande surpresa, virou a terrina dei-xando sair a sopa no chão. Em seguida saiu da "yurta" e fez voar o paté além da cerca.— Os pratos foram mandados por Sepailofif. Pro-vavelmente eram muito saborosos, porém havia a possibilidade que estivessem envenenados. É muito perigoso comer e beber na casa de Sepailoff!Quando voltei para casa sentia-me bastante deprimido pelo que sucedera. Meu hospedeiro estava acordado ainda, e veio ao meu encontro com uma expressão assustada. Vi que também os meus amigos estavam presentes.— Graças a Deus! — gritou. — Você está bem?— O que foi que aconteceu? — perguntei.— Aconteceu que, logo que você saiu — respon-deu —, chegou aqui um soldado mandado por Sepailoff e carregou toda a sua bagagem, dizendo que você mandara buscá-la; sabíamos o significado disso: eles iriam revistar tudo e depois...Percebi num átimo o perigo que pairava sobre mim. Sepailoff podia esconder o que ele bem quisesse entre os meus pertences para justificar uma acusação. Meu velho companheiro, o agrônomo, e eu fomos rapidamente à casa de Sepailoff. Deixei meu companheiro na porta, e quando entrei, encontrei o mesmo soldado que me levara as iguarias para o jantar. Sepailoff recebeu-me na hora e, depois de ouvir meus enérgicos protestos, disse-me que devia haver qualquer engano e pediu-me para esperar um pouco. Depois de sua saída, passaram-se cinco

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minutos, dez minutos, mas ninguém aparecia. Bati à porta, ninguém atendeu. Decidi-me então a ir ver o barão e dirigi-me à saída. Ela estava trancada à chave. Quis abrir a outra porta, também estava trancada. Eu tinha caído numa armadilha. Estava a ponto de chamar meu amigo aos gritos, quando notei que havia um aparelho telefônico na parede. Chamei o Barão Ungern. Daí a alguns minutos ele apareceu.— O que foi que aconteceu? — perguntou com voz severa e ameaçadora. — Sem sequer aguardar a resposta, ele golpeou o coronel com seu bambu de forma tão violenta que o homem caiu ao chão.Saímos de lá e o general deu ordens para que trouxessem minha bagagem. Em seguida levou-me até sua "yurta".— Quero que de agora em diante você fique aqui — disse ele. — Estou muito satisfeito que se tenha verificado esse incidente, assim tenho toda a liberdade de dizer o que eu penso.Tomei coragem de fazer-lhe uma pergunta:— Posso contar-lhe tudo que vi e ouvi aqui?Ficou refletindo um pouco, e em seguida disse:— Dê-me seu caderno de anotações.Dei-lhe o caderno que continha alguns esboços de minha viagem, e escreveu estas palavras:"Após minha morte, Barão Ungem".— Tenho mais idade que você e é lógico pensar que morrerei antes — observei.Ele fechou os olhos e, inclinando a cabeça, mur-murou:

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— Cento e trinta dias... mais cento e trinta dias e tudo estará acabado. Em seguida... o nirvana. Estou cansado de tantas preocupações, de tanta miséria e tanto ódio!Ficamos calados durante algum tempo. Sabia que de agora em diante o Coronel Sepailoff seria meu inimigo mortal e que seria aconselhável sair de Urga o quanto antes. Eram duas horas da manha. O barão levantou-se de repente.— Vamos ver o grande e bom Buda — disse. Seus traços estavam contraídos, os olhos brilhavam e tinha um sorriso triste e amargo nos lábios. Ordenou que aprontassem o carro.Era assim que se vivia naquele campo de refugiados mártires, perseguidos pelas circunstâncias e arrastados para a morte, levados pelo ódio e o desprezo daquele descendente dos cavaleiros teutônicos. E ele mesmo, que estava martirizando-os, não conhecia nem um dia nem uma noite de paz e de descanso. As ambições que o consumiam eram envenenadas. Ele estava se torturando, resistindo apesar dos sofrimentos titânicos, consciente que cada dia que passava era um a menos, naquela curta corrente de cento e trinta elos que o estava arrastando para a morte.

38Na presença do Buda

Deixamos o carro à entrada do mosteiro e atravessamos um labirinto de ruazinhas

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estreitas, chegando em frente ao grande templo de Urga. As paredes tibetanas são encimadas por um pretensioso teto chinês. Na entrada havia uma única lâmpada. A pesada porta, orna-mentada de bronze e de aço, estava fechada. Quando o general bateu no enorme gongo de cobre que estava suspenso ao lado da porta, monjas assustados começaram a aparecer correndo de todas as direções. Quando viram o barão, prosternaram-se sem ousar levantar a cabeça.— De pé — ordenou — e levem-nos para dentro do templo!

A parte interna assemelhava-se a todos os outros templos de Lamas: viam-se os mesmos pendões coloridos com as orações inscritas, os mesmos símbolos e as mesmas imagens de santos; do forro pendiam as mesmas tiras de seda, e havia imagens de deuses e deusas. Aos lados do coro localizavam-se os assentos vermelhos dos Lamas. Sobre o altar, pequenas lâmpadas estavam acesas, fazendo brilhar os vasos e castiçais de ouro e de prata. Atrás do altar, uma pesada cortina de seda amarela estava repleta de inscrições tibetanas. Os Lamas puxaram a cortina. A grande estátua do Buda, sentado no seu lótus de ouro, apareceu-nos na luz instável das lamparinas. O rosto do deus era calmo e indiferente, mas uma luz suave parecia emanar dele. Aos lados havia milhares de pequenos budas que os fiéis tinham trazido como oferenda. O barão bateu no gongo para atrair a atenção do

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Grande Buda para suas orações, e jogou um punhado de moedas no grande prato de bronze. Em seguida, o descendente dos cruzados que tinha estudado todas as filosofias ocidentais rezou, cobrindo o rosto com as duas mãos postas. Ficou nessa posição durante dez minutos. Vi que um terço preto estava em seu pulso esquerdo. Finalmente saímos, e ele levou-me ao outro lado do mosteiro.— Não gosto muito desse templo — disse ele. — É um templo novo e foi construído quando o Buda Encarnado já tinha ficado cego. Não consigo ver no rosto daquele Buda dourado o sinal das lágrimas, da esperança, da necessidade e da gratidão do povo. O tempo foi muito pouco, e as preces ainda não deixaram sua marca. Vamos ver agora o velho santuário das profecias.A construção era muito menor, enegrecida pelos anos: parecia mais uma torre e o teto era uma redoma. As portas estavam abertas. Dos dois lados da porta encontravam-se rodas de orações que podiam ser devolvidas. Acima da porta via-se uma placa de cobre com os signos do zodíaco. No interior, os monges que salmodiavam as ladainhas sagradas nem levantaram os olhos quando entramos. O general chegou perto deles, dizendo: — Joguem os dados para ver quantos dias me restam.Os sacerdotes trouxeram duas taças repletas de dados, jogando-os sobre uma mesa baixa. O barão olhou os dados que rolavam, e em seguida ficou contando ao mesmo tempo do que eles:

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— Cento e trinta! Sempre cento e trinta! Chegou até o altar onde estava uma antiga estátua de Buda, que tinha sido trazida da Índia. Voltou a rezar. O céu estava clareando. Andamos a êsmo pelo mosteiro, vendo os templos e os santuários, o museu da escola de medicina, a torre dos astrólogos e o pátio onde os Bandi e os jovens Lamas, durante a manhã, praticavam a luta. Noutros lugares os Lamas exercitavam-se com arco e flexa. Alguns Lamas de grau mais elevado ofereceram-nos chá, carne de carneiro e cebolas selvagens.Quando voltei à "yurta", tentei dormir mas não consegui. As perguntas se alternavam na minha cabeça: "onde estou? Em que época estou vivendo"? Sem entender exatamente a relação, sentia confusamente que estava na presença invisível de uma grande idéia, de um plano gigantesco e de uma infinita miséria humana.Quando estávamos acabando de almoçar, o general mencionou que gostaria de apresentar-me ao Buda Encarnado. Fiquei entusiasmado pela proposta porque é realmente muito difícil conseguir uma audiência com o Buda Encarnado. Logo fomos com o carro e paramos perto da porta que se encontra no longo muro listado de branco e de vermelho que corre em volta do palácio do deus. Duzentos Lamas vestidos de amarelo e de vermelho chegaram precipitadamente para cumprimentar o general, o "Chiang Chun", murmurando respeitosamente: "Khã! deus da guerra"!

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Formando um cortejo solene, levaram-nos até uma sala espaçosa onde a luz só chegava filtrada. Pesadas portas esculpidas levavam ao pátio interno do palácio. No fundo da sala havia um estrado, e sobre o estrado um trono coberto de almofadas de seda amarela. O encosto era vermelho, emoldurado de madeira dourada. Biombos de seda amarela em molduras de ébano, delicadamente esculpidas estavam de ambos os lados do trono e ao longo das paredes corriam vitrinas cheias de objetos de toda espécie, vindos da China, do Japão, da Índia ou da Rússia. Entre eles notei um marquês e uma marquesa em porcelana de Sèvres de uma rara fineza.Oito nobres mongóis estavam sentados a uma mesa baixa em frente ao trono; o ancião cheio de dignidade, que estava presidindo, tinha um rosto inteligente e enérgico e grandes olhos penetrantes. Olhando para ele, lembrei-me daquelas estátuas autênticas em madeira de santos budistas, com os olhos feitos de pedras preciosas, que eu vira no museu imperial de Tóquio, na sala dedicada ao budismo, onde podem ser admiradas antigas estátuas de Amida, do Dainichi-Buda, da deusa Kwannon e do alegre Hotei.O ancião era o Hutuktu Jahantsi, presidente do conselho de ministros da Mongólia, conhecido e respeitado também além das fronteiras de seu país. Os outros personagens eram ministros, khãs e os príncipes de Khalkaa. Jahantsi Hutuktu convidou o barão a sentar-se ao lado dele e

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mandou buscar uma cadeira européia para mim. O barão então tomou a palavra e, por intermédio de um intérprete, anunciou ao conselho de minis-tros que tencionava deixar a Mongólia daí a alguns dias. Implorou-os para proteger a liberdade que tinha sido reconquistada pelo país dos sucessores de Gengis Khã. Lembrou que a alma sempre viva de Gengis Khã estava exigindo que os mongóis voltassem a ser um povo poderoso que reunisse novamente num único Estado asiático todas as nações que ele já tinha dominado.O general levantou-se, sendo imitado pelos outros, e despediu-se de cada um pessoalmente, com muita solenidade. Inclinou-se na frente de Jahantsi Lama, enquanto o Hutuktu dava-lhe sua bênção com a imposição das mãos. Saindo da Câmara do Conselho, penetramos na casa de estilo russo que serve de residência particular do Buda Encarnado. A casa estava circundada por uma multidão de Lamas amarelos e vermelhos, criados, conselheiros, funcionários, adivinhos, médicos e favoritos. Notei um comprido cordão vermelho que passava pela porta e cuja extremidade estava jogada além do muro, ao lado de uma grade. Da multidão de romeiros que estavam amontoados do lado de fora vinha uma longa fila que chegava, arrastando-se de joelhos, para poder tocar a extremidade da corda pendurada do lado de fora. Eles davam aos monges um hatyk ou uma moeda de prata. Tocando aquele cordão vermelho os romeiros en-travam em contato com o próprio Buda

