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8/2/2019 FeresNeto,A Filo 24-4
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ALFREDO FERES NETO
A VIRTUALIZAO DO ESPORTE E SUAS NOVAS VIVNCIASELETRNICAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAO
2001
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAO
TESE DE DOUTORADO
A VIRTUALIZAO DO ESPORTE E SUAS NOVAS VIVNCIASELETRNICAS
ALFREDO FERES NETO
ORIENTADOR: PROF. Dr. JOO FRANCISCO REGIS DE MORAIS
Este exemplar corresponde redao final da tesedefendida por Alfredo Feres Neto e aprovada pelaComisso Julgadora.Data:Assinatura: ___________________________
Comisso Julgadora:
__________________________________Prof. Dr. Joo Francisco Regis de Morais
_________________________________Prof. Dra. Constana Marcondes Csar
__________________________________Prof. Dr. Joo Carlos Nogueira
__________________________________Prof. Dr. Slvio Donizete de Oliveira Gallo
__________________________________Prof. Dr. Mauro Betti
Campinas SP2001
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RESUMO
Este um trabalho sobre os esportes radicais, o esporte telespetculo e os jogos eletrnicos.O objetivo foi discutir os significados destas novas vivncias esportivas, bem como as
possveis implicaes para a educao fsica, principalmente com relao a mudanas emsua prtica pedaggica. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliogrfica combinada comanlise valorativa de depoimentos de praticantes e trabalhos acadmicos que versaramsobre o assunto. Os resultados apontaram uma identificao destas modalidades com ummovimento amplo de virtualizao, que tem os meios eletrnicos de comunicao comomotor principal, e cujas caractersticas mais marcantes so o embaralhamento entre aprtica e a assistncia e a intensificao da experincia vital. Tambm argumentamos queestas novas vivncias do esporte devem ser incorporadas nas aulas de educao fsica, apartir de um processo de subjetivao e objetivao, conforme proposta adaptada dofilsofo francs Pierre Lvy.
ABSTRACT
This academic paper is about extreme sports, televised sports and videogames. Its maingoal was to discuss the meanings of these new interactions with sports, as well as possibleimplications to physical education, specially related to needs of changes in its pedagogicalpractice. The method of study combines bibliographical research with a value analysis of
practitioners speeches and academic papers that dealt with the theme. The results pointedout a relation of these interactions with a global movement of virtualization, the electronicmeans of communication being its center, and having as most interesting characteristics amismatch of practice and assistance and an intensification of vital experience. We alsoargue that these new interactions must be incorporated to physical education classes, by asubjective and objective process, according to Pierre Lvy proposal.
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Ao Vincius, meu filho, para que ele viva em um mundo no
qual a opo poltica pela utilizao das novas tecnologias decomunicao caminhe para a produo de novas
subjetividades, mais criativas, solidrias e amorosas.
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Joo Francisco Regis de Morais, mais do que um orientador, um companheiro
da jornada chamada vida humana, com quem tive o privilgio de con-viver nestes ltimosquatro anos.
Denise e ao Vincius, pelo privilgio de construir junto um lao eterno, que a famlia.
Aos meus pais, Leonice e s minhas irms, pelo incentivo e, mais do que isto, porfazerem parte de uma vida inteira.
Renata, por compartilhar comigo momentos maravilhosos durante estes ltimos quatroanos.
Aos meus amigos, pela experincia de poder ser um e ao mesmo tempo todos, sem os quaisa vida nada.
Ao Prof. Dr. Lino Castellani Filho, com quem tive a oportunidade de aprender muito nasaulas do Programa de Estgio e Capacitao Docente, tambm companheiro de estrada.
Aos Professores Doutores Jos Luis Sigrist e Newton Aquiles von Zuben, pelas orientaespreciosas durante todo o processo de construo da tese.
Aos Professores Doutores Mrcia Lopes Reis, Ricardo Jac de Oliveira e Larcio EliasPereira, pelo incentivo e apoio.
A todo o pessoal da secretaria da ps-FE, pela solicitude em todas as horas.
Capes, pelo apoio financeiro a esta pesquisa.
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SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................ 01
CAPTULO IMatizando o problema: a querela sobre a questo do virtual............................................. 071.1 Lvy e Guattari: uma nova humanidade e subjetividade............................................. 081.2 A imploso do espao-tempo de Paul Virilio e a desrealizaode Jean Baudrillard............................................................................................................. 15
1o INTERLDIOA virtualizao do corpo Pierre Lvy
CAPTULO IIEncarnao, outro, circunstncia: um estudo da experincia vital..................................... 23
2o INTERLDIOExperincia Walter Benjamin
CAPTULO IIIA virtualizao do esporte e suas novas vivncias..............................................................373.1 Esporte telespetculo, videogame, esportes radicais - a heterognesedo esporte como decorrncia de sua virtualizao.............................................................. 393.1.1Esporte telespetculo................................................................................................... 403.1.2Videogame.................................................................................................................. 463.1.3Esportes radicais......................................................................................................... 52
3.2 Em busca de elementos valorativos para uma anlise das novasvivncias do esporte............................................................................................................ 56
3o INTERLDIONossa escola Vilm Flusser
CAPTULO IVImplicaes da virtualizao do esporte para a educao fsica......................................... 684.1 Educao fsica: Lazer ou conhecimento?.................................................................... 704.2 Produo de subjetividades subjetivao e objetivao:contribuies para a educao/educao fsica................................................................... 75
CONSIDERAES FINAISPara que a semente se transforme em rvore ..................................................................... 82
APNDICE........................................................................................................................ 85BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 86
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INTRODUO
Este um trabalho sobre novas vivncias esportivas. Neste estudo, elas
foram agrupadas em trs categorias: esportes radicais, esporte telespetculo ejogos eletrnicos. Argumento que o elemento comum a todas estas modalidades
se encontra em um movimento amplo de virtualizao, que vem modificando todas
as esferas da vida humana, e que tem os meios eletrnicos de comunicao como
motor principal.
Fiquei instigado a realizar uma pesquisa sobre estas novas modalidades,
em um primeiro momento, pelo que me pareceu se caracterizar por uma
substituio da experincia imediata pela tela, seja a do computador, seja a da
televiso. A todo instante, vinha-me o questionamento da possibilidade de o
praticante deixar de vivenciar elementos importantes, do meu ponto de vista, como
o contato face a face, a construo coletiva de regras (caracterstica marcante
principalmente no esporte enquanto atividade de lazer), a espontaneidade e o
encontro de corpos, suados e vivos. Ao mesmo tempo, no poderia deixar de
considerar o fato de a televiso e o computador estarem cada vez mais
incorporados no cotidiano das pessoas, e portanto seria um anacronismo no
lev-los em conta, como importantes meios de interao com o esporte.Rubem Alves, em algum escrito do qual no me recordo neste momento,
diz que a motivao para a pesquisa advm de algo que nos falta, que se
constitui, para ns, como ausncia. Percebo claramente, nesta altura de minha
vida, que este algo, no meu caso, a questo da experincia. Olhando para trs,
vejo que no mera coincidncia ter me motivado a escrever uma dissertao de
mestrado sobre a especializao esportiva precoce (Interesses fsicos do lazer a
influncia do esporte de alto rendimento para a criana na relao lazer-escola-
processo educativo). A partir do conceito construdo por Phillipe Aris de
sentimento de infncia, procurei mostrar o carter propedutico embutido nesta
vivncia, visando preparao de um futuro adulto produtivo, negligenciando a
criana em seu momento de viver o ldico, a brincadeira, a fantasia.
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O trabalho mencionado acima tambm parte de uma experincia pessoal:
comecei a praticar esportes (jud), em bases competitivas, j aos cinco anos de
idade. Esta dissertao, que foi defendida na Faculdade de Educao Fsica da
Unicamp, em setembro de 1994, tendo como orientador de mestrado o Prof. Dr.
Nelson Carvalho Marcellino, nasceu, enquanto problema a ser investigado por
mim, por volta de 1986, durante a minha graduao em Educao Fsica na
Universidade de So Paulo. Quando, ao ver crianas pequenas competindo em
categorias inferiores de futebol de salo, com nomes bastante sugestivos quanto
precocidade desta prtica (chupetinha, mamadeira, fraldinha etc.), senti que algo
estava errado, que aquelas crianas no deveriam estar em um esquema
competitivo, inclusive sem qualquer adaptao quanto a regras, dimenses de
quadra, peso da bola etc.Boa parte de meus trabalhos acadmicos posteriores, como artigos
publicados, participao em congressos e docncia, girou em torno do tema do
furto do ldico na infncia, principalmente por meio da vivncia da prtica
esportiva, cujas caractersticas mais marcantes so o rendimento mximo, a
sobrevalorizao da competio em detrimento da cooperao e a busca da
vitria a qualquer custo. Pareceu-me, ento, que o tema que comeava a
investigar no doutorado estava inserido neste contexto maior, ao qual j me
dedicava, na medida em que, naquele momento, tendi a interpretar a substituio
da experincia imediata pela mediao dos aparelhos eletrnicos como um modo
a mais de furtar o elemento ldico da cultura da criana.
Detectei, com base nos autores que havia lido at o primeiro ano do curso
(1997), que muito mais importante do que execrar esta ou aquela tecnologia (o
que seria um anacronismo), entender que tipo de interao est ocorrendo a.
Alguns aspectos que mereceram destaque foram: 1. a passividade em potencial
presente nesta vivncia (na medida em que os parmetros j esto dados pelo
equipamento como no videogame restando ao indivduo jogar de acordo com
eles, sobrando pouco espao para a mudana de regras e objetivos. 2. O declnio
de uma relao pessoal e experimental com as pessoas e a natureza, que vai
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sendo substituda por uma relao de posse (na medida em que posso escolher
quando e de que maneira vou me relacionar com elas).
No obstante, durante o cumprimento dos crditos de disciplinas, no
segundo ano do curso de doutoramento da Faculdade de Educao da Unicamp,
caiu-me s mos o livro O que o virtual(1996), do filsofo francs Pierre Lvy.
