Ferraz Junior, Tercio Sampaio - Tempo e Direito - Revista Usp

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  • 7/29/2019 Ferraz Junior, Tercio Sampaio - Tempo e Direito - Revista Usp

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    Direito: tempoque passa,tempo que fica

    TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

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    DO TEMPO NA

    OPERACIONALIZAO DODIREITO

    rata-se, como usualmente se percebe, de um

    dado fundamental na percepo do fenmeno

    jurdico pelo saber dogmtico.

    Por exemplo, o tempo fator que afeta a

    vigncia das normas. Normas vlidas valem

    no tempo. O tempo de validade de uma norma

    a sua vigncia. Trata-se do tempo em que

    elas obrigam. Umas vigem indefinidamen-

    te, a partir de certo momento. Outras tm

    prazo. Fala-se ento em normas de validade

    permanente e provisria ou temporria.

    Assim, se a lei que estabelece a norma no

    lhe atribui prazo, em princpio sua validade

    permanente. A permanncia diz respeito ao

    tempo decessaoda vigncia e no ao tempo

    de incio. Isto , uma norma permanente

    mesmo que o prazo inicial seja posposto

    promulgao. Esse perodo entre o incio da

    vigncia e a promulgao e publicao recebe

    o nome tcnico de vacatio legis: j h norma

    vlida, mas seu tempo de vigncia ainda no

    comeou a correr. H normas, porm, para as

    quais um prazo de cessao estabelecido

    TERCIO SAMPAIO

    FERRAZ JUNIOR

    professor titular da

    Faculdade de Direitoda USP.

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    previamente. , por exemplo, o caso da

    norma que vedasse a execuo do despejo,

    em caso de locao, por um perodo de um

    ano a contar da data da publicao. Trata-se

    de norma de temporalidade provisria.

    Essa distino est referida a problemas

    prticos relevantes. Por exemplo: dada uma

    norma de validade temporria, cessada sua

    vigncia, como ficam os atos praticados

    durante aquele perodo? Desaparecem com

    a cessao? A norma que vem a seguir mo-

    difica-lhes o estatuto? A questo tem a ver

    com outra distino que toma o tempo como

    critrio: normas irretroativas e retroativas.

    Em princpio, as normas so irretroativas.

    O princpio ideolgico e faz parte da

    teoria jurdica, em alguns casos, como obrasileiro, da teoria constitucional. Todavia,

    h excees. Assim, uma norma que, em

    princpio, s vale para condutas futuras,

    ocorridas aps o incio de sua vigncia, pode

    atuar tambm retroativamente. Embora sua

    vigncia seja prospectiva (de um momento

    inicial promulgao/publicao para a

    frente), ela pode produzir efeitos para trs:

    tem eficcia retroativa. A doutrina aceita

    essa possibilidade quando a retroatividadebeneficia o agente cujo ato, pela norma an-

    tiga, seria punido. chamada retroatividade

    in bonam partem, usualmente conhecida

    no direito penal. H limites, porm. As

    prprias constituies garantem, por vezes,

    o ato jurdico perfeito, a coisa julgada e o

    direito adquirido. Trata-se de situaes que

    obstam a retroatividade, mesmo quando a

    norma , ainda que parcialmente in bonam

    partem , retroagvel. As normas penais

    so, em princpio, irretroativas (salvo a

    mencionada exceo). Assim tambm as

    que estatuem tributos. Entretanto, as normas

    que constam de leis interpretativas so, em

    princpio, retroativas, pois fixam, desde o

    presente, o sentido de outras normas esta-

    tudas no passado, obviamente respeitados

    o ato jurdico perfeito, a coisa julgada e o

    direito adquirido.

