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1 FERREIRA GULLAR

Ferreira Gullar Muitas Vozes-E-books

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FERREIRA GULLAR

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PRIMEIROS ANOS Ferreira Gullar Para uma vida de merda nasci em 1930 na rua dos prazeres Nas tábuas velhas do assoalho por onde me arrastei conheci baratas, formigas carregando espadas caranguejeiras que nada me ensinaram exceto o terror Em frente ao muro negro no quintal as galinhas ciscavam, o girassol Gritava asfixiado longe longe do mar (longe do amor) E no entanto o mar jazia perto detrás de mirantes e palmeiras embrulhado em seu barulho azul E as tardes sonoras rolavam sobre nossos telhados sobre nossas vidas. Do meu quarto ouvia o século XX farfalhando nas árvores lá fora. Depois me suspenderam pela gola me esfregaram na lama me chutaram os colhões e me soltaram zonzo em plena capital do país sem ter sequer uma arma na mão. (Buenos Aires, 1975)

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Meu pai Ferreira Gullar meu pai foi ao Rio se tratar de um câncer (que o mataria) mas perdeu os óculos na viagem quando lhe levei os óculos novos comprados na Ótica Fluminense ele examinou o estojo com o nome da loja dobrou a nota de compra guardou-a no bolso e falou: quero ver agora qual é o sacana que vai dizer que eu nunca estive no Rio de Janeiro De Muitas Vozes (1999)

Os mortos Ferreira Gullar os mortos vêem o mundo pelos olhos dos vivos eventualmente ouvem, com nossos ouvidos, certas sinfonias algum bater de portas, ventanias Ausentes de corpo e alma misturam o seu ao nosso riso se de fato quando vivos acharam a mesma graça De Muitas Vozes (1999)

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Aprendizado Ferreira Gullar Do mesmo modo que te abriste à alegria abre-te agora ao sofrimento que é fruto dela e seu avesso ardente. Do mesmo modo que da alegria foste ao fundo e te perdeste nela e te achaste nessa perda deixa que a dor se exerça agora sem mentiras nem desculpas e em tua carne vaporize toda ilusão que a vida só consome o que a alimenta. De Barulhos (1980-1987)

Traduzir-se Ferreira Gullar Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.

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Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte? De Na Vertigem do Dia (1975-1980) Galo Galo Ferreira Gullar O galo no salão quieto. Galo galo de alarmante crista, guerreiro, medieval. De córneo bico e esporões, armado contra a morte, passeia. Mede os passos. Pára. Inclina a cabeça coroada dentro do silêncio:

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—— que faço entre coisas ? —— de que me defendo ? Anda. No saguão. O cimento esquece o seu último passo. Galo: as penas que florescem da carne silenciosa e duro bico e as unhas e o olho sem amor. Grave solidez. Em que se apóia tal arquitetura ? Saberá que, no centro de seu corpo, um grito se elabora ? Como, porém, conter, uma vez concluído, o canto obrigatório ? Eis que bate as asas, vai morrer, encurva o vertiginoso pescoço donde o canto rubro escoa Mas a pedra, a tarde, o próprio feroz galo subsistem ao grito. Vê-se: o canto é inútil. O galo permanece — apesar de todo o seu porte marcial — só, desamparado, num saguão do mundo. Pobre ave gurreeira!

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Outro grito cresce agora no sigilo de seu corpo; grito que, sem essas penas e esporões e crista e sobretudo sem esse olhar de ódio, não seria tão rouco e sangrento Grito, fruto obscuro e extremo dessa árvore: galo. Mas que, fora dele, é mero complemento de auroras.

Poemas Neoconcretos I Ferreira Gullar mar azul mar azul marco azul mar azul marco azul barco azul mar azul marco azul barco azul arco azul mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul DOIS E DOIS: QUATRO Ferreira Gullar Como dois e dois são quatro Sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena Como teus olhos são claros e a tua pele morena como é azul o oceano

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e a lagoa, serena e a noite carrega o dia no seu colo de açucena - sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade pequena

João Boa Morte Cabra Marcado para Morrer Ferreira Gullar Essa guerra do Nordeste não mata quem é doutor. Não mata dono de engenho, só mata cabra da peste, só mata o trabalhador. O dono de engenho engorda, vira logo senador. Não faz um ano que os homens que trabalham na fazenda do Coronel Benedito tiveram com ele atrito devido ao preço da venda. O preço do ano passado já era baixo e no entanto o coronel não quis dar o novo preço ajustado. João e seus companheiros não gostaram da proeza: se o novo preço não dava para garantir a mesa, aceitar preço mais baixo já era muita fraqueza. "Não vamos voltar atrás. Precisamos de dinheiro. Se o coronel não quer dar mais, vendemos nosso produto para outro fazendeiro."

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Com o coronel foram ter. Mas quando comunicaram que a outro iam vender o cereal que plantaram, o coronel respondeu: "Ainda está pra nascer um cabra pra fazer isso. Aquele que se atrever pode rezar, vai morrer, vai tomar chá de sumiço".