Logo percebi que esta obra fornecia uma possibilidade de leitura, a meu ver, muito
interessante para a temtica que havia escolhido. Em outras palavras, pareceu-me
que as novas vivncias do esporte se constituam, na teoria de Lvy, como
atualizaes das modalidades mencionadas acima, que por sua vez
caracterizavam-se como mutaes de identidade, do esporte. Portanto,
preenchiam uma das principais caractersticas da virtualizao, ou seja, da
passagem do atual para o virtual.Duas possibilidades de abordar o problema se colocaram, ento, minha
frente: considerar estas novas vivncias do esporte como fatores de alienao, o
que tem como pano de fundo uma contraposio entre o virtual e o real, e, desta
feita, desumanizantes, ou, por outro lado, como possibilidades de ampliao das
interaes intra e interpessoais a partir da incorporao dos meios eletrnicos de
comunicao no cotidiano, sendo corresponsvel, como parte deste movimento
mais amplo de virtualizao, pelo processo de humanizao, com potencial para a
produo de novas subjetividades. Escolhi esta ltima como hiptese deste
trabalho, inspirado por autores com quem compartilhei uma viso no catastrfica
e, mais do que isto, esperanosa, das mutaes em curso, como Pierre Lvy,
Flix Guattari e Pierre Babin.
Colocado o tema-problema e a hiptese deste trabalho, o objetivo que se
imps foi discutir os significados destas novas vivncias esportivas, bem como as
possveis implicaes para a educao fsica, principalmente com relao a
mudanas em sua prtica pedaggica. Os temas que precisaram ser
desenvolvidos, portanto, foram a virtualizao responsvel, em nossa
argumentao, pela criao de novas modalidades esportivas e a experincia
vital, o que procurei fazer, respectivamente, nos dois primeiros captulos. No
terceiro captulo, procedi a um processo de valorao, entendido enquanto
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reflexo valorativa, dos dados coletados em depoimentos, entrevistas e trabalhos
acadmicos que giraram em torno das novas vivncias esportivas, a partir dos
subsdios levantados anteriormente. No quarto e ltimo captulo, procurei inferir
algumas implicaes pedaggicas para a educao fsica, entendida, em sentido
amplo, como uma prtica educativa.
Importante destacar que este trabalho foi redigido na primeira pessoa do
singular. Esta escolha, compartilhada conscientemente junto com o orientador,
deve-se ao referencial terico-metodolgico privilegiado, principalmente a partir
das contribuies de Julian Maras, filsofo que tem me acompanhado at este
momento e que traz a noo de que a vida no nada em si, mas adquire
sentido quando falo de minha vida, ou melhor, eu vivendo-a. Minha vida um
gerndio. Toda realidade enquanto realidade enquanto encontrada por mim dequalquer modo que seja radica em minha vida, nela est radicada (Antropologia
Metafsica, p. 50). Para este autor, portanto, fundamental partir da experincia
de minha vida. Foi o que procurei fazer durante todo o trabalho.
Em seguida, fao uma breve sntese de cada captulo, procurando
evidenciar a articulao lgica do pensamento que procurei desenvolver,
denotando, portanto, a sua trajetria terico-metodolgica.
Captulo I
Matizando o problema: a querela sobre a questo do virtual
Neste primeiro captulo, trouxe para o debate quatro dos principais autores
contemporneos que produziram teorias interessantes sobre o virtual. So eles:
Pierre Lvy, Flix Guattari, Paul Virilio e Jean Baudrillard. Argumento no trabalho
que os dois primeiros apresentam uma viso que privilegia as possibilidades que
vm se abrindo com os meio eletrnicos de comunicao, respectivamente aproduo de uma nova humanidade e novas subjetividades, enquanto os dois
ltimos parecem centrar suas preocupaes, respectivamente, no predomnio da
velocidade, principalmente da transmisso de dados, como balizadora das
relaes humanas e em uma desrealizao que tem como principal conseqncia
a perda do referencial histrico. Portanto, procurei neste captulo trazer diferentes
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perspectivas que, do meu ponto de vista, mesmo se contrapondo em
oportunidade e crise (ou at por isto), se complementam.
Captulo II
Encarnao, outro, circunstncia: um estudo da experincia vital
A partir da contribuio dos autores que se debruaram sobre a questo do
virtual, particularmente Pierre Lvy e Flix Guattari, pareceu-me necessrio
destacar o processo de mutao do humano, fruto de sua interao com as novas
tecnologias da comunicao, o que corresponde produo de novas
subjetividades, mencionada acima. Deste modo, tornou-se necessrio perguntar:
O que o homem? O que a pessoa? O que experincia?
Portanto, procurei neste segundo captulo trazer a contribuio de autores
que se debruaram sobre o tema da pessoa, reflexo recente na filosofia
ocidental. Ponto comum entre estes pensadores, a indissociabilidade entre o
sujeito e seu mundo constituiu-se como elemento fundamental para a tentar
compreender o significado das novas vivncias do esporte, resultado da interao
com as novas modalidades esportivas. Para tanto, busquei principalmente em
Julian Maras e Georges Gusdorf as principais categorias de anlise deste
trabalho: corporeidade, mundanidade, outrem, circunstncia e vivncia (realidade
radical). Estas categorias compe, em poucas palavras, a experincia vital, cuja
construo permitiu, junto com as teorias sobre o virtual, a reflexo valorativa queprocedi no terceiro captulo.
Captulo III
A virtualizao do esporte e suas novas vivncias
Com base na problematizao dos autores que se debruaram sobre a
questo do virtual/virtualizao (Captulo I), e das principais teorias sobre a
pessoa e sua circunstncia (Captulo II), empreendi uma anlise dos depoimentos
de praticantes destas vivncias eletrnicas, coletados em revistas, jornais e
textos acadmicos, bem como de pesquisas empreendidas, principalmente, sobre
a assistncia ao esporte televisionado. A tnica da pesquisa foi a tentativa de
desvendar os significados presentes nestas vivncias. Foi possvel perceber um
movimento duplo, s vezes simultneo, que denominei de embaralhamento e
intensificao. O primeiro refere-se a uma crescente dificuldade em distinguir
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prtica e assistncia, bem como da interpenetrao entre o pblico e o privado,
fenmenos constantes principalmente no esporte telespetculo. J o segundo, que
compe os denominados esportes radicais, representa uma profunda experincia
paradoxal de conexo e fuga de si mesmo, a qual identifico com a contribuio
freudiana de pulso de morte, na medida em que esta experincia, do meu pontode vista, pode ser interpretada como negao das limitaes e medos inerentes
vida real.
Captulo IV
Implicaes da virtualizao do esporte para a Educao Fsica
Tendo em vista as anlises que foram empreendidas no captulo anterior,
verifiquei a necessidade de ampliar os limites conceituais do esporte, ponto em
que corroboro pesquisa de doutorado realizada pelo professor Mauro Betti,
publicada posteriormente como A janela de vidro. Em meu trabalho, argumento
que esta ampliao deve levar em conta no apenas as modalidades, mas
tambm as novas vivncias, na medida em que novos jogos sociais se encontram
presentes, como a intensificao da experincia e o embaralhamento entre o
assistir e o praticar.
Empresto de Pierre Lvy a metfora que considero o ponto central destas
implicaes: a bola como objeto que faz circular a inteligncia coletiva. Proponho
que a educao fsica, em sua prtica pedaggica, considere a experincia vital,presente na motricidade humana, como este objeto. Para tanto, entendo ser
fundamental a incorporao, nas aulas de Educao Fsica, do trabalho em
estreo e mixagem, conforme proposta de Mauro Betti (1998) a partir da
contribuio de Pierre Babin e Koulomdjian (1989), combinado com a
indispensvel experincia imediata, construo que emprestamos de Vilm
Flusser (1983).
Quero deixar ecoar aqui algumas palavras deste ltimo autor, que
considero uma das principais referncias deste trabalho, que ora apresento como
requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor pela Faculdade de Educao
da Universidade Estadual de Campinas.
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Os institutos tecnolgicos futuros exigiro conhecimento de
informtica, ciberntica, teoria dos conjuntos e dos jogos. Isto
proporcionar aos alunos recuo 'irnico' com relao aos aparelhos e
seu funcionamento. E tal distanciamento terico ser convite para o
mergulho em direo da experincia imediata. Convite 'filosofia'.Por assim dizer: s costas do aparelho os alunos da escola futura
transcendero o aparelho. Percebero eles o aparelho como jogo.
Sero jogadores com as regras que aprendem. Transcendero a
funo, no como o produtor de filmes transcende a cidade. Mas a
transcendero como o filsofo transcende a cidade. Transcendero o
aparelho teoricamente e concretamente (Flusser, 1983, p. 151).
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CAPTULO I
MATIZANDO O PROBLEMA: A QUERELA SOBRE A
QUESTO DO VIRTUAL
Assistimos hoje a um processo que podemos denominar de mutao do
esporte. Dia aps dia, surgem novas modalidades que vm desafiando os
tradicionais critrios utilizados para conceituar esta manifestao da cultura, ou
seja, no apresentam as mesmas caractersticas de competio, rendimento
mximo, vitria/derrota, etc., que se encontram nas atividades esportivas ditas
tradicionais (Betti, 1998, p. 16). Paradoxalmente, boa parte recebe a
denominao de esportes radicais: descer uma cachoeira utilizando cordas, ou
mesmo a boca de uma caverna, para no falar do mais conhecido bungee jump,
em que o sujeito pula de um viaduto seguro por cordas elsticas, so algumas das
atividades mais conhecidas.
Outra manifestao que, do nosso ponto de vista, caminha nesta direo,
so os jogos eletrnicos, ou videogames. Neste caso, o desafio conceitual recai
sobre a desterritorializao desta prtica (prtica?), pois j no se encontra em um
espao puro, uma condio a priorinecessria para se dar experincia, como
posto em Kant, para quem o espao e o tempo so condies a priori de
possibilidade da intuio emprica, da experincia do mundo. Ou seja, deste ponto
de vista s seria possvel intuir um objeto ao represent-lo no espao, exterior ao
sujeito. Ocorre que a imagem virtual, substrato dos videogames, constitui-se no
prprio objeto da experincia, no seu tecido mesmo e a define exatamente
(Quau, 1996, p. 94).O mesmo parece acontecer com o esporte telespetculo, que apresenta
como um de seus aspectos mais interessantes um embaralhamento entre prtica
e assistncia.
