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Festa de Nossa Senhora do Rosário, Padroeira dos Negros . Gravura de Johann Moritz Rugendas.

Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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Festa de Nossa Senhora do Rosário, Padroeira dos Negros. Gravura de Johann Moritz Rugendas.

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FESTAS E TRADIÇÕES POPULARES DO BRASIL

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Mesa Di re to ra

Biênio 2001/2002

Se na dor Ra mez TebetPre si den te

Se na dor Edi son Lobão1º Vice-Pre si den te

Se na dor Antonio Car los Valadares2º Vi ce-Presidente

Se na dor Car los Wil son1º Se cre tá rio

Se na dor Ante ro Paes de Bar ros2º Se cre tá rio

Se na dor Ro nal do Cu nha Lima3º Se cre tá rio

Se na dor Mo za ril do Cavalcanti4º Se cre tá rio

Su plen tes de Se cre tá rio

Se na dor Alber to Sil va Se na do ra Mar lu ce Pin to

Se na do ra Ma ria do Car mo Alves Se na dor Nilo Te i xe i ra Cam pos

Con se lho Edi to ri al

Se na dor Lú cio Alcân ta raPre si den te

Jo a quim Cam pe lo Mar quesVi ce-Presidente

Con se lhe i ros

Car los Hen ri que Car dim Carl yle Cou ti nho Ma dru ga

Ra i mun do Pon tes Cu nha Neto

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Co le ção Bi bli o te ca Bá si ca Bra si le i ra

FESTAS E TRADIÇÕES

POPULARES DO BRASIL

Melo Mo ra is Fi lhoDi re tor-Arquivista da Mu ni ci pa li da de do Rio de Ja ne i ro

Pre fá cio de Síl vio Ro me ro

De se nhos de Flu men Ju ni us

Bra sí lia – 2002

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BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRAO Con se lho Edi to ri al do Se na do Fe de ral, cri a do pela Mesa Di re to ra em 31 de ja ne i ro de1997, bus ca rá edi tar, sem pre, obras de va lor his tó ri co e cul tu ral e de im por tân cia re le van t e paraa com pre en são da his tó ria po lí ti ca, eco nô mi ca e so ci al do Bra sil e re fle xão so bre os des ti nos do país.

COLEÇÃO BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA

A Qu e re la do Esta tis mo, de Antô nio PaimMi nha For ma ção (2ª edi ção), de Jo a quim Na bu coA Po lí ti ca Exte ri or do Impé rio (3 vols.), de J. Pan diá Ca ló ge rasCa pí tu los de His tó ria Co lo ni al, de Ca pis tra no de AbreuInsti tu i ções Po lí ti cas Bra si le i ras , de Oli ve i ra Vi a naDe o do ro: Sub sí di os para a His tó ria, de Ernes to SenaPre si den ci a lis mo ou Par la men ta ris mo?, de Afon so Ari nos de Melo Fran co e Raul PilaRui – o Esta dis ta da Re pú bli ca, de João Man ga be i raEle i ção e Re pre sen ta ção, de Gil ber to Ama doDi ci o ná rio Bi o bi bli o grá fi co de Au to res Bra si le i ros, or ga ni za do pelo Cen tro de Do cu men ta ção do Pen sa men to Bra si le i roObser va ções so bre a Fran que za da Indús tria, do Vis con de de Ca i ruA re nún cia de Jâ nio, de Car los Cas te lo Bran coJo a quim Na bu co: re vo lu ci o ná rio con ser va dor, de Va mi reh Cha conOi tos Anos de Par la men to, de Afon so Cel so Pen sa men to e Ação de Rui Bar bo sa, se le ção de tex tos pela Fun da ção Casa de Rui Bar bo saHis tó ria das Idéi as Po lí ti cas no Bra sil, de Nel son No gue i ra Sal da nhaA Evo lu ção do Sis te ma Ele i to ral Bra si le i ro, de Ma nu el Ro dri gues Fer re i raRo dri gues Alves: Apo geu e De clí nio do Pre si den ci a lis mo (2 vo lu mes), de Afon so Ari nos de Melo FrancoO Esta do Na ci o nal, de Fran cis co Cam posO Bra sil So ci al e ou tros Estu dos So ci o ló gi cos, de Sílvio Ro me ro

Pro je to Grá fi co: Achil les Mi lan Neto

Se na do Fe de ral, 2002Con gres so Na ci o nalPra ça dos Três Po de res s/nº – CEP 70165-900 – Bra sí lia – DFCEDIT@ce graf.se na do.gov.br http://www.se na do.gov.br/web/con se lho/con se lho.htm

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Mo ra es Fi lho, Mel lo, 1843-1919. Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Bra sil / Melo Mo ra is Fi lho ; comum pre fá cio de Síl vio Ro me ro ; de se nhos de Flu men Juni us. – Bra sí lia :Se na do Fe de ral, Con se lho Edi to ri al, 2002. 386 p. : il. -- (Co le ção Bi bli o te ca bá si ca bra si le i ra)

1. Fes ta po pu lar, Bra sil. 2. Fes ta re li gi o sa, Bra sil. 3. Fol clo re, Bra sil.I. Tí tu lo. II. Sé rie. CDD 394.20981

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Su má rio

PREFÁCIO

pág. 15

FESTAS POPULARES

Ca sa men to na roça

pág. 21

Ano-Bompág. 31

Car na valpág. 39

A Fes ta do Di vi nopág. 53

A No i te de Na talpág. 63

A Vés pe ra de Reis pág. 73

A Pro cis são de S. Ben edi to no La gar topág. 87

A Vés pe ra de S. Joãopág. 97

O 2 de Ju lho pág. 105

Page 7: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O Entru do pág. 115

O 7 de Se tem bro pág. 123

A Fes ta da Pe nha pág. 131

Os Cu cum bispág. 141

A Fes ta do Di vi no pág. 151

FESTAS RELIGIOSAS

As San tas Mis sõespág. 167

S. Se bas tiãopág. 175

A Fes ta da Gló ria pág. 183

As En co men da ções das Al maspág. 191

Cor pus Chris tipág. 199

Qu in ta-Fe i ra San ta pág. 207

Sex ta-Feira da Pa i xãopág. 213

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Pre ces para Pe dir Chu va pág. 219

O Dia de Fi na dospág. 225

TRADIÇÕES

A Fes ta da Mo a gempág. 233

Um Ca sa men to de Ci ga nos em 1830pág. 243

A Fes ta dos Mor tospág. 253

Nos so-Paipág. 261

O En for ca dopág. 269

A Co ro a ção de um Rei Ne gro em 1748pág. 279

Na Ter ra e no Marpág. 285

O Va lon gopág. 299

Um Fu ne ral Mo çam bi que em 1830pág. 305

Lu cas da Fe i rapág. 311

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O Na vio Ne gre i ropág. 317

TIPOS DA RUA

Ca po e i ra gem e Ca po e i ras Cé le brespág. 325

O Ca pi tão Na bu copág. 335

O Estra da de Fer ropág. 345

O Fi ló so fo do Caispág. 347

A For te-Lidapág. 351

O Mi gue lis tapág. 353

O Po li car popág. 355

O Bo len gapág. 359

O Pica-Paupág. 363

O Pa dre Kelépág. 367

A Ma ria Doidapág. 371

Page 10: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O Pra ia-Grandepág. 373

Bar re to Bas tospág. 375

O Chi co Cam bra iapág. 377

O “Não Há de Ca sar”pág. 381

O To más Ca cha çopág. 383

Page 11: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

À me mó ria de meu paiAs bên çãos do povo bra si le i ro

por to dos os sé cu los da His tó ria

Ao ilus tre ci da dãoDr. Hen ri que Va la da res

Ho me na gem res pe i to sa do au tor

Aos dou to resCân di do Ba ra ta Ri be i ro

eMou ra Bra sil

Lem bran ça de par ti cu lar es ti ma e con ven ci da ad mi ra ção

MELO MORAIS FILHO

Page 12: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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Pre fá cio

Não se deve es pe rar de mim que ve nha, nes te lu gar, queme é ce di do pela ge ne ro si da de de Melo Mo ra is Fi lho, fa zer ain da umavez a ca rac te rís ti ca des te es cri tor, a aná li se des te po e ta.

O que ti nha a di zer em tão ele va do in tu i to já está es cri to naHis tó ria da Li te ra tu ra Bra si le i ra, e é co nhe ci do pelo pú bli co.

Mas, de en tão para cá, de en tão até hoje, a si tu a ção do es pí ri todo ho mem de le tras, e as con di ções de nos sa pá tria não te rão mu da do?

Nada ha ve rá a jun tar ao que foi dito há cin co anos? Em uma e ou tra es fe ra, no es pí ri to do es cri tor e na vida do país, ope ra ram-se al te ra ções,aqui pro fun das, ali bem sig ni fi ca ti vas.

Não as des cre ve rei nes te mo men to e nes te pos to, que devo àami za de. Duas pa la vras de ín ti mo co ló quio com o ilus tre au tor dasFes tas e Tra di ções Po pu la res do Bra sil, eis quan to ve nho de por de leve nes tas pá gi nas.

Em vin te e qua tro anos de vida de pu bli ci da de, que tan tos são os que me ca bem até hoje nas li des li te rá ri as bra si le i ras, é bem de ver ead mi tir que te nha co nhe ci do e pra ti ca do a mor par te dos es cri to res demeu país.

Page 13: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Inte li gên ci as ele va das, ta len tos cul tos, ca rac te res se gu ros, in di -vi du a li da des sin gu la res, mo da li da des di ver sas d’alma hu ma na, fe i çõesdis tin tas do gê nio na ci o nal, mu i tos pas sa ram por mim e me de i xa ram agra ta re cor da ção de sua con vi vên cia amis to sa. Des cre vê-los, fa zê-los ago ra no mi na ti va men te pas sar-me di an te, no tar as im pres sões pro du zi das, se -ria doce, se ria agra dá vel ao meu co ra ção, já mu i to de si lu di do: mas exi gi -ria tem po e es pa ço, de que não pos so dis por. Bas te-me nes te mo men todes ta car, pe las se me lhan ças e pe las an tí te ses que re ve lam, em apa ga dasli nhas, em rá pi da si lhou et te, as fi si o no mi as dos dois com quem maisconvi vi até hoje, os dois que mais es ti mei, que mais in ti ma men te aga sa lheina minha sim pa tia, pela fran que za de seu tra to, bon da de de seus senti men tos, atra ções de seu es pí ri to, in te gri da de de seu ca rá ter.

Com ple ta men te afas ta dos os dois na di re ção da cul tu ra e naín do le das idéi as; per fe i ta men te dis tan ci a dos no modo de ver e apre ci armais de um fato, de pe sar mais de um acon te ci men to da or dem men tal,ti nham am bos mais de um pon to de con tac to, mais de um tra ço de se me -lhan ça nos re ces sos ín ti mos do gê nio.

Na tu re zas sa di as, for tes, na ti va men te vol ta das à ale gria, aodi ver ti men to, à vida fol ga zã e des pre o cu pa da de nos sas clas ses po pu la res,na qui lo que elas ti nham de mais se le to, de mais ori gi nal, de mais fun da -men tal men te puro, na pro vín cia, há uns trin ta ou qua ren ta anos atrás,os meus dois ami gos con ser vam sem pre a es pon ta ne i da de da con ver sa ção,a gra ci o si da de da pi lhé ria, o bom hu mor do tra to, o re pen te dos di tos, airo nia des pre ten si o sa da ré pli ca, al gu ma coisa que se pu de ra cha mar apo e sia do ca rá ter nas al mas boas.

Fi lhos da pro vín cia, de sua in fân cia po pu lar, re li gi o sa, ca tó li ca,não con se gui ram ja ma is apa gar as pro fun das im pres sões.

Aman tes do Bra sil em grau ex tre mo e achan do-o des vi a do da -qui lo que so nha vam em seu pa tri o tis mo, tor na ram-se a nos so res pe i tover da de i ros pes si mis tas; um, por que a pá tria não era ain da o que eleque ria que ela fos se; ou tro, por que ela ti nha de i xa do de ser o que elequeria que ela sem pre fi cas se sen do. Um ati rou-se ao vór ti ce da ciên cia

16 Melo Mo ra is Filho

Page 14: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

moder na, ao tor ve li nho da fi lo so fia, da crí ti ca, e, no seu so nhar pelo por vir, qua se de ses pe ra va da pá tria, que não an da va de pres sa; ou tro, con cen tra dona his tó ria, na tra di ção, qua se tam bém de ses pe ra de sua ter ra, que vaies que cen do o seu pas sa do, per den do o seu ca rá ter na ti vo, ol vi dan do assuas len das, os seus cos tu mes, as suas fes tas, mas ca ran do a fi si o no mia,tão sin ge la e pra zen te i ra na sua ori gi na li da de, com os ou ro péis de umases tran ge i ri ces im por tu nas.

Ambos, como po e tas, são fun da men tal men te cren tes, ele gía cos,român ti cos, uma re vi ves cên cia, uma res so nân cia das ve lhas cor das ma vi o sas do li ris mo in gê ni to à nos sa raça. Como crí ti cos e ana lis tas, di fe ren ci am-se: um escre veu os Estu dos Ale mães, como que in di can do ao Bra sil oca mi nho do fu tu ro, ou tro es cre veu as Fes tas e Tra di ções Po pu la res,como que nos apon tan do a tri lha do pas sa do.

E es sas duas fi si o no mi as em um pon to pa re ci das, e em ou trotão des se me lhan tes, são como dois so bre vi ven tes que fi ca ram da que lagran de ge ra ção, que fe chou o ci clo do ro man tis mo, ou vin do os úl ti moscan tos de Va re la e Cas tro Alves.

E eu os es cu tei, eu os amei; por que os com pre en di na di ver si -da de das ín do les, na sin ce ri da de das emo ções, na pro fun de za dos afe tos.

Um, não há mu i to, mor reu; e o ou tro, vivo ain da, quer que ocon si de rem o que sem pre foi, o que sem pre quis ser, um ho mem do pas sa do, um ho mem para quem o Bra sil só tem atra ti vos nos tem pos que já sefo ram, em umas pou cas de tra di ções que já mor re ram.

Com pre en den do as duas po si ções, aman do o pas sa do, cuja his tó ria,cujas tra di ções tam bém es tu dei e des cre vi, e es pe ran do do fu tu ro, peloqual tam bém te nho pro cu ra do em pe nhar o meu des va lo ro so es for ço, não é sem melan co lia, sem uma cer ta dose de de sa len to, que me re cor do dehaver vis to, mu i tas ve zes, de ses ti ma dos, des co nhe ci dos, pela in gra ti dãodos par vos, os la bo res des ses dois ope rá ri os cons ci en ci o sos e me ri tó ri os.

Do au tor dos Dias e No i tes, por mais que di fe ren ci a do dopre sen te seja o nos so sen tir vin dou ro, onde hou ver al gu ma alma aman te

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 17

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des te país gos ta rá ela de re cor dar-lhe os can tos pa trió ti cos; onde hou veral gum es pí ri to se den to de sa ber, ane lan te de pro gres so, de ses pe ra do porsa cu dir a po e i ra das con ven ções que as fi xi am, pro cu ra rá ele nas crí ti casdo mor to ilus tre os es tí mu los avi ven ta do res da luta, ger mi na ti vos da luz e do pro gres so.

Pelo que toca es pe ci al men te ao au tor des ta bela obra, pos sodi zer que, por mais que te nha de ser aci den ta do o ca mi nho do Bra silatra vés dos tem pos, qua is quer que te nham de ser as de si lu sões que osdesti nos his tó ri cos lhe re ser vem, a nos sa raça há de so bre vi ver no fu tu ro,e, lá bem lon ge, quan do os son da do res do pas sa do hou ve rem de ras te jar o fio de ouro de nos sas tra di ções, quan do hou ve rem de es tu dar o povo, nãono ru í do das ba ta lhas e nas chi ca nas da po lí ti ca, mas sim nas efu sões da alma, nas ener gi as do sen ti men to, os dois li vros de Melo Mo ra is Fi lho,onde seu co ra ção pal pi ta in te i ro, suas po e si as, que to das po dem re ce ber onome úni co de Can tos do Equa dor, suas des cri ções de cos tu mes, quetodas po dem ter o nome só de Fes tas e Tra di ções Po pu la res doBrasil, hão de ser cha ma dos a de por, como do cu men tos au tên ti cos; por quene les vive a gran de alma des te país; por que ne les can ta e fol ga, ou geme echo ra este mis to de en tu si as mo e me lan co lia, de sa u da de e intre pi dez, que é o gê nio lu si ta no trans fi gu ra do na Amé ri ca.

Sal ve! po e ta ado rá vel, que des pre zas te as len te jou las da moda, para con ti nu ar a amar o sol de tua ter ra e en fe i xar em tua pa lhe ta obrilho de seus ra i os! O teu amor te sal vou!

SÍLVIO ROMERO

18 Melo Mo ra is Filho

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FESTAS POPULARES

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Ca sa men to na Roça

(RIO DE JANEIRO)

Nos cos tu mes na ti vos de nos sas po pu la ções cam pe si nas há uma face tão ame na e pi to res ca, que ver da de i ra men te de li cia o ar tis ta que se ocu pa des ses as sun tos.

É na in ti mi da de des se povo in cul to, na con vi vên cia di re tacom essa gen te que con ser va os seus usos ade qua dos, que me lhorse pode es tu dar a nos sa ín do le, o nos so ca rá ter na ci o nal, de tur pa donos gran des cen tros por uma pre ten di da e ex tem po râ nea ci vi li za ção que tudo nos leva, des de as no i tes sem lá gri mas até os dias semcom ba te.

E nem se diga que so mos um povo que não tem pas sa do enem tra di ções; que não ti ve mos cos tu mes pró pri os como qual quer ou tro,só por que o pe dan tis mo me dra nos cen tros mais po pu lo sos, à som brada to le rân cia que tudo des vir tua e ani qui la.

Em to dos os atos de sua vida par ti cu lar e pú bli ca, o Bra silpos sui o ca be dal dis tin to de usan ças, no tas dis cor dan tes de cos tu mes,pou co va riá ve is, al guns de les, no Sul e no Nor te.

Daí a di fe ren ci a ção que nos se pa ra de po vos es tra nhos, e oque dá a me di da de nos so ca rá ter, de har mo nia com os nos sos me i os.

Page 18: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Erran te de vila em vila, de ci da de em ci da de, de pro vín cia empro vín cia, em bus ca de nos sas tra di ções que se ex tin guem, sem umrefle xo se quer na his tó ria na ci o nal, os ca sa men tos na roça res sal tam à descri ção de nossa pena, tão ori gi na is nos pa re cem as suas pe ri pé ci as e os seusdeta lhes, como qua dros da vida bra si le i ra no in te ri or.

Na pro víncia do Rio de Ja ne i ro, em lu ga res como Boa Espe rança, Rio Bo ni to, etc., os ca sa men tos em ge ral di vi di am-se em três ca te go ri as.

A pri me i ra com pre en dia o de pes so as da clas se rica e ele va da;a se gun da, o de in di ví du os da me di a na lo cal; a ter ce i ra, o da gen te ba i xa, se guin do-se logo após o dos es cra vos de fa zen das, de que mais tar detra ta re mos.

Embo ra es ses atos re li gi o sos, es sas fes tas nup ci a is apre sen tas sem en tre si pon tos de con tac to, o tipo do se gun do pla no, isto é, os ca sa -men tos em que o no i vo e a no i va sa íam da ca ma da in ter me diá ria, nospa re cem de fi nir me lhor os cos tu mes ro ce i ros, por isso que exor na vamcom mais lar gue za o ce ná rio da que les no i va dos ru i do sos, e im pri mi amum cu nho mais tra di ci o nal na cons ti tu i ção da fa mí lia.

Depois das pre li mi na res do na mo ro e do pe di do em ca samento, a boa nova não tar da va a ser es pa lha da por toda a lo ca li da de, por toda apo vo a ção, acom pa nha da ha bi tu al men te das par ti ci pa ções e con vi tes.

Des de logo, se o dia fi ca va de ter mi na do, os pre pa ra ti vos co -me ça vam, as en co men das do ves ti do da no i va, das lu vas, da gri nal da edo véu fa zi am-se com ur gên cia e isso ao mes mo tem po que as pri mas,os vi zi nhos, as mo ças co nhe ci das man da vam com prar na ci da de ou naslo jas pró xi mas cor tes de chi ta ou de cas sa para ves ti dos, fi tas em pro fusão,flo res de pano e en fe i tes para a to a le te a ca pri cho e de acor do com a moda.

A dona da casa e as es cra vas an te ci pa vam-se na con fec çãodos do ces sa bo ro sís si mos, na lufa-lufa dos ar ran jos do més ti cos, re co -men dan do ao ma ri do a pro vi são ne ces sá ria de vi nhos, que i jos, lom bo de por co, e mais ex tra or di ná ri os para o ban que te.

A casa era var ri da e vas cu lha da, as ser pen ti nas e os cas ti ça isfi ca vam ges sa dos até a vés pe ra, as man gas de vi dro de sem po e i ra das ecobertas com ra mos de flo res ar ti fi ci a is; e as mu ca mas e os molequinhos, olhan do para as suas rou pas no vas, es pi cha vam o be i ço, ar re ga la vamas so bran celhas, mur mu ran do ao pas sar: “Chi!... tão bo ni to!...”

22 Melo Mo ra is Filho

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A no i va, sem pre des con fi a da, as sis tia a tudo isso, sus pi ran do ains tan tes pelo de li ca do no i vo que, en tre gue a ou tros afa ze res, bem comoao de en ten der-se com o al fa i a te so bre a rou pa do ca só rio, con vi dar osami gos, pre ve nir os to ca do res de ra be ca e de fla u ta, em pra zar para o diaos vi o le i ros de fama, ra re a va as suas vi si tas, no que era des cul pá vel.

Con clu í dos os apres tos, e de po is que cor ri am os pro cla mas,na ma nhã de um sá ba do a por ta da no i va já se acha va guar ne ci da depovo e da mag na co mi ti va, que acom pa nha ria os no i vos à ma triz da vila, que às ve zes de mo ra va a lon ga dis tân cia.

Do in te ri or da casa, re ple ta de gen te e de al ga zar ra, lá vi nham as ma dri nhas e os pa dri nhos, as da mas do sé qui to, a no i va, en fim, comvéu e gri nal da de flo res de la ran je i ra, sus ten tan do-lhe a com pri da ca u dado ves ti do bran co den go sa mu ca ma, pen te a da e ri so nha, tra ja da tambémde bran co, per ma ne cen do to dos al guns ins tan tes na sa í da, à es pe ra dos ve lhos que gra zinavam lá den tro.

Nisso o no i vo, a ca va lo, os pa dri nhos e a co mi ti va de cavale i ros, que se acha vam a seus postos, se apro xi ma vam, dan do si nal aque le aum car ro de bois com tol do de es te i ra co ber to de chi ta, que che gas se,para que em bar cas sem a no i va e as ma dri nhas, as pri mas e con vi da das,evi tan do des tar te a de mo ra do pa dre na igre ja, que os aguar da va à horacer ta.

– Eh! boi!...E o car ro, ran gen do nos ei xos, pa ra va à por ta; e quan do a

noiva su bia em um ban co para en trar, das ja ne las aber tas en tor na -vam-lhe so bre a fron te sal vas de flo res, ao que o no i vo e os ca va le i rossa u da vam ti ran do o cha péu, em pi nan do os ca va los e se guin do o car ro.

O no i vo, ge ral men te ve xa do, sa cu din do o fra que bo ni to, ali sa va de quan do em quan do as cri nas de seu gi ne te bran co, sor rin do ama re loa al gu ma pi lhé ria im por tu na que lhe vi es se ro çar-lhe ao ou vi do.

Du ran te o trân si to, as ro ce i ras do car ro e o sé qui to doscavaleiros en tre ti nham-se em con ver sas ba na is, em pro vo ca ções ma li -ci o sas, sen do vul gar um ou ou tro dos acom pa nha do res le var al gumtombo na es tra da, o que des per ta va gar ga lha das, cor res pon di daspela cu ri o si da de das se nho ras que bo ta vam a ca be ça de fora e aplaudiampor sua vez.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 23

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Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 25

Che gado o ca sa men to à ma triz, o po va réu abria alas: osescra vos que ti nham par ti do adi an te se gu ra vam os ca va los, a no i va, asmadri nhas e o mu lhe rio ape a vam-se, for man do o gru po da fren te asmadri nhas e a noiva, com a sua mu ca ma, que lhe le van ta va a ca u da doves ti do, en tran do na igre ja.

A estas se gui am-se o no i vo, os pa dri nhos e a tur ba de con vi -da dos, que iam as sis tir ao ato e com par ti lhar do re go zi jo da fa mí lia.

De po is de ca sa dos, como é co mum, a no i va res sa bi a da dava o bra ço ao no i vo que a con du zia ao car ro, e o prés ti to, na or dem es tabele ci da, re gres sa va, che gan do a casa ao es cu re cer.

Ape nas vis tos de lon ge, os pais – os so gros e so gras –, se nãoos acom pa nha vam, fi ca vam às ja ne las, para re ce ber os re cém-casados;os aben çoavam e abra ça vam, es par gin do-lhes à en tra da per fu mo sasflo res, e acla man do-lhes a fu tu ra fe li ci da de.

E um to ca dor de vi o la, sa pa te an do na rua, re tor cen do-se emmo mi ces, an te pon do-se aos no i vos aca nha dos, can ta va:

Ti ra na, mi nha ti ra na,Ti ra na de lá de ba i xo; Você vai cor tar ba na nas,Qu e i ra me tra zer um ca cho.

Ti ra na, mi nha ti ra na,Ai! ti ra na de Ira já!Aqui lo que nós fa la mosTo ma ra que fos se já.

Ima gi ne-se a fer vu ra da casa, a re cep ção es tron do sa doven tu ro so par na sala res cen den te de flo res do cam po, de ador nossil ves tres.

A ra be ca e a fla u ta to ca vam, o re bo li ço era ge ral, no tan do-seins tan tes mais tar de a au sên cia da mãe da no i va, que de sa pa re ce ra notumul to.

E o qua dris ta ins pi ra do não per dia o mo men to; e al te an do apri ma, to can do nos bor dões, apro ve i tan do o in ter va lo da mú si ca, lá ia:

Page 22: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Ó se nho ra mãe da no i va,Saia fora da co zi nha,Ve nha ver a sua fi lhaComo está tão bo ni ti nha.

E os “bra vos” e as pal mas co ro a vam o can tor, o vi o le i ros domato, nos seus re pen tes oportunos.

Nis so as mu ca mas acen di am os can de la bros, as ve las nasman gas de vi dro, ou vin do-se de den tro o ba ru lho dos pra tos e as vo zesdi ri gen tes de pôr a mesa.

O pai da no i va, pre vi den te em tudo, man da ra cu i dar da ca va -lha da, dos bois do car ro, do pes so al es cra vo da co mi ti va, que mais li vre -men te se en tre ga ria à no i te às co me za i nas e ao fado.

E no sa lão a fla u ta e a ra be ca to ca vam, dan do si nal para apri me i ra qua dri lha.

Nisso a dona da casa che ga va ra di an te, cum pri men tan dono va men te os seus con vi da dos, im pri min do um be i jo na fron te pura desua fi lha, e pe din do a to dos a fi ne za de a acom pa nha rem para o jan tar.

E en tra vam...A la u ta e ex ten sa mesa api nha va-se de sú bi to, de se nho ras e

de ho mens, fi can do a ma i or par te, en tre tan to, para as sub se qüen tes, tãonu me ro sos eram os con vi vas.

Os prin ci pa is da fes ta, ocu pan do as ca be ce i ras, em seus lu ga res es pe ci a is, as pes so as mais gra das e de dis tin ção da lo ca li da de, o ban que te ini ci a va-se, e de po is de ser vi da a sopa, um trin cha dor po e ta, to man dode um trin chan te, can ta va:

Estes fran gui nhos as sa dosFo ram bem re che a di nhos,São pre sen tes para os no i vosQue fi ze ram os pa dri nhos.

E um con vi va, er guen do um copo de vi nho aci ma da ca be ça:

Ta plã... ta plã... za bum ba,Bra vo a vida mi li tar;De fen der as mo ças be lasE de po is rir e fol gar.

26 Melo Mo ra is Filho

Page 23: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O sol da do, que é va len te,Pas sa a vida a ba ta lhar;O sol da do, que é mo fi no,Pas sa a vida a na mo rar.

Hip!... hip!... ur rah!...

E as sa ú des aos no i vos, aos pais do di to so par, a to dos e acada um de per si es tron da vam à por fia; e um ou tro con vi da do, pu xandopara per to um peru as sa do, de sar ti cu la va-o, en to an do:

Este peru que aqui está,

Ontem mor reu em pa pa do;

Eu avi so ao se nhor no i vo

Que o coma com cu i da do...

Um se gun do re pen tis ta:

Da le i toa que aqui está,

Des con fi em, te nham medo,

O trin cha dor que a trin char

Olhe que lhe mor de o dedo.

E to dos, er guen do-se e em pu nhan do co pos:

Aze i to nas bem cur ti das

Têm um sin gu lar sa bor,

Só me lem bro dos ami gos

Qu an do bebo este li cor.

Hip!... hip!... ur rah!...

Ca lo ro so e ani ma dís si mo cor ria o fes tim; o en tu si as mo trans -bor da va das ex pan sões dos con vi vas como o vi nho das ta ças che i as; aale gria e a fe li ci da de trans pa re ci am do sor ri so dos no i vos e das me i gui -ces da fa mí lia.

Mas o com pli ca do jan tar de mo ra va o ba i le ro ce i ro e as dan ças tra di ci o na is.

Então o vi o leiro obs cu ro, trans pon do a sala do ban que te,pedia a pa la vra, em pu nha va a vi o la e im pro vi sa va ga i a to:

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 27

Page 24: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Si nhá no i va e si nhô no i vo,Deus lhes dê um bom es ta do:Que da qui a nove me ses Haja um rico ba ti za do.

E dos cir cuns tan tes, que se le van ta vam em mas sa, bra da vaum: É a úl ti ma sa ú de! A sa ú de de hon ra! É de vi rar! Vi vam os no i vos!...

Gato amar ra doDá para miar,A boa cham pa nhaDá para dan çar!

Este é o gato,Que ma tou o ratoQue roeu a cor daQue amar ra va a bota...Bota vi nho! Bota! Vira, vira, vira!...

Hip!... hip!... ur rah!...

E aos sons da mú si ca, que pre lu di a vam a qua dri lha, con tra ta -vam-se os pa res, o noivo e a no i va fi gu ra vam, as pri mas e os pri mosto ma vam par te, cada qual com seu bo tão de flor de la ran je ira comodistin ti vo na abo to a du ra do pa le tó e no cor pi nho.

Fin das as pri me i ras qua dri lhas, as pri me i ras val sas, o ele men to na ci o nal e dominan te – o chi ba – cam pe a va ab so lu to, lân gui do, pe neirado,bu li ço so, como a vo lú pia das nos sas no i tes mor nas e es tre la das.

E aos ti ni dos das vi o las, aos ar pe jos quen tes dos me nes tréispá tri os, a tro va desli za va so no ra, a can ti ga bro ta va plan gen te, encan tan do a no i te do no i va do e a sor te fu tu ra do nas cen te lar.

Então a no i va e o no i vo, os pa dri nhos e ma dri nhas, os con vi -da dos em chus ma, às to a das das vi o las, ao can to so no ro dos vi o le i ros,ca íam na chu la, re que bra vam na fi e i ra, aos epi ta lâ mi os dos tro va do resem suas can ti gas a esmo:

Si nhô no i vo, dê-me um doce,Si nhá no i va man da dá;Pois pela no i te adi an teSi nhá no i va pa ga rá.

28 Melo Mo ra is Filho

Page 25: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Dan ça o fado, mi nha gen te,Que uma no i te não é nada;Se eu não for dor mir ago ra,Dor mi rei de ma dru ga da.

Ao pas so que o chi ba re cru des cia bam bo le a do, ma cio, pal me -ja do, sa pa te a do, os que não dan ça vam con ser va vam-se de cos tas para as ja ne las, sen ta dos nas ca de i ras en fi le i ra das; e do belo sexo duas ou trêsre pre sen tan tes, le van tan do-se sor ra te i ras, en tra vam no quar to dos no i vos,ad mi ran do o bom gos to, pe gan do nos cor ti na dos, la van do as mãos nojar ro, bis bi lho tan do adi an ta das.

Anti ga men te era de cos tu me bo tar-se es pi nhos de ro se i radeba i xo dos len çóis, atar-se gui zos e cam pa i nhas nas ex tre mi da des dascol chas, es con der-se mes mo um in di ví duo de ba i xo da cama, para la tir,miar, can tar como galo, fa zen do de sa pon tar os no i vos, que dis pa ra vamdo quar to en tre gar ga lha das e ale gre ala ri do dos que lhes ar ma vam apeça.

E cansados os dan ça do res, ofe gan tes as ba i la ri nas, des can savamum pou co, iam to mar café e re fres cos, fi can do a mesa pos ta e cons tan -te men te re no va da para os que qui ses sem ser vir-se.

De re pen te a de sa fi na da ra be ca anun ci a va fa nho sa ou tra val sa e o bró dio pros se guia ain da.

No ter re i ro, os es cra vos ba tu ca vam, que bra vam na chu la ecan ta vam suas tro vas.

E quan do as dan ças es tran ge i ras pa ra vam, o fado rom pia nasvi o las, pon te a das pe los to ca do res da roça, no sa lão que co me ça va a acla -rar-se das bar ras lon gín quas do ama nhe cer.

E os con vi da dos, na ma i or par te, não re sis tin do à ten ta çãoque lhes bu lia na alma, pu la vam no meio, o no i vo e a no i va des pen ca -vam-se no ro do pio, e o can ta dor tri gue i ro la va va o pe i to dos cir cuns tantes com suas can ti gas va ri a das:

O fado veio no mun do Para am pa ro da po bre za,Qu an do me vejo num fadoNão me im por to com a ri que za.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 29

Page 26: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

A vi o la pela pri ma,A pri ma pelo bor dão,O ho mem pela pa la vraLeva a mu lher pela mão.

Um ca sa men to na roça era, com pou cas va ri an tes, o que aífica descri to; e es sas fes tas, que en tra vam sem pre pela no i te adi an te,dura vam por dias, na ple ni tu de da abas tan ça e da fe li ci da de.

30 Melo Mo ra is Filho

Page 27: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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Ano-Bom

Entre to dos os po vos, do mais ci vi li za do ao mais sel va -gem, as fes tas de pri me i ro do ano ce le bra vam-se, pas san do ape nas pe las mo di fi ca ções pró pri as ao de sen vol vi men to de cada cul to e à ín do le deno vas ra ças.

Tão alto quan to pos sam re mon tar os mo nu men tos his tó ri -cos, as en con tra mos, não sen do ex clu í dos, como par ti ci pan tes des sesre go zi jos re li gi o sos e pro fa nos, o ne gro d’África e o ca bo clo da Amé -ri ca.

Dos ro ma nos, que por sua vez já ha vi am re ce bi do dos gre gosa tra di ção, os pri mi ti vos cris tãos per pe tu a ram o le ga do pa gão das ce le -bra ções do Ano-Novo, co lo rin do-os dos re fle xos mís ti cos dos vi drospin ta dos de suas ca te dra is.

Entre as ci vi li za ções mais apu ra das e as mais bár ba ras, comodis se mos, es sas fes tas en con tram-se nas mi to lo gi as na ci o na is, ten docomo ob je ti vo as con gra tu la ções po pu la res pela vol ta da pri ma ve ra ou a glo ri fi ca ção da la vou ra.

Page 28: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Os pri me i ros sin to mas de as si mi la ção nos tem pos mo der nosre gis tram-nos as ca len das de ja ne i ro, ful mi na das por San to Agos ti nho eS. João Cri sós to mo, que se re vol ta ram con tra as cren ças ro ma nas ado ta -das pe los cris tãos, vin do logo após a fes ta dos Lou cos e a dos Ino cen teslu di bri ar do aná te ma dos san tos-pa dres.

Du ran te as ru i do sas fes tas da pri ma ve ra, isto é, da abun dân cia e da co lhe i ta, os pre sen tes agrí co las tro ca vam-se, a fa mí lia e de po is astri bos re u ni am-se, os sa cri fí ci os, as dan ças, os fes tins, as ce ri mô ni as pro -pi ci a tó ri as ti nham lu gar, pro vin do daí, para os po vos mo der nos, os pre -sen tes de fes tas, as vi si tas, os fol gue dos, as abu sões, as con gra tu la çõespú bli cas do dia de Ano-Bom.

A Ida de Mé dia, po rém, que tudo via atra vés de suas pre o cu pa -ções as cé ti cas, des vi ou-lhes as cor ren tes as tro lá ti cas, in clu in do-as noca len dá rio do Na tal, com ou tras pom pas e ou tros ide a is.

Des te ou da que le modo, o que é cer to é que as fes tas deAno-Bom não per ten cem a este ou àque le povo, mas à hu ma ni da dein te i ra.

Em to dos os pa í ses da Eu ro pa, es ses fes te jos in ter ca lam-seaos do Na tal e de Reis, for man do um todo a que os in gle ses cha mam de Christ mas.

Na Ingla ter ra ou na Ale ma nha, na Fran ça ou na Itá lia, o na ci o -na lis mo pá trio trans luz nes sas ma ni fes ta ções alen tan do ve lhos cos tu mes, cu jas fór mu las ja ma is se apa ga ram da lem bran ça po pu lar.

E não há fes tas mais be las em qual quer des ses pa í ses; não háho ras mais ale gres na que les la res; não há or gu lho mais le gi ti ma men tesen ti do por aque las tur bas, do que per ce ben do pal pi tar de ba i xo das for -mas da arte as suas an ti gas le gen das e os seus con tos, cons ti tu in do abase das re pre sen ta ções te a tra is do Na tal.

Jun tai a isso os pre sen tes, as sur pre sas, as vi si tas, as fe li ci ta -ções, o con che go da fa mí lia, o be i jo im pro fa na do sob a rama ver de doste tos, e te re is, com uma cen te na de cou sas mais, as des pe di das do anove lho e as en tra das de Ano-Novo.

32 Melo Mo ra is Filho

Page 29: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Esses cos tu mes se cu la res, de que da mos tes te mu nho, ain daper du ram em toda a Eu ro pa.

Mas o Bra sil é um país adi an ta do; acha ri dí cu las as tra di ções edes faz-se de las; ab sol ven do os de ma is po vos des sas fu ti li da des que en ver -go nham, tra ta de en co bri-las e mos tra-se sé rio...

No ou tro tem po não era as sim.No Rio de Ja ne i ro a fo lia toda co me ça va de vés pe ra. A ci da de,

mais ani ma da ex te ri or men te pelo con cur so de fa mí li as e de in di ví du osam bu lan tes, re ve la va o jú bi lo pú bli co, que se os ten ta va sem re ser va.

Em qual quer pra ça, em qual quer rua, quem olhas se para asja ne las, no ta ria fi si o no mi as es tra nhas, ca ras no vas, que pela ma ne i ra deapre sen tar-se, pela com pos tu ra, tor na vam-se dis tin tas de mu i tas que láes ta vam, apre ci an do o mes mo ob je to, en tre ti das pelo mes mo as sun to.

Nas in ter mi ná ve is ga le ri as de sa ca das, ja ne las de pe i to ril epos ti gos, vi am-se mo ças tou ca das de flo res na tu ra is ao lado de al gu masque não as ti nham, ho mens ves ti dos de brim bran co con ver san do comamigos tra ja dos como para as re cep ções ín ti mas, ve lhas fol ga zãs e gri ta deiras fa lan do para as vi zi nhas de de fron te, cri an ças tra qui nas e ar re ne ga das

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 33

Pre sen tes de Ano-Bom

Page 30: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

tre pan do nas gra des de fer ro das sa ca das, sus pen den do dos es pi gões asma ça ne tas de chum bo das ex tre mi da des, que, às ve zes, lhes es ca pan dodas mãos, ma chu ca vam-lhes os pés.

E o que que ria isso di zer?Eram as fa mí li as que ti nham che ga do da roça para pas sar o

Ano-Bom com os pa ren tes, con vi dan do-os para a vés pe ra de S. João em seus sí ti os e fa zen das...

Aque las cu jas re la ções não iam além da cor te, re u ni am-se igual -men te, com ple tan do o as pec to pi to res co des sa cena, mais ou me nospo pu lo sa, se gun do os tem pos em que es ses cos tu mes eram de ri gor.

Com an te ce dên cia, já os pre sen tes de fes tas prin ci pi a vam a cho -ver, e a es cra va tu ra a fa zer-se in te res sa da nas fe li ci da des de seus se nho res.

E as tra di ções con so li da vam as ba ses da fa mí lia, e o re i na dodas su pers ti ções ilu mi na va-se da es pe ran ça.

O dia de Ano-Bom era a épo ca em que os mem bros de umames ma fa mí lia con gre ga vam-se. Vin do por ve zes de gran des dis tân ci as,pas sa vam jun tos, no meio do pra zer e das fe li ci ta ções, até de po is de Reis.

Para ver ama nhe cer o Ano-Novo, nin guém dor mia an tes dameia-no i te, pois era da cren ça po pu lar, que quem se con ser vas se com osolhos aber tos até de po is da que la hora, ve ria rom per a au ro ra de anosse guin tes.

Então, con clu í das as mag ní fi cas ce i as, as can to ri as ao Me ni noem seu pre se pe, no fim das pi lhé ri as dos ve lhos ma tu tos, de diá lo gos ex -tra va gan tes, os ino cen tes na mo ros fer vi am nas sa las, ao di a pa são do ba -ru lho dos pra tos que se la va vam nas co zi nhas, das ras ca das das se nho ras com as ne gras, do res so nar dos me ni nos es ti ra dos nos so fás e nas ca de i -ras da sala da fren te, à es pe ra do si nal do Ano-Novo.

Qu an do o re ló gio ba tia me ia-noite, uma onda ma ru lho sa deale gria es pra i a va-se pela as sem bléia, ao pas so que as mu ca mas, os mo le co -tes, as cri as em fral das de ca mi sa, pen du ra vam-se às sa ca di nhas da es ca daque de i tava para o quin tal, pas ma das de nada des co brir, mas com osolhares fi tos nas tre vas que amor ta lha vam o ano ve lho.

– Boas sa í das e me lho res en tra das! di zi am os pais aos fi lhos,as ir mãs aos irmãos, os pa ren tes e ami gos en tre si, abra çan do-se,beijan do-se, sal tan do de con ten ta men to.

34 Melo Mo ra is Filho

Page 31: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Nas ca sas em que ha via ba i les, o mes mo cos tu me co ro a va atra di ção, aos sons da mú si ca, ao bri lho das ser pen ti nas fa is can tes, aosri sos que cor ri am lím pi dos de uns lá bi os de rosa.

Isso, po rém, que pro lon ga va a fes ta, mu da va com ple ta men teno dia pri me i ro. Da ma nhã à tar de, as vi si tas fa zi am-se, des fi la vamnu me ro sos os por ta do res de pre sen tes, sen do de pre fe rên cia con tem -pla dos, nas fre gue si as, o vi gá rio, os mé di cos e o fis cal.

As ban das mi li ta res to ca vam às por tas e nos sa guões das ca sas dos ge ne ra is, dos mi nis tros, das pes so as gra das, dan do as boas fes tas;com pen san do-lhes a aten ção al gu ma cé du la avul ta da ou pe ças de di nhe i ro em ouro.

Enquan to nos ar ma zéns de co mes tí ve is o co mér cio en ca i xo -ta va dú zi as de gar ra fas de vi nho, acon di ci o na va que i jos do re i no, pre -sun tos, ca i xas de fi gos e ame i xas, di ver sos gê ne ros des ti na dos aos fre -gue ses do ano; en quan to do con ven to da Aju da, ri quís si mas ban de jas de pra ta, com a fir ma do in di ví duo pre sen te a do, ar ma das de do ces, sa íamumas após ou tras; era cu ri o so de ver-se o que pas sa va nas ruas, en tre -ten do os abe lhu dos que co men ta vam dos so bra dos.

Por toda a par te en con tra vam-se ne gros do ga nho, de ca mi sade al go dão por fora da cal ça ar re ga ça da, con du zin do em ces tos um le i -tão de bar ri ga para cima, amar ra do de pés e mãos, com o fo ci nho aper -ta do com um bar ban te gros so, e guin chan do, acer ca do de ga li nhas, pa -tos e mar re cos, com a ca be ça pen den te das be i ra das do ces to e en fe i ta -dos nas asas com la ci nhos de fita. Para con tra pe so, o ga nha dor não de i -xa va de le var um galo ou um peru na mão li vre, tam bém en fe i ta do de fi -tas es tre i tas ver des e azu is.

Ao pre sen te era cos tu me acom pa nhar um car tão de vi si ta ouuma car ta, con ce bi da mais ou me nos nes tes ter mos:

“...Boas sa í das e me lho res en tra das lhe de se jo. Inclu so, en con -tra rá vos se me cê um le i tão zi nho, umas ga li nhas e um peru para mais umpra to de seu jan tar...”

Aqui e além apa re ci am car re ga do res com ca i xões de vi nho ou com ca i xas de açú car, cri a dos de li bré pre ce den do es cra vos en vi a doscom dá di vas prin ci pes cas, tais como col chas da Índia, apa re lhos da Chi na, ba i xe las de pra ta, ca va los de mon ta ria, fa zen do con tras te com a cri ou laou mu la ta de casa me nos rica, que se guia com um pão-de-ló, um

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 35

Page 32: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

bolo-in glês, um pas te lão numa sal va mo des ta, co ber ta com uma gazecor-de-rosa, com um tope de flo res ar ti fi ci a is no cen tro, atra ves sa do por um car tão ou um es cri to.

Na Ba hia, além de to das es sas ofer tas, es ta va nos há bi tosdar-se es cra vos no dia de Ano-Bom. Assim, com um mo le qui nho, umamo le ca, um ca sal de ne gros no vos, ob se qui a vam-se as me ni nas, as mo çasou os che fes de fa mí lia.

Na que la pro vín cia, onde as ca de i ri nhas es ti ve ram cons tan te -men te em uso como meio de trans por te, não ca u sa va es pan to en tra rempor uma casa dois ne gros de ca sa ca de por ti nho las com vi vos ama re losou ver me lhos, de cha péu de ole a do com ga lão, cal ça cur ta e um pau noom bro, acom pa nhan do o por ta dor de uma car ta na qual se lia: “...Como lem bran ça de Ano-Bom ofe re ço-lhe essa pa re lha de ne gros de ca de i ra,pe din do des cul pa de não ser cou sa su fi ci en te...”

A isso não se li mi ta vam os pre sen tes. Pes so as ha via que ofer -ta vam ca sas e pa lá ci os. O paço de S. Cris tó vão foi um pre sen te deAno-Bom, fe i to pelo ne go ci an te Eli as Antô nio Lo pes a D. João VI, queo ven deu ao Esta do, quan do se re ti rou para Por tu gal.

36 Melo Mo ra is Filho

Ne gros de ca de i ra

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Con si de ra va-se uma gran de fal ta, um cri me, a au sên cia dospa ren tes mais che ga dos no jan tar da fa mí lia. Nin guém re le va va essafal ta, pois acre di ta va o povo que o que se fa zia no pri me i ro do ano, sefa ria o ano in te i ro.

Daí se de pre en de que cada um que ria es tar nes te dia com osseus, que to dos ves ti am rou pa nova, que se brin ca va, to ca va, can ta va, afim de que o con ce i to po pu lar se re a li zas se em sua ple ni tu de pres sa gi o sa.

Os es cra vos, que nun ca fo ram es tra nhos às ale gri as ou des -gra ças do nos so lar, ga nha vam fes tas, ti nham fol ga, di ver ti am-se tam -bém.

Por oca sião dos ban que tes fi dal gos ou dos jan ta res me nosopu len tos, ao ca lor dos brin des, ao ala ri do da can ção:

Como can ta o pa pa ga io,Como can ta o pe ri qui to...

os con vi vas en tu si as ma dos pro fe ri am lon gos dis cur sos, os ra pa zes re -ci ta vam col che i as, as mo ças tí mi das e ver go nho sas aba i xa vam os olhosàs pa la vras “amor”, “meu bem”, re fer ven do a ani ma ção nas sa ú desem hon ra aos mais ve lhos, à fa mí lia re u ni da.

As vi si tas ofi ci a is e as de ami za de fa zi am-se im pres cin dí ve is.Ha via cor te jo no paço, os pre se pes per no i ta vam ilu mi na dos, e – boasen tra das – boas fes tas – eram mo e da cor ren te de ci vi li da de en tre apo pu la ção.

De po is de cer to pe río do, quan do o Bra sil fez tim bre em imi -tar o es tran ge i ro no que ele tem de pior, en ten deu que, para pa re cer-lhebem, cum pria des qui tar-se das usan ças tra di ci o na is, quan do eles asman têm in tac tas.

Não com pre en den do este país que nin guém pode ter sor ri sos nas ter ras para onde vai em bus ca de for tu na, su pôs que a cou sa as simse pas sa va lá por fora, e anda pre o cu pa do com um fu tu ro que não lheper ten ce.

Das nos sas fes tas nin guém mais se lem bra; os la ços de fa mí lia qua se não exis tem; do dia de Ano-Bom, de gran di o so e ex pan si vo queera, nem nos res tam ves tí gi os!

E em tro ca de todo esse pas sa do nos im pin ge a Eu ro pacro mos e fo lhi nhas!

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 37

Page 34: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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Car na val

(RIO DE JA NE I RO)

Não é de hoje a his tó ria das ve sâ ni as hu ma nas.

O car na val, que é uma fre no pa tia, fi lia-se às mais al tas ci vi li za -ções, exi bin do-se ru di men tá rio en tre os po vos sel va gens. As se nha dosQu e ru bins egíp ci os, das Sa tur na is ro ma nas, das Ba ca na is gre gas, da fes ta dos Ino cen tes e dos Lou cos, de que fa lam as crô ni cas da Ida de Mé dia, é a mes ma do car na val de Ve ne za, de Roma, de Pa ris, do Rio de Ja ne i ro edas tri bos ama zô ni cas.

Entre to dos os po vos en con tram-se as mas ca ra das – des de oIndo – que, como pen sa Vol ney, des fi gu ra va o céu, o me ta mor fo se a va,até os nos sos tu ca nos, que to ma vam más ca ras de fo lhas e de cas cas deár vo res, de ter ra e de ca be ça de ani ma is, para as fes tas do Bu i an té.

S. João Cri sós to mo con de na va os de bo ches e as mas ca ra dasnas igre jas; e o Papa Ino cên cio III as ver be ra va por meio de uma de cre tal– “Dão-se al gu mas ve zes nas igre jas es pe tá cu los e di ver ti men tos deteatro, e não so men te in tro du zem nes ses es pe tá cu los e nes ses di ver ti mentosmons tros mascara dos, mas ain da em cer tas fes tas os diá co nos, os pa dres e sub diá co nos per mi tem-se a li ber da de de fa zer toda a cas ta de lou cu ras e pa lha ça das...

Page 35: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

“Eu vos con ju ro a ex ter mi nar este cos tu me...”O car na val im pli ca o uso da más ca ra e dos dis far ces; e a

más ca ra era usa da pe los trá gi cos gre gos e ro ma nos.Nas Ba ca na is e nos es pe tá cu los ha via más ca ras que ex pri mi am

o ódio, a lu bri ci da de, a sá ti ra...Em Fran ça, des de o sé cu lo XIV, diz o bi blió fi lo Jacó, as

másca ras fo ram ado ta das: Fi li pe o Belo ti nha o car na val como o fol gue do de sua predi le ção.

Se gun do o re da tor do Jour nal de Pa ris, ci ta do pelo ro man cis tados Nou ve a ux ro mans de Pa ris, “uma sin gu lar mas ca ra da teve lu gar no re i na do de Car los VI, no ce mi té rio dos Ino cen tes. Em uma ação fan tás ti ca,cha ma da Dan ça Ma ca bra, in di ví du os de am bos os se xos, dis far ça dos emgen te de to das as con di ções, des fi la vam ante a Mor te, que im pas sí vellhes ou via as que i xas. Pe di am-lhe a pro lon ga ção da vida; uns para re a li -za rem pro je tos de am bi ção, ou tros para go za rem de sua nova for tu na,to dos para al gu ma qui me ra. A Mor te, de po is de chas que ar em ver socom os su pli can tes, des car re ga va-lhes a fo i ce”.

A mas ca rada da Dan ça Ma ca bra es te ve mu i to em voga naAle ma nha e na Su í ça.

Hen ri que III dis pen sa va ca lo ro sa ani ma ção a esse re go zi jopú bli co. À se me lhan ça dos va li dos do rei, os no bres e as se nho ras dotom mas ca ra vam-se.

Acres cen ta o his to ri a dor Les to i le que aque le so be ra no gos ta vatan to de fan ta si ar-se, que de i ta va-se de más ca ra, in te ri or men te un tu o sa epin ta da.

No Bep po de Lor de Byron, o po e ta en ca re ce o car na val deVe ne za: Go et he no Fa us to é me nos en tu si as ta pelo car na val de Roma.

No tem po de Luís XIV as cor te sãs e as mu lhe res da modata tu a vam-se exa ge ra da men te, e usa vam de si na is pre tos no ros to parafa ze rem-se mais lin das; mu i tas ha via que so bre a al vu ra da face as sen ta -vam es tre las e me i as-luas de ta fe tá, que con cor ri am para trans for má-las.

A re vo lu ção aca bou com as mas ca ra das em Fran ça, re a pa -re cen do elas mais tar de nas ruas e te a tros.

Uma co in ci dên cia: o car na val fran cês ago ni za va, quan donas cia o car na val bra si le i ro.

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O car na val do Rio de Ja ne i ro co me çou após a pro i bi ção dojogo do en tru do pelo de sem bar ga dor Si que i ra, úni co dos nos sos che fesde po lí cia de quem a tra di ção re pe te o nome com se gu ran ça e res pe i to.

Mu i to an tes, ina u gu ra ram-se os ba i les mas ca ra dos, de vi dos os pri me i ros à ini ci a ti va da can to ra Del mas tro, que para aqui vi e ra com acom pa nhia lí ri ca de Mme. La gran ge.

Estes ba i les ti ve ram lu gar onde é hoje o te a tro da Fê nixDramá ti ca, que com pre en dia a gran de chá ca ra da Flo res ta.

Su ce de ram-se a es tes os do Ânge lo, na chá ca ra da Rua doCon de, na Ci da de Nova, e os do Ni co la, no Lar go do Ro cio.

Ao cres cen te e ines pe ra do fa vor do pú bli co cor res pon de ramos te a tros de S. Ja nuá rio, Lí ri co Flu mi nen se, S. Pe dro e Gi ná sio, quepara o mes mo fim abri ram as suas por tas, acom pa nhan do-os o Clu beFlu mi nen se, que só ad mi tia os só ci os, e o Pa ra í so que ace i ta va a to dos.

Em que con sis tia o nos so pri mi ti vo car na val ao ar li vre? Éfá cil de co gi tar: em pe que nos gru pos de más ca ras er ran tes, um prin cezdes gar ra do, e as sim por di an te.

Em 1854, já al guns car ros com más ca ras apa re ce ram e dasja ne las ati ra ram-lhes flo res. O Jor nal do Co mér cio, no ti ci an do o fato,acon se lhou que para o ano fu tu ro se re u nis sem, o que da ria mais re le voao fes te jo.

Até en tão a lou cu ra des co bria o pra zer ao som da mú si caes co lhi da, inun da va-se da luz dos lus tres e can de la bros, mi ti ga va a sedepro vo ca da pe las dan ças ar den tes nas ta ças de cham pa nha, e re quin ta vade gozo na que les abri gos res guar da dos e ide a is como as cis mas vo lup -tu o sas dos cren tes de Ma o mé.

Era à no i te que na que las Lu per ca is es plên di das as mu lhe rescoro a vam-se de fas ci na ções, que os mo ços de qua li fi ca ção dis tin tadissi pa vam-se atra ídos.

No Clu be, es pe ci al men te, quan ta per di ção no lan gor mor noda be le za aris to cra ta, no ro çar de um cor po de neve, num cis mar vago,ao ter ra ço ou à ja ne la, ten do por tes te mu nhas o olhar pes ta ne jan te dases tre las e o céu pro fun do e es cu ro como as ma rés in cer tas do des ti no!...

Mas a luz do dia ti ve ra in ve ja da luz dos can de la bros; a voz do jor na lis ta é o fiat das socie da des; e a Lou cu ra, no seu des per tar de

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 41

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sonâm bu la, em bo ca as fan far ras no meio das pra ças, com o seu sé qui tode cem es cra vas e de mi lha res de ca ti vos.

Em ja ne i ro de 1855 já as fo lhas diá ri as anun ci a vam que ocar na val se ria mag ní fi co: as fa mí li as mais con si de ra das, a mo ci da de mais di nhe i ro sa e ilus tre, as so ci a vam-se à em pre sa do dia.

Ju ris con sul tos, mé di cos, jor na lis tas, mi li ta res, al tos fun ci o ná ri os pú bli cos, ne go ci an tes, fa zen de i ros, tudo quan to a so ci e da de flu mi nen sepos su ía de se le to ab sor via-se numa só idéia, num só pen sa men to.

No Lar go do Ro cio e em mu i tís si mas ruas, as ca sas de ven der e alu gar ves ti men tas mul ti pli ca vam-se. Nas ca sas par ti cu la res viam-se ove lu do e a seda, as es pi gui lhas e os bor da dos a ouro; nos al fa i a tes, oscos tu mes es pe ci a is; nos ou ri ves, ade re ços fi nís si mos.

De co ra vam-se sun tu o sa men te os te a tros. Nos ce ná ri os, su -bin do até as bam bo li nas, os es pe lhos cin ti la vam como va gas des cen dode fan tás ti cas mu ra lhas: pal me i ras à en tra da de gru tas, cas ca tas ar ti fi ci a is,flo res e per fu mes, fa zi am su por que na que les sa lões enor mes se iri amasi lar as fa das dos con tos das Mil e Uma No i tes.

Cá fora o co mér cio abria pe sa da bol sa ao ar tis ta mais há bil no en fe i te das ruas, ao jar di ne i ro mais ze lo so no cul ti vo das pal me i ras ear bus tos de or na men ta ção, a quem mais des lum bran tes er gues se as ar -ca ri as ilu mi na das, ao pin tor de mais ima gi na ção e es pí ri to no aca ba dodos es cu dos im plan ta dos de tro féus, onde se liam epi gra mas e qua draschis to sas.

Nos co re tos em pro fu são pre ga vam-se ban cos para a mú si cae co lo ca vam-se fi gu ras que sim bo li za vam per so na gens e acon te ci men tos ri dí cu los.

Nos pri mi ti vos car na va is a in fluên cia era ta ma nha, que podedi zer-se que um ter ço da po pu la ção mas ca ra va-se.

E tan to é ver da de, que os di re to res de te a tros ad ver ti am aopú bli co que se ria ve da do o in gres so nos ba i les a quem não se apre sen -tas se fan ta si a do.

Em 1855 fa zia a sua pri me i ra pas se a ta o Con gres so dasSu mi dades Car na va les cas.

Antes do dia 23 de fe ve re i ro, em que ca í ra o Entru do, umaco mis são com pos ta do Dr. Jo a quim Fran cis co Alves Bran co Mu niz Barre to,

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Co ro nel Po li do ro da Fon se ca Qu in ta ni lha Jor dão e do Dr. José Mar ti ni -a no de Alen car, di ri giu-se a S. Cris tó vão, pe din do a S. M. o Impe ra dorque vi es se com as prin ce sas ao paço da ci da de hon rar com a sua pre sen -ça o car na val do ano e as sis tir à pas sa gem do Con gres so.

Des ta so ci e da de ti ve ram a ini ci a ti va no tá ve is ho mens de le tras e jo vens es cri to res, cujo ta len to im pu nha-se pelo bri lho pro gres si vo.

Estes le a is com pa nhe i ros de tan tas gló ri as, que res plan de cemdo pas sa do, fa zi am par te da re da ção do Cor re io Mer can til e cha ma vam-seHen ri que Cé sar Muz zio, Pi nhe i ro Gu i ma rães, Ma nu el Antô nio deAlme i da, J. de Alen car, Au gus to de Cas tro, Ra mon de Aze ve do e ou tros, que sa u da vam o fu tu ro en tre um ar ti go de fundo, uma po e sia, umfolhetim, e o de sa bro char das es pe ran ças na ala me das sem pre encanta do rasda pri me i ra moci da de.

Fe li zes tem pos aque les em que Alves Bran co, F. Ota vi a no,Fir mi no Ro dri gues Sil va e Pa ra nhos re gi am os mo ços, por que eles viama pena de ouro na mão do mes tre e do ami go!

Afas ta dos des se gru po, mas co nhe ci dos de bo ni to nome, aeles re u ni am-se Jo a quim de Melo, Fran cis co Au gus to de Sá, os doisFa ros, Pa lha res, Cris ti a no Stock me yer, Ho rá cio Urpia e mais, que for ta -le ce ram o em pre en di men to como for ma e como idéia.

Nas tar des do do min go as ban das mar ci a is to ca vam; os chi -cards, os ti tis, os flam ba rás, os pi er rots, os dé bar de urs, os do mi nós, os zés-pe re i ras,os D. Nu nos e os ca va le i ros de capa e es pa da per cor ri am a cida de. Oscar ros de mas ca ra dos não ti nham con ta. Dos so bra dos des do bra vamcol chas de da mas co e en tor na vam flo res; os es ta los ful mi nan tes imi ta vamas cre pi ta ções das fo gue i ras e a mul ti dão acu dia a vá ri os lu ga res, cu ri o sae fes ti va.

No ano a que nos re fe ri mos, os más ca ras de es pí ri to tor na -ram-se sa li en tes. Um fran cês hou ve que, no Pro vi só rio, in tri gou a toda a gen te. Este más ca ra en ver ga va um cos tu me me ta de pre to e me ta debran co.

Muitas pes so as ain da se re cor dam de um in di ví duo que,tre pa do numa sa ia-balão de pro por ções co los sa is, dis tri bu ía pe las ja ne las po e si as, tro can do pi lhé ri as.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 43

Page 39: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Con se cu ti vo este car na val à ilu mi na ção a gás des ta ca pi tal,jun to a um mi ne i ro que mon ta va num boi, con quis tou gos to sas gar ga -lha das um su je i to en fe za di nho, es can cha do numa ju men ta bran ca, ten do em toda a exó ti ca ves ti men ta es ca das e lam piões de pano, re cor ta dos eco si dos.

Pi sa va-se so bre fo lhas de ca ne la e man gue i ra, sa cu dia-se docha péu ro sas e jas mins, co ra va-se à in dis cri ção de um más ca ra que se -gre da va (em voz alta) o que vira e o que não vira.

Na Pe ta ló gi ca do Lar go do Ro cio, Pa u lo Bri to, Te i xe i ra eSou sa, Cons tan ti no Go mes de Sou sa, La u rin do Ra be lo, Za lu ar, o ba cha -rel Gon çal ves, Cas tro Lo pes, José Antô nio, Bra ca ren se e Ma cha do deAssis, atro pe la vam os prin ce ses que en tra vam e os de sen xa bi dos quepas sa vam.

Qu an ta lem bran ça ori gi nal, quan to de sa pon ta men to en gra ça do, quan ta cor ri da de ven ci do!

Uma vez La u rin do Ra be lo es ta va na por ta. Um mas ca ra do,ves ti do de ca pim, apro xi ma-se. O po e ta fá-lo pa rar e diz-lhe, tor cen do o bi go de:

– Meu ami go: o se nhor, de po is de di ver tir-se, come a rou pa,não é as sim?

Ao que o in ter lo cu tor nada res pon deu, per tur ba do, por cer to.O im pe ra dor, a im pe ra triz, e as prin ce sas ob ser va vam do pas -

sa di ço do pa lá cio a ani ma ção dos fes te jos, es pe ran do um pou co re ti ra dospe las Su mi da des, cuja tar dan ça os im pa ci en ta va.

Por vol ta das 5 ho ras da tar de, a tur ba to ma va as sa í das deonde o clan gor dos cla rins e o tro pel dos ca va los avi zi nha vam-se.

