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Fernando Pessoa e Algumas Conversações com Goethe Rodrigo Xavier* RIBEIRO, Nuno; SOUZA, Cláudia (2017). Fernando Pessoa & Goethe. Edição, Notas e Estudo Introdutório de Nuno Ribeiro & Cláudia Souza. Lisboa: Apenas Livros, 438 pp. [ISBN 978-989-61857-6-3]. O livro Fernando Pessoa e Goethe organizado por Nuno Ribeiro e Cláudia Souza constitui-se como coletânea de textos do espólio de Fernando Pessoa em que Johann Wolfgang von Goethe é de alguma maneira citado. Os textos são atribuídos (ou atribuíveis) ao ortônimo, aos diversos heterônimos, ao semi-heterônimo Bernardo Soares e a outras personalidades da volumosa galeria pessoana, já catalogada em mais de 130 autores fictícios. 1 O volume é subdividido em um «Estudo Introdutório» e três capítulos: «I – Escritos sobre Goethe»; «II – Sublinhados e Marginália em Livros de e sobre Goethe»; «III – Anexos». Trata-se de um trabalho de fôlego dos pesquisadores no que diz respeito à seleção. Trata-se de 124 escritos sobre Goethe, mais de 50 passagens que incluem sublinhados e marginália e 21 documentos em que aparecem planos e listas referentes ao Fausto de Pessoa. Por meio de mais de 100 páginas iniciais, os editores introduzem a apresentação dos documentos selecionados e analisados, afirmando a importância de Goethe como influência na poesia de Pessoa, e sustentando a inferência por meio de três argumentos fundamentais: a presença de edições das obras de J.W. von Goethe na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa (BpFP) 2 ; a influência de Goethe na constituição do Fausto português, sustentada pela presença de listas e alguns planos; a considerável gama de papéis encontrados no espólio cujo tema é Goethe, quer em forma de homenagem, de apreciação literária, de inspiração, e de discussões teórico-filosóficas que versam sobre os temas do gênio, da loucura, da poesia, e do drama. Por conta da natureza heterogênea dos papéis selecionados por Ribeiro e Souza, outras personalidades literárias coabitam os textos sobre Goethe, geralmente sendo referidas em comparações com o autor alemão. É o caso de Shakespeare (o autor que * Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Departamento de Letras. 1 PESSOA, Fernando (2016). Eu Sou uma Antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari, Lisboa: Tinta-da-china (col. «Pessoa») [1 a ed., 2013]. 2 PIZARRO, Jerónimo; FERRARI, Patricio; CARDIELLO, Antonio (2010). A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. Alfragide: D. Quixote.

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Fernando Pessoa e Algumas Conversações com Goethe

Rodrigo Xavier*

RIBEIRO, Nuno; SOUZA, Cláudia (2017). Fernando Pessoa & Goethe. Edição, Notas e Estudo Introdutório de Nuno Ribeiro & Cláudia Souza. Lisboa: Apenas Livros, 438 pp. [ISBN 978-989-61857-6-3].

O livro Fernando Pessoa e Goethe organizado por Nuno Ribeiro e Cláudia Souza constitui-se como coletânea de textos do espólio de Fernando Pessoa em que Johann Wolfgang von Goethe é de alguma maneira citado. Os textos são atribuídos (ou atribuíveis) ao ortônimo, aos diversos heterônimos, ao semi-heterônimo Bernardo Soares e a outras personalidades da volumosa galeria pessoana, já catalogada em mais de 130 autores fictícios.1 O volume é subdividido em um «Estudo Introdutório» e três capítulos: «I – Escritos sobre Goethe»; «II – Sublinhados e Marginália em Livros de e sobre Goethe»; «III – Anexos».

Trata-se de um trabalho de fôlego dos pesquisadores no que diz respeito à seleção. Trata-se de 124 escritos sobre Goethe, mais de 50 passagens que incluem sublinhados e marginália e 21 documentos em que aparecem planos e listas referentes ao Fausto de Pessoa. Por meio de mais de 100 páginas iniciais, os editores introduzem a apresentação dos documentos selecionados e analisados, afirmando a importância de Goethe como influência na poesia de Pessoa, e sustentando a inferência por meio de três argumentos fundamentais: a presença de edições das obras de J.W. von Goethe na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa (BpFP)2; a influência de Goethe na constituição do Fausto português, sustentada pela presença de listas e alguns planos; a considerável gama de papéis encontrados no espólio cujo tema é Goethe, quer em forma de homenagem, de apreciação literária, de inspiração, e de discussões teórico-filosóficas que versam sobre os temas do gênio, da loucura, da poesia, e do drama.

Por conta da natureza heterogênea dos papéis selecionados por Ribeiro e Souza, outras personalidades literárias coabitam os textos sobre Goethe, geralmente sendo referidas em comparações com o autor alemão. É o caso de Shakespeare (o autor que

* Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Departamento de Letras. 1 PESSOA, Fernando (2016). Eu Sou uma Antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari, Lisboa: Tinta-da-china (col. «Pessoa») [1a ed., 2013]. 2 PIZARRO, Jerónimo; FERRARI, Patricio; CARDIELLO, Antonio (2010). A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. Alfragide: D. Quixote.