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Encarnado, já que a outra extremidade estava nas mãos do Bogdo. As bênçãos são transmitidas por intermédio daquele cabo feito de pêlo de camelo e crina de cavalo e todo mongol que já tocou o cordão recebe uma fita vermelha que ele passa a usar em volta do pescoço, para provar que já fez a romaria.Tinha ouvido falar muito a respeito de Bogdo Khã antes de ter a ocasião de vê-lo. Ouvi falar de sua tendência para o álcool, o que lhe ocasionara a cegueira, de seu gesto pela cultura ocidental e de sua mulher que costumava receber, substituindo-o, muitas delegações e muitos enviados especiais.A sala que servia de gabinete de trabalho ao Bogdo era de uma simplicidade austera. Dois Lamas ficavam nela, dia e noite, para vigiar o cofre onde estavam guardado o grande selo. Sobre uma mesa baixa de simples madeira laqueada achava-se o necessário para escrever junto a um envelope de seda amarela que continha os selos enviados pelo Dalai Lama e pelo governo chinês. Ao lado, uma poltrona baixa e um fogão de lareira em bronze. Nas paredes vi inscrições mongóis e tibetanas e a suástica. Atrás da poltrona via-se um pequeno altar com uma estátua dourada do Buda e duas lamparinas acesas. No chão havia um grande e espesso tapete amarelo.Quando entramos, os dois Lamas secretários estavam sozinhos no aposento. O Buda Encarnado estava no pequeno santuário ao lado, onde ninguém podia entrar além do Bogdo Khã e

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o Lama Kampo Gelong, entre cujas funções está a manutenção do santuário e a assistência ao Buda Encarnado durante suas solitárias orações.Um dos secretários disse que naquela manhã o Bogdo apresentava-se extremamente agitado. Tinha entrado no santuário ao meio-dia. Durante muito tempo foi possível ouvir a voz do chefe da religião enquanto rezava fervorosamente em voz alta. Depois ouviu-se claramente outra voz desconhecida. No santuário, o Buda da terra e o Buda do céu estavam conversando. Pelo menos, foi o que disseram aos Lamas.— Vamos esperar um pouco — falou o barão. — Talvez ele não demore a sair.Enquanto esperávamos, o barão falou-me de Jahantsi Lama e explicou que nos seus momentos de calma ele era um homem perfeitamente normal, enquanto que, quando estava preocupado e concentrado em profundas meditações, um nimbo aparecia sobre sua cabeça.Passada uma meia hora, os Lamas secretários começaram a mostrar uma expressão assustada, ficando atentos a qualquer ruído que chegasse do lado do santuário. Depois prosternaram-se, ficando com o rosto rente ao chão. A porta abriu-se lentamente e entrou o imperador da Mongólia, o Buda Encarnado, Sua Santidade Bogdo Djebstung Hutuktu, Khã da Mongólia Exterior. Era um ancião encorpado e seu rosto barbeado lembrava muito o dos cardeais de Roma. Trazia uma túnica mongol de seda amarela com um cinto preto. Os olhos eram grandes e muito

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abertos. Em seu rosto havia uma expressão de susto misturada à admiração. Deixou-se cair na poltrona e murmurou: "Escrevam"!Um dos secretários apanhou uma folha de papel e uma caneta chinesa e o Bogdo começou a ditar sua visão, que era muito complicada e longe de ser clara. Terminou com essas palavras:— Eis o que eu, Bogdo Hutuktu Khã, vi enquanto estava falando com o grande e sábio Buda que estava acompanhado pelos bons e maus espíritos. Sábios Lamas, Hutuktus, Kanpos, Marambas e santos Ghe- ghens, dêem uma resposta para essa visão.Enfim passou um lenço na testa suada e perguntou quem se achava presente.— O Khã Chiang Chun, Barão Ungern, acom-panhado por um estrangeiro — respondeu um dos Lamas secretários que ainda estava de joelhos.O general apresentou-me ao Bogdo que inclinou a cabeça em sinal de saudação. Em seguida eles começaram a conversar em voz baixa. Pela porta aberta eu via parte do santuário. Tinha uma grande mesa coberta de livros, alguns fechados e outros abertos, e mais livros estavam espalhados pelo chão; um braseiro estava fume-gando e havia uma cesta com omoplatas e entranhas de carneiro para predição do futuro.Passado algum tempo o barão se levantou inclinando-se à frente do Bogdo. O tibetano colocou suas mãos na cabeça do barão, murmurando uma oração. Em seguida tirou do

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próprio pescoço um ícone pesado e colocou em volta do pescoço do barão.— Você não vai morrer; você encarnará logo num ente mais elevado. Lembre-se disso, deus da guerra encarnado, Khã da Mongólia agradecida!Entendi que o Buda Encarnado estava dando ao "'general sanguinário" sua bênção antes da morte.Nos dias seguintes, por três vezes mais tive oportunidade de fazer uma visita ao Buda Encarnado em companhia de um amigo do Bogdo, o príncipe buriat Djam Bolon. Vou relatar essas visitas na quarta parte do livro. O Barão Ungern preocupou-se em organizar a viagem, minha e de meus companheiros, até o litoral do Pacífico. Tínhamos que chegar até a Manchúria setentrional a lombo de camelo, já que essa rota evitaria qualquer discussão com as autoridades chinesas que não mostravam muito boa vontade em suas relações internacionais com a Polônia. De Uliassutai eu já tinha mandado uma carta à legação francesa em Pequim, e tinha em meu poder uma carta da Câmara de Comércio chinesa com expressões de agradecimento por ter preservado a cidade de um "pogrom". Chegando à Manchúria, era minha intenção ir até a mais próxima estação de estrada de ferro, na China Oriental, para alcançar Pequim. O homem de negócios dinamarqueses E. V. Olufsen ia viajar comigo, e também um sábio Lama, Turgut, que se dirigia para a China.Jamais esquecerei a noite entre 19 e 20 de maio de 1921. Terminado o jantar, o barão convidou-

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me a acompanhá-lo a casa de Djam Bolon, que eu conhecera no dia seguinte à minha chegada a Urga. Sua "yurta" estava sobre um estrado, dentro de um recinto atrás do bairro russo. Dois oficiais buriats vieram ao nosso encontro e nos deixaram entrar. Djam Bolon era um homem de meia idade, alto e magro, de rosto alongado. Antes da grande guerra ele era um simples pastor, mas tinha combatido contra os alemães, e depois contra os bolcheviques ao lado do Barão Ungern. Ele era um grão-duque dos buriats, sucessor dos antigos reis buriats que foram destronados pelos russos, quando estes ten-taram consolidar a independência do povo buriat. Os criados trouxeram pratos cheios de nozes, de tâmaras e de queijo, e tomamos chá.— Essa é a última noite, Djam Bolon — disse o barão. — E você prometeu...— Lembro-me da promessa — respondeu o Bu-riat, — e tudo está preparado.Durante muito tempo fiquei ouvindo as recorda-ções de ambos a respeito de combates passados e de amigos desaparecidos. Quando Djam Bolon levantou-se e saiu, o relógio de pêndulo estava batendo meia-noite.— Quero que leiam minha sorte mais uma vez, falou o barão, como para justificar-se. Preciso saber, para o bem de nossa causa. É cedo demais para eu morrer...Djam Bolon voltou acompanhado de uma mulher de meia idade, de estatura baixa, que se sentou em frente ao fogo à maneira oriental. Seu rosto era mais branco, mais magro e mais alongado

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que os rostos dos mongóis; seus olhos eram muito pretos e o olhar penetrante. Sua roupa lembrava o traje das ciganas. Soube em seguida que ela era uma profetisa e vidente de muita fama entre os buriats, filha de uma cigana e de um buriat. Muito lentamente ela tirou um saquinho de seu cinto, e retirou dele pequenos ossos de aves e um punhado de ervas secas. Começou a murmurar palavras incompreensíveis, jogando de vez em quando um punhado de ervas no fogo. Na tenda expandiu-se um cheiro aromático. Sentia meu coração bater fortemente e tinha a impressão de uma leve vertigem. Após queimar todas as ervas, a profetisa colocou os ossinhos das aves sobre as brasas, virando-as repetidamente com pinças de bronze. Como os ossos estavam enegrecendo, ela os examinava cuidadosamente e, subitamente, seu rosto denotou uma expressão de medo e de sofrimento. Arrancou convulsivamente o pano que lhe envolvia a cabeça e começou a pronunciar frases breves e rápidas enquanto era sacudida por espasmos.— Eu vejo... vejo o deus da guerra... Sua vida está se extinguindo rapidamente... atrás disso há uma sombra... sombra negra como a noite... sombra... Cento e trinta passos... além disso as trevas... o nada... não vejo nada... o deus da guerra desapareceu...O barão baixou a cabeça. A mulher caiu de costas, os dois braços abertos. Ela perdera os sentidos, mas pareceu-me que uma de suas pupilas estivesse brilhando por baixo das

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pestanas abaixadas. Dois buriats levaram a mulher desacordada, e um longo silêncio tombou na "yurta" do príncipe. O barão levantou-se, afinal, e começou a andar em volta do fogo, murmurando para si mesmo. Quando parou, falou rapidamente.— Vou morrer. Vou morrer mesmo... Mas não faz mal, não faz mal. Nossa causa está firmemente estabelecida e não sucumbirá. Sei como ela se desenvolverá. As tribos dos sucessores de Gengis KM estão despertas. Ninguém poderá apagar essa chama no coração dos mongóis. Haverá um grande Estado na Ásia, desde o Oceano Pacífico e o Oceano Indico até o Volga. A religião do Buda se expandirá ao norte e a oeste. Essa será a vitória do espírito. Aparecerá um chefe, um conquistador, mais forte que Gengis Khã e que Ugadai. Ele será mais habilidoso e terá mais compaixão do sultão Baber e manterá o poder entre suas mãos até que o Rei do Mundo saia de sua capital subterrânea. Por quê? Por que não poderei estar nas primeiras fileiras entre os guerreiros do budismo? Por que Karma decidiu dessa forma? Mas assim deve ser. A Rússia deve primeiramente purificar com o sangue e com a morte o insulto da revolução: todos aqueles que aceitarem o comunismo terão que desaparecer com suas famílias, para que não haja nem descendentes!O barão levantou as mãos por cima da cabeça, e acenou repetidamente como se estivesse dando ordens a algum ente invisível.O dia estava clareando.

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— Meu tempo chegou — disse o general. — Breve vou sair de Urga.Apertou-nos as mãos rápida e energicamente, e falou:— Adeus para sempre! Minha morte será atroz, mas nunca mais o mundo vai ver o terror e o sangue correndo, como o verá agora.A porta da "yurta" fechou-se com violência. O general tinha saído. Nunca mais o vi.— Preciso ir também, porque vou sair de Urga hoje mesmo.— Eu sei — respondeu o príncipe — mas o barão quis que você ficasse aqui comigo por alguma razão. Vou dar-lhe um quarto companheiro: o Ministro da Guerra da Mongólia. Vocês irão juntos. É necessário, para seu próprio interesse.Djam Bolon pronunciou as últimas palavras muito calmamente, destacando cada uma delas. Não fiz nenhuma pergunta: já estava acostumado aos mistérios dessa terra onde reinam os bons e os maus espíritos.

39O homem com a cabeça em forma de sela

Tomei chá na "yurta" de Djam Bolon e em seguida voltei para a minha. Turgut estava à minha espera.— O Ministro da Guerra viajará conosco — falou ele em voz baixa. — É necessário.— Muito bem, falei e saí para encontrar-me com Olufsen e dizer a ele que se aprontasse. Mas

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Olufsen, para minha grande surpresa, anunciou-me que precisava ficar mais alguns dias em Urga. Ele não poderia ter tomado pior decisão, porque um mês mais tarde, Sepailoff, que depois da partida do Barão Ungern, estava comandando a praça de Urga, mencionou num relatório que Olufsen tinha sido morto. O Ministro da Guerra, um mongol jovem e forte, juntou-se à nossa caravana. Quando já estávamos a nove quilômetros da cidade notamos que um carro nos seguia. O Lama teve um visível arrepio e olhou-me espantado. Estava sentindo a atmosfera de perigo que eu já conhecia muito bem, e abrindo a guarda, descobri a coronha de meu revólver, destravando-o.O carro alcançou-nos rapidamente e parou ao lado da caravana. Sepailoff cumprimentou-nos efusivamente e perguntou:— Vocês trocam seus cavalos em Khazahuduck? A estrada que atravessa a colina em frente leva lá? Não conheço o caminho e preciso alcançar um mensageiro que foi para aquela localidade.O Ministro da Guerra explicou que estaríamos em Khazahuduck naquela mesma noite, e deu a Sepailoff todas as instruções para que ele pudesse encontrar o caminho. O automóvel afastou-se em grande velocidade e quando vimos que já tinha ultrapassado o topo da colina, o Ministro da Guerra ordenou que um dos mon-góis fosse à frente a fim de ver se ele não estava parado do outro lado. O mongol chicoteou o cavalo e saiu a galope. Seguimos lentamente.