O povo abria-se em fi le i ras de fron te do paço; de en vol ta coma mul ti dão os ve lhos ca be çu dos, de ca ja do e lu ne ta, sus pen di am no ar asenor mes más ca ras de pa pe lão, sa ra co te an do; os di a bi nhos bar bu dos re vi -ra vam a más ca ra, en ro lan do à cin ta a ca u da ver me lha... A ex pec ta ti va era inex ce dí vel!

E os sons se es cu ta vam de per to, de mu i to per to...A fa mí lia im pe ri al che ga va às sa ca das, e os vi vas e ur ras, como

uma pi râ mi de so no ra, que en fi as se a grim pa na imen si da de, ti nham porbase on du lan te o pas mo de toda aque la po pu la ção.

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Logo após, trans pu nha o Lar go do Paço a ban da mar ci al doCon gresso das Su mi da des Car na va les cas, ves ti da com o pi to res co cos tume dos cos sa cos da Ucrâ nia.

Os cla rins es co ce ses do re gi men to dos high lan ders for ma -vam-lhe a re ta guar da, an te ce den do ao car ro de D. Qu i xo te, o ca va le i roda Man cha, que fa zia tre mu lar, com a ga lhar dia de um he rói de Cer vantes,o pen dão ad mi ra vel men te tra ba lha do das Su mi da des.

To dos os ca le ches – e de vi am ser mais de doze – eram puxa -dos a duas pa re lhas lin dís si mas, aja e za das com gran de za. So bre cadacarro de sen ro la va-se rica col cha de da mas co co ber ta de ren das al vís si mas; e, em cima das al mo fa das, ou aos pés dos per so na gens, ces tas com pe -quenos bu quês, ca i xi nhas com es ta los ful mi nan tes, grãos-de-bico e fe i jões con fe i ta dos, que cada um ati ra va aos es pec ta do res das ja ne las e à gen teaglo me ra da nas ruas.

No meio de bra vos e flo res, o pri me i ro gru po de ca va le i rosfoi de um su ces so ma ra vi lho so. Era um gru po his tó ri co, re pro du zi docom tan ta pro pri e da de e luxo no tra jar, que não há quem o ti ves se vis toque dele não se re cor de des lum bra do. Esses ca va le i ros eram Ni co lau I,Impe ra dor de to das as Rús si as, Abdul-Met jid, o se nhor de Istam bul, um gre go, o Almi ran te Du guay-Trou in, Mar co Spa da e um dra gão prus si a noda Mor te.

Pa ran do a ins tan tes, re fre an do os gi ne tes aris cos, jo ga vam àsse nho ras, du ran te o tra je to, ra mos de flo res, den tro dos qua is me ti amum car tão de vi si ta, que ti nha por fim de cla rar o nome dos per so na gensque re pre sen ta vam. Por exem plo:

“Ni co lau I cum pri men ta a V. Exª, por quem mor re de amo res.”Ca le ches com ba ya de ras, man da rins, no bres do Cáu ca so, Ben -

ve nu to Cel li ni, Fer nan do o Ca tó li co, o Du que de Gu i se; gru pos a ca va lo,ca rac te ri za dos como o Du que d’Alba, Car los V, o Con de de Pro ven ça,Ta deu Ko sci us co; fa e to nes em que se re pim pa vam o Dr. Dul ca ma ra,pre go e i ros, etc., cons ti tu íam o pom po so prés ti to do Con gres so que, emsua mar cha tri un fal por uma es tra da de fo lhas ver des e aro má ti cas, aodar de jar das lu zes que se me lha vam abó ba das de fogo, às acla ma çõespo pu la res e às ca ta du pas de flo res e har mo ni as, en tra va vi to ri o sa men teno gran de car na val.

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Impos sí vel fora des cre ver o en tu si as mo das mul ti dões! Paraca mi nhar no pas sa do, só a ima gi na ção es cla re ce a tre va!

Na no i te an te ce den te, o ba i le das Su mi da des mar ca va no tá velacon te ci men to, por isso que, como ba i le à fan ta sia, ain da ne nhum ou troen la çou com tan to bri lho e for mo su ra, a no bre za e o ta len to.

O Clu be Flu mi nen se, ador na do com o ma i or es plen dor, era o pa lá cio das re pre sen ta ções fi dal gas. As mo ças mais be las, mem bros doMi nis té rio, do Se na do, do cor po di plo má ti co, ge ne ra is, po e tas, li te ra tos,jor na lis tas, fun ci o ná ri os pú bli cos, etc., aí se acha vam dan do mais re al ce à gran di o sa fes ta.

Sem ro te i ro de ter mi na do, a pas se a ta da que le ano re a li zou-seao aca so; e depois de per cor re rem o Ca te te, vol ta ram à chá ca ra daFlores ta, de onde sa í ram, dis per san do-se afi nal.

Na ter ça-feira fi ze ram o en ter ra men to do car na val. As pom -pas fu ne rá ri as do deus Momo não po di am ser mais so le nes. O prés ti tose guiu a pé: car re ga do por do mi nós, o fé re tro sim bó li co foi de pos to numca ta fal co er gui do de ba i xo das ar ca ri as ilu mi na das da Rua das Vi o las. Aban da mi li tar to cou a mar cha fú ne bre, um mem bro da co mis são dosfeste jos re ci tou um dis cur so, ter mi na do o quê, foi trans por ta do o ata ú de,es col ta do pelo Con gres so, ao te a tro Pro vi só rio.

Du ran te o tra je to, as es tron do sas de mons tra ções ex ce di am do en tu si as mo. Vi vas, po e si as, alo cu ções bur les cas na Pe ta ló gi ca, ilu mi na -ção das ruas e do edi fí cio do clu be, ban de i ras e mú si cas, as si na la vam-lhe os tri un fos.

À en tra da do Lí ri co, as sa u da ções da pla téia e dos ca ma ro tesnão fo ram me nos sig ni fi ca ti vas.

Quan do o Con gres so das Su mi da des Car na va les casbanque te a va-se nos sa lões, as pol cas, os ga lo pes, as qua dri lhas e asval sas res piravam ape nas, su fo ca dos pe los sons dos gui zos e das trom pas, dos gri tos es trí du los, da vo ze ria con fu sa e do ba ter dos pés de um lou coem de lí rio – o Ba i le Mas ca ra do!

Des tar te ina u gu ra da a fes ta, fora de bal de que rer de tê-la nassuas ce le bra ções anu a is.

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Page 42: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

As Su mi da des, er guen do ar cos tri un fa is, pre pa ra vam o ca mi nhoaté hoje tri lha do pelo car na val do Rio de Ja ne i ro, em bus ca do tem plodo deus Momo, uma das mais pal pi tan tes in di vi du a li za ções das bi zar ri as do es pí ri to hu ma no.

E a União Ve ne zi a na, que apa re ce ra mais tar de, cha ma oCon gres so de ir mão, e dis pu tam-se a pri ma zia. Ambos têm nas mãos ataça dos três dias, que fer ve de ri sos e de es que ci men to.

Com a fron te en gri nal da da das ro sas pá li das da fo lia, como as mu lhe res da Ba bi lô nia, o Con gres so e a União an te ci pam-se no re quin te do pra zer.

A Eu ter pe Co mer ci al, so ci e da de de mú si ca, trans for ma-se em Zu a vos e, ano por ano, o car na val adi an ta-se nas suas jor na das ru i do sas.

Entre tan to, o Con gres so, du ran te o seu re i na do, cam pe ouab so lu to. Os seus ba i les e os seus prés ti tos fi ca ram úni cos.

*

Até 1877, a fi si o no mia do car na val era mais ex pan si va, maispo pu lar. To dos os te a tros da vam ba i les; as ruas e pra ças de co ra vam-secom am pli tu de e pro fu são; car ros de más ca ras per cor ri am as ruas; osgru pos fan ta si a dos eram inú me ros; e os más ca ras iso la dos fa zi am rirpela ori gi na li da de das idéi as, des ta can do-se pelo es pí ri to.

Enquan to um prés ti to des fi la va e um ou ou tro gru po maisavul ta do exi bia-se vis to so pela ruas prin ci pa is, os más ca ras de to das asca te go ri as en tre ti nham, em quan ti da de pro di gi o sa, to das as aten ções.

Sen tia-se que a ci da de saía fora de sua vida ha bi tu al, e que seu as pec to ex te ri or era um re fle xo pá li do da ale gria pú bli ca.

Os te a tros em ban de i ra dos, o co mér cio das ves ti men tas, co re tos,mú si cas e ru mo res ge ne ra li za dos, cons ti tu íam o cli ma do do min go, que,des de as duas ho ras, trans mi tia o con tá gio da lou cu ra à po pu la ção in te i ra.

Du ran te os três dias ha via o car na val das ruas, dos te a tros, doClu be, dos sa lões. Mu i tos gru pos or ga ni za ram-se, cada qual com maisele gân cia e acen tu a da ca rac te rís ti ca.

A Boê mia, pre ce den do os Cro má ti cos, apre sen tou-se nos te a tros com es tra nho lu zi men to. O ves tuá rio era o se guin te: blu sa de seda, deman gas cur tas, fran ja da de ouro, ma no plas de ver niz, cal ção de ca mur ça

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 47

Page 43: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

e jus to, bo tas à Fer nan do, fa i xa de co res vi vas, ar go lões de me tal nasore lhas, ca be le i ra cres pa, dis tin guin do-se pe los ca pa ce tes en ci ma dos por pás sa ros, lan ter nas, qui me ras, etc., cujo efe i to era ad mi rá vel.

Re cor da mo-nos de um des ses chi cards, que so bre o ca pa ce tede cou ra ce i ro prus si a no os ten ta va um pe na cho es car la te e bran co, demais de um me tro de al tu ra.

Esses boê mi os anun ci a vam-se pelo gri to es pe ci al, de que falaHen ri Mur ger.

O Clu be X, do qual ain da se fala com sa u da des, com pu -nha-se igual men te de ri quís si mos e es pi ri tu o sos chi cards, ini ci a do res doscar ros de idéi as, que com tan ta van ta gem fo ram apro pri a dos pe las so ci e da -des ulteri o res. As da mas do Clu be X fan ta si a vam-se com es me ro eprima vam pelo con jun to das for mas. Da pas se a ta que fez o clu be,acom pa nha do de ca me los, há mu i to quem se lem bre.

O dis tin ti vo dos só ci os era um C e um X no alto do ca pa ce tee nos es cu dos.

Não nos pre o cu pan do de gru pos vul ga res, fa le mos de umaan ti ga so ci e da de, que re ti rou-se das fo li as car na va les cas, por que já nãoti nha mais lou ros a co lher – os Estu dan tes de He i del berg.

E quem eram es tes es tu dan tes?Na pri mi ti va, ra pa zes do cur so mé di co, al guns em pre ga dos

pú bli cos, e pou cos, mas de boa co lo ca ção, do co mér cio.Esta so ci e da de não fa zia pas se a tas: dava seus ba i les, ou con -

cor ria aos do Lí ri co, Gi ná sio e S. Pe dro.Pelo pes so al es co lhi do, per ce be-se o su ces so de sua exis tên cia.Qu an do os Estu dan tes de He i del berg trans pu nham os sa lões,

a fina crí ti ca, a in tri ga es pi ri tu o sa, a pi lhé ria ino fen si va, en tra vam emcon tri bu i ção. As fa mí li as nos ca ma ro tes e os más ca ras que fla na vamnos in ter va los da dan ça, pu nham-se em guar da para o riso e para ode sa pon ta men to.

O seu tra jar era es pe ci al, se gun do o es ti lo uni ver si tá rio. Eis ouni for me: so bre ca sa ca cur ta abo to a da, cal ção-ca mur ça, bo tas de mon tar,fa i xa, es pa da, boné sem aba, mas cir cu la do por lar ga fita, em que re al -ça vam as co res da ban de i ra do país ao qual cada um apa ren ta va per ten cer.

O rei des to a va, por que subs ti tu ía o boné pelo cha péu ar ma do e ves tia ir re pre en sí vel ca sa ca.

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To dos tra zi am por ta-voz, com que atro a vam céu e ter ra.As mu lhe res que os se gui am, ves ti das a ca pri cho e in te res -

san tes, aju da vam-lhes a atra ves sar a no i te, no meio das dan ças e dasgar ga lha das ar gen ti nas.

Em qual quer das tar des, más ca ras avul sos fa zi am-se cé le brespela ori gi na li da de das lem bran ças.

Um vez apa re ceu um galo bas tan te vis to so, que can ta va,abrin do as asas, jun to a um fi gu rão, que so bre o ab dô men de i xa va ler ose guin te le tre i ro: Aqui den tro há al gu ma cou sa.

No S. Pe dro, no Pro vi só rio, de po is de ter de bi ca do nas ruas atodo o mun do, apre sen tou-se um in di ví duo, cor re ta men te tra ja do, ves ti do à cor te, como vul gar men te se diz, de ócu los, ca be le i ra e na riz pos ti ços,de um es pí ri to sur pre en den te, fa lan do fran cês, in glês, ale mão, ita li a no epor tu guês.

Não hou ve quem não o ad mi ras se, já pelo chis te, já pela pu re za da pro nún cia nas lín guas em que se ex pri mia.

Por ba i xo dos ar cos pin ta dos e de lu zes; ao aço i te das ban -de i ras sus pen sas, abal ro an do-se no co re tos; e, à no i te, ao fogo dosar cho tes, os zés-pe re i ras, a Mor te, de cam pa i nha e fo i ce, os prin ce ses demás ca ra de ara me e de pa pe lão, os ran chos com to ca tas e os di a bi nhosde ra bos e chi fres, agi ta vam-se, mo vi am-se, dan do a es ses qua dros umas pec to ver da de i ra men te en can ta do.

De sú bi to, uma ban da de mú si ca as so ma va, pre ce di da de fo gos de ben ga la e da mul ti dão dan do vi vas.

Eram as Su mi da des, a União Ve ne zi a na, os Zu a vos, ou qual -quer ou tra so ci e da de, con for me os tem pos, que na ter ça-fe i ra en ter ra vao car na val...

Nos es qui fes, com ro de las de li mão, ou ri ça dos de pa li tos,guar ne ci dos de ar cho tes, car re ga dos ao om bro, os le i tões as sa dos, ospe rus, as ga li nhas e o fi am bre para as ce i as no te a tro.

O fé re tro pa ra va em de ter mi na dos lu ga res, en to a va-se um Depro fun dis, to ca vam-se mar chas fú ne bres, re ci ta vam-se dis cur sos cô mi cos,po e si as dis pa ra ta das, em hon ra do car na val e da co me za i na.

Estas fes tas fo ram mais ou me nos as sim até o ano de ses sen ta e tan tos, em que a Pa u li céia Va ga bunda com pa re ceu nos fes te jos.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 49

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Foi este o úl ti mo car na val clás si co, es tron do so. O Impe ra dordes ceu, na úl ti ma tar de, ao paço da ci da de.

À ex ce ção do Con gres so e da União Ve ne zi a na, as mais so ci e -da des exis ti am: par te da po pu la ção mas ca ra va-se, e os te a tros e clu beseram pa ra í sos ar ti fi ci as.

Sem po der mos fir mar as da tas da fun da ção das so ci e da des de hoje, re cor da mo-nos de um fato que de ter mi nou o re nas ci men to docar na val, que ia em de ca dên cia: o in cên dio de uma far má cia ou dro ga riada Rua Di re i ta, no ano de 1861.

Os te a tros es ta vam che i os e a no tí cia es pa lhou-se.Os Zu a vos, su pon do que o fogo se ha via de cla ra do em casa

de um dos só ci os, para lá cor re ram, e, com o seu uni for me car na va les co, au xi li an do o cor po de bom be i ros, por ta ram-se com a ma i or va len tia.

Extin to o in cên dio, le van ta ram-se para eles as la ba re das dopres tí gio. No vos só ci os en tra ram; o en tu si as mo avi ven tou-se, e não lon gedes se ba tis mo de fogo, que lhes con sa grou o nome, re ce be ram no cris made Momo o de Te nen tes do Di a bo.

Nos car na va is pos te ri o res a 1869, uma ou tra ge ra ção, tra zen docon si go no vas idéi as, veio ocu par o ce ná rio pou co po vo a do do pas sa doe as sis tir à ago nia das der ra de i ras as so ci a ções que fa le ci am.

Da al tu ra de suas as pi ra ções, re co lheu o que lhe pa re ceu útil,acu mu lan do os ca be da is de que pre sen te men te dis põe.

Os Fe ni a nos, gru po dis si den te dos Te nen tes do Di a bo, exem -pli fi cam o que di ze mos.

A par tir de 1870, o car na val con cen trou-se nas gran de so ci e -da des, ab sor ven do os más ca ras.

Pe que nos ran chos, fo liões dis per sos e de pon tos dis tan tes,para ve rem o des fi lar de um prés ti to sun tu o so, aflu íam aos lu ga res in di -ca dos no iti ne rá rio, aban do nan do as sim seus pas se i os, seus cen tros, seumeio; mas como tan to go za vam fan ta si a dos como sem dis far ce, opi na ram pela con ve niên cia, e o más ca ra de on tem tor nou-se o cu ri o so de hoje.

Não sa be mos se com isso ga nhou ou per deu o car na val;como re go zi jo po pu lar, não é mais o que era.

Os te a tros, fi can do va zi os, por que as ca ver nas e as ca sas pró -pri as lo cu ple ta vam-se, apa ga ram seus lus tres, fe cha ram suas por tas; e os

50 Melo Mo ra is Filho

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cu ri o sos, de po is que as so ci e da des pas sam, vol tam aos seus la res, comonos dias co muns.

Entre tan to, cum pre con fes sar que os De mo crá ti cos, Fe ni a nos e Te nen tes são jus ta men te dig nos da glo ri o sa re pu ta ção que lhes dis pen sa o pú bli co, re pu ta ção ad qui ri da pelo es pí ri to su til de suas idéi as, peloapa ra to gran di o so de seus prés ti tos.

Mar ge an do as cor ren tes mo der nas, subs ti tu í ram as ca val ga das nu me ro sas, os car ros de más ca ras, os per so na gens dis far ça dos, a mas ca -ra da ge ral, pe las suas cus to sas ban das de mú si ca, pe las ale go ri as dopor ta-es tan dar te, pe los car ros de idéi as, cada qual mais es pi ri tu o so e ori gi -nal, ou mais rico.

De ba i xo das ro das des tes car ros, en tre tan to, fi ca ram es ma -ga dos os ar le quins, os po li chi ne los e ou tros ti pos, que ou tro ra tan to nos di ver ti ram.

E a alu são de i xou de ser pes so al para abran ger um cír cu lo, um fato, uma ação. Apla u di das mu i tas das suas crí ti cas pela fe li ci da de dasre pro du ções, os acon te ci men tos mais ri dí cu los e fri san tes do ano sãotrans por ta dos para aque les ce ná ri os am bu lan tes como para um ba i xo-re -le vo exe cu ta do por mes tre. O povo ri-se a bom rir, por que, co nhe cen doo as sun to, pode dar aos per so na gens os no mes au tên ti cos.

De po is das ru i do sas Ale go ri as em que to das as so ci e da des seem pe nham por ex ce der-se, se guem-se os car ros de idéi as, em que osFe ni a nos, De mo crá ti cos e Te nen tes têm-se co ro a do de la u réis, na re a li -da de des lum bran tes. A pas sa gem de Vê nus, em que apa re cia um cé le breas trô no mo ar ma do de te les có pio; A man cha de Jú pi ter, alu são mag ní fi ca àes cra vi dão; Bra ços à la vou ra, As bar ra qui nhas, a Qu es tão dos bis pos, etc., con -quis ta ram tão vi vas ma ni fes ta ções que a im pres são pro du zi da res touina pa gá vel na me mó ria pú bli ca.

Os Fe ni a nos, os Te nen tes e os De mo crá ti cos, em pu nhan do oce tro da tra di ção, re pre sen tam atu al men te o car na val do Rio de Ja ne i ro.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 51

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A Fes ta do Di vi no

(PRO VÍN CIA DO RIO)

Por va les e ser ras, por es tra das e po vo a dos, me ses an tes da fes tado Espí ri to San to, gar ri dos fo liões dis per sa vam-se em ban dos no in te ri orda pro vín cia do Rio de Ja ne i ro, an ga ri an do es mo las para as fes tas dasca pi ta is, dos mu ni cí pi os, que se fa zi am ou tro ra a ri go ro so ca pri cho dos fes te i ros e se gun do os do na ti vos das po pu la ções de vo tas.

A isso, po rém, pre ce dia a ele i ção das me sas das res pec ti vasir man da des e a es co lha dos li be ra is fes te i ros, a cuja di re ção e car gofi ca ri am a so le ni da de re li gi o sa e os fes te jos ex ter nos.

Des de en tão, três, qua tro ou cin co ban de i ras, de con for mi da decom a ex ten são das fre gue si as ou dis tri tos, pu nham-se em mar cha, mu -ni das de im pres cin dí ve is li cen ças, le van do a to dos os ares e a to dos osla res o ins tru men ta do anún cio da fes ti vi da de anu al, que fa ria con ver girem um pon to de ter mi na do os ha bi tan tes de um ter mo qual quer, quegeral men te se an te ci pa vam em suas pi e do sas ofe ren das à gran di o sa fes ta do Espí ri to San to, sem pre es plên di da e con cor ri dís si ma.

E de que se com pu nham as ban de i ras?

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Cada uma de um ran cho de ra pa zo las, bran cos, cri ou los emes ti ços, ves ti dos de bran co, com as ja que tas en fe i ta das de la ça ro tes defi tas, tra zen do cha péus de pa lha com la ços ver des, es car la tes,cor-de-rosa, etc., que des do bra vam-se em lon gas e flu tu an tes pon tasso bre os om bros e as cos tas.

Do ran cho a fi gu ra mais sa li en te era o al fe res da ban de i ra, es pi -ga do e per nós ti co ra pa gão, que to ma va con ta das es mo las, par la men ta va di re ta men te com os de vo tos e ofer tan tes, res pon sa bi li zan do-se pelo que des se e vi es se du ran te o ex ten so e de mo ra do tra je to.

A ves ti men ta do al fe res da ban de i ra não di fe ria da de seus com -pa nhe i ros, va len do-lhe a pro e mi nên cia no gru po o es tan dar te por eledes fral da do, a ban de i ra do Di vi no, onde uma pom ba pin ta da so bre umfun do de ra i os so la res des ta ca va-se no cam po de seda ver me lha da re fe -ri da ban de i ra, fran ja da de ouro, de pra ta ou de lã, de acor do com as pos -ses das ir man da des, en ci ma da por uma pom ba de pau, pra te a da ou dou -ra da, sus pen den do o vôo de um mon te de iri sa das fi tas.

Engros san do a tur ma dos fo liões, cer can do ou la de an do aban de i ra, vi nham os to ca do res de fer ri nhos, de pan de i ros, de pra tos, detam bo res e de vi o las, em ri so nho con ví vio, pu lan do, to can do, can tan do:

Dai es mo la ao Di vi no,Com pra zer e ale gria,Re pa rai que esta ban de i raÉ da vos sa fre gue sia.

A es sas Fo li as acom pa nha va um ou mais ani ma is de car gapara con du zir dá di vas e pro mes sas, pren das para os le i lões, ob je tos dedi fí cil trans por te.

À no tí cia de que an da vam ban de i ras, não ha via casa que não sejul gas se hon ra da de re ce ber-lhes a vi si ta, não ha via um po bre que emsua pa lho ça hu mil de de i xas se de se pre ve nir para o fa vo rá vel aga sa lhodos fo liões, re ser van do, na fal ta de es mo la pe cu niá ria, uma ga li nha, uma le i toa, uns pom bi nhos, um peru, para ofe re cer ao Di vi no.

E in ter nan do-se nas es tra das, trans pon do o ter re i ro das fa -zen das, su bin do à cris ta das mon ta nhas, as fo li as de nun ci a vam-se lon gefa zen do vi brar a me lo di o sa or ques tra, en chen do o es pa ço de so nân ci astra di ci o na is em todo o País.

54 Melo Mo ra is Filho

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No Rio Bo ni to, onde ima gi na mos as sis tir à fes ta no dia de sua ce le bra ção li túr gi ca, o apa ra to de que ela se re ves tia em ou tro tem po nos pa re ce me lhor de se nhar os tra ços ge ra is das ve lhas usan ças da co lô nia,que, mo di fi ca das en tre nós, con ser va ram o que era es sên cia, opu len -tan do-se no pitores co do ce ná rio e pela va ri a bi li da de im per sis tên cia dasra ças.

As fo li as pre cur so ras dos po pu la res fes te jos do Espí ri to San to pos su íam na roça um con jun to de for ma li da des, um re per tó rio de qua -dras de re cur so, tão pri mi ti vos e com ple tos, que, a um mo men to dado,pu nham em con tri bu i ção não só a es pon ta ne i da de re li gi o sa, mas ain da a ge ne ro si da de hos pi ta le i ra da que la boa gen te, que não co nhe cia obs tá cu los no cum pri men to de tra di ci o na is de ve res.

E o ban do ru i do so lá ia, se guia, pa ra va, can ta va à por ta deuma ca si nha de sapé, à be i ra do mato ou da es tra da:

Ó se nhor dono da casa,Re ce bei esta ban de i ra,Faça fa vor de en tre gá-laA quem tem por com pa nhe i ra.

O ro ce i ro e a famí lia, já al vo ro ça dos pela mú si ca e pelacanto ria, es cu ta das de há mu i to, acha va-se fora; ace i tan do a ban de i ra do Divi no, be i ja va-a, e com igual re ve rên cia a pas sa va à mu lher que o imi ta va e esta aos filhos, es cra vos, e mais vi zi nhos pre sen tes.

O al fe res, re to man do-a de po is, adi an ta va a sa co la das es mo las,tendo no fren te a ra di an te pom ba do Di vi no, re co lhen do o óbo lo dapiedade in di vi du al, a par tí cu la re pre sen ta ti va da cren ça, que é a fe li ci da deda cons ciên cia e da vida.

Em jor na da pe no sa, des pro vi da de al ber gues, as ban de i ras,fa lan do a lin gua gem da po e sia, en con tra vam na li be ra li da de dos ro ce i ros o in dis pen sá vel para o sus ten to e para a vi a gem.

E os tam bo res ru fa vam, os fer ri nhos ba ti am, cho ca lha vam ospan de i ros, os pra tos e as vi o las, que acom pa nha vam:

A ban de i ra aqui che gouUm fa vor quer me re cer:Uma xí ca ra de caféPara os fo liões be ber.

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E en quan to a dona da casa em pe nha va-se na sa tis fa ção ime -di a ta do pe di do, as tro vas su ce di am-se, à ca dên cia de pas sos ba lan ce a dos,ao som da mú si ca uni for me e mo nó to na:

O Di vi no en tra con ten teNas ca sas mais po bre zi nhas;Toda a es mo la ele re ce be:Fran gos, pe rus e ga li nhas.

O Di vi no é mu i to rico,Tem bra sões e tem ri que za,Mas quer fa zer sua fes ta Com es mo las da po bre za.

E en quan to os fo liões can ta vam e to ca vam, to ma vam café edis pu nham-se para a par ti da, as pes so as da fa mí lia e es tra nhas con cor ri am com es mo las, acon di ci o na vam ofer tas e os se gui am com o olhar atéde sa pa re ce rem na dis tân cia ou en tre os ma ta ga is.

Assim an da vam eles, vi a ja vam por dias in te i ros, pe din dopou sa da aqui e ali, che gan do por ve zes à fre gue sia a fim de fa zer en tre ga das es mo las e ou tras ofer tas, que eram ven di das para as des pe sas da fes ta.

Sem pre to can do e can tan do, as fo li as da roça per fa zi am seuiti ne rá rio, ora pe din do pou sa da, ora, quan do hós pe des, ben zen do com a ban de i ra os qua tro can tos da mesa, aca ban do de jan tar.

Para isso, en to a vam qua dri nhas es pe ci a is, agra de cen do ain daem ver so as la u tas co me za i nas que às ve zes lhes pro por ci o na vam, emhon ra do Di vi no, que se dig na ra de aben ço ar a mo ra da de pe ca do res.

À se me lhan ça do que em um lu gar se pas sa va, era o mais emtoda a pro vín cia.

Ca no as de voga, car re ga das de aves e de vá ri as mer ca do ri as,car gue i ros em vi a gem no tur na, con du to res de ove lhas e gar ro tes, pe re -gri nos com ve las de cera en fe i ta das – to dos di ri gi am-se às fre gue si as,indo le var as ofe ren das vo ti vas ao Di vi no Espí ri to San to, cu jos mi la grestan to o exal ça vam na cren ça anô ni ma das po pu la ções em peso.

No Rio Bo ni to, mu i tos dias an tes das no ve nas, as ban de i ras sere co lhi am à ma triz, onde pres ta vam as úl ti mas con tas ao fes te i ro, que se

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 57

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ocu pa va des de logo em mandar le van tar o co re to para a mú si ca e oesplen do ro so im pé rio, que ser via de um lado para o le i lão das ofer tas.

Ape nas co me ça vam as no ve nas, os car ros de bois tra zen dofamí li as, ro me i ros a ca va lo sul can do as es tra das, pe re gri nos li vres eescra vos ca mi nhan do a pé, de man da vam a ma triz da vila, cujo lar goes pa ço so e de mol du ra sel va gem ar ras ta va-se em su a ve ele va ção, indoabra çar a alva igre ji nha que se le van ta va no alto.

Du ran te os nove dias que pre ce di am a fes ta, logo que osfoliões lo bri ga vam ro me i ros em mar cha, para eles se en ca mi nhavam a fimde bus cá-los, co brin do com a fes ti val ban de i ra as ofe ren das da fé, queeram re tri bu í das com re gis tros ma i o res ou me no res, com pom bi nhas doDi vi no, de ouro, de pra ta ou de chum bo, con for me o va lor das pro mes sas.

E a mú si ca e os can ta res re co me ça vam, ao re li gi o so fer vordos roceiros, que ti ra vam o cha péu, do bra vam o jo e lho di an te dabande i ra, en vol vi am-se em suas fi tas, be i ja vam o Di vi no e apro xi ma -vam-se da ma triz.

O Di vi no Espí ri to San toÉ um gran de fo lião,Ami go de mu i ta car ne,Mu i to vi nho e mu i to pão.

Meu Di vi no Espí ri to San to,Di vi no e ce les ti al,Vós na Ter ra sois pom bi nha,No Céu pes soa real.

E ao es cu re cer, aos pri me i ros re pi ques das no ve nas, as fo gue i rasestavam ace sas no lar go, o po va réu sen ta do ao aca so ou apre ci an do ole i lão, o pa ta-choca do le i lo e i ro, de opa ver me lha e sal va de pra ta, apre -go a va ofer tas, fa zen do rir a mul ti dão, que ar re ma ta va ros cas, pão-de-ló,se gre dos, mar re cos, ga li nhas e o mais que ha via, aos pi ques às ve zesconven ci o na is, que exa ge ra vam os pre ços.

À igre ja bor da da de lu zes e ao re fle xo vivo das aran de las doco re to e do im pé rio, des co bria-se o ta bla do para as dan ças de Ve lhos eJar di ne i ros, que de li ci a vam em ex tre mo aos es pec ta do res en tu si as tas.

E o povo bra da va: toca a mú si ca!O le i lo e i ro:

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– Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três... Scio! Scio!!?

Todo o ho mem que é ca sa doDeve ter seu pau no can to,Para ben zer a mu lher Qu an do es ti ver de que bran to.

– Bra vo! Bra vís si mo!...– Toca a mú si ca!...Eis se não quan do, o jo co so le i lo e i ro, to man do de um ca sal de

pom bos com as asas amar ra das de fi tas, ar que a va o bra ço, adi an ta va-separa o ba ten te, ar ru lan do, apre go an do:

– Cur ru pa cos, pa pa cos... Qu an to dão pe los pom bi nhos?E os lances cho vi am, os na mo ra dos me ti am-se em bri os,

despen den do-se gran des quan ti as na aqui si ção de pren das.Na ma nhã da fes ta, os ban dos mas ca ra dos per cor ri am a ca va lo

as ruas da vila, e o fes te i ro man da va dis tri bu ir pe los po bres pre sen tes decar ne e de ros cas, be los quar tos de car ne i ro e fi nís si ma fa ri nha, em lou vor do Di vi no.

Antes, mu i to an tes da mis sa can ta da, o lar go re gur gi ta va depovo, os si nos re pi ca vam a mi ú do, os ro ce i ros bus ca vam as ime di a -ções, re pim pa dos em suas ca val ga du ras ma gras, sen ta dos nos car ros àes pe ra.

A mú si ca de bar be i ros, con tra ta da para es sas fes tas na épo ca a que nos re por ta mos, lá se acha va no co re to; o cir co para as ca va lha dasde li ne a do com es me ro; sen do ao ter ce i ro dia as sen ta das as es ta cas parao fogo de ar ti fí cio, que fa zi am vir da cor te.

Entran do a so le ni da de re li gi o sa e du ran te todo o ato, só seou vi am os re pi ques de si nos; as gi rân do las de dú zi as de fo gue tes es tou -ra vam sem con ta; o povo pe ram bu la va em to das as di re ções, olhan doem bas ba ca do para os vis to sos pa lan ques e os em ban de i ra dos ga lhar de tes.

Nis so apa re ci am os doze ve lhos ca be çu dos, com suas com pe -ten tes lu ne tas, suas ca sa cas de rabo de te sou ra e de bo tões de pa pe lão,an dan do cur to, ar ras tan do os pés, que se gui am para o ta bla do, às ri sa das dos es pec ta do res, que lhes apla u di am o des gar re.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 59

Page 54: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Pou co mais tar de as dan ças dos jar di ne i ros e a dos al fa i a tes,ves ti dos a ca rá ter, sen do este cos tu me um pro lon ga men to do que erade es ti lo nas gran di o sas fes tas do tem po do Rei.

O mo vi men to não po dia ser mais ati vo, nem mais pi to res co ea ale gria e a de vo ção ma ra vi lha vam, trans pa re cen do do quan to se via eob ser va va.

E a fes ta, pom po sa, opu len ta, mag ní fi ca ter mi na va na igre ja, à su bi da dos úl ti mos fo gue tes que si bi la vam re ben tan do as bom bas, aoas pec to do adro do tem plo, re ple to do povo que saía, tra zen do cadade vo to ou de vo ta o seu re gis tro e a sua pom bi nha do Di vi no.

Nes se ins tan te duas ex ten sas e vo lu mo sas alas se for ma vamda ma triz ao im pé rio; não ha via fa mí lia da ci da de ou do lu gar, es cra vosou ro ce i ros, que não se adi an tas sem no tu mul to, in clu si ve os mo le questra qui nas, cada qual com sua fle cha de fo gue te es tou ra do, para ver o im -pe ra dor do Di vi no com a sua co mi ti va que, no im pé rio de sar ra fos e debam bi ne las de pa ni nho, ti nha de pre si dir aos ex te ri o res fes te jos.

E a ir man da de, de opa en car na da com bor las de ouro, em pu -nhan do to chas ace sas, pre ce dia ufa na o im pe ri al sé qui to.

Os fer ri nhos, os pan de i ros e os pra tos ti ni am, os tam bo res ru fa -vam, as vi o las en fe i ta das ca sa vam-se às vo zes dos fo liões bem ves ti dos,que, des de a por ta da igre ja, can ta ro la vam.

E con jun ta men te, no cen tro de qua tro va ras pin ta das de en -car na do, vi nha o im pe ra dor, um me ni no de dez a onze anos, ves ti do deca sa ca de ve lu do ver de e man to es car la te, cal ção, me i as de seda, sa pa tosafi ve la dos, com co roa e ce tro, ten do ao pe i to o re ful gen te em ble ma doEspí ri to San to. Dois mor do mos de ca sa ca, cha péu de pas ta, es pa dim ecalção sus pen di am-lhe o ro ça gan te man to, e to dos com a fo lia to ma vamlu gar no impé rio, ar tis ti ca men te ade re ça do para re ce bê-los.

A mú si ca to ca va, as dan ças prin ci pi a vam, as sis tin do à fun çãoo im pe ra dor, re pim pa do em sua bo ni ta ca de i ra, e di an te de uma mesaco ber ta de uma col cha de da mas co, na qual, além da co roa e ce tro quedes can sa vam, via-se uma gran de sal va de pra ta para as es mo las, gran desma ços de re gis tros e pom bas do Di vi no para se rem dis tri bu í dos.

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Nes ta oca sião cor ri am as ca va lha das, exe cu ta va-se o tra di ci o naltor ne io de Cris tãos e Mou ros, o le i lão rom pia ca lo ro so em uma ban da doim pé rio, in ter rom pi do por pi lhé ri as do le i lo e i ro e gar ga lha das do povo.

Pe las qua tro ho ras da tar de tudo fi ca va in ter rom pi do: o im pe -ra dor re ti ra va-se para vol tar à no i te, a gen te dis per sa va-se na ma i or par te.Algu mas fa mí li as es ten di am es te i ras e jan ta vam no cam po da igre ja; e os ro ce i ros de pa ra gens lon gín quas aco mo da vam-se do me lhor modo, empra zen te i ros ban dos, fa zen do suas re fe i ções cam pes tres.

E caía a no i te...As fo gue i ras do lar go abri am cla rões; o fron tis pí cio da ma triz

or na do de co pinhos de co res, à se me lhan ça de ex ten sos co la res, deprecio sas ge mas fun di das, des ta ca va-se fan tás ti co; o im pé rio e os coretosre fle ti am o chão e no ar o ful gor de suas lu zes ra di an tes e pro fu sas...

Entra va o Te Deum e com ele os mais fol gue dos da ma nhã, àex ce ção do cur ro, que fin da va por ven cer um par ti do, ge ral men te o dosCris tãos, que era vi to ri a do com pal mas e cla mo res.

Hon ra dos sem pre com a as sis tên cia do im pe ra dor, com pa re -cen do como fi gu ra obri ga tó ria o le i lo e i ro que ale gra va a mul ti dão, es sasfes tas du ra vam mais de dois dias, re ser van do-se para a úl ti ma no i te o ri -quís si mo fogo que ata ca va-se cedo, de vi do à con ve niên cia dos de vo tosque re si di am dis tan te.

Como an tigamen te na cor te, no Rio Bo ni to e nas de ma ispa ra gens da pro vín cia do Rio, as fa mí li as e o povo em tro pa acam pa vam ao ar li vre, ce a vam la u ta men te, apre ci an do o des lum bran te es pe tá cu lodas fes tas em sua sim pli ci da de pri mi ti va.

E a pri me i ra orda es tron da va, des do bran do um le que lu mi no so e trê mu lo, que ia ba ter ir ra di an do-se na por ta da igre ja...

A este si nal, a gen te de mais lon ge mo via-se, atro pe la va-se,to man do seus car ros e ca va los para a vol ta.

– Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três... Dou-lhe tudodes ta vez!...

– Qu an to dão pelo se gre do?– O fogo tem fu ma ça! Fora o fo gue te i ro! Bra da va o povo,

as so vi ando, va i an do a arte pi ro téc ni ca da cor te, in di vi du a li za da no artis ta

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 61

Page 56: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

que cor ria ton to e ator do a do, aten den do ao mais leve in ci den te deoca sião.

As for ta le zas e a fra ga ta sal va vam, o bar be i ro amo la va a na va lha,gi ran do na roda, ter mi nan do a fes ta pela – Gló ria do Di vi no – vis to sapeça que que i ma va no fim, es cla re cen do o sim bó li co pa i nel do Espí ri toSan to que des per ta va de li ran tes apla u sos do po vão ad mi ra do.

À meia-no i te, quan do um ou ou tro mor rão ace so caía emlá gri mas das ro das que i ma das, já tudo es ta va de ser to, ou vin do-se ape nas nas es tra das os guin chos dos car ros de bois, o tro pel dos ca va los, e oru mor de vo zes dos ro me i ros que de man da vam o lar de i xa do.

Na casa do fes te i ro ron ca va o ba i le!...

62 Melo Mo ra is Filho

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A No i te de Na tal

(BAHIA)

As canções po pu la res, apro pri a das às fes tas e ce ri -mô ni as da Igre ja, a co me çar do sé cu lo XIII, de sen vol ve ram-se emesfe ra mais am pla e com ati tu de mais au to nô mi ca.

Dis tan ci an do-se dos can tos pu ra men te li túr gi cos, en con tra-seto da via nes se gê ne ro de com po si ções, de ca rá ter re li gi o so, a adap ta çãode sen ti men tos pro fa nos; de sor te que o pen sa men to pro fa no e o pen -sa men to re li gi o so ne las se al ter nam, não apa gan do de todo, po rém, ore le vo ar tís ti co de seu tipo de ori gem.

Po e sia de co la bo ra ção anô ni ma, o seu va lor é con si de rá velcomo con tri bu i ção ao es tu do de fa ses poé ti cas e do ide al re li gi o so, que,não há ne gar, é a at mos fe ra fi si o ló gi ca da ra zão po pu lar.

Os au tos e che gan ças da no i te de Na tal re mon tam ao al vo re cerda Ida de Mé dia, épo ca em que os na ta is – pro du ções em ver so des ti na dasa ce le brar o nas ci men to de Je sus, con fun di am-se com as com po si çõessa gra das; e em que os tro va do res e me nes tréis, se guin do as pro cis sõesso le nes, os iam exi bir nas la pi nhas, em vi si ta ao Mes si as no pre se pe deBe lém.

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Então es ses per so na gens, ves ti dos de pas to res e reis Ma gos,de di lhan do as cor das de seus ins tru men tos, dan ça vam e can ta vam assuas dan ças e can ções, re pre sen ta vam os seus mis té ri os di an te do ber çode pa lhas do Mes si as das na ções.

No meio des sas ce nas pi to res cas, des ses dra mas in fan tis, apo e sia imi ta ti va to ca va ao seu apo geu, por isso que a gran de nova em -pres ta va no li ris mo voz aos ani ma is, que ex pan di am as suas ale gri as pelonas ci men to do Deus Me ni no.

Em seus lou vo res, o coro era unís so no, os to ca do res de cí ta ra par ti am nos har pe jos cor das vi bran tes, e os po e tas en tre ga vam-se aofer vor pi e do so de suas ino cen tes ins pi ra ções.

Mais tar de os bre tões ado ta ram es ses usos, que se ge ne ra li -za ram na Eu ropa, va ri an do a for ma, mas con ser van do o fun do datradi ção.

Tais cos tu mes, até à pri me i ra me ta de des te sé cu lo, re fle ti ram seu cará ter an ti go na musa po pu lar da Espa nha e de Por tu gal, pas -sando-se des te úl ti mo país para o Bra sil com as pri mi ti vas le vascoloni za do ras.

As ja ne i ras dos cam pos, al de i as e ci da des da me tró po le, es sasusan ças tão ga tas aos nos sos ma i o res, es sas no i tes de Na tal da nos sater ra, que o vul to das in va sões es tran ge i ras, des cra van do dos ho ri zon tes a der ra de i ra es tre la, en te ne bre ce rá em bre ve, ar que jam para mor rer naspro vín ci as do Nor te; e os seus ecos, de ge ra is que eram, ape nas sefazem ou vir na que les cen tros, fe liz men te im pro fa na dos, ou nos céus daBa hia – o lar clás si co das tra di ções na ci o na is.

Aí a no i te de Na tal ain da é uma re mi nis cên cia que con so la,um so nho de quem ador me ce em sua pá tria ao per fu me ine bri an te eselva gem das man gue i ras em flor!...

Os si nos da fre gue sia re pi cam, anun ci an do a mis sa; o Ter re i ro al ve ja nos tor sos de cas sa das mu la tas e cri ou las chi ban tes; os adros doCo lé gio, de S. Do min gos e de S. Fran cis co, api nha dos de de vo tos, sãoos apris cos da que las ove lhas des per tas.

Os toca do res de vi o lão pre lu di am chu las e to a das; oscantado res acom pa nham os con cer tis tas am bu lan tes, can tam qua drasapro pri a das, ver sos opor tu nos.

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Os es cra vos de bons se nho res en chem es pa ços cir cuns cri tosdas al ga zar ras dos ba tu ques, das ma ti na das dos can zás, das dis so nân ci asatro a do ras de seus ta ba ques gros se i ros.

Aqui e ali, uma porta ran ge nos gon zos e fe cha-se: são asfamí li as que, pre ce di das do che fe, en ca mi nham-se às igre jas, va ga ro sas,rus guen tas, in ter mi ná ve is...

A ci da de e os ar ra bal des os ten tam-se mag ní fi cos pelo mo vi -men to que os ani ma, pe las mú si cas que se exe cu tam de vá ri as ca sas, pe los pre se pes flo ri dos que se avis tam de fora.

Como uma ca de ia de pra ta, cu jos elos par ti dos en con tram-senos ares, as sim são os ti ni dos trê mu los dos pan de i ros; como as vi bra çõesde uma gar ga lha da con vul si va, que cres ce e de cres ce para re co me çar denovo, assim são os es ta los gra da ti vos das cas ta nho las.

Os ba i les pas to ris, que de se nham com mais fir me za os tra çosfi si o nô mi cos da no i te de Na tal na Ba hia, exe cu tam-se nas ha bi ta çõesre me di a das e po bres, e nos pa lá ci os dou ra dos da opu lên cia.

É que nes ta no i te a sor te di fun de igual men te os seus ri sospela tri lha afa no sa do pro le ta ri a do e pe las ala me das em que a for tu naes pa lha os seus bens!

Atra vés das gra des de pau dos pos ti gos es bu ra ca dos, os cla rõesque coam, pa re cem as cri sá li das de ouro, de onde se de sa tam as me lo di asque voam...

Os bor dões ar gên te os dos vi o lões, con tras tan do com osde dos ne gros dos to ca do res cri ou los; as pas to ras bron ze a das e da cordo éba no, dan çan do, can tan do e di a lo gan do em fren te de um pre se pede ga lhos de pi tan ga; aque las mu lhe res de tur ban tes vis to sos, ador na dasde cola res, bra ce le tes e pe dra ri as, de le i tam e trans por tam me lhor aima gi na ção às re giões do Ori en te, à pá tria do sol.

Dir-se-ia que aque les bus tos fun di dos de tre vas e de cre pús -cu los mo re nos, fi ze ram par te da co mi ti va dos reis de Sabá, da Pér sia eda Ba bi lô nia à men sa gem de Be lém; que aque les cla mo res, er gui dos porum povo de ra ças di ver sas, nada mais eram do que o eco en fra que ci do,por qua se dois mil anos, do ru mor das ca ra va nas dos Ma gos com o seusé qui to de reis ven ci dos, oda lis cas e ca ti vos, com seus ca me los que seajo e lha vam ao peso das re si nas e do ouro, dos amu le tos e dos di a de mas

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 65

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de cem di nas ti as, para ofer ta rem ao Deus nas ci do – Àque le que ti nha de fa zer de sa pa re cer os bri lhos das no i tes do Ori en te e le van tar em es plen -do res as ma nhãs fri as e or va lha das do Oci den te!

Na no i te de hoje, os ba i la dos mais ou me nos ri cos, os pre se pes mais ou me nos ca rac te rís ti cos, fa lam ao ide al das clas se di fe ren ci a das; astro vas in cul tas são des can ta das, os au tos iné di tos de sem pe nham-se àpor fia, e a Mis sa do Galo cons ti tui o ob je ti vo de al gu mas fa mí li as que se re tra em e dos in di ví du os que ob ser vam os ri tos do Na tal.

A par tir das 8 ho ras, nas ca sas de tra ta men to, as pol cas e val sases tu am nos sa lões; as lu zes pro fu sas dar de jam ra i os de âm bar; as en can -ta do ras ba i a nas des lum bram, gi ran do nas dan ças ele gan tes, e os re pen -tis tas la u re a dos glo sam mo tes aos apla u sos jus tís si mos.

Em qua dra mais re mo ta, es ses gran des mes tres de toda apo e sia do im pro vi so cha ma vam-se Mo niz Bar re to, Dr. Sin frô nio Álva resCo e lho, La u rin do Ra be lo, A. de Men don ça, João Fre i tas, Dr. Luís Álva res dos San tos e tan tos ou tros, que eram os po e tas da re li gião, da pá tria e da fa mí lia.

Des ses ape nas exis te o Dr. Sin frô nio, que, qua se es tra nho àge ra ção atu al, aí vive ig no ra do, mas nun ca na ad mi ra ção ex pan si va dequem, como Frank lin Dó ria e o obs cu ro es cri tor des te li vro, in cli na-seante o pres tí gio glo ri o so de seu nome e a su pe ri o ri da de res plan de cen tede seu ta len to.

No sa lão re ple to de rosa se fan ta si as, alen ta do ao so pro doscan tos dos dias na ci o na is, o pre se pe al te ia-se ma jes to so, com suas ar ca das ve ge ta is e aro má ti cas, seu ho ri zon te lar go e azul, sua lua trans pa ren te esua es tre la le gen dá ria.

Adi an te de uma pa i sa gem sem arte, de ar vo re dos de pi nhopin ta do, fi le i ras de ca si nhas bran cas es ten dem-se, con fi nan do com duasfor ti fi ca ções en ci ma das por tro pas fran ce sas, guar ne ci das de pe ças dear ti lhe ria, ten do aos ân gu los ati ra do res, que dis pa ram es pin gar das eca lam ba i o ne tas.

As ruas são na ge ne ra li da de pou co po pu lo sas, a me nos queal gu mas fi gu ras, for ne ci das pela quin qui lha ria fran ce sa e ale mã, não selo bri guem sal te a das, mais vul gar men te zu a vos e mou ros.

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O chão é sul ca do de pas ta gens e es pe lhos fin gin do la gos;so bre es ses la gos pa ti nhos e pe i xes de vi dro, cor de i ri nhos e ca bras,tudo sem nexo, dis pa ra ta do.

À di re i ta es tão S. José e a Vir gem, que apre sen ta o Me ni noaos três reis Ma gos, se gui dos de al deões e la va de i ras com trou xas derou pa à ca be ça, e de pas to res to can do ga i tas e san fo nas.

Pe que nos lam piões de gás, re pu xos, fa róis e mo i nhos de ven to, com ple tam a vis ta ge ral des sa ci da de, onde a ima gi na ção pou co exi gen te dos fes te i ros co lo ca o ber ço de Je sus.

De ins tan te a ins tan te, os con vi da dos que dan ça ram e os con -vi da dos que che gam, apro xi mam-se; dos que en tram, al guns sus pen dem as fo lha gem, que se abra çam no ápi ce, for man do o pór ti co do pre se pe,flo res na ti vas, fru tos sa zo na dos, ou de põem na su per fí cie pla na dá di vasde pri mor.

De re pen te, um ar ru far de pan de i ros e adu fos, um es ta larar den te de cas ta nho las, um plan ger de vi o lões e gui tar ras, um res pi rarma cio de fra u tas, caem como uma vaga no feé ri co re cin to, en vol ven donuma nu vem so no ra o âni mo pre dis pos to da as sem bléia.

Os cir cuns tan tes, afas tan do-se para os la dos, de i xam um cla ro à pas sa gem dos fi gu ran tes dos ba i les pas to ris – dra mas que, ape sar denão se rem fe i tos por po e tas de pro fis são, con ser vam-se, com a suame lo dia mu si cal, nos ar qui vos ora is do povo ba i a no, por isso queexpri mem cren ças e sentimen tos que pri mi ti va men te o em ba la ram.

Sem avi so pré vio, como sa ber-se quan tos se re pre sen tam esuas de no mi na ções?

Será o Ba i le da Li ber da de, o do Fi lho Pró di go, o de Um Ma ru jo, oda La va de i ra, o de Cu pi do, o de Oito Pas to res e um Guia?...

Será um ou mais, vis to como po dem exe cu tar-se até três,elevan do-se o seu nú me ro a cin qüen ta, com cer te za, to dos com mo ti vos di fe ren tes, mú si cas es pe ci a is, pro ta go nis tas dis tin tos?...

E a fra u ta, pre lu di an do acor des co nhe ci dos, dá si nal de en tra da ao Ba i le das Qu a tro Par tes do Mun do....

Nes te auto, como em to dos os ou tros de que te mos no tí cia, o rit mo as se me lha-se ao dos sal mos e cân ti cos da li tur gia ro ma na, pela

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 67

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ma ne i ra por que a ex pres são faz res sal tar as pa la vras, no tan do-se de ve rasa en to a ção e dis po si ção me ló di cas apro pri a das aos tex tos.

E os pan de i ros ti nem... As mo ças, ves ti das de bran co,chegam-se mais per to; os que con ver sa vam às ja ne las vol tam-se rápidos, e, de cos tas para a ruas, en cru zam os bra ços, tra çam a per na, aten tos,cala dos.

Nas pra ças e nas ruas a mul ti dão pas se ia tu mul tuá ria; nas asas da que le bur bu ri nho, da que les tro péis nas cal ça das, o gri to imi ta ti vo docan to do galo sobe e es vai-se, no meio de al ga zar ras in sen sa tas, detumul tos efê me ros.

E os pan de i ros ar ru fam, e a or ques tra en sa i a da dos ba i les émais es tri den te...

À gui sa de pró lo go, como pre pa ro do dra ma, a Eu ro pa vaico me çar a peça.

Fan ta si a da com es me ro, sa cu din do a po e i ra da al vo ra da deseus ca be los lou ros, pa re cen do não ter mais de onze anos, uma me ni na,em ter ce i ro pas so de dan ça, apa re ce que bran do al ter na ti va men te osflan cos, in cli na-se di an te do Me ni no Deus, des vi an do-se após, ba i lan do,pa ran do, can tan do:

Eu ve nho ado rar con ten teAo Me ni no Deus nas ci do,Sa cri fi car o meu pe i toAos seus amo res ren di do.

E vi ran do-se para o pre se pe e para o au di tó rio, de cla ma gra ci o sa a loa obri ga tó ria.

Eu ro pa toda vos ren deAs gran de zas que em si tem,Pois só a vós re co nhe ceSer um deus e sumo bem.

Res pe i tan do as ru bri cas, ten do as ves ti du ras ca rac te rís ti cas,cor re ta men te en sa i a dos os can tos que pre ce dem a re ci ta ção das loas,apre sen tam-se su ces si va men te a Áfri ca, a Ásia e a Amé ri ca que, aostri un fos es pon tâ ne os, can tam e de cla mam:

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Page 63: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Áfri caComo se nho ra do uni ver soVos tri bu to hu mi lha ção,As po tên ci as de minh’almaDe todo o meu co ra ção.

LoaÁfri ca, ter ror do mun do,So ber ba e van glo ri o sa,Para ado rar o Mes si asÉ hu mil de, é amo ro sa.

Amé ri caCom pro fun da ado ra çãoAdo rar ve nho ao Mes si as,Fi lho do Eter no Pa dreE da ben di ta Ma ria.

LoaAs be las pre ci o si da desQue em si a Amé ri ca cria,To das vos en tre go, Se nhor,Com gran de za e bi zar ria.

ÁsiaCom hu mil de re ve rên ciaOs pés te ve nho be i jar, A minh’alma e o meu cor poNas tuas mãos en tre gar.

LoaÁsia fiel te ofe re ceTo dos os seus ca be da is,E ma i or ofer ta fa riaSe pos su ís se inda mais.

De po is des ta loa, em pe nha-se um de ba te en tre as Qu a troPar tes do Mun do, que dis pu tam en tre si pre fe rên ci as de lu gar, de for ça,de an ti gui da de, sa be do ria e ri que za, no aco lhi men to de suas obla ções àem ba i xa da de Be lém.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 69

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Esse diá lo go é de uma sim pli ci da de to can te, de uma re li gi o -sidade que faz re vi ver as flo res das cren ças mor tas da in fân cia, quemirra ram-se ao entar de cer da vida.

As lu zes tremem nas ves ti men tas de pe nas e ve lu do, naspulse i ras e nas len te jou las que fa ís cam...

A me lo péia ini cia-se agra dá vel, pou co va ri a da, sem es ti loscor re tos...

Ao ou vir-se as no tas des sa mú si ca mo nó to na e um tan tosole ne, essa acentu a ção de quem tem na gar gan ta o gor je io de to das asaves, a modo que se so nha, ao ba lan ço qui e to da rede, às mar gens deal gum rio das nossas flo res tas vir gens!

Os as sis ten tes nem falam; com pe ne tra dos da cena que sedesen ro la es plên di da, pa re ce que con tem plam ab sor tos o fron tis pí ciocro má ti co da epo péia da Re den ção.

O dono da casa, com sua rou pa de brim bran co e gra va taen car na da, e a se nho ra com seu ves ti do de mus se li na, len ci nho de seda ao pes co ço, ob se qui o sa, fol ga zã e boa, pro cu ram a com pa nhia dasmo ças e das pes so as mais ve lhas com as qua is dis tri bu em fi ne zas emabun dân cia.

As cri as de es ti ma ção e as mu ca mas pos tam-se nos cor re do res; emol du ra dos nos ca i xi lhos da al co va fe cha da, ar re ga lan do uns olhospas ma dos, com pri min do o na riz cha to e a boca ver me lha con tra o vi dro que embaciam com o há li to, os mo le ques e as ne gri nhas es pi am oespetá cu lo e so mem-se, avis tan do o se nhor.

Qu a se meia-no i te, os si nos re pi cam a mi ú do, as igre jasabrem-se aos fiéis, a Mis sa do Galo não tar da no al tar.

O povo tumul tua... Na va ran da, o ba ru lho dos pra tos denun cia os pre pa ra ti vos da la u ta ceia.

O dra ma das Qu a tro Par tes do Mun do ten de à ca tás tro fe. AÁsia, a Áfri ca e a Amé ri ca, não se con ci li an do, in ter vém um ár bi tro para de ci dir do ple i to.

E um per so na gem de lon ga tú ni ca cin zen ta, de cré pi to,empunhan do uma fo i ce, en ca mi nha-se len to e al que bra do para a cena:

– É o Tem po.Seu ges to é gra ve e a sua pa la vra enér gi ca.

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Page 65: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O Tem po (fa lan do)Na que le pon to es con di doEsti ve ou vin do o vos so en fa do,Ásia tem mu i ta ra zãoNo seu fa lar apres sa do.

Eu ro pa, Amé ri ca e Áfri caQuem és tu, meu ve lho hon ra do,Que tan to a Ásia de fen des?

Tem poSou o Tem po es tra ga dor.Cre io que ago ra me en ten des.

ÁsiaO que for de vos so gos toSu je i to a vos sa von ta de;Pron to es ta mos, haja poisUnião e ami za de.

To do sAgo ra for me mos ba i leDas Qu a tro Par tes do Mun do

Tem poEu ala ca i an do a eleSe rei o Tem po ju cun do.

To dosCom pra zer, com ale gria,To dos com voz so no ra,Tri bu tem hi nos a Je sus,E à Vir gem Nos sa Se nho ra.

O Tem po (can tan do)Eu, como o Tem po que sou,Me pros tro mais re ve ren te;Pois nas ces te nes te mun do Para sal va ção da gen te.

To dos (can tan do e dan çan do)Re co nhe ço a vósUm Deus das al tu ras,Se nhor do uni ver soE das cri a tu ras.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 71

Page 66: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E um es tron do de pal mas faz es tre me cer o sa lão... e umachu va de flo res, como um ba nho de per fu mes, de sa ba so bre os ato res,inundando o pal co, que se trans for ma em um ta pe te iri a do e de vaporo sos aro mas.

Esgo ta do o in ter va lo de uma hora, em que a sala es va zia-se,por que a ceia es ta va ser vi da, a ou ver tu re do Ba i le da La va de i ra con vi da oses pec ta do res do auto an te ri or para esta se gun da re pre sen ta ção.

E cor rem to dos ao re cin to de i xa do, que se mo di fi ca ra comaces só ri os múl ti plos: mon ta nhas, a hor ta de Ben ta, etc.

As pas to ras ajus tam cos tu mes bo ni tos e sin ge los, flu tu am-lhesao cha péu de pa lha fi tas es tre i tas e de co lo ri do vi vís si mo; nos ar re ga çosda saia cur ta pe que nos to pes de flo res vi ce jam mi mo sos; do bra ço decada uma pen de uma ces ti nha com as ofe ren das ao Me ni no.

Os pas to res, com tra jes no mes mo gos to, agi tam no do sosca ja dos, à voz da a pri me i ra La va de i ra, que, des can san do num cepo,arri an do uma ga me li nha de rou pa, mo du la su a ve, ao tom dos vi o lõestrans por ta dos, o ver so de in tro du ção:

Antes que o sol saia Hei de ma dru gar,Nas mar gens do rioOnde eu vou la var.

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Ter mi nan do ba i le, uma nu vem de pás sa ros, como um ban dode ci ga nos, emi gra va, às opa les cên ci as do ama nhe cer.

E os pas to res e la va de i ras, to can do em re ti ra da, com as suasdá di vas e seus lou vo res, a har mo ni as rit ma das, can ta vam, de sa pa re cen do:

A bar ra do diaJá vem cla re an do...Que belo Me ni noNa lapa cho ran do...

E nos bra ços des sas can ti le nas ador me ce ra por mais um anoa no i te de Na tal da mi nha ter ra – o lar clás si co do in di vi du a lis mo pá trioe das tra di ções na ci o na is!...

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A Vés pe ra de Reis

(BAHIA)

Há dias no ano em que o povo pre ci sa fa zer-se cri an ça. Con tra ri ar esta lei, é tor ná-lo tris te, des gra ça do.

Essa bem-aven tu ran ça po pu lar, esse es que ci men to mo men tâ -neo das lu tas pela vida, só a re li gião lar ga men te pro por ci o na, vis to como ex clu si va men te ela al ge ma as do res que as so ci e da des de sen ca de i am nascon tin gên ci as ime di a tas, nos acon te ci men tos de ci si vos.

A po lí ti ca, que, não sen do exer ci da por in di vi du a li da des cul -mi nan tes, é ofí cio de va di os, não ab sor ve esse gi gan te de cem fa ces, quevive por que com ba te, que não mor re por que é de uma com ple xi da deque se re ge ne ra no tem po, no cli ma e na ação.

Em qual quer dos es ta dos, a cren ça tem para o povo es tre lasque o ilu mi nam, ho ri zon tes que abrem-se em alas, gri nal das de pri ma ve raque lhe per fu mam e en som bram a fron te nas cal ma ri as da exis tên cia.

Dos dias de que fa la mos são su ce dâ ne os aque les em que apá tria co me mo ra os seus fe i tos, re lem bra as suas gló ri as.

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Vi a ja mos sete anos e fo mos hós pe de da Ingla ter ra, da Fran çae da Bél gi ca: nes ses pa í ses, quan to amor à obra do pas sa do, quan ta fe li -ci da de às tra di ções se cu la res!

E se rão es tas, por ven tu ra, mais be las ou me nos ri dí cu las doque as que re ce be mos de Por tu gal, que as so ci ou-se com des gar re à evo -lu ção pro du zi da pelo cris ti a nis mo, na po e sia, na ciên cia e nas ar tes, des deos pri me i ros va gi dos da Ida de Mé dia, in flu in do-lhe no pro gres so, fe cun -dan do-lhe as le gen das, no bi li tan do-se na an ti gui da de de seus cos tu mes?

Entre tan to a Eu ro pa con ser va e afa ga o que pos sui, e nós nos en ver go nha mos do que nos hon ra e de fi ne!

Dos acon te ci men tos en san güen ta dos de nos sa his tó ria po lí ti cae dos pe río dos bri lhan tes de nos sa li te ra tu ra, nem mais nos lem bra mos;per de mos as nos sas tra di ções e as nos sas fes tas, e fi ca mos sem elas esem ou tras que as su pram!

É que va mos sen do pa ci fi ca men te re con quis ta dos... E a ár vo -re das nos sas tra di ções, cuja som bra alon ga va-se por todo o país, so prode in ver no pre ma tu ro des pe-lhe as fo lhas e a im pe le para o ani qui la -men to...

Ain da um ins tan te am pa ran do-a na sua que da, as sis ta mos auma vés pe ra de Reis em nos sa pro vín cia.

A vés pe ra de Reis na Ba hia é um co ro lá rio da no i te de Na tal.São ir mãs quan to à ori gem, di fe rin do na vida de re la ção.

Para os ho mens que es tu dam, o in te res se de di fe ren ci a ção en -tre as fes tas do Na tal no Bra sil e con gê ne res no es tran ge i ro é enor me.Na Eu ro pa há um úni co fa tor, que é o ele men to na ci o nal; en tre nós hátrês: o ele men to bran co ou por tu guês, o afri ca no, e a re sul tan te de am bos– o mes ti ço.