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mais figura nos documentos além de Goethe), Victor Hugo, Max Nordau, John Milton, Guerra Junqueiro, Homero, Virgílio, entre outros.

Geralmente, a organização de edições críticas das obras de Fernando Pessoa segue dois tipos de critério: a ordenação cronológica pela datação dos documentos ou a ordenação temática, levando-se em consideração a materialidade do suporte, assim como a caligrafia, o tema exposto, o estilo, referências a outros autores. Embora os editores tenham optado pela ordenação temática, no interior de cada uma das seções fica difícil perceber o critério pelo qual os textos foram dispostos, o que pode de certa maneira dificultar a leitura dos fragmentos. O leitor poderá perguntar o motivo de originais, comumente presentes nas edições críticas, embora alguns poucos documentos integrem a seção de anexos dos volumes. Por outro lado, os editores oferecem ao leitor levantamento bibliográfico sobre as relações Pessoa-Goethe, ainda que não tenham separado as bibliografias em ativa e passiva.

O texto que compõe o «Estudo Introdutório» oferece ao leitor informações gerais sobre a presença das edições de obras de e sobre Goethe na BpFP, sugerindo que a influência do alemão teria sido definitiva para a formação literária de Pessoa. O interesse do poeta em aprender alemão é mencionado, por exemplo, no «Caderno de Allemão ou de língua parecida» e em «outros documentos que indicam o interesse do autor em aprofundar seus conhecimentos de alemão» (RIBEIRO & SOUZA, 2017: 14). Os editores associam o entendimento de Pessoa sobre génio à figura de Goethe como poeta romântico, estabelecendo um diálogo entre Goethe e outros autores referidos nos muitos escritos do espólio pessoano. Indicam, ainda, que Pessoa poderia conhecer outras obras de Goethe para além daquelas presentes na BpFP, com base nos textos em que o poeta português «utiliza como contraponto a crítica que Goethe realizou da tragédia Hamlet» (idem: 24). O estudo introdutório também infere juízos de valor, quando ilustrativamente aponta Goethe como «exemplo de excelência estética» (idem: 31) ou, ainda, quando conclui com certa veemência que o texto da cota BNP/E3, 144-79ar mostra mais uma vez o impacto que a genialidade de Goethe exerceu sobre o «psiquismo pessoano» (idem: 51).

O estudo ainda se debruça em alguns pontos de força da influência de Goethe na poesia de Pessoa, a saber: as ideias relativas ao génio e à loucura; a heterogeneidade da produção literária do poeta alemão; e como não poderia deixar de ser, a influência definitiva de Goethe na constituição dos projetos do Fausto do poeta português

Dentre os documentos, ganham destaque: o poema cujo título é «Goethe» (BNP/E3, 29-57r), parte integrante do Fausto de Pessoa; o texto «A imoralidade das biografias“ (BNP/E3, 19-15r e 15ar), cuja a transcrição já conta com três versões até o momento; o texto atribuído a Ricardo Reis, cujo título «Milton maior que Shakespeare» expõe exatamente o referente de seu conteúdo, colocando lado a lado as obras desses dois frente às obras de Goethe e buscando apontar qual seria o maior escritor; e o poema «Goethe», que está presente nas edições Fausto de Fernando Pessoa publicadas até a presente data.

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Com relação a publicações anteriores sobre Pessoa-Goethe, carece a menção ao texto de Maria Manuela Gouveia Delille, «O Fausto de Goethe na Literatura Portuguesa do Século XIX»3; a dois textos do germanista português Ludwig Scheidl, «Fausto na Literatura Portuguesa e Alemã»4 e «O Tema do Fausto em Portugal: texto e contexto de ‘Fausto: tragédia subjetiva’ de Fernando Pessoa»5; e ao livro de Markus Lasch: Pessoas Faust Fragment einer subjektiven Tragödie6. Trata-se de trabalhos que ensaiaram em certa medida as relações Pessoa-Goethe, ainda que sem o aparato crítico referente aos documentos do espólio do autor. Atente-se também para os estudos de Cleonice Berardinelli e Leda Maria Hüne7 sobre as relações de Fernando Pessoa e a filosofia de Martin Heidegger, e de Jerónimo Pizarro, este intitulado «A Representação da Alemanha na Obra de Fernando Pessoa»8, que reflete sobre a presença da Alemanha como tema na obra de Fernando Pessoa, apontando relações da obra de Goethe com Pessoa no contexto dos escritos deste sobre política.