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— O que há afinal? — perguntei. — Você não quer explicar-me?O Ministro então me disse que Djam Bolon tinha sido informado na véspera que Sepailoff estava planejando alcançar-me durante a viagem e matar-me. Ele estava cismado de que, por minha causa, não estivesse mais gozando do favor do barão. Djam Bolon avisou o Barão Ungern, que logo organizou a caravana, para proteger-me. Entretanto o mongol estava voltando com a notícia de que o automóvel tinha desaparecido.— E agora — disse o Ministro — iremos por um caminho totalmente diferente. Vamos deixá-lo esperando inutilmente em Khazahuduck.Desviamos para o norte em direção de Undur Dobo e passamos a noite no acampamento de um príncipe da região. Despedimo-nos do Ministro, recebemos cavalos maravilhosos, e fomos continuando nossa viagem para leste, deixando atrás de nós o "homem com a cabeça em forma de sela", aquele mesmo indicado pelo velho adivinho de Van Kure, que me avisara para desconfiar dele.Chegamos à primeira estação da estrada de ferro oriental chinesa após doze dias de viagem, sem que tivesse acontecido nada de especial. De lá, dirigi-me a Pequim.No moderno conforto do hotel de Pequim eu estava me libertando de todos os meus atributos de viajante, de caçador e de guerreiro. Não conseguia, todavia, libertar-me do fascínio misterioso dos nove dias passados em Urga, onde tinha provado, diariamente, a companhia

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do Barão Ungern, o "deus da guerra encarnado". Os jornais relatavam a marcha sangrenta do barão através da Transbaikalia e traziam-me continuamente a recordação daqueles dias. Ainda hoje, a mais de sete meses de distância, continuo lembrando aqueles dias de loucura, inspiração e ódio.As profecias se realizaram. Após mais ou menos cento e trinta dias, o barão Ungern foi capturado pelos bolcheviques por traição de seus próprios oficiais, e foi executado no fim de setembro.O Barão Ungern von Sternberg... Passou pela Ásia central como o furacão sangrento do Karma vingador. O que sobrou dele? A severa ordem do dia endereçada aos seus soldados e que se encerrava com as palavras da revelação de São João:"Que ninguém pare a vingança que atingirá o corruptor e o assassino da alma do povo russo. A revolução deve ser arrancada do mundo. A revelação de São João já nos preveniu contra ela com essas palavras: "E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlate, ornamentada de ouro, pedras preciosas e pérolas; ela segurava na mão uma taça de ouro cheia das abominações e da imundície de suas impundicícias. E na sua testa estava escrito esse nome misterioso: a grande Babilônia, a mãe das impudicícias e das abominações da terra. Eu vi essa mulher ébria do sangue dos santos e do sangue dos mártires de Jesus." É um documento humano, um documento da tragédia russa e talvez da tragédia da humanidade.

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Sobrou mais alguma coisa, talvez até mais im-portante.Nas "yurtas" mongólicas, perto de seus fogos, os pastores buriats, mongóis djungars, kirguizes, calmucos e tibetanos narram a lenda desse filho de cruzados e de corsários."Um guerreiro branco veio do norte e chamou os mongóis, convidando-os a quebrar as correntes de sua servidão. As correntes caíram em cima da nossa terra libertada. O guerreiro branco era Gengis Khã reencarnado e anunciou a vinda do maior de todos os mongóis que espalhará a bela fé de Buda, a glória e o poderio dos descendentes de Gengis, de Ugadai e de Kublai Khã. Esse tempo virá!"A Ásia está desperta e seus filhos estão pronun-ciando palavras audaciosas. Pela paz do mundo seria recomendável que eles se mostrassem seguidores do sábio Ugadai e do sultão Baber, em vez de deixar-se levar pelo mau espírito de Tamerlão, o Destruidor.

O BUDA ENCARNADO

40No Bem-Aventurado Jardim das Mil

Beatitudes

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O guardião do Misterioso e do Desconhecido vive na Mongólia, terra dos milagres e dos mistérios: É ele o Buda Encarnado, Sua Santidade Djebtsung Damba Hutuktu Khã, Bogdo Gheghen, pontífice de Ta Kure. Ele é a encarnação do Buda imortal, o representante da linhagem ininterrupta dos soberanos espirituais que estão reinando desde 1670, que se transmitem o espírito sempre mais aperfeiçoado de Buda Amitabba, junto a Chan-ra-zi, o Espírito Misericordioso. Nele se resume tudo, o mito do sol e o fascínio dos crimes misteriosos do Himalaia, as histórias dos pagodes da Índia, a majestade austera dos conquistadores mongóis, imperadores da Ásia inteira, as lendas antigas e misteriosas dos sábios chineses; o pensamento Brâmane; a vida austera dos monges da Ordem Virtuosa; a vingança dos cavaleiros eternamente errantes, os Olets com seus Khãs, Batur Hun Taigi e Gushi; a orgulhosa herança de Gengis Khã e Kublai Khã; a psicologia clerical e reacionária dos Lamas; o mistério dos reis tibetanos, começando por Srong-Tsang Gampo e a crueldade implacável da seita amarela de Paspa. Toda a história misteriosa da Ásia, da Mongólia, do Pamir do Himalaia, da Mesopotâmia, da Pérsia e da China, cerca o Deus Encarnado de Urga. Por isso ninguém deve admirar-se se o seu nome é venerado ao longo do rio Volga, na Sibéria na Arábia, entre o Tigre e o Eufrates, na Indochina ou no litoral do Oceano Ártico.Durante minha estada em Urga tive ocasião de visitar, por várias vezes, a residência do Buda

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Encarnado; conversei com ele e observei seu modo de viver. Fiquei ouvindo durante horas enquanto os sábios Marambas me falavam dele. Ouvi-o lendo horóscopos, ouvi suas previsões, consultei seu arquivo de livros antigos, os manuscritos das previsões de todos os Bogdo Khãs. Os Lamas falaram comigo francamente, e sem reservas, pois a carta do Hutuktu de Narabanchi recomendou-me e adquiri sua confiança.A personalidade do Buda Encarnado apresenta o mesmo dualismo que pode ser encontrado em todo o lamaísmo. Apesar de sua inteligência penetrante e de sua energia, ele é presa do alcoolismo que o levou à cegueira. Quando ficou cego, os Lamas abandonaram-se ao mais profundo desespero. Alguns achavam que era necessário envenená-lo para poder por no seu lugar um outro Buda Encarnado; outros achavam que precisava considerar o grande ascendente do pontífice sobre os mongóis e os outros adeptos da religião amarela. Decidiram então construir um grande templo, com uma estátua de Buda gigantesca, para aplacar os deuses. A construção do templo não devolveu a vista ao Bogdo, porém deu-lhe tempo e ocasião de apressar a partida para o outro mundo daqueles Lamas que tinham dado prova de um radicalismo excessivo na tentativa de resolver o problema de sua cegueira.Ele nunca pára de meditar a respeito da causa da Igreja e da Mongólia, e ao mesmo tempo presta atenção a bagatelas sem importância. Está

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interessado na artilharia. Um oficial russo aposentado deu-lhe de presente dois velhos canhões, e recebeu em retribuição o título de Tumbalir Hun, "príncipe querido do meu coração".Nos dias de festa há tiros de canhão, para maior alegria do venerável cego. No palácio do deus havia automóveis, gramofones, telefones, cristais, porcelanas, quadros, perfumes, instrumentos musicais, animais e aves raras: elefantes, ursos do Himalaia, macacos, cobras e papagaios da Índia, mas tudo isso tinha acabado por cansá-lo, permanecendo guardado e esquecido.Os romeiros vão à Urga, e chegam também as oferendas de todas as partes do mundo lamaísta e budista. O tesoureiro do palácio, o Honroso Balma Dorji, mostrou-me um dia o grande salão onde permaneceram guardados os presentes oferecidos ao Buda. É um museu sem igual de objetos preciosos. Encontrei ali peças raras que não são encontradas em nenhum museu da Europa. O tesoureiro abriu a fechadura de prata de uma vitrina e disse:— Aqui estão as pepitas de ouro fino de Bei Kem; zibelinas pretas de Kemchik; espinheiros milagrosos de cervo; uma caixa enviada pelos Orochos, cheia de preciosas raízes de ginseng e de almíscar perfumado e um pedaço de âmbar que chegou do litoral do mar Glacial e que pesa cento e vinte e quatro "lans" (4,5 quilos mais ou menos). Vêem-se pedras preciosas das índias e marfim esculpido da China.

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Mostrou-me tudo que havia no museu com um prazer manifesto. O museu era realmente maravilhoso. À frente dos meus olhos passaram peles raras de castor branco, de zibelinas pretas, de raposas brancas, azuis e negras, de panteras negras; pequenas caixas de tartaruga, maravilhosamente esculpidas, dentro das quais havia "hatyks" de quinze a vinte metros de comprimento de seda da Índia tão fina que parecia teia de aranha; pequenas bolsas feitas de fios de prata e salpicadas de pérolas, presente de rajás da Índia; anéis com rubis e safiras da Índia e da China, grandes pedaços de jade, diamantes brutos; presas de marfim encrustadas em ouro, pérolas e pedras preciosas; costumes bordados em ouro e em prata; presas de narval esculpidas em baixo-relevo por artistas primitivos do litoral do mar de Behring; e muito mais coisas que esqueci de mencionar. Numa outra pequena sala localizavam-se as vitrinas que continham somente estátuas de Buda, de ouro, de prata, de bronze, de marfim, coral, nácar ou madeiras preciosas, coloridas e perfumadas.— Você sabe que quando os conquistadores invadem os países onde são honrados os deuses, eles quebram suas imagens e as derrubam. Aconteceu também trezentos anos atrás quando os calmucos invadiram o Tibete e, em 1900, quando as tropas européias saquearam Pequim. Você sabe qual a razão disso? Pegue uma dessas estátuas e examine-a.

