FeresNeto,A Filo 24-4

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    ALFREDO FERES NETO

    A VIRTUALIZAO DO ESPORTE E SUAS NOVAS VIVNCIASELETRNICAS

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAO

    2001

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO

    TESE DE DOUTORADO

    A VIRTUALIZAO DO ESPORTE E SUAS NOVAS VIVNCIASELETRNICAS

    ALFREDO FERES NETO

    ORIENTADOR: PROF. Dr. JOO FRANCISCO REGIS DE MORAIS

    Este exemplar corresponde redao final da tesedefendida por Alfredo Feres Neto e aprovada pelaComisso Julgadora.Data:Assinatura: ___________________________

    Comisso Julgadora:

    __________________________________Prof. Dr. Joo Francisco Regis de Morais

    _________________________________Prof. Dra. Constana Marcondes Csar

    __________________________________Prof. Dr. Joo Carlos Nogueira

    __________________________________Prof. Dr. Slvio Donizete de Oliveira Gallo

    __________________________________Prof. Dr. Mauro Betti

    Campinas SP2001

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    RESUMO

    Este um trabalho sobre os esportes radicais, o esporte telespetculo e os jogos eletrnicos.O objetivo foi discutir os significados destas novas vivncias esportivas, bem como as

    possveis implicaes para a educao fsica, principalmente com relao a mudanas emsua prtica pedaggica. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliogrfica combinada comanlise valorativa de depoimentos de praticantes e trabalhos acadmicos que versaramsobre o assunto. Os resultados apontaram uma identificao destas modalidades com ummovimento amplo de virtualizao, que tem os meios eletrnicos de comunicao comomotor principal, e cujas caractersticas mais marcantes so o embaralhamento entre aprtica e a assistncia e a intensificao da experincia vital. Tambm argumentamos queestas novas vivncias do esporte devem ser incorporadas nas aulas de educao fsica, apartir de um processo de subjetivao e objetivao, conforme proposta adaptada dofilsofo francs Pierre Lvy.

    ABSTRACT

    This academic paper is about extreme sports, televised sports and videogames. Its maingoal was to discuss the meanings of these new interactions with sports, as well as possibleimplications to physical education, specially related to needs of changes in its pedagogicalpractice. The method of study combines bibliographical research with a value analysis of

    practitioners speeches and academic papers that dealt with the theme. The results pointedout a relation of these interactions with a global movement of virtualization, the electronicmeans of communication being its center, and having as most interesting characteristics amismatch of practice and assistance and an intensification of vital experience. We alsoargue that these new interactions must be incorporated to physical education classes, by asubjective and objective process, according to Pierre Lvy proposal.

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    Ao Vincius, meu filho, para que ele viva em um mundo no

    qual a opo poltica pela utilizao das novas tecnologias decomunicao caminhe para a produo de novas

    subjetividades, mais criativas, solidrias e amorosas.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Joo Francisco Regis de Morais, mais do que um orientador, um companheiro

    da jornada chamada vida humana, com quem tive o privilgio de con-viver nestes ltimosquatro anos.

    Denise e ao Vincius, pelo privilgio de construir junto um lao eterno, que a famlia.

    Aos meus pais, Leonice e s minhas irms, pelo incentivo e, mais do que isto, porfazerem parte de uma vida inteira.

    Renata, por compartilhar comigo momentos maravilhosos durante estes ltimos quatroanos.

    Aos meus amigos, pela experincia de poder ser um e ao mesmo tempo todos, sem os quaisa vida nada.

    Ao Prof. Dr. Lino Castellani Filho, com quem tive a oportunidade de aprender muito nasaulas do Programa de Estgio e Capacitao Docente, tambm companheiro de estrada.

    Aos Professores Doutores Jos Luis Sigrist e Newton Aquiles von Zuben, pelas orientaespreciosas durante todo o processo de construo da tese.

    Aos Professores Doutores Mrcia Lopes Reis, Ricardo Jac de Oliveira e Larcio EliasPereira, pelo incentivo e apoio.

    A todo o pessoal da secretaria da ps-FE, pela solicitude em todas as horas.

    Capes, pelo apoio financeiro a esta pesquisa.

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................ 01

    CAPTULO IMatizando o problema: a querela sobre a questo do virtual............................................. 071.1 Lvy e Guattari: uma nova humanidade e subjetividade............................................. 081.2 A imploso do espao-tempo de Paul Virilio e a desrealizaode Jean Baudrillard............................................................................................................. 15

    1o INTERLDIOA virtualizao do corpo Pierre Lvy

    CAPTULO IIEncarnao, outro, circunstncia: um estudo da experincia vital..................................... 23

    2o INTERLDIOExperincia Walter Benjamin

    CAPTULO IIIA virtualizao do esporte e suas novas vivncias..............................................................373.1 Esporte telespetculo, videogame, esportes radicais - a heterognesedo esporte como decorrncia de sua virtualizao.............................................................. 393.1.1Esporte telespetculo................................................................................................... 403.1.2Videogame.................................................................................................................. 463.1.3Esportes radicais......................................................................................................... 52

    3.2 Em busca de elementos valorativos para uma anlise das novasvivncias do esporte............................................................................................................ 56

    3o INTERLDIONossa escola Vilm Flusser

    CAPTULO IVImplicaes da virtualizao do esporte para a educao fsica......................................... 684.1 Educao fsica: Lazer ou conhecimento?.................................................................... 704.2 Produo de subjetividades subjetivao e objetivao:contribuies para a educao/educao fsica................................................................... 75

    CONSIDERAES FINAISPara que a semente se transforme em rvore ..................................................................... 82

    APNDICE........................................................................................................................ 85BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 86

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    INTRODUO

    Este um trabalho sobre novas vivncias esportivas. Neste estudo, elas

    foram agrupadas em trs categorias: esportes radicais, esporte telespetculo ejogos eletrnicos. Argumento que o elemento comum a todas estas modalidades

    se encontra em um movimento amplo de virtualizao, que vem modificando todas

    as esferas da vida humana, e que tem os meios eletrnicos de comunicao como

    motor principal.

    Fiquei instigado a realizar uma pesquisa sobre estas novas modalidades,

    em um primeiro momento, pelo que me pareceu se caracterizar por uma

    substituio da experincia imediata pela tela, seja a do computador, seja a da

    televiso. A todo instante, vinha-me o questionamento da possibilidade de o

    praticante deixar de vivenciar elementos importantes, do meu ponto de vista, como

    o contato face a face, a construo coletiva de regras (caracterstica marcante

    principalmente no esporte enquanto atividade de lazer), a espontaneidade e o

    encontro de corpos, suados e vivos. Ao mesmo tempo, no poderia deixar de

    considerar o fato de a televiso e o computador estarem cada vez mais

    incorporados no cotidiano das pessoas, e portanto seria um anacronismo no

    lev-los em conta, como importantes meios de interao com o esporte.Rubem Alves, em algum escrito do qual no me recordo neste momento,

    diz que a motivao para a pesquisa advm de algo que nos falta, que se

    constitui, para ns, como ausncia. Percebo claramente, nesta altura de minha

    vida, que este algo, no meu caso, a questo da experincia. Olhando para trs,

    vejo que no mera coincidncia ter me motivado a escrever uma dissertao de

    mestrado sobre a especializao esportiva precoce (Interesses fsicos do lazer a

    influncia do esporte de alto rendimento para a criana na relao lazer-escola-

    processo educativo). A partir do conceito construdo por Phillipe Aris de

    sentimento de infncia, procurei mostrar o carter propedutico embutido nesta

    vivncia, visando preparao de um futuro adulto produtivo, negligenciando a

    criana em seu momento de viver o ldico, a brincadeira, a fantasia.

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    O trabalho mencionado acima tambm parte de uma experincia pessoal:

    comecei a praticar esportes (jud), em bases competitivas, j aos cinco anos de

    idade. Esta dissertao, que foi defendida na Faculdade de Educao Fsica da

    Unicamp, em setembro de 1994, tendo como orientador de mestrado o Prof. Dr.

    Nelson Carvalho Marcellino, nasceu, enquanto problema a ser investigado por

    mim, por volta de 1986, durante a minha graduao em Educao Fsica na

    Universidade de So Paulo. Quando, ao ver crianas pequenas competindo em

    categorias inferiores de futebol de salo, com nomes bastante sugestivos quanto

    precocidade desta prtica (chupetinha, mamadeira, fraldinha etc.), senti que algo

    estava errado, que aquelas crianas no deveriam estar em um esquema

    competitivo, inclusive sem qualquer adaptao quanto a regras, dimenses de

    quadra, peso da bola etc.Boa parte de meus trabalhos acadmicos posteriores, como artigos

    publicados, participao em congressos e docncia, girou em torno do tema do

    furto do ldico na infncia, principalmente por meio da vivncia da prtica

    esportiva, cujas caractersticas mais marcantes so o rendimento mximo, a

    sobrevalorizao da competio em detrimento da cooperao e a busca da

    vitria a qualquer custo. Pareceu-me, ento, que o tema que comeava a

    investigar no doutorado estava inserido neste contexto maior, ao qual j me

    dedicava, na medida em que, naquele momento, tendi a interpretar a substituio

    da experincia imediata pela mediao dos aparelhos eletrnicos como um modo

    a mais de furtar o elemento ldico da cultura da criana.

    Detectei, com base nos autores que havia lido at o primeiro ano do curso

    (1997), que muito mais importante do que execrar esta ou aquela tecnologia (o

    que seria um anacronismo), entender que tipo de interao est ocorrendo a.

    Alguns aspectos que mereceram destaque foram: 1. a passividade em potencial

    presente nesta vivncia (na medida em que os parmetros j esto dados pelo

    equipamento como no videogame restando ao indivduo jogar de acordo com

    eles, sobrando pouco espao para a mudana de regras e objetivos. 2. O declnio

    de uma relao pessoal e experimental com as pessoas e a natureza, que vai

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    sendo substituda por uma relao de posse (na medida em que posso escolher

    quando e de que maneira vou me relacionar com elas).

    No obstante, durante o cumprimento dos crditos de disciplinas, no

    segundo ano do curso de doutoramento da Faculdade de Educao da Unicamp,

    caiu-me s mos o livro O que o virtual(1996), do filsofo francs Pierre Lvy.