Do modo por que eles con tri bu í ram e se con subs tan ci am; docal de a men to es té ti co que dá o co lo ri do lo cal a cos tu mes que se fo rammo di fi can do des de a co lô nia, res sal ta o en can ta men to et no ló gi co, a fe i ção na ci o nal.

Da no i te de Na tal, que se pas sa nos tem plos e nos do mi cí li os; dos ba i les pas to ris – a po e sia po pu lar eru di ta – e dos sa lões so ber bos,des ça mos às pra ças e ruas, e ob ser ve mos o povo que se di ver te emran chos nô ma das, pre sen ci e mos as che gan ças ao ar li vre, e o sin gu lar

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Page 69: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

espe tá cu lo do Bum ba-meu-boi, auto in cul to, que se re pre sen ta maisvul gar men te nas hu mil des e fran cas ha bi ta ções dos ar ra bal des.

Na Ba hia, os pre se pes, os ba i les de pas to ras e os des can tes de Reis, pro lon gam-se até o car na val. – É o tem po das man gas, das mú si -cas e das mu la tas!

Des sa no i te em di an te, os can ta do res de Reis per cor rem aci da de can tan do ver sos de me mó ria e de lon ga data.

Esses ran chos com põem-se de mo ças e ra pa zes de dis tin ção;de ne gros e par dos que se ex tre mam, às ve zes, e se con fun dem co mu -men te.

Os tra jes são sim ples e igua is: calça, pa le tó e co le te bran co,cha péu de pa lha or na do de fi tas es tre i tas e com pri das, mu i tas flo res emtor no, etc.; as mo ças, de ves ti dos bem fe i tos e al vos, de cha péus depas to ras; pre ce den do-os na ex cur são ha bi lís si mos to ca do res de se re na tas.

Le van do-lhes tal vez van ta gem pe las on du la ções do an dar,pelo ar re don da do das for mas las ci vas, pe los den tes de pé ro las em bo cas de ônix, ou or va lhos ma ti na is nas ro sas do ama nhe cer, as cri ou las e mu -la tas acom pa nham os seus pa res, tre men do-lhes o seio por ba i xo de umne vo e i ro de ren das fi nís si mas, es ta lan do a chi ne li nha pre ta e lus tro sa,ati ran do com ne gli gên cia o pano da Cos ta, ma ti za do e ca rís si mo.

Mu lhe res e ho mens, me ni nos e me ni nas, ba tem, ao com pas so da mú si ca, le ves pan de i ros, ou to cam, nas mãos en tre a ber tas e sus pen sas,cas ta nho las que atro am.

Des to an do do con cer to mag ní fi co, lá cres ce o ran cho dos bu -cum bis, que são ne gros e ne gras ves ti dos de pe nas, ros nan do to a dasafri ca nas, e fa zen do bár ba ro ru mor com seus ins tru men tos ru des.

Dos bu cum bis não sa be mos o rumo.Os ran chos, ao fogo dos ar cho tes, ao som das fra u tas e vi o -

lões, dos ca va qui nhos e pan de i ros, das can to ri as e cas ta nho las, di ri -gem-se: ao pre se pe da La pi nha, às ca sas co nhe ci das em que se fes te ja oNa tal, ou ti ram Reis à aven tu ra do aca so.

A par tir das oito ho ras co me çam a des fi lar os pri me i rosban dos. Embo ra pre ve ni das, as ca sas que os têm de re ce ber con ser vama por ta fe cha da, não obs tan te os dra mas pas to ris e as dan ças es ta remem ati vi da de.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 75

Page 70: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Che gan do um de les ao pon to con ven ci o na do, à casa em quedeve en trar, a mú si ca pre lu dia o can to, que rom pe, se gui do de co ros:

Ó de casa, no bre gen te,Escu tai e ou vi re is,Lá das ban das do Ori en teSão che ga dos os três Reis.

Do le tar go em que ca ís tes,Acor dai, no bres se nho res,Vin de ou vir no tí ci as be lasQue vos tra zem os pas to res.

Nes ta no i te tão di to saÉ bom que vós não dur ma is,Por que tão alta ven tu raNão é jus to que per ca is.

Vin de ou vir sim ples can ti gasDe gros se i ros cam po ne ses,

Das al de i as con du zin do

Cor de i ros e man sas re ses.

As ser ra nas en fe i ta das,De pra ze res vêm sal tan do;Os man ce bos e os ve lhi nhos,To dos, to dos vêm che gan do.

Ó se nhor dono da casa,Quer que lhe diga quem é?É um cra vo de ama ran toCom sua açu ce na ao pé.

Se nho ra dona da casa,Man de en trar, faça fa vor,

Que dos céus es tão ca in do

Pin gui nhos d’água de flor.

Inda bem,Há de vir!Que so mos de lon geQu e re mos nos ir...

76 Melo Mo ra is Filho

Page 71: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

De po is des tas e de mu i tas ou tras tro vas clás si cas, a por taabre-se, o ran cho en tra, e, che gan do ao pre se pe, en toa no vas can ções eno vos acom pa nha men tos:

Bra vo, bra vo, bra vo!Hoje é quem bri lha,O Ver bo Hu ma na doDeus de ma ra vi lha.

E fi cam ou se guem, de po is de co mer e be ber do que se lhesofe re ce.

Enquan to na ci da de ba i la-se e tira-se Reis, em re mo to po vo a do exe cu ta-se uma che gan ça.

É um lar go es pa ço so. Jun to à ma triz há um pa lanque, umaespé cie de co re to sa ne fa do e aga lo a do, com mu i tas aran de las, de di men -sões de sa fron ta das, re al men te bo ni to.

À luz das ca be ças de al ca trão, que fu mam, fin ca das aqui e ali, oses pec ta do res, em ban cos e ca de i ras; em es te i ras, no chão, al gu mas fa mí -li as mais mo des tas, com suas es cra vas e cri as.

A mú si ca en tre tém o povo em mul ti dão, to can do pe ças fá ce is, chu las, fan dan gos.

O vi gá rio, o juiz de paz, o mes tre-es co la e as al tas in fluên ci asdo lu gar con ver sam so bre ele i ções, dis cu tem po lí ti ca ge ral e lo cal.

Nes se ín te rim o pa lan que ad qui re um as pec to atraente eencanta dor: da ca i xa des se te a tro de im pro vi so vêm ao pros cê nioCristãos e Mou ros, que co me çam a che gan ça.

As che gan ças, no Nor te, são au tos de nú me ro res tri to, em quetoma par te cer ta clas se po pu lar de pe que na ele va ção.

Os Ma ru jos e os Mou ros in ti tu lam-se os de que te mos no tí cia,cons tan te men te re pro du zi dos por oca sião das fes tas de Reis na Ba hia,Per nam bu co e Ala go as.

Na dos Mou ros os in ter lo cu to res são mu i tos, as mú si cas dis tin -ta men te va ri a das, sen do o en tre cho da com po si ção um com ba te deabor da gem en tre cris tãos e tur cos.

De po is que ter mi na a ou ver tu re e se re nam as pa lmas com queo au di tó rio aco lhe os ar tis tas, o es pe tá cu lo prin ci pia, acom pa nha do deges tos, de ver sos can ta dos, de dan ças bam bo le a das.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 77

Page 72: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Des ta que mos dos Mou ros um tre cho.

Pi lo toEntre ga-te, rei mou ro,A essa nos sa re li gião,Aqui den tro des ta nauHá um pa dre ca pe lão.

Rei mou roEntre gar-me não pre ten doEm meio de tan ta gen te;Eu sou fi lho da Tur quia,Te nho fama de va len te.

Bri gam os dois, e o Rei mou ro, ven ci do, cai aos pés do Pi lo toe can ta:

Rei mou roMan de-me cha mar um pa dre,Que que ro me con fes sar;Esta fe ri da é mor tal,Dela não pos so es ca par.

O Pi lo to dá nes te sen ti do as suas or dens, e o Pa dre se apro -xi ma.

O Rei mou ro, ven do-o, põe-se de jo e lhos, e en toa com gra çae ma lí cia:

Rei mou roSe nhor pa dre, me con fes se,Que sou fi lho do pe ca do;Eu sou como cha me chu ga,Qu an do pego es tou pe ga do.

E logo, fin gin do des ma io, dá um tom bo, cor ren do em seu au -xí lio o Con tra mes tre.

Con tra mes treVide cá, La u rin do,Vai de pres sa na bo ti ca,Tra ga lá a me di ci naE vê bem como se apli ca.

78 Melo Mo ra is Filho

Page 73: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

As ce nas su ce dem-se in te res san tes e ins tru men ta das, con -clu in do-se o auto com esta qua dra do Pi lo to:

Pi lo toÓ nau fra ga ta, ó nau fra ga ta,Eu vou te per gun tar,Se este bre je i ri nhoSabe co man dar...

A que to dos res pon dem em coro, re ti ran do-se:

Gen tes, que ter ra é aque la,Ter ra de tan ta ale gria?É o Lar go de Bon fim, Va mos ado rar Ma ria.

Enquan to os ato res e o povo dis per sam-se em lu fa-lufa, aocla rão dos fo ga réus, em Ita pa ji pe, Rio Ver me lho, Na za ré, etc., o Bum -ba-meu-boi e a Bur ri nha cons ti tu em as de lí ci as de nú cle os fes ti vos.

O Bum ba-meu-boi é o di ver ti men to da can zo a da, da gen te de pé ra pa do.

Ti rai da vés pe ra de Reis o Bum ba-meu-boi, e es tai cer tos de querou ba re is à no i te da fes ta o que ela tem de mais po pu lar em todo o Nor te do Bra sil, e de mais nos so, como as si mi la ção de pro du to ela bo ra do.

Este auto de ca rá ter gro tes co, em duas ce nas, en tre me a do dechu las, de diá lo gos pa tus cos, e de sem pe nha do por per so na gens ex tra va -gan tes, é tudo quan to há de mais cu ri o so no tem po de Na tal.

Con ta ram-nos que no Ce a rá e Pi a uí, ter ras de gado e va que i ros, a ori gi na li da de des se dra ma, que tem por pro ta go nis ta um boi, é ex tra or -di ná ria.

No ge ral, as pe ri pé ci as são ani ma das, o cor te jo do Boi é apro -pri a do, e em qua se to das as lo ca li da des es ses es pe tá cu los são da dos emcasa; ex cep ci o nal men te, o Boi dan ça nas pra ças pú bli cas.

A dis tri bu i ção da peça é a se guin te: o Boi, o Tio Ma te us, a Tia Ca ta ri na, o Sur jão, o Dou tor, o Pa dre, o Va que i ro e o Amo; na Ba hia eAla go as, acres cem – o Se cre tá rio de Sala, o Rei, e Fi gu ras que dan çam,jo gam es pa da e fa zem de Coro.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 79

Page 74: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Cada in ter lo cu tor tem o ves tuá rio mais es qui pá ti co: é umamas ca ra da.

O Rei, o Se cre tá rio de Sala e as Fi gu ras en ver gam capa e cal ção,tra zem na ca be ça co roa e ca pa ce tes pra te a dos, me ne i am es pa das de pau, to can do, três ou qua tro, vi o las e ra ra men te ou tros ins tru men tos.

O Boi é um ar ca bou ço fe i to de lâ mi nas de pi nho, co ber tocom uma col cha de chi ta, im plan ta da no pes co ço cur to e um tan totri an gu lar a ca be ça pin ta da, com os com pe ten tes chi fres.

Essa ar ma ção é le va da às cos tas de um in di ví duo, que, de i xan -do-a cair, es con de-se de ba i xo, du ran te a re pre sen ta ção.

É para as ban das da Boa Vi a gem... Os lam piões re fle tem lu zesvi vas nas ruas ex ten sas, e as ca sas de hu mil de apa rên cia con ser vam apor ta es can ca ra da até tar de, até mu i to tar de.

Na sala, ao ba lan ço da rede, o pai de fa mí lia jul ga-se fe liz,acer ca do da mu lher e da pro le, que, à fla ma do can de e i ro, es cu tam deuma ve lha es cra va os con tos da Ma dras ta, do Pe dro Ma la zar tes, da Mou raTor ta, etc.

Ou tras há em que o Me ni no Deus, já de pé no pre se pe,mostra-se com sua ca mi si nha de cam bra ia e ca ja di nho de ouro.

Nes tas, as can ti gas de Reis cor rem à por fia e sem pre so no ras.De sú bi to, in ter rom pen do as his tó ri as do tem po an ti go, que -

bran do os des can tes dos ale gres pas to res, um gri to es trí du lo, como o dalo co mo ti va em dis tân cia, pro lon ga-se nos ares, pa ran do com es tron do:

– Eh!... boi!...E to dos che gam às ja ne las e às por tas, dan do com os olhos

em um vul to que er gue um ar cho te e des can sa ao om bro uma vara deagui lhão.

E, ao gra ni zo da cha ma, se gun do gri to fen de o es pa ço, par ti doda boca pin ta da de ver me lho de um ca bra, ta tu a do de pre to, de ca ra pu ça en car na da:

– Eh!... Ai ro so! É o Tio Ma te us, que, adi an te do Bum ba-meu-boi, previne à

re don de za da apro xi ma ção do ran cho.De fe i to, mi nu tos de po is pas sa ele com a sua mú si ca tra di ci o -

nal, seu Boi ga lhar da men te ar ran ja do, e seu pes so al es co lhi do e com ple to.

80 Melo Mo ra is Filho

Page 75: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

No fim da rua pa ram a uma por ta, afi nam as vi o las e can tam:

Aqui es tou em vos sa por taCom fi gu ra de ra po sa,Eu não ve nho pe dir nada,Mas o dar é gran de cou sa.

Se nho ra dona da casa,Bote aze i te na can de ia;Me per doe a con fi an çaDe man dar na casa aeia.

Abri a por ta, Se que re is abrir,Que so mos de lon ge,Qu e re mos nos ir.

A por ta abre-se, e a casa é in va di da pe los fo liões, à ex ce ção do Ma te us, o Boi e o Va que i ro, que aguar dam or dens.

A fa mí lia e os vi zi nhos, que aco dem pres su ro sos, fa zem roda;acen dem-se mais ve las, as vi o las ti nem e o ne gó cio prin ci pia:

O Se cre tá rio de Sala (dan çan do e can tan do)Oi! Da pra ta e do ouroSe faz o me tal!Oi! A sala dos ReisÉ pra nós fes te jar!

CoroOi! A sala dos ReisÉ pra nós fes te jar.

O Rei (sen tan do-se em uma ca de i ra)Ó meu se cre tá rio de sala!

Se cre tá rio

Sou hu mil de para aten der ao vos so cha ma do.

Rei

É pre ci so ver se não se acha aqui no nos so re i na do uma peça para alegraro co ra ção des ta gen te, que está pi au-piau, como a man di o ca la va da em nove águas.

Se cre tá rio Vos sa... vôla...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 81

Page 76: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E o Se cre tá rio can ta e dan ça, ao coro das Fi gu ras...

Se cre tá rioMoça que está na ja ne la...

CoroOlha bam ba, bam bi rá!

Se cre tá rioNa mo ran do o que não viu...

CoroOlha bam ba, bam bi rá!

Se cre tá rioOlha a que rem mal tra tar...

CoroOlha bam ba, bam bi rá!

Se cre tá rioOlha o fi lho que não pa re ce...

CoroOlha bam ba, bam bi rá...

Se cre tá rioOh! meu S. Be ne di to,Que do mar vi es te...

CoroLê, lê, lê...

Se cre tá rioA ca noa vi rouLá no fun do do mar,

CoroO di a bo da ne graNão sou be re mar.

Aí, em tons ace le ra dos e for tes, can tam e es gri mem es pa das,o Rei com o Se cre tá rio, e as Fi gu ras en tre si, vin do sor ra te i ra men te oTio Ma te us ocu par a ca de i ra do Rei.

Se cre tá rioOlha fogo, olha guer ra;

82 Melo Mo ra is Filho

Page 77: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

CoroFo gos em ter ra;

Se cre tá rioOlha fogo no mar;

CoroÉ pra nos guer re ar;

Se cre tá rioFogo faz o Se cre tá rio;

CoroFo gos em ter ra;

Se cre tá rioOlha fogo em nos so Rei;

CoroFo gos em ter ra;

Se cre tá rioOlha fogo nas Fi gu ras;

CoroFo gos em ter ra...

Fin da esta cena, o Se cre tá rio de Sala man da Ma te us bus car oBoi; Ma te us dá um pi no te, gri tan do:

Eh!... vem cá, Estre la!

Se cre tá rioEstá aí o boi, Ma te us?

Ma te usSim, meu si nhô.

Se cre tá rioQuem me em pres ta um vin témQue ama nhã dou dois,Pra com prar uma fitaE la çar o meu boi?

Gu i an do o Bum ba-meu-boi, que faz as evo lu ções mais ga i a tas,en tra o Va que i ro, a cuja voz obe de ce o Boi, ser vin do-lhe de guar da de

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 83

Page 78: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

hon ra as Fi gu ras, que, ao com pas so da mú si ca, mar cham, er guem eaba i xam as es pa das, con ti nu an do no seu pa pel de coro.

Va que i roOra, en tra, Ai ro so,Ora, faz cor te sia!

CoroEh! bum ba!

Va que i roOra, ao dono da casaE à se nho ra tam bém...

CoroEh! bum ba!

Va que i roOra, es tro va bo ni to;Ora, dá uma pon ta da...

CoroEh! bum ba!

Va que i roOra, aqui no Ma te us,Ora, brin ca bo ni to!

CoroEh! bum ba!

Nis so que o boi dan ça, às gar ga lha das e pal mas dos cir cuns -tan tes, Ma te us dá-lhe uma pan ca da, e ele re vi ra, es per ne an do.

O Va que i ro as sus ta-se, en co le ri za-se, e re co me çam:

Va que i roO meu boi mor reu,Quem ma tou foi Ma te us.

CoroEh! bum ba!

Ma te usNão, se nhor, quem ma tou foi o dono da casa.

Va que i roSe nhor dono da casa,Me pa gue o meu boi.

84 Melo Mo ra is Filho

Page 79: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

CoroEh! bum ba!

Va que i roVá cha mar o dou tor.

CoroEh! bum ba!

O Dou tor che ga, con du zi do por Ma te us, exa mi na o Boi,prog nos ti ca mo lés tia gra ve, re ce i ta e pede a Ma te us uma vi o la.

O Dou tor toca e Ma te us dan ça, dan do tem po a que, em umlen ço que ati ram, as Fi gu ras re co lham o di nhe i ro.

De po is de mu i to to que e de mu i to fado, o Ma te us agar ra emum me ni no para com ele dar uma aju da no Boi, que le van ta-se, ter mi -nan do o auto pela can ti ga de re ti ra da:

Oi! Da pra ta e do ouroSe faz o me tal!Oi! A vesp’ra de ReisÉ pra nos fes te jar!

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 85

Page 80: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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A Pro cis são de S. Be ne di tono La gar to

(SER GI PE)

De uma cu ri o si da de ver da de i ra men te rara e de le i tá vel são os cos tu mes do Nor te, de ri va dos de vá ri as épo cas da co lô nia, e ali trans -for ma dos se gun do con di ções múl ti plas.

Quer se es tu de aque le povo em suas fes tas lo ca is e re li gi o -sas, quer em sua vida ín ti ma ex te ri or, a sua fi si o no mia de se nha-se demodo dis tin to e em re le vo pró prio o as si na la, mar can do-lhe um lu gar sa li en te e à par te.

Pi to res co e in te res san te em suas usan ças tra di ci o na is, ex pan si -vo e in te li gen te em suas ma ni fes ta ções va ri a das, seu vi ver o dista ncia dagen te do Sul, que, ar re ba ta da por ou tras cor ren tes, des pren deu-se dopas sa do, an te ci pan do-se a um fu tu ro que su põe me lhor.

Assim, quem per lus tras se aque las pro vín ci as, quem ha bi tas seaque las ci da des e po vo a dos, ora de ca den tes, ve ria que o povo to ma va par teem to dos os acon te ci men tos da vida na ci o nal, e apa re cia como in di vi du a -li da de re pre sen ta ti va no que o país pos su ía de ori gi nal e au tô no mo.

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A pro cis são de S. Be ne di to, que se fa zia anu al men te noLa gar to, em Ser gi pe, des cor ti na va uma nes ga de tela mol du ra da à an ti ga,a res ta u ra ção de uma des sas ce nas em que se con fun di am clas ses e cas tas,cons ti tu in do um todo har mô ni co, es tra nho e sig ni fi ca ti vo.

Na pla ga ser gi pa na, a tra di ci o nal fes ta de S. Be ne di to ce le bra -va-se na gra ci o sa e ele gan te ma triz de Nos sa Se nho ra da Pi e da de, no dia 6 de ja ne i ro.

Qual a ca u sa des se ana cro nis mo no ca len dá rio romano daloca li da de, não pro cu ra mos ve ri fi car; mas o que é exa to é que a fes ta em ques tão, na que las pa ra gens, fe cha va o ci clo das ja ne i ras, tal a sua pom pa, tal o es plen dor ab sor ven te das do Na tal e Reis.

Ver da de era que um ou ou tro ran cho de pas to res, um ou ou tro ter no da Bur ri nha, do Bum ba-meu-boi, da Ca i po ri nha, dos Ma ru jos, etc., per -cor ria as ruas, dan çan do nas ca sas, re pre sen tan do a tra di ção do Na tal;po rém não era me nos evi den ci a do que o en tu si as mo geral pre fe ria adevoção de S. Be ne di to para to car ao seu apo geu, fi can do por con seguin tepre ju di ca do o re go zi jo das na ta is e das la pi nhas.

Como que para fa zer com pen sa ção, a pro cis são de S. Be ne di toopu len ta va-se ca rac te rís ti ca, dis tan ci an do-se das de ma is que co nhe ce mos,pe los per so na gens ex tra va gan tes que nela fi gu ra vam.

A mag na fes ta ti nha por pró lo go, no dia 1º de ja ne i ro, a re ti -ra da do mas tro, con sa gra do ao San to e que se acha va fin ca do no Lar godo Ro sá rio, em fren te à igre ja.

Este mas tro, que fi ca ra do ano an te ce den te, de i xa va flu tu ar notopo uma ban de i ra bran ca com a es tam pa de S. Be ne di to, e logo aba i xome a das de cor déis, que re cor da vam os de li ci o sos ana na ses e es ti ma dasfru tas, ali sus pen sos ou tro ra como em be le za men to e para prê mi os.

Esta fo lia, esta fes tan ça pre li mi nar era ex clu si va men te dosne gros: ves ti dos como de cos tu me, ufa nos de seu pa dro e i ro, ar ran ca -vam do chão o enor me e pe sa do ca i bro, e o le va vam car re ga do, pro ces si -o nal men te, dan çan do e can tan do, em tor no da igre ja e em giro pe las ruas.

Ne gras tra ja das de bran co, um ran cho de mu la tas Ta i e i ras emu i ta gen te pe rfa zi am o so le ne cor te jo do mas tro, que ia para de novoser en fe i ta do, mu dar a ban de i ra e re ce ber fru tas, gar ra fas de vi nho, ca i xas

88 Melo Mo ra is Filho

Page 82: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

de do ces, etc., que das al tu ras agu ça ri am o de se jo do povo mi ú do, damo le ca da in fre ne, a dis pu tar-lhes a pos se.

E o fes ti vo mas tro no bur bu ri nho da mul ti dão, como a ver gade um na vio nas on das da tem pes ta de, se avan ça va on du lan do, à por fiadas dan ças, à ale gria dos fo liões e ao can to dos Con gos:

Meu S. Be ne di toÉ san to de pre to;Ele bebe ga ra pa,Ele ron ca no pe i to!...

E ao es tri bi lho plan gen te das Ta i e i ras:

Inde ré, ré, ré,Ai! Je sus de Na za ré!...

*

Até o dia da fes ta ne nhum cu i da do atra ía mais as fa mí li as doLa gar to do que o ob je ti vo do cul to. As sa gra das ima gens pas sa vam, àno i te, para ca sas par ti cu la res, onde por de vo ção as ador na vam com oma i or luxo e ri que za.

Para en fe i tar os an do res ha via mu la tas pren da das, mu ca mas es co lhi das.

Os fo gue te i ros avi a vam as en co men das, as Ra i nhas es tre la vam seus man tos ro ça gan tes, os Con gos e Ta i e i ras en sa i a vam suas evo lu ções,suas can ti gas.

Na Pra ça da Ma triz os prepara ti vos ten di am a con clu ir-setermi nan do pela co lo ca ção dos co pi nhos de co res lis tran do a fa cha dado tem plo, o fin ca men to de es ta cas para o fogo de ar ti fí cio, a pin tu ra do pa lan que para o clás si co le i lão de pren das.

Isso du ra va até à vés pe ra de Reis.

Ao ama nhe cer do dia da fes ta, já o povo aflu ía à igre ja, vin dode lé guas de dis tân cia mu i tas pes so as para as sis tir ao pom po so ato.

Na es pla na da o olhar en tre ti nha-se no pi to res co dos tra jesvis to sos, es qui si tos e de co lo ri do vi vís si mo das ser ta ne jas, cada qualcom sua saia mais es pan ta da, len ço de chi ta na ca be ça, e belo xale azulou en car na do, que re al ça va aos ra i os do sol.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 89

Page 83: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Os ta ba réus, de cha péu de cou ro ou de pa lha, vés tia nova ecal ça de ris ca do, pas se a vam des con fi a dos, con ver san do en tre si ou comal gum ha bi tan te do lu gar, em amis to sa con fi dên cia.

A vila em peso, po de-se di zer, par ti ci pa va do fol gue do: ossenho res de en ge nho aba la vam-se de lé guas; o po va réu for mi ga va nases tra das; ne gros es cra vos, dis pen sa dos do tra ba lho, fes te ja vam o seusan to, des cu i do sos, con ten tes, fe li zes!

E aos gar ri dos re pi ques dos si nos, os fiéis en chi am o tem plo;S. Be ne di to, que ti nha vin do cedo para a fes ta, acha va-se pre sen te; e ovi gá rio, pa ra men ta do, en ca mi nha va-se com os de ma is sa cer do tes para oal tar-mor, co me çan do a ce ri mô nia.

Ocu pa das as tri bu nas, re ple to o cor po da igre ja, ape nas a mis sa es ta va no al tar, as bom bas es tou ra vam, os fo gue tes si bi la vam fle chan doo espaço, e lá fora, o povo em pen ca no adro im pa ci en ta va-se peloser mão, que era sem pre pre ga do por afa ma do ora dor.

E num cres cen do ia a so le ni da de, o des lum bra men to re li gi o so,ter mi nan do a missa can ta da, a fes ta da ma nhã, com a re ti ra da, aosencon trões, dos re ve rentes de vo tos, tra zen do cada um o seu re gis troen ro la do e ata do de fi tas.

À tar de, des ta mes ma igre ja saía a pro cis são de S. Be ne di to.

No Lar go do Ro sá rio, como nes ta pra ça, ha via ga lhar de tes,fo lha gens, fo gue i ras ar ma das que alu mi a ri am a no i te com sua cha mabri lhan te.

À por ta das ca sas, que cir cu la vam a Ma triz, alon ga vam-se fi las de ca de i ras, em que as fa mí li as sen ta vam-se, para apre ci ar os fes te jos ees pe rar a pro cis são.

E o si ne i ro su bia à tor re... Mo vi men to con fu so al vo ro ça va amul ti dão... A pro cis são saía.

Rom pen do a mar cha, o por ta-estandarte da ir man da de,ver ga do para trás e olhan do para cima, apru ma va o guião, equi li bra -do igual men te por qua tro in di ví du os que sus ti nham as pon tas dascor das.

90 Melo Mo ra is Filho

Page 84: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

A este gru po pre cur sor, su ce di am-se ir mãos da con fra ria,com to chas ace sas, con du zin do pela mão os an jos pri mo ro sa men tevesti dos, ha bil men te ca rac te ri za dos.

E ao som da mú si ca, à to a da po pu lar de co nhe ci das tro vas,des ta ca va-se em apa ra to so an dor a ima gem de San to Antô nio, de ta ma -nho na tu ral, que re co lhia cul tos e lou vo res.

A irman da de o se guia com seus an ji nhos de asas de seda eescu mi lha, de sai o tes e cor pi nhos com len te jou las, re fle tin do-lhes napedra ria dos di a de mas as lu zes das to chas aver me lha das e ba ças.

E as vo zes so a vam mais for tes, ao cho que sur do de pan ca dassem eco, à que da de pas sos que ba ti am no chão...

Logo de po is, ba lan çan do em ou tro an dor, avul ta va aé reo obo ni to S. Be ne di to, rin do, com os den ti nhos de fora, para o Me ni noJe sus que tra zia de i ta do nos bra ços.

E três ne gras, fan ta si a das de ra i nhas, ar ras tan do com pri dosmantos, com suas co ro as dou ra das, ca mi nha vam após, la de a das de Con gos ves ti dos de bran co e com enor mes bar re ti nas de li nho, en la ça das de fi tas e re ca ma das de mi çan gas.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 91

As três Ra i nhas

Page 85: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Em trân si to, se guin do o an dor, uma luta tra va va-se en tre asduas alas de ne gros, que dis pu ta vam, ba ten do-se, a co roa da que ocu pa vao cen tro, e a quem cha ma vam a Ra i nha Per pé tua.

E, di gla di an do-se com es pa das de fer ro, dan do vi ra vol tas eca den ci an do os flan cos, os Con gos adi an ta vam-se no prés ti to, can tan do,ao ca lor da pe le ja, no re nhi do com ba te:

Fo gos em ter ra,Fo gos no mar,Que nos sa ra i nhaNos há de aju dar!...

Nes ta pro cis são ha via an do res de com pa re ci men to obri ga do,bem as sim o de San ta Ifi gê nia, que a gen te da ter ra as se gu ra va ter sidopar da, o que acre di ta mos ser um re cur so dos pa dres para agra dar àmes ti ça gem e en ca mi nhá-la aos de ve res do cul to.

E a con ga da, in fa ti gá vel na ação, no ma ne jo das es pa das,repe tia o seu can to, em di a pa são vi bran te e bár ba ro.

Fo gos em ter ra,Fo gos no mar,Que nos sa ra i nhaNos há de aju dar!...

92 Melo Mo ra is Filho

Os Con gos

Page 86: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O efe i to des sa luta, que nem sem pre ter mi na va pela vi tó ria de um dos par ti dos con ten do res, era ge ral men te apre ci a do; ca ben do ao que conquis ta va pe las ar mas a ré gia co roa, um prê mio, uma dá di va emhome na gem.

Con ti nu an do a des fi lar o prés ti to, re gu lar men te pre ce di do deir mãos de opa e an ji nhos, o pe sa do an dor de Nos sa Se nho ra do Ro sá rio apro xi ma va-se, cus to so de apa ra to e des lum bran te de ri que za.

Os pre ci o sos ade re ços da Vir gem fa is ca vam aos re vér be rosdo sol po en te e a pra ta ria bri lha va como es cu dos re lu zen tes.

De Nos sa Se nho ra do Ro sá rio o for mo so sé qui to eram asTa i e i ras.

Este gru po, en can ta dor e ori gi nal, com pu nha-se de fa ce i ras elindas mula tas, ves ti das de sa i as bran cas en tre me a das de ren das, decami sas fi nís si mas e de ele va do pre ço, de i xan do trans pa re cer os se i osmo re nos, arden tes e las ci vos.

Um tor ço de cas sa al ve ja va-lhes à fron te tri gue i ra, en fe i ta dode ar go lões de ouro e la ci nhos de fita; ao colo vi am-se-lhes trê mu losco la res de ouro; e gros sos cor dões do mes mo me tal vol te a vam-lhes, com elegân cia e mimo, os dois an te bra ços, des de os pu nhos até aoter ço su pe ri or.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 93

As Ta i e i ras

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E uma das Ta i e i ras, gi ran do no ar a sua va ri nha en fe i ta da,acom pa nhan do o an dor, can ta va:

Vir gem do Ro sá rio,Se nho ra do mun do,Dê-me um coco-d’águaSe não vou ao fun do!...

E to das, em coro, nas dan ças sa ra co te a das, nos re que brosmais gra ci o sos, res pon di am, can tan do tam bém:

Inde ré, ré, ré,Ai! Je sus de Na za ré!...

Ta i e i raMeu S. Be ne di toNão tem mais co roa,Tem uma to a lhaVin da de Lis boa...

Coro

Inde ré, ré, ré,Ai! Je sus de Na za ré!

Ta i e i ra

Vir gem do Ro sá rio,Se nho ra do Nor te,Dê-me um coco-d’águaSe não vou ao pote!...

CoroInde ré, ré, ré,Ai! Je sus de Na za ré!...

E adi an ta da se guia a pro cis são nas ruas da vila, ven cen do oiti ne rá rio es ta be le ci do, ao som da mú si ca e das can ções po pu la res, ondeo ele men to re li gi o so con fun dia-se com o pro fa no.

De lon ge, quan do as Ta i e i ras emu de ci am o can to, es pa lha -vam-se ou tras vo zes, ru des, sen si vel men te in cul tas.

Eram os Con gos:

Fo gos em ter ra,Fo gos no mar,Que nos sa ra i nhaNos há de aju dar...

94 Melo Mo ra is Filho

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Os ir mãos do San tís si mo, de ca pas ver me lhas, pre ce di amen tão o pá lio, debaixo do qual o vi gá rio da ma triz e mais sa cer do tesres guar da vam a cus tó dia pas san do por en tre a tur ba ge nu fle xa.

Atrás, fe chan do o prés ti to, vi nham dois gran des gru pos se pa -ra dos, dis tin tos: o mu lhe rio na fren te e em con ti nu a ção os ho mens.

Enquan to esta cena mo vi men ta da e de tons cro má ti cos sedes do bra va, du ran te todo o tem po que a pro cis são se acha va na rua, noLar go do Ro sá rio uma se gun da fes ta se re a li za va, fes ta es tron do sa deal ga zar ra e tur bu len ta.

O mas tro, un ta do de sebo, lá es ta va, cer ca do de pre tos e degen te de pé ra pa do.

Eis se não quan do, um mo le co te, para ga nhar um prê mio,trepava a cus to, su bia até mais de meio, e, ao ala ri do ge ral, às pa te a das,aos as so bi os, às va i as, es cor re ga va lá de cima, a sen tar-se no chão, comas per nas ar re ga nha das e dis far çan do o tom bo.

A imi ta ção, está cla ro, era con ta gi o sa; e daí o ma i or en tre te ni -men to para aque la or dem de povo, que pre fe ria este aos ou tros fes te jos.

Ao ano i te cer, a pro cis são se re co lhia, ha via Te Deum, a es pla -na da ilu mi na va, e os ran chos de Con gos e Ta i e i ras dis per sa vam-se, indodan çar e can tar em al gu mas ca sas.

Às 10 ho ras que i ma va-se es plên di do fogo de ar ti fí cio, no le i lãoas pren das se apregoa vam sor tes; as ma tu tas olha vam em bas ba ca daspara as rodas de gi ras sóis que ar di am, para o bar be i ro que amo la va anavalha, para a fra ga ta que com ba tia com duas for ta le zas.

O povo in te i ro pas se a va na pra ça, go za va do es pe tá cu lo dano i te, diver tia-se, na pu re za de seus cos tu mes e à som bra de suastradi ções re li gi o sas...

Dis so nos in for mou Síl vio Ro me ro, o es cri tor que com tan tozelo cul ti va es ses as sun tos, e cujo nome res plen de so li tá rio no ápi ce dapi râ mi de de nos sa li te ra tu ra con tem po râ nea.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 95

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A Vés pe ra de S. João

Por que pe dir mos aos mi tos dos as tros, de que se tem ocu pa do acrí ti ca mo der na, a cor po ri za ção de len das cris tãs? Por que des co bri mosana lo gi as em ce le bra ções di ver gen tes por sua ín do le, quan do en tre elascava-se um abis mo, ele vam-se mon ta nhas, que se pa ram cren ças e ra ças?

Essas in ter ro ga ções for mu lá va mos nós, fo lhe an do pá gi nas de uma eru di ção pe dan tes ca, que ajus ta va por fe nô me nos so la res a co me -mo ra ção do Pre cur sor evan gé li co, fes ta li túr gi ca em toda a cris tan da de,e do ca len dá rio po pu lar em Por tu gal e no Bra sil.

Re tro gra dan do, po rém, ao luar que ama re le ce as crô ni cas dosé cu lo XV, vi mos des fi lar as pri me i ras ca va lha das de S. João nas ilhas dosAço res, aos fo gos de ar ti fí cio e ru fos de tam bo res.

Com o tem po, es sas fes tas en ri que ce ram-se de su pers ti çõesque des ce ram de suas re li gi o sas ori gens, ten do para es cla re cer-lhes amar cha os fa chos de re si na e o lu zir in cen di a do da pól vo ra em de to na -ções ful mi nan tes.

Qual a gê ne se des se fol gue do pú bli co nas ter ras de além-mar,onde ain da per du ra com suas fór mu las au gu ra is e en can ta men tos,foi-nos ve da do des co brir. O mes mo não su ce de no Bra sil que, ace i tan do o le ga do na sua cas ti da de pri mi ti va, cri ou-lhe uma len da, acres cen tou-a

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na par te mí ti ca, e o am pli ou em re la ção ao con cur so de no vas ra ças e di -ver sos me i os.

Entre nós a re vo lu ção foi rá pi da e per ten ce toda ao pas sa do...O es tran ge i ris mo, que nos es ma ga, tudo que é nos so vai le -

van do con si go!...E qua se nada nos res ta!É, pois, abrin do uma ja ne la às tra di ções e a por ta à gen te an -

ti ga, que sus pen de re mos às ru í nas da casa pa ter na mais este qua dro que trou xe mos da in fân cia, emol du ra do dos es pec tros das ro sas da nos sapri me i ra mo ci da de.

Para as fes tas de S. João eram múl ti plos os cos tu ma dos in -trói tos. Re ce bi am-se con vi tes dos gran des se nho res, dos fa zen de i ros ri -quís si mos, da bur gue sia abas ta da e do pro le tá rio ar ran ja do. No Rio deJa ne i ro, lu ga res ha via em que se fes te ja va o Ba tis ta do modo mais es -tron do so e fi dal go. Em Inha ú ma, em Pa que tá, em Cam po Gran de, nailha do Go ver na dor, etc., o mas tro plan ta do com a bo ne ca, en fe i ta docom es pi gas de mi lho, la ran jas e mais fru tas, in di ca va o fes te jo no sí tio,as pro xi mi da des do dia.

Nos ar ra bal des, as chá ca ras e pa la ce tes, com o mes mo si nal,cha ma vam a aten ção dos vi zi nhos que pro pa la vam in dis cre tos os no mes dos do nos, co men tan do a lis ta, às ve zes ima gi ná ria, dos con vi da dos.

Ante ci pa da men te, viam-se nas ruas pre tos de ga nho comces tos car re ga dos de fo gue tes e fo gos de todo gê ne ro, de ca nas e ba ta -tas-do ces, de ca rás e mi lhos ver des, de ga li nhas, ovos e pe rus; de tudo,en fim, que di zia res pe i to à fo lia da no i te e aos la u tos jan ta res e ce i as que en tão se da vam.

Os fa zen de i ros des pen di am lar gas so mas, ves ti am de novo aes cra va tu ra, ma ta vam re ses em ob sé quio aos con vi da dos da cor te. Emcasa da Ba ro ne sa de So ro ca ba, do Ba rão de Me ri ti, e do Mar quês deAbran tes, pre lu di a vam-se os re go zi jos da no i te de se ja da; no pa lá cio deS. Cris tó vão, as prin ce sas re co men da vam às suas com pa nhe i ras de in -fân cia que com pa re ces sem bem cedo; em vá ri os pon tos da ci da de, ospais de fa mí lia dis pu nham da le nha para as fo gue i ras, co lo ca vam so bre a mesa os li vros de sor te, en cor do a vam-se os vi o lões para os des can tes.

98 Melo Mo ra is Filho

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As ro di nhas, as pistolas, os fo gue tes, bus ca pés, chu ve i ros,rojões, car tas de bi chas, gi ras sóis, tra ques de sete es tou ros, bom bas, euma diver si da de en fa do nha de fo gos, alas tra vam as me sas, en tu pi am as man gas de vi dro, atra van ca vam as ga ve tas.

De par com tudo isto, as do nas de casa atro pe la vam asescra vas, ar ru man do as provi sões, ra lan do o mi lho ver de e o coco paraa can ji ca, fa zen do os de li ci o sos bo los de S. João.

Nas an te vés pe ras, na in ti mi da de do lar, as mo ças re u ni am-se à luz do can de e i ro, e os me ni nos, des cen do aos pu los do sofá da sala,acer ca vam-se da avó, que, tre men do com os lá bi os, ro lan do nos de dosas con tas do ro sá rio, nar ra va, sen ta da numa es te i ra, a len da do Ba tis ta edas fo gue i ras.

E as mo ças, aco mo dan do as cri an ças, e as cri an ças, es bu ga -lhan do os olhos, fi ta vam-na, que, uma vez re sol vi da, as sim co me ça va:

– Vou con tar-vos, meus ne ti nhos, uma his tó ria do prin cí piodo mun do. “Um dia, Nos sa Se nho ra, que tra zia a Nos so Se nhor Je susCris to, foi vi si tar a sua pri ma San ta Isa bel, que tam bém tra zia em seuben di to seio a S. João Ba tis ta. Ape nas as duas sa gra das pri mas se avis ta -ram, o di vi no Ba tis ta, que não tar da va a nas cer, se ajo e lha ra em ado ra -ção a Je sus. San ta Isa bel, que isto sen ti ra, não tar dou em co mu ni car omi la gre à Vir gem, que, exul tan do, per gun tou-lhe: ‘– Que si nal me da re is, quan do nas cer vos so fi lho?’ ‘– Man da rei plan tar nes ta mon ta nha ummas tro com uma bo ne ca e acen der em tor no uma gran de fo gue i ra’, res -pon deu-lhe.

“E de fe i to: na vés pe ra de S. João, a Mãe de Deus, ven do desua mo ra da uma fu ma ci nha, la ba re das e o mas tro, par tiu, indo vi si tarSan ta Isa bel.

“Des de en tão”, con clu iu a boa ve lha, “é que se fes te ja o san to com mas tros e fo gue i ras.”

– Oh!... Que his tó ria tão bo ni ta!... in ter rom peu um dosouvin tes.

– Já ago ra escutem ou tra, meus fi lhi nhos; tem o mes momoti vo e é da mes ma data: é do tem po em que nem eu nem vo cêssonhá va mos de nas cer, e que a ter ra es ta va toda co ber ta d’água.

– Con te, vovó, con te! Tão bo ni to!!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 99

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E a ve lhi nha, ali san do os ca chos de ca be los bran cos, de i xan do pen der os bra ços so bre as per nas cru za das, sor veu um pe que no ron co,abriu a boca des den ta da, pros se guin do:

– É o res to da his tó ria. “Me ses de po is, quan do San ta Isa belcan ta va, ni nan do seu ben di to fi lho, este lhe per gun tou: ‘– Mi nha mãe,quan do é o meu dia?’ ‘– Dor me, meu fi lhi nho, dor me; logo que ele for,eu te di rei.’ E S. João dor miu. Acor dan do, po rém, na no i te de S. Pe dro, e ou vin do fo gue tes e ven do fo gue i ras ace sas, in sis tiu: ‘– Mi nha mãe,quan do é o meu dia?’ ‘– O teu dia já pas sou’, acu diu-lhe ela. ‘– Ora,mi nha mãe, por que não me dis se, que eu que ria ir brin car na Ter ra.’”

– Sim, por que não dis se? re tor qui ram pe sa ro sos os me ni nos.– San ta Isa bel teve ra zão, meus ne ti nhos; se S. João des ces se

do Céu, o mun do se ar ra sa ria em fogo!Essas tra di ci o na is his tó ri as eram cor ren tes em toda a par te,

dan do-lhes in te i ro cré di to ge ra ções que se fo ram e ge ra ções que ain daexis tem.

Di a ri a men te, en con tra vam-se aqui e ali gru pos de fa mí li ascons ti tu in do pe que nas tri bos. Adi an te iam as cri an ças, logo após asmo ças e os ra pa zes, de po is os pais e os ve lhões, emi gran do para fora da ci da de ou para fora da cor te.

A es tes acom pa nha vam, em gra da ção opos ta, os pre tos epre tas ido sos, car re gan do la tas de fo lha com rou pa de uso; as mu ca mas, le ves ces tos de jun co e em bru lhos com ob je tos per ten cen tes às si -nhás-mo ças; e, na re ta guar da, iam os mo le qui nhos com o cha péu-de-sole a ben ga la do si nhô-ve lho, um ca chor ri nho de es ti ma ção, um sa güi, um pa pa ga io, uma bu gi gan ga qual quer.

Os que vi nham pelo cais da Gló ria des cor ti na vam o mar sul -ca do de bo tes e ca no as en tra dos n’água ao peso dos pas sa ge i ros, sen ta dos e de pé, que os en chi am, ace nan do com len ços e em ale gres vo ze ri as.

Pen du ra do à proa dos bar cos, um es cra vo ou um ra pa gão ris -ca va um fós fo ro, mor dia o pa pel de um fo gue te, e, apru man do-o aolon go do cor po, ata ca va-o, es tou ran do no alto, às re per cus sões do eco.

Ao ama nhe cer, tudo se acha va or de na do e pre vis to: a po pu la -ção dis tri bu í da, as ban de jas de fo gos so bre os apa ra do res e cama doquar to de dor mir; as ca nas, os co cos, os ca rás e os mi lhos em pi lha dos

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na co zi nha; a fo gue i ra abra ça va o mas tro; e Os da dos da For tu na, A roda do Des ti no, O Ci ga no, e ou tros li vros de sor tes, for ne ci dos pe las an ti gas li vra -ri as Gar ni er, Fa u chon e La em mert fi ca vam à es co lha dos con sul tan tesde orá cu los.

Ape nas es cu re cia, as má qui nas bo i a vam no éter úmi do e trans -pa ren te; ca be ças de al ca trão fu ma vam ru bras nas ruas; e os bus ca-pés lar ga -vam-se atrás dos pas san tes, ra be an do, ro lan do, ser pe an do, em fúl gi doses tou ros.

E uma pre ta, per se gui da, cor ria da qui; e um in di ví duo, li vran -do-se, pu lan do, en cos tan do-se a um muro, avul ta va aco lá; e os ra pa zes,no ar dor do brin que do, riam-se a bom rir do ex pe di en te das ví ti mas edas des com pos tu ras con se cu ti vas.

Às ba da la das do ara gão, o ar mos tra va-se mar che ta do das zo nas lumino sas das fo gue i ras que ar di am nos quin ta is e chá ca ras; e, dossobrados, os com ba tes a pis to las, ao mes mo tem po que for ma vam dasja ne las às cal ça das cachoe i ras de fogo, ad qui ri am ma ra vi lho so as pec to, à pro por ção dos ti ros de co res, que, pon tu an do iri a dos as pa re des, ca íamem ge mas fu me gan tes no chão dos la je dos.

Ao logo dos ca mi nhos, com es tra nho e equívoco ru í do,escu ta vam-se des car gas de car tas de bi chas, que es tou ra vam em po tesde bar ro e bar ri cas co ber tas, co lo ca dos à dis tân cia pe los ha bi tan tes doquar te i rão.

Fa zen do sin gu lar con tras te com esta cena de apo te o se te a tral,à ró tu la de pau da casa tér rea, uma mu lher em bi o ca da se gu ra va na mãode uma cri an ça, sa cu din do, na ex tre mi da de da fle cha, in de flu xa da ro di -nha.

Na to ta li da de das ha bi ta ções e nas fa zen das, o tro no de S. Joãodes lum bra va de lu zes e vi ço sas flo res, or na do de sa ne fas ca rís si mas, eelevando-se de uma to a lha da cor das ne bli nas, pre ga da aos can tos doal tar com la ços de fita e pra te a dos al fi ne tes.

Na roça, as fo gue i ras ti nham no cen tro, ora o mas tro, orauma ár vo re, que es ta la va mi na da pe las cha mas, ar ri an do-se com fra gor.

Os es cra vos, de cal ça de al go dão cor ta da ao jo e lho, de ca mi sabran ca do mes mo pano e aberta no pe i to, ba tu ca vam com as es cra vas à

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 101

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roda do fogo, as san do ca rás e ba ta tas, ti ran do os do Nor te os seus cocos,dan ça e can to po pu lar da que les ser tões:

Lá vai amor, lá se vai! O amor lá se vai!Pe las pa re des ar ri ba Nin guém vai!

Onde vai, la va de i ra? – Vou la var.E eu vou apren der A na dar.

Este João é um? – Será ou não. Tatu no matoCom seu gi bão, Um pé cal ça do,Ou tro no chão.

’Sta va na pra ia es cre ven doQu an do o va por ati rou,Foi os olhos mais bo ni tos Que as on das do mar le vou.

Lá vai amor, lá se vai! O amor lá se vai! Pe las pa re des ar ri ba Nin guém vai!

À por te i ra das fa zen das e es cla re cen do a en tra da, as ca be ças deal ca trão que i ma vam toda a no i te. Os fa zen de i ros, de ro da que de brim ede cha péu-do-chi le, fol ga vam no ter re i ro, ob se qui an do os hós pe des, que ata ca vam fo gos à dis cri ção, que fa zi am guer ra a bus ca-pés fa che a dos namão cal ça da de luva de cou ro, e cu jas bom bas eram lan ça das aos ar ra i a is con trá ri os.

A fa zen de i ra, aten ci o sa e dis tin ta, man da va ser vir aos con vi -da dos pi res de can ji ca, man jar, ro le tes de cana as sa da e bo los de S. João.

As mo ças da cor te, na ele gan te va ran da, sus pen di am aci ma da fron te pis to las de lágri mas, cra ve i ros de chu va de ouro, que ilu mi na vam,

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com os seus pro je tis e fa ís cas, os te tos lon gín quos das sen za las va zi as.Ou tras, gru pa das à mesa de jan tar, de i ta vam da dos, liam as qua dri nhasda sor te, pror rom pi am em gar ga lha das, às pre di ções do des ti no:

Um ve lho tor to e pan çu do,De na riz de pal mo e meio,Há de ser o teu con sor teMui bre ve, se gun do cre io.

É oci o so di zer que nes sas oca siões con fra ter ni za vam-se osco ro néis e te nen te-coronéis do lu gar, to das as for ças dos par ti dos, des de o mais in flu en te che fe ele i to ral da For mi ga até o mes tre-escola deVas sou ras, ou de não im por ta que vila.

E as fo gue i ras do ter re i ro vo mi ta vam gros sas la ba re das; asmá qui nas su mi am-se na no i te ou des fa zi am-se em go tas de fogo; e as gi -rân do las, as bom bas, as ro que i ras es tru gi am aos – Viva S. João! – cu josecos iam mor rer na flo res ta.

Os ne gros des pe ja vam nos bra se i ros car ros de mi lho e ca rás,verdes ca nas e ten ras es pi gas; e os mo ços e mo le ques, pu lan do asfogue i ras, apa re ciam no alta da que la at mos fe ra íg nea, abrin do a boca egri tan do:

– Acor da, João!...Ao que mu i tos fes te jan tes res pon di am can tan do:

S. João ’stá dor min do,Não acor do, não!Dê-lhe cra vos e ro sasE man je ri cão!

Nes sa no i te, den tro e fora das gran des ci da des, um pou coan tes de meia-no i te, res va la va, aos cla rões das fo gue i ras, o car ro si len ci o so das su pers ti ções na ci o na is.

Fos se de ba i xo dos te tos de es tu que ou da te lha-vã da po bre za,es sas cren ças abri ga vam-se sem cons tran gi men to, exer cen do po de ro sain fluên cia so bre as mu lhe res e pes so as sim ples.

Assim, ao es tam pi do dos fo gos, ao bri lho de cres cen te dasenor mes la vas, o mo vi men to su pers ti ci o so ini ci a va suas prá ti cas, cu josdog mas con sis ti am no se guin te, sem pre exe cu ta do ao to que fa tí di co dameia-no i te:

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 103

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Em lou vor de S. João, plan ta va-se um alho: se ama nhe cia gre -la do, ob ti nha-se o que se de se ja va.

De i xa va-se ao se re no uma ba cia d’água e ia-se, an tes do nas -cer do sol, mi rar o ros to: se o in di ví duo não via a sua som bra, era si nalque não che ga ria ao ou tro S. João.

Pas sa va-se, em cruz, um copo che io d’água por so bre a fo -gue i ra, e que bra va-se den tro do lí qui do um ovo com a cla ra e a gema.De ma nhã, se apa re ci am os li ne a men tos de um na vio, sig ni fi ca va vi a -gem; se a for ma de uma igre ja, ca sa men to; se um ca i xão, en ter ro.

De um ou tro copo, que tam bém pas sa va-se na fo gue i ra, emlou vor de S. João, to ma vam-se as mo ças sol te i ras um bo che cho, e fi ca -vam atrás da por ta da rua. O pri me i ro nome de ho mem que ou vis sempro nun ci ar, se ria o da que le que lhes es ta va para ma ri do.

Antes da meia-no i te, de via-se ir ao quin tal ou ter re i ro ondehou ves se plan ta do um pé de ar ru da com flo res. Esten dia-se no chãouma to a lha e acen dia-se nas pon tas duas ve las de cera.

O fim des te sor ti lé gio era apa rar as se men tes que cairiam àmeia-no i te, se men tes es sas que nin guém con se guia ob ter, por isso que o Di a bo era quem na que le mo men to as re co lhia, as som bran do o in di ví -duo que ou sas se dis pu tá-las.

Um dos pre ju í zos mais ar ra i ga dos en tre o povo era que asbra sas da fo gue i ra fi ca vam ben tas; e mu i tas pes so as as guar da vam ou en -vi a vam aos pa ren tes au sen tes, acre di tan do que quem as pos su ís se vi ve ria mais um ano.

Aos pri me i ros ra i os de sol – por que de po is as águas per de ri amde sua vir tu de – to ma va-se o ba nho de S. João, que go za va de pro pri e -da des pre ser va ti vas e mi ra cu lo sas.

Esses brin que dos pro lon ga vam-se, às ve zes, até S. Pe dro, com o mes mo apa ra to e len te jou la do de abu sões.

Por ago ra fe cha mos a ja ne la às tra di ções e nos des pe di mossa u do sos da gen te an ti ga, não nos im por tan do de ser aco i ma do de na ti -vis mo, sen ti mento su bli me que her dei de meu pai, e que bebi no seioma ter no, que são as ta ças do bem e as fon tes da vida.

104 Melo Mo ra is Filho

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O 2 de Ju lho

(BAHIA)

Nada exis te de mais lú gu bre do que o fron tis pí cio da Li -ber da de.

Ao fitá-lo, a vis ta ma ra vi lha-se di an te de re sis tên ci as de ses pe -ra das, de cor pos ba le a dos que se er guem a meio e tom bam no chão en -san güen ta do, de mem bros mu ti la dos sob a roda pe sa da das car re tas, decor céis que pu lam sem dono por so bre mon tões de ca dá ve res, até que,lá na ex tre ma, ao mar che-mar che dos ba ta lhões, ao dis pa rar da fu zi la ria,uma ban de i ra flu tua em si nis tra mu ra lha ou ne gra for ti fi ca ção, ar vo ra dapelo ven ce dor que, ten do na mão a es pa da, agi ta aos qua tro ven tos o es -tan dar te vi to ri o so, pa re cen do, na ani ma ção fe roz, le van tar vi vas à Pá triae à Li ber da de.

Aqui e além, cla rins par ti dos ao to que das in ves ti das, tam bo resdes pe da ça dos, lan ças e ba i o ne tas re lu zin do como o olhar do anjo dodes ti no, sal van do das es tân ci as da mor te o nome e a gló ria dos bra vos.

Eis mais ou me nos o as pec to ge ral da Ba hia, quan do osterrí ve is gra na de i ros do Gene ral Ma de i ra já ha vi am entre cho ca do norecôn ca vo de suas ar mas com as dos exér ci tos de La ba tut, a quem deve a

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cam pa nha da Inde pen dên cia da que la pro vín cia as fan far ras tri un fan tescom que en tra na His tó ria.

E em Ita pa ri ca, no Ca bri to, em Pi ra já, fe ri am-se lu tas ti tâ ni cas,pe le jas en car ni ça das, em que os ba i a nos con quis ta vam pal mo a pal mo oter ri tó rio pá trio ao po de rio luso que o dis pu ta va.

Fú ne bre, po rém, des ceu a no i te do 1º de ju lho so bre a ci da de. Apro ve i tan do a cin za da den sa das tre vas, er ran tes vul tos cres ci am va -gan do nas ruas de ser tas e saíam ca u te lo sos das ca sas er mas.

Aos ar cho tes in fla ma dos, as pa di o las trans por ta vam os sol -da dos fe ri dos, as car re tas ba ga gens es col ta das, en quan to os ba ta lhõesmar cha vam hu mi lha dos ao cais do em bar que.

O sa que, a pi lha gem nos tem plos, a pro fa na ção das sa gra dasima gens eram a se nha das tro pas ven ci das.

As sen ti ne las per di das aten ta vam o im pre vis to, e a es qua draque le va ria a seu bor do os lu si ta nos, de se nha va-se nas águas da baía, si -nis tra como es ses mons tros que nos opri mem no cli ma as fi xi an te dospe sa de los.

O mo men to che ga ra em que uma ou ou tra luz ace sa nas bar -ra cas ex tin gui ra-se, o si lên cio amor da ça ra os ecos, per ce ben do-se ape nas das ri ban ce i ras o res so no do mar, car re gan do tar do os ven ci dos com osseus des po jos de des tro ços.

Às pri me i ras ru ti la ções do cre pús cu lo, Ma de i ra e suas tro pasfa zi am-se de vela, per se gui dos pela es qua dra im pe ri al até ao Tejo.

No dia 2 de ju lho de 1823, à uma hora da tar de, o exér ci topa ci fi ca dor, ten do por che fe Lima e Sil va, fez a sua en tra da na ci da de,aos re pi ques de si nos, às acla ma ções do povo, ao som de hi nos mar -ci a is.

Ba ta lhões ha via que mar cha vam qua se nus; ou tros, ves ti dosde fo lhas ver des; tra zen do mu i tos dos sol da dos pe da ços de car ne en fi a -dos nas ar mas, aves e caça mor ta ba ten do-lhes aos jo e lhos, fru tos emais pro vi sões, por isso que nada en con tra ri am na ci da de fa min ta ede vas ta da.

106 Melo Mo ra is Fi lho

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Qu an do, por ba i xo de um arco-de-tri un fo des fi la va o exér ci to, e as fre i ras da So le da de des ce ram, tra zen do gri nal das para a fron te doshe róis, Lima e Sil va foi co ro a do, to dos os ge ne ra is fo ram co ro a dos, sónão o foi La ba tut – por que se acha va pre so!

Mas a in tri ga e a per fí dia ti ve ram jus ta ex pi a ção.Da guer ra da Inde pen dên cia ape nas dois no mes a Ba hia re co -

men dou à me mó ria e fi gu ram nos seus can tos po pu la res:– La ba tut e Ma de i ra!

Como co me mo ra ção dos seus fe i tos bé li cos, a Ba hia re pro -du zia anu al men te esse epí lo go bri lhan te – a en tra da do exér ci to li ber ta dor – no dia 2 de ju lho.

Para que as fes tas ti ves sem mais re le vo, oito dias an tes o ban do anun ci a dor pre ve nia a po pu la ção, con vic ta de sua nova so be ra nia, que oprés ti to sim bó li co apa re lha va-se, que as ar ca ri as tri un fa is e os pa lan quesvis to sos er guer-se-iam na pra ça do Pa lá cio e no Ter re i ro com des lum -bra men tos in di zí ve is, cum prin do aos ha bi tan tes da ci da de a ilu mi na çãoe ador nos das fa cha das de suas ca sas du ran te as três no i tes de pá trio re -go zi jo.

Mo ços da mais alta no me a da, for man do o ban do, saíam mon -ta dos em lin dos ca va los, de cri nas e ca u da tra ma das de fi tas ver des eama re las, so an do, aos pe i to ra is de ve lu do e ca be ça das, cho ca lhan tesgui zos.

Os ca va le i ros ves ti am de bran co, tra zi am fo lhas de fumo ecafé en la ça das ao cha péu de pa lha, de vin tém; pen di am-lhes do om broca pe las de vi ço sas flo res, e os ten ta vam a ti ra co lo lar ga fita acha ma lo ta da,de co res bra si le i ras.

Em duas lon gas fi las mar cha vam dois a dois, al te an do nosares pro fun da e ver de jan te abó ba da, cons ti tu í da por ar cos de fo lhas eflo res, sus ten ta dos nas ex tre mi da des pe los su ces si vos pa res.

O por ta-es tan dar te ia no cen tro. Aos vi vas re pe ti dos ao Doisde Ju lho, à Inde pen dên cia, ao Impe ra dor, a La ba tut e seus ge ne ra is, aopovo ba i a no, etc.; às acla ma ções que par ti am dos so bra dos com o per -

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 107

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fu me das flo res que caíam, a lus tro sa pas se a ta dis tri bu ía pro cla ma ções e po e si as, avi ven ta das pela gran de alma da pá tria:

Vai de novo sur gir, ó ba i a nos,Vos so dia de gló ria sem par;Nu vem d’ouro pa rou no ho ri zon te,Já vem per to, não tar da a ra i ar...

Na vés pe ra do Dois de Ju lho, o povo, à meia-no i te, le va va ocar ro para a La pi nha, ao cla rão de ar cho tes, em fes ti vos cla mo res.

Pode-se as se gu rar que nes ta no i te toda a ci da de fi ca va des -per ta; nas ruas por onde pas sa va o cor te jo, pen di am das ja ne las glo bos e lan ter nas ace sas, e nos can tos das sa ca das de pau ou de fer ro, gran desman gas de vi dro pro te gi am as cha mas das ve las, que ar di am des de oes cu re cer.

A cri ou la da e a mu la ta ria, aos ma go tes, can tan do qua dri nhaspa trió ti cas e em se re na tas lo ca is, des fru ta vam a no i te, pre li ban do os pra -ze res da fes tan ça.

A co me çar da vés pe ra, o co mér cio por tu guês fe cha va aspor tas, em ra zão dos ata ques e vi o lên ci as das tur bas, não es ca pan do dos des va ri os po pu la res as ta ver nas, onde a ca pa do ça da in fre ne em bri a ga -va-se, zom ban do dos di re i tos do ta ver ne i ro ame dron ta do, que tudofran que a va, con tan to que o de i xas sem vivo.

Nes ses dias eram co muns os fe cha-fe cha, os mata-ma ro tos, de que re sul ta vam re pro va das cor re ri as e fre qüen tes as sas si na tos.

Des de às 6 ho ras, as for ta le zas sal va vam, as ruas em ban de i -ra das co a xa vam de fo lhas aro má ti cas, os ba ta lhões pa trió ti cos cru za -vam-se com ban das de mú si ca; e nu me ro so povo, ten do como dis tin ti vosdo dia la ços de fita, e fo lhas das co res na ci o na is na abo to a du ra e nosves ti dos, aglo me ra va-se nas pra ças, nas es qui nas, em tu mul tos ca lo ro sos.

Um ano hou ve, se gun do o tes te mu nho de mi nha mãe, emque ar ma ram-se em di ver sos pon tos for ta le zas, que da vam sal vas vi to ri o -sas à pas sa gem de uma fra ga ta pu xa da por ma ri nhe i ros, a qual se in cor -po ra va ao cor te jo po pu lar.

À uma hora da tar de, des fi la va pelo Ter re i ro o co los sal prés ti to, vin do da La pi nha.

108 Melo Mo ra is Filho

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Nin guém ima gi na a efu são pa trió ti ca dos ba i a nos no ma i ordia de sua pro vín cia; é in cal cu lá vel o gran di o so es pe tá cu lo ofe re ci dopela raça au tên ti ca dos pe le ja do res da Li ber da de no ta bla do imor re dou rodas con sa gra ções pá tri as.

Ape nas as pri me i ras le vas de povo trans pu nham o Ter re i ro,os si nos do Co lé gio, de S. Fran cis co, de S. Do min gos e da Sé re pi ca vamgar ri dos, e cen te nas de gi rân do las dis pa ra vam, es tou ran do pro lon ga das;o ar en fu ma ça do re ti nia de hi nos, de vi vas, de can tos po pu la res, em quea cons ciên cia anô ni ma ce le bra va a gló ria dos he róis e a pas sa da luta.