De maneira geral, o volume contribui para os estudos das relações entre Fernando Pessoa e a literatura alemã, ainda potencialmente pouco explorada pelos «buscadores» da arca. Entre esses estudos, destacam-se: «À Sombra de Goethe, à Luz da Revolução Científica. As leituras pessoanas de Goethe»9, de Carla Gago, referido textualmente na página n.° 41 do estudo introdutório de Ribeiro e Souza; e «Fernando Pessoa, Leitor de Schiller: uma aproximação à língua alemã»10, de Cláudia Fischer, que não é citado textualmente mas que figura na bibliografia do volume aqui resenhado – sendo relevante para o estabelecimento das relações entre Pessoa e a língua alemã, tal como sugere a própria autora: «Quanto desta língua sabia efectivamente Fernando Pessoa para poder pronunciar-se sobre a qualidade literária da sua obra em particular e de outros textos poéticos alemães sobre os quais emite juízos de valor ao longo da sua vida?» (FISCHER, 2010: 2). Quer do ponto de vista da perspectiva do autor em relação à literatura e à cultura alemã, representadas aqui por um dos seus grandes expoentes,

3 DELILLE, Maria Manuela Gouveia (1984). «O Fausto de Goethe na Literatura Portuguesa do Século XIX». Fausto na Literatura Europeia. Org. João Barrento. Lisboa: apáginastantas. 4 SCHEIDL, Ludwig (1987). Fausto na Literatura Portuguesa e Alemã. Coimbra: INIC. 5 SCHEIDL, Ludwig (2004). «O Tema do Fausto em Portugal: texto e contexto de ‘Fausto: tragédia subjetiva’ de Fernando Pessoa». Estudos de Literatura Alemã e Portuguesa. Coimbra: IUC. 6 LASCH, Markus (2006). Pessoas Faust Fragment einer subjektiven Tragödie. Berlin: Rombach Verlag. 7 BERARDINELLI, Cleonice; HÜNE, Leda Maria [org.] (1994). Fernando Pessoa e Martin Heidegger: o poetar pensante. Rio de Janeiro: Uapê. 8 PIZARRO, Jerónimo (2006). «A Representação da Alemanha na Obra de Fernando Pessoa». Românica. Revista de Literatura, n.o 15. Lisboa: Edições Colibri. 9 GAGO, Carla (2013). «À Sombra de Goethe, à Luz da Revolução Científica. As leituras pessoanas de Goethe». Nietzsche, Pessoa e Freud – Colóquio Internacional. Coord. Paulo Borges, Nuno Ribeiro e Cláudia Souza. Lisboa: CFUL. 10 FISCHER, Cláudia (2010). «Fernando Pessoa, Leitor de Schiller: uma aproximação à língua alemã». Revista de Estudos Alemães, n.° 1. Lisboa: Universidade de Lisboa.

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Goethe, quer pela relação estabelecida com os pressupostos filosóficos, culturais e estéticos da obra do autor alemão na construção da poética pessoana, sobremaneira no que diz respeito aos fragmentos do seu Fausto. A nova edição é assinada por Carlos Pittella, com a colaboração de Filipa de Freitas11.

Para além da ausência de referência mais cuidadosa à bibliografia crítica prévia sobre as relações mais gerais entre Fernando Pessoa e a Alemanha, e aos trabalhos sobre os diálogos entre os Faustos de Pessoa e Goethe, a edição apresenta lacunas no que diz respeito às transcrições.

Um desses problemas pode ser detectado no documento «A imoralidade das biografias”, no qual, como já mencionado, não são mencionadas as outras transcrições existentes, a saber, das Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias12 e a do Jornal de Letras, Artes e Ideias13; os documentos não trazem detalhes acerca do aparato genético; a organização dos textos poderia vir acompanhada de sua apreciação crítica. Tê-la apresentado no estudo introdutório dificulta a leitura dos documentos em face de sua apresentação. Seria talvez mais didático para este trabalho trazer os comentários dos organizadores sobre os documentos junto aos textos transcritos.

O projeto editorial do livro também deixa a desejar no trabalho gráfico, ainda que isso não prejudique a proposta do trabalho. Podemos ilustrar essa afirmação pela falta do termo «sumário» na seção que se presta a esse propósito; ou a falta de um índice onomástico.

No mais, deve-se reconhecer a importância da edição para os pesquisadores da obra de Fernando Pessoa, especialmente para a área dos estudos culturais e comparatistas. Após a leitura dos documentos, chega-se ao veredicto (em consonância com a apreciação dos respectivos editores) que certamente Goethe foi, juntamente com Shakespeare, escritor determinante na formação de um background literário para Fernando Pessoa, contribuindo para a concepção e estruturação de uma poética labiríntica, ainda com aspectos misteriosos a desvelar por uma crítica, mesmo aquela acostumada com o caráter multidimensional da escrita do poeta.

11 PESSOA, Fernando (2018). Fausto. Edição de Carlos Pittella; com a colaboração de Filipa de Freitas. Lisboa: Tinta-da-china (col. «Pessoa»). 12 PESSOA, Fernando (1967). Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Edição e prefácio de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Edições Ática. 13 PESSOA, Fernando (2007). «A Imoralidade das Biografias». Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa: Publicações Projornal.