    Logo percebi que esta obra fornecia uma possibilidade de leitura, a meu ver, muito

    interessante para a temtica que havia escolhido. Em outras palavras, pareceu-me

    que as novas vivncias do esporte se constituam, na teoria de Lvy, como

    atualizaes das modalidades mencionadas acima, que por sua vez

    caracterizavam-se como mutaes de identidade, do esporte. Portanto,

    preenchiam uma das principais caractersticas da virtualizao, ou seja, da

    passagem do atual para o virtual.Duas possibilidades de abordar o problema se colocaram, ento, minha

    frente: considerar estas novas vivncias do esporte como fatores de alienao, o

    que tem como pano de fundo uma contraposio entre o virtual e o real, e, desta

    feita, desumanizantes, ou, por outro lado, como possibilidades de ampliao das

    interaes intra e interpessoais a partir da incorporao dos meios eletrnicos de

    comunicao no cotidiano, sendo corresponsvel, como parte deste movimento

    mais amplo de virtualizao, pelo processo de humanizao, com potencial para a

    produo de novas subjetividades. Escolhi esta ltima como hiptese deste

    trabalho, inspirado por autores com quem compartilhei uma viso no catastrfica

    e, mais do que isto, esperanosa, das mutaes em curso, como Pierre Lvy,

    Flix Guattari e Pierre Babin.

    Colocado o tema-problema e a hiptese deste trabalho, o objetivo que se

    imps foi discutir os significados destas novas vivncias esportivas, bem como as

    possveis implicaes para a educao fsica, principalmente com relao a

    mudanas em sua prtica pedaggica. Os temas que precisaram ser

    desenvolvidos, portanto, foram a virtualizao responsvel, em nossa

    argumentao, pela criao de novas modalidades esportivas e a experincia

    vital, o que procurei fazer, respectivamente, nos dois primeiros captulos. No

    terceiro captulo, procedi a um processo de valorao, entendido enquanto

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    reflexo valorativa, dos dados coletados em depoimentos, entrevistas e trabalhos

    acadmicos que giraram em torno das novas vivncias esportivas, a partir dos

    subsdios levantados anteriormente. No quarto e ltimo captulo, procurei inferir

    algumas implicaes pedaggicas para a educao fsica, entendida, em sentido

    amplo, como uma prtica educativa.

    Importante destacar que este trabalho foi redigido na primeira pessoa do

    singular. Esta escolha, compartilhada conscientemente junto com o orientador,

    deve-se ao referencial terico-metodolgico privilegiado, principalmente a partir

    das contribuies de Julian Maras, filsofo que tem me acompanhado at este

    momento e que traz a noo de que a vida no nada em si, mas adquire

    sentido quando falo de minha vida, ou melhor, eu vivendo-a. Minha vida um

    gerndio. Toda realidade enquanto realidade enquanto encontrada por mim dequalquer modo que seja radica em minha vida, nela est radicada (Antropologia

    Metafsica, p. 50). Para este autor, portanto, fundamental partir da experincia

    de minha vida. Foi o que procurei fazer durante todo o trabalho.

    Em seguida, fao uma breve sntese de cada captulo, procurando

    evidenciar a articulao lgica do pensamento que procurei desenvolver,

    denotando, portanto, a sua trajetria terico-metodolgica.

    Captulo I

    Matizando o problema: a querela sobre a questo do virtual

    Neste primeiro captulo, trouxe para o debate quatro dos principais autores

    contemporneos que produziram teorias interessantes sobre o virtual. So eles:

    Pierre Lvy, Flix Guattari, Paul Virilio e Jean Baudrillard. Argumento no trabalho

    que os dois primeiros apresentam uma viso que privilegia as possibilidades que

    vm se abrindo com os meio eletrnicos de comunicao, respectivamente aproduo de uma nova humanidade e novas subjetividades, enquanto os dois

    ltimos parecem centrar suas preocupaes, respectivamente, no predomnio da

    velocidade, principalmente da transmisso de dados, como balizadora das

    relaes humanas e em uma desrealizao que tem como principal conseqncia

    a perda do referencial histrico. Portanto, procurei neste captulo trazer diferentes

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    perspectivas que, do meu ponto de vista, mesmo se contrapondo em

    oportunidade e crise (ou at por isto), se complementam.

    Captulo II

    Encarnao, outro, circunstncia: um estudo da experincia vital

    A partir da contribuio dos autores que se debruaram sobre a questo do

    virtual, particularmente Pierre Lvy e Flix Guattari, pareceu-me necessrio

    destacar o processo de mutao do humano, fruto de sua interao com as novas

    tecnologias da comunicao, o que corresponde produo de novas

    subjetividades, mencionada acima. Deste modo, tornou-se necessrio perguntar:

    O que o homem? O que a pessoa? O que experincia?

    Portanto, procurei neste segundo captulo trazer a contribuio de autores

    que se debruaram sobre o tema da pessoa, reflexo recente na filosofia

    ocidental. Ponto comum entre estes pensadores, a indissociabilidade entre o

    sujeito e seu mundo constituiu-se como elemento fundamental para a tentar

    compreender o significado das novas vivncias do esporte, resultado da interao

    com as novas modalidades esportivas. Para tanto, busquei principalmente em

    Julian Maras e Georges Gusdorf as principais categorias de anlise deste

    trabalho: corporeidade, mundanidade, outrem, circunstncia e vivncia (realidade

    radical). Estas categorias compe, em poucas palavras, a experincia vital, cuja

    construo permitiu, junto com as teorias sobre o virtual, a reflexo valorativa queprocedi no terceiro captulo.

    Captulo III

    A virtualizao do esporte e suas novas vivncias

    Com base na problematizao dos autores que se debruaram sobre a

    questo do virtual/virtualizao (Captulo I), e das principais teorias sobre a

    pessoa e sua circunstncia (Captulo II), empreendi uma anlise dos depoimentos

    de praticantes destas vivncias eletrnicas, coletados em revistas, jornais e

    textos acadmicos, bem como de pesquisas empreendidas, principalmente, sobre

    a assistncia ao esporte televisionado. A tnica da pesquisa foi a tentativa de

    desvendar os significados presentes nestas vivncias. Foi possvel perceber um

    movimento duplo, s vezes simultneo, que denominei de embaralhamento e

    intensificao. O primeiro refere-se a uma crescente dificuldade em distinguir

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    prtica e assistncia, bem como da interpenetrao entre o pblico e o privado,

    fenmenos constantes principalmente no esporte telespetculo. J o segundo, que

    compe os denominados esportes radicais, representa uma profunda experincia

    paradoxal de conexo e fuga de si mesmo, a qual identifico com a contribuio

    freudiana de pulso de morte, na medida em que esta experincia, do meu pontode vista, pode ser interpretada como negao das limitaes e medos inerentes

    vida real.

    Captulo IV

    Implicaes da virtualizao do esporte para a Educao Fsica

    Tendo em vista as anlises que foram empreendidas no captulo anterior,

    verifiquei a necessidade de ampliar os limites conceituais do esporte, ponto em

    que corroboro pesquisa de doutorado realizada pelo professor Mauro Betti,

    publicada posteriormente como A janela de vidro. Em meu trabalho, argumento

    que esta ampliao deve levar em conta no apenas as modalidades, mas

    tambm as novas vivncias, na medida em que novos jogos sociais se encontram

    presentes, como a intensificao da experincia e o embaralhamento entre o

    assistir e o praticar.

    Empresto de Pierre Lvy a metfora que considero o ponto central destas

    implicaes: a bola como objeto que faz circular a inteligncia coletiva. Proponho

    que a educao fsica, em sua prtica pedaggica, considere a experincia vital,presente na motricidade humana, como este objeto. Para tanto, entendo ser

    fundamental a incorporao, nas aulas de Educao Fsica, do trabalho em

    estreo e mixagem, conforme proposta de Mauro Betti (1998) a partir da

    contribuio de Pierre Babin e Koulomdjian (1989), combinado com a

    indispensvel experincia imediata, construo que emprestamos de Vilm

    Flusser (1983).

    Quero deixar ecoar aqui algumas palavras deste ltimo autor, que

    considero uma das principais referncias deste trabalho, que ora apresento como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor pela Faculdade de Educao

    da Universidade Estadual de Campinas.

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    Os institutos tecnolgicos futuros exigiro conhecimento de

    informtica, ciberntica, teoria dos conjuntos e dos jogos. Isto

    proporcionar aos alunos recuo 'irnico' com relao aos aparelhos e

    seu funcionamento. E tal distanciamento terico ser convite para o

    mergulho em direo da experincia imediata. Convite 'filosofia'.Por assim dizer: s costas do aparelho os alunos da escola futura

    transcendero o aparelho. Percebero eles o aparelho como jogo.

    Sero jogadores com as regras que aprendem. Transcendero a

    funo, no como o produtor de filmes transcende a cidade. Mas a

    transcendero como o filsofo transcende a cidade. Transcendero o

    aparelho teoricamente e concretamente (Flusser, 1983, p. 151).

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    CAPTULO I

    MATIZANDO O PROBLEMA: A QUERELA SOBRE A

    QUESTO DO VIRTUAL

    Assistimos hoje a um processo que podemos denominar de mutao do

    esporte. Dia aps dia, surgem novas modalidades que vm desafiando os

    tradicionais critrios utilizados para conceituar esta manifestao da cultura, ou

    seja, no apresentam as mesmas caractersticas de competio, rendimento

    mximo, vitria/derrota, etc., que se encontram nas atividades esportivas ditas

    tradicionais (Betti, 1998, p. 16). Paradoxalmente, boa parte recebe a

    denominao de esportes radicais: descer uma cachoeira utilizando cordas, ou

    mesmo a boca de uma caverna, para no falar do mais conhecido bungee jump,

    em que o sujeito pula de um viaduto seguro por cordas elsticas, so algumas das

    atividades mais conhecidas.

    Outra manifestao que, do nosso ponto de vista, caminha nesta direo,

    so os jogos eletrnicos, ou videogames. Neste caso, o desafio conceitual recai

    sobre a desterritorializao desta prtica (prtica?), pois j no se encontra em um

    espao puro, uma condio a priorinecessria para se dar experincia, como

    posto em Kant, para quem o espao e o tempo so condies a priori de

    possibilidade da intuio emprica, da experincia do mundo. Ou seja, deste ponto

    de vista s seria possvel intuir um objeto ao represent-lo no espao, exterior ao

    sujeito. Ocorre que a imagem virtual, substrato dos videogames, constitui-se no

    prprio objeto da experincia, no seu tecido mesmo e a define exatamente

    (Quau, 1996, p. 94).O mesmo parece acontecer com o esporte telespetculo, que apresenta

    como um de seus aspectos mais interessantes um embaralhamento entre prtica

    e assistncia.