O ar ce bis po e o ca bi do, o pre si den te da pro vín cia e a no bre za,lá es ta vam no tem plo, ar ma do de ga las para a ação de gra ças.

E o prés ti to avan ça va...As mo ças, as cri an ças, as fa mí li as de bru ça vam-se das ja ne las,

agi ta vam len ços, acla man do o Dois de Ju lho, e as es cra vas, com ces tasde flo res, aguar da vam, um pou co re ti ra das, as or dens das se nho ras.

E o tu mul to cres cia...De re pen te, o car ro tri un fal as so ma va, pu xa do por ci da dãos

ves ti dos de bran co e com cha péus e en fe i tes ca rac te rís ti cos.Em épo cas pri mi ti vas, este car ro con du zia uma ca bo cla com

seus ador nos sel va gens, pi san do um dra gão, acer ca da de ca bo cli nhosigual men te ves ti dos de pe nas. Era ele enor me e pe sa do, ti nha as ro dasdou ra dos e com pre en dia uma ale go ria: – Pa ra gua çu cal can do aos pés oDes po tis mo. Mais tar de essa ca bo cla foi subs ti tu í da por uma fi gu ra in dí -ge na, sem a mes ma pom pa, nem o mes mo sé qui to.

Qu an do o car ro apa re cia, as ja ne las es tron da vam de apla u sos,as flo res inun da vam-lhe o trân si to, e os pa tri o tas, pen di dos para a fren te, en te san do as cor das com que o ro da vam, can ta vam as suas tro vas deim pro vi so, sa tu ra das de ri dí cu lo e es tre bi lha das de ódi os re cen tes:

La ba tut ju rou a Pe dro,Qu an do lhe be i jou a mão,Bo tar fora da Ba hiaEsta mal di ta na ção!

Embo ra da Eu ro pa ve nhamBa ta lhões aos mil e mil,Nos sos bra ços, nos sos pe i tos,São mu ra lhas do Bra sil.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 109

Page 102: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E mais adi an te:

O Pa u lo, Ru i vo e Ma de i ra,To dos três numa ja ne la,Esfo lan do um pé de bur ro,Su pon do ser de vi te la... Irra! Irra!...

Só o Pa u lo foi quem pôdeTi rar do bur ro a ca ve i ra,Para man dar de me ren daAo seu Ge ne ral Ma de i ra. Irra! Irra!...

Pa u lo, Ru i vo e Ma de i raFo ram fa zer ca ru ru;O Pa u lo deu a fa ri nha,Ru i vo me xeu o angu.

O Ma de i ra que ria Se co ro ar!Bo tou uma sor te,Saiu-lhe um azar!

E a cri ou la da ba tia pal mas, re pe tin do em chu la:

O Ma de i ra que ria Se co ro ar!Bo tou uma sor te,Saiu-lhe um azar!

À Ca bo cla se gui am os ba ta lhões com as fe ri das ain da nãocica tri za das re ce bi das nos com ba tes da Inde pen dên cia, o ba ta lhãoAca dê mi co dos es tu dan tes de Me di ci na com os len tes da fa cul da de e,em anos re mo tos, o co man dan te das ar mas, ves ti do de bran co e comcha péu de pa lha, pu xa va uma bri ga da de pa tri o tas, da La pi nha à pra çado Pa lá cio.

Como vivo si mu la cro da en tra da do exér ci to, o car ro da ba ga -gem pri ma va pela ori gi na li da de. Era uma mons tru o si da de am bu lan te,cober ta de fo lhas de café, tra zen do man ti men tos e fru tas para as for çasdes pro vi das.

110 Melo Mo ra is Filho

Page 103: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Aos ti ran tes des te ajus ta va-se gen te de toda a cas ta, can tan doe ti ran do ver sos em es ti lo fá cil e gra ci o so:

Vai o car ro da ba ga gemCar re ga do de ana nás,A mu lher que não tem ho memVive sem pre dan do ais...

– Viva o Dois de Ju lho! – Viva a Inde pen dên cia! – Viva aBa hia! – gri ta vam, alu ci na das de jú bi lo, as mul ti dões, le van tan do os bra -ços, agi tan do os cha péus de fi tas, acom pa nhan do, fas ci na das, os sím bo -los pre ci o sos de suas li des e de suas gló ri as.

De dis tân cia em dis tân cia, a pro cis são pa trió ti ca pa ra va, e ospo e tas re ci ta vam os seus ver sos, ain da aque ci dos do fogo das bom bar das,ao ala ri do das vi tó ri as.

Nos vôos de cem cô va dos de seu gê nio de re pen tis ta, en gran -de ci do na bri lhan te apo te o se que lhe pre pa rou o Dr. Ro sen do Mo niz no ex ce len te li vro em ho me na gem a seu pai, eis Mo niz Bar re to que res sur genes te dia, do qual foi ele um can tor, de po is de ter sido um com ba ten te...

E o ve te ra no, as som bra do de ta len to, ex ta si a do nos fes tins dapá tria, tan gia a sua lira, a cu jos can tos as mul ti dões em be ve ci am-se:

Olhai, povo! Re su mi daAqui vos sa gló ria está.Povo, da re is vos sa vidaAos ve lhos de Pi ra já.Fo ram eles que na guer raLi vra ram a vos sa ter raDo jugo fer re nho e vil;Fo ram eles que aju da dosPor Deus, de ram de no da dosInde pen dên cia ao Bra sil.

Estes ve lhos que frus tra ramTre men dos pla nos hos tis,Qu an do os man ce bos ju ra ramO que esta le gen da diz;Estes ve lhos que em ba ta lhasGa nha ram es tas me da lhas

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 111

Page 104: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Que di zem – Res ta u ra ção –;Estes ve lhos, como dan tes,Hoje mar cham tri un fan tesÀ fren te de um povo-ir mão.

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A esse so le ne cor te jo, a es sas pom pas an ti gas, acres cen tou-sepos te ri or men te o car ro do Ca bo clo; e ao ba ta lhão Aca dê mi co, que ce dia o lu gar de hon ra ao dos Ve te ra nos da Inde pen dên cia e Cou ra ças Ba i a nos, logo que es tes se apre sen ta ram, mu i tas ou tras fa lan ges pa trió ti cas, taiscomo os ba ta lhões dos De fen so res da Li ber da de, dos Ca i xe i ros Na ci o -na is, Mi ner va, Dois de Ju lho, etc. A es tes as so ci ou-se, em data que nãonos re fe ri ram, uma com pa nhia de ale mães, de pa le tó bran co, fita en car -na da a ti ra co lo, tor nan do-se sa li en te pelo ri quís si mo es tan dar te, bor da do a ouro fino, que des fral da va.

Toda a tro pa da guar ni ção ul ti ma va o sé qui to, com uni for mede gran de gala, re ti ran do-se a quar téis quan do fin da va a pa ra da.

As pes so as abas ta das da vam jan ta res; a fi dal guia, em seus pa -lá ci os, sun tu o sos ba i les; e a So ci e da de da Inde pen dên cia, or ga ni za daapós a guer ra, li ber ta va mí se ros ca ti vos – em nome da Li ber da de.

Con clu in do o seu tri un fan te iti ne rá rio, os car ro ale gó ri cos fi -ca vam na pra ça do Pa lá cio, de onde se gui am, de po is dos fes te jos, paraPi e da de.

Às oito ho ras, a ci da de era toda lu zes, e o Ter re i ro re gur gi ta va de gen te.

À fren te da igre ja de S. Do min gos, o pa lan que prin ci pal ele va -va-se mag ni fi cen te, no meio de lis tras de lu zes que sul ca vam in ter rom pi -das a ex ten são das ca sas, e dos qua dros e triân gu los ar den tes das tor res,das por tas e das ja ne las dos tem plos dis se mi na dos.

Qu an do a ban da mi li tar to ca va o hino na ci o nal, as cor ti nasras ga vam-se, os re tra tos do Impe ra dor, da Impe ra triz, de La ba tut e dosbra vos da Inde pen dên cia des ven da vam-se, e o pre si den te, ge ne ra is, ve -te ra nos e gran des do Impé rio adi an ta vam-se e sol ta vam vi vas ao Impe -ra dor, à Ba hia, ao Dois de Ju lho, etc.

112 Melo Mo ra is Filho

Page 105: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Fin do esse ato, ou tro mais im por tan te ia ter lu gar: a dis tri bu i -ção de car tas de li ber da de, fe i ta pelo sá bio e ve ne ran do D. Ro mu al do,no pa lan que do Dois de Ju lho.

Aqui do bre mos o jo e lho di an te do tú mu lo de Chi co San tos, o li ber ta dor de es cra vos, o pre si den te emé ri to da So ci e da de Li ber ta do raDois de Ju lho, o abo li ci o nis ta de ina ba lá ve is con vic ções, como LuísGama e José do Pa tro cí nio.

Esta ce ri mô nia ter mi na va em lá gri mas, que fun di am as al ge -mas des pe da ça das do ca ti ve i ro, para que as não vis sem os po e tas da li -ber da de.

Des cen do o ar ce bis po, o pre si den te e sua co mi ti va, to ca va avez dos re pen tis tas ins pi ra dos.

E quem eram eles? O povo sa bia de cor os seus no mes, e aim pren sa le va va a todo o Bra sil as pro du ções de seu es tro.

Do lu mi no so gru po que do mi na va na que les tem pos, for man do o zo día co da po e sia ba i a na, mo vi am-se, em tor no de Mo niz Bar re to,Gu al ber to dos Pas sos, La u rin do Men don ça, Luís Álva res dos San tos,Sin frô nio, Ma nu el Pes soa, For tu na to Fre i tas, Bo lí var, Ro dri gues da Cos tae ou tros im pro vi sa do res, que afi na vam pelo pa tri o tis mo os seus can tos e as suas glo sas ins tan tâ ne as.

Um de les, che gan do-se ao ava ran da do, ba tia pal mas, com pas -san do o au di tó rio an tes de co me çar.

Dis tin ga mo-lo. Cor re ta men te ves ti do, da cor dos ca li fas, deolhar pe ne tran te e ges to dis tin to, nin guém há que o des co nhe ça, to dos o ad mi ram. É o Dr. Luís Álva res dos San tos.

O povo re ce be-o com de lí rio, o si lên cio res ta be le ce-se, e ele,de sa tan do a pa la vra vi bran te, de cla ma nos ar rou bos do ins pi ra do:

...Sim: as nu vens lá tão cal mas,São dos guer re i ros as al mas,Que en tre as lú ci das pal masO Dois de Ju lho vêm ver.E ven do o dia pom po so,– O seu pa drão glo ri o so –Num de va ne io de gozoCho rão de dor e pra zer.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 113

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Cer to: os he róis que mor re ramNa bra va luta, pren de ramAs al mas, que eno bre ce ram,Aos pés de Deus lá no Céu.E nes ta no i te acor da dos,Dos vi vos aos le dos bra vos,Ba nham prantos ma go a dosLá de lon ge e o seu tro féu.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E mais po e si as se re ci ta vam. O povo dava mo tes, os po e tasim pro vi sa vam en tu siasma dos, pro lon gan do-se es ses ou te i ros por trêsnoi tes, até ho ras adi an ta das.

As es petácu los de gran de gala e aos ba i les con cor ri am aaris to cra cia e al guns re pen tis tas, en quan to a tur ba mul ta es ta ci o na va nasduas pra ças e via as lu mi ná ri as...

Mas isso era quan do este país ti nha o ide al da pá tria e combatiapela li ber da de.

114 Melo Mo ra is Filho

Page 107: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Entru do

(BAHIA)

Q ual a ori gem do en tru do?

É esta uma ques tão de evi dên cia di fi cul to sa, e de cuja dis cus são não vi ria gran de luz a des ta car os pla nos do qua dro de costu mes, queinten ta mos des cre ver.

Se ria ele im por ta do da Índia nos Aço res, pe los na ve gan tespor tu gue ses, quan do o re i no de Pegu, hoje pro vín cia bir mâ ni ca, cons ti -tu ía além-Gan ges es ta do in de pen den te?

Adi an tan do to da via uma re fle xão, pa re ce-nos que a gê ne sisdes se fol gue do deve re mon tar-se às ablu ções, imer sões e as per sões tãoín ti mas ao povo ju deu, de quem a Eu ro pa as si mi lou tra di ções e ri tos.

Do mesmo modo por que se en con tram adap ta dos pelocristi a nis mo os ve lhos ce ri mo ni a is do Le ví ti co, é pos sí vel que da que lasfór mu las pu ri fi ca do ras nas ces se o en tru do, de ge ne ra do na sua ín do le ena sua fe i ção his tó ri ca.

Como quer que seja, é um cos tu me es pe ci al que re ce be mosda an ti ga me tró po le, com toda a sua ba ga gem de des man dos no ci vos eale gres.

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Dan do con ta des se di ver ti men to pú bli co, que pre ce de os trêsdias ime di a tos à qua res ma, é ain da na Ba hia que en con tra mos o tipome nos bru tal, pelo ames ti ça men to bra si le i ro.

O jogo do en tru do, ou tro ra ge ne ra li za do no país, per du ra noseu apo geu em qua se todo o Nor te, e nas pro vín ci as do Sul onde o ele -men to es tran ge i ro tem pou co que ver.

E em que con sis te ele fora da cor te, isto é, em ou tras ca pi ta is,vi las e ser tões? Como se fa zia na Ba hia, há bons quin ze anos?

De i xan do o tra ba lho de dis cri mi na ção do que é ge ral ao le i tor,apre ci e mos no com ple xo das ce nas in va riá ve is o que exis tia de dis tin toem usan ças lo ca is.

Na Ba hia, os pre pa ra ti vos da fo lia co me ça vam um a doisme ses an tes.

Nes se de cur so, as fa mí li as co nhe ci das e as pes so as da ami za de pre ve ni am-se mu tu a men te, que iri am em casa “brin car o en tru do”.

Os ra pa zes, es pe ci al men te os es tu dan tes de me di ci na, fa zi ameco no mi as das me sa das, re ser van do para as la ran ji nhas o que dis pu ta vam ao luxo, aos pas se i os e aos te a tros.

Enquan to o ex te ri or da ci da de al me ja va pelo do min go gor do,no lar do més ti co a in dús tria dos li mões-de-che i ro era flo res cen te e pro me -te do ra de lu cros com pen sa do res.

Em al gu mas ca sas, quem en tras se, no ta ria es tra nho mo vi -men to. Mo ças e ve lhas, me ni nas e ra pa ri gas, en tre gues a des cos tu ma dola bor, so pra vam achas de fogo, gra zi na vam, con ta vam de um até doze.

Na que les cír cu los, a oci o si da de era ig no ra da e os ar re mes sosco muns.

Em vol ta de um fo ga re i ro, so bre bra sas a mi ú do ate a das,fumava num ca bu ré meio d’água es pes sa ca ma da de cera fun di da. Asfa bri can tes de la ran ji nhas es pe ta vam, em pon te i ros, li mões na tu ra is deta ma nho ir re gu lar.

Uma das ve lhas dis pu nha o car mim, o anil e o ver de te, para ocolori do da mas sa; as mo ças to ma vam de um ca ni ve ti nho, com queincisavam a del ga da pe lí cu la das es fe ras trans lú ci das que es fri a vam; asme ni nas fo lhe a vam livrinhos de pão-de-ouro; e as ra pa ri gas ar ran ja vamos ta bu le i ros e ban de jas, no chão da sala.

116 Melo Mo ra is Filho

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Logo que a cera es ta va no pon to, de sen vol via-se o tra ba lhosu ces si vo das ope rá ri as afa no sas, tra ba lho por ve zes dis tri bu í do commé to do pe las in dus tri a is.

Re ti ra do do fogo o ca bu ré, a fim de aba i xar a fer vu ra, me ti amno las tro ole o so e co lo ri do os li mões pre vi a men te un ta dos de sa bão.So bre uma ca de i ra ha via uma ti ge la com cera mor na, que ser via parasol dar as ban das se pa ra das e em bu tir o ori fí cio de i xa do pelo cabo poronde os se gu ra vam.

Fin do este pro ces so, en chi am as de li ca das cáp su las com águas aro ma ti za das de es sên ci as de ca ne la, ro sas, cra vo, etc., ser vin do de con -du to ao lí qui do um pe que no fu nil de fo lha-de-flan dres.

De po is, ta pa vam-nas, en co brin do a sa liên cia re sul tan te comum pou co de pão-de-ouro ou de pra ta, que de i xa va de ser um re cur sode arte, para ser um en fe i te de bom gos to.

À pro por ção que as la ran ji nhas fi ca vam pron tas, uma ra pa ri ga ar ras ta va um ta bu le i ro para jun to da si nhá-ve lha, que as con ta va, ti ran -do-as de en tre os de dos, e as en fi le i ran do por dú zi as.

E as en co men das cho vi am... As mu la tas e cri ou las im por tu -na vam as se nho ras-mo ças, pe din do ren das e ba ba dos; da Ci da de Ba i xatra zi am pre sen tes de pa nos de ala cá e cor dões de ouro, co ra is e chi ne las–, con quis tas de seus re ser va dos ca ri nhos ao gros so co mér cio da ter ra,que sem pre as exal çou com en tu si as mo sen ti do e ge ne ro si da de pro va da.

Ven de de i ras de li mões-de-che i ro, can ta de i ras afi na das das tro -vas po pu la res do en tru do, fa zia-se mis ter que tudo fos se con dig no – das se nho ras e das es cra vas.

Uma ou tra es pe cu la ção de fa mí lia eram os so nhos, com os qua isas be las ia iás cir cu la vam dou ra das so pe i ras co lo ca das so bre to a lhas decam bra ia e de cri vo, que for ra vam os ta bu le i ros en ver ni za dos das cri ou -las de beca e de pen cas de cha ves.

No cen tro des tes, uma gar ra fa bran ca de cris tal, que con ti nhaa cal da, exa la va o per fu me das flo res de la ran je i ra na ma dru ga da dosver géis.

Um pa li to fin ca do em cada um dos so nhos e um pi res em que os ser vi am aos com pra do res, re ve la vam a boa or dem da qui tan da e o

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 117

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gos to ar tís ti co das gen tis do ce i ras, cujo ca pri cho re tri bu íam ime di a tospro ven tos.

No do min go de en tru do, des de mu i to cedo, via-se cor ren do,de uma para ou tra por ta, um cri ou lo ágil, uma ne gra ri so nha e pa tus ca.

O cri ou lo, sus ten do en tre as duas mãos enor me se rin ga, fa ziapon ta ria, em pur ran do uma ró tu la; a ne gra, des vi an do a um lado umaba cia d’água, in va dia uma casa...

Mo men tos de po is, ou via-se o ba que do lí qui do, uma al ga zar ra in fer nal, al gu ma coisa de se me lhan te a uma bri ga.

E os dois sa íam...Nas ven das, os ta ver ne i ros re co lhi am as amos tras pen du ra das,

e os fo liões da ralé for mi ga vam aos bal cões.Em os pre lú di os de fes ta.E ao com pas so ace le ra do ou tar dio das chi ne li nhas, que

bati am nas pe dras como o esta lo dos bil ros nas ren das das al mo fa das,uma voz fe ria o ar, e uma fi gu ra es bel ta e gra ci o sa des cia uma la de i racan tan do:

Aí vai, aí vaiLa ran ji nhas de pri mô;Com pre, iaiá, la ran ji nhas,Para en tru dá seu amô.

É de iaiá, é de ioiô, Quem qué en tru dá seu amô!...

E a ven de de i ra de so nhos, mer can do fa ce i ra:

So nhos, iaiá, está so nhosFe i tos por mão de si nhá,Vem com prá à sua ne graPra si nhá não se zan gá.

Com suas mãos de li ca dasBa teu ovos e fa ri nha;Com pre, ioiô, es ses so nhos, Foi fe i tos por si nha zi nha.

É de iaiá, é de ioiô, Quem qué so nhá com seu amô!...

118 Melo Mo ra is Filho

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E mu i tos psi us! re pe ti dos das ja ne las, fa zi am-nas mais di li -gen tes, ser vin do à fre gue sia.

De po is as duas ho ras, o fol gue do cres cia. Ba ci as e quar ti nhasd’água inun da vam os pas san tes; e o pol vi lho e o ver me lhão mas ca ra vam o es cra vo ou o ho mem da ple be, que se guia seu ca mi nho.

Sur pre en di do por tur bu len tos que o per se gui am às gar ga lha das, um in di ví duo, jun tan do as per nas e aos pu li nhos, com cha péu de solaber to, pro te gen do-se dos li mões e se rin gas, im plo ra va abor re ci do:

– Não jo guem!... não pos so me mo lhar, que es tou do en te!Era fra se era cor res pon di da por uma sa ra i va da de la ran ji nhas

e es gui chos, que o des con cer ta vam.Des com pos tu ras e va i as es tron da vam em ou tros lu ga res. –

Eram os pre tos e pre tas ve lhas, que se de ba ti am nas es qui nas ou noscha fa ri zes, com par te da ca be ça e do ros to em pas ta da de al va i a de e ver -me lhão, que os tor na vam ir ri só ri os.

As moças mu da vam de ves ti do, e ra ros pro je tis, vi bra dos àdis tân cia, par ti am um vi dro, res va la vam numa por ta, en tra vam por umaja ne la.

E a mu la ta can ta va:

Quem en tru da seu amôÉ si nal de in ti mi da de;Iaiá, en tru de a ioiô,Para lhe ter ami za de.

É de iaiá, é de ioiô, Quem qué en tru dá seu amô!...

E to dos pre ve ni am-se para o com ba te, que tra va va-se de po isdo jan tar, es va zi an do ta bu le i ros e ta bu le i ros de ace ti na dos li mões.

Nas ca sas de gen te po bre, as ga me las trans bor da vam d’águalím pi da e che i ro sa, em que sen ta vam à for ça pes so as da con vi vên cia ouos in ca u tos que agar ra vam.

Du ran te os três dias, o en tru do to ca va ao seu auge, das qua tro para as cin co ho ras.

E os me ni nos, se du zi dos pe las pre go e i ras dos so nhos, cho ra -min ga vam até ob ter o ne ces sá rio para com prá-los.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 119

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As fa mí li as, che gan do às ja ne las, pe di am li cen ça, e o brin que dorom pia.

Um pro je til, si bi lan do nos ares, es bor ra cha va-se den tro doar ra i al con trá rio. As hos ti li da des de cla ra vam-se.

Os ra pa zes ati ra vam para o seio das mo ças bo ni tas que lhesdes lum bra vam os sen ti dos; as mo ças pro cu ra vam o pe i to en go ma do daca mi sa da que les que as im pres si o na vam, ou de um fu tu ro no i vo.

E as la ran ji nhas, ba ten do no alto, que bra vam-se; que bran -do-se na pa re de, des fo lha vam-se ma ti za das como ra ma lhe tes de flo res earo mas úmi dos, so bre o bus to cor re to e fa ce i ro das jo ga de i ras de en tru do.

Enso pa do d’água, acos sa do por ti ro te i os in ces san tes, umestan dar te di ri gia-se à casa onde mo ra va o seu co ra ção, a sua alma.Acom pa nha va-o a mu la ta das la ran ji nhas, que não as mer ca va, por queele as com pra ra to das.

E – coisa sin gu lar! – nas guer ras do en tru do, as ven de de i rasde li mões eram os em ba i xa do res in có lu mes dos par ti dos be li ge ran tes.Nin guém as mo lha va, nin guém as ofen dia.

No ca lor da ação, no fer vor da con ten da, um ran cho de mo çase rapazes, atro pe lan do-se nas es ca das com ba la i nhos de la ran ji nhas,barafus ta vam pelo sa lão.

Então, li mões e águas che i ro sas pro di ga li za vam-se em di lú vi os;as imer sões do es ti lo tor na vam-se ine vi tá ve is; e a essa luta, a essa alar ma, su ce dia a qui e ta ção exi gi da pela fa di ga e cu i da dos aos fe ri dos, isto é, aos que se ha vi am ma chu ca do no con fli to.

Nes ses dias, os na mo ra dos en con tra vam-se, tro ca vam-se afur to idí li os de amor, e al guns ca sa men tos ajus ta vam-se.

Os in ci den tes que re a li za vam a pre ven ção de “ir brin car o en -tru do” não ar re fe ci am o fre ne si das de ma is fa mí li as que dos so bra dos,fren te a fren te, ba ti am-se, do povo ba i xo, que nas pra ças, nas ruas, noscha fa ri zes, ta tu a va-se de ver me lhão e pol vi lho, des pe ja va ba ci as d’água, e ria a mais não po der, ven do sal tar da ga me la que se en to rna va, o vi zi nho ou o des co nhe ci do, re cru ta do de im pro vi so para o ba nho.

A essa ba ca nal asiá ti ca ja ma is fal ta ram de sas tres e acon te ci -men tos fa ta is.

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Ao ano itecer, os Ca cum bis, es pé cie de mas ca ra da afri ca na,dança vam e can ta vam em bár ba ra pas se a ta, agi tan do cho ca lhos, to can do ma rim bas, ba ten do com os pu nhos em ru des za bum bas.

Na manhã de quar ta-feira, o olhar so no len to dos fo liõescontem pla va frag men tos amon to a dos de cera, des tro ços de mó ve is,obje tos es tra ga dos...

E a Ra zão, adi an tan do-se pe ni ten te por en tre ru í nas, mar ca vacom uma cruz de cin zas as fon tes em pa li de ci das pe los des va ri os davéspe ra...

E as sim per du ra o en tru do em vá ri as pro vín ci as do Bra sil, ebrin ca va-se na Ba hia, de onde os ecos não nos tra zem, há lon gos anos,um hino das suas fes tas e o som de uma da que las can ti gas que ou tro raal vo ro ça ram a nos sa alma in fan til.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 121

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O 7 de Se tem bro

O gri to de “Inde pen dên cia ou Mor te”, pro fe ri do na tar dede 7 de se tem bro de 1822, às mar gens do Ipi ran ga, foi um gri to de amor e um gri to de guer ra.

O pri me i ro im pe ra dor ha via re ce bi do em vi a gem para San toscar tas e ofí ci os das Cor tes lu si ta nas, que im pu nham no vos ve xa mes àco lô nia, e aque la fra se tor nou-se um ar den te ma ni fes to de pa tri o tis mo ede luta.

Se o País, que en tão co me ça va a or ga ni zar-se, acha va-se emes ta do de ser li vre, é o que os fa tos pa re cem ne gar, des de o pri me i roins tan te de nos sa se pa ra ção po lí ti ca.

A vi o len ta cor res pon dên cia da me tró po le, ale van tan do oâni mo do fo go so prín cipe, foi o fa cho que ate ou o in cên dio no edi fí cioem cons tru ção da nos sa na ci o na li da de nas cen te, que logo após se viradeserto de seus per sis ten tes obre i ros, se guin do eles o ca mi nho dasdissen sões, do exí lio, do cár ce re e da for ca.

Na cris ta liza ção do pen sa men to pá trio, a his tó ria da que leperío do não re co lhe sem jaça a pre ci o sa gema, por isso que a in tri ga e as am bi ções anu vi am-lhe por ins tan tes o bri lho da su per fí cie.

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D. Pe dro I, o es bo ço de um he rói, fez ro lar o car ro dos acon -te ci men tos fa ta is; mas de ba i xo de suas ro das a ár vo re da li ber da de de via fa nar-se, à mín gua do san gue que fe cun da as tra di ções de va lor.

A pro cla ma ção do Ipi ran ga, como se nha de com ba te, nãocor res pon deu ao sen ti do ime di a to que lhe anun ci a vam as pa la vras.

À be i ra de um ri a cho, que foi pe que no para con ter o tú mu lode um pe le ja dor, na efer ves cên cia de âni mos que não fez dis pa rar uma peça, en tre uma co mi ti va e uma guar da de hon ra sem ad ver sá ri os, obra do da in de pen dên cia res soa no pri me i ro Re i na do como um eco afe -ti vo de uma gran de alma, e fi gu ra como uma pá gi na a que em pres ta -ram som brio co lo ri do as con fla gra ções po lí ti cas e o ba tis mo dos már -ti res.

É nes sa épo ca so bre tu do que as idéi as re vo lu ci o ná ri as fa zemato de pre sen ça em nos sa his tó ria.

Os pa tri o tas, que se ha vi am em pe nha do pela in de pen dên cia,no mês de ju nho de 1822, di vi dem-se em dois par ti dos, para se hos ti li -za rem; mais tar de em três: li be ra is pu ros, re a lis tas e re pu bli ca nos, ar vo -ran do à uma o es tan dar te das per se gui ções e da in tri ga.

A Assem bléia Cons ti tu in te dis sol ve-se. Os Andra das são de -por ta dos. A anar quia en tre ga nas mãos dos dis si den tes o ar cho te ace sodas re be liões, e o país sen te nos mús cu los o ca le frio pre cur sor das ho ras fu nes tas.

De po is do gol pe de Es ta do da Cons ti tu in te, os re a lis tas, li be -ra is e re pu bli ca nos, que fo ram para o Sul, pro mo ve ram a per da da Cis -pla ti na; os que se gui ram para o Nor te, o anar qui za ram.

A Ba hia arma a se di ção mi li tar de 25 de ou tu bro de 1824, ePer nam bu co es tor te ga-se nos bra ços de fer ro da re vo lu ção que tra ziacomo dís ti co do seu es tan dar te – a Re pú bli ca do Equa dor.

E os fac ci o sos me dra vam sem pre, in qui e tan do por toda apar te o es pí ri to pú bli co, que os ci la va en tre as for ças que se de ba ti am.

Por esse tem po de su ces sos ex tra or di ná ri os, dois par ti dosso bre tu do di vi di am o País: o que que ria a se pa ra ção ab so lu ta e de fi ni ti vade Por tu gal, e o que tra ba lha va em sen ti do con trá rio, isto é, o que com -ba tia pela união do Bra sil com a me tró po le.

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Aque le ti nha o pres tí gio da opi nião ge ne ra li za da, que equi va -lia a an te ci pa do tri un fo.

Os se pa ra tis tas, for man do um cis ma, sa i rão de seu pri mi ti vogrê mio, com ban de i ras di ver sas. Sub di vi di ram-se em ab so lu tis tas, cons ti tu ci o -na is e de mo crá ti cos.

To dos que ri am a in de pen dên cia, é ver da de; mas os pri me i roscom uma mo nar quia ab so lu ta, os se gun dos com uma cons ti tu i ção li be -ral, e os ter ce i ros que se di vi dis se o Bra sil em es ta dos fe de ra dos.

Daí as per tur ba ções in tem pes ti vas, os ódi os con cen tra dos, osla gos de san gue atra ves sa dos pelo car ras co, que não era pre ce di do dojuiz, nem re pre sen ta va um ins tru men to da lei.

Entre tan to, o gri to de Inde pen dên cia ou Mor te, que fi ze ra de -sa bar as mu ra lhas se cu la res do Bra sil co lô nia, é a mais bela ins cri ção la -vra da por um prín ci pe no fron tis pí cio de uma na ci o na li da de.

E bem me mo rá vel foi aque la ge ra ção, que so freu, lu tou emor reu, por que com pre en dia o di re i to de li ber da de!...

Em cer tos dias, as fes tas de um povo nada mais são do que aro ma ria da pos te ri da de às tra di ções que fi ca ram no pas sa do.

E o 7 de Se tem bro nos exem pli fi ca o di zer.

Há qua se trin ta anos, as fes tas do ani ver sá rio da in de pen dên -cia e do im pé rio eram es tron do sas e pos su íam o re le vo das con sa gra -ções po pu la res.

Nin guém ha via den tre o povo que não se en so ber be ces se daidéia que re gia o re go zi jo ge ral, cu jas ma ni fes ta ções ex pan di am-se sobas for mas da arte, nas pom pas de co ra ti vas e no en tu si as mo pa trió ti codos ci da dãos, que com par ti ci pa vam dos fes te jos, iso la da men te ou emco le ti vi da des.

No te a tro de S. Pe dro, João Ca e ta no, o gê nio dra má ti co demais al tu ra que nos tem sido dado ad mi rar no Bra sil e na Eu ro pa, en -sa i a va tra gé di as de Sha kes pe a re, Vi cen zo Mon ti, Alfi e ri, Ra ci ne, etc.Des sas tra gé di as, de que era la u re a do tra du tor o en ge nhe i ro Dr. Antô -nio de Ara ú jo, a es co lhi da para a no i te pa trió ti ca mon ta va-se com apa ra toe ri gor de co ra ti vo.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 125

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Por ve zes o Im pe ra dor mos tra va de se jos de ver o cé le bre ar -tis ta flu mi nen se nes ta ou na que la, o que se tor na va para ele po de ro soin cen ti vo e uma or dem a cum prir. Foi as sim que em 7 de se tem bro de185... re pre sen tou-se o Aris to de mo, em que João Ca e ta no ma ra vi lhou omo nar ca e o es co lhi do au di tó rio que con cor ria às suas ré ci tas.

Os mais no tá ve is po e tas da que la qua dra, tais como Ma ga -lhães, G. Dias, Por to Ale gre, Te i xe i ra e Sou sa, La u rin do, Cons tan ti noGo mes de Sou sa, Jo a quim Nor ber to, José Antô nio e Ma cha do de Assiscom pu nham can tos ins pi ra do pelo amor da pá tria, e os re ci ta vam note a tro, os pu bli ca vam em jor na is e re vis tas, ou os de cla ma vam ao somdo hino na ci o nal, às por tas da Pe ta ló gi ca, da Loja do Can to e em fren teà ti po gra fia de Pa u la Bri to.

A par tir da vés pe ra, o ca mi nho que vai do Ro cio Pe que no aoPaço da Ci da de en fe i ta va-se todo: as ruas com ar ca ri as e fo lhas de man -gue i ra, e as ja ne las com aran de las, glo bos e cas ti ça is ace sos por den trodas vi dra ças.

Nos lar gos do Ro cio, do Ca pim e de S. Do min gos, os tra di -ci o na is co re tos con clu íam-se, onde não era raro ver-se ban das de mú si ca de na vi os es tran ge i ros sur tos no por to to ca rem, as so ci an do-se às ale gri asdo dia da pá tria.

Os sa lões dos ba i les pa re ci am a mo ra da dos so nhos. Os co ros para o rom per d’alva es ta vam ha bil men te en sa i a dos, e a alma na ci o nalfer via ju bi lo sa nas abs tra ções épi cas, que no bi li tam po vos e ra ças.

As so ci e da des de mú si ca, as ban das mi li ta res, as mul ti dões se -gui am em vá ri as di re ções, e as gi rân do las es tou ra vam in ter mi ten tes, pin -gan do de fogo as tre vas, que se dis si pa vam.

As so ci e da des Ipi ran ga e Sete de Se tem bro acha vam-se apos tos, com seu pes so al se le to e alen ta do de na ci o na lis mo.

Entre a po pu la ção e os di re to res dos pa trió ti cos fes te jos ha via tal cor re la ção de sim pa tia, que o en tu si as mo tor na va-se uma con se qüên -cia fá cil e na tu ral.

Às pri me i ras sal vas das for ta le zas do mar, logo que a ma dru -ga da es pre gui ça va-se no ho ri zon te, os vi vas à Inde pen dên cia, ao Impe -ra dor e a José Bo ni fá cio, ir rom pi am das tur bas, que, des co ber tas, agi ta -vam no ar o cha péu, le van tan do os bra ços. Ban dos de me ni nas ves ti das

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de bran co, com gri nal das e fi tas de co res na ci o na is, can ta vam em co re toso hino de Pe dro I; os po e tas da Pe ta ló gi ca tan gi am as suas li ras, e a fes ta das con sa gra ções pós tu mas co me ça va a ce le brar-se.

Das ja ne las en tão des do bra vam-se col chas de da mas co; sa ne fas e guar ni ções re ves ti am as por ta das.

Nas ar re ca da ções da Gu ar da Na ci o nal as ar mas es pe lha vam,gru pos de pa i sa nos as in va di am, e os cla rins re lu zen tes pen di am das co -lu nas des sas pra ças d’armas, em que se viam em or dem es pin gar das ees pa das, ba i o ne tas e ban de i ras, ma cha di nhas e tam bo res.

Avi sa dos por to ques de cor ne tas nas es qui nas, re u ni am-se:pri me i ro os guar das por com pa nhi as, de po is por ba ta lhões, que iampos tar-se no Cam po da Acla ma ção, e por úl ti mo, in cor po ra dos embriga das, des ci am a ocu par o Lar go do Paço.

Às 11 ho ras o Impe ra dor vi nha de S. Cris tó vão. Do Ro cioPequeno até a Ca pe la Impe ri al, o seu co che de gala era la de a do de ar que i -ros, que, a pé, acompanha vam cor ren do o car ro que se guia.

E as sal vas eco a vam a in ter va los no mar e em ter ra, comopara o fu ne ral dos fan tas mas da gló ria!

Ape nas Sua Ma jes ta de sen ta va-se no do cel do tem plo, o re ve -ren do bis po, que ofi ci a va, su bia ao al tar, acer ca do de mon se nho res,cô ne gos e ou tros sa cer do tes, e o bri lhan te Te Deum, de com po si ção dePe dro I, exe cu ta va-se sem de mo ra.

E a Gu ar da Nacio nal lá es ta va for ma da, ves ti da com seufarda men to novo, to can do suas mú si cas ad mi rá ve is.

Incan des cen tes no amor da na ci o na li da de, o pa tri o tis motrans for ma va o sol da do em ci da dão; sem que bra de dis ci pli na, cada qual co lo ca va em suas ar mas e bar re ti nas fo lhas sim bó li cas do gran de dia.

Con clu ído o Te Deum, ha via cor te jo, e de po is a pa ra da, quear re gi men ta va toda a tro pa de li nha e a guar da na ci o nal.

De po is das evo lu ções e des car gas da lei, as tro pas des fi la vamem con ti nên cia pela fren te do paço, onde, à va ran da, es ta vam a fa mí liaim pe ri al e os no bres da cor te.

À no i te, as ilu mi na ções das pra ças e dos edi fí ci os pú bli cos,das ruas e das ca sas par ti cu la res, os ba i les, as mú si cas e os hi nos

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 127

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patrió ti cos em be ve ci am esta po pu la ção, que ain da con ser va va o ves tí -gio da fé an ti ga, nas idéi as e no futuro.

Às 8 ho ras, o Im pe ra dor che ga va ao te a tro de S. Pe dro paraas sis tir ao es pe tá cu lo de gran de gala.

Qu an do des cer ra vam-se as cor ti nas de seu ca ma ro te, a or -ques tra exe cu ta va o hino na ci o nal, ao que a pla téia er guia-se dan do osvi vas da oca sião.

Em se gui da, su bia o pano, e os ar tis tas, em cena aber ta, tra -jan do ca sa ca e cal ça pre ta, co le te e gra va ta bran ca, os ten tan do a ti ra co louma lar ga fita ver de e ama re la, for ma vam o coro do hino da in de pen -dên cia, can ta do por uma atriz, rica e ca rac te ris ti ca men te ves ti da.

E o es pe tá cu lo co me ça va... Os po e tas ba ti am pal mas, para re -ci tar as suas po e si as con gra tu la tó ri as; e João Ca e ta no ele va va os seuslou ros a re giões ina ces sí ve is tal vez ao al can ce de um sé cu lo.

Com o fim de igual men te ce le brar este ani ver sá rio, o al fe resAmé ri co Ro dri gues Gam boa fun dou, a 12 de ou tu bro de 1869, a So ci e -da de Co me mo ra ti va da Inde pen dên cia e do Impé rio, que teve a sua sede no Li ceu de Artes e Ofí ci os, sen do seu pre si den te o be ne mé ri to ci da dão e no tá vel ar qui te to Bi ten court da Sil va.

Esta so ci e da de man da va cons tru ir no Ro cio dois si mu la crosde for ti fi ca ções, onde ban das de mú si ca to ca vam nas no i tes de 7 e 8.

A seu con vi te e so li ci tu de, o go ver no im pe ri al de ter mi na vaque es tan ci as se no mor ro de San to Antô nio, na par te fron te i ra à es tá tuado fun da dor do im pé rio, um par que de ar ti lha ria, que, ao cla rão da al vo -ra da, à uma hora da tar de e às seis da no i te, sa u da va com uma sal va realo acon te ci men to mais de fi ni ti vo da nos sa his tó ria.

A es tá tua per no i ta va ilu mi na da, a com pa nhia do gás to ma va à sua con ta o dis pên dio com os qua tro gran des can de la bros, e, até pou cos anos, o Te Deum, as pa ra das, os es pe tá cu los co me mo ra ti vos e as fes taspú bli cas re a li za vam-se como na pri mi ti va.

Ain da mu i to de po is da guer ra do Pa ra guai, que foi a li qui da -ção fi nal do pa tri o tis mo bra si le i ro, os alu nos e alu nas do Con ser va tó riode Mú si ca e do Li ceu de Artes e Ofí ci os, iam, ao al vo re cer, can tar, nes sas

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cons tru ções de mo men to, o hino da in de pen dên cia, pre ce di dos damul ti dão que os apla u dia.

Po rém... si lên cio!Não ou vis aque la sal va?É a voz dos pa tri o tas mor tos, que, no dia de hoje, tor tu ra a

cons ciên cia bas tar da de seus fi lhos, que es que cem as suas tra i ções eentre gam ao es tran ge i ro as ter ras da pá tria!

Como é fria e im pla cá vel a vin gan ça dos mor tos!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 129

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A Fes ta da Pe nha

(RIO DE JANEIRO)

Na obs cu ri da de mais den sa dos tem pos co lo ni a is ani -nha-se a fun da ção da pri mi ti va er mi da de Nos sa Se nho ra da Pe nha,que, da al tu ra de seus tre zen tos e ses sen ta e cin co de gra us, ta lha dos no gra ni to, do mi na va par te da baía do Rio de Ja ne i ro, da ci da de e dos su -búr bi os.

Pos te ri or men te re e di fi ca da, mas não fun da da, como pre -ten dem al guns cro nis tas, pelo Pa dre Mi guel de Ara ú jo, esse tem plotem pas sa do por mo di fi ca ções di ver sas, sen do to da via res pe i ta dos ossím bo los re li gi o sos, que nos per mi tem cor ri gir a his tó ria co te jan do alen da.

Por me nos in da ga dor que seja o pe re gri no ou de vo to quetrans pu ser o li mi ar da que la igre ja, há de for ço sa men te, er guen do o olhar ao al tar-mor, im pres si o nar-se à vis ta de uma gran de co bra e de um la -gar to es cul pi dos, que, aci ma do ni cho da ex cel sa pa dro e i ra, des ta cam-se

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no muro alvo da ca pe la, com um co lo ri do de bron ze e um re le vo na -tu ral.

E isso nos acon te ceu: o que con du ziu-nos a pes qui sas di re tas, in ter ro gan do a an ti gos ha bi tan tes do lu gar so bre aque la es tra nha re pro -du ção da arte.

O mais ve lho den tre eles, por an to no má sia João Can gulo, ho -mem de oi ten ta anos pre su mí ve is, ali nas ci do e cri a do, re fe riu-nos o que de seus pais ou vi ra a res pe i to, pres tan do apo io às suas pa la vras não sóum ne gro de bar bas e ca be los bran cos com quem es ta va, po rém ou traspes so as da re don de za.

E as sim re co lhe mos da tra di ção oral a len da da fun da ção daer mi da de Nos sa Se nho ra da Pe nha, que se re su me numa his tó ria sim -ples e sel va gem, de per fe i to acor do com o ce ná rio bár ba ro que noscer ca va e com os ani ma is bi zar ros que fi gu rou o ar tis ta.

Eis a len da:

“Em tem pos que lá vão dis tan tes, ou sa do ca ça dor que ba tiaaque las ma tas, em bus ca de caça, foi sur pre en di do por uma co bra gi gan -tes ca, que, ron can do fe roz e de sen ro lan do-se no es pa ço, ame a ça va de -vo rá-lo; to ma do de es pan to, lí vi do de ter ror, ar re pi am-se-lhe os ca be los, suor vis co so po re ja-lhe a fron te, a arma lhe cai e ele, do bran do o jo e lhona ter ra, er guen do as mãos sú pli ces ao céu, ex cla ma num bra do sa í dod’alma:

‘– Va lha-me Nos sa Se nho ra da Pe nha!...’

“No mes mo ins tan te um la gar to in do len te, que aque cia ao sol a ca be ça cha ta, sal ta de uma pe dra, e açou tan do com a ca u da de fer ro orep til me do nho, o afu gen ta, de i xan do li vre do pe ri go o in fe liz paraquem a mor te se ria ine vi tá vel.

“Des per to como de um pe sa de lo, re co nhe cen do que fora sal vo por es tu pen do mi la gre, o ca ça dor eri giu na cris ta do ro che do a er mi davo ti va a Nos sa Se nho ra da Pe nha, vin do to dos os anos em con tri taro ma ria ofe re cer à sa gra da ima gem o tri bu to de suas dá di vas e o eco deseus lou vo res.”

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Nas ro ma ri as daPe nha o ele men to pre do mi -nan te foi sem pre o por tu -guês. Des de o pe río do co lo -ni al até hoje, a tra di ção temsido man ti da como uma re -cor da ção das fes tas con gê -ne res da an ti ga me tró po le,no tan do-se po rém que osfo liões aqui eram na ge ne ra -li da de fi lhos do con ti nen te.

A es sas pe re gri -na ções anu a is con cor riaape nas uma cer ta clas se depor tu gue ses in cul tos, deho mens e mu lhe res des ti na -dos a tra ba lhos ru des, o que não im pe dia de ser a fes tapo pu lar da mais útil e opu -len ta das nos sas co lô ni as.

Os bra si le i ros da lo ca li da de ou de pon tos mais afas ta dosas so ci a vam-se em par te aos fol gue dos, con tri bu íam para o cul to,formando-se mu i tas ve zes gru pos em se pa ra do no ar ra i al – já deportu gue ses en tre si, já de na ci o na is.

O que cum pre acen tu ar é que a ini ci a ti va, o apa ra to, o en tu -si asmo, a ver da de i ra ca rac te rís ti ca (e por isso tem du ra do) não nospertenciam. A ro ma ria da Pe nha era es tre pi to sa e ale gre. Bas ta es pe ci ficar a clas se que for ne cia os ro me i ros do pri me i ro pla no para com pre en der-seque as pro fa na ções e os des vi os não mar ca vam as in ten ções re li gi o sas,que fi ca vam in tac tas.

A fes ta e a pe re gri na ção ti nham seus preâm bu los, seus co me -mo ra ti vos, dan do mar gem a es ta be le cer-se se me lhan ças com as nos sasou pal pi tan tes di fe ren ci a ções.

Com os re pi ques das no ve nas anun ci a vam-se os pre pa ra ti vos.Antes mes mo, vi am-se pelo mato le nha do res que, por man do

dos fes te i ros, cor ta vam lon gas va ras, des pi am-lhes as fo lhas, apa re lha vam

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 133

Ro me i ros em mar cha

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para o fabrico das ten das e bar ra cas, paus de ban de i ra e ga lhar de tes,habi tu a is aos fes te jos.

De nove dias, com an te ce dên cia, po rém, era que tudo sedispu nha, se apron ta va com a ur gên cia pre ci sa e o ca pri cho re cla ma dopela pom po sa ro ma ria, cuja fama tra di ci o nal au men ta va-lhe a in fluên cia.

Como por en can to o pi to res co ar ra i al trans for ma va-se; ogarrido tem plo en fe i ta va-se com es plen dor, era la va do em toda a suaex tensão para re a li za rem-se pro mes sas; e as ca sas dos ro me i ros, à es querdada esca da ria de pe dra, co me ça vam a re ce ber tras tes e ob je tos dosaluga do res múl ti plos, que ob ti nham as cha ves por va li o sos em pe nhos.

Na sa cris tia da for mo sa igre ja o sa cris tão an da va numa rodaviva. Cor ria da qui para aco lá, já aten den do aos por ta do res de pro mes sas,já co lo can do em seus de vi dos lu ga res os mi la gres de cera, de ouro e depra ta, as ve las e pa i néis vo ti vos que a gen te da re don de za tra zia nasvéspe ras do dia so le ne.

No ar ra i al, de sol a sol, tra ba lha va-se sem tré gua, sem des can so. As bar ra cas de co mi das e be bi das como que bro ta vam da ter ra, sur gi amumas após ou tras, de ba i xo das co pa das man gue i ras do ter re i ro e ao lon go

134 Melo Mo ra is Filho

Foliões

Page 125: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

da es tra da. Ador na das de bam bi ne las, co ber tas de ani a gem, en fe i ta das de fo lhas ver des, do teto ba lan ça vam es co lhi das amos tras dos gê ne ros emque ne go ci a vam, es ten den do-se ao alto da en tra da vis to sos dís ti cos, queser vi am de ré cla me ao povo mi ú do.

De vez em quan do, um mo le co te ou um pre to ve lho, gui an do um car ro de bois, cres cia na es tra da, vin do tra zer às bar ra cas vi nhos eco mes tí ve is, mag ní fi cas fru tas, ocu pan do o lu gar de hon ra as sa bo ro sasme lan ci as, abun dan tís si mas na lo ca li da de.

Ban de i ras, tro féus, ga lhar de tes, es cu dos de pa pe lão pin ta do,por ta-gi rân do las, aran de las e co pi nhos de co res con tor nan do as ár vo res, era o que se via com pro fu são pas mo sa, dan do ao es pe tá cu lo um as pec tomag ní fi co e sem igual nas de ma is fes tas.

À mis sa do do min go que pre ce dia a ro maria, ho mens,mulheres e cri an ças, che i os de fé su bi am de jo e lhos a es ca da es tre i ta e as pér ri ma da Pe nha, cum prin do sa gra dos vo tos fe i tos à mi ra cu lo saVir gem nas ho ras afli tas da mo lés tia, do pe ri go e do in for tú nio.

Era belo de ver-se a pi e da de da que les tem pos; co mo via até àslá gri mas aque la pro cis são de es cra vos e se nho res, de de for ma dos e in fe -li zes, cada um com a sua ofe ren da, po vo an do por lon gos dias os de gra usde pe dra que con du zi am à casa de Deus, indo ren der gra ças à Se nho rada Pe nha, por que lhes trou xe ra a se re ni da de nos so fri men tos e o re mé dioa seus ma les...

E eram tan tos os que de i xa vam uma lem bran ça pal pá vel deseu ex tra or di ná rio po der!... Qu an tos qua dros re pre sen tan do cu ras mi la -gro sas, na vi os es ca pos ao na u frá gio e cen te nas de ou tros pro dí gi os láes tão para ates tar que a ciên cia hu ma na não vale uma som bra de con -fi an ça na mi se ri cór dia di vi na!...

A igre ja de mo ra va aber ta dias in te i ros, ao pas so que ou trospre pa ra ti vos para a ro ma ria exe cu ta vam-se na ci da de e nas po vo a çõescir cun vi zi nhas ou re mo tas.

Uni do ao es pí ri to al ta men te re li gi o so, o ele men to po pu larentra va em cena do modo mais fran co e sig ni fi ca ti vo.

Em Inha ú ma, na Pa vu na, em Ira já, em Me ri ti, em Cam poGran de, na ilha do Go ver na dor, etc., os fa zen de i ros e suas fa mí li as, ospe que nos la vra do res e os es cra vos sus pi ra vam pela fun ção.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 135

Page 126: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Os pes ca do res amar ra vam à pra ia as suas ca no as e fa lu as; oslan chões e os bar cos a va por acha vam-se de sig na dos e os lin dos ca va losde sela, fer ra dos e tra ta dos, aguar da vam o mo men to da vi a gem à Pe nha.

Com uma abó ba da de es te i ras no vas os car ros de bois des -can sa vam nos ter re i ros o va ral e a can ga; e os mo le ques e me ni nos brin -ca vam en sa i an do-se para a jor na da.

Na ci da de, as vi las e cor ti ços an da vam numa do ba dou ra. AsMa ri as e os Ma nés es que ci am-se das ti nas de rou pa e das car ro ças, ti ran do das ar cas as ar re ca das de ouro, que es co va vam, e os uni for mes bran cos,que es ten di am so bre ca de i ras ou pen du ra vam nas cor das para are jar.

Des de a vés pe ra o mo vi men to lo cal fa zia-se no tar. Che ga vamà Pe nha fa mí li as da roça, as ca sas dos ro me i ros es ta vam re ple tas, os fo -gue tes es tou ra vam de ins tan te a ins tan te, e à no i te a igre ji nha em ban -de i ra da, ilu mi na dos a fa cha da e o gra dil do mi ran te cir cu lar, avul ta va alé guas, re fle tin do na cal va da ro cha bor bo le tas de luz, pou sa das ou alí ge ras.

No al me ja do dia, logo ao ama nhe cer, em Ma ria Angu e Fa -zen da Gran de, es pe ci al men te, de sem bar ca vam inú me ras pes so as da ci -da de, tur bi lhões de ro ce i ros ta fu los, gen te en fim para as sis tir à fes ta,tra zer pro mes sas, di ver tir-se. Da va ran da aé rea do tem plo o mais belo pa -no ra ma des do bra va-se às vis tas do es pec ta dor ma ra vi lha do, pois a va ri e -da de das ce nas não ti nha ter mo, cada qual mais ori gi nal e in te res san te.

No mar as ca no as e em bar ca ções li ge i ras des flo ra vam gar bo -sas as on das tran qüi las; os re mos es pe lha vam ao sol rom pen do d’água;os vi vas e a fo gue i ra fe ri am o éter so no ro de can ti gas, e os len ços bran cos agi ta vam-se de uma para ou tra ban da, ao ala ri do dos ro me i ros que sal -ta vam em ter ra.

Nas es tra das de ro da gem, na rede dos ca mi nhos, car ros debois ran gi am, con du zin do fa mí li as; lus tro sas ca val ga tas tro ta vam lar go;ca mi nhe i ros sem con ta mar cha vam fa ti ga dos, su a ren tos e em po e i ra dos.

No Pe dre gu lho e nas ruas mais pró xi mas à pas sa gem obri ga daaos sí ti os da Pe nha, só se via es pec ta do res aten tos ao des fi lar dos ro -me i ros, es pe ci al men te da por tu gue sa da fes ti va que se guia a cor te emcar ru a gens en fe i ta das, em car ro ções e an do ri nhas ti ra dos a duas pa re lhas,em ca va los ma gros e de alu guel.

– Viva a Pe nha!... Viva a Pe nha!...

136 Melo Mo ra is Filho

Page 127: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Eram as vo zes que en chi am des de as nove ho ras as ruas da ci -da de, ao des con cer to de uma mú si ca im por tu na e con ti nu a da, ou à ca -dên cia de ra be cas, vi o las e pan de i ros acom pa nhan do tro vas po pu la res.

Nis so apa re cia uma an do ri nha a ga lo pe, guar ne ci da de apa nha dosde fa zen da de co res, ver de jan te de fo lha gens, com os ani ma is en fe i ta dosde ro sas de pano na ca be ça da, con du zin do fo liões de am bos os se xos,ves ti dos de bran co, de cha péu de pa lha de sa ba do e fla me jan te de fi tas.

Os ra pa zes os ten ta vam a ti ra co lo enor me e pe sa do chi fre cha -pe a do de pra ta e che io de vi nho; no bra ço en fi a vam as clás si cas ros casda ro ma gem, se cun da dos pe las re chon chu das e afo gue a das Ma ri as Ro sas, que, adi an tan do-se, pen di das para fora, ar re ba ta das pela ve lo ci da de ejun tan do as mãos à boca, gri ta vam: – Viva a Pe nha!...

E os fo liões, de pé, agi tan do os bra ços, cres cen do de todo ocor po, res pon di am no mes mo di a pa são: – Viva a Pe nha!...

Mais de es pa ço, um, dois, três, mu i tos ou tros car ros, aqui ealém, par ti am na mes ma di re ção, mo lhan do o Sor Zé ou o Sor Antô nio apa la vra vi bran te com um gole da boa pin ga, e as suas com pa nhe i rasigual men te.

Em meio da ex cur são o en tu si as mo atin gia o seu auge, e ofadi nho ou a ca ni nha ver de fa zi am-se ou vir, que bran do a mo no to nia daro ma gem.

E a ra be ca e a vi o la, tan gi das por mãos afe i tas, da vam o tom a des can tes pá tri os, sem pre bo ni tos, ape sar de in cul tos.

Ó mi nha ca ni nha ber de,Ó meu san to de padrão,Por amor de uma me ni naFui cair no al ça pão.

Cana ber de sal te a da,Sal te a da é mais bo ni ta,Pra can tar a cana ber deNão se quer fo lhos de chi ta.

Fui-me ao Por to, fui-me ao Mi nho,De ca mi nho para Bra ga,Di zei-me, mi nha me ni na,Que que reis qu’eu de lá tra ga.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 137

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Dos cer ca dos as mo ças da vam gos to sas ri sa das, co chi cha -vam, co men ta vam as to a le tes; os me ni nos e os mo le ques ati ra vamolhos de se jo sos para as ros cas, en quan to que os pa tus cos, le van tan do a per na, ga lho fan do, de cla man do, em bo ca vam os chi fres, que vol ta -vam en xu tos.

Soli tá rio em seu pan ga ré , es can cha do, ape gan do-se comfreqüên cia ao san to-antônio do se lim, de quan do em quan do um ro me i roatra ves sa va a cena, com o mes mo ves tuá rio e aces só ri os.

Pa ca to e des pre ten si o so, as suas as pi ra ções eram uni ca men teaper ce bi das pe los “vi vas à Pe nha”, que sol ta va ra ros, aos so la van cos doca va lo tar do e de so be di en te.

A ro ma ria era es plên di da... Pe las duas ho ras da tar de, a fes ta es ta va em meio; os ran chos

acam pa dos nas on du la ções vas tas, à som bra das man gue i ras.Encos tados às ven das e às bar ra cas, fo liões ape a vam-se das

an do ri nhas e mu i tos dos que lá se acha vam pre lu di a vam as suas to a das,suas dan ças na ci o na is, pu lan do logo após no ca mi nho. E a cana-ver de, acha mar ri ta, o fa di nho, o vai-de-roda fer vi am sa pa te a dos, não sen do dis pen -sa dos os de sa fi os gra ci o sos e bre je i ros.

O mu lhe rio sa ra co te a va, ba tia pal mas a com pas so, pi no te a vacom seus pa res, al guns dos qua is, um tan to chum ba dos, es fre ga vam aspri mas da vi o la, da vam breu nas cor das da ra be ca, pa lhe te a vam os ca va -qui nhos, re co me çan do tro vas e dan ça dos, emen dan do a roda.

Cha mar ri ta do meu pe i to,Quem quer bem tem ou tro je i to...

Os co mes-e-be bes em es te i ras des do bra das sob os ar vo re -dos, na rel va e nas bar ra cas, as sa ú des amis to sas tro ca das nos cír cu los de fa mí li as e pe re gri nos que se di ver ti am de modo mais cal mo, di fun -di am-se pelo acam pa men to em re go zi jo, pro lon gan do-se até maistar de.

Os car ros ti ra dos por jun tas de bois avan ça vam nas es tra dastra zen do fes ti vos ma tu tos. As cri ou las ba i a nas sam ba vam de ba i xodas man gue i ras aro má ti cas e em ban de i ra das dos pa nos da Cos ta quesus pen di am aos ga lhos, e os ve í cu los de toda a es pé cie sul ca vam as

138 Melo Mo ra is Filho

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tri lhas com os im pa gá ve is e en tu siás ti cos pro ta go nis tas da jor na da da Pe nha.

Fin da a ce ri mô nia re li gi o sa da ma nhã, prin ci pi a va a de ban -da da. Os acam pa men tos le van ta vam-se pro gres si va men te, e, pela tar deadi an te, as an do ri nhas, os car ros en fe i ta dos e os ca va le i ros ca ri ca tos fa zi amsua en tra da na ci da de, en tre “vi vas” e in crí vel al vo ro ço.

Cada ro me i ro em pu nha va o seu re gis to de Nos sa Se nho rada Pe nha, os ten tan do uma ve rô ni ca pre ga da no pe i to do ca sa co bran -co.

No ar ra i al da Pe nha, por oca sião do Te Deum, a nos sa gen tecan ta va ao lar go as suas ti ra nas.

Tro va do res dos ser tões do Nor te acha vam-se, na que las pa ra -gens, mu i tos de les mu la tos e cri ou los es cra vos.

Aqui, era uma qua dri nha im pro vi sa da à vi o la e alen ta da deci ú me:

Eu to ma ra me en con trá,Com Ma nué Pas sa ri nho!...Que que ro cor tar-lhe as asas,To car-lhe fogo no ni nho...

Mais lon ge, uma des pe di da, um de bru çar d’alma no pas sa do,um ver so plan gen te e do lo ri do:

Vou-me em bo ra, vou-me em bo ra,Como se foi a ba le ia,Levo pe nas de dexáMa ro cas na ter ra aeia.

E lá para as ban das de S. Cris tó vão, mon tan do num ca va loes ta fa do e man co, za bum ban do-lhe com os cal ca nha res na bar ri ga,su min do-se na tre va, o úl ti mo Aben cer ra ge , ar ran can do de den tro um– Viva a Pe nha! – mas ti ga va para dis tra ir-se qua dri nha sim ples e ex -pres si va:

Di zes que viva La me go,Viva tam bém La me gui nho,E viva a ter ra do Por toOnde se bebe o bom vi nho...

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Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 139

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Às cus paradas de fogo da lo co mo ti va, a clás si ca ro ma ria daPenha tem per di do par te de seu ca rá ter de vo to e de sua an ti ga in fluên cia.

Entre tan to, mu i tís si mos são ain da os ro me i ros que afron tam,

mes mo a pé, lé guas e lé guas de dis tân cia, no ar ris ca do das ma tas, fiéis àtra di ção.

Como ro ma ria po pu lar é a úni ca que ain da se con ser va noRio de Ja ne i ro.

Repre sen ta no ide al o tipo de cer tos cos tu mes co lo ni a is,mo di fi ca dos nas pro vín ci as, ou tro ra, quan do o na ti vis mo era uma vir tu dee este país o Bra sil.

140 Melo Mo ra is Filho

O úl ti mo Aben cer ra ge

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Os Cu cum bis

(RIO DE JANEIRO)

Não há quem te nha per lus tra do as pro vín ci as do Nor te,que não se re cor de de um gru po de ne gros, ves ti dos de pe nas, tan gen do ins tru men tos ru des, dan çan do e can tan do, que, nos dias de fes tas po pu -lares, per cor re as ruas das gran des ci da des e pe que nos po vo a dos,asso ci an do-se des tar te aos nos sos fol gue dos na ci o na is.

Na pri mi ti va, es ses ban dos, cons ti tu í dos por es cra vosd’África, eram nu me ro sís si mos, sen do as suas can ti gas bár ba ras uni ca -men te na lin gua gem de suas ter ras na ta lí ci as.

A es sas hor das de ne gros de vá ri as tri bos, de face la nha da ena riz de for ma do por uma cris ta de tu bér cu los, que des cia do alto dafron te ao sul co me di a no do lá bio su pe ri or, o povo da Ba hia de no mi noude Cu cum bis, e o das de ma is pro vín ci as – de Con gos.

Em to dos os tem pos, por oca sião do en tru do e das fes tas doNa tal, ran chos de les en con tra vam-se em lu ga res múl ti plos, indo dan çare can tar em ca sas de ter mi na das, ou nos ta bla dos cons tru í dos ao ladodas igre jas e nas pra ças, para as tra di ci o na is che gan ças dos Mou ros e dosMa ru jos.

Page 132: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

No Rio de Ja ne i ro tam bém os hou ve até 1830, ser vin do ape -nas, que nos cons te, para in cor po rar-se ao prés ti to fú ne bre dos fi lhosdos reis afri ca nos aqui fa le ci dos –, na ter ra do exí lio e do ca ti ve i ro!

E pre ce den do a rede fu ne rá ria co ber ta com um pano pre to,acer ca da e se gui da de cen te nas de es cra vos, os Cu cum bis mar cha vamcho ca lhan do e can tan do, com seus ma me tos (cri an ças), de co ca res deplu mas, pu lan do e le van tan do os bra ços, ao com pas so acer ta do.

Essas dan ças co re o grá fi cas, cujo ca rá ter se foi li ge i ra men temo di fi can do com ele men tos no vos, re pre sen tam ain da hoje uma dasfa ces mais be las des sa raça afe ti va por ex ce lên cia, a quem deve o Bra sila ma i or par te de sua po pu la ção, de sua ri que za e de seu pro gres so.