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Apanhei a mais próxima, um Buda de madeira, e comecei a examiná-la. No interior da estátua devia estar algo solto que fazia ruído quando eu a agitava.— Entendo agora? — perguntou o Lama. — São pedras preciosas ou pepitas de ouro, as vísceras dos deuses. Por isso os conquistadores quebram logo as estátuas dos deuses. Muitas das mais conhecida pedras preciosas provêm do interior de estátuas de deuses da índia, da Babilônia e da China.Havia também uma biblioteca com muitos salões, e os manuscritos e os volumes de diferentes épocas e em diferentes idiomas, tratando dos assuntos mais variados, enfileiravam-se nas prateleiras. Alguns, muito antigos, caem aos pedaços e os Lamas cobrem-nos com uma solução que gelatiniza as sobras de forma que sejam protegidas contra a ação do tempo; vi tabletes de saibro cobertos de letras cuneiformes, que com certeza vinham da Babilônia; livros hindus, chineses e tibetanos ao lado de livros mongóis; volumes sobre a pura doutrina budista antiga; obras dos "bonés vermelhos" ou Lamas corruptos; obras sobre o budismo amarelo, ou lamaísta; livros de tradições, de lendas e parábolas. Grupo de Lamas estavam lendo, estudando e copiando todos aqueles volumes, para poder propagar a sabedoria antiga entre os seus sucessores.Existe uma sala especial, reservada aos livros misteriosos que magia, às biografias e às obras dos trinta e um Budas Encarnados. As bulas do

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Dalai Lama, do pontífice de Tashi Lumpo, do Hutuktu de Utai na China, do Pandita Gheghen de Dolo Nor na Mongólia Interior e dos cem sábios chineses. Somente o Bogdo Hutuktu e o Marambo Ta-Rimpo-Cha podem penetrar neste santuário das ciências misteriosas. As chaves são conservadas num cofre especial junto aos selos do Buda Encarnado e ao anel de rubi de Gengis Khã, ornado de uma suástica no gabinete de trabalho do Gogdo.Cinco mil Lamas estão sempre às ordens de Sua Santidade. Eles estão enquadrados numa hierarquia complicada que vai do simples criado até conselheiro do deus e membro do governo. Os quatro Khãs da Mongólia e os maiores príncipes estão entre esses conselheiros.Existem, entre os Lamas, três categorias especialmente interessantes, e o Buda Encarnado falou-me delas durante uma de minhas visitas em companhia de Djam Bolon.O deus confessou-se muito aborrecido pela vida suntuosa e desordenada de muitos Lamas, porque ela provoca o desaparecimento de adivinhos e profetas em suas fileiras:Se os mosteiros de Jahantsi e Narabanchi não tivessem conservado suas austeras normas de vida, Ta Kure hoje estaria sem adivinhos e profetas. Burum Abaga Nar, Dorchiul-Jurdock e os outros santos Lamas que tinham a faculdade de perceber o que está oculto aos homens comuns, desapareceram com a bênção de deuses.Esta categoria de Lamas é muito valiosa, porque cada vez que um importante personagem visita

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os mosteiros de Urga, sem que ele o perceba, ele é visto pelo Lama Tzuren (adivinho) o qual depois estuda seu destino. O Bogdo Hutuktu é imediatamente avisado, e tendo todas as informações, ele sabe como tratar o visitante e que atitude tomar para com ele. Os Tzuren são na sua maioria uns velhinhos ressequidos e esgotados, que vivem na mais severa ascese. Mas vi também alguns que eram moços, quase garotos. Eram os Hubilgans, os deuses encarnados, os futuros Hutuktus e gheghens dos vários mosteiros mongóis.Na segunda categoria importante estão os médicos ou "Ta Lama". Eles estudam o efeito das plantas e de certos produtos animais sobre os homens, conservam os remédios do Tibete, estudam cuidadosamente a anatomia, mas não praticam a vivissecção. Eles tem uma habilidade extrema para consertar fraturas, são excelentes massagistas e sobretudo são notáveis hipnotizadores e magnetizadores.A terceira classe compreende médicos de um grau mais elevado, e na sua maioria eles são tibetanos ou calmucos: são os envenenadores. Eles poderiam também ser chamados doutores em medicina política. Vivem afastados dos outros e representam uma grande arma silenciosa nas mãos do Buda Encarnado. Disseram que muitos entre eles são mudos. Eu vi um médico desse tipo — foi o mesmo que envenenou o médico chinês mandado pelo imperador de Pequim para envenenar o Buda Encarnado. Era um velhinho de cabelos brancos, o rosto marcado por rugas

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profundas, com uma pequena barba branca, e olhos vivos que pareciam eternamente procurar algo em volta dele. Quando ele chega num mos-teiro, o "deus" da região deixa de comer e de beber qualquer coisa, tanto é o terror que todo mundo tem desse Locuste mongol. Mas as precauções são inúteis, porque um boné, uma camisa, as botas podem ser envenenadas, um terço, uma rédea, os livros ou qualquer objeto religioso pode ser embebido de uma solução tóxica e assim cumprir o que Bogdo Khã planejou.A mais sincera lealdade religiosa envolve o pon-tífice cego. Todo mundo prosterna-se à sua frente, tocando o chão com o rosto. Os Khãs e os Hutuktus só se aproximam dele de joelhos. Em volta dele tudo é sombrio e repleto de antigüidade oriental. Mas o ancião cego e alcoolizado que ouve uma música banal em seu gramofone, ou que distribui choques elétricos com seu dínamo aos seus criados; o tirano feroz que manda envenenar seus inimigos políticos, esse Lama que mantém seu povo nas trevas enganando-o com falsas profecias é, apesar de tudo, um homem diferente dos outros.Um dia estávamos sentados no gabinete de tra-balho do Bogdo e o príncipe Djam Bolon estava traduzindo para ele o que eu estava contando da grande guerra. O ancião estava muito interessado. Porém, de repente, arregalou os olhos e começou a prestar atenção aos barulhos que nos chegavam do lado externo. Seu rosto expressava a veneração, o medo e a esperança.

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"Os deuses estão me chamando" — disse ele, e, levantando-se, foi lentamente até seu santuário particular onde ajoelhou-se, e imóvel como uma estátua, ficou rezando em voz alta durante duas horas. A oração é mais uma conversa com o deus invisível, debatendo as questões às quais ele mesmo responde. Saiu do santuário, pálido e esgotado, porém radiante. Foi uma de suas orações pessoais. Durante ó serviço religioso no templo ele não participa das orações, porque então ele é o "deus". Sentado sobre seu trono, é solenemente levado para dentro do templo e colocado em cima do altar, e naquela ocasião os fiéis podem endereçar suas preces a ele. Ele recebe suas súplicas, suas esperanças, suas lágrimas, olhando fixamente no espaço à sua frente com olhos brilhantes mas sem vida. Durante as várias fases da cerimônia, os Lamas trocam suas capas amarelas e vermelhas, e seus barretes. O serviço religioso sempre termina quando o Buda Encarnado, com a tiara sobre a testa, dá sua bênção pontifical aos fiéis, virando-se para os quatro pontos cardeais, e estendo finalmente suas mãos para norte e oeste, em direção da Europa, porque é aí que, segundo as crenças da religião amarela, deve ser propagada o ensinamento do sábio Buda.Após suas fervorosas orações, ou após o longo serviço religioso no templo, o pontífice sempre aparece inspirado; freqüentemente chama seus secretários e dita suas visões, sempre muito obscuras e desprovidas de explicações.

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Às vezes pronunciando as palavras "suas almas estão comunicando", ele veste paramentos brancos e retira-se para rezar em seu santuário. Nessas ocasiões fecham-se todas as portas do palácio e todos os Lamas estão dominados por um terror místico; todos rezam, desfiando seus terços e murmurando a prece: "Om! Mani padme Hung!" Ou então viram as correntes de orações e fazem exorcismos; os adivinhos estudam os horóscopos, os profetas escrevem suas visões, enquanto os Marambas procuram nos livros antigos a explicação das palavras do Buda.

41A Poeira dos Séculos

Talvez vocês já tenham visto teias de aranha em-poeiradas em algum velho castelo da Itália, da França ou da Inglaterra. É a poeira dos séculos. Ela talvez tenha tocado o capacete ou a espada de um imperador romano, ou de São Luís, ou do grande Inquisidor; talvez tenha estado na Galiléia ou em volta do rei Ricardo.Você sente um aperto no coração e um grande respeito para essa testemunha de séculos passados. Tive a mesma impressão, talvez até mais profunda em Ta Kure. Aí a vida continua da mesma forma como ela se desenrolava oito séculos atrás; aí o homem só vive do passado; a vida contemporânea somente complica e atrapalha o decorrer normal da existência.

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— Hoje é um grande dia — disse-me certa ocasião o Buda Encarnado — é o dia no qual o budismo venceu todas as outras religiões. Muito tempo atrás, Kublai Khã chamou os Lamas de todas as religiões e mandou que eles explicassem sua crença. Todos louvaram seus deuses e seus hutuktus. Houve discussões e brigas. Somente um Lama ficou em silêncio. Ele sorriu maliciosamente e disse:— Grande Imperador! ordena que cada um deles prove a pujança de seus deuses fazendo um milagre. Em seguida tu julgarás e escolherás.— Kublai Khã mandou que todos os Lamas fizessem um milagre, todos porém ficaram calados e confusos, incapazes de fazê-lo.— Agora é a tua vez — falou o Imperador ao Lama que fizera a proposta. — Prova agora a pujança de teus deuses.O Lama olhou fixamente e durante muito tempo o Imperador, virou-se e olhando para toda aquela gente reunida, estendeu sua mão na direção deles. Naquele instante a taça de ouro do Imperador levantou-se da mesa e inclinou-se em frente aos lábios do Khã, sem ser sustentada por nenhuma mão visível. O Imperador bebeu um delicioso vinho perfumado. Todos ficaram estupefatos e o Imperador falou:— Minhas orações irão aos teus deuses e todos os meus povos terão que venerá-los. Qual é a tua religião? Quem és tu, e de onde vens?— O sábio Buda ensina essa religião. Eu sou o pandita Lama Turjo Gamba do longínquo e glorioso mosteiro de Sakkia, no Tibete, onde o

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espírito do Buda, com toda sua sabedoria e sua pujança, vive encarnado num corpo humano. Lembre-se, excelência, de que os povos que aceitarem nossa fé dominarão todo o mundo ocidental e durante cento e onze anos propagarão suas crenças no mundo inteiro.— Foi assim que as coisas se passaram nesse mesmo dia, muitos séculos atrás. O Lama Turjo Gamba não voltou ao Tibete, mas ficou aqui em Ta Kure, onde só havia pouca gente. Daqui ele foi ver o Imperador, em Karakorum, e depois foram juntos até a capital da China para fortificar a fé, prever o futuro dos assuntos do Estado, e iluminá-los segundo a vontade de Deus.O Buda Encarnado parou, murmurou uma prece, e continuou a seguir:— Urga é a antiga pátria do budismo. Os Olets, que também são chamados Calmucos, partiram com Gengis Khã para conquistar a Europa. Ficaram por lá durante cem anos, vivendo nas planícies da Rússia. Os Lamas amarelos chamaram-nos de volta, e eles vieram para combater os reis do Tibete, os Lamas de chapéu vermelho que oprimiam o povo. Os Calmucos ajudaram a religião amarela, mas viram que Lhasa era muito distante e não poderia espalhar nossa crença pelo mundo todo. Então o Calmuco Gushi Khã trouxe do Tibete um santo Lama, Undur Gheghen, que já visitara o Rei do Mundo. Depois daquele dia o Bogdo Gheghen sempre teve sua residência em Urga; ele sempre foi o protetor das liberdades mongólicas e dos imperadores chineses de origem mongólica.

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Undur Gheghen foi o primeiro Buda Encarnado na terra mongólica. Ele deixou o anel de Gengis Khã para nós, seus sucessores. Foi Kublai Khã que mandou-o ao Dalai Lama, em agradecimento pelo milagre realizado pelo Lama TurjoGamba; temos também a parte superior do crânio de um misterioso taumaturgo preto da Índia: Strongtsam, rei do Tibete, usava-a como uma taça e bebia nela durante as cerimônias no templo, mil e seiscentos anos atrás; temos também uma antiga estátua de pedra do Buda, trazida de Delhi pelo fundador da religião ama-rela, Paspa.O Bogdo bateu palmas, e um de seus secretários apanhou uma grossa chave de prata que estava embrulhada num tecido vermelho e abriu com ela o cofre dos selos. O Buda Encarnado enfiou a mão no cofre, retirando uma pequena caixa de marfim esculpido que ele abriu, e mostrou-me um pesado anel de ouro com um maravilhoso rubi no qual estava gravada a suástica.— Gengis Khã e Kublai sempre usaram esse anel na mão direita — disse ele.O secretário fechou o cofre e o Bogdo mandou-o procurar seu maramba favorito porque queria ouvi-lo ler algumas páginas de um livro antigo que estava em cima da mesa.O Lama começou a ler com voz monótona:— Quando Gushi Khã, chefe dos Calmucos, ter-minou a guerra contra os chapéus vermelhos, levou consigo a pedra preta milagrosa que o Rei do Mundo tinha mandado ao Dalai Lama Gushi Khã pretendendo estabelecer a capital da

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religião amarela na Mongólia. Naquela época, todavia, os Olets estavam guerreando contra o imperador da Manchúria por causa do trono da China, e estavam sendo continuamente derrotados. O último Khã dos Olets fugiu para a Rússia, mas antes de ir embora mandou para Urga a pedra preta sagrada. Durante todo o tempo que a pedra ficou em Urga, o Buda Encarnado usou-a para benzer o povo e as doenças e as desgraças ficaram afastadas do povo mongol e de seu rebanho. Mais ou menos cem anos atrás, alguém roubou a pedra, e desde então os budistas a tem procurado no mundo inteiro, mas sem resultado. Desde seu desaparecimento o povo mongol começou a morrer lentamente.— Chega! — gritou o Bogdo Gheghen. — Nossos vizinhos nos desprezam. Eles esquecem que outrora fomos seus mestres; contudo nós conservamos nossas santas tradições. Sabemos que as tribos mongóis e a religião amarela terão seu dia de triunfo. Nós temos os buriats, os protetores da fé! Eles são os mais fiéis guardiões da herança de Gengis Khã!Assim falou o Buda Encarnado. Assim estava es-crito nos seus livros antigos.