    Parece ser possvel afirmar, a partir do que foi colocado acima, que est

    ocorrendo uma mutao de identidade do esporte. Identifico este processo com

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    algo mais geral, que o filsofo francs Pierre Lvy (1996, p. 11) denomina

    movimento geral de virtualizao, fruto do advento das novas tecnologias de

    comunicao, que est modificando diversas esferas da vida humana, como o

    trabalho e o lazer. Por exemplo, atualmente o teletrabalho desestrutura algumas

    das principais caractersticas laborais, como a presena fsica no escritrio e a

    durao da jornada, ao mesmo tempo em que permite uma grande sinergia entre

    os trabalhadores.

    Neste captulo abordarei as diferentes concepes sobre o virtual, a partir

    de seus mais criativos tericos, como Pierre Lvy, Flix Guattari, Paul Virilio e

    Jean Baudrillard. Os dois primeiros caracterizam-se por enxergarem grandes

    possibilidades de que esta virtualizao colabore com o processo de humanizao

    (Lvy, 1996, passim) e de criao de uma nova/novas subjetividade(s) (Guattari,1992, passim); j os dois ltimos preferem focar os perigos que este mesmo

    movimento parece engendrar, particularmente uma imploso do espao/tempo

    (Virilio, 1993, passim) e uma desrealizao geral (Baudrillard, 1996, passim).

    Pretendo com isto matizar a questo, o que permitir um quadro mais consistente

    de anlise, fundamental para estudar as implicaes para o esporte, em especial

    no que se refere ao que iremos chamar de suas novas vivncias eletrnicas.

    1.1 Lvy e Guattari: uma nova humanidade e subjetividade.

    Comearei por Pierre Lvy. Dos autores que vm produzindo idias

    interessantes para pensarmos os fundamentos do processo em questo,

    entendo que particularmente o intelectual francs, que tem vindo ao Brasil

    freqentemente nestes ltimos anos, destaca-se por captar o que penso ser a sua

    essncia. O autor em foco argumenta que estamos vivendo um movimento geral

    de virtualizao. Frente a ele, tem um posicionamento diferente, no catastrofista,

    daquele difundido principalmente por Jean Baudrillard e Paul Virilio que,

    respectivamente, entendem estar havendo uma desrealizao geral e uma

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    imploso do espao-tempo. Sustentado por uma tripla investigao relativa a

    virtualizao (filosfica, antropolgica e sociopoltica), Lvy (1996, passim)

    fornece elementos para que possamos compreender toda a sua amplitude.

    Flix Guattari (1992, p. 14), na mesma direo, atribui s tecnologias de

    comunicao, especialmente as mais recentes, como as mdias eletrnicas, a

    informtica e a telemtica, o papel de operarem na heterognese do humano,

    contribuindo para a produo de novas subjetividades. O filsofo francs

    argumenta que este movimento se d a partir de 1. componentes semiolgicos

    significantes que se manifestam por meio da famlia, da educao, do meio

    ambiente, da religio, da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indstria

    dos mdia, do cinema, etc.; 3. dimenses semiolgicas a-significantes colocando

    em jogo mquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ouindependentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significaes e

    denotaes que escapam ento s axiomticas propriamente lingsticas

    (Guattari, op. cit., p. 14).

    Guattari (op. cit., p. 15) cuidadoso ao analisar o processo de

    subjetivao operado pelas novas tecnologias de comunicao. Aponta um

    movimento duplo e simultneo, de homogeneizao universalizante e

    reducionista da subjetividade e uma tendncia heterogentica, quer dizer, um

    reforo da heterogeneidade e da singularizao de seus componentes. Neste

    ponto taxativo quanto ao futuro da virtualizao da cultura: ou caminhamos para

    a criao, a inveno de novos Universos de referncia; ou, no sentido inverso,

    (o pior), que a mass-midializao embrutecedora, qual so condenados hoje

    em dia milhares de indivduos (Guattari, op. cit., p. 15-6).

    Penso que estes dois movimentos j so bastante presentes na

    contemporaneidade. Comecemos pelo pior, que segundo Guattari, se caracteriza

    pela massificao. Dois dos maiores ndices de audincia da televiso brasileira

    so registrados nos programas dominicais das duas maiores redes, a Globo e a

    SBT, respectivamente responsveis pelos Programa do Fausto e Programa do

    Gugu1. Sabe-se que a durao de cada um dos quadros destes programas est

    1 Conforme encarte sobre televiso da Folha de So Paulo de 11 de fevereiro de 2001.

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    diretamente relacionada contnua aferio dos pontos registrados pelo Ibope. Ou

    seja, encontramos a um exemplo de edio de imagens e quadros baseado

    quase que exclusivamente no nmero de assistentes, o que leva a uma

    programao, do meu ponto de vista, de baixa qualidade, na medida em que, para

    atingir seu objetivo, nivela-se por baixo o nvel da programao.

    Por outro lado, e como o reverso da moeda, pode-se observar programas

    de qualidade principalmente nos canais de televiso a cabo. Um dos aspectos que

    atribuo para esta diferenciao justamente a diversificao da programao.

    Portanto, razovel supor que ela atender indivduos e grupos heterogneos

    entre si, o que parece caminhar na direo do que Guattari denomina novos

    Universos de Referncia.

    Tambm Pierre Lvy demonstra cautela quanto aos impactos da evoluoem curso. Para ele, estamos caminhando para uma encruzilhada em que, numa

    direo aponta para a reproduo do que j est a, ou seja, da espetacularizao

    e da massificao, bases para o consumo, alicerce do capitalismo globalizado

    contemporneo, e em outra a possibilidade de acompanharmos as tendncias

    mais positivas da evoluo em curso e criamos um projeto de civilizao centrado

    sobre os coletivos inteligentes: recriao do vnculo social mediante trocas de

    saber, reconhecimento, escuta e valorizao das singularidades, democracia mais

    direta, mais participativa, enriquecimento das vidas individuais, inveno de

    formas novas de cooperao aberta para resolver os terrveis problemas que a

    humanidade deve enfrentar, disposio das infra-estruturas informticas e

    culturais da inteligncia coletiva (1996, p. 118).

    Logo no incio do seu trabalho O que o virtual, Lvy desfaz a noo, to

    difundida, de que o virtual se ope ao real. A palavra virtual vem do latim

    medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, fora, potncia. Na filosofia

    escolstica, virtual o que existe em potncia e no em ato. O virtual tende a

    atualizar-se, sem ter passado, no entanto, concretizao efetiva ou formal. A

    rvore est virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente

    filosficos, o virtual no se ope ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade

    so apenas duas maneiras de ser diferentes (Lvy, op. cit., p. 15).

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    Assim, para este autor, o virtual como o n problemtico, o n de

    tendncias ou de foras que acompanha uma situao, um acontecimento, um

    objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resoluo: a

    atualizao (Lvy, op. cit., p. 16).

    Lvy (op. cit., p. 12) chama a ateno para o fato de que a noo de

    virtual j ter sido trabalhada por muitos filsofos, inclusive franceses

    contemporneos como Gilles Deleuze e Michel Serres. Assim, desde logo explicita

    a sua possvel contribuio com a presente obra: no se limitar em definir o virtual

    como um modo de ser particular, nem tampouco analisar a passagem do

    possvel ao real ou do virtual ao atual (o que, segundo ele, j foi feito pela

    tradio filosfica at os trabalhos mais recentes). o movimento inverso que

    pretende abordar, ou seja, do atual e do real ao virtual. Ora, precisamente esseretorno montante que me parece caracterstico tanto do movimento de

    autocriao que fez surgir a espcie humana quanto da transio cultural

    acelerada em que vivemos hoje.

    este movimento inverso, do atual ao virtual, que denomina virtualizao.

    A virtualizao no uma desrealizao (a transformao de uma realidade num

    conjunto de possveis), mas uma mutao de identidade, um deslocamento de

    centro de gravidade ontolgico do objeto considerado: em vez de se definir

    principalmente por sua atualidade (uma soluo), a entidade passa a encontrar

    sua consistncia essencial num campo problemtico. Virtualizar uma entidade

    qualquer consiste em descobrir uma questo geral qual ela se relaciona, em

    fazer mutar a entidade em direo a essa interrogao e em redefinir a atualidade

    de partida como resposta a uma questo particular (Lvy, op.cit., p. 17-8).

    Guattari, em Caosmose (1992, p. 51), j lanava as bases das idias acima

    que posteriormente foram desenvolvidas por Lvy. Ao descrever o conceito de

    mquina2, argumenta que ela est sempre em situao de complementaridade

    com elementos exteriores (o homem que a fabrica, outras mquinas atuais e

    2 Guattari contrape uma viso mecanicista de mquina sua assimilao e interao com os seres vivos, apartir do conceito de autopoiese desenvolvido por Humberto Varela e Francisco Maturana, bem como daperspectiva ciberntica aberta por Norbert Wiener.

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    virtuais, etc.), que em ltima instncia acarretam um processo autopoitico, que

    ocorre por meio de desterritorializaes.

    preciso considerar que existe uma essncia maqunica que ir se

    encarnar em uma mquina tcnica, mas igualmente no meio social,

    cognitivo, ligado a essa mquina os conjuntos sociais so tambm

    mquinas, o corpo uma mquina, h mquinas cientficas, tericas,

    informacionais. A mquina abstrata atravessa todos esses

    componentes heterogneos, mas, sobretudo ela os heterogeneza

    fora de qualquer trao unificador e segundo um princpio de

    irreversibilidade, de singularidade e de necessidade.

    A virtualizao, para poder ser mais bem compreendida, necessita ter seus

    principais termos explicados. Lvy trabalha com dois pares que indicam

    movimentos distintos, conforme quadro a seguir:

    Latente Manifesto

    Substncia Possvel (insiste) Real (subsiste)

    Acontecimento Virtual (existe) Atual (acontece)

    Ilustrao 1: Reproduo de quadro p. 138 (Lvy, 1996)3

    Ao emprestar de Gilles Deleuze uma distino entre dois termos (possvel e

    virtual), esclarece que o primeiro se relaciona com o real, ainda que de uma forma

    latente. O possvel exatamente como o real: s lhe falta a existncia (Lvy,

    1996, p. 16). Cita como exemplo um programa informtico antes de rodar no

    computador (possvel) e depois (real) (Lvy, op. cit., p. 17).

    por isso que o virtual no se ope ao real, mas sim ao atual. Este par

    (virtual/atual), ao contrrio do anterior (possvel/real), que j se encontra

    3 Lvy aponta a influncia decisiva de Flix Guattari na construo deste quadro a partir do que denominaquatro functores ontolgicos, constitudos pelos phylum tcnicos ou discursividade maqunica, universos devalores e de referncia (ou complexidade incorporal), fluxo, ou discursividade energtico-espao-temporal, eterritrios existenciais, ou encarnao casmica (1996, p. 153).