    Ademais, a questo do tempo revela mais

    uma distino: normas de incidncia ime-diata e de incidncia mediata. A distino

    temporal. Essa classificao relaciona-se

    com o incio da vigncia e com a vacatio

    legis. Assim, por exemplo, dizemos que as

    normas de direito processual tm incidncia

    imediata: passam, quando promulgadas e

    publicadas, a reger todos os feitos judiciais

    ainda em curso. Outras normas, porm,

    tm incidncia mediata, requerendo, por

    exemplo, o preenchimento de certos re-

    quisitos. Veja-se o seguinte enunciado:

    assegurado o reajustamento de benefcios

    (previdencirios) para assegurar-lhes, em

    carter permanente, o valor real, conforme

    critrios definidos em lei. Em jogo est

    o fator tempo: o valor real assegurado

    de modopermanente. Mas desde quando?

    Desde promulgada e publicada a norma?

    Ou depende de lei posterior que lhe defina

    os critrios? Pode-se entender que o tempode validade imediato: ela vigente. Mas

    sua eficcia ficaria suspensa no tempo at

    o advento da referida lei.

    O DIREITO COMO JOGO SEM FIM

    E O TEMPO

    Pode-se comparar o direito, tendo em

    vista a questo do tempo, a uma espcie

    de jogo sem fim. Um exemplo de jogo

    sem fim aquele em que os jogadores

    combinam inverter o sentido de tudo o

    que dizem. Assim, se algum disser quero

    gua, dever ser entendido no quero

    gua e vice-versa. Tal jogo chama-se sem

    fim, porque nele a mensagem no quero

    mais jogar no pode ser coerentemente

    proposta, pois significaria querer continuar

    jogando. No h, pois, como interromp-

    lo, salvo se recorrermos a fatores externos

    ao jogo. Por exemplo: combinar que o jogo

    ocorre em portugus e, para interromp-

    lo, deve-se enviar a mensagem em ingls

    (hiptese da lngua externa ou metalngua).

    Ou, ainda, combina-se o tempo de jogo:

    atingido o prazo, ele termina (hiptese do

    fator tempo como um dado externo que

    limita o jogo). Por fim, pode-se instituir umrbitro, algum que no joga e que dir se

    o jogo terminou (hiptese de um mediador

    externo). Ora, o direito assemelha-se a um

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    jogo desse gnero, com a agravante de que

    no s no tem fim, mas tambm no tem

    comeo: por presuno dogmtica, estamos

    desde que nascemos (e at antes: direitos

    do nascituro) dentro do direito e todas as

    nossas condutas so jurdicas, conforme

    o princpio o que no est proibido est

    permitido, havendo quem entenda at

    mesmo o juridicamente indiferente como

    indiferena jurdica. Assim, a questo

    saber se possvel avaliar o jogo jurdico

    (jogo sem fim sui generis), ou seja, dizer

    se ele est sendo corretamente jogado (se

    justo ou injusto), como se o tempo fosse

    um fator externo, quando, na verdade, s

    possvel dizer de dentro do direito quando

    cessa de haver direito.Como se trata de jogo sem fim, deveria

    ser obviamente impossvel determinar sua

    cessao de um ngulo interno. Conse-

    quentemente, podemos sempre dizer se os

    comportamentos jurdicos so lcitos ou

    ilcitos conforme um princpio interno de

    vigncia legal, mas no podemos estimar

    a prpria vigncia como um fator externo.

    Salvo, claro, se a admitirmos como um

    padro externo. Tomando como regra oque se disse sobre o jogo sem fim, pode-

    se imaginar, primeiro, a hiptese de uma

    metalngua, um pacto inicial que determina

    aquelas normas que definiro a legitimida-

    de do jogo no tempo: a constituio como

    norma das normas e princpio da sua tem-

    poralidade. Mas, no caso, a prpria cons-

    tituio marca o tempo normativo de todas

    as normas infraconstitucionais, existentes

    antes e depois dela: a constituio define

    o tempo jurdico e no ao contrrio. Don-

    de, o tempo fator interno e no externo.

    Um modo de contornar o problema seria,

    segundo, conceptualizar o prprio tempo,

    isto , conceber a histria como um processo

    dentro do qual os sistemas jurdicos apare-

    cem, superam-se, desaparecem: um direito

    superado historicamente no tem mais razo

    de ser e torna-se ilegtimo. O tempo histrico

    comandaria, de fora, o tempo normativo.