42O Livro dos Milagres

O príncipe Djam Bolon pediu a um maramba que nos mostrasse a biblioteca do Buda Encarnado.

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Era uma grande sala onde estavam dezenas de escribas que preparavam todas as obras que tratam dos milagres de todos os Budas Encarnados, começando por Undur Gheghen e terminando com aqueles de todos os Gheghen e dos Hutuktus dos vários mosteiros lamaístas, nos templos e em todas as escolas dos Bandis. Um maramba leu-nos alguns trechos:"O bem-aventurado Bogdo Gheghen soprou sobre um espelho. Logo, como através de uma névoa, apareceu um vale onde milhares e milhares de guerreiros estavam combatendo.""O sábio Buda Encarnado, favorito dos deuses, queimou incenso e implorou a eles para revelarem-lhe o futuro dos príncipes. Dentro da fumaça azulada todos viram uma prisão sombria e os corpos pálidos e torturados dos príncipes mortos."Havia um livro especial, que já tinha sido reproduzido em milhares de exemplares, que relatava os milagres do Buda Encarnado atual. O príncipe Djam Bolon traduziu-me algumas passagens do livro."Existe uma antiga estátua, em madeira, de Buda com os olhos abertos. Ela foi trazida da Índia e Bogdo Gheghen colocou-a sobre o altar e começou a rezar. Quando voltou do santuário, mandou que trouxessem a estátua. Todo mundo ficou estupefato porque os olhos do deus estavam fechados e vertiam lágrimas. Sobre o corpo da estátua apareceram brotos verdes, e o Bogdo falou: "A dor e a alegria me esperam: vou ficar cego, mas a Mongólia tornar-se-á livre."

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A profecia realizou-se. Houve uma outra ocasião, num dia em que o Buda Encarnado estava especialmente agitado. Mandou buscar uma bacia cheia de água que foi colocada em frente ao altar; mandou chamar os Lamas e, a seguir, começou a rezar. As velas e as lamparinas acenderam-se de repente, sozinhas, e a água adquiriu as cores do arco-íris.O príncipe explicou-me, a seguir, de que forma o Bogdo Khã lê o futuro: no sangue fresco, onde letras e imagens aparecem na superfície; nas vísceras dos carneiros e das cabras, onde ele vê o futuro dos príncipes e conhece seu pensamento; e com a ajuda de pedras e de ossos sobre os quais o Buda Encarnado encontra os signos do futuro de todos. Observa também as estrelas, e sua posição é importante na preparação dos amuletos contra as doenças.— Os antigos Bogdo Khã só liam o futuro com a ajuda da pedra preta — disse o maramba. — Na superfície da pedra apareciam as inscrições tibetanas e o Bogdo, lendo-as, aprendia qual era o destino de todas as nações.Quando o maramba falou na pedra preta sobre a qual apareciam as legendas tibetanas, lembrei que era um fato realmente possível. Em Ulan Taiga, na região sudeste do Urianhai, eu tinha passado por um local onde havia ardósia preta em estado de decomposição. Todos os pedaços daquela ardósia estavam cobertos por um líquen branco, formando desenhos extremamente com-plicados que lembravam a renda de Veneza ou, então, escritas em caracteres rúnicos. Quando a

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ardósia estava úmida, os traços desapareciam, só voltando a aparecer novamente quando secava.Ninguém tem o direito e nem a ousadia de pedir ao Buda Encarnado para revelar-lhe o futuro. Ele só se dedica a adivinhações quando se sente inspirado, ou então quando chega algum delegado especial com uma mensagem do Dalai Lama ou do Tashi Lama. Na época em que o czar Alexandre I estava sob a influência do misticismo inspirado pela baronesa de Krüdener, ele mandou um seu delegado pessoal ao Buda Encarnado para saber qual seria seu destino. Naquela época o Bogdo Khã era um homem muito jovem que, depois de ler os signos da pedra preta, falou que o czar branco passaria o final de sua vida tristemente, como andarilho, desconhecido de todos e perseguido em toda parte. Ainda hoje na Rússia o povo acredita que Alexandre I, durante os seus últimos anos, tenha andado a esmo pela Rússia e pela Sibéria, com o pseudônimo de Feodor Kusmitch, socorrendo e confortando os prisioneiros, os mendigos e todos os que sofriam, sendo perseguido e freqüente-mente preso pela polícia. Dizem que ele morreu em Tomsk, na Sibéria, onde ainda existe a casa em que morou durante seus últimos dias, e seu túmulo, meta de romarias e lugar sagrado e milagroso. A dinastia dos Romanoff estava muito interessada na biografia de Feodor Kusmitch, e esse interesse só serviu para confirmar a opinião do povo que se trata realmente do czar

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Alexandre I, que se impusera aquela austera penitência.

43O Nascimento do Buda Encarnado

O Buda Encarnado não morre. Às vezes sua alma passa para o corpo de uma criança que nasce no mesmo dia de seu desenlace, e às vezes ela passa para o corpo de um outro homem durante a vida do próprio Buda. Esse novo recipiente mortal do espírito sagrado do Buda encontra-se, quase sempre, na "yurta" de alguma pobre família tibetana ou mongol. Nisso tudo há razão política. Se o Buda aparecesse numa família rica de príncipes, uma família poderia tornar-se por demais poderosa e não obedeceria ao clero, como já aconteceu no passado. Ao contrário, uma família pobre e desconhecida que, de súbito, herda o trono de Gengis Khã e se vê cercada de riquezas, submete-se de boa vontade aos Lamas. Somente três ou quatro Budas Encarnados foram mongóis puros; todos os outros era tibetanos.Um conselheiro do Buda Encarnado, o Lama Khã Jassaktu contou-me o seguinte:— Cartas enviadas de Urga informam constan-temente os mosteiros de Lhasa e de Tashi Lunrpo sobre o estado de saúde do Buda Encarnado. Quando seu corpo humano começa a envelhecer e o espírito do Buda tenta desvencilhar-se dele, nos templos tibetanos

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começam as funções solenes e os astrólogos estudam o futuro. Essas funções servem para revelar os Lamas mais piedosos que são designados a descobrir onde o Espírito do Buda pretende reencarnar-se. Eles viajam pelo país todo fazendo suas observações. Freqüentemente é o próprio deus que dá as indicações. Às vezes um lobo branco aparece perto da "yurta" de um pobre pastor, ou então sabe-se do nascimento de um carneiro com duas cabeças, ou mesmo um meteoro caído do céu. Os Lamas apanham peixes no lago sagrado de Tangri-Nor e lêem sobre as escamas o nome do novo Bogdo Khã; outros ainda acham pedras cujas rachaduras indicam o lugar onde devem procurar e quem eles vão achar; enfim, outros vão para os íngremes penhascos das montanhas para ouvir a voz dos espíritos que pronunciam o nome do eleito pelos deuses. Quando o nome é conhecido, recolhem-se secretamente todas as informações a respeito da família, que depois são transmitidas ao muito sábio Tashi Lama, conhecido também pelo nome de Edeni, que quer dizer: pérola da sabedoria, o qual verifica se a escolha foi certa pelos ritos de Rama. Se a escolha for confirmada pelos textos sagrados, Tashi Lama manda uma carta secreta ao Dalai Lama, o qual, por sua vez, celebra um sacrifício especial no templo do Espírito da Montanha, e confirma a eleição colocando seu grande selo sobre a carta do Tashi Lama.Enquanto o velho Buda Encarnado não morrer o nome de seu sucessor é mantido rigorosamente

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em segredo se o espírito do Buda já estiver separado do corpo do Bogdo Khã, uma delegação especial sai do Tibete trazendo o novo Buda Encarnado. O mesmo procedimento é usado na escolha dos Gheghens e dos Hutuktus em todos os mosteiros lamaístas da Mongólia, só que a confirmação de escolha depende do Buda Encarnado e é comunicada a Lhasa só depois da aprovação.

44Uma Página da História do Buda

O Bogdo Khã que reina atualmente na Mongólia Exterior é tibetano. É filho de uma família muito pobre que vivia nos arredores de Sakkia Kure, no oeste do Tibete. Desde sua primeira infância sempre teve um gênio tempestuoso. Inflamava-se com a idéia da independência mongol e desejava, ardentemente, acrescentar glória à herança de Gengis Khã. Essas idéias deram-lhe logo grande popularidade entre os Lamas, os príncipes e os Khãs da Mongólia, e conseguiu a simpatia do governo russo que tentou atraí-lo para o seu lado. Ele não teve nenhum receio de erguer-se contra a dinastia Manchu na China e conseguiu toda a ajuda da Rússia, do Tibete, dos buriats e dos kirguizes que lhe deram dinheiro, armas, soldados e a assistência de seus serviços diplomáticos. Os imperadores da China quiseram evitar uma guerra aberta contra o Deus Vivo porque receavam os protestos dos budistas

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chineses. Num certo momento eles mandaram ao Bogdo Khã um médico muito hábil em matéria de venenos. O Buta Encarnado entendeu imediatamente de que espécie eram aquelas atenções médicas, e conhecendo a eficiência dos venenos da Ásia, decidiu fazer uma viagem para visitar os mosteiros mongóis e tibetanos. Deixou em seu lugar um hubilgan que cativou a confiança do médico e perguntou-lhe qual era a verdadeira finalidade de sua visita. O médico chinês morreu pouco tempo mais tarde por motivos desconhecidos, e o Buda Encarnado voltou à capital.O Deus Vivo foi ameaçado ainda por um outro perigo. Aconteceu quando Lhasa decidiu que o Bogdo Khã exercia uma política que era por demais independente do Tibete. O Dalai Lama iniciou as negociações com os Khãs e os príncipes, e o Sain Noyon Khã e Jassaktu Khã orientavam a manobra para convencê-los a acelerar a emigração do Buda numa outra forma humana. Chegaram a Urga e foram recebidos pelo Bogdo Khã com as maiores manifestações de estima e alegria. Foi organizado um grande banquete, e os conspiradores já estavam se preparando para executar as ordens do Dalai Lama. Porém, quando o banquete estava termi-nando eles começaram a sentir um mal-estar que foi piorando e morreram todos na mesma noite. O Buda Encarnado mandou seus corpos às famílias com todos as honras devidas à sua posição.