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    constitudo, implica uma criao, no sentido pleno do termo, pois a criao implica

    tambm a produo inovadora de uma idia ou de uma forma (Lvy, op. cit., p.

    16).

    Lvy (op. cit., p. 18) procura ilustrar esta dinmica pelo exemplo da

    virtualizao de uma empresa. Ao desestruturar a organizao clssica de

    trabalho (livro de ponto, presena fsica, expedientes pr-determinados), e

    substitu-la por uma rede de comunicao eletrnica e pelo uso de recursos e

    programas que favoream a cooperao, a virtualizao fluidifica as distines

    institudas, aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor. Portanto, no se

    trata de uma desrealizao; pelo contrrio, a virtualizao um dos principais

    vetores de criao de realidade.

    Tambm Guattari (1992, p. 17) aborda o potencial criador da virtualizao,porm, sempre enfatizando a produo de subjetividade. Ou seja, a mutao de

    identidade da cultura engendra o seu enriquecimento ou seu empobrecimento,

    dependendo, em ltima anlise, da qualidade da experincia da pessoa com estes

    novos Universos. O filsofo francs relata o seu trabalho com psicticos do campo

    e da cidade (principalmente burocratas e intelectuais). Para os primeiros, notou

    avano teraputico quando entraram em contato com artes plsticas, teatro,

    msica, etc., Universos que lhes eram alheios. J para os segundos, interessava

    atividades como jardinagem e culinria. O que importa aqui no unicamente o

    confronto com uma nova matria de expresso, a constituio de complexos de

    subjetivao: indivduo-grupo-mquina-trocas mltiplas, que oferecem pessoa

    possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de

    seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar. Estas

    reflexes sero de suma importncia para abordarmos a vivncia da cultura em

    um mundo cada vez mais influenciado pela virtualizao.

    Em sua cartografia do virtual, Lvy (1992, p. 19) desmistifica uma outra

    noo presente no senso comum: a de que o virtual se confunde com o

    ciberespao que est se construindo com as novas tecnologias da comunicao.

    Est implcita a uma idia de desaparecimento que, se por um lado no

    totalmente equivocada o virtual, com muita freqncia, no est presente por

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    outro no abarca toda a sua complexidade. Veremos a seguir um exemplo de

    virtualizao que implica uma materializao - a tcnica. Esta, junto com a

    linguagem e o contrato, formam as trs virtualizaes responsveis pelo processo

    de hominizao.

    Para Lvy (1996, p. 73), a linguagem o prprio arqu do humano. Ela

    tem a capacidade de virtualizar o tempo, o que nos possibilita problematiz-lo.

    As linguagens humanas virtualizam o tempo real, as coisas materiais, os

    acontecimentos atuais e as situaes em curso. Da desintegrao do presente

    absoluto surgem, como as duas faces da mesma criao, o tempo e o fora-do-

    tempo, o anverso e o reverso da existncia. Acrescentando ao mundo uma

    dimenso nova, o eterno, o divino, o ideal tem uma histria. Eles crescem com a

    complexidade das linguagens. Questes, problemas, hipteses abrem buracos noaqui e agora, desembocando, do outro lado do espelho, entre o tempo e a

    eternidade, na existncia virtual.

    A idia de que a virtualizao sempre acompanhada por um

    desaparecimento uma desrealizao pode ser facilmente combatida pelo

    exemplo da virtualizao tcnica. A ferramenta se constitui em uma passagem do

    privado para o pblico. Exemplificando, um martelo, nasce das experincias

    subjetivas do prprio corpo. Porm, ele mais do que a sua extenso (como

    entende Marshall McLuham). Mais do que uma extenso do corpo, uma

    ferramenta uma virtualizao da ao (Lvy, 1996, p. 75). Vale a pena, no

    intuito de melhor apreender a dinmica entre os quatro modos de ser diferentes,

    atentar para o seguinte trecho:

    Em suma, o mesmo objeto tcnico pode ser considerado segundo quatro

    modos de ser. Enquanto problematizao, desterritorializao, passagem ao

    pblico, metamorfose e recomposio de uma funo corporal, o objeto tcnico

    um operador de virtualizao. Tal martelo virtualiza quando o consideramos como

    memria da inveno do martelo, vetor de um conceito, agente de hibridao do

    corpo. Ento, o martelo existe e faz existir (Lvy, op. cit., p. 76).

    Finalmente, a terceira virtualizao que constituiu o humano. O contrato

    ou, usando as palavras de Pierre Lvy a virtualizao da violncia, emerge do

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    aumento da complexidade das relaes sociais. Os rituais, as religies, as

    morais, as leis, as normas econmicas ou polticas so dispositivos para virtualizar

    os relacionamentos fundados sobre as relaes de foras, as pulses, os instintos

    ou os desejos imediatos. Uma conveno ou um contrato, para tomar um exemplo

    privilegiado, torna a definio de um relacionamento independente de uma

    situao particular; independente, em princpio, das variaes emocionais

    daqueles que o contrato envolve; independente da flutuao de foras (Lvy, op.

    cit., p. 77).

    Se por um lado entendo, juntamente com Lvy e Guattari, que a

    virtualizao concorre para a criao de realidade, por outro preciso notar que

    este movimento generalizado tambm apresenta um paradoxo importante a ser

    analisado aqui, justamente a partir deste seu potencial criador. Trata-se de umacerta tendncia homogeneizao, equivalncia, na medida em que as coisas

    se tornam padronizveis, intercambiveis, decorrncia das diversas opes de

    experincia que se abrem principalmente pelas novas tecnologias de

    comunicao. Guattari (1992, p. 169) quem vai mais fundo nesta questo. Os

    turistas, por exemplo, fazem viagens quase imveis, sendo depositados nos

    mesmos tipos de cabine de avio, de pullman, de quartos de hotel e vendo desfilar

    diante de seus olhos paisagens que j encontraram cem vezes em suas telas de

    televiso, ou em prospectos tursticos. Assim, a subjetividade se encontra

    ameaada de paralisia.

    Octavio Ianni tambm aponta para um paradoxo semelhante, porm

    partindo do eixo modernidade/ps-modernidade4. Para o socilogo da Unicamp,

    ao mesmo tempo em que esta ltima apresenta-se descontnua, fragmentada,

    diversificada uma boa imagem que ilustra esta impresso a da soft-citycitada

    por David Harvey em A condio ps-moderna5 nunca o mundo foi to

    4 Paradoxo apresentado pelo citado professor na disciplina Seminrio de Teoria Metodolgica em CinciasSociais, cursada por mim como aluno regular no 1o semestre de 1998 no Instituto de Filosofia e CinciasHumanas da Unicamp.5 A seguinte citao de Jonathan Raban, presente no livro citado de Harvey, ilustra a idia de fragmentao ediversidade presente nas cidades mundiais mencionada por Octavio Ianni: Para o bem ou para o mal, [acidade] o convida a refaz-la, a consolid-la numa forma em que voc possa viver nela. Voc tambm. Decidao que ela , e a sua prpria identidade ser revelada, como um mapa fixado por triangulao. As cidades, aocontrrio dos povoados e pequenos municpios, so plsticas por natureza (1989, p. 17).

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    articulado. Basta pensar na globalizao da economia, que integrou de maneira

    jamais vista na histria as finanas mundiais e os grandes conglomerados

    empresariais, a partir de uma rede mundial de computadores e da

    interdependncia dos mercados financeiros, acarretando grande dependncia

    entre os pases perifricos e centrais, particularmente com os Estados Unidos. Ao

    mesmo tempo, no paramos de nos espantar com novidades todos os dias, seja

    no campo das novas tecnologias, seja na produo de novos comportamentos.

    Paralisia e movimento, articulao e descontinuidade eis o que parece ser o

    paradoxo dos tempos atuais, da virtualizao e da ps-modernidade.

    Procurei, at o momento, recuperar as principais colocaes de Pierre Lvy

    e de Flix Guattari sobre o virtual e algumas de suas implicaes: o seu papel na

    dinmica dos quatro modos de ser que, vale repetir mais uma vez, no se opeao real e o seu papel, enquanto virtualizao, de ser responsvel pelo processo

    de hominizao, e de sua atual mutao. Em sntese, a leitura destes dois autores

    expressa uma perspectiva otimista quanto aos rumos da virtualizao, ao mesmo

    tempo em que ambos mantm uma postura cautelosa, na medida em que este

    movimento ontolgico foi e construdo historicamente. Portanto, no se restringe

    as modificaes que vm ocorrendo pelo advento das novas tecnologias de

    comunicao (embora, indubitavelmente, ele tenha se acelerado muito a partir de

    ento), mas acompanham o prprio processo de humanizao, principalmente

    pela linguagem, a tcnica e o contrato. Penso ento que, a partir desta

    contextualizao histrica do virtual, o caminho est aberto, tanto na direo da

    construo de uma nova humanidade e subjetividade, como para a catstrofe da

    massificao e homogeneizao do homem, posio esta bastante marcada na

    produo intelectual de Paul Virilio e Jean Baudrillard, que veremos a seguir.

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    1.2 A imploso do espao-tempo de Paul Virilio e a desrealizao de

    Jean Baudrillard.

    O pensamento de Paul Virilio se contrape ao de Pierre Lvy, do meu ponto

    de vista, da mesma forma que, na cultura oriental, a crise se contrape

    oportunidade. Em outras palavras, a primeira decadncia tende a se resolver

    na direo de uma transformao. Capra, em seu clebre livro O ponto de

    mutao (1988), argumenta, a este respeito, a partir do orculo chins I Ching,

    que ao trmino de um perodo de decadncia sobrevm o ponto de mutao. A

    luz poderosa que fora banida ressurge. H movimento, mas este no gerado

    pela fora... O movimento natural, surge espontaneamente. Por essa razo, a

    transformao do antigo torna-se fcil. O velho descartado, e o novo introduzido. Ambas as medidas se harmonizam com o tempo, no resultando da,

    portanto, nenhum dano6.

    Do meu ponto de vista, mesmo movimento geral de virtualizao que Lvy

    enxerga como busca de hominizao (1996, p. 11), e mais ainda, como um dos

    principais vetores de criao de realidade (1996, p. 18), visto por Virilio (1993,

    passim) como principal causadora do que poderia ser chamado de uma imploso

    do espao-tempo, principal responsvel pelo que entende ser uma crise da

    percepo destas duas dimenses ontolgicas, pois este ltimo se sobrepe

    sobre o primeiro, na medida em que a velocidade de transmisso de dados se

    torna o referencial mediador das relaes entre as pessoas nos mais diversos

    nveis (trabalho, lazer, etc.) Portanto, entendo que contrapor estes autores poder

    contribuir, em um mesmo movimento crise e oportunidade para elucidar os

    fundamentos do processo em questo. o que veremos a seguir.