    A dogmtica jurdica, no entanto, desde osculo XIX entende que o direito no est

    na histria, mas histrico. Se histrico,

    o tempo histrico fator imanente, no

    servindo como critrio para determinar o

    fim do jogo sem fim. Para evitar a dificul-

    dade, admite-se, em terceiro lugar, a hip-

    tese se existir um superdireito, atemporal,

    por definio, que permite determinar, de

    fora, a cessao dos sistemas jurdicos: a

    hiptese de um direito universal, exterior

    e superior aos direitos positivos, que lhes

    confere o carter legtimo: uma espcie de

    direito supratemporal. o caso do chamado

    direito natural. Por exemplo, a vida surge

    e perece, mas o direito vida expresso

    em uma norma que nem surge nem perece.

    A presuno dogmtica de que os direitos

    fundamentais no so institudos, mas re-

    conhecidospela constituio lida com essa

    hiptese. A hiptese da atemporalidade detais direitos, de um lado, bastante dis-

    cutvel, de outro, coloca o tema do tempo

    de novo dentro do prprio direito: direitos

    temporais e atemporais, como um fator

    jurdico intrnseco.

    Nas trs hipteses, reconhecemos, em

    suma, algumas possibilidades de fundamen-

    tar o direito, assim como de decidir sobre sua

    legitimidade, uma espcie de ltima palavra

    sobre o jogo jurdico como jogo sem fim.Seriam, por assim dizer, critrios externos

    que nos permitem dizer quando o jogo sem

    fim do direito comea e acaba: conferem-lhe

    um tempo. Sucede, porm, que, no caso dos

    sistemas jurdicos, nenhuma delas vivel,

    posto que apenas aparentemente so padres

    externos. E se no so externos, o jogo sem

    fim no termina. Assim, uma constituio

    no estfora do sistema, mas a primeira

    norma do sistema. Por isso, sistematiza-se,

    interpreta-se e aplica-se conforme as regras

    do prprio sistema. A segunda hiptese

    supe algo de fato impossvel: algum que,

    vivendo temporalmente dentro do sistema

    e de sua contingncia ftica, coloque-se de

    fora, como um observador neutro, capaz

    de uma viso histrica universal. Afinal, o

    direito no est na histria, mas histrico.

    A terceira sada tambm no vivel, pois

    um superdireito tambm um direito e acaba

    por submeter-se s regras de conhecimentoe interpretao do prprio direito: o direito

    natural vida depende do sentido jurdico

    atribudo prpria vida. Afinal, se o direito

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    um jogo sem fim (e sem comeo), no

    h como fund-lo: sua legitimidade

    uma questo de crena. Num tempo fora

    do tempo?

    LIDAR JURIDICAMENTE COM

    O TEMPO: O EXEMPLO DA

    CHAMADA COISA JULGADA

    Comecemos pelas seguintes conside-

    raes.

    A doutrina jurdica reconhece que o

    tempo afeta todo o sistema jurdico en-quanto produo competente de normas.

    Assim, o poder competente para produzir

    normas no se exaure numa produo, mas

    continua. E porque continua, as normas

    mudam. Da o problema da chamada coisa

    julgada, que est em conferir ao poder de

    mudar um limite: impossibilidade de uma

    segunda sentena sobre o mesmo objeto da

    anterior, ainda que com base em lei nova,

    fruto do poder de produzir normas gerais.O problema no est no tempo da validade

    das normas (vigncia), mas na temporali-

    dade do poder (competncia) de mudar as

    normas. E porque tem a ver com esse poder

    que a coisa julgada envolve, em termos

    de mutabilidade temporal, uma questo de

    segurana.

    Na verdade, a concepo do ordenamen-

    to como um sistema dinmico exige a con-

    siderao especial dos problemas gerados

    pelo tempo na sucesso ou convivncia de

    normas e situaes normadas.