De sem bar ca dos dos na vi os ne gre i ros, com o co ra ção che iode sa u da des e os olhos che i os de pra nto; ar ran ca dos das ca banas de seus pais e dos de ser tos de sua ter ra; não ou vin do mais o si bi lo do ven to e oru gi do da fera que os aca len ta ram na in fân cia; os po bres ca ti vos, des pe -ja dos em nos sas ma tas vir gens, ti ve ram ne ces si da de de dar ex pan são àsua dor, re lem bran do os cos tu mes dos seus ma i o res.

E a dan ça dos Cu cum bis res so ou es tre pi to sa nas flo res tas, aoti nir das cor ren tes dos ce pos e dos ge mi dos nas sen za las, ao som doaçoi te nas sur ras da es ca da e do so lu ço da mãe es cra va, a quem ti ra vampara sem pre dos bra ços o fi lhi nho nu e mi sér ri mo.

Às le tras des ses can tos, ori gi na ri a men te afri ca nos, in ter ca la -ram-se ver sos em por tu guês, o que em nada al te ra a ín do le do ba le tosel va gem dos Con gos, com o seu en re do e evo lu ções guer re i ras, seus reise prin ce sas de for mas cor re tas e al ti vos, seus tam bo rins e gan zás, que de -sen vol vem-lhes em tor no uma at mos fe ra de so no ri da de tem pes tu o sa eimi ta ti va.

Os Cu cum bis têm os seus dan ça dos e can to ri as es pe ci a is àspas se a tas, o seu ba le to di fí cil e em ex tre mo in te res san te, para o ar li vree ca sas par ti cu la res.

O ar gu men to des sas com po si ções mu si ca is e de uma po e siade sa bor acre é sim ples e ru di men tar, de acor do cons tan te com a na tu -re za as pér ri ma da que les ho mens afe i tos a lu tas cru en tas e ao im pre vis todos de ser tos.

142 Melo Mo ra is Filho

Page 133: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Re su min do uma ação que se pode pro lon gar por mu i tas ho ras,o en tre cho do re fe ri do ba le to é o se guin te:

De po is da re fe i ção la u ta do cu cum be, co mi da que usa vam osCon gos e os Mu nham ba nas nos dias da cir cun ci são de seus fi lhos, umapar ti da de Con gos põe-se a ca mi nho, indo le var à ra i nha os no vos vas sa losque ha vi am pas sa do por essa es pé cie de ba tis mo sel va gem.

O prés ti to, for ma do por prín ci pes e prin ce sas, áu gu res e fe i ti -ce i ros, in tér pre tes de di a le tos es tran ge i ros e inú me ro povo, le van doen tre alas fes ti vas os ma me los cir cun ci da dos com las ca de ta qua ra, é aco -me ti do por uma tri bo ini mi ga, ca in do fle cha do o fi lho do rei.

Ao apro xi mar-se o cor te jo, re ce ben do a no tí cia do em ba i xa dor, or de na o so be ra no que ve nha à sua pre sen ça um afa ma do adi vi nho, ofe i ti ce i ro mais cé le bre de seu re i no, im pon do-lhe a res sur re i ção do prín -ci pe mor to.

“Ou da rás a vida a meu fi lho”, diz ele, “e te rás em re com pen saum te sou ro de mi çan ga e a mais lin da das mu lhe res para com elapassa res mu i tas no i tes; ou não da rás e te man da rei de go lar.”

E aos sor ti lé gi os do fe i ti ce i ro, o mor to le van ta-se, as dan çasnão fin dam, ul ti man do a fun ção ru i do sa re ti ra da, na qual os Cucum biscan tam o Ben di to e di ver sas qua dras po pu la res.

Como é na tu ral, a tra di ção afri ca na acha-se cor rom pi da pe lasgera ções cri ou las, mas não a pon to de des co nhe cer-se o que há deprimi ti vo como cos tu mes au tên ti cos.

Na dis tri bu i ção do dan ça do, es plên di do e apa ra to so, há per so -na gens tí pi cos, fi gu ras im por tan tes, den tre os qua is o Rei, a Ra i nha, oCa pataz, o Lín gua, o Qu im bo to (fe i ti ce i ro), um ou mais ma me tos, oCaboclo, etc., prín ci pes, prin ce sas, em ba i xa do res, áu gu res e cin qüen taoutros com par sas que dan çam, to cam e exe cu tam os co ros.

O ves tuá rio ge ral con sis te em cír cu los de vis to sas e com pri daspe nas aos jo e lhos, à cin tu ra, aos bra ços e aos pu nhos, rico co car detes te i ra ver me lha, bo ti nas de cor do vão en fe i ta das de fi tas e ga lões, cal ça e ca mi sa de meia cor de car ne, e ao pes co ço das mu lhe res e ho mens,mi çan gas, co ra is e co la res de den tes, dan do uma ou mais vol tas.

O Feitice i ro, o Rei e a Ra i nha os ten tam ves ti men ta maisluxu o sa e ca rac te rís ti ca, po rém no mesmo sen ti do.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 143

Page 134: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Enquan to aos ins tru men tos, a le al da de às tra di ções tem sidoman ti da, no tan do-se até ao pre sen te, na ma i o ria dos ran chos de Cu cum -bis, os gan zás, os che que rês, os cho ca lhos, os tam bo rins, os adu fos, os ago gôs,as ma rim bas e os pi a nos de cuia, como em to das as épo cas.

Os des cen den tes di re tos dos afri ca nos têm con ser va do noBra sil a he ran ça pa ter na, re a pa re cen do os Cu cum bis, há al guns anos nes ta cor te, de vi do a in fluên ci as de pre tos ba i a nos aqui re si den tes.

Uma vez re u ni dos, cons ti tu í ram-se em so ci e da des car na va -les cas, dis tin guin do-se elas pe las le gen das de ouro, bor da das na seda deseus es tan dar tes.

Co nhe ce mos as so ci e da des dos Cu cum bis Lan ce i ros Car na va -les cos, Tri un fo dos Cu cum bis Car na va les cos, Ini ci a do res dos Cu cum bis eos Cu cum bis Car na va les cos.

Os Lan ce i ros e os Tri un fos são as mais lus tro sas pelo tra jar, o pes so al e a mú si ca en sa i a dos com es me ro, sa li en tan do-se a pri me i ra pela for mo su ra da Ra i nha, agi li da de do Ma me to e a ma ne i ra alta e ar tís ti capela qual o Fe i ti ce i ro de sem pe nha o seu pa pel; e a se gun da, pelo cres ci donú me ro de fi gu ras, de cri ou las for mo sas, e a plu ra li da de dos can tos edan ças, dis ci pli na dos com pas mo sa ha bi li da de pelo in te li gen tes con tra -mes tre ba i a no.

O ba le to con go, nes te ou na que le grê mio, tem a mes ma idéia,di fe rindo uni ca men te pela ma i or va ri e da de de fi gu ran tes, dan ça dos,canti gas e ins tru men tal.

As so ci e da des saem a pas se io nas três tar des e exe cu tam emdo mi cí li os os seus ba le tos de um co lo ri do es tra nho, mas res plan de cen tee agra dá vel.

O ba le to di vi de-se em três par tes: a sa u da ção, a ma tan ça e asre com pen sas. O epí lo go é a re ti ra da, en tre can ti gas nos sas, do ban done gro, à ca dên cia dos mo vi men tos tí pi cos e suas dan ças pri mi ti vas.

Logo que os Cu cum bis, ar ma dos al guns de arco e fle cha, trans -põem a por ta que se abre para re ce bê-los, a mú si ca e os dan ça ri nos, aossons de seus ins tru men tos bár ba ros, exe cu tam mar chas guer re i ras ehinos tri un fa is.

144 Melo Mo ra is Filho

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De po is o Rei, com o seu man to de bel bu ti na e sua co roadoura da, adi an ta-se, a um mo men to dado, por en tre as alas do cor te jo,quebrando al ter na da men te os flan cos, on du lan do o tron co, com osante bra ços em doce fle xão, e canta:

ReiSou rei do Con go,Qu e ro brin car,Che guei ago raDe Por tu gal...

ao que, em ale gres cla mo res, em tons for tes e ace le ra dos, pror rom pe ocoro:

CoroÉ... ê... Sam ban go lá!Che guei ago ra de Por tu gal.

A can to ria, in se pa rá vel da dan ça, con ti nua, dis tin guin do-se no meio da vo ze ria a ca lo ro sa sa u da ção:

CoroCom li cen ça, auê...Com li cen ça, auê!...Com li cen ça do dono da casa,Com li cen ça, auê!

O Ca pa taz, isto é o Cu cum bi que os di ri ge, mar ca o rit mo docan to e da dan ça, sen do ao mes mo tem po dan ça ri no e can tor. Esta can do, po rém, no cen tro do gru po, fa zen do im po nen te si nal, to dos pa ram, e osi lên cio é pro fun do, por ins tan tes.

Então, uma es pé cie de pas mo apo de ra-se das fi gu ras, emcuja fron te os co ca res não agi tam plu mas, e um gri to de aler ta, comode uma sen ti ne la per di da nas so li dões, é des fe ri do por esse per so na -gem bi zar ro.

CapatazCon ga xá!...

E os tam bo rins, os gan zás, os pan de i ros, os adu fos, os cho ca -lhos e os ago gôs rodam no ar como uma sal va, com um frê mi to detempes ta de, pa ran do de sú bi to.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 145

Page 136: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

CapatazOh! mu quá!...

E os ins tru men tos, há pou co emu de ci dos e sus pen sos, re co -me çam as suas har mo ni as, e com elas uma dan ça e uns can tos guer re i ros,de efe i to so ber bo e ca rac te rís ti co.

CapatazQu en gue rê, oia con go do má;Gira Ca lun ga,Manu quem vem lá.

CoroGira ca lun ga,Manu quem vem lá.

Essas can ti gas du ram cer ca de vin te mi nu tos, com dan çasigua is, de mo vi men to bi ná rio e ter ná rio.

Enquan to os Cu cum bis en tre gam-se às suas fes tas, e o Mame to exe cu ta dan ças que imi tam o co bre jar das ser pen tes, o sal to fle xí vel doja guar, o ba lan ce ar dos bri gues ne gre i ros nas cal ma ri as do mar, uma tri -

bo ini mi ga o aco me te nos re go zi jos do fes tim, e um ca bo clo, que fazpar te do tro ço, fere de mor te o re fe ri do Ma me to, ca u san do esse acon te -ci men to gran de alar ma.

Os Cu cum bis, di an te do san gue que es cor re da fe ri da, de i xampen der a ca be ça, e a ma tan ga (ve ló rio afri ca no) co me ça, en chen do oes pa ço de ru mo res la men to sos, en quan to que as dan ças fu ne rá ri as

ex pri mem a ação.

CapatazMala qui lom bê, ó qui lom bá...Oh! Ma me to uê!Mala qui lom bê, ó qui lom bá.

O coro repe te o es tri bi lho, e o Ca pa taz o ver so, com ani maçãocres cen te, to can do afi nal ao de ses pe ro.

Con fi a do o Ma me to, fi lho da Ra i nha, à guar da do che fe dosCon gos, este sen te o peso da alta res pon sa bi li da de e com pre en de-seper di do.

146 Melo Mo ra is Filho

Page 137: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Nes sa con jun tu ra, aban do nan do a sua sor te ao aca so, man dacha mar o Lín gua, expõe-lhe o ocor ri do e o ex pe de a co mu ni car à Rai nhao in fa us to acon te ci men to.

Esta cena é de ve ras im pres si o nis ta e des per ta o mais vivo in -te res se. As mú si cas, os can tos e os ba i la dos har mo ni zam-se de po is, atéque o Lín gua, em ba i xa dor dos ne gros, di ri ge-se à Ra i nha, in cli na a fron te,con ta-lhe o mo ti vo de sua mis são, sub mis so e pe sa ro so.

A Ra i nha, ao ouvi-lo, como que des va i ra de dor, in ter ro ga-o,e, a seu con se lho, faz com pa re cer o Fe i ti ce i ro que, de jo e lhos, a es cu tacons ter na do.

Este in ter lo cu tor traz em vol ta do pes co ço co bras e ca de i asde fer ro, pen de-lhe a ti ra co lo uma bol sa de bú zi os for ne ci da de ob je tosde efe i to má gi co, tais como ra í zes, ví bo ras, re si nas, etc.

A Ra i nha or de na-lhe que faça re vi ver o seu Ma me to, ga ran tin -do-lhe ri cos pre sen tes e a mais for mo sa de suas vas sa las, ou que lheseria cor ta da a ca be ça se os seus fe i ti ços não con se guis sem le van tá-lo.

À vis ta da ter mi nan te re so lu ção da so be ra na, o po bre fe ti chis ta par te, che ga-se para o ca dá ver, e, de rojo, com as mãos pos tas, olhan doins pi ra do para ao céu, im plo ra, can tan do lú gu bre:

FeiticeiroE... Ma maô! E... Mamaô!Gan ga rum bá, sin de rê iacô.E... Mamaô! E... Ma maô!

TodosZum bi, ma te que rê,Con go, cu cum bi-oiá.

FeiticeiroZum bi, Zum bi, oia Zum bi!Oia, Ma me to mu chi con go.Oia pa pe to.

CoroZum bi, Zum bi, oia Zum bi!

Du ran te to das es sas evo ca ções, o fe i ti ce i ro ro de ia o cor po dacri an ça, aus cul ta-o, pal pa-o, faz pas ses má gi cos, em pre ga mis te ri o sos

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 147

Page 138: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

sor ti lé gi os, fá-lo as pi rar plan tas e re si nas, es ten den do-lhe aos la dos

pe que nas co bras e ta lis mãs de vir tu des so bre na tu ra is.

Aper ce ben do o má gi co e os Cu cum bis que o mor to pou co a

pou co re a ni ma-se, o ran cho ma ni fes ta-se con ten te, e o Fe i ti ce i ro en toa,

com a tur ba que tan ge seus ins tru men tos, o se guin te:

FeiticeiroQu im bo to, quim bo to,Qu im bo to ara ra...

CoroSa va tá, ó Lín gua, etc.

Feiticeiro Quem pode mais?

CoroÉ o Sol e a Lua.

FeiticeiroSan to ma i or?

CoroÉ S. Be ne di to.

Ter mi nan do o diá lo go, em que as cri ou las e os cri ou losdançam e des can tam com uma ori gi na li da de in crí vel, o Fe i ti ce i rocoloca-se aos pés do prín ci pe, to ma-lhes das mãos, er gue-o va ga ro -samen te, e canta, como que acor dan do len ta men te do seu êx ta sesupers ti cioso:

FeiticeiroTa ta ra na aí auê...Ta ta ra na, tuca, tuca,Tuca, aiuê...

Nis so que o Ma me to res sus ci ta, e mais ve loz, mas ágil, maisar den te exe cu ta pro di gi o sos dan ça dos, o Fe i ti ce i ro ful mi na com o olharo Ca bo clo, que cai por ter ra. De vi do a no vos en can ta men tos, este tor naa si, bus ca ain da ma tar o prín ci pe dos Con gos e uma luta en tre as duastri bos em pe nha-se re nhi da.

148 Melo Mo ra is Filho

Page 139: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Os con trá ri os são ven ci dos, se guin do à vi tó ria a apre sen ta çãodo Ma me to à Ra i nha, que o re ce be nos bra ços, acu mu lan do o Fe i ti ce i rode dá di vas opu len tas.

O Rei ofe re ce-lhe a fi lha em ca sa men to, o que aque le nãoace i ta, por ser ca sa do.

Fe i ti ce i ro (dan çan do e can tan do)A fi lha do reiÉ o nos so amor...

CoroO fi lho do reiÉ o nos so pro te tor.

E a fes ta re co me ça mais es tri den te, e os ne gros can tam:

TodosEm lou vor da pu re zaDa Vir gem Ma ria,Ela está no Céu,Na Ter ra nos guia.

Mar chas e con tra mar chas, dan ças e can tos, ao cho ca lhar dospan de i ros, às vi bra ções dos gan zás, ao ar ru far dos tam bo rins, anun ci am a ter mi na ção do ba leto.

CoroMa ria, ra bu la, auê...Ca tun ga auê...

CapatazAde us, amor,Ade us, ben zi nho.

To dos (re ti ran do-se)Na Ba hia tem,Tem, tem, tem,Na Ba hia tem,Ó ba i a na!Água de vin tém...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 149

Page 140: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A Fes ta do Di vi no

(CORTE)

Até o ano de 1855, ne nhu ma fes ta po pu lar no Rio de Ja ne i ro foi mais atra en te, mais alen ta da de sa tis fa ção ge ral.

Re fe rem an ti gos cro nis tas, que as fes tas do Di vi no fo ram ins -ti tu í das em Por tu gal pela Ra i nha San ta Isa bel, e es cri to res do sé cu loXVI as des cre vem, bem como He i tor Men des Pin to na sua Ima gem daVida Cris tã.

Não aban do nan do nun ca as suas ter ras na ta lí ci as, mas vi a jan do em nos sos cli mas, es ses fol gue dos im preg na ram-se aqui de aro mas su tis, ex pan di ram-se em ma ni fes ta ções mais va ri a das, ten do como fi gu ran testron cos pri mi ti vos ou seus des cen den tes ime di a tos, que de vi am en trarpor al gu ma coisa na me ta mor fo se do mol de me tro po li ta no, sem pre uni -for me e mo nó to no nos Aço res, Co im bra, etc.

É que não só a lin gua gem, po rém os usos e cos tu mes eu ro -pe us, pas san do-se para a Amé ri ca, ad qui ri ram mais su a vi da de e ri que za.

Na épo ca em que fa ze mos pas sar esta fes ta (1853-1855), emtrês fre gue si as des ta ca pi tal ar ma vam-se impérios e co re tos: na do Espí ri to

Page 141: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

San to, na de Mata-por cos, na de San ta na, no cam po do mes mo nome, ena Lapa do Des ter ro, que re pre sen ta va a fre gue sia da Gló ria.

As mú si cas de bar be i ros, que eram com pos tas de es cra vos ne -gros, re ce ben do con vi tes para as fo li as, en sa i a vam do bra dos, qua dri lhas,fan dan gos.

O povo, pre li ban do de lí ci as in fa lí ve is, pas se a va no cam po, as -sis tin do à edi fi ca ção das bar ra cas, à cons tru ção do im pé rio e dos co re tos,à co lo ca ção das ban de i ras e das aran de las, e ao or la men to de co pi nhosde co res, com que fan tas ti ca men te ilu mi na va-se a fren te da igre ja deSan ta na, mais tar de de mo li da para fa zer-se a es ta ção da es tra da de fer rode Pe dro II.

Qu a ren ta dias an tes do do min go do Espí ri to San to, a ban dados pre ti nhos, pre ce den do ru i do sa tur ma, pa ra va no Lar go da Lapa,de fron te de um im pé rio de pe dra e cal, que exis tia no lu gar onde atu al -mente le van ta-se um pré dio de dois an da res – e aí to ca va es co lhi daspe ças de seu re su mi do re per tó rio.

Ao pas so que a mú si ca ex ta si a va os cir cuns tan tes e re u niatoda a gen te, dois ne gros pos san tes per fu ra vam o chão com ala van caspe sa das e pon tu das. Fin do esse tra ba lho, fin ca va-se o clás si co mas tro,en ci ma do por uma pom ba de ma de i ra re cen te men te pra te a da, flu tu an do um pou co aba i xo a ban de i ra do Di vi no, com as suas dou ra du rasbrilhan tes e seus ma ti zes vi vís si mos.

A fo gue taria es tou ra va, re pi ca vam os si nos, os bar be i rosferiam os seus ins tru mentos, e os fo liões, que até en tão con ser va vam-se quie tos, mis tu ra vam aos sons da ins tru men ta ção mar ci al o rufo ace le ra dodos tambo res, os ti ni dos dos fer ri nhos, o tro pel das cas ta nho las e ochoca lhar dos pan de i ros, com que acom pa nha vam as suas can ti gas:

A pom bi nha vai vo an do,A lua a co briu de um véu,O Di vi no Espí ri to San toPois as sim des ceu do Céu.

Os fo liões eram ra pa zes de nove a de zo i to anos, tra ja vamigual men te, can ta vam qua dri nhas ajus ta das ao re li gi o so mo ti vo, pe din do pe las ruas da ci da de es mo las para as des pe sas do cul to.

152 Melo Mo ra is Filho

Page 142: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Dois ir mãos da con fra ria os acom pa nha vam, ves ti dos de opa.Um con du zia pela mão o im pe ra dor, que era um me ni no de oito a dozeanos, ves ti do de ca sa ca ver me lha, cal ção e cha péu ar ma do; ou tro, comuma es pé cie de cus tó dia, no cen tro da qual ha via uma pom ba es cul pi da,adi an ta va-se para as pes so as que a be i ja vam, e, apre sen tan do uma sa co la de bel bu ti na en car na da, re co lhia as es mo las dos de vo tos.

Nos ran chos, um ra pa zo la ia com a ban de i ra, sen do as ves ti -men tas de to dos ca sa ca e cal ção es car la tes com ga lões de ouro, co le te de seda bran ca de bru a do de co res, sa pa tos ba i xos de fi ve las, cha péu de fel tro de copa afu ni la da e abas lar gas, or na do de fi tas, dis tin guin do-se o por -ta-es tan dar te por ves tuá rio mais pom po so e pelo gran de tope de flo res,pre ga do no cha péu, de for ma di fe ren te.

E a fo lia do bra da, pu lan do, brin can do, dan çan do, can ta va:

O Di vi no pede es mo lasMas não é por ca re cer,Pede para expr’rimentarQuem seu de vo to quer ser.

Meu Di vi no Espí ri to San to,Di vi no ce les ti al,Vós na Ter ra sois pom bi nha,No Céu pes soa real.

A fo lia de Mata-por cos, re pro du zin do ce ri mo ni al idên ti co,to ma va para ou tras ban das, agu çan do a cu ri o si da de dos ha bi tan tes doba ir ro, que che ga vam à por ta e às ja ne las para vê-los e ouvi-los:

Anda mos de por ta em por taDe to dos os mo ra do res,Pra fes te jar o Di vi no,Co bri-lo todo de flo res.

O Di vi no Esp’rito San toHoje vem vos vi si tar,Vem pe dir uma es mo laPra seu im pé rio en fe i tar.

De po is des tes e de um sem-nú me ro de ver sos, o ir mão deopa, er guen do a bol sa em que os de vo tos os cu la vam a ima gem sim bó li ca,

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 153

Page 143: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

a re ti ra va, ao ti nir das mo e das de pra ta ou de co bre, que ca íam, dos con -tri bu in tes pi e do sos e fran cos.

Di a ri a men te sa íam es ses ale gres e fes ti vos gru pos, vi si tan docada qual a sua pa ró quia.

Os fo liões de San ta na eram mais avul ta dos, des cre vi am maisam plo iti ne rá rio, re co lhi am ma i o res do na ti vos.

Ante ce di dos sem pre pela mú si ca de bar be i ros, acom pa nhan docom ins tru men tos múl ti plos as suas tra di ci o na is can ções, a co lhe i ta dases mo las es ta be le cia re la ções di re tas com as ma ra vi lhas dos fes te jos.

E os fo liões, con ten tes da lida, ar ru fa vam, cor ren do com odedo, os le ves pan de i ros, ba ti am fer ri nhos, ru fa vam tam bo res, ba i lan doem in fan tis des can tes:

O Di vi no Esp’rito San toÉ po bre, não tem di nhe i ro,Quer for rar o seu im pé rioCom fo lhas de ca ju e i ro.

Rua aba i xo, rua aci ma,Ruas de can to a can to,Rua que por ela pas saO Di vi no Esp’rito San to.

Os im pé ri os e co re tos, fa bri ca dos de sar ra fos e lona pin ta da,es ta vam a con clu ir-se; nas bar ra cas do cam po, os car pin te i ros e pin to res, tre pa dos em es ca das, pre ga vam tá bu as, es ten di am dís ti cos, mi ra vam ospa i néis que re pro du zi am gros se i ra men te as re pre sen ta ções do in te ri or; e,por en tre os ga lhar de tes, as bam bi ne las, tro féus e ban de i ras, avis ta -vam-se, em de se nho fla man te e in cor re to, ce nas acro bá ti cas, um be zer ro de cin co per nas, tra ba lhos de equi lí brio, exer cí ci os eqües tres, etc.

O Cam po de San ta na sin te ti za va o gros so da fun ção. Na di re -ção da Rua de S. Pe dro, em fren te ao quar tel, alon ga va-se uma li nha debar ra cas com as suas cu me e i ras, que se me lha vam à no i te pi râ mi des defogo e te tos in cen di a dos; e nos por ta is da rua e aos bal cões, os ven de -do res de sor tes, de en tra das e de co mi das, es ten di am o bra ço, ges ti cu la -vam, gri ta vam como pos ses sos, en sur de cen do os tran se un tes.

As mú si cas es tron da vam de den tro, as fa mí li as e o povo for mi -ga vam de fron te, e como uma chu va de pi ri lam pos que se aba tes se dos

154 Melo Mo ra is Filho

Page 144: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

ares, as lan ter ni nhas de fo lha com vela de vin tém, das qui tan de i ras sen ta -das, fa is ca vam ao lar go, alu mi an do nos ta bu le i ros e ban de jas os lou rosma na uês, as co ca di nhas bran cas e os bo li nhos de ai pim, fe i tos com es me ro e as se io pe las la bo ri o sas e ines ti má ve is do ce i ras da que le tem po.

Des de o es cu re cer, era re al men te des lum bran te aque le ce ná -rio. Na que la pra ça enor me, a fi le i ra de bar ra cas pa re cia um muro alvola vra do pe las cha mas; a mul ti dão com suas ves ti men tas pi to res cas, api -nha da no cha fa riz que aí exis tia, ou mo ven do-se em gru pos, lem bra vaum qua dro de mes tre da es co la ve ne zi a na; ao om bro das mon ta nhasdes can sa va a abó ba da do fir ma men to, e a igre ja de San ta na, com a suator re ca i a da, des ta ca va-se ao fun do, num céu cal mo e es tre la do.

O fa mo so im pé rio, o co re to e o pa lan que do le i lão, ao lado do tem plo, cin ti la vam de lu zes, agi ta vam os bam bo lins.

Os es pe tá cu los nas bar ra cas cons ti tu íam o di ver ti men to pre -di le to de me ta de do pú bli co, que os fre qüen ta va com as si du i da de.

A ca val ga da de um dos cir cos de ca va li nhos pre lu di a va, aomes mo tem po que as fo li as, a fes ta do Di vi no.

To das as ma nhãs, a par tir das onze ho ras, a trou pe exi bia-senas ruas, com seus ca va los de raça, seus ar tis tas ades tra dos.

O pes so al com ple to da com pa nhia, em gar bo sos gi ne tes en fe i -ta dos de fi tas, pas se a va pela ci da de, anun ci an do o es pe tá cu lo da no i te.

Pre ce di do por dois cla rins, o ban do en tra va or di na ri a men tepela Rua de S. Pe dro, ca mi nhan do a pas so e avi van do a aten ção.

Ai ro sa men te in cli na das em se lins de ban da, duas dan ça ri nasde cor da, fan ta si a das com luxo, re fre a vam ca va los fo go sos, fus ti gan -do-os opor tu na men te.

A es tas su ce di am-se vá ri os ar tis tas ves ti dos como nos cir cos,ten do por se lins o acol cho a do es pe ci al ado ta do para os exer cí ci oseqües tres.

Den tre eles go za vam de me re ci da ce le bri da de o por tu guês Ja -cin to, que pu la va por den tro de ar cos, e seu ir mão, vul gar men te co nhe -ci do por Bem-te-vi, gi nas ta as som bro so e in ces san te men te vi to ri a do nossal tos-mor ta is so bre sete e nove ca va los.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 155

Page 145: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Fe chan do o prés ti to, vi nham dois ma ca cos ban zan do de umlado para ou tro em dois lin dos pe qui ras, o di re tor da com pa nhia, e o pa -lha ço Jo a quim, por an to no má sia – o Fa ce i ri ce.

Ves ti do de clown, de cos tas para o pes co ço de uma égua baia,de pé e fa zen do tre je i tos, o gra ci o so pa lha ço ar ras ta va após si uma ran -cha da de mo le ques, que, tu mul tu o sos, ba ten do pal mas com pas sa das, es -ta be le ci am com ele ex tra va gan te diá lo go e for ma vam coro.

E o Fa ce i ri ce, do mi nan do de toda a al tu ra o seu nu me ro so sé -qui to, er guen do as mãos, ar re ga lan do os olhos, es can ca ran do a bocapin ta da de ver me lho, ao soar dos gui zos de suas man gas de bi cos e deseu cha péu de pi er rô, prin ci pi a va:

– Mo le que!...– Si nhô!– A moça é bo ni ta?– É, sim si nhô...– Tem ves ti do de ba ba do?– Tem, sim si nhô...– Ra pa du ra é coisa dura?– É sim si nhô...E as sim por di an te, ter mi nan do isto pelo in va riá vel es tri bi lho:– Ora, bate, mo le que! Ora, bate, coió!Com o fim de man ter a or dem, um ou mais pe des tres, mu -

ni dos de gros sas chi ba tas, guar ne ci am a onda, dis tri bu in do às ve zesper di das lam ba das, que mo de ra vam os ex ces sos de en tu si as mo dos di let -tan tis em ala ri do.

Qu an do as lu mi ná ri as acen di am-se, o cam po re gur gi ta va decu ri o sos e de gen te que com pra va sor tes, ce a va nas bar ra cas, ca mi nha vaao aca so e re ce bia en tra das.

Na sua tri bu na aé rea, o Chi co-Gos to so apre go a va ofer tas, im -pro vi sa va ver sos pa tus cos, com a sua opa es car la te, com a sua sal va depra ta:

Quem ti ver o seu se gre do,Não con te à mu lher ca sa da,Que a mu lher con ta ao ma ri do,O ma ri do à ca ma ra da...

156 Melo Mo ra is Filho

Page 146: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, dou-lhe tudo des tavez! – Eram as pa la vras que os ecos es pa lha vam pelo es pa ço, com asgar ga lha das da mul ti dão, que apla u dia-lhe as lem bran ças fe li zes e o lo grodos – se gre dos.

As ban das de mú si ca fa zi am-se ou vir por toda a par te. Ossaltim ban cos, aos gri tos nos cir cos, pro vo ca vam “bra vos” e pal mas doses pec ta do res em de lí rio.

Na bar ra ca de MM. Bert he a ux e Ma u rin, a gi nás ti ca e os qua -dros ao vivo, de re pro du ções his tó ri cas, to na vam-se ten ta ção ir re sis tí velpara as pes so as que, de po is de apre ci a rem as ma gis tra is exe cu ções daban da de fu zi le i ros, que to ca va na va ran da, iam de le i tar-se a mais nãopo der, em pre sen ça dos pro cla ma dos qua dros im pres si o nis tas.

Não me nos fre qüen ta da era a bar ra ca de M. Fou re a ux, comas suas ce nas mí mi cas, suas pi râ mi des hu ma nas, seus vol te i os eqües tres,onde os ar tis tas Car los Va rin e Ba tis ta Fou re a ux exe cu ta vam exer cí ci osde bolas, equi li bra vam-se em gar ra fas, de sem pe nhan do igual men tead mi rá ve is evo lu ções em ar go las vo lan tes.

Essa com pa nhia con ta va em seu grê mio duas es tre las de con si -de rá vel gran de za – Mlles. Jenny e Se ra fi na.

Mu i tas co ro as lhes fo ram ati ra das aos pés, mu i tos amo resade ja ram tí mi dos por so bre as suas for mas cin ze la das, mu i to po e tainspi rou-se no seu olhar en can ta dor.

É de boa fon te esta qua dra, que lhes en ca re cia o mé ri to:

A Jenny, sem pre apla u di da,Fará pas sos gra ci o sos;Se ra fi na, so bre a cor da,Seus sal tos di fi cul to sos.

Não obs tan te to dos es ses su ces sos, a bar ra ca das Três Ci drasdo Amor le va va de ven ci da a to das as ou tras, não só pela ori gi na li da dedas re pre sen ta ções, mas ain da ape la va ri e da de e dis tin ção de seus fre -qüen ta do res.

E quem a fre qüen ta va?A ple be e a bur gue sia, o es cra vo e a fa mí lia, o aris to cra ta e o

ho mem de le tras.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 157

Page 147: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Nos ana is das nos sas fes tas po pu la res, a bar ra ca do Te les fi ca rá so li tá ria no me re ci do re no me.

A bar ra ca das Três Ci dras do Amor, ou bar ra ca do Te les,cam pe a va em úl ti mo lu gar, qua se fron te i ra do im pé rio.

O seu as pec to era mo des to, o le tre i ro que a en tes te i ra va erailus tra do de três ci dras mons tru o sas, pin ta das a óleo nas duas ex tre mi -da des, e um triân gu lo de pe que nas ban de i ras, en fi a das numa cor da, for -ma va-lhe o fron tão sim ples e alí ge ro.

No sa lão re gu lar e pou co con for tá vel, em lon gos ban cos fi xos e tos cas va ran das, ins ta la vam-se, nas no i tes de ré ci tas, cen te nas de es -pec ta do res, ávi dos de emo ções agra dá ve is.

Por oca sião des sa fes ta com pre en de-se que to dos pro cu ra vam di ver tir-se, en tran do os es pe tá cu los do Te les no nú me ro de suas pro -cu ra das dis tra ções.

O ce ná rio da bar ra ca não era ex ten so: pro por ci o nal men te di -vi di do, so men te uma quar ta par te des ti na va-se ao cé le bre te a tri nho debo ne cos, res tan do as de ma is para as re pre sen ta ções de co mé di as, can to -ri as de du e tos, má gi cas e gi nás ti ca.

Na com pa nhia não ha via da mas: para de sem pe nhar tais pa -péis, dois ou três ra pa zo las im ber bes ves ti am-se de mu lher, sal van docom ha bi li da de a ilu são cê ni ca.

O que é ver da de, é que o galã Pi men tel, o Mon clar, o Vas ques e Pi nhe i ro Jú ni or ti ve ram como seu pri me i ro mes tre o em pre sá rio dasTrês Ci dras do Amor, e quan do de lá sa í ram foi para en tra rem no ca mi -nho da arte, das le tras e da gló ria.

O Te les era um ho mem de es ta tu ra re gu lar, aca bo cla do, che iode cor po e de per nas in cha das. Go zan do dos fa vo res pú bli cos, sim pa ti -za do ge ral men te, en gra ça do de fa zer rir as pe dras, os seu es pe tá cu los ar -ras ta vam a ma i or con cor rên cia.

Mu i tas no i tes, Ma ga lhães, Gon çal ves Dias, Por to Ale gre, JoséAntô nio, o ba cha rel Gon çal ves, Pa u la Bri to, a Pe ta ló gi ca em peso iamapre ciá-lo, co roá-lo em cena, no de bi que o mais ino fen si vo.

A João Ca e ta no cha ma va ele de co le ga, con sul ta va a res pe i toda com pre en são da arte, so bre os tra jes dos per so na gens e in ter pre ta ção das par tes.

158 Melo Mo ra is Filho

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Uma vez o im pa gá vel Te les, as sis tin do à re pre sen ta ção daNova Cas tro, de po is de fe li ci tar o imor tal ator que de sem pe nha ra o pa pel de D. Pe dro, dis se-lhe no ca ma rim, no in ter va lo de um dos atos:

– O se nhor agra dou-me tan to, que deu-me von ta de de imi -tá-lo. Mas, como ves tir-me para dis far çar o de fe i to das per nas?

– Co le ga, de bo tas e ba ti na; res pon deu-lhe João Ca e ta no.À no i te, a fe i ra do cam po ex ce dia-se em ma rés de povo no

flu xo e re flu xo, em vo ze ri as de pre go e i ros, em lu zes, mú si cas e di ver ti -men tos.

O es ta lo dos chi co tes nos cir cos, o re pi que dos si nos de San -ta na ao ter mi nar o Te Deum, as pa chu cha das do Chi co-Gos to so apre -go an do um pão-de-ló ou uma ga li nha, e a mul ti dão em tro pel queacom pa nha va ao im pé rio o im pe ra dor do Di vi no, o Por ta-es to que e os fo liões no cen tro de qua tro va ras en car na das, im pri mi am a essa fes taum cu nho de re le vo bri lhan te, como as es cul tu ras ar qui te tô ni cas daIda de Mé dia.

O te a tro do Te les era ilu mi na do a ve las e a aze i te; pe ga va-se500 réis de en tra da, in clu in do nes te pre ço o bi lhe te da rifa; ti nha, alémda or ques tra para a gran de di vi são do ce ná rio, uma ou tra de vi o lão, fla u tae ca va qui nho, que to ca va ocul ta, quan do dan ça vam os bo ne cos.

De po is da ou ver tu re – uma val sa ou uma pol ca – su bia o pano.Como in tro du ção à no i te ar tís ti ca, o Te les es qui pa ti ca men te ves ti do, apa -re cia, en go lia es pa das, co mia fogo, fa zia má gi cas...

E nem lhe fal ta vam apla u sos e mu i tos agra dos.Des cen do o pano e su bin do de novo, re pre sen ta va-se O Ju das

em sá ba do de Ale lu ia, por exem plo: ha via gi nás ti ca, can ta va-se a ária doCa pi tão Ma ta mou ros ou coisa se me lhan te, como con clu são da pri me i rapar te da ré ci ta.

O Te les nas co mé di as do su bli me Pena ti nha seu va lor, porisso que era um ho mem to tal men te in cul to e gra ci o so, como os pro ta -go nis tas das co mé di as de cos tu mes do Mo liè re cá da ter ra.

A ma i or soma de seus tri un fos não con sis tia pro pri a men tenes sas ce nas de so bra ori gi na is do nos so te a tro na ci o nal, po rém no du e toO Me i ri nho e a Po bre, O Mi u di nho e na dan ça de bo ne cos, en tre me a da porele de chu las las ci vas, de re pen tes pe tu lan tes, de sa ca co te i os ini mi tá ve is.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 159

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Qu an do o Te les trans pu nha o pal co en ca sa ca do de me i ri nho,e co me ça va, de sen ro lan do uma cor da, ao avis tar a po bre:

Tan ta po bre na ci da deNão ’stá má va di a ção...

o au di tó rio en chia com uma gar ga lha da ao re cin to, a ra pa zi a da acla ma va o ar tis ta, e João Ca e ta no ba tia pal mas vi to ri an do-o.

Isso de ve ras o ani ma va, pois re tri bu in do com o seu es for ço age ne ro si da de pú bli ca, des pi ca va-se no fado do fim do ato, bam ba le an do, can tan do, re que bran do-se, pu xan do a fi e i ra, on du lan do as ná de gas aex te nu ar-se, aos – Bra vo do Te les! – Cor ta-jaca! – Mete tudo! – Botaaba i xo! – da mul ti dão ca lo ro sa, que ria-se, gri ta va, ba tia com as mãos até os der ra de i ros ru mo res des se dan ça do tra di ci o nal e ele tri zan te do povobra si le i ro.

Em um des ses mo men tos, co ro ou por pân de ga o gê nio denos sa cena dra má ti ca ao sa u do so his trião, de quem tão vi vas re cor da -ções ain da per sis tem na lem bran ça de tan tos con tem po râ ne os que oco nhe ce ram e apre ci a ram.

Com a in cons tân cia das ban de i ras ao ven to, as pe ças na bar ra ca va ri a vam, e com elas todo o es pe tá cu lo. Era imu tá vel, po rém, a re pre sen -ta ção dos bo ne cos, que cons ti tu ía a se gun da par te do es pe tá cu lo.

Jus ta men te nis so bri lha va o nos so Te les por seu es pí ri to emos tra va real ha bi li da de. O povo, que re ti ra va-se nos in ter va los, pre ci pi -ta va-se na oca sião do si nal para o es pe tá cu lo dos bo ne cos. Ama i na do otu mul to, o Ma ne zi nho har pe ja va lá den tro no seu vi o lão, o Zuzu fe riacom a pa lhe ta as cor das do ca va qui nho e o Fer re i ra so pra va na sua fla u tama cia...

Le van ta va-se o pano, e ao som de plan gen te me lo dia, can ta vao Te les:

Abra-se o céu,Ras guem-se as nu vens!Apa re ça a cenaCheia de lu zes!...

É inú til des cre ver a im pres são pro du zi da en tre os es pec ta do res, des de que se er guia a cor ti na, des de que re ta lha vam o ar, a de sa pa re cernas bam bo li nas, os cor dões mo to res das sal ti tan tes fi gu ras.

160 Melo Mo ra is Filho

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Ini ci a va qua se sem pre es sas ré ci tas A Roda de Fiar, diá lo goen tre ti do pela Fi an de i ra e o Ca bo clo, per so na gem for ça do a to das asre pre sen ta ção.

O Ca bo clo, que era o fiel re pro du tor das pa chu cha das doTe les, cres cia do ta bla do, ves ti do de cal ça bran ca, ca mi sa ar re ga ça da,co le te en car na do, pu lan do-lhe à cin ta uma ca ba ci nha e mu ni do de umfa cão, que agi ta va con ti nu a men te, nas dan ças, nas ame a ças, nas in ves ti -das, con for me as si tu a ções.

Na Roda de Fiar ele en tra va, ir ri tan do a pe que na bo ne ca emseu tra ba lho:

A Fi an de i ra, can tan do:

Não bula com a roda Que ela é de fiar...

O Caboclo Não seja te i mo sa Que há de apa nhar.

– En... en! Mi nha dona!... bra da va ele, per se guin do a in ter lo cu -to ra, que se pu nha de pé: – ’Stou todo ar ris pi a do!!

E mu i to dito chis to so e mu i to ver so de sen ti do equí vo coacu di am em tur bi lhão ao Ca bo clo e à Fi an de i ra, que aca ba vambrigan do e fa zen do as pa zes, aos re que bros da chu la, às ova ções dapla téia.

Em se gui da à Roda de Fiar vi nha A Cri a ção do Mun do, dra ma de en re do com pli ca do e ri quís si mo em dis pa ra tes. Os pro ta go nis tas de no -mi na vam-se: o Ca bo clo, o Pa dre Eter no, Adão, Eva, Caim, Abel, oSacris tão e si nhá Rosa.

Por esta dis tri bu i ção po de-se cal cu lar o ide al do au tor. Apa nhando re mi nis cên ci as, ape nas ar qui va mos na me mó ria um ou ou tro lan ce, quenos fi cou por ca u sa dos ver sos.

As fi gu ras ba i la vam des de o co me ço, o diá lo go cor ria pou coin ter rom pi do, o Ca bo clo en tu si as ma va com os seus re pen tes.

Com o im pres cin dí vel fa cão, tra qui nas e sem pre dis pos to,arreli a va ele as suas do nas, e, no pa ra í so, re cos ta do a uma ár vo re, implo ra vapor si nhá Rosa, quan do ela su mia-se nos bas ti do res:

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 161

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Ro si nha da saia cur ta,Bar ra de sal ta-ri a cho,Tre pa aqui nes te co que i ro,Bota es tes co cos aba i xo!

Então, Eva que i xa va-se a Adão, re ve lan do-lhe a ten ta ção daser pen te, ao que este sol ta va:

Gran de pi nhe i ro tão arto,Que dá pau para cuié,Quem qui sé vê me xe ri coVá na boca de muié.

A his tó ria in trin ca va-se; Caim ma ta va Abel; ha via de sa gui sa do;e o Pa dre Eter no, numa apo te o se de nu vens de pas ta de al go dão, des ciado Céu, in ter vi nha be ne fi ca men te no con fli to fi na li zan do o dra ma porum ca te retê, em que o Pa dre Eter no dan ça va com si nhá Rosa, aospene i ra dos do Ca bo clo, que, dan do um bi ga das, sa pa te an do, bra da va:

– Qu e bra, si nhá Rosa!... Re bo la, mi nha Mal me que res!...E pal mas re pe ti das, bu lha in ces san te, bra vos e ri sa das, partiam

ardentes. Arri a va-se o pano, su ce den do após mi nu tos um jon go deautô ma tos ne gros, ves ti dos de ris ca do e ca ra pu ça en car na da, que, ao fer ver de um ba tu que ras ga do e li cen ci o so, can ta vam o es tri bi lho, que ain da épo pu lar:

Dá de cumê!Da de bebê!San ta Casa é quem paga A você!

– À cena o Te les! – Bra vo do Te les! – À cena! – par ti am dapla téia, ao que ele aten dia, e, re ve ren te men te co mo vi do, mur mu ra va,adan tan do-se e in cli nan do a ca be ça:

– Obri ga do, meu povo... obri ga do...

∗– Des ta vez não fiz pe chin cha,Des co briu-se a la dro e i ra!...

Assim excla ma va o Chi co-Gos to so da gra de do seu ta bla dodos le i lões, sen do sur pre en di do numa es ca mo ta gem de pren das.

162 Melo Mo ra is Filho

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E uma tro vo a da de ri sos e uma pa te a da ge ral an te pu nham-seà im per tur ba bi li da de do ca pa dó cio le i lo e i ro.

– Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três... Scio! Scio!!

O POVO

– Bra vo! Bra vís si mo!...

CHICO-GOSTOSO

– Toca a mú si ca!

O POVO

– Ain da não! ain da não!...

CHICO-GOSTOSO

– Te nho dois mil-réis pelo por qui nho... quem dá mais?

UM HOMEM

– Dou mais meia pa ta ca.

CHICO-GOSTOSO

– Pois o coré é seu... Toca a mú si ca!

O POVO

– Bra vo! Bra vo do Gos to so!

No im pé rio, o im pe ra dor, com o seu man to ver de e sua co roa dou ra da, do mi na va no meio de sua cor te...

Nas no i tes de fogo, a afluên cia au men ta va, as fa mí li as aguar -da vam, sen ta das em es te i ras, por essa ra di an te con clu são dos fes te jos, emag ní fi cas ce i as, tra zi das de casa, as con gre ga vam ex pan si vas.

De po is da meia-no i te que i ma va-se a pri me i ra roda: for ma -vam-se par ti dos para sa ber-se quem ven ce ria, se a for ta le za ou as fra ga tas:as mo ças gos ta vam dos gi ras sóis e da lua, os me ni nos da mu lher que mijafogo e do bar be i ro, e a ra pa zi a da ti nha como o me lhor as va i as e os “fo ras” ao fo gue te i ro, que an da va em ver da de i ra roda viva.

Ao ar der a der ra de i ra peça, quan do lia-se no trans pa ren te emci fras cam bi an tes – Gló ria ao Di vi no – a tur ba saía das bar ra cas, os si nos

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 163

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re pi ca vam, o acam pa men to le van ta va-se, os apla u sos re do bra vam, e amul ti dão pou co a pou co dis per sa va-se.

Não fal ta vam co men tá ri os di ver ti dos, ao to que das se re na tas,aos úl ti mos epi só di os da fun ção.

Eis o que era na que le tem po a fes ta po pu lar do Di vi no,quan do a nos sa so ci e da de não ti nha a pre ten são de que rer im por-sepela deca dên cia de seus cos tu mes e pelo ener va men to de seu sen soreli gi o so.

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FESTAS RELIGIOSAS

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As San tas Mis sões

Cal ma e so le ne como o sol po en te é a alma re li gi o sa que seem be ve ce das ma ra vi lhas do Céu e que ace i ta, sem con tro vér si as, o pro -ble ma da fé.

Ela mar cha se gu ra em seu ca mi nho, e tri lha in di fe ren te so brero sas e so bre es pi nhos, sem olhar para ou tro ho ri zon te que não seja ode suas cren ças.

No es pí ri to de li ca do das po pu la ções do Nor te, em ba la daspe los can ta res su a vís si mos da Igre ja, afa ga das pelo so bre na tu ral, quetan to ele va e re al ça a re li gião cris tã, o sim bo lis mo do cul to exer ce po -de ro sa in fluên cia, e daí acen tu a da ca rac te rís ti ca de sua psi co lo gia es pe -ci al.

Cren te por ín do le, fa ta lis ta por ve zes e su pers ti ci o sa qua sesem pre, aque la gen te al ti va e in cul ta en con tra qua se sem pre nes sas fon teso se gre do de suas len das pi e do sas, de seus can tos e con tos, de sua ten -dên cia ao en tu si as mo e à de vo ção.

Di an te da na tu re za sel va gem, de flo res tas vir gens e de vo zesmis te ri o sas, de cas ca tas que mu gem, de rios que se es pa da nam, é im pos -sí vel de i xar-se de ser cren te, de ser-se re li gi o so.

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Pa re ce que se ha bi ta o país na tal da gran de po e sia, des sa po e -sia sem pre nova e eter na, que não pode ter ou tro ide al além da di vin da -de, ou tro in tér pre te além do co ra ção.

Esva zi ai a flo res ta e os ser tões da som bra de Deus e os sé -cu los fa rão me dos pen du ra dos das ra mas dos ar vo re dos ex cel sos; ti raida que le povo a re li gião com to dos os seus pre ju í zos, com to das as suassu pers ti ções, e ne nhu ma ou tra coisa a subs ti tu i rá, ca paz de me re cer umraio dos nos sos cre pús cu los dou ra dos!

Den tre os cos tu mes po pu la res do Nor te, bem pou cos exis -tem mais na al tu ra de en fron tar com a na tu re za ame na e as pér ri ma da -que les cli mas, de de se nhar mais ni ti da men te o per fil da que la raça, doque uma San ta Mis são, quan do esta é se gui da de uma jor na da de pe ni -tên cia.

Os ho mens da fé viva, os mis si o ná ri os ca pu chi nhos que to -ma vam o rumo do Céu pela es tra da que vai do sa cri fí cio à mor te, em -pre en di am anu al men te a sal va do ra cru za da, e o povo em peso com pa re -cia no tem plo para a ex pi a ção das cul pas e re mis sões dos pe ca dos.

Em uma fre gue sia, quan do ha via Mis são todo o mun do sa bia... A no tí cia es pa lha va-se dis tan te, di fun dia-se como por en can to, e a boanova en con tra va dis pos to o âni mo dos fiéis para os je juns, a pre ce emco mum e ou tros de ve res for ça dos à es ta ção e ao ato.

A San ta Mis são re a li za va-se pela qua res ma, em dias va riá ve is;ge ral men te às sex tas-fe i ras e aos do min gos.

Nos po vo a dos onde as igre jas eram de ma si a do pe que nas, umtol do acres cen ta va-se ao al pen dre sin ge lo – teto pro te tor de inú me roscren tes que vi nham de lon ge para as sis ti-las.

Em ou tros lu ga res, po rém, de vi do às cir cuns tân ci as do aca so,ar ma va-se, na fal ta de um tem plo qual quer, enor me bar ra cão, den tro doqual o san to mis si o ná rio fa zia eri gir um al tar, co lo ca va a sa gra da ima gem de Cris to, acen dia ve las de cera an tes de co me çar a dou tri na.

O povo ador na va de fo lha gens aro má ti cas e flo res na ti vas oim pro vi sa do tem plo; tra zia dá di vas es pon tâ ne as, an te ci pa va-se con tri to à tra di ci o nal de so bri ga.

O púl pi to, a um lado do al tar, ali se acha va, e o con fes si o ná rio via-se de fron te, tos ca men te fe i to, sem arte pre pa ra do.

168 Melo Mo ra is Filho

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Uma cruz, do mi nan do ao alto da por ta da en tra da, tra du zia open sa men to da cons tru ção e con vi da va os fiéis ao re co lhi men to da alma e à me di ta ção na mor te.

O efe i to que isso ca u sa va, no do mí nio ple no dos ser tões bra -vi os, era in des cri tí vel: o ta ba réu des co bria-se, pas san do, e ajo e lha va-se; o es cra vo benzia-se e im plo ra va mi se ri cór dia; as mu lhe res e as cri an çaspara vam um ins tan te, per sig nan do-se, e se gui am...

Nas igre jas das fre gue si as, en tre tan to, ce le bra vam-secomumen te as San tas Mis sões, as de so bri gas do ano.

Pre pa rar o povo pela pe ni tên cia, ins truí-lo no ca te cis mo,en ca mi nhá-lo pelo ba tis mo, pela prá ti ca da vir tu de e do bem ao re i no de Deus, era o ob je ti vo do sa cer do te er ran te, do após to lo im preg na do dasver da des eter nas.

Ao en tar de cer, quan do as aves can tam nas sel vas, os ser ta ne josco me ça vam a aban do nar suas ha bi ta ções hu mil des, ga nhan do a es tra da;as fa mí li as, a pé ou em car ros de bois, apro xi ma vam-se do ar ra i al e, pou co a pou co, o adro da igre ja e a pra ça re gur gi ta vam de povo, que sen ta va-sede po is ao aca so, à es pe ra do ca te cis mo e da pré di ca.

O luto da qua res ma, o re li gi o so te mor da que la gen te, com pe -ne tra da em ex tre mo do mar tí rio da Pa i xão, car re ga va o as pec to des sacena ao ar li vre, em que a qui e ta ção e o si lên cio cam pe a vam im per tur bá -ve is.

E a igre ja se abria...Em um ins tan te a tur ba in va dia o re cin to, bi par tia-se pri me i ro,

tor na va-se com pac ta logo após... Estan ci a da por úl ti mo à gra de dopresbi té rio, con tem pla va res pe i to sa e aten ta ao mis si o ná rio, que des ciado al tar-mor e sen ta va-se em sua ca de i ra sa cer do tal, para ex pli car a dou tri nacris tã, para en si nar os man da men tos e as ora ções que ser vi am de pre pa ro à con fis são.

À expli ca ção da dou tri na, qua se si mul tâ nea ou opor tu na,sucedia a la da i nha, can ta da pelo ca te quis ta, fa zen do coro a mul ti dão,de jo e lhos, hu milhada.

E de fora, à se me lhan ça do ór gão das ca te dra is, a tur ba apinha dapro lon ga va o acom pa nha men to, que os ecos re pe ti am ro lan do pe losdes pe nha de i ros e tom ban do nas es pla na das.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 169

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De po is... nem mais uma voz, nem mais um cân ti co sa gra do!As lu zes ba ti am pá li das no Cru ci fi xo do pres bi té rio de ser to, e

uma fi gu ra ajo e lha da, com a fron te en tre as mãos, des co bria-se no púl -pi to mu ral, re fle tin do, oran do.

E er guia-se!Era o mis si o ná rio, cuja pa la vra ar den te de fé, pre pa ra va as

al mas para a bem-aven tu ran ça; era o após to lo do Evan ge lho que pre ga vaa pe ni tên cia, que re di me as cul pas; era o ca pu chi nho in tré pi do e su bli me apre go an do a lei de Deus nas so li dões do Novo Mun do!...

E co me ça va:Vida bre ve...Mor te cer ta...Do mor rer a hora in cer ta...

E seu fer vor alen ta va-lhe in ten so, cada vez mais in ten so, afra se in cor re ta, po rém ins pi ra da...

O povo, sus pen so à sua pa la vra, olha va-o pas ma do; ele,com o cru ci fi ca do na des tra trê mu la, ti nha no bra ço a for ça de umexér ci to!

E depo is de con fun dir os ví ci os, de exal çar as vir tu des, econde nar à mor te eter na aque les que vi vi am em pe ca do, em pu nha va adisci pli na de pon tas de fer ro, e, à di re i ta e à es quer da, aço i tan do-secon vul so, pe ni ten te e hor rí vel bra da va:

Mi se ri cór dia!! Mi se ri cór dia!!...

E o povo, de bru ços, vol ta do para a ima gem de Cris to en cer -ra do, re pe tia, ba ten do nas fa ces:

Mi se ri cór dia! Mi se ri cór dia!...

Nes te mo men to, o cho ro, as la men ta ções, os so lu ços e os aisdo lo ro sos asi la vam-se no tem plo, for man do uma at mos fe ra so no ra men telú gu bre e do lo ro sa...

Mais tar de, se era ne cessário, para a cons tru ção de umacapela, de um ce mi té rio, de um hos pi tal, saía a pro cis são de pe ni tên cia,pre ce di da do ve ne ran do mis si o ná rio que, de pés des cal ços e al çan douma cruz, di ri gia o po va réu.

A cren ça, que faz res plan de cer as ações, e a es pe ran ça doCéu, que avi go ra as la mas pi e do sas, abri ga va des de logo, de ba i xo de suas

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asas cân di das, os po bres ser ta ne jos, para a ro ma gem com pen sa do ra dasboas obras. Os bre ves, as mi la gro sas re lí qui as, as in dul gên ci as abundan tesro bus te ci am aque les es pí ri tos, alen ta vam-nos com as pro mes sas deperdão dos pe ca dos, anun ci a das na pa la vra ins pi ra da e aus te ra do catequis tain te me ra to.

Pe las três ho ras da tar de, já os pe ni ten tes co me ça vam a reunir-senos lar gos das ma tri zes, à por ta de de ter mi na da igre ja...

E aque les ho mens mo re nos e pos san tes, aque las mu lhe resne gras ou tri gue i ras, aque las cri an ças aven tu ro sas e obe di en tes, an si a vampela pre sen ça do mis si o ná rio que os en ca mi nha ria atra vés do ser tão eflo res tas.

Alguns pe ni ten tes, co ro a dos de es pi nhos da mata, es pe ra vamtam bém, re ven do na cons ciên cia o ne gror de suas cul pas.

De repen te to ca va o si nal da par ti da, e o ca pu chi nho, rompen do a mar cha, en to a va a la da i nha.

A cada ver sí cu lo, no fi nal de cada ora ção, o povo em tro pa,res pon dia, can tan do:

Pi e da de, Se nhô!...Pi e da de de nós pe ca dô...

Entor na dos pe las ma tas so be ra nas e es cu ras, pe los des pe nha -de i ros ver ti gi no sos e pro fun dos, pela ex ten são das es tra das bár ba ras,aque les ru mo res ti nham al gu ma co i sa de sa crí le go e mons tru o so.

Dir-se-ia os ala ri dos de um titã ful mi na do nos pri me i ros diasdo caos!

E a pro cis são se guia, trans pon do va les, e ser ras, afron tan do oim pre vis to das sel vas e o des co nhe ci do dos ca mi nhos.

Sem as pe dras ne ces sá ri as para a edi fi ca ção pla ne ja da, lu tan do bra ço a bra ço con tra a di fi cul da de das dis tân ci as, o fer vo ro so sacerdotebuscava as mar gens dos rios, os pon tos mais co nhe ci dos e próximos,onde elas exis ti am, e para lá se en ca mi nha va com o seu re ba nho depecado res, com os ser ta ne jos va len tes e in fa ti gá ve is nas jor na dasassom bro sas.

Por onde quer que pas sas sem os pe ni ten tes, fa mí li as in te i rasde i xa vam as suas ca sas e in cor po ra vam-se ao prés ti to; os es cra vos que

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 171

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não po di am se gui-los, cho ra vam pe na li za dos; os me ni nos e os tro pe i ros, fu gin do às tro pas e aos po vo a dos, lá iam fe li zes na ro ma ria de Deus.

É belo de ima gi nar-se o gran di o so es pe tá cu lo que se des do -bra va à vis ta, co lo nos da fé, na vi a gem su bli me e obs cu ra dos atos me ri -tó ri os e do Evan ge lho!

E de lon ge, de bem lon ge, lá do além, umas har mo ni as bran das como o res pi rar da in fân cia, uma es pé cie de coro de an jos nas ho rasmis te ri o sas e me lan có li cas do cre pús cu lo, vi nham ain da ex tin guir-se noso tur no da igre ja:

Pi e da de, Se nhô!Pi e da de de nós pe ca dô...

Che gan do a pro cis são, o ca pu chi nho sus pen dia as re zas, asmu lhe res e as me ni nas des can sa vam aqui e ali, en quan to os ho mensse pa ra vam e es co lhi am as pe dras mais ou me nos vo lu mo sas, que pudes semcar re gar.

A mul ti dão era nu me ro sa: de mais de se is cen tas pes so as, àsve zes, com pu nha-se uma pro cis são de pe ni tên cia, que ha bi tu al men tecons ti tu ía-se em pro lon ga men to da San ta Mis são.

Eis se não quan do, o mis si o ná rio, to man do a cruz, er guia-seso le ne: o sol dou ra va-lhe a bar ba gri sa lha e on du lan te, as vi ra ções datar de en chi am-lhe a man ga do bu rel gros se i ro e hu mil de.

O povo, que o adorava, que via nele a fi gu ra de um san to,punha-se em mo vi men to; e, as mu lhe res e os ve lhos, os ho mens pos santese as cri an ças, sus pen di am à ca be ça e ao om bro as pe dras da ro ma gem,que con du zi am às ve zes, a uma lé gua de ca mi nho, para fins pi e do sos.

E as mu lhe res can ta vam:

Quem é que esta pe draMe aju da a le var,Que Nos sa Se nho raNos há de aju dar...

E o suor go te ja va da fron te e dos bra ços ner vo sos do ma tu to; as mu lhe res ali vi a vam, pas san do de um om bro para ou tro, o peso daspe dras enor mes; as cri an ças sus pen di am nas mãos er gui das as que lhescou be ram na par ti lha.

172 Melo Mo ra is Filho

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E quan do as tro vas po pu la res e re li gi o sas emu de ci am, o após to lodas sel vas, o mis si o ná rio im po nen te e ad mi rá vel, re co me ça va os cân ti cos sa gra dos, que o povo, em mar cha for ça da, fa zia se guir do pun gi ti vocoro:

Pi e da de, Si nhô!...Pi e da de de nós pe ca dô...

E es sas to a das re bo a vam na flo res ta, como os ecos de Jo sa fános fu ne ra is do mun do!

Assim eram as San tas Mis sões ; as sim a fé an ti ga eri gia seussan tuá ri os mag ní fi cos, hoje qua se de ser tos de tra di ções e de Deus!

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 173

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San ta Mis são

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S. Se bas tião

(FUNDAÇÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO)

É das so li dões das crô ni cas que o pen sa men to das ge ra -ções mor tas res sur ge, en vol vi do no man to lu mi no so de suas asas.

E para o po e ta e o eru di to, o fi ló so fo e o ar tis ta, ne nhu maou tra fon te se lhes de pa ra de con cep ções mais gran di o sas do que aque -les san tuá ri os si len ci o sos, de onde os po vos pas sam aos es pal da res debron ze da His tó ria.

Re mon tan do-nos aos nos sos mo nu men tos his tó ri cos, en con -tra mo-los en ci ma dos por tan tos ne vo e i ros fa bu lo sos, que, sem a len da,fora in cor re to o de se nho dos ca rac te res, e de li ne a men tos con fu sos aem bri o ge nia das gran des em pre sas e das lu tas so bre-hu ma nas, a que selan ça ram os pri mi ti vos co lo ni za do res des te País.

O dia de S. Se bas tião, que re lem bra o da fun da ção da ci da dedo Rio de Ja ne i ro, nos leva di re to à pes qui sa de fa tos re a is, em bo ra de sa -bro cha dos sob a in fluên cia do ma ra vi lho so e res cen den tes de odo resmís ti cos.

Era no ano de 1563. À Ra i nha D. Ca ta ri na, de Por tu gal,Anchi e ta e Nó bre ga fa zem che gar no tí ci as de pa zes ce le bra das com os

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ta mo i os, ín di os ca ni ba is e guer re i ros que do mi na vam a cos ta do Bra sil,des de Cabo Frio até à pro vín cia de S. Pa u lo.

Pre ve nin do su ble va ções fu tu ras, apres sou-se aque la so be ra naem fa zer ex pe dir para este por to Está cio de Sá, so bri nho do Go ver na dorMem de Sá, que foi ter à Ba hia, com duas ga le ras ar ma das, de ven do aíre ce ber or dens de seu tio e par tir sem de lon gas a se nho re ar o Rio.

Mem de Sá, de pos se de ins tru ções es cri tas, não va ci la, fá-loacom pa nhar por uma fro ta, com guar ni ção de ter ra e mar, se guin do elevi a gem para este por to.

Con so li dar as pa zes com os ta mo i os e re cha çar os fran ce ses,era o ide al do Go ver na dor e de Está cio de Sá, que, ao en trar da bar raem 1565, al te rou este pla no, à vis ta das re ve la ções que lhe fi ze ram emter ra, de que os mes mos ín di os ha vi am vi o la do o pac to e aco me ti do osal de a men tos por tu gue ses.