Um instante Ferreira Gullar Aqui me tenho Como não me conheço nem me quis sem começo nem fim aqui me tenho sem mim nada lembro nem sei à luz presente sou apenas um bicho transparente POEMA Ferreira Gullar Se morro universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto se apago a lâmpada: os sapatos - da - ásia, as camisas e guerras na cadeira, o paletó - dos - andes, bilhões de quatrilhões de seres e de sóis morrem comigo.

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Ou não: o sol voltará a marcar este mesmo ponto do assoalho onde esteve meu pé; deste quarto ouvirás o barulho dos ônibus na rua; uma nova cidade surgirá de dentro desta como a árvore da árvore. Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens a mesma história que eu leio, comovido. MAU DESPERTAR Ferreira Gullar Saio do sono como de uma batalha travada em lugar algum Não sei na madrugada se estou ferido se o corpo tenho riscado de hematomas Zonzo lavo na pia os olhos donde ainda escorre uns restos de treva. (agosto 1977)

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EVOCAÇÃO DE SILÊNCIOS Ferreira Gullar O silêncio habitava o corredor de entrada de uma meia morada na rua das Hortas o silêncio era frio no chão de ladrilhos e branco de cal nas paredes altas enquanto lá fora o sol escaldava Para além da porta na sala nos quartos o silêncio cheirava àquela família e na cristaleira (onde a luz se excedia) cintilava extremo: quase se partia Mas era macio nas folhas caladas do quintal vazio e negro no poço negro que tudo sugava: vozes luzes tatalar de asa o que circulava no quintal da casa

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O mesmo silêncio voava em zoada nas copas nas palmas por sobre telhados até uma caldeira que enferrujava na areia da praia do Jenipapeiro e ali se deitava: uma nesga dágua um susto no chão fragmento talvez de água primeira água brasileira Era também açúcar o silêncio dentro do depósito (na quitanda de tarde) o cheiro queimando sob a tampa no escuro energia solar que vendíamos aos quilos Que rumor era esse ? barulho que de tão oculto só o olfato o escuta ? que silêncio era esse tão gritado de vozes (todas elas) queimadas em fogo alto ?

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(na usina) alarido das tardes das manhãs agora em tumulto dentro do açúcar um estampido (um clarão) se se abre a tampa. POEMAS PORTUGUESES (4) Ferreira Gullar Nada vos oferto além destas mortes de que me alimento Caminhos não há Mas os pés na grama os inventarão Aqui se inicia uma viagem clara para a encantação Fonte, flor em fogo, quem é que nos espera por detrás da noite ? Nada vos sovino: com a minha incerteza vos ilumino

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NÃO HÁ VAGAS Ferreira Gullar O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras - porque o poema, senhores, está fechado: "não há vagas" Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira

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NO CORPO Ferreira Gullar De que vale tentar reconstruir com palavras O que o verão levou Entre nuvens e risos Junto com o jornal velho pelos ares O sonho na boca, o incêndio na cama, o apelo da noite Agora são apenas esta contração (este clarão) do maxilar dentro do rosto. A poesia é o presente. Cantiga para não morrer Ferreira Gullar Quando você for se embora moça branca como a neve, me leve. Se acaso você não possa me carregar pela mão, menina branca de neve, me leve no coração. Se no coração não possa por acaso me levar, moça de sonho e de neve, me leve no seu lembra. E se aí também não possa por tanta coisa que leve já viva em seu pensamento, menina branca de neve, me leve no esquecimento

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MADRUGADA Ferreira Gullar Do fundo de meu quarto, do fundo de meu corpo clandestino ouço (não vejo) ouço crescer no osso e no músculo da noite a noite a noite ocidental obscenamente acesa sobre meu país dividido em classes SUBVERSIVA Ferreira Gullar A poesia Quando chega Não respeita nada. Nem pai nem mãe. Quando ela chega De qualquer de seus abismos Desconhece o Estado e a Sociedade Civil Infringe o Código de Águas Relincha Como puta Nova Em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois Reconsidera: beija Nos olhos os que ganham mal Embala no colo Os que têm sede de felicidade E de justiça. E promete incendiar o país.

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O Açúcar Ferreira Gullar O branco açúcar que adoçará meu café Nesta manhã de Ipanema Não foi produzido por mim Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro E afável ao paladar Como beijo de moça, água Na pele, flor Que se dissolve na boca. Mas este açúcar Não foi feito por mim. Este açúcar veio Da mercearia da esquina e Tampouco o fez o Oliveira, Dono da mercearia. Este açúcar veio De uma usina de açúcar em Pernambuco Ou no Estado do Rio E tampouco o fez o dono da usina. Este açúcar era cana E veio dos canaviais extensos Que não nascem por acaso No regaço do vale. Em lugares distantes, Onde não há hospital, Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome Aos 27 anos Plantaram e colheram a cana Que viraria açúcar. Em usinas escuras, homens de vida amarga E dura Produziram este açúcar Branco e puro Com que adoço meu café esta manhã Em Ipanema. Protegido pela Lei do Direito Autoral LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam mantidas.