Parece ser possvel afirmar, a partir do que foi colocado acima, que est
ocorrendo uma mutao de identidade do esporte. Identifico este processo com
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algo mais geral, que o filsofo francs Pierre Lvy (1996, p. 11) denomina
movimento geral de virtualizao, fruto do advento das novas tecnologias de
comunicao, que est modificando diversas esferas da vida humana, como o
trabalho e o lazer. Por exemplo, atualmente o teletrabalho desestrutura algumas
das principais caractersticas laborais, como a presena fsica no escritrio e a
durao da jornada, ao mesmo tempo em que permite uma grande sinergia entre
os trabalhadores.
Neste captulo abordarei as diferentes concepes sobre o virtual, a partir
de seus mais criativos tericos, como Pierre Lvy, Flix Guattari, Paul Virilio e
Jean Baudrillard. Os dois primeiros caracterizam-se por enxergarem grandes
possibilidades de que esta virtualizao colabore com o processo de humanizao
(Lvy, 1996, passim) e de criao de uma nova/novas subjetividade(s) (Guattari,1992, passim); j os dois ltimos preferem focar os perigos que este mesmo
movimento parece engendrar, particularmente uma imploso do espao/tempo
(Virilio, 1993, passim) e uma desrealizao geral (Baudrillard, 1996, passim).
Pretendo com isto matizar a questo, o que permitir um quadro mais consistente
de anlise, fundamental para estudar as implicaes para o esporte, em especial
no que se refere ao que iremos chamar de suas novas vivncias eletrnicas.
1.1 Lvy e Guattari: uma nova humanidade e subjetividade.
Comearei por Pierre Lvy. Dos autores que vm produzindo idias
interessantes para pensarmos os fundamentos do processo em questo,
entendo que particularmente o intelectual francs, que tem vindo ao Brasil
freqentemente nestes ltimos anos, destaca-se por captar o que penso ser a sua
essncia. O autor em foco argumenta que estamos vivendo um movimento geral
de virtualizao. Frente a ele, tem um posicionamento diferente, no catastrofista,
daquele difundido principalmente por Jean Baudrillard e Paul Virilio que,
respectivamente, entendem estar havendo uma desrealizao geral e uma
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imploso do espao-tempo. Sustentado por uma tripla investigao relativa a
virtualizao (filosfica, antropolgica e sociopoltica), Lvy (1996, passim)
fornece elementos para que possamos compreender toda a sua amplitude.
Flix Guattari (1992, p. 14), na mesma direo, atribui s tecnologias de
comunicao, especialmente as mais recentes, como as mdias eletrnicas, a
informtica e a telemtica, o papel de operarem na heterognese do humano,
contribuindo para a produo de novas subjetividades. O filsofo francs
argumenta que este movimento se d a partir de 1. componentes semiolgicos
significantes que se manifestam por meio da famlia, da educao, do meio
ambiente, da religio, da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indstria
dos mdia, do cinema, etc.; 3. dimenses semiolgicas a-significantes colocando
em jogo mquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ouindependentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significaes e
denotaes que escapam ento s axiomticas propriamente lingsticas
(Guattari, op. cit., p. 14).
Guattari (op. cit., p. 15) cuidadoso ao analisar o processo de
subjetivao operado pelas novas tecnologias de comunicao. Aponta um
movimento duplo e simultneo, de homogeneizao universalizante e
reducionista da subjetividade e uma tendncia heterogentica, quer dizer, um
reforo da heterogeneidade e da singularizao de seus componentes. Neste
ponto taxativo quanto ao futuro da virtualizao da cultura: ou caminhamos para
a criao, a inveno de novos Universos de referncia; ou, no sentido inverso,
(o pior), que a mass-midializao embrutecedora, qual so condenados hoje
em dia milhares de indivduos (Guattari, op. cit., p. 15-6).
Penso que estes dois movimentos j so bastante presentes na
contemporaneidade. Comecemos pelo pior, que segundo Guattari, se caracteriza
pela massificao. Dois dos maiores ndices de audincia da televiso brasileira
so registrados nos programas dominicais das duas maiores redes, a Globo e a
SBT, respectivamente responsveis pelos Programa do Fausto e Programa do
Gugu1. Sabe-se que a durao de cada um dos quadros destes programas est
1 Conforme encarte sobre televiso da Folha de So Paulo de 11 de fevereiro de 2001.
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diretamente relacionada contnua aferio dos pontos registrados pelo Ibope. Ou
seja, encontramos a um exemplo de edio de imagens e quadros baseado
quase que exclusivamente no nmero de assistentes, o que leva a uma
programao, do meu ponto de vista, de baixa qualidade, na medida em que, para
atingir seu objetivo, nivela-se por baixo o nvel da programao.
Por outro lado, e como o reverso da moeda, pode-se observar programas
de qualidade principalmente nos canais de televiso a cabo. Um dos aspectos que
atribuo para esta diferenciao justamente a diversificao da programao.
Portanto, razovel supor que ela atender indivduos e grupos heterogneos
entre si, o que parece caminhar na direo do que Guattari denomina novos
Universos de Referncia.
Tambm Pierre Lvy demonstra cautela quanto aos impactos da evoluoem curso. Para ele, estamos caminhando para uma encruzilhada em que, numa
direo aponta para a reproduo do que j est a, ou seja, da espetacularizao
e da massificao, bases para o consumo, alicerce do capitalismo globalizado
contemporneo, e em outra a possibilidade de acompanharmos as tendncias
mais positivas da evoluo em curso e criamos um projeto de civilizao centrado
sobre os coletivos inteligentes: recriao do vnculo social mediante trocas de
saber, reconhecimento, escuta e valorizao das singularidades, democracia mais
direta, mais participativa, enriquecimento das vidas individuais, inveno de
formas novas de cooperao aberta para resolver os terrveis problemas que a
humanidade deve enfrentar, disposio das infra-estruturas informticas e
culturais da inteligncia coletiva (1996, p. 118).
Logo no incio do seu trabalho O que o virtual, Lvy desfaz a noo, to
difundida, de que o virtual se ope ao real. A palavra virtual vem do latim
medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, fora, potncia. Na filosofia
escolstica, virtual o que existe em potncia e no em ato. O virtual tende a
atualizar-se, sem ter passado, no entanto, concretizao efetiva ou formal. A
rvore est virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente
filosficos, o virtual no se ope ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade
so apenas duas maneiras de ser diferentes (Lvy, op. cit., p. 15).
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Assim, para este autor, o virtual como o n problemtico, o n de
tendncias ou de foras que acompanha uma situao, um acontecimento, um
objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resoluo: a
atualizao (Lvy, op. cit., p. 16).
Lvy (op. cit., p. 12) chama a ateno para o fato de que a noo de
virtual j ter sido trabalhada por muitos filsofos, inclusive franceses
contemporneos como Gilles Deleuze e Michel Serres. Assim, desde logo explicita
a sua possvel contribuio com a presente obra: no se limitar em definir o virtual
como um modo de ser particular, nem tampouco analisar a passagem do
possvel ao real ou do virtual ao atual (o que, segundo ele, j foi feito pela
tradio filosfica at os trabalhos mais recentes). o movimento inverso que
pretende abordar, ou seja, do atual e do real ao virtual. Ora, precisamente esseretorno montante que me parece caracterstico tanto do movimento de
autocriao que fez surgir a espcie humana quanto da transio cultural
acelerada em que vivemos hoje.
este movimento inverso, do atual ao virtual, que denomina virtualizao.
A virtualizao no uma desrealizao (a transformao de uma realidade num
conjunto de possveis), mas uma mutao de identidade, um deslocamento de
centro de gravidade ontolgico do objeto considerado: em vez de se definir
principalmente por sua atualidade (uma soluo), a entidade passa a encontrar
sua consistncia essencial num campo problemtico. Virtualizar uma entidade
qualquer consiste em descobrir uma questo geral qual ela se relaciona, em
fazer mutar a entidade em direo a essa interrogao e em redefinir a atualidade
de partida como resposta a uma questo particular (Lvy, op.cit., p. 17-8).
Guattari, em Caosmose (1992, p. 51), j lanava as bases das idias acima
que posteriormente foram desenvolvidas por Lvy. Ao descrever o conceito de
mquina2, argumenta que ela est sempre em situao de complementaridade
com elementos exteriores (o homem que a fabrica, outras mquinas atuais e
2 Guattari contrape uma viso mecanicista de mquina sua assimilao e interao com os seres vivos, apartir do conceito de autopoiese desenvolvido por Humberto Varela e Francisco Maturana, bem como daperspectiva ciberntica aberta por Norbert Wiener.
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virtuais, etc.), que em ltima instncia acarretam um processo autopoitico, que
ocorre por meio de desterritorializaes.
preciso considerar que existe uma essncia maqunica que ir se
encarnar em uma mquina tcnica, mas igualmente no meio social,
cognitivo, ligado a essa mquina os conjuntos sociais so tambm
mquinas, o corpo uma mquina, h mquinas cientficas, tericas,
informacionais. A mquina abstrata atravessa todos esses
componentes heterogneos, mas, sobretudo ela os heterogeneza
fora de qualquer trao unificador e segundo um princpio de
irreversibilidade, de singularidade e de necessidade.
A virtualizao, para poder ser mais bem compreendida, necessita ter seus
principais termos explicados. Lvy trabalha com dois pares que indicam
movimentos distintos, conforme quadro a seguir:
Latente Manifesto
Substncia Possvel (insiste) Real (subsiste)
Acontecimento Virtual (existe) Atual (acontece)
Ilustrao 1: Reproduo de quadro p. 138 (Lvy, 1996)3
Ao emprestar de Gilles Deleuze uma distino entre dois termos (possvel e
virtual), esclarece que o primeiro se relaciona com o real, ainda que de uma forma
latente. O possvel exatamente como o real: s lhe falta a existncia (Lvy,
1996, p. 16). Cita como exemplo um programa informtico antes de rodar no
computador (possvel) e depois (real) (Lvy, op. cit., p. 17).
por isso que o virtual no se ope ao real, mas sim ao atual. Este par
(virtual/atual), ao contrrio do anterior (possvel/real), que j se encontra
3 Lvy aponta a influncia decisiva de Flix Guattari na construo deste quadro a partir do que denominaquatro functores ontolgicos, constitudos pelos phylum tcnicos ou discursividade maqunica, universos devalores e de referncia (ou complexidade incorporal), fluxo, ou discursividade energtico-espao-temporal, eterritrios existenciais, ou encarnao casmica (1996, p. 153).