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O Bogdo Khã conhece todas as ações e todos os pensamentos dos príncipes e dos Khãs e até as mais insignificantes conspirações que são tramadas contra ele. Geralmente o culpado é amavelmente convidado a apresentar-se em Urga, de onde ele nunca volta vivo.O governo chinês decidiu abolir a sucessão dos Bu- das Encarnado. Cresceu então a luta contra o pontífice de Urga, urdindo outra trama para alcançar seu alvo.Pequim convidou o Pandita Gheghen de Dolo-Nor e o chefe dos lamaístas chineses, o hutuktu de Utai, a ir à capital chinesa, já que esses dois personagens não reconheciam a supremacia do Buda Encarnado. Depois de consultar os livros de Buda, eles decidiram que o atual Bogdo Khã devia ser o último Buda Encarnado, porque aquela parte do espírito de Buda que estava encarnada no Bogdo Khã só poderia encarnar-se trinta e uma vezes num corpo humano. Bogdo era o trigésimo primeiro Buda Encarnado depois de Undur Gheghen, e com ele, logicamente, devia terminar a dinastia dos pontífices de Urga. Quando o Bogdo Khã foi informado da história, mandou fazer pesquisas próprias, e descobriu nos antigos manuscritos tibetanos que um dos pontífices tibetanos era casado, e que o filho deste foi um Buda Encarnado. O Bogdo Khã então casou-se também, e tem hoje um filho que é um moço enérgico e capaz; dessa forma o trono religioso de Gengis Khã não ficará sem um sucessor. A dinastia dos imperadores chineses desapareceu da cena política, mas o Buda

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Encarnado continua a representar o fulcro do movimento pan-asiático.O novo governo chinês de 1920 decretou a prisão domiciliar do Buda Encarnado em seu próprio palácio, porém, no início de 1921, o Barão Ungern atravessou o sagrado Bogdo-Ol, aproximando-se da parte traseira do palácio. Os cavaleiros tibetanos mataram as sentinelas chinesas a flechadas, os mongóis entraram no palácio e raptaram seu deus que de imediato levantou a Mongólia em armas, dando nova vida e esperanças aos povos e às tribos da Ásia.No grande palácio do Bogdo, um Lama mostrou-me uma caixa especial, coberta por um tapete precioso, onde são guardadas as bulas do Dalai Lama e do Tashi Lama, os decretos dos imperadores russos e chineses, os tratados entre a Mongólia, a Rússia, a China e o Tibete. Nessa mesma caixa é guardada também uma placa de cobre com o signo misterioso do Rei do Mundo e o relato da última visão do Buda Encarnado.

45A Visão do Buda Encarnado — 17 de maio de

1921

Rezei e vi o que está oculto aos olhos do povo. Na minha frente estendia-se uma vasta planície cercada de montanhas ao longe. Um velho Lama estava carregando uma cesta cheia de pedras pesadas. Do norte chegou um cavaleiro trajado de branco. Ele se aproximou do Lama e falou:

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— Dê-me tua cesta. Vou ajudar-te e levá-lo até a Kure.O Lama deu-lhe seu pesado fardo, mas o cavaleiro não conseguiu levantá-lo até a sela, e assim o velho Lama teve que içá-lo novamente sobre seu ombro e continuar o caminho, encurvado pelo peso.Chegou então do norte um outro cavaleiro, trajado de negro, sobre um cavalo preto que também se aproximou do Lama e falou:— Imbecil! Por que carregas essas pedras que se encontram em qualquer lugar?Logo investiu contra o Lama, empurrando-o com o peito de seu cavalo e todas as pedras se espa-lharam pelo chão.Quando as pedras tocaram a terra elas se trans-formaram em diamantes. Os três homens se apressaram em recolhê-los, mas nenhum deles conseguiu levantá-los. Então o velho Lama gritou:— Deuses! Durante toda minha vida carreguei esse fardo tão pesado, e agora que só me faltava um pequeno trecho do caminho, perdi-o. Valei-me, deuses possantes e misericordiosos!Apareceu então um ancião cambaleante. Recolheu todos os diamantes, colocou-os na cesta, sem nenhuma dificuldade, limpou-os da poeira que os cobria, levantou a carga sobre seu ombro e saiu andando, enquanto dizia ao Lama:Descansa um pouco. Carreguei meu fardo até o fim, e estou muito satisfeito de poder ajudar a carregar o teu.

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Prosseguiram o caminho e logo os perdi de vista enquanto os cavaleiros começavam a combater. Lutaram durante o dia todo e a noite toda, e quando o sol inundou novamente a planície eles não mais estavam lá; tinham desaparecido sem deixar vestígio. "Eu, Bogdo Hutuktu Khã, vi isso enquanto estava falando com o grande e sábio Buda, acompanhado por todos os bons e maus espíritos. Sábios, hutuktus, kampos, marambas e santos gheghens, dêem-me a resposta à minha visão".Eu estava presente quando isso foi escrito no dia 17 de maio de 1921, ditado pelo próprio Buda Encarnado logo depois que saiu de seu santuário particular, ao lado de seu gabinete de trabalho. Não sei qual foi a interpretação dos hutuktus, dos gheghens, dos adivinhos e dos mágicos, todavia parece-me que a interpretação não é difícil para quem conhece a atual situação da Ásia.A Ásia está despertando; ela é cheia de enigmas, também tem as respostas sobre o destino da humanidade. Esse grande continente de pontífices misteriosos, de deuses vivos, de mahatmas, de homens que sabem ler o terrível livro de Karma, está acordando depois de um longo sono. Aquele oceano de centenas de milhões de pessoas está formando vagalhões gigantescos.

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O MISTÉRIO DOS MISTÉRIOS O REI DO MUNDO

46O Reino Subterrâneo

— Parem! — murmurou meu guia mongol num dia em que estávamos atravessando a planície perto de Tangan Luk. — Parem!Deixou-se cair do lombo do camelo; este logo se deitou sem que fosse necessário dar-lhe ordem.O mongol levantou as mãos à altura do rosto em sinal de oração e começou a repetir a frase sagrada:— Om mani padme Hung.Os outros mongóis também desceram de seus camelos e começaram a rezar."Que será que aconteceu?" — perguntava a mim mesmo enquanto observava em minha volta o verde brilhante do capim que se estendia até o horizonte, onde um céu sem nuvens recebia os últimos raios do sol.Os mongóis rezaram durante algum tempo, con-versaram entre si, e depois de apertar os arreios de seus camelos, prosseguiram a viagem.— Você notou como os camelos remexiam as orelhas de medo — perguntou-me o mongol — e como o rebanho de cavalos na planície ficou imóvel? Você viu que até os carneiros e o gado deitaram-se no chão? Você notou que as aves pararam de voar, as marmotas pararam de correr e os cães emudeceram? O ar vibrava

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suavemente e trazia, de longe, as notas de uma canção que penetravam no coração dos homens, dos animais e das aves. O céu e a terra não se movem, o vento não sopra e o sol pára sua trajetória; num momento como esse, o lobo, que está se aproximando sorrateiramente dos carneiros, não continua no seu propósito de rapina, o rebanho de antílopes apavorados pára sua fuga precipitada; a faca cai da mão do pastor que está para sacrificar a ovelha, e o voraz arminho deixa de perseguir a confiante perdiz salga. Todos os seres vivos ficam assustados e rezam, esperando que se cumpra seu destino. Foi o que aconteceu agora. É o que acontece toda vez que o Rei do Mundo, em seu palácio subterrâneo, reza procurando saber o destino dos povos da Terra.Assim falou o velho mongol que era um simples pastor, sem cultura.A Mongólia, com suas montanhas terríveis e nuas, suas planícies imensas cobertas pelas ossadas esparsas de seus antepassados, é o berço de um mistério. Seu povo, apavorado pelas tempestuosas manifestações da natureza ou acalentado pela sua quietude de morte, sente a profundeza desse mistério, os Lamas vermelhos e amarelos o conservam e o celebram poeticamente. Os pontífices de Lhasa e de Urga conhecem sua explicação.Durante minha viagem pela Ásia central tomei conhecimento disso, pela primeira vez, o que não posso chamar de outra forma: o mistério dos mistérios. No início não prestei realmente muita

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atenção, porém percebi em seguida o quanto era importante quando comparei e analisei alguns testemunhos esporádicos, que algumas vezes estavam sujeitos a controvérsias.Os anciões das margens do Amyl contaram-me uma lenda antiga a respeito de uma tribo mongol que, querendo fugir das exigências de Gengis Khã, foi esconder-se num país subterrâneo. Mais tarde, um Soyote dos arredores do lago de Nogan Kul mostrou-me a porta, envolvida de fumaça, pela qual se vai ao reino de Agharta. Por essa porta um caçador penetrou outrora no reino, e quando voltou contou tudo o que viu. Os Lamas cortaram sua língua para que nunca mais falasse do mistério dos mistérios. Quando ficou velho voltou à entrada da caverna e desapareceu no reino subterrâneo cuja lembrança tinha tanto alegrado seu coração de nômade.Recebi informações mais minuciosas pela boca do hutuktu Lelyp Djamarap de Narabanchi Kure. Ele contou-me a história da chegada do Rei do Mundo quando saiu de seu reino subterrâneo, sua aparição, seus milagres e suas profecias. Compreendi então, pela primeira vez, que atrás dessa lenda, dessa hipnose, dessa visão coletiva, da forma como ela seja interpretada, ocultava-se não somente um mistério, mas uma força real e soberana que tinha a capacidade de influenciar a vida política da Ásia. Foi a partir desse instante que comecei a fazer minhas pesquisas.O Lama Gelong, favorito do príncipe Chultun-Beyli, e o próprio príncipe descreveram-me o reino subterrâneo.

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— Neste mundo — disse-me Gelong — tudo está num perene estado de transição e de mudança: os povos, as religiões, as leis e os costumes. Quantos grandes impérios e quantas brilhantes civilizações já desapareceram! Só não desaparece o Mal, o instrumento dos maus espíritos. Já faz mais de seis mil anos que um santo homem desapareceu com toda uma tribo no interior da Terra e nunca mais reapareceu na superfície. Depois disso, porém, muitas pessoas já visitaram esse reino. Sakia Muni, Undur Gheghen, Paspa, Baber e muitos outros estiveram lá. Ninguém sabe onde realmente ele se encontra. Alguns dizem que no Afeganistão, e outros dizem que na Índia. Todos os homens daquela religião são protegidos contra o mal, e dentro de suas fronteiras não existe crime. A ciência conseguiu desenvolver-se ali com toda a tranqüilidade, e não existe ameaça alguma de destruição. O povo subterrâneo alcançou os mais altos degraus da ciência. Agora já é um grande reino que tem milhões de súditos que são gover-nados pelo Rei do Mundo. Ele conhece todas as forças da natureza, lê em todas as almas humanas e no grande livro do destino. Ele reina, invisível, e mais de oitocentos milhões de homens estão prontos a executar suas ordens.O príncipe Chultun Beyli continuou a explicação. Esse reino chama-se Agharta, e estende-se por todas as passagens subterrâneas do mundo inteiro. Eu ouvi quando um sábio Lama chinês disse ao Bogdo Khã que todas as cavernas subterrâneas da América são habitadas pelo

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povo antigo que desapareceu embaixo da Terra. Existem ainda vestígios na superfície da Terra. Estes povos e estes domínios subterrâneos são governados por chefes que reconhecem a soberania do Rei do Mundo. Nisso não há nada de extraordinário. Você sabe que nos dois maiores oceanos do leste e do oeste noutros tempos encontravam-se dois continentes (A Atlântida e o Continente de Mu). Eles foram engolidos pelas águas mas seus habitantes foram levados ao reino subterrâneo. Aquelas cavernas profundas são iluminadas por uma luz especial que permite o crescimento dos cereais e dos vegetais e proporciona aos habitantes uma vida longa e sem doenças. Lá estão muitos povos, muitas tribos. Um velho brâmane budista do Nepal estava cumprindo a vontade dos deu-ses, viajando para o antigo reino de Gengis Khã, o Sião, quando encontrou um pescador que lhe pediu que entrasse em seu barco e remasse sobre o mar. No terceiro dia chegaram a uma ilha onde viviam homens que tinham duas línguas e que podiam falar, separadamente, dois idiomas diferentes. Mostraram-lhe animais curiosos: tartarugas com dezesseis patas e um olho só, enormes cobras que tinham a carne muito saborosa, aves que tinham dentes e que apanhavam no mar os peixes que depois levavam a seus amos. Estes homens disseram-lhe que tinham vindo do reino subterrâneo e descreveram algumas de suas regiões.