    O estabelecimento de uma norma e

    o advento de uma situao normada

    fato que ocorre num momento e que, no

    momento seguinte, torna-se fato passa-

    do. Como fato, desaparece no momento

    seguinte. Trata-se do tempo cronolgico,

    caracterizado pela irreversibilidade de um

    momento indefinido no passado que se

    projeta para um momento indefinido nofuturo, e que tem uma qualidade entrpica:

    tudo morre (como se v pela segunda lei

    da termodinmica)1.

    Se tudo morre, nada vale. A existncia

    humana um enfrentamento do tempo cro-

    nolgico. Nessa inelutabilidade do tempo

    fsico introduz-se a cultura (tica, direito,

    religio) como a capacidade de retomada

    reflexiva do passado e antecipao reflexiva

    do futuro. Trata-se do tempo existencial.

    a capacidade humana de reinterpretar o

    passado (sem anul-lo ou apag-lo) por

    exemplo, pela responsabilizao por aquilo

    que aconteceu e de orientar o futuro (sem

    impedir que ele ocorra) por exemplo, usan-

    do-o como finalidade reguladora da ao:

    planejamento. Entre o passado e o futuro,

    esse tempo cultural aparece, assim, como

    durao, cuja experincia se d no presente,

    que o homem vive como um contnuo. Adurao, desse modo, desafia o tempo cro-

    nolgico, que tudo corri: torna o passado

    (que no mais) algo ainda interessante e

    faz do futuro (que ainda no ocorreu) um

    crdito, base da promessa.

    Eis por que aqui entra a segurana como

    um direito fundamental.Seguranatem a ver

    com a consistncia da durao, isto , com

    o evitar que um evento passado (o estabele-

    cimento de uma norma e o advento de umasituao normada), de repente, torne-se algo

    insignificante, e o seu futuro, algo incerto, o

    que faria do tempo do direito um mero tempo

    cronolgico, uma coleo de surpresas deses-

    tabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de

    um evento passado pudesse ser alterado ou o

    sentidode um evento planejado pudesse sermodificado ao arbtriode um ato presente,a validade dos atos humanos estaria sujeita

    a uma insegurana e a uma incerteza insu-

    portveis. A prpria vida humana perderia

    sentido. Nesse quadro, o passado conserva,

    para o ser humano, um sentido, conferindo

    memria a segurana necessria confor-

    mao da integridade psicossocial do indiv-

    duo. Por isso, desde a primeira constituio

    francesa, a segurana foi reconhecida como

    um direito fundamental. Note-se, umdireito,

    fruto da razo humana (cultura), contra a

    inexorabilidade da morte de todas as coisas

    na natureza (tempo cronolgico).H dois princpios jurdicos que tm a

    ver com esse problema: o da irretroatividade

    das leis e o da anterioridade.

    1 Cf. Franois Ost, Le Temps,

    Quatrime Dimension des

    Droits de lHomme, in

    Journal des Tribunaux, 99-2.

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    Quanto no-retroatividade da lei,

    trata-se de respeitar o passado em face das

    alteraes legais, precavendo-se de tornar

    ilusrias, retrospectivamente, as expectati-

    vas legtimas (boa-f, promessas, acordos,

    decises) contidas no evento acontecido, por

    fora do poder de revogao. O princpio

    da irretroatividade resgata e sustm um

    passado em face do futuro, garantindo essas

    expectativas legtimas em face da lei nova.

    O sentido de um evento passado adquire,

    assim, um contorno prprio, conforme a

    legislao ento vigente, tornando-se imune

    ao sentido que lhe atribua a lei posterior.