    Vamos, ento, ao pensamento de Virilio. O arquiteto e urbanista francs em

    seu livro O espao crtico (1993, p. 8-9) argumenta que vivemos na

    contemporaneidade um rearranjo da Cidade, do ponto de vista espacial e

    temporal, a partir do que denomina ruptura de continuidade, que se desdobra

    em, pelo menos, trs aspectos: utilizao das tecnologias eletrnicas de

    6 Citao localizada em pgina inicial no numerada do citado livro.

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    comunicao, reorganizao industrial e revoluo dos transportes. A primeira se

    caracteriza principalmente por se constituir em uma mediao eletrnica que

    substitui o contato face a face, a segunda pelo que vem provocando de

    desemprego, fechamento de empresas, aumento do trabalho autnomo e do

    teletrabalho, e a terceira por caminhar na direo de extinguir a oposio entre

    intra-muros e extramuros (o que, segundo Virilio, resulta no fenmeno de

    conurbao dos centros urbanos).

    Tudo isto faz com que os limites espaciais das portas, portes, muros e

    fachadas sejam substitudos pela interface da tela que constitui uma nova

    topologia eletrnica (Virilio, op. cit., p. 9). Deste modo, a prpria representao

    da cidade muda, pois as suas tramas no mais se inscrevem no espao de um

    tecido construdo, mas nas seqncias de uma planificao imperceptvel dotempo na qual a interface homem/mquina toma o lugar das fachadas dos

    imveis, das superfcies dos loteamentos... (Virilio, op. cit., p. 10).

    Uma conseqncia imediata da substituio dos limites espaciais pela tela

    a perda da noo do limite temporal entre o dia e a noite, na medida em que

    esta nova topologia a desconsidera. Institui-se, portanto, um falso dia eletrnico,

    que caminha para o paroxismo de um presente permanente cuja intensidade sem

    futuro destri os ritmos de uma sociedade cada vez mais aviltada (Virilio, op. cit.,

    p. 11).

    Tambm Baudrillard (1996, p. 147) far crticas tela, mais especificamente

    televiso. Para ele, que apresenta um pensamento mais negativo quanto ao

    virtual do que Virilio, a imagem televisiva, bem como as imagens de sntese (por

    exemplo, o videogame), ao contrrio da imagem-foto ou da imagem-cinema,

    romperam com qualquer ligao com a histria, na medida em que se

    autoproduzem sem referncia a um real ou a um imaginrio, [so] virtualmente

    sem limite, e esse engendrar-se sem limite produz a informao como catstrofe.

    A questo de fundo para esta crtica, porm e este o ponto que

    particularmente nos interessa neste trabalho - reside na prpria noo de virtual

    empregada pelo autor de, entre outros livros,A sociedade de consumo. Baudrillard

    (op. cit., p. 147), neste ponto, diverge radicalmente de Pierre Lvy. Ao se referir s

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    imagens sintticas e da televiso, argumenta que so virtuais, e o virtual o que

    termina com toda a negatividade, logo com toda a referncia histria ou ao

    acontecimento. O filsofo francs exemplifica o seu entendimento de virtual a

    partir do que a televiso editou com relao ao massacre da Romnia (1989) e da

    Guerra do Golfo (1990). Em ambos os episdios, do seu ponto de vista, o virtual (a

    imagem) tornou-se a referncia mais importante de informao e representao, o

    que ocasionou a compulso de aniquilar o objeto real, o acontecimento real, pelo

    prprio conhecimento adquirido sobre ele (Baudrillard, op. cit., p. 148). Em outro

    trecho, mais enftico quanto gravidade que enxerga no virtual. Escamotear o

    acontecimento real e substitu-lo por um duplo, uma prtese artificial, como aquela

    dos figurantes da carnificina de Timiosara, resume todo o movimento de nossa

    cultura (Baudrillard, op. cit., p. 150).A noo de desrealizao empregada por Baudrillard encontra eco em

    Virilio (1993, passim). Para o arquiteto francs, chegamos ao paroxismo de

    vivenciarmos o desaparecimento da cidade, a partir do mesmo movimento que a

    circunscreve na nova topologia eletrnica, processo que considera j durar ao

    menos quatro dcadas, ou seja, a partir do advento da televiso como meio de

    comunicao de massa. Deste modo, o que constitui a cidade (parece-me que

    ainda fortemente presente no imaginrio coletivo), como as referncias simblicas,

    histricas, arquitetnicas e sobretudo as geomtricas deixam paulatinamente de

    existir.

    Como implicao deste movimento tem-se a substituio do contato face a

    face pela mediao das tecnologias eletrnicas de comunicao. Deste modo,

    coloca-se em xeque o Tempo e o Espao a partir da emergncia da velocidade

    como parmetro de funcionamento da sociedade, o que, segundo o arquiteto

    francs, representa o declnio da informao imediata pela sobreposio da

    informao mediatizada, fazendo com que o efeito de real parea suplantar a

    realidade imediata. Esta , para ele, a gnese do que se convencionou

    denominar crise das grandes narrativas, na medida em que as novas tecnologias

    enfatizam mais os meios do que os fins (Virilio, 1993, p. 18).

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    No obstante, Virilio (op. cit., pp. 18-9) no se preocupa em teorizar se

    estamos ou no na ps-modernidade; para ele, a questo que se coloca menos

    o fato de estarmos ou no construindo grandes ou micro narrativas e mais o que

    lhe parece se caracterizar como uma crise da narrativa em si, justamente pela

    crescente incapacidade de descrever e inscrever o real. Sintetiza este ponto

    fazendo um paralelismo no qual a desinformao, a desmesura e a

    incomensurabilidade estariam para a ps-modernidade da mesma maneira que a

    resoluo filosfica dos problemas e a resoluo da imagem (pictorial,

    arquitetural...) estiveram para o nascimento das luzes.

    Se por um lado a cidade, por conta dos meios eletrnicos de comunicao,

    sofre um processo de desaparecimento, por outro lado estas mesmas mdias so

    responsveis pela co-produo da realidade sensvel na qual as percepesdiretas e mediatizadas se confundem para construir uma representao

    instantnea do espao, do meio ambiente. ... . A observao direta dos fenmenos

    visveis substituda por uma teleobservao na qual o observador no tem mais

    contato imediato com a realidade observada. Se este sbito distanciamento

    oferece a possibilidade de abranger as mais vastas extenses jamais percebidas

    (geogrficas ou planetrias), ao mesmo tempo revela-se arriscado, j que a

    ausncia da percepo imediata da realidade concreta engendra um desequilbrio

    perigoso entre o sensvel e o inteligvel, que s pode provocar erros de

    interpretao tanto mais fatais quanto mais os meios de teledeteco e

    telecomunicao forem performativos, ou melhor: videoperformativos (1993, p.

    23).

    Entendo que neste ponto Virilio concorda com Lvy no que tange

    virtualizao ser vetor de criao de realidade. Do meu ponto de vista, importa

    menos se produtora ou co-produtora e mais a qualidade da vivncia destas

    novas telerrealidades. E a Virilio faz uma afirmao que penso ser bastante

    polmica, qual seja, a de que a substituio da experincia imediata pela sua

    mediatizao levaria a um desequilbrio entre o sensvel e o inteligvel. Em

    primeiro lugar, parece-me humanamente impossvel ocorrer esta total inverso,

    muito embora concorde ser crescente o tempo que crianas e adultos passam em

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    frente televiso, ao computador, ao telefone, etc. Em segundo lugar, o filsofo

    francs no menciona quais so os argumentos que o levaram a constatar o

    desequilbrio acima, pois se por um lado plausvel a afirmao de que cada vez

    mais interagimos com a tela, por outro ainda no perdemos a concretude do

    mundo fsico, com suas formas, cores, ambientes, textura, etc. Fica, portanto, tal

    afirmao, do meu ponto de vista, mais como uma descrio limite de retrica do

    que uma apreenso mais precisa do real.

    No obstante, suas reflexes acerca da mediatizao dos conhecimentos

    cientficos traz luz um problema, na minha opinio, dos mais pertinentes, qual

    seja, da inverso da relao histrica entre cincia e tcnica. Em outras palavras,

    se at h pouco assistimos o desenvolvimento da primeira criar demandas de

    aperfeioamento desta ltima processo responsvel pela criao dos diversosinstrumentos de separao, medio, controle de variveis, sintetizao de

    substncias e fenmenos, hoje verificamos o inverso, qual seja, a validao

    cientfica, cada vez mais, passa pelo crivo da aferio tecnolgica, colocando em

    segundo plano o papel do pesquisador, bem como o do conhecimento cientfico

    acumulado, tendo esta ps-cincia como uma de suas principais conseqncias

    a instaurao de uma guerra pura (intelectual e conceitual) menos afeita

    destruio do que desrealizao do mundo, uma desrealizao em que a

    logstica cientfico-industrial suplanta a estratgia poltico-militar como esta ltima,

    h muitos sculos, suplantou a ttica de caa ao homem (Virilio, 1993, p. 32).

    Portanto, cada vez mais passa a ser crvel somente aquilo que pode ser

    mediatizado pelas tecnologias avanadas, que supostamente trazem em si um

    rigor estatstico irrefutvel, caracterizando um cinematismo da representao

    cientfica, cada vez mais desvinculada do humano, tico e, inclusive cientfico.

    Tipo de arte pela arte da concepo terica, cincia pela cincia de uma

    representao do mundo mgico-estatstica, cuja tendncia pode ser constatada

    pela recente enumerao das partculas elementares (Virilio, op. cit., p. 36-7).

    Estas consideraes acima vo ao encontro, do meu ponto de vista, ao que

    Marilena Chau (1989 [a], p. 57-58) denominou "discurso competente", que se

    caracteriza por ser uma mediao entre o indivduo e a sua experincia de vida. A

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    autora em foco, ao analisar as reformas de ensino no Brasil a partir de 1968,

    observa que a educao, a partir de ento, transformou "a pedagogia em cincia,

    o educador em cientista prtico (tcnico), e o aprendizado em criao de fora de

    trabalho". A prtica educativa tornou-se assim excludente por enfatizar a noo de

    competncia: segundo a autora, ela pode ser enunciada a partir da seguinte

    frmula: "no qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em

    qualquer lugar e sob qualquer circunstncia" (op. cit., p. 58). Deste modo, a

    cincia torna-se "elemento de dominao porque fonte de intimidao", o que

    ter como consequncia a interposio da fala do "especialista" entre "a

    experincia real de cada um e sua vida". (op. cit., p.58).