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constitudo, implica uma criao, no sentido pleno do termo, pois a criao implica
tambm a produo inovadora de uma idia ou de uma forma (Lvy, op. cit., p.
16).
Lvy (op. cit., p. 18) procura ilustrar esta dinmica pelo exemplo da
virtualizao de uma empresa. Ao desestruturar a organizao clssica de
trabalho (livro de ponto, presena fsica, expedientes pr-determinados), e
substitu-la por uma rede de comunicao eletrnica e pelo uso de recursos e
programas que favoream a cooperao, a virtualizao fluidifica as distines
institudas, aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor. Portanto, no se
trata de uma desrealizao; pelo contrrio, a virtualizao um dos principais
vetores de criao de realidade.
Tambm Guattari (1992, p. 17) aborda o potencial criador da virtualizao,porm, sempre enfatizando a produo de subjetividade. Ou seja, a mutao de
identidade da cultura engendra o seu enriquecimento ou seu empobrecimento,
dependendo, em ltima anlise, da qualidade da experincia da pessoa com estes
novos Universos. O filsofo francs relata o seu trabalho com psicticos do campo
e da cidade (principalmente burocratas e intelectuais). Para os primeiros, notou
avano teraputico quando entraram em contato com artes plsticas, teatro,
msica, etc., Universos que lhes eram alheios. J para os segundos, interessava
atividades como jardinagem e culinria. O que importa aqui no unicamente o
confronto com uma nova matria de expresso, a constituio de complexos de
subjetivao: indivduo-grupo-mquina-trocas mltiplas, que oferecem pessoa
possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de
seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar. Estas
reflexes sero de suma importncia para abordarmos a vivncia da cultura em
um mundo cada vez mais influenciado pela virtualizao.
Em sua cartografia do virtual, Lvy (1992, p. 19) desmistifica uma outra
noo presente no senso comum: a de que o virtual se confunde com o
ciberespao que est se construindo com as novas tecnologias da comunicao.
Est implcita a uma idia de desaparecimento que, se por um lado no
totalmente equivocada o virtual, com muita freqncia, no est presente por
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outro no abarca toda a sua complexidade. Veremos a seguir um exemplo de
virtualizao que implica uma materializao - a tcnica. Esta, junto com a
linguagem e o contrato, formam as trs virtualizaes responsveis pelo processo
de hominizao.
Para Lvy (1996, p. 73), a linguagem o prprio arqu do humano. Ela
tem a capacidade de virtualizar o tempo, o que nos possibilita problematiz-lo.
As linguagens humanas virtualizam o tempo real, as coisas materiais, os
acontecimentos atuais e as situaes em curso. Da desintegrao do presente
absoluto surgem, como as duas faces da mesma criao, o tempo e o fora-do-
tempo, o anverso e o reverso da existncia. Acrescentando ao mundo uma
dimenso nova, o eterno, o divino, o ideal tem uma histria. Eles crescem com a
complexidade das linguagens. Questes, problemas, hipteses abrem buracos noaqui e agora, desembocando, do outro lado do espelho, entre o tempo e a
eternidade, na existncia virtual.
A idia de que a virtualizao sempre acompanhada por um
desaparecimento uma desrealizao pode ser facilmente combatida pelo
exemplo da virtualizao tcnica. A ferramenta se constitui em uma passagem do
privado para o pblico. Exemplificando, um martelo, nasce das experincias
subjetivas do prprio corpo. Porm, ele mais do que a sua extenso (como
entende Marshall McLuham). Mais do que uma extenso do corpo, uma
ferramenta uma virtualizao da ao (Lvy, 1996, p. 75). Vale a pena, no
intuito de melhor apreender a dinmica entre os quatro modos de ser diferentes,
atentar para o seguinte trecho:
Em suma, o mesmo objeto tcnico pode ser considerado segundo quatro
modos de ser. Enquanto problematizao, desterritorializao, passagem ao
pblico, metamorfose e recomposio de uma funo corporal, o objeto tcnico
um operador de virtualizao. Tal martelo virtualiza quando o consideramos como
memria da inveno do martelo, vetor de um conceito, agente de hibridao do
corpo. Ento, o martelo existe e faz existir (Lvy, op. cit., p. 76).
Finalmente, a terceira virtualizao que constituiu o humano. O contrato
ou, usando as palavras de Pierre Lvy a virtualizao da violncia, emerge do
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aumento da complexidade das relaes sociais. Os rituais, as religies, as
morais, as leis, as normas econmicas ou polticas so dispositivos para virtualizar
os relacionamentos fundados sobre as relaes de foras, as pulses, os instintos
ou os desejos imediatos. Uma conveno ou um contrato, para tomar um exemplo
privilegiado, torna a definio de um relacionamento independente de uma
situao particular; independente, em princpio, das variaes emocionais
daqueles que o contrato envolve; independente da flutuao de foras (Lvy, op.
cit., p. 77).
Se por um lado entendo, juntamente com Lvy e Guattari, que a
virtualizao concorre para a criao de realidade, por outro preciso notar que
este movimento generalizado tambm apresenta um paradoxo importante a ser
analisado aqui, justamente a partir deste seu potencial criador. Trata-se de umacerta tendncia homogeneizao, equivalncia, na medida em que as coisas
se tornam padronizveis, intercambiveis, decorrncia das diversas opes de
experincia que se abrem principalmente pelas novas tecnologias de
comunicao. Guattari (1992, p. 169) quem vai mais fundo nesta questo. Os
turistas, por exemplo, fazem viagens quase imveis, sendo depositados nos
mesmos tipos de cabine de avio, de pullman, de quartos de hotel e vendo desfilar
diante de seus olhos paisagens que j encontraram cem vezes em suas telas de
televiso, ou em prospectos tursticos. Assim, a subjetividade se encontra
ameaada de paralisia.
Octavio Ianni tambm aponta para um paradoxo semelhante, porm
partindo do eixo modernidade/ps-modernidade4. Para o socilogo da Unicamp,
ao mesmo tempo em que esta ltima apresenta-se descontnua, fragmentada,
diversificada uma boa imagem que ilustra esta impresso a da soft-citycitada
por David Harvey em A condio ps-moderna5 nunca o mundo foi to
4 Paradoxo apresentado pelo citado professor na disciplina Seminrio de Teoria Metodolgica em CinciasSociais, cursada por mim como aluno regular no 1o semestre de 1998 no Instituto de Filosofia e CinciasHumanas da Unicamp.5 A seguinte citao de Jonathan Raban, presente no livro citado de Harvey, ilustra a idia de fragmentao ediversidade presente nas cidades mundiais mencionada por Octavio Ianni: Para o bem ou para o mal, [acidade] o convida a refaz-la, a consolid-la numa forma em que voc possa viver nela. Voc tambm. Decidao que ela , e a sua prpria identidade ser revelada, como um mapa fixado por triangulao. As cidades, aocontrrio dos povoados e pequenos municpios, so plsticas por natureza (1989, p. 17).
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articulado. Basta pensar na globalizao da economia, que integrou de maneira
jamais vista na histria as finanas mundiais e os grandes conglomerados
empresariais, a partir de uma rede mundial de computadores e da
interdependncia dos mercados financeiros, acarretando grande dependncia
entre os pases perifricos e centrais, particularmente com os Estados Unidos. Ao
mesmo tempo, no paramos de nos espantar com novidades todos os dias, seja
no campo das novas tecnologias, seja na produo de novos comportamentos.
Paralisia e movimento, articulao e descontinuidade eis o que parece ser o
paradoxo dos tempos atuais, da virtualizao e da ps-modernidade.
Procurei, at o momento, recuperar as principais colocaes de Pierre Lvy
e de Flix Guattari sobre o virtual e algumas de suas implicaes: o seu papel na
dinmica dos quatro modos de ser que, vale repetir mais uma vez, no se opeao real e o seu papel, enquanto virtualizao, de ser responsvel pelo processo
de hominizao, e de sua atual mutao. Em sntese, a leitura destes dois autores
expressa uma perspectiva otimista quanto aos rumos da virtualizao, ao mesmo
tempo em que ambos mantm uma postura cautelosa, na medida em que este
movimento ontolgico foi e construdo historicamente. Portanto, no se restringe
as modificaes que vm ocorrendo pelo advento das novas tecnologias de
comunicao (embora, indubitavelmente, ele tenha se acelerado muito a partir de
ento), mas acompanham o prprio processo de humanizao, principalmente
pela linguagem, a tcnica e o contrato. Penso ento que, a partir desta
contextualizao histrica do virtual, o caminho est aberto, tanto na direo da
construo de uma nova humanidade e subjetividade, como para a catstrofe da
massificao e homogeneizao do homem, posio esta bastante marcada na
produo intelectual de Paul Virilio e Jean Baudrillard, que veremos a seguir.
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1.2 A imploso do espao-tempo de Paul Virilio e a desrealizao de
Jean Baudrillard.
O pensamento de Paul Virilio se contrape ao de Pierre Lvy, do meu ponto
de vista, da mesma forma que, na cultura oriental, a crise se contrape
oportunidade. Em outras palavras, a primeira decadncia tende a se resolver
na direo de uma transformao. Capra, em seu clebre livro O ponto de
mutao (1988), argumenta, a este respeito, a partir do orculo chins I Ching,
que ao trmino de um perodo de decadncia sobrevm o ponto de mutao. A
luz poderosa que fora banida ressurge. H movimento, mas este no gerado
pela fora... O movimento natural, surge espontaneamente. Por essa razo, a
transformao do antigo torna-se fcil. O velho descartado, e o novo introduzido. Ambas as medidas se harmonizam com o tempo, no resultando da,
portanto, nenhum dano6.