A es qua dra, à mín gua de em bar ca ções pe que nas, con ser va -va-se fora da bar ra; não obs tan te al gu mas sur ti das, frus tra das pela dis ci -pli na dos fran ce ses e seus ali a dos ta mo i os, Está cio de Sá re sol ve-se,an tes de ata cá-los, ir a S. Vi cen te, que se acha va em guer ra, cal cu lan doque dis so re sul ta ria pro ver-se de man ti men tos que lhe fal ta vam, e deca no as ar ma das que des sem de sem bar que à sua gen te.

Sem re cur sos para cor res pon der às re pre sá li as do ini mi go,que lhe apri si o na va al guns ba téis, fle chan do-lhe sol da dos, fez-se de velae foi lar gar ân co ras no por to de San tos.

Os guer re i ros gen ti os, en te san do o arco no se mi cír cu lo daspra i as, es cu re ci am com a som bra a trans pa rên cia azu la da das águas...

Nas mon ta nhas es tru gi am os bú zi os e bu zi nas de guer ra,enquan to que o mar, à se me lhan ça da pele mos que a da das on ças, eramar che ta do de ca no as ba lou çan tes.

À noite, as fo gue i ras acen di am-se fu man tes, os pa jés con sul tavam os oráculos; e as fe i ti ce i ras, evo can do os gê ni os de suas ca ba nas,espu ma vam epi lé ti cas nas suas dan ças di a bó li cas.

Ape sar de man te rem-se re la ções amis to sas com os ta mo i osde Ipe rig, mis si o na dos por Anchi e ta e Nó bre ga, fre qüen tes so bres sal tos aque bran ta vam o âni mo es for ça do de Está cio de Sá, vis to como, porcir cuns tân ci as de sé ria gra vi da de, con si de ra va a guer ra, que de ve ra

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de cla rar aos exér ci tos con fe de ra dos, uma luta na qual, com pro ba bi li -da des ir re cu sá ve is, se ria ven ci do.

Nó bre ga e Anchi e ta, po rém, am pa ran do-lhe o es pí ri to aba ti do,va ti ci na ram-lhe êxi to fe liz, en ten den do Anchi e ta que era ser vi do o Céu quedes ta vez se fun das se a ci da de real do Rio de Ja ne i ro.

E o je su í ta das Ca ná ri as que, a jul gar mos pela fra se ci ta da deSimão de Vas con ce los, re pre sen ta o prin ci pal pa pel nes te acon te ci men to,in corpora-se à fro ta de Está cio de Sá, e a 20 de ja ne i ro, dia de S. Sebastião,a quem to mam por pa dro e i ro da em pre sa, par te para S. Vi cen te, arri an dofer ros no Rio de Ja ne i ro, no mês de mar ço, ao aço i te das va gas empola dase ven tos con trá ri os.

Che ga dos que fo ram, a in fan ta ria de sem bar ca, for mam-setrin che i ras, ca vam-se fos sos es tra té gi cos em Vila Ve lha, jun to ao Pão deAçú car.

Fi tan do a imen si da de, o olhar pe ne tran te de Anchi e ta des ta canas ser ras e nas pra i as os ta mo i os em plu ma dos e aguer ri dos; nos ma resque o cir cun dam, as ca no as inú me ras dos ad ver sá ri os que su bi am à tona d’água, como o vô mi to ne gro do Infer no so bre aque la su per fí cie quevo ze a va nos gri tos sel va gens dos ín co las fe ro cís si mos.

E ele fa la va em nome de Deus aos sol da dos e fle che i rosbárba ros, acen den do-lhes o va lor, re lem bran do-lhes as gló ri as de seuspais, e as tra di ções de sua ter ra.

O si bilo das se tas de par te a par te, a tro ca de pro je tis dearcabuzaria, a abor da gem dos na vi os e o apri si o na men to de ca no as,en tre ti nham in de ci sa a sor te da guer ra, a de ci são da con ten da.

Entretan to das pe le jas, os ini mi gos de i xa vam os ma res co a lha dos de cadáve res e as fi le i ras vi to ri o sas dos por tu gue ses opu len tas decati vos.

Anchi e ta, po rém, re cla ma do pelo su pe ri or da Ba hia, teve dese pa rar-se da ação e obe de cer.

Nes sa vi a gem, to can do ao Espí ri to San to, le vou pa la vras decon so la ção àque las al de i as, as sis tiu ao en ter ra men to do Pa dre Di o goJácome, e pro vi den ci ou com re fe rên cia às for ças mi li ta res exis ten tes,pre o cu pa do com os su ces sos do mo men to.

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Apor tan do à Ba hia, sem per da de tem po, con fe ren ci ou com o Go ver na dor Mem de Sá, nar rou-lhe os he rói cos fe i tos de Está cio de Sáe dos seus sol da dos, pon de ran do-lhe que, para tor nar-se de fi ni ti va avi tó ria dos por tu gue ses e cons tru ir as for ti fi ca ções ma rí ti mas, tor na -vam-se im pres cin dí ve is mais re for ços de em bar ca ções e tro pas.

O go ver na dor, de ou vi-lo, dis pôs-se a vir pes so al men tecoman dar a es qua dra em evo lu ções, para o que de ter mi nou que apa re -lhas sem os me lho res na vi os, bem tri pu la dos e ar ti lha dos.

Por essa épo ca o Bis po D. Pe dro Le i tão con fe re or dens sa cras a Anchi e ta que, ao lado de Mem de Sá, vi nha com par ti lhar de suas pro -va ções, per se guin do igual men te o seu ob je ti vo – a fun da ção da ci da de.

Enquan to a fro ta na ve ga va e dra mas ig no ra dos de sen ro la -vam-se no seio das naus e bri gues ve le i ros, lu tas ti tâ ni cas e epi só di os len -dá ri os en ce na vam-se na des lum bran te e co los sal baía do Rio de Ja ne i ro.

Aos ti ro te i os sem tré gua, às ca no as me ti das a pi que, aos ge -mi dos dos sel va gens aco la dos aos tron cos das ár vo res pe las fle chas que os tras pas sa vam, a fé an ti ga ia co lher no mi la gre as pro mes sas de vi tó ria.

S. Se bas tião, que es cu da ra com o dia de seu nome a ini ci a çãoda guer ra, ma ni fes ta-se pro pí cio nas apa ri ções tan gí ve is e nas in vocaçõesir re vo cá ve is...

– São as tre vas ilu mi na das que tou cam as crô ni cas!

Era em ju lho de 1565. Está cio de Sá, fir me no seu pos to,ba tia-se com de no do: aque la alma de com ba ten te era uma sen ti ne la per -di da nos ar ra i a is da de fe sa e da le al da de.

Os fran ce ses e ta mo i os o ob ser va vam, com as ca u te las queins pi ram os gran des de sas tres, com os re ce i os que ge ram per sis ten tesaza res.

Ima gi nan do um ar dil, ar mam eles cen to e oi ten ta ca no as deguer ra e as ocul tam num bra ço de mar, lé gua e meia dis tan te do acam -pa men to ini mi go.

À fren te, na mais ágil e guar ne ci da de qua ren ta re me i ros porban da, Gu i xa rá, ín dio an tro pó fa go e se nhor de Cabo Frio, cam pe a vacomo che fe, ador nan do-lhe o pe i to am plos co la res de den tes de cem

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tri bos ven ci das. O seu cor po é lis tra do de ge ni pa po e uru cu, e o seuco car é de plu mas va ri a das e mag ní fi cas.

E o que sig ni fi ca va isso? Uma ci la da: man da rem pela ma dru -ga da qua tro da que las li ge i ras em bar ca ções ofe re cer com ba te aos por tu -gue ses, cha má-los ao lar go e, quan do eles vi es sem, aflu í rem as da re ser va,ca in do des tar te pri si o ne i ros ou mor tos os que de im pro vi so acu dis semem so cor ro dos pri me i ros aco me ti dos.

Assim com bi na dos, eis que re cor ta as on das a jan ga da deFran cis co Ve lho, mor do mo de S. Se bas tião, que ia bus car ma de i ra para a cons tru ção de uma igre ja con sa gra da ao san to.

Ao per ce bê-la, três das re fe ri das ca no as do bram de uma pon tade pe dra, indo-lhe ao en cal ço.

Está cio de Sá, des cor ti nan do o in ci den te, dá pres sa a quesol tem qua tro ca no as com es co lhi da guar ni ção, entra em uma de las ecor re a sal var o le nha dor de vo to.

Ape nas dis pa ra al guns ti ros, os ini mi gos fin gem re ti ra da, indo jun tar-se às ou tras que lhes vêm ao en con tro, em pe nhan do-se des delogo uma bri ga vi o len ta e de ses pe ra da.

E uma flo res ta de re mos afun da-se e re lam pe ia nos ma res... E uma nu vem de se tas, for man do no es pa ço uma asa es cu ra e com pac ta,ani nha os ala ri dos bár ba ros da que le povo que jul ga va an te ci par-se à vi -tó ria.

O fogo dos ar ca bu zes, o si bi lo das fle chas vo a do ras, e osgol pes pe sa dos e sur dos das ma ças dos sel va gens in qui e tam a su per fí cie do mar, que en toa um can to fú ne bre, trans por tan do no es qui fe en san -güen ta do de suas va gas os ca dá ve res que tom bam...

No ar dor que os ani ma, os be li ge ran tes são in sen sí ve is a tudoque se pas sa em tor no de si. Entre tan to, nun ca mais iso la dos se sen ti rão de tudo que lhes ten ta o vi ver.

É que en tre o céu e o mar é pre ci so es co lher: ven cer oumor rer.

Enquan to os ín di os e os por tu gue ses, com a sua na tu ral bra -vu ra, com ba tem sem me di da, sem dis ci pli na, al guém, ca in do de jo e lhose de mãos pos tas, à de to na ção de uma ro que i ra que dis pa ra e in cen de iaum pu nha do de pól vo ra, ex cla ma:

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– Va lha-me o már tir S. Se bas tião!E a mu lher de um che fe ta mo io, as som bra da, en fi an do os

de dos nos ca be los hir tos, bra da aos seus que fu jam, ou se rão ven ci dos.Os ta mo i os, ame dron ta dos, de ser tam com as suas ca no as,

de i xan do al gu mas apri si o na das e mu i tos ca ti vos.De po is des te ata que, os guer re i ros vi to ri o sos, ador na dos de

flo res e no meio de hi nos de fes ta, di ri gi ram-se ao tem plo, a ren dergra ças a S. Se bas tião; fi can do, como lem bran ça do me mo rá vel fe i to, ins -ti tu í da a cé le bre fes ta das ca no as, de que dão no tí cia os cro nis tas denota, e que du rou até os úl ti mos tem pos da co lô nia, como se pode ve -ri fi car nos ar qui vos da nos sa mu ni ci pa li da de.

É da len da que os ali a dos dos fran ce ses, re cor dan do-se da -que la hora fa tal, per gun ta vam aos por tu gue ses:

– Quem era aque le gen til-ho mem que an da va ar ma do du ran te o con fli to, e sal tan do em nos sas ca no as?

Ao que eles res pon di am, na con vic ção ina ba lá vel de suascren ças:

– O gen til-ho mem que vis tes, era S. Se bas tião, o nos so pa -dro e i ro.

O se gre do da len da exis te na sua pró pria na tu re za. Este qua dro é a psi co lo gia do in tré pi do ma ri nhe i ro por tu guês, todo en tre gue às suasidéi as mís ti cas e aos pre ju í zos re li gi o sos das ra ças an ti gas.

Das pe ri pé ci as e ocor rên ci as du ran te a tra ves sia de Mem deSá, nada po de re mos as si na lar; que ele trou xe ra con si go o Bis po D. Pe droLe i tão, Anchi e ta e ou tros pa dres, vindo aqui fun de ar em 1576, é o quenos de mons tram as crô ni cas.

E Está cio de Sá e seus sol da dos sus ten ta vam re fre gas va lo -ro sas, con quis tan do em cada uma de las um la u rel à sua apo te o se.

O ini mi go, po rém, era avul ta do como os grãos de are ia denos sas pla gas. E em cada ser tão as re des dor mi am va zi as, por que as ve -re das en tu lha vam-se de sel va gens aler tas.

A fa di ga, a es cas sez de ví ve res e a mor te co me ça vam a pas sarre vis ta aos ba ta lhões te me rá ri os, que sen ti am já o ar ca buz pe sar-lhes noom bro, e o arco de ipê de so be de cer-lhes ao bra ço ou tro ra for tís si mo.

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Nes sa con jun tu ra, aos 18 de ja ne i ro, as ve las da es qua dra deMem de Sá al ve jam no ho ri zon te.

Apro xi mando-se, o con vés da ca pi tâ nia trans mu da-se numescar pa men to de luz, por onde dois vul tos gi gan tes cos – Anchi e ta e ogo ver na dor – so bem e de vas sam a imor ta li da de.

Mem de Sá, ho mem de fé viva, es ta ci o na do na en tra da dabar ra, re sol ve-se a as se di ar as al de i as e ba lu ar tes ini mi gos no dia de S.Se bas tião, a quem in ter ce de e toma por pa tro no ao au daz co me ti men to.

Desem bar can do com ar mas e mu ni ções, con fi an do o coman doda in fan ta ria a Está cio de Sá, no ama nhe cer do dia 20 as sal ta a inex pug -ná vel for ti fi ca ção de Uru çu mi rá, sen do ali fle cha do Está cio de Sá, e decujo fe ri men to veio a fa le cer um mês mais tar de.

Arra sa dos os re du tos, in cen di a das as al de i as e des ba ra ta dosos fran ce ses, no vas gra ças fo ram da das ao di vi no Már tir, a quem ogo ver na dor e os seus bra vos atri bu í ram o su ces so da ba ta lha.

Ter minada a guer ra, par te Anchi e ta para S. Vi cen te, re gressan do opor tu na men te com o ilus tre Nó bre ga e mais pa dres da Com pa nhia.

Apenas à flor da ter ra bran que a vam os mu ros da ci da de, osi lên cio e a tris te za ren di am as der ra de i ras ho me na gens ao ca dá ver deEstá cio de Sá.

A sua inu ma ção foi sim ples e rá pi da como a dos he róis deHo me ro!

O go ver na dor de mar ca va li mi tes, ati va va a cons tru ção dasmu ra lhas e for ti fi ca ções, es co lhen do os je su í tas lu gar para edi fi ca ção deum co lé gio, ao qual o Rei D. Se bas tião ce deu pa tri mô nio.

E Anchi e ta as sis te à fun da ção da ci da de nas cen te que, de vi doao nome do rei de Por tu gal e à pro te ção do mi la gro so san to na tri lhadas vi tó ri as al can ça das, de no mi nou-se – Ci da de de S. Se bas tião do Riode Ja ne i ro.

Das crô ni cas re li gi o sas do sé cu lo XVI foi esta a su pers ti çãotra di ci o nal que pro du ziu mais glo ri o sos efe i tos.

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A Fes ta da Gló ria

A ver de ci me i ra do mor ro da Gló ria cres cia dos ma -res es pe lhan tes do sol, como uma es me ral da po li da na sal va de ouro deuma oda lis ca.

Re cen te men te fun da da a real Ci da de de S. Se bas tião do Riode Ja ne i ro, Sal va dor Cor re ia de Sá a com pas sa va em ses ma ri as, que do a vaaos pe le ja do res dos úl ti mos com ba tes con tra os ta mo i os e seus ali a dos.

E aque la mon ta nha que se agi gan ta va cou be ra em par ti lha aJosé Ran gel de Ma ce do, em se gui da a seu fi lho Fran cis co Ran gel, maistar de ao Ca pi tão Ga bri el da Ro cha Fre ire, e des te ter ce i ro pos su i dor,cons ta da es cri tu ra que te mos à vis ta, pas sa ra por com pra ao Dr. Cláu dioGur gel do Ama ral, que em 20 de ju lho de 1699 a ce deu em pa tri mô nio a Nos sa Se nho ra da Gló ria.

Ain da co a lha da das fle chas dos gen ti os mor tos e dos des tro ços dos ba ta lhões fran ce ses, a baía do Rio de Ja ne i ro ba lan ça va em suaságuas os na vi os dos pi ra tas fran ce ses e fla men gos, que trans por ta vampara suas ter ras o ouro, as re si nas e o pau-bra sil.

A co lô nia as sim de sa ca ta da, ar ma va o cor so, dan do caça eabor da gem aos pe chi lin gues, que res pi ra vam a lar go pul mão na at mos fe ra da ra pi na e da mor te.

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Na var gem da ci da de, no mor ro de S. Se bas tião, os no vos ses -me i ros opu len ta vam-se de do a ções, ao pas so que o ide al de Deus e daPá tria alen ta va-lhes o bra ço e tra ba lha va-lhes fun do nos se i os da alma.

Em de se nho de es ta tuá rio, eis al guns tra ços dos tem pos de -cor ri dos e a his tó ria pa tri mo ni al do ou te i ro da Gló ria, em cuja emi nên -cia a len da, er guen do nas tre vas seu fa cho de es tre las, pro je ta cla ri da desse re nas no cam pa ná rio der ro ca do da an ti ga er mi da, e alu mia as som bras er ran tes de tan tos pe re gri nos, que ou tro ra a bus ca vam nas ro ma ri as da fé.

E o ar cho te dos mi tos, ar den do na noite dos sé cu los, faz res -sal tar o vul to im po nen te do ana co re ta Antô nio Ca mi nha, que, em 1671,em cum pri men to de um voto, fun da ra a pri mi ti va er mi da de Nos sa Se -nho ra da Gló ria.

Des de logo a igre ji nha, per to das nu vens, aos la men tos domar e à reza dos ven tos nas pal me i ras, tor nou-se-lhe o asi lo de paz euma es ca da mís ti ca por onde a sua es pe ran ça ia res plan de cer no céu.

Re cons tru í da, como se acha atu al men te, em 1714, em ra zãode ser do a do o mor ro à Sa gra da Vir gem, no dia de hoje a au ro ra en con -tra va sem pre às suas por tas a tur ma dos fiéis.

Des de o ve lho Rei, era tra di ci o nal na fa mí lia re i nan te do Bra -sil o fer vo ro so cul to à Se nho ra da Gló ria. Assim, se ma nas de po is de nas -ci do, lhe foi apre sen ta do no tem plo o Sr. D. Pe dro II, oran do no ato osá bio D. Ro mu al do; e re pro du ziu-se igual ce ri mô nia com Sua Alte za aPrin ce sa Re gen te, su bin do ao púl pi to o elo qüen te Mon se nhor Ma ri nho.

Con tam os an ti gos que à mis sa dos sá ba dos ja ma is o pri me i ro Im pe ra dor de i xou de com pa re cer com seus fi lhos, e que mes mo de po isde ha ver o Sr. D. Pe dro II aban do na do a tra di ção pa ter na, man da va asPrin ce sas D. Isa bel e D. Le o pol di na as sis tir ao san to ofí cio, que ti nhalu gar nos dias men ci o na dos, às oito ho ras.

Obe de cen do ao sen ti men to al ta men te re li gi o so que o pren dia à mi ra cu lo sa Se nho ra, a fa mí lia im pe ri al con cor ria para o cul to com pre -ci o sís si mas dá di vas, tais como: lâm pa das de pra ta, co ro as de ouro e bri -lhan tes, man tos e tú ni cas de bro ca dos, cá li ces de ouro, etc.

Como re cor da ção des ses es ti los, a Prin ce sa D. Fran cis ca, emdata pos te ri or à do seu ca sa men to com o Prín ci pe de Jo in vi le, ofe re ceuà igre ja da Gló ria os pa ra men tos sa cer do ta is para mis sa can ta da.

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No tem po de Pe dro I as fes tas da Gló ria eram ofus can tes debri lho pelo lado re li gi o so, de gran de za de su sa da como pom pa ex te ri or ede ver da de i ro ca rá ter prin ci pes co, como con clu são aris to crá ti ca. Ofi ci a -vam bis pos, pre ga vam ora do res cé le bres, as mis sas eram de com po si to -res da es ta tu ra de Pe dro Te i xe i ra, José Ma u rí cio e Mar cos Por tu gal. Can -ta vam no coro as vo zes mais afa ma das; e os so pra nos per ten ci am ain daao gru po dos sete cas tra dos, que o ilus tre e tão des fa vo ra vel men te jul ga do D. João VI fi ze ra vir da Itá lia.

À noite, os quar te i rões do Ca te te e da Gló ria po vo a vam-secomo nun ca. As mú si cas to ca vam nos co re tos, as ca sas e as ruas en fe i ta -vam-se, ilu mi na vam-se; os ba i les da Ba ro ne sa de So ro ca ba, que es tu a vamnos dou ra dos sa lões de seu pa la ce te da su bi da do mor ro, eram hon ra dos pelo pri me i ro Im pe ra dor, cuja pre sen ça re pre sen ta va a ma jes ta de da fes tae a so be ra nia do amor.

Em anos mais fe li zes do Se gun do Re i na do, a fes ta de que nos ocu pa mos ti nha sen ti men to pró prio, afi na do pelo di a pa são das ten dên -ci as de vo tas e na ci o na is.

A cren ça po pu lar não co nhe cia me di da; o en tu si as mo pú bli co trans bor da va pelo que a re li gião tem de mais poé ti co e o co ra ção demais no bre.

À se me lhan ça de um pás sa ro abri ga do sob a rama que co brea ter ra de per fu ma da som bra, o povo re fu gi a va-se nas suas ino cen tescren di ces e não se pre o cu pa va inu til men te com as on das sub ter râ ne asde uma fal sa ciên cia que es te ri li za, nem se en gol fa va no in di fe ren tis moque as fi xia.

A fes ta da Gló ria era um exem plo pal pi tan te: foi um ser queexis tiu e de que hoje ve mos ape nas o fan tas ma que se es va e ce co ro a dodas rosas pá li das e fa na das das vi sões de Mac beth.

O pró lo go da ad mi rá vel fes ti vi da de eram as no ve nas.No dia cin co, de ma nhã, as aias de Nos sa Se nho ra, na que la

épo ca mo ças da mais ele va da clas se, bem como as Ba ro ne sas de So ro ca ba e de S. Ni co lau, D. Mar ga ri da Del fim Bar ro so e D. Ma til de Del fim Pe -re i ra, ves ti am na sa cris tia a Sa gra da Ima gem, que le va vam para o al tar.Ao es cu re cer, a igre ja, toda ar ma da e cir cu la da ex te ri or men te de lu zesem glo bos e aran de las, cam pe a va nos ares como um fa rol à dis tân cia,

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dan do avi so aos de vo tos e aos ma re an tes das re fe ri das no ve nas de quese ria te a tro.

Des de logo os apres tos ge ra is co me ça vam, as ca sas dos ro -me i ros ato pe ta vam-se, as ofer tas à san ta aflu íam e tudo es ta va a ca mi -nho.

A ca be le i ra da ima gem, man da da pen te ar por de vo ção por D.Mar ga ri da* Del fim Pe re i ra, já que se acha va com o ar ma dor; e al gumaces só rio que fal tas se vi ria até à vés pe ra da fes ta, em que ves tia-se pelase gun da vez a pa dro e i ra do tem plo.

Logo que ama nhe cia, os si nos re pi ca vam, os car ros ti ra dos adois ou qua tro ca va los des fi la vam pelo cais da Gló ria, con du zin do de vo -tos e cu ri o sos, gran des se nho res e no bres da mas.

Be las mu la tas, lus tro sas cri ou las, ve lhos e cri an ças, ho mens emu lhe res de toda cas ta, apro xi ma vam-se con tri tos, en tu pi am a la de i ra,de i xan do após si gros sas mas sas de povo, con du zin do a plu ra li da de dosro me i ros ve las de cera en fe i ta das de de se nhos, de flo res de pano e vis -to sas fi tas, bra ços, ca be ças, per nas, se i os e bar ri gas de cera bran ca ouco lo ri da, pro mes sas de mi la gres que nas ho ras afli tas fi ze ram fer vo ro sosà Vir gem de sua in vo ca ção.

Antes das dez ho ras da ma nhã a mú si ca de bar be i ros mar -cha va, indo pos tar-se na ba i xa da da igre ja. Des sa ban da, a prin ci pal, eradi re tor um cer to Du tra, mes tre de bar be i ros da Rua da Alfân de ga, que a en sa i a va e far da va para as mais ru i do sas fun ções.

To das as fi gu ras eram ne gros es cra vos; o uni for me não pri -ma va pela ele gân cia, nem pela qua li da de. Tra ja vam ja que ta de brimbran co, cal ça pre ta, cha péu bran co alto, e an da vam des cal ços. Os quenão sa bi am de cor a par te, liam-na pre ga da a al fi ne tes nas cos tas docom pa nhe i ro da fren te, que ser via de es tan te.

A pro cu ra des ses ar tis tas era ex tra or di ná ria. Ain da na noitean te ce den te a ban da ha via acom pa nha do a pro cis são da Boa Mor te, que saía da igre ja do Hos pí cio, pro cis são obri ga da a ir man da des e a anjocan tor, que en to a va a qua dra:

∗ Pou co aci ma o au tor cita Ma til de Del fim Pe re i ra, e não Mar ga ri da. (Nota des taedi ção.)

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Deus vos sal ve, ó Vir gem,Mãe Ima cu la da,Ra i nha de cle mên cia,De es tre las co ro a da...

ao acom pa nha men to dos bar be i ros, que re al ça vam o pi e do so cor te jo.

Na pra ça da Glória um co re to mag ní fi co re ce bia a ban damili tar. A Lapa, o Ca te te e a la de i ra formi ga vam de gen te.

Ban de i ras e ga lhar de tes, col chas de da mas co, glo bos e ou trospre pa ros da es plên di da ilu mi na ção com ple ta vam o pi to res co do sí tio,que, dia e no i te, ani ma va-se nos sun tu o sos fes te jos.

Sen ta dos so bre a mu ra lha que cir cu la o tem plo, ho mens emu lhe res, ten do en tre os jo e lhos as cri an ças, abri am os cha péus de sol,que os pro te gi am das ver be ra ções ar den tes; sal te a dos aqui e ali, um ouou tro in di ví duo ca val ga va o muro, de i ta va as per nas para a ban da defora, ba lan çan do-as, e as cri as, bem ves ti das, pre en chen do es pa çosvagos, es pi cha vam a ca be ça pre ta, ar re ga la vam os olhos ver me lhos,sur din do por trás da mu ra lha de gra ni to.

Quem su bia a la de i ra, las tra da de fo lhas aro má ti cas e som -bre a da pe los colchas que flu tu a vam das ja ne las, ma ra vi lha va-se da origi nalga le ria, assus ta va-se da sa ra i va da de fo gue tes que tro a vam e, a cadamo men to, o eco da cis ter na do pá tio de pe dra re pe tia o fim das pa la vras que pro nun ci a vam-lhe à gar gan ta es can ca ra da.

E os ar che i ros es ten di am-se em alas...

As car ru a gens, rodando in ter mi ten tes, pa ra vam em ba i xo;saltan do da bo léia, os cri a dos de li bré apro xi ma vam-se da por ti nho la,des cobriam-se à des ci da dos al tos per so na gens do cle ro, das gran desdamas da cor te, dos em ba i xa do res, da no bre za en fim, que se en ca minha vam para o ou te i ro.

De re pen te inú me ras gi rân do las va ra vam o ar, es tou ran dopro lon ga das. O hino na ci o nal exe cu ta va-se nos co re tos; ofi ci a is e sol -da dos da Gu ar da Na ci o nal e de tro pa de li nha des ta ca vam-se den tre opovo, e os dois ba te do res do pi que te do Impe ra dor re lam pe a vam deper to as es pa das, abrin do ca mi nho.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 187

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E Suas Ma jes ta des e Alte zas, com o seu sé qui to opu len to edis tin to, ape a vam-se to man do a ser pe an te la de i ra su bin do os de gra us de már mo re do gra ci o so adro e de sa pa re cen do em bre ve no pro fun do daigre ja.

O as pec to in te ri or do tem plo era des lum bran te: ouro, ge maspre ci o sas, da mas co, flo res, lu zes sem con ta.

Ape nas en tra vam Suas Ma jes ta des e as Prin ce sas ocu pa vam odo cel. Nas tri bu nas, jun to do al tar-mor, fas ci na vam de ri que za e for mo -su ra as aias e as de vo tas de Nos sa Se nho ra.

No coro a or ques tra pre lu di a va os in trói tos da mis sa so le ne,qua se sem pre com po si ção de José Ma u rí cio ou Mar cos Por tu gal.

Fac ci ot ti, Re a le e Ci co ni, os três cas tra dos que se pas sa -ram do Pri me i ro Impé rio, lá se acha vam – fa mo sos so pra nos queiam ca sar suas vo zes às dos ce le bra dos can to res do Lí ri co e da Ópe raNa ci o nal.

E o alto cle ro, re pre sen ta do por suas cul mi na ções, de i xa va asa cris tia or na da de em ble mas vo ti vos, dan do co me ço à mis sa.

Na que les bons tem pos, pre ga vam ao Evan ge lho – Sam pa io,Mont’Alverne, Mon se nhor Ma ri nho, o Cô ne go Bar bo sa Fran ça, e dozeou tros ora do res, para quem a tri bu na sa gra da foi ver da de i ro “car ro detri un fo”.

Ter mi na da a fes ta, mes mo de po is da re ti ra da de Suas Ma jes ta -des, a igre ja, o lar go pá tio e a es pla na da da la de i ra de mo ra vam-se re ple tosdas mul ti dões que se subs ti tu íam, per sis tin do a lu fa-lufa, o pro di gi o socon cur so, até de po is do fogo de ar ti fí cio, que i ma do às dez ho ras.

À no i te, a fes ta da Gló ria, sem per der a sua ca rac te rís ti ca depom pa ver da de i ra men te real, in te res sa va mais di re ta men te ao povo. Aslu mi ná ri as no tem plo em ban de i ra do, a ilu mi na ção da fren te de to das asca sas do quar te i rão, os bar cos re fle tin do na água as lu zes da proa, asfamí li as sen ta das em ca de i ras à por ta das ha bi ta ções, as to ca tas de vi o lão e os ba i les mo des tos ale gra vam aque la gen te, que ti nha fé e di ver tia-sena fe li ci da de co mum.

O Te Deum ce le bra va-se com a gran de za dos es ti los ad mi ráveis,com a as sis tên cia de Suas Ma jes ta des; e quando os si nos re pi ca vammar can do o ter mo da so le ni da de, pa re cia o eco en fra que ci do das sal vas

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das for ta le zas, que al gu mas ho ras an tes ha vi am anun ci a do o fi nal damis sa can ta da e fes ti va de Nos sa Se nho ra da Gló ria.

E Suas Ma jes ta des, des cen do a mon ta nha so no ra das on dasdo povo sob um teto lis tra do de ban de i ras e ra di an te de lu zes, di ri gi am-se ao pa la ce te em que pre sen te men te fun ci o na a Se cre ta ria de Estran ge i ros, para to mar par te nos es plen do ro sos ba i les do Ba hia.

Nin guém ima gi na as ri que zas de co ra ti vas da que le edi fí cio,ilumi na do por den tro e por fora, sul ca do de glo bos ace sos o jar dim,con tor na das de co pos de co res as duas pi râ mi des – ao som da mú si ca, à que da das cas ca tas, ao per fu me das flo res! Como não se ele va ria o ide aldo ar tis ta e do aman te na que le âm bi to ori en tal men te fan tás ti co!...

Nos sa lões am plos e riquís si mos, os can to res do Lí ri cofazi am-se ou vir ao es tré pi to dos apla u sos, a aris to cra cia tro ca va en tre siga lan te i os es co lhi dos; e pas se an do nas sa las, à es pe ra da dan ça, o cor podiplo má ti co, os mem bros do Par la men to e os al tos fun ci o ná ri os do Estado, adi an ta vam-se com as suas da mas, ador na das de pé ro las e bri lhan tes, que fas ci na vam ao bri lho dos lus tres de cris tal e dos can de la bros de pra ta ede ouro ma ci ço.

As to a le tes de re mon ta do va lor e fino gos to ar tís ti co, cor re na tra di ção, tor na vam mais en can ta dor ain da o sem blan te das “es tre las dano i te”, que eram ha bi tu al men te a Se nho ra de Me ri ti, as Mar que sas deAbran tes e de Mon te Ale gre, Mme. de Sa int-George, as se nho ras Jerôni ma de Agui ar, Sousa Fran co, Mol ler e Ma ga ri nos, a cujo lado res plan de ciadi vi na a Princesa de S. Se ve ri no, no bi lís si ma es po sa do Mi nis tro deNápo les.

E Suas Ma jes ta des ina u gu ra vam o ba i le hon ran do a pri me i raquadrilha, e a so i rée des do bra va-se rá pi da e en can ta da, como o vôotrans pa ren te de uma fada das re giões dos so nhos e das fan ta si as.

Enquan to no pa la ce te do Ba hia ini ci a vam-se qua dri lhas eval sas, as mes mas ce nas ti nham lu gar em casa do Se na dor Cas si a no, daBa ro ne sa de So ro ca ba, de D. Rita Pin to Ma ges si, que por de vo ção aNos sa Se nho ra da Gló ria fes te ja vam-lhe o dia com ru i do sos ba i les.

Às dez ho ras da noite, ca pri cho sos fo gos de ar ti fí cio que i ma -vam-se em ter ra e no mar, e à luz do fogo nas águas des ta ca va na mu ra da

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 189

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do cais e na ex ten são da rua o povo em tro pa, agru pan do-se aqui e ali,para me lhor apre ci ar o sur pre en den te es pe tá cu lo.

E pou co a pou co as mul ti dões dis per sa vam-se...Os ba i les en tra vam pela noite adi an te, pela ma dru ga da...

É da len da, que, quan do o úl ti mo ba i le do Ba hia aca bou, umaluz úni ca, que bru xu le a va na tor re da igre ja, ro lan do ao lon go do murocomo uma lá gri ma, apa gou-se...

E a fes ta da Gló ria pas sou à tra di ção!

190 Melo Mo ra is Filho

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As Enco men da ções das Almas

Entre o sen ti men to re li gi o so das po pu la ções do Nor te e osen ti men to su pers ti ci o so, a tran si ção é tão fá cil, as apro xi ma ções tão se me -lhan tes, que mu i tas ve zes se con fun dem no en la ce mais bran co e va po ro so.

Nin guém ig no ra que o ca to li cis mo, com to das as suas fan ta si ase es plen do res, com to das as con so la ções que dá a Fé e a Espe ran ça nolon go mar tí rio da vida, en con trou na que las pa ra gens abri go re man sa do,e a con vic ção po pu lar avi go ra va-se, à som bra per fu ma da da tra di ção edo na ci o na lis mo do lar.

A re li gião, que acom pa nha va o ho mem do ber ço ao tú mu lo,nas ale gri as e nos pe sa du mes, foi o per sis ten te ide al da que le povo, bemfe liz ou tro ra do do mí nio ple no de suas abu sões ino cen tes e de suascis mas im pro fa na das.

Re cor dan do qua dros da nos sa in fân cia, re vol ven do do pas sa dolem bran ças que não se apa gam como o tra ço de águia do mar ao re gou go da tem pes ta de, mu i tas e va ri a das são as ce nas que ain da nos fe rem aima gi na ção, co lo ri das dos re vér be ros da que les dias, em que as ilu sõesnos em ba la vam em re des de ouro, ao tom das ara gens fres cas dos nos soscli mas na ta is.

Den tre es sas te las es fu ma das e de be le za an ti ga, des sas ce nasde re le vo bi zar ro, as en co men da ções das al mas nos pre o cu pam por ve zes oes pí ri to, tão lú gu bres e ater ra do ras nos fo ram as im pres sões de i xa das.

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Qual o gê ne se des ses cos tu mes se gui dos em to das as pro vín -ci as do Nor te, des sas ce ri mô ni as lus tra is que por lá ain da se en con tramno seu ver dor pri mi ti vo, pro cu re mos no es qui fe de chum bo dos sé cu losmor tos, no in ven tá rio de épo cas re mo tas, em que o as ce tis mo in ter rom -pia a le i tu ra dos li vros mís ti cos para aca bá-la no Céu.

A idéia que os cris tãos da Ida de Mé dia fa zi am do Infer no eraa mes ma que ti nham do Pur ga tó rio, no tan do-se, po rém, que nes te úl ti mo, as pe nas de i xa vam de ser eter nas para se rem por tem po li mi ta do.

Esta con cep ção, trans for ma da fa cil men te em dog ma, por isso que dis si pa va o ter ror dos so fri men tos per pé tu os, trou xe ao cris ti a nis mo as pi ra ções no vís si mas, que se fo ram ci men tan do com as prá ti cas pro pi -ci a tó ri as, por um ri tu al dis tin to e im po nen te, de acor do com o sen tir das co le ti vi da des no seio das qua is abria pas sa gem a se du to ra dou tri na.

À ex ce ção de S. Gre gó rio Mag no, que sus ten ta va a re en car na -ção dos es pí ri tos para ex pi a ção de pas sa das cul pas, foi sem pre o Pur ga -tó rio, no con ce i to dos pa dres da Igre ja, um lu gar de tor tu ras, onde ha via tor ren tes ca u da is de be tu me fer ven te, de la go as de fogo e de en xo fre fu -me gan te, em que as al mas sub mer gi am-se com as for mas cor po ra is daTer ra, e de sa ta vam gri tos, sol ta vam ge mi dos e vo zes sú pli ces, às ve zeses cu ta das nes te mun do.

Espe ci al men te a pin tu ra, ma te ri a li zan do o pen sa men to, fê-lopal pi tar sob os re ves ti men tos da arte, e mes tres no tá ve is acom pa nha ram a evo lu ção do dog ma.

Lo ca li zan do o fato, de ve mos as si na lar que nos sos in cul tospin to res não es ca pa ram à ten ta ção do pro gres so ar tís ti co, des sa es té ti cama ra vi lho sa, que mais acen tu a va o efe i to da Dan ça Ma ca bra.

Nin guém há por aí que não te nha vis to à por ta de cer tasigre jas, den tro de ta ber nas e, nas ex-pro vín ci as do Bra sil, em vá ri as bo -ti cas, a ca i xi nha das al mas, com fi gu ras pin ta das ao alto, bran cas e ne gras,com olhos de bra sa e boca de fogo, le van tan do os bra ços no meio dela ba re das ver me lhas, lis tra das de ama re lo...

E o que re pre sen tam elas?As al mas do Pur ga tó rio que pe dem su frá gi os; as ví ti mas do

pe ca do, que im plo ram, para ali vi ar-lhes as pe nas, a pi e do sa lem bran çados vi vos.

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E os po bres es cra vos, as cri an ças e os ve lhos, as mu lhe res e osde vo tos, de i xa vam cair pela aber tu ra do co fre tran ca do a es mo la es con di da, não sendo raro co lo ca rem so bre o mes mo fru tas e ovos, que eram com -prados pe los fiéis, en tran do des de logo o di nhe i ro para a ca i xi nha vo ti va.

Isto en quan to ao sim bo lis mo da arte, à li be ra li da de cris tã, que se me a va a es mo la para de sa bro char em res pon sos e mis sas pe las al mas doPur ga tó rio.

Como com ple men to da idéia, o povo apa re cia es pon tâ neo,em pe quenos gru pos, to man do par te di re ta no sa gra do em pe nho dasalva ção.

Nos lu ga res onde não ha via ora tó ri os de pe dra, via-se, comoain da hoje, cru zes em al to-relevo ao lon go dos mu ros, pin ta das de pre to no ex te ri or de ca sas par ti cu la res e nas por ta ri as de ve lhas igre jas, ouen tão cru ze i ros de gra ni to ou de ma de i ra, no cen tro das pra ças, nasencru zi lha das dos ca mi nhos à dis tân cia, nas es tra das e ruas...

O que sig ni fi ca vam eles no si lên cio es tre la do das no i tes, nasso li dões a de so ras, do mi nan do mis te ri o sos na ma ra vi lha do vá cuo?

Eram as cru zes das al mas; o apris co lú gu bre dos pe ni ten tes dameia-no i te; o pon to de par ti da das se re na tas hor rí ve is, cu jos ecos iri ammi no rar os su plí ci os do fogo pu ri fi ca dor.

Inva ri a vel men te pela qua res ma ce le bra va-se o rito po pu lar das en co men da ções, obri ga das à mú si ca, acom pa nha das de so los e co ros.

Di zem mes mo que para es ses atos com po si to res afa ma doscon cor ri am com pro du ções ge ni a is, in ter ca la das de fra ses que imi ta vamso lu ços, en ri que ci das de tran si ções mal sen ti das, de me nos para ma i or,cujo efe i to não po dia ser mais plan gen te e in fer nal.

Às sex tas-feiras, ao pin go da me ia-noite, quan do as ci da des epo vo ados es ta vam er mos, quan do os Lo bi so mens, as Ca i po ras e asMulas-sem-cabeça cor ri am o fado, so a va nos ares o tro ar da ma tra ca e oba da lar da cam pa si nis tra, que anun ci a vam o prés ti to em mo vi men to.

De re pen te, ao afi nar der ra de i ro dos ins tru men tos, per ce -bia-se bem lon ge – à por ta das igre jas, ou lu gar con ven ci o na do para areunião – vul tos amor ta lha dos de bran co, com a ca be ça co ber ta, de i xandoapenas ver a boca e os olhos, es cla re ci dos por pe que nas lan ter nas depa pel ou de folha-de-flandres, com a luz vol ta da para o ros to.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 193

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Alguns, mu i tos mes mo to ca do res de fla u ta, vi o lon ce lo, ra be cas, etc., jun ta vam-se aos can to res, que os alu mi a vam, de sen ro lan do mú si cases cri tas.

A um mo men to dado, fin dos os pre pa ros, os en co men da do resdas al mas des ci am len tos de sua so tur na es tân cia; e, rom pen do a mar cha,a cam pa i nha vi bra va me tá li ca, a ma tra ca ba tia, a pro cis são des fi la va,tétri ca, pa vo ro sa e de fa zer ar re pi ar os ca be los.

Cons ta va da tra di ção que só ho mens po di am to mar par tenes sas ro ma ri as em fa vor dos con de na dos de além-tú mu lo; sen do pro i -bi do, sob pena de mor re rem as som bra das, às mu lhe res e cri an ças, afron taro pre ce i to len dá rio.

E a se re na ta da mor te, es col ta da de su pers ti ções e de du en des,co me ça va os seus no tur nos, as suas ca pe las can ta das, pro lon gan do-se atémais de uma hora, fa zen do es ta ções aqui e ali, di fun din do o pa vor e omedo em seu trân si to in cer to e che io de as som bro.

Adi an te, va ga ro so, ca den ci a do, de ca be ça er gui da, o por ta dorda cruz das al mas se guia im per tur bá vel, en tre dois in di ví du os ca bis ba i xos,en ver gan do idên ti cas ves ti du ras e am pa ran do as lu zes das ve las me ti dasem car tu chos de pa pel: logo após o ho mem da cam pa i nha, tan gen do-acom pas sa da men te, sa cu dia ao ven to a man ga on du lan te de sua tú ni ca de mo rim, que re ce bia nas tre vas o re fle xo ru bro das lan ter nas ace sas...

E a pro cis são pas sa va!... pas sa va!...Sen do da cren ça po pu lar que nin guém po dia abrir as ja ne las e

as por tas para ver a té tri ca pas se a ta, pois que além de co me ter gra vís si mo pe ca do, mor ria de medo, vis to como as al mas fa zi am par te da co mi ti va,a so li dão es ten dia-se em seu trân si to e cir cu la va o am bi en te en vol to emtre vas me dro sas e pro fun das.

Aos fan tás ti cos per so na gens que ini ci a vam o prés ti to, su ce diaum ou tro que en to a va com voz ca ver no sa, lú gu bre e como que sa í da deum tú mu lo, as La men ta ções do es ti lo, ad mi rá ve is tre chos mu si ca is doscom po si to res da ter ra.

Depo is vi nha o res to – os de vo tos me nes tréis das al mas, envol tos em suas rou pa gens de neve, com bu ra cos para os olhos e a boca.

E a ma tra ca, ba ti da, tro a va... a cam pa, agi ta da com vi o lên cia,for ma va uma abó ba da fu ne bre men te so no ra.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 195

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De es cu tá-las, as cri an ças e as mu lhe res, os mo ra do res dasca sas vi zi nhas e lon gín quas, des per ta vam: ou via-se cho ro, pre ces,rumo res...

E a pro cis são pas sa va!... pas sa va!...Eis se não quan do a ma tra ca e a si ne ta emu de ci am, os tro péis

aqui e ta vam-se, e o si lên cio cres cia mais ta ci tur no e mis te ri o so...Um vul to to ma va a fren te; no mes mo ins tan te, os ins tru -

men tos da vam afi na ção, to ca vam à sur di na; e o vi o lon ce lo, por exemplo,começan do a ca pe la no tur na, ge mia sob os de dos ins pi ra dos do artista,so lu ça va do lo ro sa men te, pro du zin do sons des pe da ça do res.

E aque la es pé cie de alma pe na da, aque le in di ví duo iso la dodos seus com pa nhe i ros – o ba i xo-pro fun do –, en to a va si lá bi ca e mo no -to na men te a cru el e pa vo ro sa La men ta ção:

“Pe-ca-dor-en-du-re-ci-do!!...”A impres são que isto pro du zia era hor rí vel; não se pode

imaginar o efe i to so bre na tu ral des sas com po si ções es pe ci a is so bre espíri tos fra cos e de cre du li da de exa ge ra da.

De po is os de mas mú si cos acer ca vam-se da fi gu ra prin ci pal e,se guin do, bra da va um can tor:

“Um Pa dre-Nos so com uma Ave-Ma ria por alma dos pre sosda ca de ia!...”

E to dos re za vam can tan do, na per su a são de que os ou vin tes,en cer ra dos em suas ca sas, o fa zi am tam bém.

“Um Pa dre-Nosso com uma Ave-Maria por alma dos afo ga -dos!...”, pros se guia um ou tro, ape nas ter mi na va a reza, e as sim por di an te...

Em ca mi nho, su ce dia re u ni rem-se a es tes, pe ni ten tes quesurdi am daqui e da co lá, ves ti dos de sa i as de mu lher, co ro a dos de espi nhose com as cos tas nuas, so bre as qua is fa zi am vi brar fér re as dis ci pli nas,aço i tan do-se à san gue.

E a pro cis são pas sa va!... pas sa va!...Jun to a um ora tó rio ace so ou cru zes de al mas, o prés ti to fa zia

alto, es pe vi ta vam-se as ve las das lan ter nas es bra se a das, e as la men ta ções, osPa dre-Nos sos, Ave-Ma ri as e Sal ve-Ra i nhas eram de novo can ta dos, emtons fú ne bres e pe sa dos como o es tou ro das va gas nas pra i as de ser tas.

196 Melo Mo ra is Filho

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Este es pe tá cu lo ter rí vel, que im pe dia de res pi rar li vre men te,que po vo a va de so bres sal tos e ter ro res os so nhos in fan tis e a cren di cepo pu lar, fin da va sem pre aos pri me i ros can tos do galo...

Mas, por que de vi am ser in vi sí ve is tais gru pos de mú si cosam bu lan tes? Por que as en co men da ções de al mas po di am ser uni ca men teou vi das?

Cor ria na tra di ção, avi ven ta da por tes te mu nhas au tên ti cas, que oim pru den te que ten tas se pro fa nar o mis té rio, só via um re ba nho de ove lhas(eram as al mas) e um fra de sem ca be ça que en tre ga va-lhe uma vela decera, vin do-a bus cá-la na ma nhã se guin te.

E não a en con tra va!!Di zem al guns que o fra de en can ta do era uma alma pe na da; e

ou tros que era do De mô nio dis far ça do para as som brar e ten tar as cri a -tu ras.

Seja como for, as en co men da ções das al mas ti nham um ide aleleva do, e no Nor te nin guém ha via que, em bo ra tre men do de medo,de i xas se, ao es cu tá-las, de pe dir a Deus por si e por elas...

Eis a des cri ção pá li da de um cos tu me nos so, que va ri a va comas cir cuns tân ci as e os me i os.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 197

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Cor pus Chris ti

(A PROCISSÃO DE S. JORGE)

Data do re i na do de D. João II a mais an ti ga no tí cia his tó ri cadas fes tas pú bli cas, que ce le bra vam em Por tu gal a ins ti tu i ção da Eu ca -ris tia, fes tas às qua is aque le so be ra no per mi tiu que se acres cen tas se apro cis são de S. Jor ge, com o seu cor te jo de três reis Ma gos, a Ser pen te,S. Se bas tião, uma Don ze la, o Dra gão, S. Mi guel, San ta Cla ra e mais uma in fi ni da de de per so na gens do mar ti ro ló gio e do sim bo lis mo cris tão, queno dia do Cor po de Deus per cor ri am en fi le i ra dos as ruas len dá ri as dame tró po le lusa.

De 1412 em di an te é que a tra di ção, amor ta lha da nas car tasrégias, res plan de ce, ten do como tes te mu nhas de igual va lor os do cu mentos das mu ni ci pa li da des in su la nas e co im brã, es pa lha dos por so pros se cu la resso bre a mesa de tra ba lho do eru di to T. Bra ga, que os tem es tu dado edi vul ga do com lú ci do cri té rio e ale van ta do sa ber.

A pro cissão de Cor pus Chris ti, iso la da men te, é do ri tu al romano:em to dos os pa í ses ca tó li cos ela exis tiu e exis te, li mi tan do o seu giro àscir cun vi zi nhan ças dos tem plos, ou aos pró pri os tem plos.

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Como tra di ção pá tria, como le ga do dos tem pos co lo ni a is, émais par ti cu lar men te da pro cis são de S. Jor ge que va mos tra tar, e quedes toa da de Cor pus Chris ti da li tur gia cris tã, cons ti tu in do um todo in de -pen den te, ou uma parte cuja li ga ção ide al é o fio del ga do de uma len da.

Lê-se nas crô ni cas me di e va is que S. Jor ge, indo fe rir umabata lha, en con tra ra-se em ca mi nho com o sa gra do Viá ti co e o acom pa -nha ra com as suas tro pas.

Daí a base do re li gi o so cor te jo e o que na tu ral men te de ter -mi nou a sua pri mi ti va e sin gu lar or ga ni za ção, nas eras cré du las em queaci ma vimo-lo apa re cer.

Pou co adi an ta do em re la ção às suas pom pas re mo tís si mas,des co nhe ce dor de sua evo lu ção até o pe río do atu al do ve lho re i no, é aotur bi lhão enfra que ci do das nas cen tes his tó ri cas que pas sa re mos adescre ver essa pro cis são no Rio de Ja ne i ro, há mais de vin te e cin coanos, quan do ela não ha via per di do a sua re a le za he re di tá ria e seu apa ratomag ní fi co.

De to das as pro cis sões do ano, a de S. Jor ge era a que me lhorcon cre ti za va ele men tos nos sos; e a que com mais lar gue za apre sen ta vaem pa i nel vi go ro so o povo bra si le i ro, de fi ni do em sua re li gião, em seure gí men po lí ti co, em seus tron cos ca pi ta is e em al guns de seus cos tu mes.

Ape sar de não a ha ver mos as sis ti do se não no de clí nio de seues plen dor, o co mér cio com os nar ra do res do tem po fa ci li ta-nos o per -lus trar ve re das de i xa das, em que dia por dia o es que ci men to en che desom bras.

Em 1850 via-se ain da na Rua de S. Jor ge, mu ran do a um ladoa Rua da Lam pa do sa, a mo des ta ca pe li nha de S. Jor ge, que fora aba ti daanos de po is e em seu lu gar ele va do um pros tí bu lo.

Ao ama nhe cer, a voz gar ri da do sino anun ci a va a fes ta dopadroe i ro do tem plo; como um ta pe te, aos seus de gra us ba i xi nhos,es ten diam-se are i as e flo res, e os ir mãos, com a opa da ir man da de,começa vam no seu la bor anual.

Pas sa va-se sob um teto de ban de i ras, ou via-se o ba ter dosmar te los pre gan do nas ja ne las e sa ca das de pau aran de las, glo bos e col -chas; e os sa cris tães, nos ân gu los do adro, so pra vam mor rões, es cor va vam fo gue tes e os ar re mes sa vam ao ar, si bi lan do já e es tou ran do após.

200 Melo Mo ra is Filho

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A ima gem de S. Jor ge lá es ta va no cor po da ca pe la, ex pos ta àado ra ção do pú bli co, à es pe ra do ca va lo bran co, em que sa i ria mon ta da, ede mui tos ou tros que a se gui ri am com os seus te sou ros, vin do um eoutros da Qu in ta de S. Cris tó vão, com a cri a da gem em gran de uni for me.

Às nove ho ras o con cur so avo lu ma va-se. Os tran se un tes e oses pec ta do res cu ri o sos to ma vam as sa í das, agru pa vam-se no ca mi nho; os ne gros de ga nho, como ces to en fi a do na ca be ça, pa ra vam bo qui a ber tos;as ven de de i ras de qui tan da sen ti am-se como que chum ba das ao solo; eos mo le ques, des cal ços e em man gas de ca mi sa, olha vam aris cos para oHo mem de Fer ro, an dan do no adro, e para os pe des tres, que sur di am de im pro vi so dis per san do-os a jun ca das.

Às ja ne las en fe i ta das ins ta la vam-se mu lhe res de má vida for man -do uma ga le ria de fa ces afo gue a das e in cha das, de sem blan tes vul ga rís si mos e às ve zes ma ci len tos, en som bra das por ne gras pas tas de ca be los un tu o sos,re lu zin do, ao colo nu e às ore lhas da que les bus tos es tú pi dos, cor dões deouro e pe sa dos brin cos, que tom ba vam-lhes no om bro.

Espar ra ma das fora dos ba ten tes, com as mãos gor das e cru zadas,mos tran do em to dos os de dos anéis de ouro com pe dras fal sas, as dis so lutasMa da lenas da ralé es ti ra vam o pes co ço, de bru ça vam-se, a qual quermo vi men to sú bi to.

Enquan to isso se pas sa va, os ir mãos de S. Jor ge che ga vam àpor ta, des ci am à rua, de ses pe ra dos da tar dan ça da mú si ca e do acom pa -nha men to do san to.

Eis se não quan do o povo atro pe la va-se, os mo le ques cor ri amem ban do até o Lar go do Ro cio, e na em bo ca du ra da Rua dos Ci ga nos,as so bi an do, gin gan do, apon tan do, di zi am: É vem! É vem!...

E a mul ti dão re cu a va, o ca va lo e a co mi ti va ofi ci al de S. Jor gepas sa vam, o prés ti to pre li mi nar apron ta va-se e, às dez ho ras mar ca das,S. Jor ge de i xa va a sua ca pe li nha para ir no Lar go do Paço re u nir-se aoCor po de Deus, em pro cis são so le nís si ma.

Des de mu i to cedo, o mo vi men to de tro pas, o ro dar de car re tas de ar ti lha ria, os to ques de cla rins, os sons de mú si cas mar ci a is pro pa ga -vam-se em di re ções múl ti plas, fa zen do lem brar uma ci da de in va di da por exér ci tos tri un fa do res.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 201

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Era a Gu ar da Na ci o nal que mar cha va toda, eram os ba ta lhões dos su búr bi os que com pa re ci am a to mar po si ção na lus tro sa re vis ta,pas sa da pelo Ge ne ral no seu dia glo ri o so.

Esten di dos em li nha pe las Ruas Di re i ta, Pes ca do res, Qu i tan da,Assem bléia e Lar go do Paço, os ba ta lhões da fre gue sia do Sa cra men to,por al cu nha Chi ne lo Ve lho, de San ta Rita, Ta i nhas, de San ta na, Ca ran gue jos,de S. José, Ga tu ra mos, da Can de lá ria, Galo sem Cris ta, o 6º de Enge nhoVelho, Sam bu rá sem Fun do, o 1º de ar ti lha ria, Car ro ce i ros, e os cor pos daroça es pe ra vam o che fe mi li tar para fa ze rem-lhe as hon ras no seu trân si to...

E S. Jor ge che ga va à Rua da Mi se ri cór dia; na Ca pe la Impe ri alos ofí ci os re li gi o sos to ca vam ao ter mo, e da igre ja e ime di a ções o cor te joor de na va-se.

A um si nal de de ze nas de gi rân do las, en ca mi nha va-se aprocis são.

As for ta le zas sal va vam...Pre ce di da de uma co lu na de povo, de ca po e i ras de di ver sos

ba ir ros e de sol da dos de po lí cia a ca va lo; en tre mu ra lhas de tro pa e degen te pos ta da nas cal ça das, ini ci a va ela o seu per cur so, ao es pe lhan te das col chas de da mas co das ja ne las e sa ca das, à ex pan são das fa mí li as que de lá as sis ti am, ves ti das de se das e ve lu dos, tou ca das de pé ro las e bri lhan tes.

Era além da Rua Di re i ta que se po dia me lhor apre ci ar o efe i to des sa cena am bu lan te e pi to res ca, fér til em de ta lhes e com ple ta.

Se re na do o tu mul to, es pra i a da mais lon ge a es pu ma da ondapo pu lar, a pro cis são se guia o seu iti ne rá rio ha bi tu al, por en tre o cin ti larde ba i o ne tas, ao rufo de tam bo res, à que da de um di lú vio de flo res e aoes tru gir da fo gue ta ria, a cur tos in ter va los.

Nas cal ça das, por trás dos sol da dos em alas, a gen te de to dasas clas ses per fi la va-se, sus pen dia aci ma da fron te as cri an ças, a fim deve rem à von ta de o Fer re i ro de S. Jor ge...

E a irman da de do San to Ge ne ral rom pia a mar cha do religi o soe mi li tar cor te jo.

De po is desta, a ban da de es cra vos da Qu in ta avul ta va,execu tan do so ber bos pas sos do bra dos e tre chos es co lhi dos.

Estes ar tis tas – e den tre eles al guns ha via afa ma dos, como océ le bre mes tre Jo a quim Ma ria – tra ja vam cal ção azul com ga lões bran cos,

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pa le tó cin zen to e com pri do, me i as de al go dão e sa pa tos de fi ve la. Ocha péu era de fel tro, cor de flor de ale crim, e na lar ga aba re vi ra da nafren te, pren dia-se um lin do tope ver de e ama re lo.

Atrás da mú si ca dos pre tos apa re cia o Fer re i ro ou o Ho memde Fer ro, per so na gem es tra nho, mon ta do num ca va lo ne gro, co ber to devas ta man da de ca mur ça, aber ta para as per nas, as na ri nas, os olhos e asore lhas.

Este per so na gem, ves ti do de ma lhas, pe i to de aço, ca pa ce tebron ze a do e vi se i ra des ci da, se cun da va a ban da, em pu nhan do com ama no pla de es ca mas enor me lan ça, e ten do no bra ço es quer do pe sa does cu do.

A cor de fer ro de todo o seu uni for me guer re i ro bem expli ca vaa de no mi na ção que lhe dava o povo.

Em se gui da, apru ma da num ca va lo bran co, com um cri a do do paço a cada lado da bri da, vi nha a ima gem de S. Jor ge, en ver gan do po li dacota de ma lhas, pe i to de aço, ca pa ce te com bor da du ras dou ra das, e capade ve lu do car me sim bor da da a ouro. Dois ou tros cri a dos o acom pa -nha vam, pe gan do nos es tri bos e fi xan do-lhe os jo e lhos.

À pro por ção que a ima gem adi an ta va-se, ra i a va-lhe o es cu doao pino do sol e um es tan dar te tre mia-lhe na des tra, tre mu lan do ao ven to.

À pe que na dis tân cia vi nha o Escu de i ro em fo go so gi ne te. Deca sa ca e cal ção ver me lhos, de co le te bran co de seda, de bo tas e es po ras,so bra çan do um cha péu de pas ta, ti nia-lhe à cinta gros sa cor ren te de pra ta, que pren dia um copo do mes mo me tal.

Este fi gu rão tra zia a bar ba ra pa da, o ros to pol vi lha do e pin ta do de car mim, e caía-lhe às cos tas o ra bi cho de uma ca be le i ra bran ca, fri sa da, de três pon tas.

Fa zen do par te do sé qui to, vin te e qua tro ca va los for ne ci dospelas ca va la ri ças da Qu in ta le va vam os te sou ros de S. Jor ge, que con sis ti amem gran des char ne i ras de pra ta so bre as man tas de pano ver de, qua searrastan tes, aga lo a das de ama re lo e guar ne ci das nos can tos com as armasim pe ri a is.

Me ne an do vis tosos pe na chos, com as cri nas tran ça das de fi tas e lin dos la ços de ex ten sas do bras à ca u da agi tan te, a ca val ga da ca mi nha vaa pas so, con du zi da pe los cri a dos da casa im pe ri al, de li bré e cal ção.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 203

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Fe chan do o sé qui to, for ma va a re ta guar da um pi que te deca va la ria de li nha, de es pa das de sem ba i nha das, o Esta do de S. Jor ge.

Então o ar es cu re cia-se de uma flo res ta de guiões das ir man -da des, re u ni dos em gru po.

Os ir mãos sen ti am-se em ba ra ça dos na roda dos há bi tos,olha vam para cima equi li bran do os pen dões, su a vam em bica, com aca be ça ao sol.

Aos guiões su ce di am-se to das as irmanda des. Às or densterceiras pre ce dia o cle ro re gu lar: o cura da Ca pe la aos pa dres da diocese.Com pa re ci am os es cri vães do cor po ecle siás ti co, de cal ção e capa ro ma na, a cruz do ca bi do e o pes so al da ca pe la; e, en tre as or dens ter ce i ras e ocle ro, a câ ma ra mu ni ci pal, re pre sen ta da pe los ve re a do res.

Os an ji nhos eram em nú me ro pro di gi o so; os confra des detochas ace sas bu fa vam de ca lor e pro te gi am-se da in so la ção, sus penden do à cal va len ços de ta ba co; e a mú si ca do 1º da Gu ar da Na ci o nal já se fa zia ou vir.

Nis so pas sa va o pá lio, que abri ga va o bis po com o San tís si mo, mon se nho res, cô ne gos e sa cris tas, ten do as va ras o Im pe ra dor com oman to de Cris to, e os mi nis tros far da dos em gran de gala.

Os gran des do Impé rio, os ca va le i ros do Cru ze i ro e de Cris tocom os dis tin ti vos da ordem, a no bre za e os ar che i ros ul ti ma vam ocortejo.

As for ta le zas sal va vam, e que bra vam-se ao lon ge os ecos dasdes car gas: eram os ba ta lhões em alas que fa zi am as hon ras ao San toGene ral, in cor po ran do-se um a um ao prés ti to, de po is da pas sa gem doViá ti co.

Qu an do a pro cis são en tra va, se gui da de toda a tro pa, as for ta -le zas da vam as derra de i ras sal vas, os ba ta lhões for ma vam no largo ede ban da vam.

S. Jor ge, o Escu de i ro e o Fer re i ro de mo ra vam-se ain da umpou co; e, to man do para a te sou ra ria do Paço, lá re ce bia o Escu de i ro nocopo de pra ta 1:000$000, em mo e das de ouro, o sol do de S. Jor ge.

Isto su ce dia por vol ta das duas ho ras, ro dan do nas ruas, atéao es cu re cer, lu xu o sas equi pa gens, que re con du zi am as pes so as da cor te e as fa mí li as im por tan tes.

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A ima gem fi ca va ex pos ta, até às onze ho ras ou meia-no i te, em sua ca pe li nha da Rua de S. José, onde os de vo tos iam em ro ma ria tri bu -tar-lhe ado ra ções e ofe re cer-lhe es mo las.

Mas tudo se foi!O san to per deu a sua igre ja, o go ver no su pri miu-lhe o sol do,

não obs tan te S. Jor ge ser o úni co dos nos sos ge ne ra is que ja ma is seenvol veu em ques tão mi li tar...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 205

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Qu in ta-Fe i ra San ta

A começar da vés pe ra, o luto obs cu re cia o esplen dordas igre jas.

A pi râ mi de ar den te do al tar-mor em dias de fes ta ha via de sa -pa re ci do; e a fi si o no mia cons ter na da dos tem plos, em que lu zes iso la das bru xu le a vam fú ne bres, con vi da va os fiéis à pe ni tên cia e à con tri ção.

Em épo cas que a nos sa lem bran ça des co bre, a qu in ta-fe i rasan ta era um dos ma i o res dias do povo; dia ex clu si va men te con sa gra doà ex pi a ção das fal tas, aos sa cri fí ci os pro pi ci a tó ri os.

Du ran te a se ma na os tem plos re gur gi ta vam de de vo tos queiam de so bri gar-se; a voz elo qüen te do ora dor sa gra do re tum ba va nasna ves como um pa ro xis mo pro fé ti co da eter ni da de; e os san tos, nosseus ni chos dou ra dos, ocul ta vam-se por trás das cor ti nas ro xas, ape nas o sa cer do te le van ta va a an tí fo na das Tre vas.