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O Lama Turgut que me acompanhou durante a viagem de Urga a Pequim, deu-me mais informações.— A capital de Agharta é contornada de cidades onde moram os grandes sacerdotes e os sábios. Ela se parece com Lhasa, onde o palácio do Dalai Lama, o Potala, se encontra no topo de uma montanha toda coberta de templos e de mosteiros. O trono do Rei do Mundo está cercado por dois milhões de deuses encarnados. Eles são os santos pandistas. O próprio palácio está cercado pelos palácios dos Gorosque que possuem todas as forças visíveis e invisíveis da Terra, do inferno e do céu, e que tudo podem fazer pela vida e pela morte dos homens. Se nossa humanidade tresloucada quisesse uma guerra contra eles, eles seriam capazes de fazer explodir a superfície de nosso planeta, e reduzi-lo a um deserto. Eles podem ressecar os mares, mudar os continentes em oceanos ou reduzir as montanhas a areias do deserto. Eles podem fazer as árvores, as sebes e a grama brotar; sabem transformar em moços fortes os homens velhos e fracos, e podem ressuscitar os mortos. Sem o nosso conhecimento eles passam em grande velocidade, sobre estranhos carros, pelos estreitos corredores no interior de nosso planeta. Alguns brâmnes da Índia e alguns Dalai Lama do Tibete chegaram a escalar cumes de montanhas que nunca tinham sido pisados por pés humanos, e encontraram inscrições gravadas nas rochas, rastos de passos na neve e as marcas deixadas por rodas de viaturas. O bem-aventurado Sakia-

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Muni encontrou no topo de uma montanha tabuletas de pedra com palavras inscritas que ele não conseguiu entender até uma idade muito avançada, e em seguida penetrou no reino de Agharta, de onde voltou trazendo algumas migalhas da ciência sagrada que sua memória conseguiu reter. Aí, em palácios maravilhosos de cristal moram os chefes invisíveis dos fiéis, o Rei do Mundo Brahytma, que pode falar com Deus como eu estou falando com você, e seus dois auxiliares, Mahytma que conhece os acontecimentos do futuro, e Mahynga, que conhece as causas dos acontecimentos.Os santos pandistas estudam o mundo e suas forças. Às vezes os mais sábios entre eles se reúnem, e enviam delegados a um lugar que os olhos humanos jamais viram. Isso foi descrito pelo Tashi Lama que viveu há oitocentos e cinqüenta anos atrás. Os mais altos pandistas, pondo uma mão sobre os olhos e outra sobre a nuca dos sacerdotes mais jovens, fazem-nos dormir profundamente, lavam seus corpos com uma infusão de ervas, imuniza-nos contra a dor, endurecem-nos como pedras, e depois de envolvê-los em tirinhas mágicas, começam a orar a Deus. Os moços, petrificados e deitados, de olhos abertos e ouvidos atentos vêem, entendem e lembram tudo. Em seguida um Goro se aproxima e fita-os longamente. Seus corpos levantam-se lentamente do chão e depois desaparecem. O Goro fica sentado, com os olhos fixos no local para onde os mandou. Eles ficam atados com fios invisíveis à sua vontade; alguns

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deles viajam entre as estrelas, observando os acontecimentos e os povos desconhecidos, suas vidas e suas leis. Por lá eles ouvem as conversas, lêem os livros, conhecem a sorte e a miséria, a santidade e o pecado, a piedade e o vício. Alguns misturam-se às chamas, conhecem a criatura do fogo, viva e feroz, e lutam sem parar, fundindo e martelando os metais nas profundezas dos planetas, fazendo ferver as águas dos "geysers" e das nascentes térmicas. Fundem as rochas e enviam as massas em fusão à superfície da Terra pelos orifícios dos vulcões. Outros ainda se mis-turam com as criaturas do ar, infinitamente pequenas, evanescentes e transparentes, e estudam o mistério e a razão de sua existência. Outros mais deslizam até os abismos do mar e observam e estudam o reino das sábias criaturas das águas, transportam e espalham o bom calor por toda a Terra, governam os ventos, as ondas e as tempestades. Noutros tempos viveu no mosteiro de Erdeni Dzu o Pandita Hutuktu que veio da Agharta. Quando estava para morrer, falou do tempo em que, pela vontade de um Goro, ele viveu numa estrela vermelha a leste, onde flutuou sobre um oceano coberto de gelo e voou entre os fogos acesos no interior da Terra.Ouvi contar essas histórias nas "yurtas" dos prín-cipes e nos mosteiros lamaístas. Pela maneira com que elas me foram contadas, eu não tive a possibilidade de deixar transparecer a menor dúvida.Mistérios...

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47O Rei do Mundo perante Deus

Durante minha estadia em Urga esforcei-me por encontrar uma explicação para a lenda do Rei do Mundo. Por muitas razões a pessoa mais indicada para dar-me qualquer informação nesse sentido era o Buda Encarnado, o procurei interrogá-lo sobre o assunto. Durante uma conversa, citei o nome do Rei do Mundo. O velho pontífice virou bruscamente a cabeça para o meu lado e fixou-me com seus olhos sem vida. Mantive-me calado contra a minha própria vontade. O silêncio foi-se prolongando e o pontífice voltou a falar de uma forma tal que percebi que ele não desejava cuidar do assunto. Pude ver nos rostos das outras pessoas presentes, especialmente do bibliotecário de Bogdo Khã, uma expressão de admiração e medo. É portanto bem compreensível como esse incidente só contribuiu para aumentar a minha impaciência e a vontade de obter maiores informações.Quando estava saindo do gabinete de trabalho de Bogdo Khã encontrei o bibliotecário que saíra antes de mim, e perguntei-lhe se me daria licença de visitar a biblioteca do Buda Encarnado. Empreguei uma astúcia muito simples.— Sabe, meu caro Lama — disse-lhe — um dia eu estive na planície, na hora em que o Rei do Mundo estava conversando com Deus, e fiquei

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impressionado pela majestosa solenidade daquele instante.Fiquei muito surpreso quando o velho Lama me respondeu muito calmamente:— Não acho certo que o budismo e nossa religião amarela o ocultem. O reconhecimento da existência do mais santo e mais poderoso dos homens, do reino bem-aventurado, do grande templo da santa ciência, é de tamanho conforto para nossos corações de pecadores e nossas vidas corruptas, que escondê-lo seria uma lástima.Ouça — ele continuou — durante o ano todo, o Rei do Mundo dirige as tarefas dos panditas e dos goros da Agharta. Só de vez em quando ele penetra na caverna do templo onde repousa o corpo embalsamado de seu predecessor, num ataúde de pedra preta. A caverna está sempre sombria, mas quando entra o Rei do Mundo os muros aparecem rajados de fogo, e da tampa do ataúde saem longas chamas. O decano dos goros fica de pé, à sua frente, com a cabeça e o rosto cobertos e as mãos cruzadas sobre o peito. O goro nunca tira o véu de seu rosto, porque sua cabeça é uma caveira com olhos vivos e uma língua que fala. Ele se comunica com as almas daqueles que já se foram.O Rei do Mundo fala por muito tempo, em seguida se aproxima do ataúde e estende a mão. As chamas brilham com mais luz; as rajadas de fogo nas paredes desaparecem e reaparecem, entrelaçando-se e formando as letras misteriosas do alfabeto "vatanã". Do ataúde saem espirais

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transparentes de luz quase invisíveis: são os pensamentos de seu predecessor. Logo o Rei do Mundo está envolvido numa aura dessa luz e as letras de fogo escrevem, escrevem sem cessar sobre as paredes, os desejos e as vontades de Deus. Naquele momento o Rei do Mundo está se comunicando com todos aqueles que dirigem os destinos da humanidade: os reis, os czares, os khãs, os chefes guerreiros, os grandes sacer-dotes, os sábios e os homens poderosos. Ele conhece todas as intenções e as idéias deles. Se elas agradarem a Deus, ele favorecerá sua realização com sua ajuda invisível; se elas não agradaram a Deus, o Rei do Mundo providenciará seu fracasso. É a ciência misteriosa de Om que dá esse poder a Agharta, e é com essa palavra que nós iniciamos todas as nossas orações. "Om" é o nome de um antigo santo, o primeiro Goro, que viveu há trezentos mil anos. Ele foi o primeiro homem que conheceu Deus, o primeiro que ensinou à humanidade a acreditar, a esperar, a lutar contra o mal; então Deus deu-lhe o poder de dominar todas as forças do mundo visível.Após conversar com o seu predecessor, o Rei do Mundo reúne o grande conselho de Deus, julgando as ações e os pensamentos dos grandes homens, ajudando-os ou aniquilando-os. Mahytma e Mahynga encontram o lugar dessas palavras e dessas ações entre as razões que governam o mundo. Enfim o Rei do Mundo entra no grande templo e reza na sua solidão. O fogo aparece sobre o altar e estende-se a todos os

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outros altares próximos, e na chama ardente aparece aos poucos o rosto de Deus. O Rei do Mundo anuncia respeitosamente a Deus as decisões do Conselho, e recebe os mandamentos do Todo-Poderoso. Quando saí do templo, o Rei do Mundo irradia a luz divina.

48Realidade ou Ficção Mística?

— Alguém já viu o Rei do Mundo? — perguntei.— Sim — respondeu o Lama. — O Rei do Mundo apareceu cinco vezes durante os festejos do budismo antigo no Sião e na Índia. Ele estava numa esplêndida carroça puxada por elefantes brancos, enfeitados de ouro. pedras preciosas e seda; usava uma capa branca e levava na cabeça uma tiara vermelha, da qual caíam franjas de diamantes que lhe cobriam o rosto. Abençoava o povo com uma maçã de ouro encimada de um cordeiro. Os cegos voltaram a ver, os surdos voltaram a ouvir, os doentes voltaram a andar e os mortos saíram de seus túmulos em todos os lugares em que o Rei do Mundo passou. Faz cento e quarenta anos ela apareceu em Erdeni-Dzu e depois visitou também os mosteiros de Sakkia e Narabanchi Kure.Um de nossos Budas Encarnados e em Tashi Lama receberam dele uma mensagem escrita em letras desconhecidas sobre tabuletas de ouro. Ninguém sabia decifrar a escrita. O Tashi Lama

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entrou no templo, colocou as tabuletas sobre sua cabeça e começou a rezar. Por intermédio da oração, os pensamentos do Rei do Mundo penetraram em seu cérebro e ele conseguiu compreender e executar a mensagem do Rei do Mundo, apesar de não compreender aquelas letras.— Quantas pessoas conseguiram chegar a Agharta? — perguntei-lhe.— Muita gente já foi lá — disse-me o Lama. — Todos, porém, mantiveram em segredo as coisas que viram. Quando os Olets destruíram Lhasa, um de seus destacamentos que estava nas montanhas a sudoeste, chegou até onde começa a Agharta. Eles aprenderam algumas das ciências misteriosas e trouxeram essa sabedoria para a superfície da Terra.Isso explica porque os Olets e os Calmucos são bons mágicos e profetas. Algumas tribos escuras do Leste também conseguiram chegar a Agharta e lá viveram alguns séculos. Mais tarde, porém, foram escorraçados do reino e voltaram à superfície da Terra, trazendo com elas a ciência misteriosa de prever o futuro nas cartas, nas ervas e nas linhas das mãos. Estou falando dos ciganos. Em algum lugar, ao norte da Ásia, existe uma tribo que está em vias de desaparecer e que veio das cavernas de Agharta. Os membros daquela tribo sabem invocar os espíritos dos mortos quando flutuam no espaço.O Lama ficou calado durante algum tempo. Mas voltou a falar como se estivesse adivinhando meus pensamentos.

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— Em Agharta, os sábios panditas escrevem sobre tabuletas de pedra toda a ciência do nosso planeta e dos outros mundos. Os sábios chineses sabem disso. A ciência deles é a mais alta e a mais pura. A cada século cem sábios da China se reúnem em um lugar secreto, à beira-mar, onde cem tartarugas imortais saem das profundezas do oceano. Sobre suas escamas os chineses escrevem as conclusões às quais a ciência chegou naquele século.Lembro-me, a esse respeito, de uma história que me foi narrada por um bonzo chinês no templo do Céu, em Pequim. Disse que as tartarugas vivem mais de três mil anos, sem ar e sem alimento, e que por essa razão todas as colunas azuis do templo estavam apoiadas em tartarugas vivas: dessa forma a madeira jamais apo-dreceria.— Muitas vezes os pontífices de Lhasa e de Urga enviaram mensageiros ao Rei do Mundo — disse o Lama bibliotecário — mas nunca conseguiram encontrá-lo. Um dia um chefe tibetano, depois de combater contra os Olets, encontrou a caverna que leva a inscrição: "Esta porta leva a Agharta". Um homem de bela aparência saiu da caverna e deu-lhe uma tabuleta de ouro com uma escrita misteriosa, dizendo: "O Rei do Mundo aparecerá a todos os homens quando chegar o tempo de levar os homens bons para a guerra contra os homens maus. O tempo, porém, não chegou ainda. Os piores da humanidade ainda não nasceram".