Do meu ponto de vista, mesmo movimento geral de virtualizao que Lvy
enxerga como busca de hominizao (1996, p. 11), e mais ainda, como um dos
principais vetores de criao de realidade (1996, p. 18), visto por Virilio (1993,
passim) como principal causadora do que poderia ser chamado de uma imploso
do espao-tempo, principal responsvel pelo que entende ser uma crise da
percepo destas duas dimenses ontolgicas, pois este ltimo se sobrepe
sobre o primeiro, na medida em que a velocidade de transmisso de dados se
torna o referencial mediador das relaes entre as pessoas nos mais diversos
nveis (trabalho, lazer, etc.) Portanto, entendo que contrapor estes autores poder
contribuir, em um mesmo movimento crise e oportunidade para elucidar os
fundamentos do processo em questo. o que veremos a seguir.
Vamos, ento, ao pensamento de Virilio. O arquiteto e urbanista francs em
seu livro O espao crtico (1993, p. 8-9) argumenta que vivemos na
contemporaneidade um rearranjo da Cidade, do ponto de vista espacial e
temporal, a partir do que denomina ruptura de continuidade, que se desdobra
em, pelo menos, trs aspectos: utilizao das tecnologias eletrnicas de
6 Citao localizada em pgina inicial no numerada do citado livro.
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comunicao, reorganizao industrial e revoluo dos transportes. A primeira se
caracteriza principalmente por se constituir em uma mediao eletrnica que
substitui o contato face a face, a segunda pelo que vem provocando de
desemprego, fechamento de empresas, aumento do trabalho autnomo e do
teletrabalho, e a terceira por caminhar na direo de extinguir a oposio entre
intra-muros e extramuros (o que, segundo Virilio, resulta no fenmeno de
conurbao dos centros urbanos).
Tudo isto faz com que os limites espaciais das portas, portes, muros e
fachadas sejam substitudos pela interface da tela que constitui uma nova
topologia eletrnica (Virilio, op. cit., p. 9). Deste modo, a prpria representao
da cidade muda, pois as suas tramas no mais se inscrevem no espao de um
tecido construdo, mas nas seqncias de uma planificao imperceptvel dotempo na qual a interface homem/mquina toma o lugar das fachadas dos
imveis, das superfcies dos loteamentos... (Virilio, op. cit., p. 10).
Uma conseqncia imediata da substituio dos limites espaciais pela tela
a perda da noo do limite temporal entre o dia e a noite, na medida em que
esta nova topologia a desconsidera. Institui-se, portanto, um falso dia eletrnico,
que caminha para o paroxismo de um presente permanente cuja intensidade sem
futuro destri os ritmos de uma sociedade cada vez mais aviltada (Virilio, op. cit.,
p. 11).
Tambm Baudrillard (1996, p. 147) far crticas tela, mais especificamente
televiso. Para ele, que apresenta um pensamento mais negativo quanto ao
virtual do que Virilio, a imagem televisiva, bem como as imagens de sntese (por
exemplo, o videogame), ao contrrio da imagem-foto ou da imagem-cinema,
romperam com qualquer ligao com a histria, na medida em que se
autoproduzem sem referncia a um real ou a um imaginrio, [so] virtualmente
sem limite, e esse engendrar-se sem limite produz a informao como catstrofe.
A questo de fundo para esta crtica, porm e este o ponto que
particularmente nos interessa neste trabalho - reside na prpria noo de virtual
empregada pelo autor de, entre outros livros,A sociedade de consumo. Baudrillard
(op. cit., p. 147), neste ponto, diverge radicalmente de Pierre Lvy. Ao se referir s
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imagens sintticas e da televiso, argumenta que so virtuais, e o virtual o que
termina com toda a negatividade, logo com toda a referncia histria ou ao
acontecimento. O filsofo francs exemplifica o seu entendimento de virtual a
partir do que a televiso editou com relao ao massacre da Romnia (1989) e da
Guerra do Golfo (1990). Em ambos os episdios, do seu ponto de vista, o virtual (a
imagem) tornou-se a referncia mais importante de informao e representao, o
que ocasionou a compulso de aniquilar o objeto real, o acontecimento real, pelo
prprio conhecimento adquirido sobre ele (Baudrillard, op. cit., p. 148). Em outro
trecho, mais enftico quanto gravidade que enxerga no virtual. Escamotear o
acontecimento real e substitu-lo por um duplo, uma prtese artificial, como aquela
dos figurantes da carnificina de Timiosara, resume todo o movimento de nossa
cultura (Baudrillard, op. cit., p. 150).A noo de desrealizao empregada por Baudrillard encontra eco em
Virilio (1993, passim). Para o arquiteto francs, chegamos ao paroxismo de
vivenciarmos o desaparecimento da cidade, a partir do mesmo movimento que a
circunscreve na nova topologia eletrnica, processo que considera j durar ao
menos quatro dcadas, ou seja, a partir do advento da televiso como meio de
comunicao de massa. Deste modo, o que constitui a cidade (parece-me que
ainda fortemente presente no imaginrio coletivo), como as referncias simblicas,
histricas, arquitetnicas e sobretudo as geomtricas deixam paulatinamente de
existir.
Como implicao deste movimento tem-se a substituio do contato face a
face pela mediao das tecnologias eletrnicas de comunicao. Deste modo,
coloca-se em xeque o Tempo e o Espao a partir da emergncia da velocidade
como parmetro de funcionamento da sociedade, o que, segundo o arquiteto
francs, representa o declnio da informao imediata pela sobreposio da
informao mediatizada, fazendo com que o efeito de real parea suplantar a
realidade imediata. Esta , para ele, a gnese do que se convencionou
denominar crise das grandes narrativas, na medida em que as novas tecnologias
enfatizam mais os meios do que os fins (Virilio, 1993, p. 18).
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No obstante, Virilio (op. cit., pp. 18-9) no se preocupa em teorizar se
estamos ou no na ps-modernidade; para ele, a questo que se coloca menos
o fato de estarmos ou no construindo grandes ou micro narrativas e mais o que
lhe parece se caracterizar como uma crise da narrativa em si, justamente pela
crescente incapacidade de descrever e inscrever o real. Sintetiza este ponto
fazendo um paralelismo no qual a desinformao, a desmesura e a
incomensurabilidade estariam para a ps-modernidade da mesma maneira que a
resoluo filosfica dos problemas e a resoluo da imagem (pictorial,
arquitetural...) estiveram para o nascimento das luzes.
Se por um lado a cidade, por conta dos meios eletrnicos de comunicao,
sofre um processo de desaparecimento, por outro lado estas mesmas mdias so
responsveis pela co-produo da realidade sensvel na qual as percepesdiretas e mediatizadas se confundem para construir uma representao
instantnea do espao, do meio ambiente. ... . A observao direta dos fenmenos
visveis substituda por uma teleobservao na qual o observador no tem mais
contato imediato com a realidade observada. Se este sbito distanciamento
oferece a possibilidade de abranger as mais vastas extenses jamais percebidas
(geogrficas ou planetrias), ao mesmo tempo revela-se arriscado, j que a
ausncia da percepo imediata da realidade concreta engendra um desequilbrio
perigoso entre o sensvel e o inteligvel, que s pode provocar erros de
interpretao tanto mais fatais quanto mais os meios de teledeteco e
telecomunicao forem performativos, ou melhor: videoperformativos (1993, p.
23).
Entendo que neste ponto Virilio concorda com Lvy no que tange
virtualizao ser vetor de criao de realidade. Do meu ponto de vista, importa
menos se produtora ou co-produtora e mais a qualidade da vivncia destas
novas telerrealidades. E a Virilio faz uma afirmao que penso ser bastante
polmica, qual seja, a de que a substituio da experincia imediata pela sua
mediatizao levaria a um desequilbrio entre o sensvel e o inteligvel. Em
primeiro lugar, parece-me humanamente impossvel ocorrer esta total inverso,
muito embora concorde ser crescente o tempo que crianas e adultos passam em
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frente televiso, ao computador, ao telefone, etc. Em segundo lugar, o filsofo
francs no menciona quais so os argumentos que o levaram a constatar o
desequilbrio acima, pois se por um lado plausvel a afirmao de que cada vez
mais interagimos com a tela, por outro ainda no perdemos a concretude do
mundo fsico, com suas formas, cores, ambientes, textura, etc. Fica, portanto, tal
afirmao, do meu ponto de vista, mais como uma descrio limite de retrica do
que uma apreenso mais precisa do real.
No obstante, suas reflexes acerca da mediatizao dos conhecimentos
cientficos traz luz um problema, na minha opinio, dos mais pertinentes, qual
seja, da inverso da relao histrica entre cincia e tcnica. Em outras palavras,
se at h pouco assistimos o desenvolvimento da primeira criar demandas de
aperfeioamento desta ltima processo responsvel pela criao dos diversosinstrumentos de separao, medio, controle de variveis, sintetizao de
substncias e fenmenos, hoje verificamos o inverso, qual seja, a validao
cientfica, cada vez mais, passa pelo crivo da aferio tecnolgica, colocando em
segundo plano o papel do pesquisador, bem como o do conhecimento cientfico
acumulado, tendo esta ps-cincia como uma de suas principais conseqncias
a instaurao de uma guerra pura (intelectual e conceitual) menos afeita
destruio do que desrealizao do mundo, uma desrealizao em que a
logstica cientfico-industrial suplanta a estratgia poltico-militar como esta ltima,
h muitos sculos, suplantou a ttica de caa ao homem (Virilio, 1993, p. 32).
Portanto, cada vez mais passa a ser crvel somente aquilo que pode ser
mediatizado pelas tecnologias avanadas, que supostamente trazem em si um
rigor estatstico irrefutvel, caracterizando um cinematismo da representao
cientfica, cada vez mais desvinculada do humano, tico e, inclusive cientfico.
Tipo de arte pela arte da concepo terica, cincia pela cincia de uma
representao do mundo mgico-estatstica, cuja tendncia pode ser constatada
pela recente enumerao das partculas elementares (Virilio, op. cit., p. 36-7).
Estas consideraes acima vo ao encontro, do meu ponto de vista, ao que
Marilena Chau (1989 [a], p. 57-58) denominou "discurso competente", que se
caracteriza por ser uma mediao entre o indivduo e a sua experincia de vida. A
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autora em foco, ao analisar as reformas de ensino no Brasil a partir de 1968,
observa que a educao, a partir de ento, transformou "a pedagogia em cincia,
o educador em cientista prtico (tcnico), e o aprendizado em criao de fora de
trabalho". A prtica educativa tornou-se assim excludente por enfatizar a noo de
competncia: segundo a autora, ela pode ser enunciada a partir da seguinte
frmula: "no qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em
qualquer lugar e sob qualquer circunstncia" (op. cit., p. 58). Deste modo, a
cincia torna-se "elemento de dominao porque fonte de intimidao", o que
ter como consequncia a interposio da fala do "especialista" entre "a
experincia real de cada um e sua vida". (op. cit., p.58).