    O princpio da irretroatividade garante o

    direito segurana. Nesse quadro se entende

    a coisa julgada.Ela tem a ver com a incidncia norma-

    tiva, entendida como configurao atualde

    situaes subjetivas e objetivas por fora da

    aplicao de lei eficaz (eficcia enquanto

    possibilidade de incidncia). Como a lei

    nova pode ter eficcia, desde logo, tanto

    para o futuro quanto para o passado (isto

    , desde o presente, ela pode alterar efei-

    tos ocorridos pela incidncia de normas,

    no passado), o instituto da coisa julgadaconfere dinamicidade do sistema um

    instrumento importante para lidar com as

    contradies que poderiam surgir entre a

    incidncia passada e a incidncia futura. Se

    o tempo cronolgico tudo corri, o instituto

    da coisa julgada um instrumento capaz de

    resgatar o passado em nome de um futuro

    incerto e cambiante, pela prevalncia de

    uma incidncia jurisdicional ocorrida sobre

    a efetividade de uma nova incidncia sobre

    o mesmo objeto2. Por fora do fator tempo,

    a coisa julgada um dos institutos que,

    ao garantir a segurana contra a entropia

    temporal, esto inseridos no rol dos direitos

    fundamentais.

    J o princpio da anterioridade diz res-

    peito durao. Ningum ser punido por

    ato cometido antes da vigncia da lei que o

    pune. A salvaguarda contra a surpresa exige

    a periodicidade, que confere aos eventos um

    mnimo de durabilidade. Por isso, em todasas culturas, o tempo dividido e contado.

    Trata-se, apesar da inexorabilidade do tem-

    po cronolgico, de dar ao tempo presente

    uma consistncia, fazendo dele um todo

    extenso e compacto, entre um comeo e um

    fim, dentro do qual os eventos so solidrios.

    Sem essa diviso e essa contagem, o homem

    no conseguiria planejar a sua ao. O prin-

    cpio da anterioridade periodiza o tempo e

    lhe d um sentido de unidade, protegendo

    os eventos que dentro dela acontecem contra

    alteraes legais que ocorram no perodo.

    No se trata de impedir as revises legais,

    mas de garantir as mudanas que elas

    trazem contra o sobressalto e a surpresa.

    Sem essa garantia, os eventos no duram

    (perdem o sentido da durao) e se tornam

    insignificantes (perdem legitimidade). O

    estabelecimento de perodos (um dia, um

    ms, um ano), dentro dos quais a lei novano produz efeitos, , assim, vital para o

    implemento da segurana jurdica.

    TEMPO JURDICO E TEMPO DAS

    OCORRNCIAS COTIDIANAS

    Como instituto tipicamente jurdico, acoisa julgadape mostra uma interessante

    relao entre o tempo jurdico e o tempo da

    ocorrncia dos fatos na vida cotidiana.

    No mundo que nos comum existe

    sempre o retorno do mesmo: coisas que

    sempre ocorrem de novo, fenmenos que

    sempre se realizam novamente. Entre esses

    fenmenos esto aes e interaes huma-

    nas. Enquanto, porm, as coisas que existem

    apontam para certa estabilidade temporal

    a mesma mesa sobre a qual coloco os

    meus papis estava aqui no dia anterior , as

    aes por exemplo, um passeio tm uma

    peculiaridade, pois elas decorrem tem-

    poralmente, so por assim dizer, fluidas,

    como o caso da pronncia de uma frase.

    Apesar disso, nada nos impede de repetir as

    mesmasaes: realizar o mesmo passeio,

    pronunciar a mesma frase. Nossas aes

    (do latim actus) so, em geral, variaes

    atuais de alguma forma de permanncia.Ou seja, cadapasseioou cadafraseso uma

    ocorrncia nica e irrepetvel. Alm disso,

    se, como diz Ortega y Gasset, eu sou eu

    2 Cf. Ferraz Jr., Introduo ao

    Estudo do Direito, So Paulo,

    Atlas, 2007, pp. 249 e segs.

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    e minha circunstncia, somos, em cada

    momento, um nico e irrepetvel aconte-

    cer. O mesmo se diga para o nosso agir e

    para as razes do nosso agir. Um pianista

    que executa uma pea musical capaz, em

    cada execuo, de perceber a unicidade e a

    irrepetibilidade da execuo. Como ento

    falar na repetio e na nova ocorrncia da

    mesma execuo?