E quan to fer vor! De quan to po e sia a ima gi na ção po pu larexor na va es ses atos, es ses de ve res!...

As su pers ti ções su ce di am-se às prá ti cas re li gi o sas, o re co lhi -men to da consciên cia se re na va as pa i xões, e as Endo en ças como quecolo ca vam a po pu la ção na pre sen ça de um Deus ago ni zan te.

O que se pas sa va na quin ta e na sex ta-feira san ta no seio dasfa mí li as era de uma sim pli ci da de pri mi ti va e to can te. “Por que Nos so

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Senhor es ta va do en te”, a casa não se var ria, os es cra vos não tra ba lha -vam, os me ni nos não fa zi am bu lha. Não se can ta va, não se dan ça va, não se to ca va. As cor re ções cor po ra is eram abo li das: fa la va-se ba i xi nho, je -ju a va-se, re za va-se...

As do nas de casa em pra za vam para quan do rom pes se a Ale lu ia cer to ajus te de con tas com as es cra vas de lin qüen tes e os fi lhos tra qui nas.

No cor po das igre jas e nos cor re do res, nas sa cris ti as e noscla us tros, gen te de toda a clas se bus ca va os con fes si o ná ri os, des de o sá -bio e o alto fun ci o ná rio pú bli co, até o ho mem obs cu ro e o ca ti vo hu -mil de, cuja me ta fí si ca li mi ta va-se a crer e orar.

O je jum, não obs tan te ser obri ga tó rio, so fria res tri ções: eramex clu í dos os do en tes e en fer mos, as se nho ras grá vi das e as cri an ças, osve lhos e as mu lhe res que ama men ta vam.

A abs ti nên cia de toda a cas ta de jogo e di ver ti men tos e a con -ti nên cia, em qual quer con di ção, cons ti tu íam uma lei.

Du ran te a se ma na fi nal co mun ga va-se. O pa dre adi an ta va-se no si lên cio gla ci al das igre jas, acom pa nha do dos acó li tos; e, di an te da to a lha ima cu la da, os fiéis, de jo e lhos, re ce bi am a par tí cu la sa gra da.

E ao bri lho do ci bó rio mag ní fi co e dos cí ri os ace sos, um cá lix de pra ta re ple to d’água cir cu la va na des tra de um ir mão da con fra ria, be -ben do um gole cada um dos pe ni ten tes, ab sol vi dos dos er ros dos diasim pla cá ve is.

O ofí cio da Pa i xão, na Ca pe la Impe ri al e no Car mo, era con -cor ri do não só pela mul ti dão anô ni ma, po rém ain da pelo que ha via demais ele va do e dis tin to en tre a no bre za e o povo.

Espe ci al men te na pri me i ra des tas igre jas o pon ti fi cal do bis po,o com pa re ci men to do Impe ra dor e dos seus mi nis tros, o mun do ofi ci alen fim, ad qui ri am mais des lum bra men to ao fa is car das ge mas bri lhan tesso bre o re fle xo ne gro dos ve lu dos e se das das ri cas da mas que, das tri -bu nas e do in te ri or das gra des la te ra is, aguar da vam, pi e do sas e be las, ace ri mô nia da Pa i xão e do Lava-Pés.

De po is da mis sa, da sa gra ção dos óle os mís ti cos e de des nu -da dos os al ta res, ar ri a vam-se os si nos, a hós tia era de po si ta da no co fre ou tú mu lo; a mú si ca a vo zes exe cu ta va ar re ba ta do ras com po si ções de José

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Ma u rí cio e ou tros mes tres, se guin do-se após as La men ta ções – tudo oque há de mais ins pi ra do na poé ti ca so no ra do cris ti a nis mo.

Às no tas re pas sa das de im pre ca ções e an gús ti as do do lo ro so e pa té ti co dra ma das La men ta ções, a mul ti dão como que via, na sé rie deplan gen tes an tí fo nas, os pro fe tas da an ti ga lei res sur gi rem nas suas pro -por ções in co men su rá ve is, mas, no meio das após tro fes, en tor nan do ase gu ran ça e a fé nos co ra ções de so la dos.

E o coro, res pon den do às ar güi ções so le nís si mas, pa re cia aoeco de uma ru í na que de sa ba va.

A es té ti ca da que le tem po ti nha como for ma de arte a be a ti tu de d’alma e a cris ta li za ção eu ca rís ti ca das lá gri mas!

Absor vida no lu tu o so ide al, a re u nião dos fiéis tor na va-serespe i to sa e sen ti da. E aos re fle xos lí vi dos do san tuá rio, aque la es pé ciede vi a jan tes das ter ras aus tra is des co bria o as pec to cal mo e se re no do céu.

E a ma tra ca, que des de a vés pe ra subs ti tu í ra nas Tre vas osino, atro a va a sa cris tia...

A ar qui ban ca da para o Lava-Pés aí es ta va so bre o már mo resa gra do da igre ja, para o man da to co me mo ra ti vo.

O bispo, na ma jes ta de do seu por te, avul ta va com os seussacer do tes e co mi ti va; e doze pa dres, ali nhan do-se, sen ta dos nos lu ga resde ter mi na dos, in di ca vam o com ple men to do rito, quan to aos ofi ci an tes.

O ve ne ran do imi ta dor do Cris to, iden ti fi ca do com o seu pa pel,pa ten te a va toda a hu mil da de do Di vi no Mes tre quan do, in ter rom pen do aceia, la va ra os pés aos seus dis cí pu los, pres sen tin do já na face pá li da como as nu vens do in ver no, o be i jo frio e vis co so da tra i ção de Ju das.

Du ran te a lo ção, o coro da Ca pe la en to a va umas har mo ni asde José Ma u rí cio, tão ins pi ra das, que en la ça vam em sua su bli mi da dema ra vi lho sa, o gran di o so, o mis té rio, o amor e a pre ce!

Qu an do esta ce ri mô nia fin da va, ce le bra vam-se as Tre vas.O al tar do sa cra men to, guar da do por sen ti ne las com ar mas

em fu ne ral, fi ca va ilu mi na do como uma mon ta nha de fogo; e, di vi din doos quar tos da no i te, os ir mãos ve la vam a hós tia con sa gra da.

Ali es ta va a luz; - no res to da igre ja ro la vam as tre vas.O efe i to con ve ni en te dos aces só ri os des ta ca va todo o Inter mé -

dio de tris te za que ia de sem pe nhar-se. No san tuá rio, ocu pa va o cen tro

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 209

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um can de e i ro tri an gu lar, com quin ze ve las de cera ama re la, que que imavamcre pi tando e fun di am-se em gros sos fios.

E o conto das vi sões pro fé ti cas, os la men tos e as ora ções,eco a vam lu gu bre men te no re cin to e nos al ta res des pi dos dos ade re çosde ou tro ra.

O sim bo lis mo é o trans cen den te dos cul tos. O can de e i ro dastre vas ti nha essa ex pres são e esse ca rá ter.

À me di da que fin da vam os sal mos, a modo que a mor te,ani nha da em al gum tur ban te de som bras, alon ga va a asa so bre cada uma da que las lu zes... um acó li to as apa ga va.

Adi an tan do-se o Ofí cio, mais se adi an ta va a ne gri dão que sepene i ra va no tem plo, até que o cí rio do ápi ce do re fe ri do triân gu lo fi ca vaúnico como um pen sa men to que não mor re, como um san tel mo denáu fra go aos frê mi tos da tem pes ta de.

Um co rista, po rém, o re ti ra va, e, le van do-o para trás doaltar-mor, aí o es con dia.

Entre Deus e o Sol há um pon to de con ta to: não é ne ces sá rio que eles se mos trem, para que sua luz ilu mi ne os ho ri zon tes e o mun do.

– Aque la vela sim bo li za va o Cris to mor to, ras gan do com on das es plen do ro sas o ar no tur no do se pul cro!

E os pa dres, como uma le gião de som bras res va lan do nocaos, mur mu ra vam o Mi se re re.

Então, o cí rio mis te ri o so re a pa re cia, o si lên cio era subs ti tu í dopelo al vo ro ço, pelo ba ter de li vros nos ban cos e o es ta lar en sur de ce dordas ma tra cas.

Enquan to a Ca pe la Impe ri al re ti nia dos úl ti mos ru mo res dasTre vas, no Paço o Impe ra dor hu mi lha va a sua fron te co ro a da di an te deonze po bres e um sa cer do te, na ce ri mô nia do Lava-Pés.

Se me lhan do à Ví ti ma di vi na, e a exem plo dos pa pas, dos reis,dos mais im pe ra do res, dos ar ce bis pos e bis pos, dos aba des e pro vin ci a is, Sua Ma jes ta de man ti nha es ses es ti los, em pa na dos pre sen te men te porhá li tos he ré ti cos.

Este ato era con clu í do pe las es mo las de mo e das de ouro aospo bres, e a ofer ta de um ramo de flo res ao pa dre que os acom pa nha va.

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Des de o meio-dia o exér ci to cin gia de cre pe as ban de i ras, asmú si cas ca la vam-se, as ar mas fi ca vam em fu ne ral.

À tar de, as con so a das nos con ven tos e do mi cí li os pri va dos...Na quin ta-feira san ta, a par tir de seis ho ras, a po pu la ção,

vestida de luto, com pra va amên do as e vi si ta va as igre jas.

Da mul ti dão si len ci o sa ou via-se nas ruas o bur bu ri nho con fu so e ca den ci a do.

O far fa lhar das se das, o ru í do da tur ba em ca mi nho, pa la vrasao aca so, con den sa vam-se em cer ta al tu ra, numa on du la ção úni ca, maslar ga e igual.

A vi si tação, de po is da de so bri ga, tor na va-se como que umrespira dou ro àque la gen te, en le va da no mis ti cis mo dos cre pús cu los cristãos.

As igre jas sotur nas atra íam nes ta no i te to das as clas ses popu la res;por isso que os pa i néis da Pa i xão ou os Pas sos, e a ex po si ção do Se nhorMor to se ha vi am pre pa ra do e dis pos to se gun do a le tra da tra di ção.

Ao trans por-se o li mi ar de um tem plo, de pa ra va-se, aoolhar, o san tuá rio qua se ermo de lu zes e co ber to de pa ne ja men tosnegros.

Ha bi tu an do-se à es cu ri dão, quem se apro xi mas se des cor ti na va a cena mortuá ria pre pa ra da no fun do, cena co mo ven te e des ti na da aimpres si o nar os es pí ri tos pi e do sos.

Na Lampado sa, por exem plo, ar ma vam com fo lha gens umHorto ver da de i ra mente té tri co, es cla re ci do com es cas sez, no meio doqual a imagem do Cris to mor to, en vol vi do no len çol do ja zi go, era guar da -da por ir mãos do San tís si mo, com to chas ace sas, de opa ver me lha, ten do aum lado uma gran de sal va de pra ta, onde cada vi si tan te de pu nha o seuóbo lo.

Na ge ne ra li da de, os Pas sos do Ro sá rio e os Hor tos eram pou coco muns.

Sim pli fi can do o apa ra to, a ex po si ção, na plu ra li da de dasigre jas, re su mia-se em co lo car o Se nhor Mor to em ba i xo do al tar-mor,do qual re ti ra vam a face es cul pi da, fi can do so bre o al tar a Vir gem dasDo res, nas so li dões in ter mi ná ve is de sua ago nia sem ter mo.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 211

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Os ir mãos da con fra ria – e mais or to do xa men te os doSantís simo Sa cra men to – ve la vam al ter na ti va men te com as suas to chasar den tes o si mu la cro do tú mulo do ca dá ver de um deus.

Os fiéis, que de vi am vi si tar, pelo me nos, sete igre jas, do bra vam o jo e lho no topo dos de gra us, in cli na vam o cor po, aba i xa vam a fron te,beijan do de pre fe rên cia os de dos do pé ou o dor so da mão en san güen ta dada ima gem es ten di da. E, er guen do-se com pun gi dos, sa cu din do a po e i ra dos ves ti dos, de i xa vam na sal va a es mo la es pon tâ nea, sa in do em se gui da.

Entre fa mí li as, en tre as pes so as mais che ga das, en tre o povofi nal men te, a fra se: – “me per doe al guns agra vos” –, era pró pria do dia.

E este di zer tão sim ples, que au ten ti ca va a de so bri ga daqua res ma, abran gia os der ra de i ros te mo res de uma alma pu ri fi ca da pelare li gião e pela pe ni tên cia.

A ex po si ção das ba i xe las de pra ta e de ouro, do Paço da ci da de, dis pu ta va a con cor rên cia com as mais es plên di das igre jas.

Até à me ia-noite, que du ra va a vi si ta ção, ma go tes de povoem pre te ci am as ruas.

O co mér cio de amên do as es ta va no seu auge, as con fe i ta ri asre ple tas de com pra do res, e o luxo ofus ca va.

Nin guém havia que re sis tis se à ten ta ção de com prar umpre sen te de fes tas, um ob je to qual quer para uma ofer ta.

Os es ta be le ci men tos es pe ci a is, como as con fe i ta ri as do De ro che,Cas te lões, João Gu i ma rães, Car ce ler, Cas ta ni no, do Fi li pe do Lar go da Ca ri o -ca, e do Ne ves do Lar go do Ca pim, os ten ta vam-se ca pri cho sos, com as suascor ti nas de cas sa nas por tas da en tra da, com suas ga le ri as fe i tas em co lu nas efor ra das de seda, e com seus can de la bros e aran de las de gos to e pre ço.

O povo for mi ga va nes sas ca sas, es co lhen do à von ta de ca i xi nhase car tu chos de amên do as, de li ci o sas em pa das, ces ti nhas com asas, en fe i tadascom fi tas e pa péis, con fe i tos de amên do as, cra vo, ca ne la, etc.

Por en tre as so ber bas jar ras com flo res das es ca da ri as, a clas se fina da so ci e da de, as fa mí li as im por tan tes e ri cas che ga vam aos sa lõesluxu o sos do João Gu i ma rães, em que os ge la dos, os do ces sa bo ro sís si mos e os sor ve tes eram ser vi dos por empre ga dos lu zi dos e aten ci o sos.

Ao mo vi men to gene ra li za do e in ces san te pre si dia a boaordem das nos sas fes tas po pu la res.

Feli zes tem pos aque les em que o povo ti nha cren ças e ex pansõesín ti mas!

Mas es ses tem pos pas sa ram!...

212 Melo Mo ra is Filho

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Sex ta-Fe i ra da Pa i xão

A PROCISSÃO DO ENTERRO

O per dão das in jú ri as, o bem pelo mal, eram, nes se dia, os or va lhos que re ver de ci am as flo res que se fa na vam da fé.

A mor te do Cris to dis si pa va o hor ror da imor ta li da de e fa ziacin ti lar a es pe ran ça nas pla gas ne bu lo sas da vida eter na.

A cren ça pú bli ca imo bi li za va-se nas ra i as con tem pla ti vas,onde as ações boas con fe ren ci a vam en tre si.

Como uma re per cus são das pa la vras que o fi lho de Deusdeixara cair dos lá bi os no alto do Gól go ta, o Impe ra dor per do a va acri mi nosos. Ini mi gos vi nham de lon ge re con ci li ar-se; as fa mí li as reatavamrelações par ti das; o fi lho re bel de in cli na va di an te do pai a fron te obe diente; e o es cra vo fu gi do com pa re cia in dul ta do pe ran te o se nhor.

Nas fazen das, o eito e o tron co não go te ja vam san gue, asgargalhe i ras não ma ce ra vam as ví ti mas, as cor ren tes do cepo não mor di am o pé do ca ti vo nas tor tu ras das sen za las.

Era o re i na do da paz e do per dão; o úni co dia tal vez em quese con si de ra vam bem-aven tu ra dos aque les que cho ra vam!

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E a pe ni tên cia e a de vo ção en ca mi nha vam à casa de Deus atur ba pa cí fi ca.

Na Ca pe la Impe ri al, as ve las gas tas na vi gí lia ao San tís si mofu ma vam, avi van do o lume dos mor rões es bra se a dos e lon gos...

A igre ja con ser va va as por tas cer ra das em si nal de dó, o in te -ri or era sombrio, e os sa cer do tes, apa re cen do da sa cris tia, to ma vam oaltar-mor: o ofí cio da Pa i xão co me ça va abrup to.

A ado ra ção da cruz, de i ta da ao lon go no chão do pres bi té rio,o bis po e o cabido fa zi am pros ter na dos, fin do o que, a co mu nhãoderra de i ra da se ma na ce le bra va-se so le ne.

A Pa i xão ini ci a va-se por uma pro fe cia, era o Evan ge lho di a lo -ga do em canto gre go ri a no. Os ju de us, o Cris to, Pi la tos e os após to losexi bi am-se na cena sa gra da, ten do por in tér pre tes o coro e três pa dres,que, de dois púl pi tos e da laje do tem plo, en tre ti nham a ação, com bi nandotre chos bí bli cos com as ca dên ci as su bli mes de an ti gui da de re mota.

No de sem pe nho da tra gé dia di vi na, os pa dres, ele van do osbra ços, al te a vam a voz. – Eram os bra da dos.

A Pa i xão con clu ía-se pelo ofí cio de Tre vas, que, em tem posafas ta dos, pre ce dia de pou co a sa í da da pro cis são do Enter ro.

Das oito para as nove ho ras da no i te, duas des sas pro cis sõesper cor ri am as ruas da ci da de: a do Car mo e a de S. Fran cis co de Pa u la.

Esco lhen do como tipo a do Car mo, a sua des cri ção é cu ri o sa, re sis tin do se ve ra a con fron tos re mo tos.

Na pri mi ti va, os per so na gens do cor te jo eram me nos nu me -rosos; po rém uma es pé cie de pró lo go, de in ter mé dio dra má ti co, numaen ce na ção de efe i to, dava a co nhe cer os prin ci pa is ca rac te res.

Em 1831, por vol ta das qua tro ho ras da tar de, a pro cis são doEnter ro es ta va na rua, sen do uti li za dos, para se en car re ga rem de di ver sospa péis, can to res e mú si cos do ofí cio de Tre vas.

Esgo ta das as prá ti cas de sex ta-fe i ra, na Ca pe la Impe ri al, oCar mo en chia-se de povo para ob ser var uma ver da de i ra cena de te a tro.A um si nal con ven ci o na do, abri am-se as cor ti nas de da mas co do coro, e

214 Melo Mo ra is Filho

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as fi gu ras que ti nham de for mar o prés ti to fú ne bre apa re ci am agru pa das,ca u san do gran de sen sa ção.

Mi nu tos de po is cer ra va-se o pano, e aque les per so na gensincor po ra vam-se nas ruas po pu lo sas ao cor te jo ad mi rá vel.

A pro cis são do Enter ro, como se fa zia mais re cen te men te,su pri mi ra esta cena his tó ri ca, acres cen tan do, como com pen sa ção, no vas fi gu ras e mais avul ta dos aces só ri os.

A pro cis são do Car mo saía às oito ho ras da no i te. A mul ti dão,api nhada no Lar go do Paço, de fron te da igre ja e da Rua Di re i ta, mo via-seem mas sa, aqui e ali, como uma onda de as fal to fer ven te, ne gra e es pe lhan te.

O luar ba tia ao lon ge no mar e po lia as pa re des bran cas e assacadas dos edi fí ci os, de onde cen te nas de fa mí li as de bru ça vam-sesôfre gas.

As lu mi ná rias dou ra vam das ja ne las e sa ca das, as col chasflutu an te as ao ven to, pro du zin do os re fle xos iri a dos uma pers pec ti vabri lhan te.

Com os tam bo res for ra dos de pre to, a ban de i ra en la ça da decre pe, e as ar mas em fu ne ral, um ba ta lhão da Gu ar da Na ci o nal pos ta -va-se a um lado da pra ça, para as hon ras fú ne bres do sa i men to.

A um mo men to ines pe ra do, sú bi to cla rão gol fe ja va da por taprin ci pal da igre ja que se abria. A gen te que ocu pa va o adro, des cia; opovo se pa ra va-se em alas na Rua Di re i ta; os si ne i ros, no alto da tor re,des pen ca vam o cor po, abra çan do a ca be ça dos si nos; e to dos vol ta vamo ros to, es ti ran do o pes co ço, para o al pen dre do tem plo.

As pes so as mais si su das e dis cre tas co lo ca vam-se a maiordis tân cia, o que de ve ras con vi nha à apre ci a ção do apa ra to so ato.

Bem como enor me pe da ço de ve lu do ne gro, cor ta do por dois ga lões de fogo, as sim era aque la tri lha, ser pe a da pe las lu zes das to chasem pro fu são.

A procis são ha via sa í do... De há tan tos anos pas sa dos, falemosdo prés ti to, re vi ven do re cor da ções.

Rom pen do a mar cha e le van do adi an te de si a mul ti dão quese atro pe la va, seis sol da dos de ca va la ria de po lí cia, com es pa das de sem -ba i nha das, ali nha vam o povo.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 215

Page 201: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

As mu lhe res sus pen di am nos bra ços as cri an ci nhas so no len tas,o che fe de fa mí lia dis pu nha, se gun do a idade e o ta ma nho, os fi lhos e assenhoras, para que bem vis sem; e nas por tas es cu ras, tre pa dos emmochos, os es cra vos pro cu ra vam, da me lhor for ma, es pi ar o que se passa va.

O re bo li ço e os ar re mes sos eram in fa lí ve is, como se pode de du zir.E a ma tra ca, ba ti da por um in di ví duo ves ti do de ba lan drau,

tro a va.Equi librado por um ir mão do Car mo, o Lá ba ro ro ma no

campe a va nas al tu ras com a vis to sa ins cri ção em le tras de ouro: S. P. Q. R.À sua som bra, o Far ri co co, en ver gan do uma tú ni ca es cu ra,

com ca puz so bre a ca be ça e más ca ra aber ta para os olhos e boca, sim -bo li zan do os No vís si mos do Ho mem, to ca va uma trom be ta, sus ten dona mão es quer da uma com pri da e fina vela de cera, de que a ins tan tessa cu dia os pin gos.

Com este per so na gem bi zar ro co me ça vam a pas sar os Ter -ce i ros da con fra ria, com seus há bi tos pró pri os, em pu nhan do gros sas epe sa das to chas, con du zin do al guns, pela mão, um an ji nho, cada qualcom um ins tru men to da Pa i xão.

Nes ta pro cis são, como nas de ma is, os co mer ci an tes por tu -gue ses, que re pre sen ta vam as ri quís simas ir man da des, ador na vam-se de suas con de co ra ções na ci o na is, cra ve ja das de fi nís si mas pe dras e debri lhan tes de raro va lor.

Pode-se di zer que a con fra ria do Car mo com pa re cia toda,pre en chen do os ir mãos os gran des cla ros, os in ter va los pro lon ga dos,en tre a apa ri ção dos per so na gens que a cren ça da que las épo cas su pu nha ha ve rem acom pa nha do o en ter ro do Cris to.

O prés ti to pa ra va a mi ú do; os an ji nhos, fa ti ga dos, iam qua sede ras tos; e o guião, com seu sé qui to de ir mãos da Mi se ri cór dia, comcasti ça is de pau e ve las ace sas, obs cu re cia os ares, azu la da men te trans pa -ren tes pe los bri lhos da lua che ia.

E nem mais se ou via a ma tra ca... o Far ri co co per de ra-se de vis ta.A este, po rém, vin te mi nu tos mais tar de, se gui am-se os qua tro

Pro fe tas mai o res, em cos tu mes de mou ros, per fi lan do ao om bro esca di nhas de pi nho, mar chan do im per tur bá ve is.

216 Melo Mo ra is Filho

Page 202: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Este gru po bar ba do e de ca be los ca che a dos não pas sa va isen to de mo te jos.

E os ir mãos pros se gui am, os an ji nhos mais de sen vol vi dosmar cha vam, ba lan çan do a per ni nha, e os Pro fe tas lá iam...

Um des ta ca men to da guar da ro ma na, com ala bar das, lan ças ees cu dos raian tes, as so ma va após, ca pi ta ne a do por um Cen tu rião,homem co los sal e re so lu to.

De vi se i ra e ca pa ce te de cou ra ce i ro, com sua ban da de sedafran ja da de ouro, le van ta va o pas so gra du a do, de i xan do as sen tar a pe sa dae enor me ala bar da nas pe dras, que es tron da vam à pan ca da.

Os ra pa zes gos ta vam des ta fi gu ra e apla u di am o des gar re.Os an ji nhos, por ta do res da co lu na, da cana e da co roa de es pi nhos,

in di ca vam que o sar có fa go do Se nhor pas sa ria em bre ve.Então as três Ma ri as, que eram mú si cos ves ti dos de do mi nós

pretos e de más ca ra, avi zi nha vam-se, com as suas au réo las em vol ta dacabeça, fa zen do le ves me su ras, e mur mu ran do lu gu bre men te: – Behú! Behú!

A es tes fi gu ran tes, que tor na vam-se às ve zes ri dí cu los a es pí -ri tos im pru den tes e pou co re fle ti dos, su ce dia o coro dos mú si cos daCa pe la e o Anjo can tor.

O Anjo can tor era uma be le za de de zes se is a de zo i to anos,ri ca men te ves ti da e cin gin do um di a de ma de ouro e bri lhan tes.

Su bin do numa es ca da de de gra us lar gos, quan do en to a va,desen ro lan do o su dá rio en san güen ta do, a an tí fo na – Ó vos om nes qui tran -si tis per viam – sen tia-se que por ali ia pas sar al gu ma co i sa de di vi no.

As flo res, ati ra das das ja ne las, for ra vam-lhe o ca mi nho, oesqui fe do Se nhor apa re cia.

À se me lhan ça de um lago de es tre las fri as, o sar có fa go depra ta ma ci ça os ci la va ao om bro de fra des do Car mo, de alva e es to laatra ves sa da, co ro a dos de es pi nhos.

O re li gi o so si lên cio que do mi na va as mul ti dões era ape nasque bra do pe los ru fos aba fa dos de tam bo res, e pela mar cha fú ne bre quese exe cu ta va lon gín qua.

Em se gui da, vi nha o an dor de Nos sa se nho ra, car re ga do porirmãos do Carmo. Como o es qui fe, este an dor era todo de pra ta es culpida,

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 217

Page 203: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

mas guar ne ci do nas qua tro faces por es tre i tas cor ti nas cor de vi o le ta edou ra das, que ter mi na vam em ri cas fran jas de ouro.

A sa gra da ima gem, no seu pe des tal ro de a do de ci pres tes,im pu nha-se como san ta, como vir gem e como mãe!

Este cor te jo era fe cha do pelo ba ta lhão, cuja mú si ca to ca va,du ran te o tra je to, mar chas fú ne bres.

Só de po is das onze ho ras a pro cis são re co lhia-se à igre ja deonde sa í ra, fi can do por mais al gum tem po as ima gens ex pos tas à ado ra -ção do pú bli co.

Pou co de po is o ser mão de lá gri mas, ou tro ra ver da de i ro pri mor de elo qüên cia, era de cla ma do pelo ora dor mais cé le bre aos fiéis re u ni dosna que le sa crá rio de dor.

Mu i ta gen te do povo per cor ria os Pas sos, vi si ta va os Hor tos,fi ca va es ta ci o na da nos adros das igre jas ex pos tas ao pú bli co.

Igual pro cis são, que saía de S. Fran cis co de Pa u la, tinha seuspar ti dá ri os, seus de vo tos, mas iti ne rá rio di ver so.

Sen ta das nas cal ça das, ao lon go das ruas, nos de gra us dasigrejas, as ven de de i ras de do ces e con fe i tos ar ri a vam os ta bu le i ros,den tro dos qua is uma lan ter ni nha de flan dres, com uma vela ace sa,alumi a va os mos tra do res am bu lan tes.

À dis tân cia, essa mi ría de de lu zes mo ve di ças dava a idéia deuma no i te cla ra dos tró pi cos, com as suas mo i tas che i as de luz e suascam pi nas chu vis ca das de vaga-lu mes.

Da Se ma na San ta, cujo li vro de cos tu mes o na ci o na lis mobrasi le i ro ati rou no ol vi do, sal ve-se ao me nos esta la u da da tra di ção.

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Pre ces para Pe dir Chu va

Den tre os nos sos cos tu mes po pu la res, mais ge ne ra li za dos eain da exis ten tes no Bra sil, é um dos mais lí ri cos e re li gi o sa men te be losem sua sim ple za as pro cis sões de pre ces, es sas ro ma ri as pro pi ci a tó ri asem pre en di das por fa mí li as e ha bi tan tes de uma lo ca li da de, com o fim de ob ter do Céu inter ven ção be né fi ca con tra ca la mi da des pú bli cas, queasso lam, cir cuns cri tas, a ter ra e o ho mem.

A nota des ses cos tu mes, de ri va dos das pri mi ti vas ida des daIgre ja, é de or di ná rio vi bra da nos tem plos pe los res pec ti vos vi gá ri os, e daí re per cu te so no ra e de so la do ra por toda uma vila, um ter mo, uma ci da de.

Nos tem pos de seca, quan do o sol, que re a ni ma a na tu re za,mata a plan ta e os vi ven tes; quan do os cre pús cu los as se me lham-se a for -na lhas de co bre can den te que abra sam as es tra das e os cam pos; e a fomee a mor te le van tam-se das plan ta ções que tor ram, das fon tes sem águacomo ór bi tas va za das, do fumo que on du la em es pi ra is fan tás ti cas dasma tas que se in cen de i am, os sa cer do tes e o povo re fu gi a vam-se em Deus.

Des de pela ma nhã, os vi gá ri os das fre gue si as da roça exor ta -vam os fiéis, e as la da i nhas, as sa gra das ora ções à Vir gem, a pe ni tên ciaser vi am de in ter me diá ri as en tre o Cri a dor e a cri a tu ra, no ple no do mí nio da de ses pe ran ça dos dias fu nes tos.

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Se no lu gar de vas ta do ha via mais igre jas, à tar de as pro cis sõesen con tra vam-se, se gui das de gran de mul ti dão. Os pe ni ten tes açoi ta -vam-se; as mu lhe res ca mi nha vam des cal ças e de ca be los sol tos; as ima -gens tro ca vam-se nos tem plos per ma ne cen do au sen tes de seus al ta resaté à que da da pri me i ra chu va.

Esse atos re li gi o sos, es sas ro ga ções para pe dir chu va, anun -ci a dos de po is da le i tu ra de pre gões pelo pá ro co da fre gue sia, eram naplu ra li da de das ve zes re a li za dos ex clu si va men te pelo povo, que acu diaespontâ neo a apla car o cas ti go do Céu por meio de de mons tra çõeshumil des, de sa cri fí ci os do lo ro sos, de re zas es pe cí fi cas.

E os agri cul to res con tri tos as so ci a vam-se a es ses de ve res, to das as con di ções se ni ve la vam di an te de uma idéia que pe dia per dão, que ci li -ci a va-se pe ni ten te em pre sen ça de ani qui la men to pro gres si vo, que se aba -tia so bre a ter ra como um pi ra ta que rou ba e as sas si na à meia-no i te!

Na pro vín cia do Rio de Ja ne i ro, onde lo ca li za mos esta cena,as pre ces de que fa la mos, além do re le vo pro pri a men te re li gi o so, isto é,do que se pas sa va na igre ja, apre sen ta vam sa liên ci as de ca rac te rís ti capopular, em cuja su per fí cie po li da re fle ti am-se os tons quen tes e pi to rescos das pin tu ras de gê ne ro.

No co me ço das se cas, quan do uma at mos fe ra de for no pre -nun ci a va a des tru i ção, os vi gá ri os, no fim da mis sa e em bre ves pré di cas, pre pa ra vam o es pí ri to de seus pa ro qui a nos para a ini ci a ção das pre ces,que al guns dias mais tar de se fa zi am ou vir la men to sas no re cin to dostem plos e na ex ten são qua se de ser ta das es tra das.

Do púl pi to, ter mi na da a ce le bra ção do do min go ou aca ba da,como dis se mos, a le i tu ra de pro cla mas, mu i tos de les acon se lha vam aopovo que sa ís se em pro cis são com as suas ima gens pri va ti vas, au xi li an -do-os des tar te nos de ve res da fé, nas sú pli cas fe cun das ao Altís si mopara a ex tin ção do fla ge lo.

Então a cons ciên cia cris tã, no re man so do lar, com pe ne tra dade suas cul pas e atri bu in do a in ten si da de inex tin guí vel da seca a ver da -de i ro e pro va do cas ti go, re co lhia-se em si mes ma, pro cu ran do ate nu artan tos ma les com a de vo ção mais ín ti ma e pro fun da men te sin ce ra.

A ma ni fes ta ção ex ter na des se sen ti men to, a for ma clás si cade ba i xo da qual pal pi ta va esse pen sa men to per fu ma do de in cen so do

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san tuá rio, era ca pri cho sa e ori gi nal, so bres sa in do pelo ma ra vi lho so does pe tá cu lo, pelo fan tás ti co da vi são.

Des de logo, à be i ra das es tra das ou no es cu ro das ma tas, des -co bri am-se lu zes que se mo vi am, vul tos que cir cu la vam nas sa las, som -bras que tre pa vam em ban cos, em ca de i ras, pre gan do col chas, sus pen -den do ar ca das de flo res aci ma das por ta das...

Eram as fa mí li as que ar ma vam as suas ca sas de ta i pa, pre pa -ra vam seus an do res para as pre ces am bu lan tes.

No quar to, em fren te à en tra da, de por tas aber tas, os ora tó ri os,de lam pa ri nas ace sas, so bres sa íam de um fun do aga lo a do, se meado deestre linhas dou ra das, com apa nha dos de fo fos de pa ni nho en la ça dos de fitas.

No cen tro das re fe ri das sa las ama nhe ci am os pe que nosando res (ex cep ci o nal men te um), ro de a dos de ve las, vis to sos de pa ne ja -men tos bi zar ra men te co lo ri dos, en tre me a dos de ren das e or la dos detran ce lins de vá ri os ma ti zes.

Con ti nu a damente, ao es cu re cer, os vi zi nhos e convida dos enchiamas ca sas, e um ou ou tro fi gu ran te ca pi tal do cor te ja vi nha lá de den tro parase in cor po rar aos prés ti tos que, sem de lon gas, pu nham-se em mar cha.

E o céu era puro e lím pi do; em uma nu vem bran ca tol da va oes plen dor das es tre las que bri lha vam na imen si da de, pa re cen do sol tasno éter azul e cris ta li no.

O ar aba fa va; as exa la ções dos pa u is ape ga vam-se às ves ti du rasda no i te; os sa pos, pu lan do nos ca mi nhos, in cha vam o papo ama re len to,mar te la vam nas for jas dos bre ja is, nas fur nas das pe dras ao re len to.

Aqui e ali ou via-se o gri to do ba cu rau que es tre bu cha va nasgar ras de fer ro da co ru ja...

Por es sas ho ras, as pro cis sões de pre ces, adi an ta das em seuper cur so, aper ce bi am-se ao lon ge em nú cle os lu mi no sos, nas elip ses defogo aver me lha do que pla na vam no além...

De re pen te um gran de foco con cen tra va-se, sub di vi din do-seapós e to man do di re ções va ri a das.

Eram as pro cis sões que se en con tra vam em uma cur va, quepa ra vam por ins tantes, apar ta vam-se, ao coro das re zas, dos ben di tosento a dos pe los pe ni ten tes em trân si to.

De quan do em quan do, um car ro de bois sul ca va a es tra da,sufo can do nos guin chos es trí du los as vo zes do re li gi o so con cer to, dapiedo sa se re na ta, da mul ti dão campe si na em suas ora ções po pu la res.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 221

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Depois, uma da que las au réo las lu zen tes, um da que les gru posremo tos des do bra va-se em lu zes iso la das, ven cia a ex ten são, apro xi ma va-se.

E o can to, in ter pre tan do o voto co mum, tra di ci o nal em cer taspa ra gens à opor tu ni da de do mo men to, eco a va pun gi ti vo e pro lon gado,car re gan do ain da mais o ter ror da que las al mas em sua pe re gri na ção lus tral:

Vir gem San ta dos re mé di os,Que a to dos re me di a is,Nós que so mos pe ca do resCada vez pe ca mos mais.

Ra i nha de eter na gló ria,Mãe de Deus, doce e cle men te,Dai-nos água que nos mo lhe,Dai-nos pão que nos sus ten te.

E pe los va les e ser ras, os ecos – ór gãos das flo res tas – acom -pa nha vam as pre ces, as sú pli cas in cul tas, re bo an do na imen si da de!

A pro cis são, des fi lan do nos ca mi nhos, não ti nha pom passo le nes, mas uma prag má ti ca es ta be le ci da.

Os le ves an do res, le va dos ge ral men te por mo ças ou me ni nas,se gui dos de ve lhos e cri an ças, de es cra vos e li vres, adi an ta vam-se na no i te, es col ta dos de pes so as des cal ças por pe ni tên cia, de se nho ras de ca be loses par sos so bre as es pá du as, de in di ví du os vo ti va men te mal tra pi lhos, que acen tu a vam com mais vi gor o ar re pen di men to de suas cul pas, mo ti va -do ras tam bém do pro vi den ci al cas ti go.

E das peque nas ve las de cera que ar di am – flo res de fogodaquela pro cis são es pec tral – acla ra va-se o cor te jo e a sen da, pros seguin doas ro ga ções can ta das, em que as vo zes mais ás pe ras con tras ta vam comas me lo di as su a ves e as dis so nân ci as agra dá ve is das vo zes in fan tis:

Com pa de cei-vos, Se nho ra,De nos sos pran tos e do res,Mor re mos to dos à sedePor que so mos pe ca do res.

Pe di mos a vós, Se nho ra,Dona da ter ra e do mar,Re fri gé rio para o cor po,Gra ça para vos amar.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 223

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A es ses ru mo res as aves acor da vam ton tas nos ma ta ga issilen tes, as sa ra cu ras des per ta vam que bros nos man gues bor bu lhan tes e os in se tos zum bi am em fan far ra lô bre ga na obs cu ri da de ilu mi na da dasca po e i ras den sas.

E a pro cis são pas sa va, se guia, su mia-se, re co lhen do-se bemtar de.

De vol ta, tro ca vam às ve zes os san tos, que per no i ta vam emca sas di fe ren tes, e lá iam seu des ti no pul ve ri zan do de lu zes pe que naszo nas de tre vas.

Che gan do os pe ni ten tes a do mi cí lio, ape nas a tur ba de acom -pa nha do res dis per sa va-se e os gra ci o sos an do res ocu pa vam de ter mi na dos lu ga res nas sa las ilu mi na das, cada fa mí lia fa zia ser vir mo des ta ceia, an tese de po is da qual o de se jo e a im pa ciên cia trans pa re ci am nos sem blan tese ma te ri a li za vam-se nas ações.

Aqui era uma moça que, che gan do à por ta e es ten den do amão, dizia que já chu vis ca va; ali um ro ce i ro que olha va para o céu, easpirava a ter ra fa re jan do chu va; aco lá um in di ví duo qual quer que afirmavaachar-se ela imi nen te, apon tan do para uma nu ven zi nha so li tá ria e per di da, des co brin do es tre las que não es ta vam an tes...

Entre tan to, po rém, al gu ma coisa de ex tra or di ná rio se davapor aque las oca siões. Tes te mu nhas au tên ti cas e in sus pe i tas con fir mamque não era es tra nho que, com a pri me i ra pro cis são de pre ces, ver da -de i ros di lú vi os de sa ba vam ines pe ra da men te, sem que uma leve ara gem, um si nal obs cu ro ape nas os hou ves se pre nun ci a do...

E era belo de ver-se aque les pe ni ten tes, aque le povo ro bus te -ci do em sua fé, abrir ca mi nho ao ma ru lho das en xur ra das, ao so prar rijo da ven ta nia, res guar dan do as suas ima gens e des lum bra dos pe los re lâm -pa gos que fu zi la vam, tra çan do es ca da ri as can den tes nos ho ri zon tesforra dos de ne gro da tor men ta!

E a enor mi da de es tou ra va!...

224 Melo Mo ra is Filho

Page 210: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Dia de Fi na dos

(RIO DE JANEIRO)

Era no tem po em que este país re ve la va o es pí ri to tra di -ci o nal da ve lha me tró po le, e a alma po pu lar mi ra va-se na se re ni da deazu la da do céu.

Na que les dias de ou tro ra, em que se acre di ta va nas vir tu desma ter nas e na exis tên cia de Deus, a re li gião con du zia o ho mem, do ber ço ao tú mu lo, en tre can ta res e flo res, har mo ni as e la men ta ções.

A mor te, para os nos sos ma i o res, nun ca se afi gu rou o ca dá verbo i an do po dre nas ma re mas lí vi das do Nada, po rém a con ti nu a ção da vida, o des per tar da in di vi du a li da de per sis ten te, numa exis tên cia pós tu ma.

Daí, os pi e do sos de ve res para com os que ha vi am de i xa doeste mun do, que na com pre en são an ti ga nada mais era do que um valees guio e te ne bro so, onde a mis são do ho mem é rir e cho rar como umlou co, até cair como um ébrio nas por tas da eter ni da de.

Às de si gual da des da vida, a co me mo ra ção dos fiéis de fun tostra ça va um ní vel que con ti nha o rei e o vas sa lo, o rico e o po bre, osenhor e o es cra vo. Dir-se-ia que o dia de fi na dos des ti na va-se à re pre -sen ta ção da cé le bre dan ça ma ca bra, em que a Mor te, sa in do da som bria

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no i te da Ida de Mé dia, pas sa va re vis ta às le giões de fan tas mas re fu gi a dos em seus gla ci a is do mí ni os, mas para con ci liá-los pelo per dão e a pre ce,em cli mas me lho res.

É que o cris ti a nis mo, le van tan do o ar cho te que fuma sob o pédo Gê nio fu ne rá rio da arte gre ga, trans for mou-se num fa cho si de ral, à luzdo qual as al mas re mo i nham em ban dos na be a ti tu de dos ele i tos – lá ondeo dia é sem no i te, a vida sem mor te, e a ver da de não tra va da de erro!

Nes ta fes ta lú gu bre do ano, cada um cons ta ta va as per das que ha via so fri do, o nú me ro dos que su cum bi am pe le jan do a seu lado nagran de ba ta lha da vida...

Aqui, era o pai de fa mí lia que ora va em pran to pela es po sa quefora dor mir o sono dos tú mu los; ali, a vi ú va de so la da e sem pão, queprepa ra va a ofe ren da fú ne bre para o ma ri do, que tão cedo lhe ca í ra dosbra ços; aco lá, a jo vem mãe que so lu ça va pen di da so bre um ber ço va zio...

E os con vi da dos da Mor te se gui am em pro cis são fú ne bre,com ra mos de sa u da des e amo res-per fe i tos, de sem pre-vi vas e ci pres tes,com gri nal das e em ble mas, no so le ne cor te jo, em que a ra i nha co ro a daera um es que le to com pa ne ja men tos ne gros, ten do em uma das mãosdes car na das uma foice, e na ou tra a am pu lhe ta sim bó li ca.

No meio das igre jas, aque la fi gu ra me do nha pa re cia o es pectrode um abu tre de Jo sa fá, pe ne i ran do de suas asas es gar ra das e hé ti cas acin za dos mun dos!

O dia de fi na dos su bor di na va-se a es ti los pre am bu la res. Opri me i ro cu i da do das fa mí li as era, com bas tan te an te ce dên cia, man dar fa lara um pa dre para di zer a mis sa pelo de fun to, re zar res pon sos e me men tos àse pul tu ra dos seus. Isto fe i to, en vi a vam-se emis sá ri os ao Ma me de da Sil vaPas sos, da Rua da Vala, ao Ra i mun do de Andra de Le i te, da Rua do Hos pício, ao Jo a quim Te i xe i ra de Cas tro, da Rua da Ca ri o ca, e a ou tros ar ma do res,para que fos sem armar à fren te das ca ta cum bas mu ra is e as ban que tas,colo can do so bre es tas as ur nas fu ne rá ri as, com ins cri ções e fe chos de pra ta, cir cu la das de cas ti ça is e ser pen ti nas do mes mo me tal, com ve las de cera.

À por ta dos tem plos, sa ne fas pre tas de lar gos apa nha dos, aga -lo a das de bran co ou de ama re lo, en chi am-se ao ven to, e, des de a vés pe ra

226 Melo Mo ra is Filho

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às três ho ras, até às seis da tar de se guin te, o car ri lhão dos mor tos so a vao la men to so ani ver sá rio.

De vés pe ra, igual men te, um povo es tra nho, de cal ça cur ta ees tre i ta, de bar ba ra pa da ou à in gle sa, de opa ver de, vara e pe que na ba cia de pra ta, afron ta va os tran se un tes, en tra va pe los cor re do res, ba tia nasró tu las, im plo ran do, com acen tu a ção pa u sa da e re ve ren te:

– Pra mis sa das al mas!...E os me ni nos e as mo ças, os ve lhos e os ra pa zes, da vam

esmolas de dinheiro, en quan to que o es cra vo de qui tan da ou do ga nhofazia di an te do ir mão das almas leve ge nu fle xão, an tes de de por so bre abacia re lu zen te um ovo, uma ba na na, uma la ran ja, ou uma mo e da de dez réis.

– As al mas san tas lhe aju dem; di zia o fi gu rão da ir man da de de S. Mi guel e Almas, pros se guin do, com a sua opa de seda, que lhe des ciaaba i xo da cur va das per nas.

– Amém, res pon di am, ben zen do-se, os po bres ca ti vos, com -pe ne tra dos de sua ação me ri tó ria.

E to dos os si nos do bra vam, pe din do su frá gi os pe los mor tos,ao pas so que imen so povo, ves ti do de luto, des fi la va tão pe sa ro so, quenem um sor ri so dou ra va-lhe o sem blan te se ve ro.

As mães con du zi am pela mão os tris tes fi lhi nhos, que le va vam àme mó ria pa ter na go i vos en la ça dos de ci pres tes; as fa mí li as en ca mi nha -vam-se às igre jas, com gri nal das de ci pres tes e de flo res, que de po si ta vamso bre o crepe das ban que tas e nos ân gu los dos os sá ri os; o es cra vo pro curava de prefe rên cia a igre ja da Lam pa do sa, de San ta Ifi gê nia, do Ro sá rio e deS. Do min gos, onde cho ra va os seus com pa nhe i ros de in for tú nio, nas co vassem le tre i ro e sem lu zes, em que ha vi am de sa pa re ci do.

E eram eles bem fe li zes, por que des can sa vam na casa deDeus!... Em épo cas an te ri o res, o ce mi té rio das ali má ri as, em Ca tum bi, ea vala de San ta Lu zia não dis tin gui am, no de sa bri go e no solo, o po brefi lho da Áfri ca do cão que se sa cia e mor re na lama das ruas!

E o vá cuo abria-se no lar... e os si nos do bra vam lú gu brescomo o pen sa men to da vida eter na...

Nos con ven tos e nas or dens ter ce i ras, onde o cul to dos mor tosre ves tia-se de todo o apa ra to li túr gi co, as pom pas fú ne bres do rito exe cu ta -vam-se ma jes to sas, de acor do com o ca rá ter de co ra ti vo do re cin to sa gra do.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 227

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No al tar-mor fe cha va-se o tro no com um véu pre to e do cel da mes ma cor,des ta can do-se ao fun do a sa cros san ta ima gem do Cris to, de ta ma nho na tu -ral, com o cor po che io de san gue e os olhos che i os de per dão. No pla noaba i xo do cru ze i ro, ele va va-se cus to so ca ta fal co, co ber to de ve lu do pre to,com uma cruz pra te a da ao lon go, la de a do de ci pres tes e seis to che i ros depra ta, ten do na fren te, que de i ta va para o ves tí bu lo, uma ca ve i ra as sen ta daso bre duas tí bi as cru za das, e a cada can to ins cri ções ti ra das da Bí blia:

Pul vis es, et in pul ve rem re ver te ris.Sic tran sit glo ria mun di.Homo na tus de mu li e re, bre vi vi vens tem po re, mul tis mi se ri is.Me men to mori, etc.À por ta de cada igre ja, um ir mão das Almas e uma chusma de

men di gos pe di am es mo las a quem en tra va – o que não lhes era recusado –,por in ten ção de al gum pa ren te mor to, pelo qual se com prome ti am are zar um Pa dre-Nosso e uma Ave-Maria.

– Pra mis sa das al mas!... re pe ti am a ins tan tes os pre pos tos dair man da de, adi an tan do a ba cia, e dan do a be i jar a vara de pra ta com aima gem es cul pi da de S. Mi guel e Almas.

E a mis sa es ta va no al tar, o can to gre go ri a no ba tia as suas ondas de sa gra da har mo nia, que re bo a vam no es pa ço e nas na ves, re fluindono co ra ção dos fiéis. De po is as es ta ções can ta das no cla us tro, os ofí ci os,os me men tos e as mis sas par ti cu la res em to dos os al ta res.

So bre as se pul tu ras do cor po da igre ja e dos cla us tros viam-se aqui e ali pa nos pre tos com cru zes de ga lão, e às qua tro ex tre mi da desri cos cas ti ça is com ve las ace sas...

E as flo res ser vi am de lá gri mas à mor te, como as lá gri mas deflo res à vida!

Nas ca ta cum bas ar ma das de ve lu do ne gro, so bres sa ía o nome do mor to que en cer ra vam dís ti cos, em ble mas, ins cri ções di ver sas.

Pa ra va-se di an te de cada uma, os me ni nos so le tra vam as som -bra dos as le gen das fú ne bres, os ve lhos ru mi na vam uma pre ce úmi da depran to, e es tes e os mais pen du ra vam às ma ça ne tas e à cruz in cli na dadas ur nas as gri nal das que iri am fa nar-se ao con ta to frio da mor te.

E os fra des, atra ves san do len tos aque las vas ti dões con sa gra das,mur mu ra vam o me men to, com a fron te pen di da e as mãos ocul tas na

228 Melo Mo ra is Filho

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man ga do bu rel, como se acom pa nhas sem so le nes uma pro cis são dealém-tú mu lo.

As gran des se nho ras, os per so na gens ilus tres, o ci da dão pou coavul ta do, a fa mí lia obs cu ra, o es cra vo, en fim, per cor ri am os tem plos, re zan -do as suas ora ções, en co men dan do os seus mor tos, as sis tin do às mis sas em su frá gi os, que di zi am-se até as três ho ras. Então o povo saía, dis per sa va-sesem tu mul to, côns cio de ha ver de sem pe nha do re li gi o sos de ve res.

Da qui e dali, no adro das igre jas, a mão de um po bre es ten -dia-se ao pas san te, e um coro de vo zes rom pia em tons pun gi ti vos:

– Pe las al mas san tas ben di tas!...E ou tro, mais for te:– Pra mis sa das al mas!E os si nos do bra vam pe los fiéis de fun tos, até que a no i te

aninha va-lhes de novo o tú mu lo no si lên cio e no mis té rio.Com a fe bre ama re la, fi ca ram abo li dos os en ter ra men tos nas

igre jas, ina u gu rando-se a aber tu ra dos ce mi té ri os pú bli cos em 1851,neces si da de esta re cla ma da pelo cres ci do obi tuá rio.

Des de logo, o dia de fi na dos to mou ou tra fe i ção, que se foiapa gan do pou co a pou co, e de que ape nas sub sis te uma idéia vaga,confu sa, pro fa na da.

Na pri mi ti va, po rém, quan do a ve ne ra ção pe los res tos dosque nos fo ram ca ros ain da era le gí ti ma, a he ran ça des ses cos tu mesmani fes tava-se pe las pom pas ex te ri o res do mo men to, re ver be ran dosobre a po pu la ção cla ri da des su a ves e pa trió ti cas.

De pé a tra di ção, a mu dan ça de lu gar de ter mi na ra li ge i rasvari an tes, e mais tar de es tú pi dos abu sos.

Como no pas sa do, as fa mí li as pre pa ra vam-se, con tra tan do sa cer -do tes para as mis sas, para os res pon sos nos ce mi té ri os. De vés pe ra, pelama dru ga da, par ti am es cra vos com gran des ta bu le i ros à ca be ça, sam bu rás,ces tos, etc., em que iam cas ti ça is com man gas de vi dro, ser pen ti nas e me da -lhões com em ble mas ade qua dos, or na men tos que a sa u da de ofer ta va emlem bran ça dos que ha vi am pu ri fi ca do na cam pa a ves ti du ra ter re na.

Os ne gros, na in so la ção do des cam pa do, lá per ma ne ci amtodo o dia, guar dan do a pra ta ria, mu dan do as ve las que se gas ta vam.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 229

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De vi do à dis tân cia, os ri cos, nas suas be las equi pa gens, e agen te mais mo des ta em om ni bus flu mi nen ses se gui am o mes mo iti ne rá rio,car re ga dos de flo res e co ro as fú ne bres, para de po si tar nos ja zi gos sun -tu o sos e na cova rasa, onde uma cruz de pau pin ta da de pre to davapran tos de or va lho às me mó ri as ig no ra das.

O povo, ca mi nhan do em de vo tas ro ma ri as, dis tri bu ía-se emdi re ções di fe ren tes, con for me os ce mi té ri os; mas con tri to, tra ja do deluto, com o bra ço en fi a do em co ro as de ci pres tes, con du zin do as suaslem bran ças fu ne rá ri as.

Ao avis tar-se a ci da de da Mor te, o co ra ção con fran gia-se, osen ti men to re li gi o so do mi na va da al tu ra ce les te, em ba la do pela bri sa que so lu ça va en tre os ar vo re dos iso la dos das lon gas ave ni das.

No már mo re dos car ne i ros, no chão do fos so fe cha do, umpai ou uma mãe, um pa ren te ou um ami go, de po si ta va, com as pál pe -bras in cha das de pran to, as suas ofe ren das en la ça das com lar gas fi tas,nas qua is o amor, a sa u da de, o de sa len to, la vra vam os epi tá fi os es pon tâ -ne os de amar gu ras que se ca lam.

Jun to aos tem plos, pa ra men ta dos de ca pas e ca su las pre tas, enas cape las do Caju, de S. João Ba tis ta e de S. Fran cis co de Pa u la, ospadres, em pre sen ça das fa mí li as, can ta vam os ofí ci os, ce le bra vam missas.

Sul can do os qua dros po pu lo sos dos ce mi té ri os, os mi nis trosde Deus re za vam me men tos, as per gi am as lou sas...

Como era edi fi can te aque le lú gu bre es pe tá cu lo! Como de vi am exul tar no Se nhor os os sos da que les mor tos!

De po is... tudo se foi! O már mo re dos tú mu los man chou-sedas nó do as do vinho e das obra das re fe i ções; a va i da de foi cus pir noesque le to de hoje – ela que será o es que le to de ama nhã; o sa cer do teagri de pe las pre fe rên ci as, como se a sua pre ce sa crí le ga pu des se ali vi ardas pe nas a se res mais pu ros!

Ra ras são as pes so as res pe i tá ve is e sé ri as que atu al men te ain davi si tam os ce mi té ri os. Des tas, al gu mas que o fa zem, pre fe rem as ho rasmais pró xi mas da ma dru ga da ou as mais dis tan tes do en tar de cer.

E as lu zes es tão qua se ex tin tas...Qu an do elas se apagarem de todo, é que a tre va não ca i rá

somen te so bre o cul to dos mor tos, mas so bre o cul to da Pá tria!

230 Melo Mo ra is Filho

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TRADIÇÕES

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A Fes ta da Mo a gem

(PROVÍNCIA DO RIO)

No Nor te e no Sul do Bra sil, as fes tas do tra ba lho, osju bi le us da la vou ra ti nham so bre a fron te gri nal das fres cas e odo rí fe ras,en ra ma das ao gos to dos es ti los sel va gens.

Aos har pe jos bár ba ros da flo res ta, ao ru mor sa crí le go queacor da va os er mos, os fa zen de i ros, em suas ca sas de vi ven da, fa zi am oscál cu los so bre os pro ven tos de suas plan ta ções e con si de ra vam no diada ina u gu ra ção da mo a gem, tra çan do pla nos ale gres e re a li zá ve is.

No Rio Bo ni to, em Ca pi va ri, na Boa Espe ran ça, em Ma ca cu e em toda a pro vín cia do Rio de Ja ne i ro, a co me çar de abril, al gu ma co i sade es tra nho se pas sa va nas fa zen das, de su sa da ati vi da de pu nha emalvoroço fo re i ros e es cra vos.

A gen te da re don de za, con vi da da ou não, dis pu nha-se acompa re cer à fes ta anu al agrí co la do mês de maio, épo ca em que to dosos en ge nhos prin ci pi a vam a fun ci o nar.

Aban do nan do por toda a du ra ção da mo a gem as suas mag ní fi -cas e con for tá ve is mo ra di as, al guns se nho res, acom pa nha dos por ve zes dafa mí lia, vi nham re si dir nos en ge nhos, fis ca li zan do di re ta men te o tra ba lho.

Des de maio, po rém, as en xa das e as fo i ces dos es cra voslampe ja vam ao sol, pro ce den do-se à ca pi na ge ral do ter re i ro e de suas

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pro xi mi da des, que abran gi am o in te i ro pe rí me tro, o qua dri lá te ro extensoocu pa do pe las cons tru ções prin ci pa is e rús ti cas da gran de pro pri e da de.

A casa de vi ven da, a do en ge nho, os pa ióis e de pó si tos, assen za las ex ten sas eram ca i a das e lim pas; a es cra va tu ra re ce bia ti mões deba e ta azul e rou pa de al go dão para o gas to do ano; e, de oito a quin zedias an tes da mo a gem, pro ce dia-se ao cor te das ca nas, que che ga vam em car ros de bois e fi ca vam sob os al pen dres ou em de pó si tos es pe ci a is.

Quem pas sa va en tão pela es tra da des fru ta va um es pe tá cu loaprazí vel, en can ta va-se di an te de uma pa i sa gem lar ga e pi to res ca, própriado nos so cli ma e do nos so meio, e de acor do com o de sen vol vi men tore la ti vo dos nos sos pro pri e tá ri os ru ra is.

Ani nha da de ba i xo de um céu sem né vo as e quen te de es plen -do res, a bela casa de vi ven da do fa zen de i ro opu len to do mi na va em umaemi nên cia, ele gan te e ava ran da da, so bre um ter re no am plo, ar bo ri za do e var ri do.

À cur ta dis tân cia, a fá bri ca do açú car le van ta va-se vasta, daal tu ra de dois an da res co mu men te, com suas va ran das com pri das, comseus al pen dres con tor nan tes.

Os pa ióis e as sen za las, em pla nos va riá ve is, acen tu a vam otom ca rac te rís ti co des ses nú cle os agrí co las, ou tro ra tão flo res cen tes ehoje qua se in fe cun dos.

Pon tes atra ves san do cór re gos, re ba nhos e bois nas pas ta gens,ca si nhas de sapé, ran chos dis per sos, e uma ou ou tra sen za la de cujo teto um es te io rom pen te se abria em ra mas e flo res – eis mais ou me nos umqua dro das nos sas an ti gas fa zen das, mo nó to nas até ao en fa do, à for çade se rem se me lhan tes.

Des de es cu ra ma dru ga da, en tre tan to, a vida ne las se re a ni mava, es pe ci al men te no tem po da mo a gem e da sa fra.

Os es cra vos, sa u da dos pelo cân ti co das aves, pelo mur mú rio dos rios, pelo espada nar das cas ca tas, sur pre en di am as au ro ras do sol que osencon tra vam no eito; os car re i ros se gui am à fren te dos tar dos bois, aoguincho dos car ros; e os can tos dos ne gros em tur mas eram acompanha dosem sur di na pelo ci cio dos ca na vi a is às vi ra ções do ama nhe cer:

’Sta va na pra ia es cre ven doQu an do o vapô api tou:Foi os olhos mais bo ni tosQue as on di as do mar le vou!...

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Mi nha se nho ra, me ven da,Apro ve i te seu di nhe i ro;De po is não ve nha di zen doQu’eu fugi do ca ti ve i ro.

Eram os po bres es cra vos do Nor te que car pi am as suas sa u dades! Era um pen sa men to tal vez de su i cí dio, uma idéia de mor te tar jan do deluto a es plên di da aqua re la da na tu re za!...

Mas o dia da fes ta es ta va mar ca do, e com an te ce dên ciaultimavam-se os apres tos.

De vés pe ra, a casa do en ge nho e as mais cons tru ções ador na -vam-se, in ter na e ex ter na men te, de tro féus, de pen dões ve ge ta is en tre meados de flo res sel va gens, de ra ma gens e pal mas, de fes tões e ar ca das de fo lha gens;no ter re i ro, as ban de i ras, co lo ca das de dis tân cia em dis tân cia, flu tu a vam naextremi da de dos bam bus fle xí ve is e ver des; e aqui e ali os mo le ques ene gri nhas, sal tan do e brin can do, olhan do es pan ta dos, chus ma vam emalgazar ra, aque les com a ca mi sa aber ta no pe i to, mos tran do ao colo umafi gu ri nha suspen sa, um ben ti nho ou um ro sá rio de de vo ção ma ter na.

Ma ta va-se um boi para o ban que te dos se nho res e ra ção doses cra vos, carne i ros, ga li nhas, etc., in cum bin do-se a dona da casa, a família do agri cul tor, da di re ção das es cra vas do ce i ras, das que ar ran ja vam oneces sá rio para os con vi da dos e hós pe des.

De vés pe ra tam bém, já se acha vam na fa zen da os com pa drese os ami gos do es ti ma do se nhor e que ti nham vin do de lon ge com suasfa mí li as.

Os fo re i ros aju da vam os es cra vos nos pre pa ra ti vos, a mú si case acha va avi sa da, e os fo gue tes, com pra dos na ci da de, en chi am o re can to de um apo sen to, para a oca sião opor tu na.

As mo ças ro mân ti cas, im pres si o ná ve is e me i gas, so nha vamcom os pri mos ba cha réis; os co ro néis da Gu ar da Na ci o nal con ver sa ri am so bre ele i ções; e as in fluên ci as lo ca is não per de ri am a vasa para a ca ba la, para apre sen tar o seu can di da to ao fu tu ro ple i to ele i to ral.

No dia da mo a gem, ape nas a luz da ma nhã es ta va em casa deCris to, lá vi nham con vi da dos a ca va lo, fa mí li as em car ros de bois comtol dos de es te i ras ou de chi tão la vra do, in di ví du os de toda a cas ta,muitos dos qua is des cal ços, tra zen do às cos tas sa pa tos en fi a dos no ipé.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 235

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No dia da mo a gem...

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Na va ran da de sua ha bi ta ção, o fa zen de i ro e a fa mí lia, des demu i to cedo, lo bri ga vam os con vi da dos que se apro xi ma vam.

O fa zen de i ro, com seu ro da que e cal ça de brim par do, seucha péu-de-chi le ou ma ni lha, pon do ao lado a xí ca ra de café, es ten dia amão so bre a tes ta, para me lhor dis tin guir os vul tos; a mu lher e as me -ni nas, pen te a das e pron tas, cres ci am da pon ta dos pés, alon ga vam opes co ço, aven tu ran do no mes, re cor dan do ape li dos.

E os pri me i ros che ga vam, os es cra vos to ma vam os ani ma is, as fa mí li as ape a vam-se. O fa zen de i ro e os seus os re ce bi am, en tre gra ce jose abra ços, riso fran co, pro por ci o nan do-lhes hos pi ta li da de pro ver bi al ean ti ga.

Até alto dia era a mes ma lufa-lufa: pro gres si vo con cur so depovo, a ale gria mais sin ce ra, os de ve res ob se qui o sos mais dis tin tos...

O ban do de mo ças, as gen tis ro ce i ras, ta ga re la vam, riam dequal quer coisa, fa zen do con tras te com as que não se le van ta vam dasca de i ras, con ser van do-se mu das, apa ler ma das.

As mo ças da cor te e as mais in te res san tes e in te li gen tes e dafre gue sia fa la vam em na mo ro com os ra pa zes, re ci ta vam a ba la da daMore ni nha do Dr. Ma ce do, ti nha de cor as po e si as sen ti men ta is dos po e tas do tempo.

A fa zen de i ra, com seu ves ti do de mus se li na, tre pa-mo le que, elen ci nho ao pes co ço, des fa zia-se em de li ca de zas, em ofe re ci men tosaos con vi da dos, pro cu ran do-lhes o con for to, a sem-ce ri mô nia maiscor di al.