Chau (op. cit, p. 58) nos fornece alguns exemplos de como acontece esta
mediao. "Entre nosso corpo e nossa sexualidade, interpe-se a fala dosexlogo, entre nosso trabalho e nossa obra, interpe-se a fala do tcnico, entre
ns como trabalhadores e o patronato, interpe-se o especialista das "relaes
humanas", entre a me e a criana, interpe-se a fala do pediatra e da
nutricionista, entre ns e a natureza, a fala do ecologista, entre ns e nossa
classe, a fala do socilogo e do politlogo, entre ns e nossa alma, a fala do
psiclogo (muitas vezes para negar que tenhamos alma, isto , conscincia). E
entre ns e nossos alunos, a fala do pedagogo".
Segundo Chau (1989 [a], p. 59), estes discursos competentes "geram o
sentimento individual e coletivo da incompetncia, arma poderosa de dominao".
As consequncias deste processo de intimidao social se circunscrevem na
prpria manuteno da ordem vigente, o que se expressa em diversas maneiras
"anti-democrticas de lidar com o pensamento", das quais a autora cita algumas
que considera principais. Destas, gostaria de reproduzir a terceira, que trata da
diviso social do saber tecnolgico. "Em terceiro lugar, desenvolver um ideal de
conhecimento tal que suas divises internas no sejam determinadas pela prpria
produo do saber, mas por razes sociais e polticas determinadas, como o
caso, por exemplo, do desenvolvimento tecnolgico que conhecemos, elaborado
de maneira a excluir de seu conhecimento todos aqueles que devero ser
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reduzidos condio de meros executantes de um saber cuja origem, sentido e
finalidade lhes escapa inteiramente".
Para Virilio (1993, p. 59), esta mediatizao do mundo, ao abranger todas
as dimenses do humano, afetar tambm, de maneira j bastante presente, as
relaes interpessoais, particularmente aquelas tradicionalmente fundadas por
laos de vizinhana e comunidade. Neste ponto, o urbanista francs menciona
Walter Benjamin quando este afirma, a respeito da reprodutibilidade da obra de
arte, haver cada vez mais a necessidade de se possuir o objeto, em sua cpia ou
reproduo
Nesta mesma direo, Carlos Rodrigues Brando, em texto intitulado
Espaos de Lazer e Cidadania, vai alm ao analisar de maneira geral a
mediatizao das relaes humanas a partir da televiso, do telefone e da,naquele momento, emergente Internet. O antroplogo da Unicamp fala-nos de um
processo de recastelamento, de medievalizao, da vida social urbana. Refere-se
tendncia cada vez mais presente das pessoas vivenciarem seu tempo de lazer
(acrescentaria que, para alguns poucos, tambm seu tempo de trabalho) em seus
prprios lares, operando computadores, assistindo televiso, falando ao telefone
ou, algo ainda no to difundido mas em crescente expanso, conversando com
outras pessoas por meio de correio eletrnico via modem, buscando informaes
via Internet, etc. Assim, estaria havendo um aumento no relacionamento entre o
que o autor em foco denomina de "iguais virtuais" de classe e/ou de extrao
intelectual, que podem estar a distncias to grandes quanto a de um pas a outro,
e portanto sem estabelecerem algum contato face a face, e uma conseqente
diminuio da convivncia com pessoas da prpria comunidade, vizinhos de rua,
etc.
Brando no expressa um pessimismo enftico a respeito da mediatizao
do contato pela tecnologia, mas que preciso ter cautela. Deste modo, entende
que esta, em si, " muito inovadora e desafiadora, visto que ela aponta para
horizontes infindos, onde o perigo est justamente no deslocar para a excelncia
da perfeio de um equipamento o efeito e o sentido do prprio trabalho e da
prpria tica da convivncia". (Brando, 1994, p. 27).
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, porm, com relao a este ltimo aspecto que faz sua advertncia mais
incisiva: "Essa possibilidade de me encastelar e colocar dentro do meu mundo,
atravs de um mecanismo de manipulao, as imagens, as vozes de quem eu
quero, na situao em que eu quero - e a est o efeito perverso desses limites da
tecnologia - gera um superindividualismo na experincia do mundo, quando ela se
transforma numa espcie de rede distncia de superindividualizao
mediatizada por aparelhos. Eu no me relaciono mais com as coisas do mundo,
com as cachoeiras, com belezas reais do real, com os pores-de-sol, com aqueles
espaos concedidos, sobretudo pela natureza, assim como tambm no me
relaciono mais com as pessoas. Mas, atravs da inveno tecnolgica, posso t-
las, s pessoas e natureza, repetidamente quantas vezes quiser, e nunca de
uma forma pessoal e experimental mas, sim, dentro de uma relao de posse".(Brando, 1994, p. 28).
Vemos que, neste ponto, Brando concorda com Virilio quanto ao
sentimento de posse e superindividualizao que a interao com a tecnologia
suscita. Alm disto, vejo com preocupao a crescente substituio da experincia
concreta com as pessoas e a natureza, nica e especial para cada indivduo em
seu momento de "estar" neste contato, pela sua mediao pela tecnologia, cujos
parmetros e dinmica de funcionamento so padronizados, e, portanto, em
grande parte previsveis! Isto me faz refletir sobre as colocaes de Rgis de
Morais a respeito de um ensaio de Max Scheler intitulado "O homem e a histria".
O autor de Estudos de filosofia da cultura sente-se provocado por duas
expresses utilizadas pelo ensasta: que o homem contemporneo o desertor
da vida e que, sobretudo, se contenta com substitutos do viver. A partir da,
identifica na vivncia humana contempornea elementos que corroboram os
dizeres de Scheler, como por exemplo, a estranheza que acomete alguns quando
entram em contato com a natureza. "Isto chega, muitas vezes, ao paroxismo de as
pessoas irem s praias ou aos campos, mas no se sentirem bem, pois perderam
- l no fundo de si - o gosto pelo natural". (Morais, 1992, p. 58).
To grave quanto o incmodo provocado pela interao do homem com a
natureza a perda de elementos bsicos de convivncia humana que tm
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acometido as pessoas. Fica patente nos dizeres a seguir o quanto estamos
efetivamente contentando-nos com substitutos do viver, principalmente em
nossas relaes humanas. "De outra parte a afetividade (que rico sentimento)
vai sendo substituda pela gentileza, esta muito mais composta de gestos teatrais;
substitui-se, como j disse, o caminhar (partilhante) pelo rodar (individualista, no
interior de uma bolha mecnica que o automvel); substitui-se o entendimento
humano, no que este tem de proximidade e compreenso, por normas
burocratizadas e at mesmo contratuais de coexistncia. E assim o homem
contemporneo parece ir de fato desertando da vida, das suas leis fundamentais,
do seu sagrado csmico". (Morais, 1992, p. 58).
Procurei, at o presente momento, discutir algumas das principais idias de
Pierre Lvy, Flix Guattari, Paul Virilio e Jean Baudrillard, quatro grandes tericosdo movimento contemporneo de virtualizao, bem como trazer a colaborao de
autores nacionais como Carlos Rodrigues Brando e Joo Francisco Regis de
Morais, a respeito da mediatizao das relaes humanas fomentadas pelas
novas tecnologias de comunicao. Comparativamente, o texto de Paul Virilio e
Jean Baudrillard, por um lado, e de Pierre Lvy e Flix Guattari, por outro, traz, do
meu ponto de vista, a combinao, j mencionada, da crise e da oportunidade. No
captulo seguinte, procurarei aprofundar as principais categorias de anlise deste
estudo: vivncia, experincia, encarnao, outrem, no intuito de construir os
elementos necessrios para a anlise valorativa das novas prticas esportivas, em
especial o esporte telespetculo, o videogame e os esportes radicais, o que ser
feito no terceiro captulo. Para tanto, lanarei mo de autores como Georges
Gusdorf, Julian Maras, Ortega y Gasset, alm daqueles j discutidos at aqui,
como Pierre Lvy e Flix Guattari.
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CAPTULO II
ENCARNAO, OUTRO, CIRCUNSTNCIA: UM ESTUDODA EXPERINCIA VITAL
Eu sou eu e minha circunstncia, se no a salvo,
no me salvo eu Ortega y Gasset, Meditaes
do Quixote, in Obras Completas, Tomo I, Revista
do Occidente/Alianza Editorial, Madrid, 1987.
O sujeito no outra coisa seno seu mundo, com
a condio de entender-se por este termo tudo o
que o afeto envolve. Assim pouco afirmar que o
psiquismo est aberto para o exterior; ele
apenas o exterior, mas um exterior infiltrado,
tensionado, complicado, transubstanciado,animado pela afetividade. O sujeito um mundo
banhado de sentido e de emoo. Pierre Lvy, O
que o virtual, p. 107-8, 1997.
Encontramos nas citaes acima algo em comum, da qual irei partir e que
constitui o eixo central deste captulo: a indissociabilidade entre o homem e sua
circunstncia. mxima de Ortega, que parte do eu, junta-se tambm a
perspectiva da circunstncia: ela s porque minha (Maras, p. 51). Esta
abordagem rechaa um entendimento coisificado de vida e mundo, to forte at
h pouco na filosofia. Agora podemos anunciar a categoria central deste trabalho:
experincia vital. Como veremos a seguir, esta ser imprescindvel para
compreendermos as diferentes vivncias esportivas, pois o onde elas acontecem
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justamente na realidade radical, ou na vida de cada pessoa. Passaremos, a
seguir, a resgatar as principais contribuies de Julian Maras e Georges Gusdorf,
dois grandes filsofos que se debruaram sobre esta categoria.
Segundo Julian Maras (1971, p. 49), a tradio filosfica do Ocidente
tratou o homem ao mesmo nvel das coisas. Quando tal tratamento torna-se
demasiado inadequado, forjam-se novas expresses na filosofia: eu, sujeito,
conscincia, existncia, Dasein, subjetividade,pour-soietc.. Maras considera-as
insuficientes, na medida em que, no mximo, apontam para dimenses desta
realidade (homem).