    Chau (op. cit, p. 58) nos fornece alguns exemplos de como acontece esta

    mediao. "Entre nosso corpo e nossa sexualidade, interpe-se a fala dosexlogo, entre nosso trabalho e nossa obra, interpe-se a fala do tcnico, entre

    ns como trabalhadores e o patronato, interpe-se o especialista das "relaes

    humanas", entre a me e a criana, interpe-se a fala do pediatra e da

    nutricionista, entre ns e a natureza, a fala do ecologista, entre ns e nossa

    classe, a fala do socilogo e do politlogo, entre ns e nossa alma, a fala do

    psiclogo (muitas vezes para negar que tenhamos alma, isto , conscincia). E

    entre ns e nossos alunos, a fala do pedagogo".

    Segundo Chau (1989 [a], p. 59), estes discursos competentes "geram o

    sentimento individual e coletivo da incompetncia, arma poderosa de dominao".

    As consequncias deste processo de intimidao social se circunscrevem na

    prpria manuteno da ordem vigente, o que se expressa em diversas maneiras

    "anti-democrticas de lidar com o pensamento", das quais a autora cita algumas

    que considera principais. Destas, gostaria de reproduzir a terceira, que trata da

    diviso social do saber tecnolgico. "Em terceiro lugar, desenvolver um ideal de

    conhecimento tal que suas divises internas no sejam determinadas pela prpria

    produo do saber, mas por razes sociais e polticas determinadas, como o

    caso, por exemplo, do desenvolvimento tecnolgico que conhecemos, elaborado

    de maneira a excluir de seu conhecimento todos aqueles que devero ser

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    reduzidos condio de meros executantes de um saber cuja origem, sentido e

    finalidade lhes escapa inteiramente".

    Para Virilio (1993, p. 59), esta mediatizao do mundo, ao abranger todas

    as dimenses do humano, afetar tambm, de maneira j bastante presente, as

    relaes interpessoais, particularmente aquelas tradicionalmente fundadas por

    laos de vizinhana e comunidade. Neste ponto, o urbanista francs menciona

    Walter Benjamin quando este afirma, a respeito da reprodutibilidade da obra de

    arte, haver cada vez mais a necessidade de se possuir o objeto, em sua cpia ou

    reproduo

    Nesta mesma direo, Carlos Rodrigues Brando, em texto intitulado

    Espaos de Lazer e Cidadania, vai alm ao analisar de maneira geral a

    mediatizao das relaes humanas a partir da televiso, do telefone e da,naquele momento, emergente Internet. O antroplogo da Unicamp fala-nos de um

    processo de recastelamento, de medievalizao, da vida social urbana. Refere-se

    tendncia cada vez mais presente das pessoas vivenciarem seu tempo de lazer

    (acrescentaria que, para alguns poucos, tambm seu tempo de trabalho) em seus

    prprios lares, operando computadores, assistindo televiso, falando ao telefone

    ou, algo ainda no to difundido mas em crescente expanso, conversando com

    outras pessoas por meio de correio eletrnico via modem, buscando informaes

    via Internet, etc. Assim, estaria havendo um aumento no relacionamento entre o

    que o autor em foco denomina de "iguais virtuais" de classe e/ou de extrao

    intelectual, que podem estar a distncias to grandes quanto a de um pas a outro,

    e portanto sem estabelecerem algum contato face a face, e uma conseqente

    diminuio da convivncia com pessoas da prpria comunidade, vizinhos de rua,

    etc.

    Brando no expressa um pessimismo enftico a respeito da mediatizao

    do contato pela tecnologia, mas que preciso ter cautela. Deste modo, entende

    que esta, em si, " muito inovadora e desafiadora, visto que ela aponta para

    horizontes infindos, onde o perigo est justamente no deslocar para a excelncia

    da perfeio de um equipamento o efeito e o sentido do prprio trabalho e da

    prpria tica da convivncia". (Brando, 1994, p. 27).

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    , porm, com relao a este ltimo aspecto que faz sua advertncia mais

    incisiva: "Essa possibilidade de me encastelar e colocar dentro do meu mundo,

    atravs de um mecanismo de manipulao, as imagens, as vozes de quem eu

    quero, na situao em que eu quero - e a est o efeito perverso desses limites da

    tecnologia - gera um superindividualismo na experincia do mundo, quando ela se

    transforma numa espcie de rede distncia de superindividualizao

    mediatizada por aparelhos. Eu no me relaciono mais com as coisas do mundo,

    com as cachoeiras, com belezas reais do real, com os pores-de-sol, com aqueles

    espaos concedidos, sobretudo pela natureza, assim como tambm no me

    relaciono mais com as pessoas. Mas, atravs da inveno tecnolgica, posso t-

    las, s pessoas e natureza, repetidamente quantas vezes quiser, e nunca de

    uma forma pessoal e experimental mas, sim, dentro de uma relao de posse".(Brando, 1994, p. 28).

    Vemos que, neste ponto, Brando concorda com Virilio quanto ao

    sentimento de posse e superindividualizao que a interao com a tecnologia

    suscita. Alm disto, vejo com preocupao a crescente substituio da experincia

    concreta com as pessoas e a natureza, nica e especial para cada indivduo em

    seu momento de "estar" neste contato, pela sua mediao pela tecnologia, cujos

    parmetros e dinmica de funcionamento so padronizados, e, portanto, em

    grande parte previsveis! Isto me faz refletir sobre as colocaes de Rgis de

    Morais a respeito de um ensaio de Max Scheler intitulado "O homem e a histria".

    O autor de Estudos de filosofia da cultura sente-se provocado por duas

    expresses utilizadas pelo ensasta: que o homem contemporneo o desertor

    da vida e que, sobretudo, se contenta com substitutos do viver. A partir da,

    identifica na vivncia humana contempornea elementos que corroboram os

    dizeres de Scheler, como por exemplo, a estranheza que acomete alguns quando

    entram em contato com a natureza. "Isto chega, muitas vezes, ao paroxismo de as

    pessoas irem s praias ou aos campos, mas no se sentirem bem, pois perderam

    - l no fundo de si - o gosto pelo natural". (Morais, 1992, p. 58).

    To grave quanto o incmodo provocado pela interao do homem com a

    natureza a perda de elementos bsicos de convivncia humana que tm

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    acometido as pessoas. Fica patente nos dizeres a seguir o quanto estamos

    efetivamente contentando-nos com substitutos do viver, principalmente em

    nossas relaes humanas. "De outra parte a afetividade (que rico sentimento)

    vai sendo substituda pela gentileza, esta muito mais composta de gestos teatrais;

    substitui-se, como j disse, o caminhar (partilhante) pelo rodar (individualista, no

    interior de uma bolha mecnica que o automvel); substitui-se o entendimento

    humano, no que este tem de proximidade e compreenso, por normas

    burocratizadas e at mesmo contratuais de coexistncia. E assim o homem

    contemporneo parece ir de fato desertando da vida, das suas leis fundamentais,

    do seu sagrado csmico". (Morais, 1992, p. 58).

    Procurei, at o presente momento, discutir algumas das principais idias de

    Pierre Lvy, Flix Guattari, Paul Virilio e Jean Baudrillard, quatro grandes tericosdo movimento contemporneo de virtualizao, bem como trazer a colaborao de

    autores nacionais como Carlos Rodrigues Brando e Joo Francisco Regis de

    Morais, a respeito da mediatizao das relaes humanas fomentadas pelas

    novas tecnologias de comunicao. Comparativamente, o texto de Paul Virilio e

    Jean Baudrillard, por um lado, e de Pierre Lvy e Flix Guattari, por outro, traz, do

    meu ponto de vista, a combinao, j mencionada, da crise e da oportunidade. No

    captulo seguinte, procurarei aprofundar as principais categorias de anlise deste

    estudo: vivncia, experincia, encarnao, outrem, no intuito de construir os

    elementos necessrios para a anlise valorativa das novas prticas esportivas, em

    especial o esporte telespetculo, o videogame e os esportes radicais, o que ser

    feito no terceiro captulo. Para tanto, lanarei mo de autores como Georges

    Gusdorf, Julian Maras, Ortega y Gasset, alm daqueles j discutidos at aqui,

    como Pierre Lvy e Flix Guattari.

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    CAPTULO II

    ENCARNAO, OUTRO, CIRCUNSTNCIA: UM ESTUDODA EXPERINCIA VITAL

    Eu sou eu e minha circunstncia, se no a salvo,

    no me salvo eu Ortega y Gasset, Meditaes

    do Quixote, in Obras Completas, Tomo I, Revista

    do Occidente/Alianza Editorial, Madrid, 1987.

    O sujeito no outra coisa seno seu mundo, com

    a condio de entender-se por este termo tudo o

    que o afeto envolve. Assim pouco afirmar que o

    psiquismo est aberto para o exterior; ele

    apenas o exterior, mas um exterior infiltrado,

    tensionado, complicado, transubstanciado,animado pela afetividade. O sujeito um mundo

    banhado de sentido e de emoo. Pierre Lvy, O

    que o virtual, p. 107-8, 1997.

    Encontramos nas citaes acima algo em comum, da qual irei partir e que

    constitui o eixo central deste captulo: a indissociabilidade entre o homem e sua

    circunstncia. mxima de Ortega, que parte do eu, junta-se tambm a

    perspectiva da circunstncia: ela s porque minha (Maras, p. 51). Esta

    abordagem rechaa um entendimento coisificado de vida e mundo, to forte at

    h pouco na filosofia. Agora podemos anunciar a categoria central deste trabalho:

    experincia vital. Como veremos a seguir, esta ser imprescindvel para

    compreendermos as diferentes vivncias esportivas, pois o onde elas acontecem

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    justamente na realidade radical, ou na vida de cada pessoa. Passaremos, a

    seguir, a resgatar as principais contribuies de Julian Maras e Georges Gusdorf,

    dois grandes filsofos que se debruaram sobre esta categoria.

    Segundo Julian Maras (1971, p. 49), a tradio filosfica do Ocidente

    tratou o homem ao mesmo nvel das coisas. Quando tal tratamento torna-se

    demasiado inadequado, forjam-se novas expresses na filosofia: eu, sujeito,

    conscincia, existncia, Dasein, subjetividade,pour-soietc.. Maras considera-as

    insuficientes, na medida em que, no mximo, apontam para dimenses desta

    realidade (homem).