    Por meio de um longo aprendizado ad-quirimos hbitos de agir, que passamos a

    dominar, de que nos tornamos capazes, e

    que em mltiplas combinaes e variaes

    repetimos ou atualizamos. O que se deve

    distinguir aqui a ao atual (eu executo

    a pea musical) da aopotencial, isto ,

    de um lado, o ato e, de outro, os esquemas

    (potenciais) de agir que constituem uma

    atividade. Esquemas de ao entendem-se

    no, como usualmente, no sentido de gr-

    ficos, desenhos, mas de hbitos regulares

    ou regulados (uma atividade) que, toda vez

    que agimos, atualizamos. Por exemplo, paradar o mesmo passeio damos os mesmos

    passos (esquemas da ao de passear) pelo

    mesmo lugar. Ou para pronunciar a mesma

    Reproduo

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    dos papis sociais possveis. Agimos como

    pai, irmo, contribuinte, parte processual,

    etc. O que chamamos de personalidade

    a identificao de vrios papis possveis

    num nico centro de atuao. Portanto,

    quando dizemos que fulano bateu em si-

    crano repetidas vezes, estamos a dizer que

    o pai bateu no filho ou o agressor bateu

    na vtima repetidas vezes. A identidade do

    sujeito no uma identidade fsica, mas de

    um papel que assumido ao agir. O papel

    funciona aqui tambm como potencialidade

    de uma atualizao.

    Por ltimo, as razes tambm se enqua-

    dram em distino semelhante. Embora as

    circunstncias que compem o agir sejam

    fluidas (no primeiro passeio estava cho-vendo e o agente tinha um guarda-chuva

    para proteg-lo, no segundo fazia sol e ele

    se protegia com um chapu), deve-se dizer

    que h circunstncias enquanto habituali-

    dades circunstanciais que se repetem em

    cada ao que ocorra. Ou seja, repetir as

    mesmas razes, motivos, finalidades ou

    embasar-se nos mesmos fundamentos sig-

    nifica atualizar esses fundamentos habituais

    que compem, em cada ao, circunstnciaspotenciais que aprendemos e adquirimos no

    correr de nossa vida social, uma espcie de

    repertrio potencial de fundamentos que

    pomos em ao toda vez que fundamenta-

    mos nossas posies ao interagir, ao entrar

    em conflito, etc.

    Nos trs casos mencionados preciso

    ainda distinguir entre a ao, o agente, suas

    circunstncias e o resultado da ao, que

    a sua corporificao. Assim, realizar um

    acordo de vontades entre dois comerciantes

    tendo em vista a aquisio de um bem

    situao que pertence ao mundo da ao

    de modo geral. Mas o instrumento escrito

    que da resulta no fluido do mesmo modo

    que a ao. O instrumento j algo cuja

    estabilidade temporal diferente da irrepe-

    tibilidade da ao. Assim , por exemplo,

    a escrita em relao fala, o documento

    escrito em relao ao agir que o produziu,

    a pauta musical em relao ao ato de com-por. Todos so fenmenos temporais, mas

    que ocorrem diversamente no tempo. Que

    tempo? Tempo cronolgico?

    3 Cf. Wilhelm Kamlah e Paul

    Lorenzen, Logische Propae-

    deutik, Mannheim, 1967, pp.

    53 e segs.

    frase usamos os mesmos signos lingusticos.

    Passos e signos so esquemas potenciais de

    ao (passear, falar). Ou seja, repetir uma

    ao significa repetir os seus esquemas.

    Tais esquemas constituem sistemas estru-

    turados (atividade) que atualizamos sempre

    que agimos3.

    O que se diz para o agir vale tambm

    para o ator e seus motivos. Assim, se nun-

    ca somos os mesmos em nossas aes, preciso distinguir aqui entre o ator, pessoa

    fsica concreta, e os papis sociais que ele

    assume ao agir. Ningum age na integridade

    A Justia, de

    Rafael Sanzio

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    REVISTA USP, So Paulo, n.81, p. 40-49, maro/maio 200948