Para o filsofo em foco, a expresso homem passou a substituir vida
humana em uma tentativa de diminuir a confuso terminolgica que esta encerra.
Porm, o mesmo tambm se d com ela. Parte-se da expresso vida comottulo de uma teoria, e no em sua funo prpria, nossa vida. Todas estas
expresses, inclusive o homem que sou, so realidades radicadas em minha vida
esta a realidade radical (Maras, 1971, p. 50).
O pensamento de Maras (1971, p. 13) permeado a todo o momento
pela realidade radical que minha vida. Porm, esta radicalidade no se restringe
vivncia pessoal eu vivo. Para o filsofo espanhol, a prpria filosofia s
quando apreendida, quando algum dela toma posse. Portanto, ela no pode se
restringir ao momento da altheia; preciso dar conta dela. isto que
caracteriza sua definio de filosofia como a viso responsvel.
Georges Gusdorf (1960, p. 257), na mesma direo, porm enfatizando a
encarnao, ou seja, a dimenso corprea humana, ir dizer que cabe filosofia
a tarefa de explicar a experincia humana tal como ; e indiscutvel que existe
uma experincia do corpo como meu corpo, impossvel de ser reduzida Para
Gusdorf (op. cit., p. 257), a tradio filosfica negou-se a admitir a existncia
individual do sujeito, pela idia de que o sbio deve permanecer no plano do
universal. Para ele, tudo o que privado errneo e culpado.
O autor do Tratado de metafsica argumenta que a antropologia
contempornea tem como princpio a condio da pessoa como origem de
qualquer e toda a verdade. Todo o conhecimento, por impessoal que seja,
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prende-se, direta ou indiretamente, a um eu, donde toma o essencial de seu
sentido (Gusdorf, op. cit., p. 258). Mas, o que constitui o eu? Dir Gusdorf (1960,
p. 258). que o seu elemento constitutivo o corpo vivido como corpo, a despeito
da tradio intelectualista que procura esquec-lo, recusando assim a presena da
encarnao e, por conseguinte, todas as experincias que so manifestas nesta
dimenso sentimento, sofrimento, alegria, morte.
Mais do que recusa, em outra passagem, Gusdorf (1960, p. 252) se
referir a um combate que a filosofia tradicionalmente trava contra a prpria idia
de encarnao. Para alm da diversidade aparente das argumentaes, o
exerccio filosfico no toma nota da existncia corporal de fato, seno para a
desacreditar de direito. A sabedoria, no sentido antigo e dogmtico do termo, ,
antes de mais nada, luta contra a encarnao.Se a condio corprea fundamental para se entender a vida humana,
ela no suficiente, visto que, tanto para Maras como para Gusdorf, o eu no se
confunde com o corpo, posio, alis, j expressa anteriormente por Gabriel
Marcel7. Ento, se por um lado, eu no sou meu corpo, por outro, o mistrio da
encarnao aparece ligado experincia constante da vida cotidiana (Gusdorf, p.
259). Posio semelhante tem Maras, para quem, mais correto do que dizer eu
sou meu corpo ou mesmo eu tenho um corpo, apontar o seguinte: eu estou
no mundo de maneira corprea, instalado projetivamente em meu corpo, atravs
do qual acontece minha mundanidade concreta (Maras, p. 123).
Ora, aqui remetemos conhecida construo da filosofia orteguiana, que
ser mantida e explorada por Maras: Eu sou eu e minha circunstncia, se no
a salvo, no me salvo eu. Isto significa que a vida no se confunde com a
biologia, ou, tomada como sinnimo desta, a trajetria, embora sejam suas
dimenses. Trata-se de vida biogrfica, isto , de uma realidade que inclui entre
suas caractersticas o ser biogrfica, isto , acontecer de tal forma que se possa
contar ou narrar (Maras, 1971, p. 50).
7 Eu no sou meu corpo, como no sou qualquer outra coisa, seno porque, para ser qualquer outra coisa,devo primeiramente servir-me de meu corpo.Jornal metaphysique, Paris, N.R.F., 1935, p. 237.
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Ento, o que a vida, para Julian Maras? Ela no nada em si, mas
sim adquire sentido quando se trata de minha vida, ou melhor, eu a vivendo.
Minha vida um gerndio. Toda realidade enquanto realidade enquanto
encontrada por mim de qualquer modo que seja radica em minha vida, nela est
radicada (Maras, 1971, p. 50).
Mas para Maras (1971, p. 51) isto ainda no suficiente. preciso
lembrar que a minha vida eu vivendo no se confunde com a vida psquica.
a que entra o conceito de circunstncia. Minha vida acontece fora de mim;
preferindo-se, um dentro que se faz um fora. Por isso acontecimento ou
drama. A circunstncia cuja anlise minuciosa foi feita em outras ocasies por
Ortega e por mim no um conjunto de coisas mas um cenrio ou mundo em
que esse drama acontece, o eu no coisa alguma, e sim projeto ou programa, eessa circunstncia o porque minha.
Eis aqui, para Maras (1971, p. 51), o onde acontece a vida humana: em
sua vivncia. Encontraremos, no trecho a seguir, mais pistas que nos levaro
categoria fundamental deste trabalho. Em forma infinitiva viver , como
gerndio vivendo , mais rigorosamente em forma pessoal eu vivo a vida se
descobre como acontecimento e, com maior preciso, quefazer... Porm, esta vida
no est dada, nem sequer como possibilidade; tem que ser imaginada,
antecipada e inventada por mim a cada momento. o que corresponde ao carter
eveniente que antes descobrimos como condio da pessoa. Portanto, a
realidade radical minha vida acontece na minha relao com o mundo. A
mxima de Ortega, eu sou eu e minha circunstncia, remete invariavelmente
eis onde queria chegar experincia vital.
chegado o momento de precisar o significado de experincia que
adotaremos neste trabalho. Segundo o Dicionrio de Filosofia (1982, p. 386) de
Nicola Abbagnano, experincia possui dois significados distintos. O primeiro, de
carter subjetivo, tem sempre carter pessoal e no h experincia onde falta a
participao da pessoa que fala nas situaes de que se fala. neste sentido,
prenhe de vitalidade, que o termo ser empregado neste trabalho . Este
significado de experincia diferencia-se daquele cujo carter objetivo e
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impessoal, que pode ser entendido como o apelo repetibilidade de certas
situaes como meio de controlar as solues que elas permitem.
Gusdorf (1960, p. 266) reforar o papel essencial que a experincia
(sempre no sentido colocado no pargrafo acima) joga na vida humana, onde o eu
e a circunstncia so indissociveis. As primeiras categorias da paisagem
humana so necessariamente antropolgicas: perto, longe, agora, mais tarde, etc.;
e os mais intelectualizados conceitos dos filsofos nada mais faro que elucidar
de maneira abstrata a experincia vivida das necessidades e dos desejos, na qual
nosso corpo toma conscincia de si mesmo, definindo as mais elementares
dimenses de seu estabelecimento no ambiente que o cerca.
Assim, a experincia sempre integral, ou seja, afeta-me em todas as
minhas dimenses, na medida em que o eu corporal no se restringe ao biolgico,e ao mesmo tempo se constitui como a minha realidade mais prxima. A despeito
das aparncias, meu corpo no se reduz montagem orgnica descrita pelos
tratados da especialidade, nem tambm configurao da imagem no espelho.
Toda reduo objetiva desnatura a experincia vivida da realidade humana,
correspondente a uma apreenso de valor, na qual se afirma uma inteno da
personalidade. Cada pormenor da vida corporal, cada sinal ou sintoma
imediatamente percebido na perspectiva vital da totalidade. A moa e a mulher
pedem ao espelho as promessas de encanto; nele espreitaro os indcios de
declnio, e a primeira ruga prenhe de sentido. Uma dor fugidia, uma simples
fadiga podem ser, para cada homem, o prenncio de um mal que por em xeque a
vida inteira (Gusdorf, op. cit., p. 294).
Deste modo, torna-se equivocado reproduzir a idia de uma ciso entre
mundo sensvel e mundo inteligvel, ou seja, no existe o mundo em si, e
tampouco o mundo constitudo por coisas. O mundo sempre meu mundo, o
mundo de algum... Eu sou aquele que unifica e mundifica ao mesmo tempo os
dois mundos (Maras, 1971, p. 22).
Maras (op. cit., p. 19-20) argumenta, com a ousadia prpria de um
grande filsofo, que sua construo terica faz com que esta ciso, que perpassou
a histria inteira da filosofia se desvanea. Isto no significa admitir a
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inexistncia de uma distino entre dois mundos, mas sim que ela agora passa a
ser fundada em outra base, qual seja, o mundo que (presente), e o que no
(mas ser). Ele remete a um fato inexorvel: a vida se faz para frente, inclina-se
para o futuro. Eu sou futurio: presente, mas orientado ao futuro, voltado a ele,
projetado para ele.
Georges Gusdorf (1960, p. 270) atribuir este problema filosofia
existencial. Segundo o autor em foco, o existencialismo carece da noo de corpo
prprio8, que longe de ser um ponto de partida da experincia humana,
representa antes o termo de lenta e operosa elaborao do ser pessoal. De fato,
temos aqui uma apurao j quase metafsica, uma sntese constitutiva da
individualidade, e que cada homem precisa defender a todo instante contra as
ameaas de desintegrao.A sua crtica ao existencialismo vai mais longe, quando argumenta haver a
necessidade de uma antropologia que v alm de ser uma fenomenologia da
conscincia humana, mas que se esforce em ligar esta conscincia a suas
condies objetivas (Gusdorf, op. cit., p. 274). Trata-se, segundo ele, de uma
reduo da experincia do corpo prprio, manifesta, por exemplo, como
conscincia do corpo, ou ento o corpo como conscincia. O filsofo que separa
o corpo da alma, a cincia da conscincia, divide para reinar: para temer que,
procedendo assim, no perceba nada de coisa nenhuma (Gusdorf, op. cit., p.
274).