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O "chiang-chun" Barão Ungern mandou o jovem príncipe Puntzig ao Rei do Mundo com uma mensagem, mas ele voltou com uma carta do Dalai Lama. O barão então voltou a mandá-lo, mas o jovem príncipe nunca mais voltou.

49A Profecia do Rei do Mando — Em 1890

Quando visitei o mosteiro de Narabanchi, no co-meço de 1921, o hutuktu contou-me o seguinte:— Quando o Rei do Mundo apareceu, aqui no mosteiro, aos Lamas queridos de Deus — e já se passaram trinta anos — ele fez uma profecia que dizia respeito aos séculos futuros. Eis o que ele disse:"Os homens esquecerão sempre mais suas almas, preocupando-se com seus corpos. A maior corrupção reinará na terra. Os homens se tornarão semelhantes a animais selvagens, sedentos do sangue de seus irmãos. A Meia-Lua desaparecerá, e os seus adeptos cairão na miséria e na guerra perpétua. Seus conquistadores serão atingidos pelo sol, mas não conseguirão erguer-se duas vezes; eles tombarão na maior desgraça, que terminará em insultos aos olhos dos outros povos. As coroas dos reis, grandes e pequenos, cairão: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito... Haverá uma guerra terrível entre todos os povos, e os oceanos ficarão avermelhados... a terra e o fundo do mar serão cobertos de ossadas... os reinos

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serão fragmentados e povos inteiros morrerão... pela fome, pela doença, por crimes ignorados pelas leis e que o mundo ainda não viu. Che-garão então os inimigos de Deus e do Espírito divino que se encontra dentro do homem. Também morrerão aqueles que estendem a mão a um outro. Os esquecidos, os perseguidos se levantarão e neles se fixará a atenção do mundo inteiro. Haverá nevoeiros e tempestades. Montanhas nuas ficarão cobertas de florestas. A terra tremerá... Milhões de homens trocarão as correntes da escravidão e das humilhações pela fome, pela doença e pela morte. As antigas estradas serão cobertas por multidões que irão de um lugar a outro. As maiores e mais belas cidades serão destruídas pelo fogo... um, dois, três... O pai será inimigo do filho, o irmão do irmão, e a mãe da filha. Chegarão o vício, o crime, a destruição do corpo e da alma... As famílias serão divididas... A fidelidade e o amor desaparecerão... Um só homem sobreviverá de cada dez mil... estará nu, louco, sem forças, e não saberá construir um abrigo, nem procurar sua alimentação. . . Ele uivará como um lobo furioso, devorando os cadáveres, mordendo sua própria carne e desafiando Deus para a luta... A Terra toda ficará vazia. Deus se afastará dela. Sobre ela cairão a noite e a morte. Então enviarei um povo, que agora é desconhecido, que com suas mãos fortes extirpará as raízes da loucura e do vício, e conduzirá aqueles que se mantiveram fiéis ao espírito do homem, na luta contra o mal. Eles levarão uma vida nova para a Terra puri-

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ficada pela morte das nações. No centésimo ano aparecerão somente três grandes reinos, cuja duração será de setenta e um anos. Em seguida haverá dezoito anos de guerras e destruições. Então os povos de Agharta sairão de suas cavernas subterrâneas e aparecerão na superfície da Terra."Mais tarde, quando em viagem para Pequim, eu perguntava freqüentemente a mim mesmo:— Que aconteceria realmente se povos inteiros, raças, religiões, tribos diferentes começassem a emigrar para Oeste?Agora, enquanto estou escrevendo essas últimas linhas, meus olhos viram-se involuntariamente na direção em que está o coração infinito da Ásia, onde tanto andei durante minhas peregrinações. Vejo, através de um torvelinho de neve ou de uma tempestade de areia no Bobi, o rosto do Hutuktu de Narabanchi quando, em voz pausada e a mão indicando o horizonte, me reve-lava o segredo dos seus mais íntimos pensamentos.Vejo, nas margens do Ubsa-Nof, perto de Kara-korum, os imensos campos coloridos, os rebanhos de cavalos e de gado, as "yurtas" azuis dos chefes. Acima delas vejo as bandeiras de Gengis Khã, dos reis do Tibete, do Sião, do Afeganistão e dos príncipes indianos; os emblemas sagrados dos pontífices lamaístas; os brasões dos Khã e dos Olets, e os pendões mais simples das tribos mongóis do norte. Não ouço o burburinho das multidões agitadas. Os cantores não cantam as melodias tristes das montanhas,

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das planícies e do deserto. Os jovens cavaleiros não correm rapidamente em suas briosas montarias... Há somente multidões incontáveis de velhos, de mulheres e de crianças e, mais além, para norte e para oeste, até onde meus olhos alcançam, o céu é vermelho como fogo, ouve-se o rugido e o crepitar do incêndio e o eco da batalha onde os guerreiros, sob um céu vermelho, derramam seu próprio sangue e o dos outros! Quem conduz essas multidões de velhos sem armas? Vejo uma ordem austera, uma compreensão profunda do ideal, da paciência e da tenacidade; uma nova emigração dos povos, a última marcha dos mongóis.Talvez Karma tenha aberto uma nova página na história.Que poderá acontecer se o Rei do Mundo estiver com eles?Mas o grande mistério de todos os mistérios con-tinua sem resposta.

GLOSSÁRIO

AMUR SAYN - Até logo ATAMÃ — Chefe dos cossacos, chamado também HetmanBANDI — Estudante de teologia budistaBURIAT — A mais civilizada tribo mongol que vive no vale do Selenga, na Transbaikalia CHIANG-CHUN - General chinês DALAI LAMA - O pontífice da religião amarela ou lamaísta em LhasaDJUNGAR - Tribo mongol do Oeste

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DUGUN — Estabelecimento comercial chinês fortificado DZUK - Deite-se! TANG-TZU - Casa (termo chinês) FATIL — Raiz rara usada para remédio na China e no TibeteGELONG — Sacerdote lamaísta que tem o direito de oferecer sacrifícios a Deus. GETUL — O terceiro grau dos monjes lamaístas GORO — Grande sacerdote do Rei do Mundo HATYK — Pano de seda azul ou amarela, oferecido de presente ao hospedeiro, aos hóspedes, aos chefes, aos Lamas e aos deuses. Pode significar, também, um tipo de moeda que vale dois ou três francos HONG — Armazém chinês HUN — O grau inferior dos príncipesHUNG-HUTZE - Bandoleiro chinêsHUCHUN - Recinto fechado por uma cerca ou por um muro, onde se encontram as casas, os arma-zéns e os estábulos dos cossacos na Mongólia HUTUKTU - O grau mais elevado entre os monjes lamaístas, deus encarnado; santo JMURÃ — Espécie de roedor JZUBR — Espécie de alce KABARGA — Antílope almiscarado CALMUCOS - Tribo mongol que emigrou da Mongólia no tempo de Gengis-Khã (eram conhecidos também com o nome de Olets o Eleuths) e que agora vivem no Ural e às margens do Volga KAMPO — Prior de um mosteiro lamaísta, o grau mais elevado do clero branco (secular)

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KAMPO-GELONG - O grau mais elevado dos gelongsKARMA — A personificação budista do destino KHÃ - ReiKHAYRUS - Espécie de truta (peixe.)KIRGUIZ — Nação mongol que se encontra entre o Irtich, na Sibéria ocidental, o lago Balach e o Volga KUROPATKA - Perdiz LAMA — Sacerdote lamaísta LAN — Medida de ouro e de prata: corresponde a onze avos de uma libra russa, mais ou menos trinta e seis gramasMARAMBA — Doutor em teologia MERIN — Chefe da polícia sovote no Urian haiMENDÉ — Saudação soyote: bom diaNAGAN-HUCHUN - Recinto chinês reservada às culturas nos pântanosNAIDA — Sistema de aquecimento usado pelos lenhadores síberianosNOYON - Príncipe ou Khã, chefe, "excelência" OBO — Monumento sagrado, situado, nos lugares perigosos no Urian-hai e na Mongólia para aplacar a ira dos deusesOLETS - Calmucos OM — 1) o nome principal dos goros2) a ciência mágica do Estado subterrâneo OM MANI PADME HUNG - Salve, grande lama da flor de lótus!OROCHONS - Tribo mongol que vive à margem do Amur PANDITA — O grau mais elevado entre os monges budistas

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PANTI — Chifres de gamo, ainda aveludado, usado como remédio na China e no Tibete POGROM - Massacre PASPA - Fundador da seita amarela que predomina na religião lamaísta SAIT — Governador mongol SALGA — Espécie de perdiz SAYN — Bom dia; bom TAIGA — Floresta virgem da SibériaTAIMEN — Truta gigante que chega a pesar cinqüenta quilosTA LAMA — Ao pé da letra: grande sacerdote, usado agora para significar: grande médicoTACHUR - Segmento de bambu TCHAHAR — Tribo guerreira mongol que vive perto da Grande MuralhaTCHEKA — Organização bolchevista que perseguia os elementos contrários ao governo soviético TURPAN - Marreco vermelho selvagem TZAGAN - Branco TZARA — Documento que autorizava a receber cavalos e guias nos postos de muda TSIRIK — Soldados mongóis mobilizados ULAN - Vermelho TZUREN — Doutor em envenenamentoTJLATCHEN - Cavaleiro, guia que acompanha os cavalos dos pastos da muda URGA - 1) Capital da Mongólia,2) espécie de laço mongol URTON - Estação de muda onde os viajantes trocam os cavalos e os guias

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VATANÁ - O idioma falado no estado subterrâneo do Rei do MundoWAPITI - Espécie de alce YURTA - Tenda ou casa mongol de feltroZAHACHIN - Tribo mongol nômade do Oeste ZABEREGA — Amontoado de pedaços de gelo à margem dos rios, na primavera ZIKKURAT - Alta torre de estilo babilônico

ÍNDICE

LUTANDO CONTRA A MORTE

BESTAS, HOMENS E DEUSES..............................................................................................................2

2................................................................................93..................................................................................16

6..............................................................................249..............................................................................37

A Marcha dos Fantasmas............................................80

16..............................................................................................................................................................85

No Tibete Misterioso....................................................85

18............................................................................................................................................................106

19..............................................................................116Os Tchahars..............................................................116

20............................................................................................................................................................120

O Demônio de Jagisstai.............................................120

21............................................................................................................................................................130

Em cima de um vulcão..............................................142

26............................................................................................................................................................170

27..........................................................................17429..........................................................................188

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31..........................................................................20633..........................................................................21734..........................................................................22235..........................................................................227

36..............................................................................234Filhos de Cruzados e de Corsários.........................234O Campo dos Mártires...........................................248

38............................................................................................................................................................254

39..............................................................................267O homem com a cabeça em forma de sela...........267

41..............................................................................281A Poeira dos Séculos.............................................281

42..............................................................................285O Livro dos Milagres..............................................285

O Nascimento do Buda Encarnado............................289Uma Página da História do Buda...............................29145..............................................................................294A Visão do Buda Encarnado — 17 de maio de 1921. 294

O MISTÉRIO DOS MISTÉRIOS O REI DO MUNDO.......................................................................297

46............................................................................................................................................................297

O Reino Subterrâneo..............................................................................................................................297

O Rei do Mundo perante Deus..................................305

48............................................................................................................................................................308

Realidade ou Ficção Mística?.....................................30849..............................................................................311A Profecia do Rei do Mando — Em 1890...................311

ÍNDICE...................................................................................................................................................318

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