    O TEMPO NORMATIVO E

    O SUJEITO DA IMPUTAO

    O tempo no direito, no exemplo da coisa

    julgada, levanta curiosas indagaes. Se

    algum foi julgado inocente e, sob certas

    condies, no pode ser submetido, pelo

    mesmo objeto, a um novo julgamento,

    como se, para aquele julgamento, o tempo

    fosse deixado no passado como foi e no

    presente como estando do modo como

    foi, para todo o futuro. Afinal, o que se

    impede um novo julgamento, no futuro

    dos julgamentos por vir. Mas, se o tempo

    corre, inexoravelmente, do passado para ofuturo e tudo morre, como possvel, entre

    o passado e o futuro, reformular a crono-

    logia, de tal modo que o passado continue

    a existir (res judicata) no presente e o

    futuro seja interrompido (no ser julgado

    de novo)? Mediante que artifcio a crono-

    logia (qualidade entrpica: tudo morre)

    manipulada?

    Kelsen4, conhecidamente, afirma, a

    propsito da liberdade, que o indivduo livre porque a norma lhe impe uma con-

    duta diante de vrias possibilidades. Essas

    possibilidades esto predeterminadas (por

    razes fisiolgicas, psquicas, sociais, hist-

    ricas, etc.), mas a imputao de uma sano

    a uma delas torna esta livre.

    Em princpio, nada escapa s razes

    causais, inexoravelmente determinadas

    pelo tempo cronolgico. A causalidade

    um tipo de relao linear e infinita, tanto

    na linha progressiva dos efeitos quanto

    na linha regressiva das causas: tudo tem

    uma causa e efeito de uma causa, efeito

    de outra e causa de outra. Para Kelsen, o

    tempo cronolgico domina o mundo do

    ser. Mas, nesse quadro, a imputao um

    tipo de relao terminal e principial. Ou

    seja, tem comeo certo e fim certo. Assim,

    dada uma srie causal, a imputao de

    uma sano a um evento da srie causal

    temporalmente indefinida a interrompeao qualificar o evento como condio da

    sano. Por exemplo, algum foi educado

    com demasiado rigor (causa), rebela-se

    continuamente (efeito) e bebe com exage-

    ro (efeito do efeito: causa/efeito) e nessa

    condio, movido por sua rebeldia contra

    uma educao rgida (causa), dirige um

    carro em alta velocidade (efeito) e por

    isso (causa) atropela e mata um transeunte

    (efeito). Cada causa e cada efeito, nessa

    srie, alinham-se a outras causas e outros

    efeitos, numa rede diacrnica e sincrnica,

    mas sempre cronolgica.

    Ora, a imputao (jurdica) atravessa e

    interrompe a srie, decompe a diacronia e a

    sincronia, reorganiza a rede, ao destacar um

    evento e sua consequncia como condio

    da sano (dirigir bbado negligncia

    e matar algum: sano). A imputao,

    sem alterar a rede causal (a cronologia inexorvel e determinada desde o passa-

    do, seguindo determinada e inexorvel em

    direo do futuro), cria uma nova srie: o

    tempo da conduta tipificada e do dever-ser

    da sano a conduta tpica deve ser evita-

    da ou, caso contrrio, deve ser a sano. O

    agente, causalmente determinado, continua

    sujeito inexorabilidade do tempo causal:

    ir beber ou no, ir dirigir o veculo, b-

    bado ou no, ou ir abster-se de dirigir, etc.Mas se beber, dirigir, matar movimenta a

    sano: a sano deve ser.

    Em termos temporais, ocorre um tra-

    tamento sui generis do fator tempo. O ser

    (cronolgico) do agente passa a estar re-

    gulado por normas (imputaes de sano)

    quepreveem, desde o passado (momento

    de imputao da sano), um determinado

    comportamento futuro (comportamento

    a ser sancionado), cujas condies esto

    pr-dadas desde o passado. A imputao,

    assim, torna o comportamento (futuro) do

    agente um passado que se verificar ou

    como conduta punvel ou como conduta

    permitida. O tempo da imputao o tempo

    do sujeito livre: trata-se de uma conduta

    proibida/permitida normativamente que

    nasce de um passado (comportamento ti-

    pificado pela sano/ausncia de sano),

    mascarado como futuro (sob o nomen juris

    depreviso normativa).Isso confere ao tempo normativo um

    carter diferente, capaz de lidar com o tempo

    cronolgico de uma forma peculiar.4 Reine Rechtslehre, Viena,

    1960, passim.