Em suma, Gusdorf (op. cit., p. 283) parece fazer a crtica de que o
existencialismo no superou o idealismo, na medida em que este procura
reconciliar o discurso cientfico e fenomenolgico sob o discurso da razo, o que,
segundo o autor, caracteriza uma oposio superada. Persiste aqui a velha
ambio do racionalismo, de encontrar a pedra filosofal: pretende-se decifrar o
determinismo biolgico do corpo sobre o esprito para o inverter, submetendo-o a
um determinismo asctico do esprito sobre o corpo.
8 Para Gusdorf, o corpo prprio se define como a espontaneidade originria subjacente a todoempreendimento humano de inteligibilidade pelo conhecimento ou pela ao (p. 266)
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Andr Dartigues, em seu livro O que a fenomenologia (1992, p. 69)
corrobora a viso expressa acima, ao argumentar que falsa uma dicotomia entre
o particular e o universal, at hoje forte na filosofia. Para o autor em foco, trata-se
de compreender a inseparabilidade entre o eu e a circunstncia, embora prefira se
referir mesma idia em outros termos, qual seja, a relao do homem com a
Histria. O sentido de um fenmeno no deve ser mais concebido,
consequentemente, como um sentido eterno, independente das experincias
concretas do sujeito. Ele se constitui, ao contrrio, como aquilo que faz a unidade
das experincias reais em sua diversidade infinita, como o horizonte de
universalidade do qual o sujeito se aproxima atravs de todas as suas
experincias. No se trata para ele de arrancar-se sua prpria histria para
considerar a Histria do ponto de vista da eternidade, mas pela compreenso, deampliar do interior sua prpria histria at a Histria em sua totalidade.
Todas as colocaes acima reforam a necessidade de a filosofia tratar o
tema da pessoa em sua relao com sua circunstncia. Segundo Maras (1971, p.
33), esta uma nova realidade na filosofia, que configura a transformao talvez
mais radical de toda essa [sua] histria. J Octvio Ianni fala de uma
redescoberta do indivduo, reflexo das rupturas que acompanham o declnio da
sociedade nacional e a emergncia da global. O autor em foco afirma haver uma
preocupao contempornea das cincias sociais com algumas dimenses
fundamentais da vida social, como a existncia, o eu, o indivduo, o cotidiano, etc.
(1992, p. 115).
De qualquer modo, foi preciso que a filosofia deixasse de perguntar Que
o homem, como fez por dois mil e quinhentos anos, e passasse a perguntar
Quem , tal como fazemos quando algum bate nossa porta. A resposta
natural seria eu, acompanhado de uma voz de uma voz conhecida -, isto , de
uma circunstncia (Maras, 1971, p. 35).
Aqui Maras (1971, p. 37) vincula inexoravelmente o eu e/ou o tu a um
corpo. Alm disso, este algum corporal futurio, portanto o seu carter
projetivo o constitui. Ou seja, eu no sou uma realidade dada, pronta; h uma
fragilidade, uma incerteza correspondente ao prprio carter eveniente da vida.
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Para o homem, ser preparar-se a ser, dispor-se a ser, e por isso consiste em
disposio e disponibilidade.
Gusdorf (1960, p. 302) faz esta reflexo a partir da idia do inacabamento
da existncia humana. Em outras palavras, a pessoa no nada em si, mas est
sempre em busca de algo que lhe escapa. O ser do homem est em movimento,
em movimento incessante no interior da situao originria em que ele dado a si
mesmo, perseguindo sua sombra que sempre se lhe furta.
Eis o carter experiencial da vida humana. Maras sintetiza o problema
da vida pessoal em duas perguntas:
1) Quem sou eu?
2) Que vai ser de mim?
A interconexo entre as duas representa a dinmica da minha vida. Omaior grau de conscincia sobre a primeira questo e a capacidade de viv-la
autenticamente possibilita uma abertura tambm ampliada na segunda. Quanto
mais sei quem sou, quanto mais possuo minha realidade programtica e projetiva,
futuria, irreal e eveniente, quanto mais autenticamente sou eu no modo da vida
pessoal, menos sei que vai ser de mim, mais incerta minha realidade futura,
mais aberta possibilidade, inveno, ao acaso e inovao (Maras, 1971, p.
38).
Percebemos aqui a dialtica do eu e da circunstncia. Se fao um
esforo para que minha vida tenha uma trajetria fechada por exemplo, no
dando espao para o espontneo, o inesperado - menos vivo, pois menos aberto
estou para e aqui encontramos novamente nossa categoria central a
experincia vital. Esta se distingue da mera percepo de coisas, bem como da
conscincia. Para Maras, a primeira capacidade se aplica bem aos animais, na
medida em que s opera no mbito do real e presente, mas no ao homem, visto
que este, como vimos h pouco, futurio; portanto, opera no presente, mas
antecipando o que ainda no , mas ser (Maras, op. cit., p. 41-2).
Poder-se-ia argumentar, tal qual os modernos, que a conscincia a que
permite obter a realidade das coisas. Porm, esta j no o fenmeno primrio, e
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sim uma reflexo, em que me encontro com meu ato anterior, e no eu com a
coisa, eu com a realidade (Maras, op. cit., p. 42).
Nem percepo (realismo), nem conscincia (idealismo), mas sim a
experincia o que caracteriza a vida enquanto projeto, enquanto futuria. Esta
uma operao que se faz para a frente, e deste modo, sempre nos encontramos
no meio do caminho. Na continuao, Maras (op. cit., p. 44) argumenta que se
no nos possumos nunca de um modo total, mas sim estamos vindo da realidade
do futuro que se anuncia na realidade de nosso presente, ento o presente e
mesmo o passado no so dados. O que depende do que ser; isto , nem
sequer o passado se pode ter por dado e feito.
O autor em foco argumenta que h basicamente dois tipos de experincia:
da vida e de coisas. Penso que esta distino remete ao j expresso duplosignificado deste termo, ou seja, o seu carter subjetivo e objetivo. Maras (op. cit.,
p. 46) afirma que uma interfere na apreenso da outra, na medida em que a vida
futuria, e, portanto ocorre sempre para frente. Por isso, a excessiva experincia
de coisas costuma destruir ou no deixar nascer a experincia da vida.
A experincia da vida no se confunde com a minha vida. Para se obter a
primeira, preciso buscar a solido, retirando-se a ela a partir da convivncia
(Maras, op. cit, p. 45). Na minha interpretao, o autor se refere a um estado que
se poderia denominar de observao interna, possvel quando refletimos sobre a
vida. De qualquer modo, Maras (op. cit., p. 45) argumenta o seguinte: A
experincia da vida no experincia de minha vida. A rigor, minha vida a que
tem experincia da vida.
Se a minha vida e a vida de cada um a realidade na qual todas as
demais se radicam, ento a vida humana pode ser considerada uma teoria
intrnseca na medida em que necessria para a realidade de minha vida
(Maras, op. cit., p. 58). Maras (op. cit., p. 58) prope uma frmula que sintetizaria a
dinmica da vida humana.
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Eu tenho que fazer minha vida com as coisas. O que quer dizer: a) a vida
no est feita; b) tenho que faz-la; c) no posso faz-la s, mas com algo
que me transcende: as coisas; d) antes de fazer algo tenho que possuir j de
certo modo essa realidade (apriorismo da vida humana); e) esta projeto ou
futurio; f) deve-se imagin-la previamente ou previv-la.
Vimos at aqui, de maneira sinttica, os primeiros captulos da
Antropologia Metafsica (1971), de Julian Maras. O eixo central da
argumentao do autor girou em torno da idia de realidade radical, que a minha
vida e a vida de cada um, bem como da dinmica do viver, que projeto, futurio
e acontece na circunstncia que minha, bem como na de cada pessoa.
Se eu sou futurio me encontro enquanto vivo o que me caracteriza
enquanto pessoa a minha prpria realidade em construo. Esta se d emminha circunstncia, composta tambm pelas outras pessoas que permitem que
eu me reconhea e me projete. Assim, a vida pessoal essencialmente
convivncia (Maras, op. cit., p. 37).
Eis aqui outra dimenso que compe a experincia humana. Pois, se a
encarnao representa ao mesmo tempo novo ponto de partida e de chegada
filosofia, tanto como constituio da pessoa (que, como vimos, um dado recente
na filosofia) e tambm como um novo estilo de filosofar, temos quase que comouma conseqncia imediata o tema da convivncia ter adquirido, na filosofia de
Gusdorf, papel de grande importncia. O encontro com outrem representa uma
instncia essencial da presena ao mundo, visto a realidade humana ser terreno
de percurso comunitrio, onde meu corpo esbarra noutros corpos, e onde meu
pensamento por toda a parte vai ao encontro de significaes sedimentadas
(Gusdorf, 1960, p. 302).
Gusdorf (1960, p. 305) argumenta que o tema do outro na filosofia
tradicional foi posto em segundo plano, embora diga que, para no se cometer
injustia, preciso lembrar que j na antiguidade grega, a tragdia de Sfocles,
squilo, e de Eurpides, ilumina com luz cada vez mais penetrante a
interdependncia dos destinos. O mesmo se verificou no teatro clssico da
Espanha, Frana e da Inglaterra, passando pela literatura potica ou romanesca,
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[que] pe igualmente em cena os sentimentos humanos, os trabalhos e os dias de
personalidades que se afrontam. Porm, como se v, trata-se de uma produo
literria, que mesmo remontando Grcia antiga, no se constitui como filosofia.
A relao com o outro o conviver acontece a partir da transcendncia
da dimenso corporal que caminha para uma totalidade viva e expressiva, na
qual no existe uma separao entre a expresso e seu sentido, na medida em
que manifestao de uma experincia original e no construo idealizada. Para
tanto, no pode haver uma identificao com outrem, mas uma distncia e uma
distino entre mim e o outro que permita o que Max Scheler denomina de
simpatia, ponto de interseco como o pensamento de Merleau-Ponty. Ora, as
anlises de Merleau-Ponty encontram-se com as de Scheler, pois em ambas meu
acesso a outrem aparece como um dado primeiro e no como uma reconstruode sua vivncia na esfera fechada de minha representao. Mas, por outro lado,
este acesso s compreenso se no for assimilao, logo, se ele, longe de fazer
desaparecer minha distncia com relao a outrem, a revelar como essencial.
De qualquer modo, o surgimento do outro na filosofia vem responder a
uma necessidade do pensamento contemporneo, principalmente pelo que se
convencionou denominar de c