    Para o filsofo em foco, a expresso homem passou a substituir vida

    humana em uma tentativa de diminuir a confuso terminolgica que esta encerra.

    Porm, o mesmo tambm se d com ela. Parte-se da expresso vida comottulo de uma teoria, e no em sua funo prpria, nossa vida. Todas estas

    expresses, inclusive o homem que sou, so realidades radicadas em minha vida

    esta a realidade radical (Maras, 1971, p. 50).

    O pensamento de Maras (1971, p. 13) permeado a todo o momento

    pela realidade radical que minha vida. Porm, esta radicalidade no se restringe

    vivncia pessoal eu vivo. Para o filsofo espanhol, a prpria filosofia s

    quando apreendida, quando algum dela toma posse. Portanto, ela no pode se

    restringir ao momento da altheia; preciso dar conta dela. isto que

    caracteriza sua definio de filosofia como a viso responsvel.

    Georges Gusdorf (1960, p. 257), na mesma direo, porm enfatizando a

    encarnao, ou seja, a dimenso corprea humana, ir dizer que cabe filosofia

    a tarefa de explicar a experincia humana tal como ; e indiscutvel que existe

    uma experincia do corpo como meu corpo, impossvel de ser reduzida Para

    Gusdorf (op. cit., p. 257), a tradio filosfica negou-se a admitir a existncia

    individual do sujeito, pela idia de que o sbio deve permanecer no plano do

    universal. Para ele, tudo o que privado errneo e culpado.

    O autor do Tratado de metafsica argumenta que a antropologia

    contempornea tem como princpio a condio da pessoa como origem de

    qualquer e toda a verdade. Todo o conhecimento, por impessoal que seja,

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    prende-se, direta ou indiretamente, a um eu, donde toma o essencial de seu

    sentido (Gusdorf, op. cit., p. 258). Mas, o que constitui o eu? Dir Gusdorf (1960,

    p. 258). que o seu elemento constitutivo o corpo vivido como corpo, a despeito

    da tradio intelectualista que procura esquec-lo, recusando assim a presena da

    encarnao e, por conseguinte, todas as experincias que so manifestas nesta

    dimenso sentimento, sofrimento, alegria, morte.

    Mais do que recusa, em outra passagem, Gusdorf (1960, p. 252) se

    referir a um combate que a filosofia tradicionalmente trava contra a prpria idia

    de encarnao. Para alm da diversidade aparente das argumentaes, o

    exerccio filosfico no toma nota da existncia corporal de fato, seno para a

    desacreditar de direito. A sabedoria, no sentido antigo e dogmtico do termo, ,

    antes de mais nada, luta contra a encarnao.Se a condio corprea fundamental para se entender a vida humana,

    ela no suficiente, visto que, tanto para Maras como para Gusdorf, o eu no se

    confunde com o corpo, posio, alis, j expressa anteriormente por Gabriel

    Marcel7. Ento, se por um lado, eu no sou meu corpo, por outro, o mistrio da

    encarnao aparece ligado experincia constante da vida cotidiana (Gusdorf, p.

    259). Posio semelhante tem Maras, para quem, mais correto do que dizer eu

    sou meu corpo ou mesmo eu tenho um corpo, apontar o seguinte: eu estou

    no mundo de maneira corprea, instalado projetivamente em meu corpo, atravs

    do qual acontece minha mundanidade concreta (Maras, p. 123).

    Ora, aqui remetemos conhecida construo da filosofia orteguiana, que

    ser mantida e explorada por Maras: Eu sou eu e minha circunstncia, se no

    a salvo, no me salvo eu. Isto significa que a vida no se confunde com a

    biologia, ou, tomada como sinnimo desta, a trajetria, embora sejam suas

    dimenses. Trata-se de vida biogrfica, isto , de uma realidade que inclui entre

    suas caractersticas o ser biogrfica, isto , acontecer de tal forma que se possa

    contar ou narrar (Maras, 1971, p. 50).

    7 Eu no sou meu corpo, como no sou qualquer outra coisa, seno porque, para ser qualquer outra coisa,devo primeiramente servir-me de meu corpo.Jornal metaphysique, Paris, N.R.F., 1935, p. 237.

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    Ento, o que a vida, para Julian Maras? Ela no nada em si, mas

    sim adquire sentido quando se trata de minha vida, ou melhor, eu a vivendo.

    Minha vida um gerndio. Toda realidade enquanto realidade enquanto

    encontrada por mim de qualquer modo que seja radica em minha vida, nela est

    radicada (Maras, 1971, p. 50).

    Mas para Maras (1971, p. 51) isto ainda no suficiente. preciso

    lembrar que a minha vida eu vivendo no se confunde com a vida psquica.

    a que entra o conceito de circunstncia. Minha vida acontece fora de mim;

    preferindo-se, um dentro que se faz um fora. Por isso acontecimento ou

    drama. A circunstncia cuja anlise minuciosa foi feita em outras ocasies por

    Ortega e por mim no um conjunto de coisas mas um cenrio ou mundo em

    que esse drama acontece, o eu no coisa alguma, e sim projeto ou programa, eessa circunstncia o porque minha.

    Eis aqui, para Maras (1971, p. 51), o onde acontece a vida humana: em

    sua vivncia. Encontraremos, no trecho a seguir, mais pistas que nos levaro

    categoria fundamental deste trabalho. Em forma infinitiva viver , como

    gerndio vivendo , mais rigorosamente em forma pessoal eu vivo a vida se

    descobre como acontecimento e, com maior preciso, quefazer... Porm, esta vida

    no est dada, nem sequer como possibilidade; tem que ser imaginada,

    antecipada e inventada por mim a cada momento. o que corresponde ao carter

    eveniente que antes descobrimos como condio da pessoa. Portanto, a

    realidade radical minha vida acontece na minha relao com o mundo. A

    mxima de Ortega, eu sou eu e minha circunstncia, remete invariavelmente

    eis onde queria chegar experincia vital.

    chegado o momento de precisar o significado de experincia que

    adotaremos neste trabalho. Segundo o Dicionrio de Filosofia (1982, p. 386) de

    Nicola Abbagnano, experincia possui dois significados distintos. O primeiro, de

    carter subjetivo, tem sempre carter pessoal e no h experincia onde falta a

    participao da pessoa que fala nas situaes de que se fala. neste sentido,

    prenhe de vitalidade, que o termo ser empregado neste trabalho . Este

    significado de experincia diferencia-se daquele cujo carter objetivo e

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    impessoal, que pode ser entendido como o apelo repetibilidade de certas

    situaes como meio de controlar as solues que elas permitem.

    Gusdorf (1960, p. 266) reforar o papel essencial que a experincia

    (sempre no sentido colocado no pargrafo acima) joga na vida humana, onde o eu

    e a circunstncia so indissociveis. As primeiras categorias da paisagem

    humana so necessariamente antropolgicas: perto, longe, agora, mais tarde, etc.;

    e os mais intelectualizados conceitos dos filsofos nada mais faro que elucidar

    de maneira abstrata a experincia vivida das necessidades e dos desejos, na qual

    nosso corpo toma conscincia de si mesmo, definindo as mais elementares

    dimenses de seu estabelecimento no ambiente que o cerca.

    Assim, a experincia sempre integral, ou seja, afeta-me em todas as

    minhas dimenses, na medida em que o eu corporal no se restringe ao biolgico,e ao mesmo tempo se constitui como a minha realidade mais prxima. A despeito

    das aparncias, meu corpo no se reduz montagem orgnica descrita pelos

    tratados da especialidade, nem tambm configurao da imagem no espelho.

    Toda reduo objetiva desnatura a experincia vivida da realidade humana,

    correspondente a uma apreenso de valor, na qual se afirma uma inteno da

    personalidade. Cada pormenor da vida corporal, cada sinal ou sintoma

    imediatamente percebido na perspectiva vital da totalidade. A moa e a mulher

    pedem ao espelho as promessas de encanto; nele espreitaro os indcios de

    declnio, e a primeira ruga prenhe de sentido. Uma dor fugidia, uma simples

    fadiga podem ser, para cada homem, o prenncio de um mal que por em xeque a

    vida inteira (Gusdorf, op. cit., p. 294).

    Deste modo, torna-se equivocado reproduzir a idia de uma ciso entre

    mundo sensvel e mundo inteligvel, ou seja, no existe o mundo em si, e

    tampouco o mundo constitudo por coisas. O mundo sempre meu mundo, o

    mundo de algum... Eu sou aquele que unifica e mundifica ao mesmo tempo os

    dois mundos (Maras, 1971, p. 22).

    Maras (op. cit., p. 19-20) argumenta, com a ousadia prpria de um

    grande filsofo, que sua construo terica faz com que esta ciso, que perpassou

    a histria inteira da filosofia se desvanea. Isto no significa admitir a

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    inexistncia de uma distino entre dois mundos, mas sim que ela agora passa a

    ser fundada em outra base, qual seja, o mundo que (presente), e o que no

    (mas ser). Ele remete a um fato inexorvel: a vida se faz para frente, inclina-se

    para o futuro. Eu sou futurio: presente, mas orientado ao futuro, voltado a ele,

    projetado para ele.

    Georges Gusdorf (1960, p. 270) atribuir este problema filosofia

    existencial. Segundo o autor em foco, o existencialismo carece da noo de corpo

    prprio8, que longe de ser um ponto de partida da experincia humana,

    representa antes o termo de lenta e operosa elaborao do ser pessoal. De fato,

    temos aqui uma apurao j quase metafsica, uma sntese constitutiva da

    individualidade, e que cada homem precisa defender a todo instante contra as

    ameaas de desintegrao.A sua crtica ao existencialismo vai mais longe, quando argumenta haver a

    necessidade de uma antropologia que v alm de ser uma fenomenologia da

    conscincia humana, mas que se esforce em ligar esta conscincia a suas

    condies objetivas (Gusdorf, op. cit., p. 274). Trata-se, segundo ele, de uma

    reduo da experincia do corpo prprio, manifesta, por exemplo, como

    conscincia do corpo, ou ento o corpo como conscincia. O filsofo que separa

    o corpo da alma, a cincia da conscincia, divide para reinar: para temer que,

    procedendo assim, no perceba nada de coisa nenhuma (Gusdorf, op. cit., p.

    274).