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    REVISTA USP, So Paulo, n.81, p. 40-49, maro/maio 2009 49

    A imputao da conduta a um sujeitofaz

    do sujeito uma espcie de unidade sinttica

    (livre), que, ao invs de experienciar as

    compulses causais como foras externas

    que o conformam, manifesta-se a si prprio

    como sujeito da imputao. Como sujeito

    da imputao ele designado (mediante

    a lngua, mediante a fala normativa) como

    possibilidade sempre possvel a despeito

    de qual seja a determinao (causal) ex-

    terna. Ou seja, a imputao normativa faz

    do agente um subjectum, que se apresenta

    como um executor possvel de um dever,

    como se a imposio normativa s pudesse

    ser cumprida em sua interioridade como

    fonte de diversidade.

    Ou seja, a ordem normativa jurdica,como um nexo de imputaes externas, a

    possibilidade que designa o sujeito como sua

    prpria possibilidade de se mostrar como

    sujeito. Isto , desse modo e como tal, ele

    se constitui como possibilidade de conduta

    futura, a despeito de um condicionamento

    causal passado, conforme uma tipificao

    passada que ele realiza, desde o passado,

    como o futuro.

    Em termos temporais, a ordem normati-va determinao (imputativa) do presente

    do sujeito por meio da possibilidade futura

    de ele se mostrar contra o seu passado (por

    exemplo, ser rebelde e no dirigir bbado).

    Ou, em outras palavras, o tempo normativo

    corre s avessas: do futuro para o passado!

    Entenda-se: mediante imputao, a conduta

    no passado cronolgico (matar algum) tem

    o sentido de um futuro (sancione-se o ato

    de matar algum) mesmo antes de algum

    matar algum. O tempo da imputao corre

    do futuro para o passado.

    Pode-se entender, assim, uma espcie

    de paradoxo introduzido pela normatiza-

    o jurdica no tempo cronolgico. Somos

    sempre responsabilizados pelo que fizemos

    (passado), mas em funo de uma res-

    ponsabilizao imputada no futuro (o que

    devemos fazer), e que nos torna respons-

    veis no presente desde o futuro. Como se a

    cronologia, no tempo normativo, pusesse (e

    efetivamente pe) a diacronia em sincronia:

    a conduta, que j foi (matar algum e ser

    punido), no punida desde o passado,

    por fora de um passado que corre desde o

    futuro (matar em legtima defesa), isto ,

    matou e no punido, mesmo quando j

    matou e foi punido; e a sincronia, em uma

    diacronia s avessas: matou e foi punido,

    mas no foi punido, por ter matado desde

    um passado (fato tipo estabelecido no

    passado, mascarado em futuro: matar em

    legtima defesa).

    EM TEMPO

    NasConfisses, ao interrogar-se sobre o

    que o tempo, Agostinho sai-se com uma

    dvida angustiante: no o passado, porque

    o tempo que passou j no mais . No o

    futuro, pois o tempo que vir no ainda.

    E o presente no passa de um timo, entre

    o passado e o futuro: quando deixa de sere ento no ; mas quando deixa de ser j

    , mas o que ainda no , e, ento, no

    . O passado (o tempo como passado) no

    . O futuro (o tempo como futuro) no .

    E o presente (o nunc stans), entre ambos,

    nada .

    Assim, o tempo vivenciado pelo ser

    humano nada.Nada cujo sentido de ser

    ser memria (tempo passado que no mais

    , mas na memria presente); e ser na

    expectativa (tempo futuro que no ainda,

    mas na expectativa presente).

    Talvez se possa concluir que, o tempo

    nada sendo, o tempo jurdico uma refinada

    conceptualizao de nada das mais refina-

    das que conhecemos capaz de conferir

    existncia um sem-sentido laboriosamente

    significativo.