    Em suma, Gusdorf (op. cit., p. 283) parece fazer a crtica de que o

    existencialismo no superou o idealismo, na medida em que este procura

    reconciliar o discurso cientfico e fenomenolgico sob o discurso da razo, o que,

    segundo o autor, caracteriza uma oposio superada. Persiste aqui a velha

    ambio do racionalismo, de encontrar a pedra filosofal: pretende-se decifrar o

    determinismo biolgico do corpo sobre o esprito para o inverter, submetendo-o a

    um determinismo asctico do esprito sobre o corpo.

    8 Para Gusdorf, o corpo prprio se define como a espontaneidade originria subjacente a todoempreendimento humano de inteligibilidade pelo conhecimento ou pela ao (p. 266)

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    Andr Dartigues, em seu livro O que a fenomenologia (1992, p. 69)

    corrobora a viso expressa acima, ao argumentar que falsa uma dicotomia entre

    o particular e o universal, at hoje forte na filosofia. Para o autor em foco, trata-se

    de compreender a inseparabilidade entre o eu e a circunstncia, embora prefira se

    referir mesma idia em outros termos, qual seja, a relao do homem com a

    Histria. O sentido de um fenmeno no deve ser mais concebido,

    consequentemente, como um sentido eterno, independente das experincias

    concretas do sujeito. Ele se constitui, ao contrrio, como aquilo que faz a unidade

    das experincias reais em sua diversidade infinita, como o horizonte de

    universalidade do qual o sujeito se aproxima atravs de todas as suas

    experincias. No se trata para ele de arrancar-se sua prpria histria para

    considerar a Histria do ponto de vista da eternidade, mas pela compreenso, deampliar do interior sua prpria histria at a Histria em sua totalidade.

    Todas as colocaes acima reforam a necessidade de a filosofia tratar o

    tema da pessoa em sua relao com sua circunstncia. Segundo Maras (1971, p.

    33), esta uma nova realidade na filosofia, que configura a transformao talvez

    mais radical de toda essa [sua] histria. J Octvio Ianni fala de uma

    redescoberta do indivduo, reflexo das rupturas que acompanham o declnio da

    sociedade nacional e a emergncia da global. O autor em foco afirma haver uma

    preocupao contempornea das cincias sociais com algumas dimenses

    fundamentais da vida social, como a existncia, o eu, o indivduo, o cotidiano, etc.

    (1992, p. 115).

    De qualquer modo, foi preciso que a filosofia deixasse de perguntar Que

    o homem, como fez por dois mil e quinhentos anos, e passasse a perguntar

    Quem , tal como fazemos quando algum bate nossa porta. A resposta

    natural seria eu, acompanhado de uma voz de uma voz conhecida -, isto , de

    uma circunstncia (Maras, 1971, p. 35).

    Aqui Maras (1971, p. 37) vincula inexoravelmente o eu e/ou o tu a um

    corpo. Alm disso, este algum corporal futurio, portanto o seu carter

    projetivo o constitui. Ou seja, eu no sou uma realidade dada, pronta; h uma

    fragilidade, uma incerteza correspondente ao prprio carter eveniente da vida.

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    Para o homem, ser preparar-se a ser, dispor-se a ser, e por isso consiste em

    disposio e disponibilidade.

    Gusdorf (1960, p. 302) faz esta reflexo a partir da idia do inacabamento

    da existncia humana. Em outras palavras, a pessoa no nada em si, mas est

    sempre em busca de algo que lhe escapa. O ser do homem est em movimento,

    em movimento incessante no interior da situao originria em que ele dado a si

    mesmo, perseguindo sua sombra que sempre se lhe furta.

    Eis o carter experiencial da vida humana. Maras sintetiza o problema

    da vida pessoal em duas perguntas:

    1) Quem sou eu?

    2) Que vai ser de mim?

    A interconexo entre as duas representa a dinmica da minha vida. Omaior grau de conscincia sobre a primeira questo e a capacidade de viv-la

    autenticamente possibilita uma abertura tambm ampliada na segunda. Quanto

    mais sei quem sou, quanto mais possuo minha realidade programtica e projetiva,

    futuria, irreal e eveniente, quanto mais autenticamente sou eu no modo da vida

    pessoal, menos sei que vai ser de mim, mais incerta minha realidade futura,

    mais aberta possibilidade, inveno, ao acaso e inovao (Maras, 1971, p.

    38).

    Percebemos aqui a dialtica do eu e da circunstncia. Se fao um

    esforo para que minha vida tenha uma trajetria fechada por exemplo, no

    dando espao para o espontneo, o inesperado - menos vivo, pois menos aberto

    estou para e aqui encontramos novamente nossa categoria central a

    experincia vital. Esta se distingue da mera percepo de coisas, bem como da

    conscincia. Para Maras, a primeira capacidade se aplica bem aos animais, na

    medida em que s opera no mbito do real e presente, mas no ao homem, visto

    que este, como vimos h pouco, futurio; portanto, opera no presente, mas

    antecipando o que ainda no , mas ser (Maras, op. cit., p. 41-2).

    Poder-se-ia argumentar, tal qual os modernos, que a conscincia a que

    permite obter a realidade das coisas. Porm, esta j no o fenmeno primrio, e

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    sim uma reflexo, em que me encontro com meu ato anterior, e no eu com a

    coisa, eu com a realidade (Maras, op. cit., p. 42).

    Nem percepo (realismo), nem conscincia (idealismo), mas sim a

    experincia o que caracteriza a vida enquanto projeto, enquanto futuria. Esta

    uma operao que se faz para a frente, e deste modo, sempre nos encontramos

    no meio do caminho. Na continuao, Maras (op. cit., p. 44) argumenta que se

    no nos possumos nunca de um modo total, mas sim estamos vindo da realidade

    do futuro que se anuncia na realidade de nosso presente, ento o presente e

    mesmo o passado no so dados. O que depende do que ser; isto , nem

    sequer o passado se pode ter por dado e feito.

    O autor em foco argumenta que h basicamente dois tipos de experincia:

    da vida e de coisas. Penso que esta distino remete ao j expresso duplosignificado deste termo, ou seja, o seu carter subjetivo e objetivo. Maras (op. cit.,

    p. 46) afirma que uma interfere na apreenso da outra, na medida em que a vida

    futuria, e, portanto ocorre sempre para frente. Por isso, a excessiva experincia

    de coisas costuma destruir ou no deixar nascer a experincia da vida.

    A experincia da vida no se confunde com a minha vida. Para se obter a

    primeira, preciso buscar a solido, retirando-se a ela a partir da convivncia

    (Maras, op. cit, p. 45). Na minha interpretao, o autor se refere a um estado que

    se poderia denominar de observao interna, possvel quando refletimos sobre a

    vida. De qualquer modo, Maras (op. cit., p. 45) argumenta o seguinte: A

    experincia da vida no experincia de minha vida. A rigor, minha vida a que

    tem experincia da vida.

    Se a minha vida e a vida de cada um a realidade na qual todas as

    demais se radicam, ento a vida humana pode ser considerada uma teoria

    intrnseca na medida em que necessria para a realidade de minha vida

    (Maras, op. cit., p. 58). Maras (op. cit., p. 58) prope uma frmula que sintetizaria a

    dinmica da vida humana.

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    Eu tenho que fazer minha vida com as coisas. O que quer dizer: a) a vida

    no est feita; b) tenho que faz-la; c) no posso faz-la s, mas com algo

    que me transcende: as coisas; d) antes de fazer algo tenho que possuir j de

    certo modo essa realidade (apriorismo da vida humana); e) esta projeto ou

    futurio; f) deve-se imagin-la previamente ou previv-la.

    Vimos at aqui, de maneira sinttica, os primeiros captulos da

    Antropologia Metafsica (1971), de Julian Maras. O eixo central da

    argumentao do autor girou em torno da idia de realidade radical, que a minha

    vida e a vida de cada um, bem como da dinmica do viver, que projeto, futurio

    e acontece na circunstncia que minha, bem como na de cada pessoa.

    Se eu sou futurio me encontro enquanto vivo o que me caracteriza

    enquanto pessoa a minha prpria realidade em construo. Esta se d emminha circunstncia, composta tambm pelas outras pessoas que permitem que

    eu me reconhea e me projete. Assim, a vida pessoal essencialmente

    convivncia (Maras, op. cit., p. 37).

    Eis aqui outra dimenso que compe a experincia humana. Pois, se a

    encarnao representa ao mesmo tempo novo ponto de partida e de chegada

    filosofia, tanto como constituio da pessoa (que, como vimos, um dado recente

    na filosofia) e tambm como um novo estilo de filosofar, temos quase que comouma conseqncia imediata o tema da convivncia ter adquirido, na filosofia de

    Gusdorf, papel de grande importncia. O encontro com outrem representa uma

    instncia essencial da presena ao mundo, visto a realidade humana ser terreno

    de percurso comunitrio, onde meu corpo esbarra noutros corpos, e onde meu

    pensamento por toda a parte vai ao encontro de significaes sedimentadas

    (Gusdorf, 1960, p. 302).

    Gusdorf (1960, p. 305) argumenta que o tema do outro na filosofia

    tradicional foi posto em segundo plano, embora diga que, para no se cometer

    injustia, preciso lembrar que j na antiguidade grega, a tragdia de Sfocles,

    squilo, e de Eurpides, ilumina com luz cada vez mais penetrante a

    interdependncia dos destinos. O mesmo se verificou no teatro clssico da

    Espanha, Frana e da Inglaterra, passando pela literatura potica ou romanesca,

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    [que] pe igualmente em cena os sentimentos humanos, os trabalhos e os dias de

    personalidades que se afrontam. Porm, como se v, trata-se de uma produo

    literria, que mesmo remontando Grcia antiga, no se constitui como filosofia.

    A relao com o outro o conviver acontece a partir da transcendncia

    da dimenso corporal que caminha para uma totalidade viva e expressiva, na

    qual no existe uma separao entre a expresso e seu sentido, na medida em

    que manifestao de uma experincia original e no construo idealizada. Para

    tanto, no pode haver uma identificao com outrem, mas uma distncia e uma

    distino entre mim e o outro que permita o que Max Scheler denomina de

    simpatia, ponto de interseco como o pensamento de Merleau-Ponty. Ora, as

    anlises de Merleau-Ponty encontram-se com as de Scheler, pois em ambas meu

    acesso a outrem aparece como um dado primeiro e no como uma reconstruode sua vivncia na esfera fechada de minha representao. Mas, por outro lado,

    este acesso s compreenso se no for assimilao, logo, se ele, longe de fazer

    desaparecer minha distncia com relao a outrem, a revelar como essencial.

    De qualquer modo, o surgimento do outro na filosofia vem responder a

    uma necessidade do pensamento contemporneo, principalmente pelo que se

    convencionou denominar de c