Nes te ín te rim a casa da mo en da aca ba va-se de ar mar, osescra vos es ta vam a pos tos, os cal de i rões are a dos e es pe lhan tes, o for nopro vi do de le nha.

A um momen to ines pe ra do, a mú si ca da vila to ca va ao longe,asso man do em um car ro de bois, todo en fe i ta do de flo res eramagens, tra zen do o guia o cha péu cir cu la do de flo res do mato, lindas e vis to sas.

O pra zer, que com as har mo ni as, mes mo lon gín quas, se es pa -lha va na fa zen da, era in di zí vel: to dos cor ri am às va ran das; as mu ca mas e

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 237

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as crias des ci am à por ta; os fo re i ros sa íam de suas ca sas de sapé,chegan do-se ao ter re iro.

Ape sar do pro di gi o so nú me ro de con vi da dos, da pa ren te lasem fim dos do nos da casa, do povo que se re u nia em fes ti vo con ví vio,uma nota dis cor dan te se aper ce bia, ca u san do ge ral in qui e ta ção e sen sível im pa ciên cia: a au sên cia do vi gá rio!

Era da tradi ção que, não se ben zen do o en ge nho em cadasafra do ano, tudo cor ria mal: os es cra vos mor ri am ou de ce pa vam asmãos nas mo en das; um de sas tre qual quer per tur ba va a paz da fa mí lia;um acon te ci men to fa tal pu nha em atra so a vida do fa zen de i ro.

No ple no do mí nio des ta su pers ti ção, que acre di ta mos umaver da de, o não com pa re ci men to do vi gá rio im por ta va a trans fe rên cia dafes ta, ou a pro cu ra de ou tro sa cer do te, que nem sem pre era fá cil,concor ren do esse ex pe di en te, em bo ra au to ri za do, para res sen ti men tosda par te da que le: o que cum pria evi tar.

Como é de pre ver, as mo ças fa zi am pro mes sas, acen di am a Nos sa Se nho ra, pe di am a to dos os san tos para que nada lhe ti ves se

238 Melo Mo ra is Filho

Fa zen de i ro na varanda

Page 223: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

acon te ci do, sen do logo en vi a dos pa gens a ca va lo à fre gue sia, a fim dein da gar do mo ti vo da tar dan ça.

E a mú si ca des cia... E de um dos car ros co ber tos de col chasde chi ta, que se enca mi nha vam após, ape a va-se o fol ga zão e né diovigário, tra zen do con si go a es par ra ma da co ma dre e a ré cua de afi lha dos...

A re cep ção, de ba i xo de vi vas, tor na va-se es tre pi to sa; e ovelho fa zen de iro e sua mu lher, as pes so as mais gra das e os pri me i ros per so -nagens po lí ti cos da lo ca li da de ba ti am pal mas, di ri gi am-se a ele, aosaper tos de mão, aos abra ços, em ex pansi vas mani fes ta ções.

Pou co de po is, o vi gá rio e seu sa -cris tão ti ra vam de uma ca i xa de fo -lha-de-flandres os seus pa ra men tos, a gen tetoda se guia para a mis sa e de po is para a casada mo en da, for man do um der ra de i ro gru po o fa zen de i ro, o vi gá rio o juiz do ter mo, o juizde paz, e suas com pe ten tes fa mí li as.

Uma vez na casa do en ge nho, agen te toda fi ca va em ba i xo, na gran de áreaocu pa da pela al man jar ra, as cal de i ras, osalam bi ques, os co chos, o orno, etc., in dis -pen sá ve is ao fa bri co de açú car e da aguar -den te.

O vi gá rio, de ba ti na, so bre pe liz ees to la, ten do ao lado o sa cris tão, abria o li vrosa gra do, ao pas so que mu i tos dos cir cuns tan -tes re ce bi am to chas en fe i ta das e ace sas.

As mo ças e as ma tro nas, em fi -le i ras su ces si vas, com seu sé qui to de be las mu ca mas, as sis ti am igual men te ao ato ves ti das à moda, so bres sa in doem suas ves ti men tas e nos ca be los la ci nhos de fi tas ver des e ama re -las, flo res na ti vas.

E o vi gá rio co me ça va a bên ção do en ge nho, fin da a qual fe cha va o li vro e afas ta va-se, ce den do es pa ço à ce ri mô nia da ina u gu ra ção.

A mú si ca, em de sa fi na ção cons tan te, atro a do ra a fa zerdesper tar um ca ta lép ti co, pas sa va-se da ce le bra ção re li gi o sa para a fes ta

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 239

O vigário

Page 224: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

pro fa na, ao es tou ro dos fo gue tes que se ata ca vam lá fora, das gi rân do las que si bi la vam in ter mi ten tes até a con clu são da ce ri mô nia.

Nes ta oca sião, mu i tos dos cir cuns tan tes, ho mens, senhoras ecri anças, su bi am para as va randas interi o res, apa ra to sa men te ornadas, e dali go za vam da fes ta da mo a gem, pro pri a men te dita, da ina u gu ra ção anual dos tra ba lhos da fá bri ca, se gun do o ri tu al ob ser va do por nos sos la vra do res...

E as mo ças aos co chi chos, às ri sa di nhas, nos re que brosdescon fiados, adi an ta vam-se para a al man jar ra, pas san do a cada umadelas sua vis to sa mu ca ma um fe i xi nho de ca nas ras pa das, pre sas porlaços de fi tas, que eram de li ca da e cu i da do sa mente co lo ca das por suassenho ras den tro dos ci lin dros da moenda.

A mú si ca ator do a va ain damais, as pal mas cho vi am, e um mo le -quinho, de rou pa bo ni ta e cha péu en tre -meado de fo lhas e flo res, tre pa va naboléia fixa a uma das hastes do triân gu loda al man jar ra, to ca va a pa relha de bur ros, fa zen do gi rar todo o maqui nis mo.

Os es cra vos em pre ga dosnesse tra ba lho de ban da vam, cada qualpara seu mis ter es pe ci al, com gran deses cu ma de i ras e ou tros uten sí li os daindús tria.

Então o vi gá rio, o fa zen deiro,o ma da mis mo e mais cir cuns tan tes, que pre si di am a ina u gu ra ção, re u ni am-seaos con vi da dos, que se acha vam nasva ran das, se guin do to dos em ru i do safo lia para a casa de vi ven da, onde la u tare fe i ção, opí pa ra me ren da era ser vi da,trocan do-se brin des ca lo ro sos, en tu siás -ticos.

E o en ge nho moía ati vís si mo, es go ta do o pri me i ro cal do, lavados os con du to res.

Em seguida, em riquíssimos bules de prata, levavam asescravas saboroso caldo de cana, geralmente apreciado, sobretudo porser o da primeira moagem.

240 Melo Mo ra is Filho

A mu cama

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Toda a escravatura, os foreiros em tropa e os conhecidosdestes, apreciavam, no terreiro e na fábrica, o caldo que se distribuía agranel, em cuias de cabaço amargoso, ao uso da roça.

Nesse dia, à ex ce ção da gen te do en ge nho, nin guém maistrabalhava: os es cra vos ba tu ca vam de po is do jan tar; os fo re i ros dan ça vame can ta vam; os se nho res mo ços pre sen te a vam as cri ou las e as mu la tasde estima ção com be los cor tes de ves ti dos de chi ta e de cas sa, fios decorais, brin cos de ouro, etc.

Des de o ano i te cer a mú si ca pre lu di a va o ba i le, que co me ça va àsnove ho ras e fin da va de ma nhã.

Aos que ha vi am as sis ti do à ina u gu ra ção era de cos tu memandar-se po tes de me la do e ra pa du ras, como lem bran ça da fes ta.

E en quan to o ba i le es tu a va nos sa lões dos se nho res, en quan toa sor te co ro a va de bens a opu lên cia, à luz fu ma ren ta dos can de e i ros domuro ex terno das sen za las, ao fogo de pe que nas fo gue i ras que ar di amtími das, os es cra vos dan ça vam as suas dan ças, can ta vam as suas to a das,aos ti ni dos das vi o las, dos uru cun gos e das ma rim bas, tan gi das na so li dão:

A vida do pre to es cra voÉ um pen dão de pe nar:Tra ba lhan do todo diaSem no i te pra des can sar.

E um mo ra dor, sa pa te an do na chu la ani ma da e fer ven te:

A ca cha ça é moça bran caFi lha de par do tri gue i ro:Quem bebe mu i ta ca cha çaNão pode ajun tar di nhe i ro...

Cana ver de, cana ver de,Cana do ca na vi al,Eu já fui mes tre d’açúcar,Hoje sou oficial.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Uma se ma na mais tar de tudo es ta va mu da do. A fa zen da,

ador me ci da à me ia-noite, to ma va um as pec to si nis tro e ater ra dor.Os va ga-lumes fa is ca vam no cam po e nos te tos das senzalas; a

forna lha do en ge nho, como o olho es bra se a do de um de mô nio, gol fejavacha mas nas tre vas que fu gi am es pa vo ri das; e o si lên cio, pe sa do comouma mor ta lha, caía so bre a pla ní cie e a co li na.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 241

Page 226: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

De es pa ço a es pa ço, porém, uma me lo dia em voz rou ca,monó to na e ca den ci a da como o co a xar dos remos na tra ves sia dascano as, fe ria o ar, des per tan do os ecos dos er mos...

Era um ve lho afri ca no, so no len to e al que bra do, que, sen ta dona al man jar ra, to ca va os ani ma is que a ro de a vam ler dos e fa ti ga dos:

Eh-ban go!Ban go-eh!Ca xin gue lê...Come coco no cocá...Tan go, ari rá...Tan go, ari rá...

E o chi co te es ta la va, com ple tan do a ono ma to péia des ta to a da que ter mi na va si lá bi ca, pa u sa da, ad mi ra ti va e es ta can do de sú bi to:

Eh – ah!...

Uma vez ina u gu ra da a mo a gem, os es cra vos tra ba lha vam dia e no i te, em tur mas al ter na das, mas sem pa rar.

O tem po da sa fra du ra va por me ses.

242 Melo Mo ra is Filho

O pri me i ro caldo

Page 227: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Um Ca sa men to de Ci ga nos em 1830

Em 1830 as clas ses so ci a is no Rio de Ja ne i ro acha vam-sepor tal for ma dis cri mi na das, que a con fu são tor na va-se inad mis sí vel,irre a li zá vel.

As cas tas, por con se guin te, obe de cen do a esta lei, vi vi amextre ma das, com suas usan ças e cos tu mes pró pri os, com suas tra di çõeses pe ci a is e an ta go nis tas.

Nes sa épo ca mu i tís si mos eram os ci ga nos aqui re si den tes,en tre gan do-se ao co mér cio de es cra vos e ca va los, em pre ga dos no foro e em vá ri os mis te res, to dos po rém cons ti tu í dos em so ci e da de à par te,onde man ti nham, sem a me nor que bra de le al da de, as suas tra di ções eos seus pre ju í zos de raça.

Ha bi ta vam ge ral men te o Va lon go e a Ci da de Nova.Po bre, abas ta do, ou opu len to, o seu lar pri ma va por es ti los

par ti cu la res e an ti gos.Sur gin do dos ne vo e i ros pré-históricos ou não, o cer to é que os

ci ga nos al te a vam-se à per fec ti bi li da de so ci o ló gi ca, no to cante à ins ti tu i ção da fa mí lia. Pelo viço de suas le gen das, pelo sim bo lis mo de suas ma ni fes -tações, pela in vi o la bi li da de de seu re gí men pri va ti vo, po dia ex clu ir-se deseu meio a po li ga mi as, a pro mis cu i da de, o in ces to, etc., sen do uni ca men te

Page 228: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

ado ta da en tre eles a mo no ga mia como união se xu al, es ta do este queassinala o ple no de sen vol vi men to das coleti vi da des hu ma nas.

Como con jun to ét ni co, o ca sa men to dos ci ga nos, até 1830,abran gia toda uma sé rie de par ti cu la ri da des tí pi cas da raça, com ple ta -men te des se me lhan tes das que se no ta vam nas ou tras, que mais in fluíram na nos sa for ma ção na ci o nal.

A in ter ven ção pa ter na como me di a ne i ra nos con tra tos; osusos ex cên tri cos en tre os no i vos e pa ren tes; a le al da de da re ve la ção quein fa ma va; a pro va sa cra men tal do gade (ca mi sa), que as sen ta va so bre avir gin da de as ba ses da fa mí lia nas cen te, im pri mi am nes ses pac tos umaca rac te rís ti ca sem ana lo gi as nas nos sas ca ma das po pu la res.

Entre ci ga nos o es crú pu lo de cor po es tra nho (pes soa de raçadiversa) de ter mi na va ali an ças en tre pa ren tes pró xi mos, e daí a plu ra lidadede ca sos pa to ló gi cos, bem como três ou qua tro in di ví du os sur dos-mudosem uma só fa mí lia, o que muitas ve zes ob ser va mos.

No con cur so dos se xos não trans mi ti am ape nas he ran çasfisi o ló gi cas e mórbi das, ca rac te res re du tí ve is e ir re du tí ve is, po rém aindi vi du a li da de mo ral que va ria como as pec to, mas que não se eva po racomo es sên cia.

Re fe rin do-nos aos ca sa men tos dos ci ga nos no Rio de Ja ne i roem 1830, po de mos afir mar que tudo se pas sa va como na pri mi ti va, nodi zer insus pe i to do Sr. Pin to No i tes, o mais alto re pre sen tan te dosinstin tos nô ma des de seu povo.

Dele, que arma a sua bar ra ca ao ven to lú gu bre das nos sasflorestas e dos ve lhos ci ga nos que co nhe ce mos, pas se mos às in for mações,que são tan to mais exa tas quan to fo ram eles per so na gens au tên ti cos.

Em ge ral o amor não to ma va par te nes ses atos. Não eraneces sá rio, para que as ali an ças se re a li zas sem, sim pa tia co mum, es treme -ci men to, afe to.

Daí in su ces sos fre qüen tes, que se ma ni fes ta vam pelo en fa do e des pra zer de uma vida in te i ra, da mu lher e do ho mem, cons tran gi dospelo de ver a ri sos fin gi dos, e a sor ve rem re sig na dos a úl ti ma gota deamar gu ra que lhes en ve ne na va os dias.

244 Melo Mo ra is Filho

Page 229: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Essas núp ci as re a li za vam-se fa tal men te, como por des fas tiodos pais, que se lem bra vam de que um fi lho es ta va em ida de de to mares ta do, não as sis tin do aos da no i va o di re i to de re cu sa.

Ao ver dos ci ga nos, o do mí nio da igual da de era ab so lu to. Ne garuma moça pe di da em ca sa men to, im pli ca va es ta be le cer uma luta de pre con -ce i tos, em que o pro vo ca dor te ria de ser ven ci do pe las acu sa ções, ex pon doa mur mú ri os ma lé vo los e à ca lú nia uma re pu ta ção às ve zes ima cu la da.

Co nhe ci do o di le ma, o sim cons ti tu ía a re gra, a me nos que ara pa ri ga não hou ves se tro pe ça do na de son ra.

Os trâ mi tes a se guir eram vul ga res, e as ce nas des dobravam-se na tu ral men te.

Assim, quan do um bato (pai) tinha um fi lho, ma i or de de zessete anos, ofi ci al de jus ti ça ou com um em pre go qual quer, di ri gia-se com eleà casa de ou tro bato, que ti ves se uma fi lha nú bil.

À dis tân cia, per ce bi das as in ten ções, este os re ce bia fa vo ra vel -men te, com agra dos de cla ma tó ri os, mo dos ex pan si vos, di tos chis to sos...

E os dois con fe ren ci a vam em se gre do, por al gum tem po...O ra paz, des con fi a do e tí mi do, de pé e afas ta do, es co ran do

uma apor ta da, alon ga va o olhar de sos la io, es ti ra va o pes co ço, sus pen dia a res pi ra ção, apa nhan do no ar fra ses des co ne xas.

Se a fi lha não es ta va pura, o po bre pai, que por ins tan tesacarici a ra uma ilu são, co bria o ros to de ver go nha, la men ta va-se, e,soluçan do, des ven da va o mis té rio da dor que o pun gia.

E esta le al da de não o avil ta va di an te dos seus, mais tar desabedores do ocor ri do, nem no âni mo do pro ge ni tor do ma lo gra donoivo, que o acon se lha va de ca sá-la com um quer da pa nim (es tran ge i ro),al vi tre ace i to sem exa me e pos to em prá ti ca em se gui da.

O con trá rio, po rém, dava-se, quan do a mãe de ama nhã fos sevir gem hoje.

O ave lhan ta do bato, ra di an te de jú bi lo e fe li ci da de, ven doafun dar-se no tú mu lo, mas res sur gir no fu tu ro, cha ma va a fi lha e, trê mu lode con ten ta men to, ar re ba ta do de en tu si as mo, en tre ga va ao ho mem desua cas ta um te sou ro de vir tu des para a ri que za de sua pro le.

Então o pai do pre ten den te di ri gia-se a este:

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 245

Page 230: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Apro xi ma-te, che ga-te, meu fi lho. Olha que teu tio ace i ta atua mão e se com praz de que fa ças par te de sua fa mí lia.

O fi lho, obe de cen do:

– Agra de ço, meu tio, a hon ra que me dá, cer to de que en -quan to eu ti ver um pra to de fe i jão e uma pi tan ga, sa be rei re par tir com suafi lha e mi nha fu tu ra con sor te.

Nes ta oca sião apa re cia a so gra, com uma chus ma de fi lhos,pa ren tes e es cra vos, en di re i tan do o xale ver me lho, pu lan do de sa tis fe i ta, rin do e gri tan do.

O pri mo, pai do no i vo, en fi a va as mãos nas al gi be i ras do co le te,em perti ga va-se, e de po is, com os abra ços aber tos, cor ria para ela,trocan do-se pro tes tos cor di a is e amis to sos.

O no i vo be i ja va-lhe res pe i to sa men te a des tra, to ma va a bên ção ao so gro, in cli na va-se di an te de sua no i va, e um pe que no diá lo go se en ta bu la va:

246 Melo Mo ra is Filho

O pe di do de casamento

Page 231: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Só lhe pos so ga ran tir, meu pri mo, que sua fi lha nun ca sear re pen de rá. Meu fi lho – não é por que o seja! – é mu i to ga nha dor da vida:tem que da para as bar ga nhas, não tem ví ci os, é hu mil de e, en fim – ébom à boca che ia! Qu an to ao ser po bre, to dos o são.

– Sim, meu pri mo, eu sei o quan to ele é bom, e fo ram sem prees tes os meus de se jos: o que se quer é for tu na.

É ver da de, in ter rom pia a re fle ti da so gra, a sor te é que étudo.

– Di zes bem, mi nha fi lha, acres cen ta va a avó; é só dela queca re ce mos.

– Qu an to à me ni na, pros se guia o pai or gu lho so – é o que sevê: mu i to la xin zi nha (boa); é mes mo uma alma de Deus. Dê-lhe seu fi lho um ves ti di nho de chi ta, uns ta man cos e ba nha para os ca be los, quan doela pre ci sar, e é bas tan te para ser mos to dos fe li zes.

– Isto, res pon dia o pai do no i vo, terá ela, gra ças a Deus,por que o me ni no tem ba que (fe li ci da de) para di nhe i ro e não é co co não(men ti ro so).

Ter minados os in ci den tes da ne go ci a ção, na que os ve lhosciganos cha ma vam dar a bar ro a da, co me ça vam logo a en trar os tios,compa dres, pri mos e mais pa ren te la, que vi nham dar os pa ra béns.

A casa era la va da de pon ta a pon ta, o so a lho co ber to deareia, e en fe i ta vam a ta lha de ra ma gens flo ri das.

Duas ou três vi o las, en cor do a das de novo, de vi am fi car àes pe ra dos to ca do res dos bró di os, que prin ci pi a vam na no i te ime di a ta àdo pe di do, e se pro lon ga vam até a do no i va do.

Em to das as di re ções par ti am emis sá ri os, por ta do res depar ti ci pa ções e con vi tes.

Esta for ma li da de era de ri gor, não se ex ce tu an do mes mo osini mi gos; por quan to, o ca sa men to e a mor te, eram para eles os acon te ci -men tos mais so le nes da vida.

Na ma nhã se guin te, ao le van tar do sol, o no i vo, pres su ro so,mimo se a va a no i va com um enor me ra ma lhe te de cra vos bran cos e encar -na dos, e, con se cu ti va men te, com ou tras dá di vas es pon tâ ne as, bemcomo sa bo ne tes fi nos, pe ças de fita cor-de-rosa, ama re la, es car late; cortes

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 247

Page 232: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

de ves ti dos en car na dos, cor de cra vo, ama re los e azu is; len ços bor da dos de vá ri os matizes, tudo isto acom pa nha do de jas mins-do-cabo, alecrim,cra vi nas, etc...

Di a ri a men te, para quan tos che ga vam, es ten di am-se es te i ras re -ple tas de igua ri as es qui si tas: en so pa dos, abun dân cia de as sa dos e gran -des lom bos de car ne de por co, vi an da so bre mo do es ti ma da ape los ci ga -nos.

Ergui am-se brin des, ras ga vam-se cum pri men tos, be bia-se comen tu si as mo à sa ú de do di to so par.

Ao ano i te cer, as dan ças, os cho ra dos de vi o la, os fan dan gos,aos bri lhos das lu zes nas man gas de vi dro e nas ser pen ti nas, ao aro maen can ta do das flo res na ti vas exor nan do as por ta das e os apa ra do resmag ní fi cos.

E o bró dio co me ça va...

– Ó me ni no, di zia um velho ci ga no, bar ri gu do e tri gue i ro,com seu cal ção de gan ga ama re la, gri lhão de ouro, de po is de sor ver uma pi ta da de amos tri nha, ao to ca dor que pon te a va: bate no pi nho! (vi o la), fazba bar as ra pa ri gas!

E ágil, um ra pa gão pu la va no meio da sala e can ta va:

So bre mim ra i os des pe jeO céu que nos ouve ago ra,Se so bre a mi nha von ta deNão tens man do a toda hora!...

Ter mi na da a qua dra, que bra va ao cor po, aba i xa va-se, pu xa va a fi e i ra di an te de uma moça, que le van ta va-se. Ro da vam duas ve zes, paravam defron te um do ou tro, afas ta vam-se, apro xi ma vam-se, sal tan do, dan çan do,can tan do:

Os fer ros d’el-Rei são du ros,Mas o de amor é mais for te;Para os d’el-Rei há a lima,Para o de amor só a mor te.

Ê lê... lê... lê... E lô... ê lá....

248 Melo Mo ra is Filho

Page 233: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

As dan ças fer vi am no ro do pio, o sa pa te a do era mais cé le re, edo ces can ti gas cor ri am à por fia.

No fer vor do ba i la do a dama fi ca va só, por que o ca va le i rosen ta va-se. Às suas se du ções ou trosnão re sis ti am e dan ça vam...

E a vi o la dava afi na ção maisalta, os im pro vi sa do res im pro vi sa vamno vas qua dras, e os ve lhos ani ma vamos dan çan tes:

– Bota por ba i xo, me ni no!tudo por ba i xo!...

Aos cla mo res des tes, du pli ca -va, cres cia o en tu si as mo, e, da qui dali, da -co lá, saía um – bota aba i xo! – cor ta-jaca!– bra vos da le tra! – que ex pri mi am osupre mo do jú bi lo, a ma i or glo ri fi ca ção.

No dia do no i va do, que caíasem pre em um sá ba do, en fe i ta vam a casacom apa ra to e gos to.

À por ta fin ca vam be lostroncos de man gue i ra, e a at mos fe ra que se res pi ra va lá den tro trescala vade odo res in dis tin tos, pela mis tu ra das essên ci as acres com o fumo doben jo im e da al fa ze ma que ar di am.

Às três para as qua tro ho ras da tar de a ha bi ta ção en chia-se degen te; os vi zi nhos abe lhu dos es ta vam aten tos, e os tran se un tes pa ra vamna rua.

No meio da lufa-lufa, as ma tro nas que acom pa nha vam osno i vos, os pa dri nhos, a fa mí lia, en ca mi nha vam-se à fre gue sia.

Para os atos a que nos re fe ri mos, ha via qua tro ma dri nhas:duas iam à igre ja e duas fi ca vam.

Re ce bi dos em ma tri mô nio, de vol ta do tem plo, ata ca vam-segi rân do las; e, ape nas os es po sos trans pu nham o lar, cas ca tas de flo res ca íam-lhes so bre a fron te, iri sa das e odo rí fe ras.

Os me nes tréis pre lu di a vam nas vi o las as suas to a das, osim pro vi sa do res im pro vi sa vam os seus epi ta lâ mi os ins pi ra dos, e os

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 249

O bró dio

Page 234: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

con vi da dos, de to chas ace sas, for ma vam alas, por onde pas sa vam osre cém-ca sa dos.

Des de este ins tan te a ani ma ção era mais viva, mais es tri den te...As cas ta nho las es ta la vam como be i jos no ar...As vi o las, en fe i ta das de fi tas vis to sas e es tre i tas ti ni am, oi ta va -

das pe los me nes tréis ha bi lís si mos...Os ve lhos e as se nho ras mais ido sas ali se acha vam, sen ta dos

em seus pol tro nas, com seus cos tu mes bo ni tos e pi to res cos. As lu zes, ape dra ria e o ouro tre mi am na sala, ven cen do-se ape nas no bri lho osolha res ne gros e úmi dos das for mo sas ci ga nas, ide a is e en can ta do rascomo as mu lhe res da Bí blia.

E o bró dio prin ci pi a va, com suas dan ças quen tes e ori gi na is,com suas so nân ci as agra dá ve is e de tra di ci o nal po e sia:

Nas ci da des do Re i noNão se anda de no i te,Pro mode o se re no...

E to dos re pe ti am em coro:Ai! Se re no!...Ai! Se re no!....

Sa pa to de seda,Pêlo de al go dão...

Ai! Se re no!...Ai! Se re no!...

À meia-no i te re ti ra vam-se to dos paraum lado da sala, adi an tan do-se os no i vos e asduas ma dri nhas.

As vi o las e as can ções vi bra vam maisfor tes...

So bre um mó vel, cin co len çóis, al voscomo uma hós tia, aro ma ti za dos com al fa ze ma esal pi ca dos de flo res, acha vam-se su per pos tos.

Qu a tro to chas ace sas, en cos ta das auma mesa, der ra ma vam so bre o li nho ra i os deâm bar e ouro... As ja ne las fe cha vam-se, a in qui e -ta ção trans pa re cia em to dos os sem blan tes: orito sa gra do do gade (ca mi sa) ia cum prir-se.

250 Melo Mo ra is Filho

Qu a tro to chas e cin co len çóis

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E os pa dri nhos, que tam bém eram qua tro, des do bra vamos len çóis, que sus pen di am aci ma da ca be ça, jun tan do as ex tre -midades, pas san do um ao ou tro os cí ri os que sus ti nham, alon gan do obra ço oposto, e for ma vam o quar to onde o sa cri fí cio in cru en to iacelebrar-se.

Então nele en tra vam os des po sa dos e duas sa cer do ti zas.Os ins tru men tos tan gi am mais vi go ro sos, como para aba far

qual quer ge mi do de dor.Uma das ma dri nhas des pia a no i va e de i ta va-a so bre um le i to...E ofi ci a va...Ves ti da no va men te, a um si nal con ven ci o na do, os pa dri nhos

lar ga vam os len çóis, e o ma ri do mos tra va no gade as lá gri mas de san gueda vir gin da de, aos ala ri dos do fes tim.

Depo is da mú si ca e dos can tos, das palmas e das flo res, ono i vo re ci ta va um discurso. O fi nal do que pro nun ci a ra o Sr. PintoNo i tes é tex tu al men te este:

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 251

O quar to de cin co lençóis

Page 236: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Se nho res! Os meus lou vo res e a mi nha em ba i xa da es tãodes cri tos no qua dro da for mo su ra de Lu í sa, meu te sou ro!

Bra vos, trovas, fe li ci ta ções!...O gade, so le ne men te acon di ci o na do, em be bi do de aro mas su a ves

e co ber to de folhas de ale crim, fi ca va per ten cen do ao esposo, que oguar da va para sem pre como pe nhor de sua ali an ça.

E o bró dio re co me ça va, acor dan do a no i te com o sa pa te a dodos fan dan gos, o ti ni do das vi o las e as can ti le nas me i gas e plan gen tes:

Sa pa to de seda,Pêlo de al go dão...

Ai! se re no!Ai! se re no!

252 Melo Mo ra is Filho

O gade

Page 237: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A Fes ta dos Mor tos

(ALAGOAS)

Além... mu i to além... lá no es pa ço que não tem fim,ele va-se, ne bu lo so e som brio, o pór ti co no tur no da vida eter na...

E sus pen so às ar ca ri as te ne bro sas, o can de e i ro de bron ze daMor te des pe de ra i os lí vi dos so bre as le giões es pec tra is que tor ve li nham,e so bre as ca ra va nas dos vi vos que se es tan ci am no li mi ar, em ro ma gempi e do sa e fú ne bre.

É que a hu ma ni da de pri mi ti va en ca ra va a mor te como a con -ti nu a ção da vida; o tú mu lo, como um pou co de jor na da que re co me ça -va, pro cu ra va unir a ter ra da luta à ter ra do sono, ilu dir as tris te zas damor te com os em ble mas ri so nhos da vida.

Daí os ri tos fu ne rá ri os en tre to dos os po vos, as ce ri mô ni aslus tra is e pro pi ci a tó ri as da ge ne ra li da de das re li giões, o cul to dos mor -tos, isto é, as co me mo ra ções in di vi du a is e co le ti vas, que se fa zem poraque les que de nós se fo ram para sem pre.

Su bor di na da a leis evo lu ti vas, ao grau de apu ro men tal dasso ci e da des, a idéia de imor ta li da de do es pí ri to ou des te vin cu la do à ma té ria cri ou fór mu las tan gí ve is, ri tos es pe ci a is, es ta be le cen do como que um

Page 238: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

pro lon ga men to, en cos tan do como que uma es ca da mis te ri o sa à té tri camu ra lha, por meio dos qua is se co mu ni cas sem a mor te e a vida.

Cru el a mais não ser a idéia do ani qui la men to, con so la do racomo a fe li ci da de a es pe ran ça de uma exis tên cia me lhor, onde pos sa mos tor nar a ver aque les que nos fo ram ca ros; es sas ma ni fes ta ções, ume de ci -das de pran to como o li nho das mor ta lhas, en cer ram to das as de li ca de -zas d’alma, to das as har mo ni as de um vôo de anjo que, ba ten do com aasa re ful gen te nos ho ri zon tes do Céu, os fi zes sem res so ar na Ter ra.

E aque la luz sus pen sa, aque la lâm pa da eter na on du la fan tás ti -ca nos ne vo e i ros azu la dos, e a Mor te, fi tan do o qua dran te da Eter ni da -de, apon ta com o dedo a hora ex tre ma do mun do!...

Abri ga dos sob a cú pu la des sa ale go ria, os afri ca nos, em al gu -mas pro vín ci as do Bra sil, con ser va ram as tra di ções de suas ter ras, oscos tu mes de seus ma i o res, no que se re fe re à com pre en são de re li gi o sosde ve res para com os mor tos.

Fe ti chis tas, não im por ta, vin do em bo ra de ci vi li za ções ru di -men tá ri as, o tú mu lo, para mu i tos de les, era uma au ro ra que sur gia e nãouma es tre la que se apa ga va.

Até 1888, nas Ala go as, gru pos des ses ho mens, de uma ou demais na ções, ce le bra vam suas fes tas dos mor tos, que ti nham lu gar duasve zes por ano.

E eram elas por tem po de lua che ia, quan do este as tro me lan -có li co en vol ve o ca dá ver do dia em véus de ouro e de po e sia.

O tom pu ri fi ca dor dos co me mo ra ti vos, as ce ri mô ni as domo men to re li gi o so re mon ta vam-se por tal for ma, que so men te naslím pi das ori gens do he bra ís mo se po di am re fle tir, já pelo re le vo doses ti los, já pelo ima cu la do dos sa cri fí ci os.

Ao que nos cons ta, uni ca men te no Pe ne do as fes tas dos mor -tos eram as sim ce le bra das, sa li en tan do-se por uma fi si o no mia dis tin ta eide al, pe los re ves ti men tos clás si cos dos ri tos an ti gos.

No Rio de Ja ne i ro, se gun do ob ser va ção pró pria, os ne gros daÁfri ca, à ex ce ção dos ve ló ri os e ban que tes fu ne rá ri os, nada mais pos su em dig no de re fle xões, com re fe rên cia ao as sun to.

As pró pri as dan ças que pre ce di am as re des mor tuá ri as dos reise ra i nhas, dos prín ci pes e per so na gens ilus tres de suas na ções, pas san do-se

254 Melo Mo ra is Filho

Page 239: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

da co lô nia para o im pé rio, de sa pa re ce ram com a ex tin ção do trá fi co e atrans for ma ção do meio.

No Pe ne do, a fes ta dos mor tos di vi dia-se em três par tes: oje jum e as re zas; os sa cri fí ci os; os ban que tes e as dan ças.

Re ti ran do-se para sí ti os afas ta dos, in ter nan do-se no obs cu rodas ma tas, trin ta ou mais afri ca nos, re co lhi dos em casa hu mil de e es pa -ço sa, en tre ga vam-se à con tem pla ção mais atu ra da, às cis mas dealém-mun do.

Nes se gru po de pe ni ten tes, em ex pi a ção de cul pas das al mas,ha via che fes e sub che fes, dig ni da des su bal ter nas e gra da ti vas.

Ves ti dos to dos de uma es pé cie de alva, e ten do à ca be ça bo nésbran cos, uni ca men te o che fe dis tin guia-se dos de ma is, pela ves ti men talis tra da, por um bar re te de mol de di fe ren te.

Mu i tos dias an tes da fes ta, a abs ti nên cia de li co res for tes, debe bi das al co o li za das lhes era de ri gor, e bem as sim das vi an das e ce re a is, que, con sul tan do aos seus usos, des vir tu a vam o rito.

De ra ros le gu mes, de pe que na quan ti da de de le i te e água, secom pu nham as re fe i ções des ses bár ba ros, que des tar te se ini ci a vam para con sa grar aos mor tos uma con du ta de ab ne ga ções pro pí ci as, uma prá ti cade vir tu des ad mi rá ve is.

Cons ti tu in do uma fe i ção do sa cer dó cio, es ses afri ca nos pas sa -vam a pri me i ra no i te ve la da, em mo nó to nas me lo péi as, ao som de seusru des ins tru men tos, fi nan do es sas pre ces, es sas ora ções lú gu bres an tesdo se gun do dia da fes ta fu ne rá ria.

A esta ini ci a ção pro pi ci a tó ria não eram es tra nhas mu lhe resafri ca nas, e suas fa mí li as que mais tar de en tre ga vam-se às li des dopre pa ro do ban que te, ao ca lor das dan ças de ana lo gi as ma ca bras.

E na vés pe ra do ama nhe cer pro pri a men te fes ti vo, à meia-no i te,quan do as es tre las cho ram e a lua, como uma fada per di da, mira o ros topá li do nos rios e nas fon tes, um ba li do de ove lhas ou via-se la men to so,con fun din do-se com as to a das so tur nas dos ne gros aco co ra dos em ron da,car pin do os seus mor tos.

Mais tar de, po rém, fa zia-se o si lên cio, umas for mas cor re tas,uns to ros de aze vi che en ro la dos de neve apa re ci am na no i te, se gui dos

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 255

Page 240: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

de al gu ma co i sa que se as se me lha va a um re ba nho de bru mas cin ti lan tes e er ra di as.

Eram os sa cri fi ca do res ne gros que le va vam os cor de i ri nhosal vos para jun to dos bu ra cos re cen te men te ca va dos, para se rem imo ladosaos fo gos da au ro ra.

Em cres ci do ou pe que no nú me ro, im pu nha o ri tu al o pre -ce i to de cada um dos con vi vas da mor te con cor rer com o seu, não

man chando po rém as mãosno san gue das ví ti mas ofe re -ci das em holo ca us to.

E à bor da das co vasaber tas, en ca mi nhan do as ofe ren -das vi vas, os sa cri fi ca do res, de ma -cha di nha sus pen sa, es pe ra vam ahora da ma ti na, a cuja vi bra çãocaía a lâ mi na afi a da so bre a ca be ça dos cor de i ri nhos man sos, que seajo e lha vam e mor ri am.

Ao san gue que jor ra -va nas es ca va ções do cam po,che ga vam a ter ra al jo fra da deor va lhos, e sem no do ar a des trano lí qui do da vida, os sa cri fi ca -do res pas sa vam as ví ti mas ain da quen tes aos que esta vam re ser -va dos para outros mis te res.

E de po is re co lhi am-se, iam orar ain da, en quan to a dis tri bu i ção da car ne se fa zia pe los co nhe ci dos

au sen tes, por fa mí li as afri ca nas que não po di am com pa re cer, mas con ter râ -ne os na mes ma fé e no mes mo rito.

Asi la dos na re ser va de suas cren ças, nos mis te ri o sos de suas

tra di ções, nem uma sus pe i ta im por tu na, nem um in di ví duo es tra nhode vas sa vam-lhes o lar con sa gra do pelo cul to, que se tor na va então im pe ne -trá vel como os se pul cros im pro fa na dos.

256 Melo Mo ra is Filho

O che fe sa cri fi ca dor

Page 241: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

De po is uma ou tra cena, a da ter ce i ra par te da co me mo ra çãodos mor tos, ti nha de su ce der-se, com o apa ra to ex ter no, com a as sis tên ciaper mi ti da.

E o ban que te fu ne rá rio, se gui do de dan ças que iri amencan tar os Ma nes na vi a gem gla ci al da mor te, co me ça va a ser vir-se,par ti ci pan do dele não só os ce le bran tes do afri ca no rito, mas ain da opovo da cir cun vi zi nhan ça e da ci da de, que acu dia em tro pa àque laspa ra gens.

De tur ban tes e pa nos da Cos ta, de sa i as ren da das e pe que nas chi ne las, as mu -lhe res ne gras pro di ga li za vam aos con vi vasdo es tra nho fes tim co mi das à moda de seupaís, sen do as prin ci pa is re fe i ções dos doisdias úl ti mos pre si di das pelo sumo-sa cer do tee seus se qua zes, ves ti dos com suas ves tesbran cas como os de ser tos do Sa a ra e as are i -as de Omã.

E os gui sa dos es qui si tos, os ca ru -rus, os aca ra jés, os abe réns, o ar roz-de-açuá, afri ca na men te con di men ta dos e re par ti dospor to dos os as sis ten tes, de li ci a vam o pa la -dar, opu len tan do o fes tim.

De po is, per den do-se das vis tascu ri o sas, ma tro nas de Áfri ca, de face la nha -da e ges tos mag ní fi cos, lá se gui am às ocul -tas, co brin do com o pano de Ango la cu i asbor da das con ten do co mi das.

E aca u te la das no an dar, re ce o sas nos mo vi men tos, vol tando-secom o olhar, en tor na vam aqui e ali, por cima da ter ra e por baixodas pe dras, o fu ne rá rio ali men to para o ban que te das al mas, quesupunham vi rem nas ho ras ca la das da no i te par ti lhar das ofe ren dascome mo ra ti vas.

Na ex ten são do ter re i ro, pes so as de to das as clas ses re u ni am-se,en tra vam e sa íam da casa em fes ta, e um ar ru í do de ins tru men tos fre mia es va in do-se no ar, re co me çan do ime di a ta men te após.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 257

A co mi da das al mas

Page 242: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Isso tra du zia o si nal para as dan ças dos ne gros, os solenesbatu ques, os co cos atro a do res, que fa zi am de sa bro char nos lá bios dero xos lí ri os das afri ca nas as can ções ala das e sel va gens, a ca den ci ar-lhesos flan cos ar re don da dos nos re que bros da cin ta fle xí vel e es guia.

Pi to res ca men te ves ti do, os ten tan do seus ade re ços pri mi ti vos, oban do ne gro, con den san do-se aos pou cos, apa re cia para as dan ças. E ostam bo res, os can zás, os vus, as ma cum bas, os pan de i ros e ou tros ins tru men tos fa zi am-se ou vir in ter mi ten tes, em afi na ção pro gres si va, até o ins tan te emque o che fe da re li gi o sa fes ta or de nas se o in trói to, o de fi ni ti vo co me ço.

Não obs tan te ao povo in te i ro se rem fa cul ta ti vas as dan ças dos seus usos, os dan ça do res da Áfri ca iso la vam-se per fa zen do um gru podis tin to, como dis tin tas pla i na vam as suas in ten ções.

E, sem mais tar dan ça, a um ace no do ma i o ral ne gro, as ca i xasba ti am, os pan de i ros, cor ri dos no dedo, ar ru fa vam, os de ma is ins tru -men tos vi bra vam, se pa ran do-se o ban do re li gi o so do que com pa re ciaalhe io ao sen ti men to do mi nan te do pro pi ci a tó rio fes te jo.

Às dan ças po pu la res da mul ti dão mes ti ça, da tur ba in di fe ren teao pen sa men to que se alon ga va por so bre os pe ni tentes como as asassono len tas de um abu tre de Jo sa -fá, os co cos, en tre me a dos de qua -dri nhas ar den tes, de chu las las ci -vas, es tu a vam no des cam pa do,aflu in do, po rém, a gen te es co lhi da para a ex ten sa roda, onde os ba tu -ques bár ba ros, os dan ça dos ori gi -na is da vam a nota ca rac te rís ti ca epri mi ti va do rito tra di ci o nal.

E em um ro do pio, sa -pa te an do, em al ga zar ra con fu sa,os afri ca nos e afri ca nas, dan çan -do e can tan do, ba ten do pal mas,agi ta vam as plu mas de suas ves ti -men tas, cho ca lha vam os bú zi osde seus co la res de mi çan gas, ascon tas de ouro e os co ra is desuas pul se i ras mag ní fi cas.

258 Melo Mo ra is Filho

Ba i la de i ra ne gra

Page 243: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

A tar de ia dis tan te e vi nha a no i te.A lua che ia, le van tan do a face pá li da do dia mo ri bun do, im -

pri mia-lhe na fron te o be i jo de sua luz; e fi lhos d’África, acen den do ar -cho tes de re si nas, guar ne ci am a ron da com os cla rões ace sos.

E os ba tu ques e as can ti gas, os dan ça dos e os cla mo res avi -ven ta vam-se mais e mais, ao pas so que uma das ba i a de i ras ne gras, li ber -tan do-se da roda, dan çan do sem pre, che ga va-se para os as sis ten tes pro -fa nos que cir cu la vam os ba i la dos.

Gra ci o sa e vis to sa men te tra ja da, re co bria-lhe a mão sus pen sauma chu va de fi tas de to das as co res, pen den tes do cabo de uma va ri nha de pra ta de 60 cen tí me tros de com pri do e em cuja ex tre mi da de ti ni ammo e das de ouro, de en con tro às vol tas de mi çan gas e bú zi os que a ador -na vam de um pal mo.

Em fren te do es pec ta dor es co lhi do, en tre ga va-lhe ela a suava ri nha de fada, ti ran do-o para as dan ças.

Ace i to o con vi te, a sa tis fa ção era ge ral, a ale gria ple na. A re -cu sa, en tre tan to, fi ca va com pen sa da, con tri bu in do o in di ví duo com mila dois mil-réis, para a fes ta; e, se acon te cia dar mais, os vi vas e as pal mas co ro a vam-lhe a ge ne ro si da de, es pon tâ nea e ani ma do ra.

A este ofe re ci am as ba i a de i ras da Mor te ra mos de flo res en la -ça dos de fi tas, em acla ma ções pro lon ga das e vi vís si mas.

E se guia-se ou tro, ain da mais ou tros, no es tré pi to das dan ças,às ca dên ci as do ba tu ques.

Os ba tu ques e as dan ças fu ne rá ri as che ga vam a seu ter mo emho ras adi an ta das da ter ce i ra no i te.

Então os ar cho tes mul ti pli ca vam-se em tor no do cír cu lo fes ti -vo, e as cha mas ver me lhas, como as de um in cên dio, fa zi am mais res sal -tar o fan tás ti co da que le qua dro.

À se me lhan ça das dan ças es cul pi das no már mo re dos sar có fa -gos, os ne gros d’África, na pro vín cia das Ala go as, tu mul tu a vam em ron -da fu ne rá ria para dis per sar e dis tra ir os Ma nes...

Mas as re zas e os fes tins pas sa vam, os ar cho tes apa ga vam-sena es cu ri dão, os can tos e as dan ças emu de ci am de todo...

E eles não acor da vam...Como é cal mo e pro fun do o sono dos mor tos!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 259

Page 244: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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Nos so-Pai

A vida é uma vi a gem. Ati ra do no oce a no do des ti no, o ho mem tem ne ces si da de de es tre las fi xas que di ri jam-lhe o rumo aopor to no tur no do além-mun do.

A bús so la da ciên cia é va riá vel; os ar re ci fes em que as va gasda sor te que bram-se la men to sas sur gem aqui e ali, e sem os as tros da féque ilu mi nem-lhe a no i te d’alma, o mí se ro vi a jor ve ria a sua nau so ço -brar, com o leme par ti do e os pa nos ro tos.

Mas Deus, que fez o san tel mo para o topo dos mas tros, fez aes pe ran ça para as al tu ras da ra zão.

Pen sar des te modo é tra du zir o sen ti men to dos nos sos ma i o -res, que vi vi am e mor ri am na con vic ção de suas pi e do sas su pers ti ções,tão sim ples e con so la do ras de uma exis tên cia me lhor.

Fe li zes en tes! Vi viam como mor ri am, isto é, no seio da re li -gião e da fa mí lia, não pres sen tin do na hora ex tre ma o vul to in fe cun dodo ani qui la men to en cher-lhes o se pul cro de as fi xia e de ver mes!

Na pu re za de suas in ten ções, no ide a lis mo de sua com pre en -são do ou tro mun do, eles ti nham o tú mu lo como um por tão por ondese pas sa para a eter ni da de.

À se me lhan ça do pes ca dor que apli can do ao ou vi do o bú zioque en con tra ra na pra ia es cu ta os ru mo res das va gas lon gín quas, os nos sos

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pais aper ce bi am a eter ni da de pela cons ciên cia de suas boas obras e deseus de ve res le al men te cum pri dos para com a Igre ja.

E na plu ra li da de dos ca sos uma ago nia se re na pre nun ci a -va-lhes a mor te plá ci da, como o apro xi mar len to e res plan de cen te deum anjo na vi gí lia de um san to.

Anti ga men te, quan do à ca be ce i ra do en fer mo o pa dre de viasubs ti tu ir ao mé di co, e o der ra de i ro sus pi ro da que le que ia en trar na paz dos Céus pa re cia que rer exa lar-se, a fa mí lia re u ni da de ci dia so bre as ad -mi nis tra ções mís ti cas, para o que rá pi do ex pe di en te e sin ge los apres tostor na vam-se de es ti lo.

De an te mão, a pes soa mais ve lha, ou a mais con si de ra da,pre dis pu nha o do en te para re ce ber o Sa cra men to, e pa la vras con fu sasro la vam no am bi en te de um quar to que em bre ve se em pa le de ce ria aosre fle xos lí vi dos de cí ri os ar den tes.

Lá den tro, nos apo sen tos mais re ti ra dos, o cho ro e as evo ca ções – a an gús tia de quem so fre e a dor que não fin da...

E dois es cra vos, ba ten do as ruas, se gui am apres sa dos, do bra -vam es qui nas, e su mi am-se em di re ções opos tas.

Mas onde iam eles, en xu gan do na man ga ar re ga ça da da ca mi -sa lá gri mas in sen sa tas?

Um, à fre gue sia mais pró xi ma dar avi so ao vi gá rio; e o ou tro àschá ca ras das cer ca ni as bus car fo lhas de ca ne la, de cra vo e de la ran je i ra, para es ten dê-las na cal ça da da rua e na es ca da da casa de seus bons se nho res.

E as ba da la das da ago nia ca íam da tor re pe din do ora ções pelomo ri bun do... e alva to a lha co brin do uma ban que ta, um gran de cá lix depra ta che io d’água, qua tro cas ti ça is com ve las de cera alu mi an do a ima -gem do Cris to co mi na vam no re cin to do le i to mor tuá rio, que na que leins tan te se afi gu ra va, pelo som brio do ca rá ter, a um pe da ço de ogi va.

E a co ru ja, tre pa da na asa da mor te que pla na va por so breaque les te tos, abria no cre pús cu lo as pál pe bras de ouro, sol tan do umgri to fú ne bre e pro lon ga do...

À por ta da ma triz, de al ta res ace sos, o an da dor vi bra va a cam -pa i nha que anun ci a va a sa í da do San tís si mo, des cia, an da va de lá para cá, ba da lan do uma vez, mu i tas ve zes.

262 Melo Mo ra is Filho

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Na sa cris tia, o vi gá rio ou o co ad ju tor, de cos tas para os ga ve -tões dos pa ra men tos, com os co to ve los apo i a dos à be i ra da des sa es pé cie de cô mo da de en ta lhe, ob ser va va pa ci en te os acom pa nha do res do Viá ti -co que che ga vam, que es can ca ra vam o ar má rio fron te i ro es co lhen doopas, que guar da vam cha péus e ben ga las, to man do to chas.

Com ple to o pes so al, não sen do pre ci so que vi es sem so lda dospre en cher nú me ro, o ho mem da cam pa vol ta va, ten do-a pen den te pelomar te lo, che ga va o fogo de um rolo de cera en car di da às ve las das lan -ter nas de vara, co lo ca va o pá lio em seu lu gar, en quan to o pa dre, au xi li a -do pelo sa cris ta, re ves tia-se.

À casa do en fer mo, os vi zi nhos e ami gos acu di am tra ja dos depre to, cons ter na dos sen si vel men te.

Às ja ne las, um mo le co te ou uma ca bra ve lha, cal cu lan do dis tân -ci as, pre ga va pre gos nas por ta das, bota va lan ter nas ou glo bos, que re ver be -ra vam suas lu zes na rua alas tra da de fo lhas odo rí fe ras e ver de-ne gras.

Na igre ja, or de na do o prés ti to, o si ne i ro su bia à tor re, e cur tore pi que pa lhe ta va os ares de ti ni dos me tá li cos: – Nos so-Pai saía.

A tar de, que es cu re ce ra de todo, pe di ra à no i te o véu maiscar re ga do para en vol ver o ca dá ver do dia. De pé, so bre pi las tras ou ir -rom pen do dos mu ros, os lam piões ba lan ça vam le ve men te em bra ços defer ro, es cor ren do ao lon go das pa re des e no além, lu a res aver me lha dos.

E a cam pa so a va...Ao ouvi-la, as mães acor da vam os fi lhi nhos to man do-os ao

om bro, por trás das ró tu las e às ja ne las os cas ti ça is com ve las apa re ci amsú bi tos, as mu ca mas pren di am aos ba ten tes e às sa ca das col chas deseda-da-ín dia; aos can tos das gra des de pau ou de fer ro as ser pen ti nas eas man gas de vi dro cin ti la vam pro fu sas.

Os pas san tes, des co brin do-se, ajo e lha vam-se, ba ten do nospe i tos. Um coro ver da de i ra men te har mô ni co e re li gi o so en chia o es pa çoe avi zi nha va-se vo lu mo so.

De po is... o coro ca la va-se, e o to que da cam pa i nha fe ria iso la -do o si lên cio ilu mi na do.

Na casa onde es pe ra vam o Viá ti co, uma cal ma apa ren te su ce -dia às lá gri mas ar den tes; a fa mí lia, ro de an do o en fer mo, o con for ta va; as cri as, en tris te ci das, en co lhi am-se cir cu lan do os um bra is das por tas; aspre tas ido sas, ma gras de vi gí lia e pe sa du mes, de i ta vam flo res na ban que ta,ser vi am em sal vas de pra ta co pos d’água, am pa ra vam com a mão trê mu lao ga lhi nho de ar ru da de trás da ore lha.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 263

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E por aque les lá bi os da cor dos lí ri os ro xos as re zas pelomo ri bun do su bi am às al tu ras – lá onde Deus aco lhe como pás sa ros apre ce do es cra vo e o so lu ço do des gra ça do.

E Nos so-Pai, que vi nha a dis tân cia, che ga va-se mais per to, oba da lar da cam pa era mais for te e as lu mi ná ri as que se alon ga vam es -con di am a ca u da na tre va, ao pas so que se avi va vam adi an tan do-se.

O Viá ti co pas sa va... Uma at mos fe ra sa gra da fa zia-se em tor no do do cel de bro ca dos que abri ga va o Se nhor do uni ver so.

Os acom pa nha do res, de opas en car na das, mar cha vam len tos;das to chas ace sas en tor na vam abun dan tes go tas de cera fun di da, e abri am,can tan do, a boca que re ce bia de cha pa o cla rão das lu zer nas, ao mes motem po que lhes aful va va a bar ba e o sem blan te.

Então, o povo em tro pa, a ran cha da de mo le ques que fecha vam o cor te jo, entoavam o Ben di to e lou va do seja o San tís si mo Sa cra men to daEucaris tia, cu jos sons pro lon ga vam lú gu bres os ecos da no i te.

Até a pri me i ra me ta de das sa las, as pes so as da fa mí lia ajo e lha -vam-se, e nas ca sas onde ha via do en tes, al guém sus pen dia-os do tra vesse i ro,e, quan do pos sí vel, os sen ta vam na cama.

As cri an ças cho ra min ga vam des per tas, a ne gra ria ajo e lha danas co zi nhas e por tas de co che i ra ba tia nos pe i tos, e Nos so-Pai se guia àmo ra da tran qüi la e san ti fi ca da do pe ca dor con tri to.

A pro cis são, pre ce di da do to ca dor de cam pa i nha, atra ves sa vaa ci da de, ma jes to sa e com ple ta.

De po is des te per so na gem, o cru cí fe ro, ves ti do de opa, le va vaa cruz al ça da, guar ne ci da de cí ri os. Por en tre alas de ir mãos doSantíssimo, com to chas ace sas, vá ri as fi gu ras precedi am o pá lio: aprime i ra tra zia uma to a lha pre sa com al fi ne tes nas cos tas da opa; asegun da a um be la fe cha da; a ter ce i ra o bal da chi no, es pé cie de ni cho emfor ma de li vro com a âm bu la ou ci bó rio; de po is os oito por ta do res dopá lio la de a do por lan ter nas de vara e na re ta guarda pe des tres comchiba tas, e sol da dos des ta ca dos na oca sião dos cor pos de guar da.

O vi gá rio, de so bre pe liz e es to la branca, com a cha ve dosacrá rio pen den te do ga lão de ouro, ajus ta va o véu de om bros, queresguar da va a âm bu la ou o re li cá rio.

Aos la dos, dois acó li tos de so bre pe liz e ba ti na, le va vam, um acal de i ri nha d’água ben ta e o ou tro o vaso da ex tre ma-un ção.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 265

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Che ga ndo ao seu des ti no, a mul ti dão cu ri o sa e mo ven teaguar da va, pos ta da ao aca so, o San tís si mo; as ja ne las es ta vam ato pe ta das de gen te, as lu zes bri lha vam e a casa do do en te co nhe cia-se de pron to.

Ime di a ta men te que o prés ti to pa ra va, as lan ter nas e a cruz e o pes so al de aparato fi ca vam de fora; o pá lio en cos ta vam-no à pa re dedefron te e os sol da dos guar da vam a por ta.

Apenas o pa dre en tra va e pro nun ci a va Pax huic domi, de po si tavao San tís si mo so bre a ban que ta, as per gia a hós tia, do mi na va a mul ti dãoajo e lha da des de o le i to do ago ni zan te até os úl ti mos de gra us da casa.No meio do re co lhi men to ge ral, os can tos dos sal mos eram re pe ti dosba i xi nho, e às ve zes a voz qua se ex tin ta do mo ri bun do acom pa nha va oCon fi te or, que ab sol via aque le es pí ri to alen ta do de fé.

Qu ando a ex tre ma-unção ha via pre mu ni do a esse novoviajante dos pó los para a der ra de i ra vi a gem, o pa dre des cia, o cor tejoin cor po ra va-se, vol tan do sem pre por iti ne rá rio di fe ren te.

À ex ce ção das lu mi ná ri as e do Ben di to can ta do, quan do oSa cra men to saía de dia, as pom pas eram as mes mas.

As fa mí li as mais ri cas, se cho via, man da vam o seu car ro paracon du zir Nos so-Pai, não dis pen san do a fre gue sia de co lo car na bo léiaum ne gro sem cha péu e des cal ço, que ba tia a cam pa.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Qu an ta po e sia tem a re li gião nos mo men tos ex tre mos davida! Como é su bli me o rit mo que nos faz pre lu di ar como Davi e can tar como o cis ne nas ago ni as da mor te!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 267

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O Enfor ca do

As tre vas aba ti am-se nas ruas tran qüi las e o si lên cioalon ga va-se pro fun do, ape nas in ter rom pi do, aqui e ali, por al gumcaminhan te em bus ca do lar.

E aque les tro péis res so a vam a in ter va los gran des, de po is mais afas ta dos, de po is qua se im per cep tí ve is...

Mar can do as ho ras, as sen ti ne las da ca de ia bra da vam “Aler ta!”,e – “Quem vem lá?” – per gun ta vam, dis tin guin do um vul to nas sombras,aper ce ben do um ru mor.

Na ex ten sa e tor tu o sa Rua do Alju be, os lam piões de aze i tede pe i xe des cre vi am nos re fle xos cír cu los ver me lhos, já como os res pi -ra dou ros em la vas das fá bri cas em tra ba lho, já como ras tros de san guede um cor po ba le a do.

Da su bi da da la de i ra da Con ce i ção a ca de ia do Alju be des ciavol tan do a rua, à se me lhan ça de um ban di do a de so ras.

Das gra des das pri sões, à luz fu ma ren ta do can de e i ro suspen sopor uma corda à rol da na do teto, ou via-se o res pi rar pe ní vel, um res sonares ter to ro so, como de quem lhe ca val ga o pe i to a hor ren da fi gu ra dospe sa de los.

Às vezes, um ai de dor es ca pa va-se dos lá bi os gre ta dos de febrede um es cra vo re ta lha do na sur ra, um ti ni do de cor ren tes fe ria o ar, aoes pre gui ça men to de um con de na do por toda a vida.

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Nas pa re des bran cas do edi fí cio, as te lhas de se nha vamsombras oblí quas ao fogo dos lam piões de fer ro, en quan to os gon zosdas por tas do in te ri or ran gi am, à en tra da do car ce re i ro que pas sa varevis ta aos gri lhe tas, ou do mu chin gue i ro es quá li do que es pe vi ta va osmor rões das tor ci das em bra sa.

E a sen ti ne la, per fi la da na gua ri ta, lan ça va olha res de mo ra dosem di re ções fi xas, à es pre i ta do im pre vis to e do ofi ci al da ron da.

Ao lado es querdo do por tão que de i ta va para a la de i ra, oorató rio dos con de na dos à mor te as sen ta va-se na en tra da, de i xan doesca par pelo bu ra co da fe cha du ra uma fle cha de fogo, que va ra valúgubre o ar no tur no do de sa bri go.

A al guns cô va dos do chão, a ja ne li nha em for ma de ni cho depe dra, que de i ta va para a rua, dava pas sa gem à cla ri da de si nis tra, de nun -ci an do que um des gra ça do ali se acha va, nas vés pe ras de ser jus ti ça do.

E aque le fa rol do mi na va de boa al tu ra, in ter cep tan do vis tasim por tu nas, ao passo que, no lí vi do e gla ci al re cin to, um qua dro deaspec to ater ra dor e edi fi can te des do bra va-se in de ci so nos ra i os e sombrasda fa ta li da de e do mis té rio.

Quem pe ne tras se na que le asi lo dos der ra de i ros dias, des co bririacon tris ta do um es pe tá cu lo, que de i xa va a alma numa ari dez de de ser to eo co ra ção num oce a no de ago ni as.

Ao fun do da cena, a sa cros san ta ima gem do Cru ci fi ca do, num al tar mo des tíssimo, ilu mi na da por dois cí ri os, avul ta va, con so la do ra edivina...

Com a bar re ti na fora da ca be ça, de ba i o ne ta ca la da e com asmãos abra çan do a arma, a sen ti ne la, jun to da ban que ta, con ser va va-se apre -en si va e si len ci o sa, ob ser van do mo vi men tos, sur pre en den do de síg ni os...

E o con de na do à mor te, sen ta do em sua bar ra ou dor min doos úl ti mos so nos, ti nha sem pre à ca be ce i ra um fra de de San to Antô nio,com o qual di a lo ga va, re za va pi e do sas ora ções de que ve la va-lhe como o anjo do bem as mo dor ras da der ra de i ra jor na da.

Di an te da re li gião como di an te da mor te, não há âni mobastan te ro bus to que se re vol te, nem es pí ri to por mais al ti vo que nãosinta-se hu mi lha do e pe que no.

O ve ne ran do re li gi o so fa la va em ar re pen di men to, con for ta va o in fe liz com a espe ran ça, que res plan de ce dos ne vo e i ros da lém-tú mu lo, e

270 Melo Mo ra is Filho

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mos tra va-lhe os bra ços aber tos do Cris to mor to para aco lher o pe ca dorcon tri to.

Os três dias e as três no i tes que pre ce di am aos de ve res docar ras co, eram con sa gra dos à pre ce e à con fis são, à re cep ção do Sa gra do Viá ti co e à pe ni tên cia d’alma do mal fe i tor ir re vo cá vel.

Ape nas o con de na do en tra va para o ora tó rio, a San ta Casa daMi se ri cór dia ex pe dia um pró prio, no in tu i to de opor os em bar gui nhos,ofe re cen do-lhe igual men te os seus ser vi ços em cum pri men to de úl ti mas von ta des.

Se o pa de cen te ti nha de se jos a re a li zar, dis po si ções a to mar,co mu ni ca va ao men sa ge i ro, se guin do-se ao pe di do sa tis fa ção com ple ta.

Aos su pli ci an dos po bres a San ta Casa for ne cia o ali men to e opão-de-ló com vi nho an tes da exe cu ção.

Re fe re-nos a tra di ção oral que hou ve no ora tó rio ca sa men tos,bem como o de um mu la to es cra vo, que só re ce beu o San tís si mo de po is das bên çãos nup ci a is.

Enquan to o sa cer do te exor ta va o de lin qüen te, dan do-lhe pre -ces que la va vam-lhe a cul pa, no Lar go do Ca pim, da Pra i nha, do Mou raou em ou tro qual quer, ao to que de meia-no i te, al guns ne gros fin ca vamtrês es ta cas, mar te la vam, le van ta vam a for ca, ao luar en san güen ta do dear cho tes, que lhes ba nha vam o dor so nu e re lu zen te, ao cho ca lhar dascor ren tes, que so pe sa vam a ins tan tes.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 271

Ne gro de li bam bo

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Si mul ta ne a men te, isto é, a essa mesma hora, um ir mão daMise ri cór dia, ves ti do de ba lan drau, per cor ria as ruas por onde te ria depas sar o cor te jo, ba da lan do uma cam pa, len to e che io de gra vi da de:

– Orai por nos so ir mão pa de cen te!O dia cla re a va...E quan do os pri me i ros li bam bos1 sa íam das en xo vi as, a bus car,

em bar ris afu ni la dos, água para as obras pú bli cas e as pri sões, o ir mãoda Mi se ri cór dia se ha via re co lhi do e a for ca es ta va de pé.

Não se ima gi na o pra zer da po pu la ção, que des de a vés pe radas exe cu ções dis pu nha-se a as sis ti-las.

Da qui, dali, da co lá, os bran cos e os ne gros, as mu lhe res e osme ni nos, to dos en fim, di zi am se en con tran do, numa an si e da de con vi da -ti va:

– Ama nhã há en for ca do!...

Den tre as exe cu ções cé le bres dos anos mais che ga dos, es tãono pri me i ro pla no a de Gu i ma rães sa pa te i ro, a do es cra vo que as sas sinoua Fi li pe Néri, a dos três ma ri nhe i ros do pa ta cho San ta Cla ra, que viajavapara San tos, e a do pre to cego Do min gos Mo çam bi que, que foi ex pi arno pa tí bu lo o as sas si na to de seu se nhor, per pe tra do por um in di ví duoque con fes sou o seu cri me em ar ti go de mor te.

O Gu i ma rães era uma na tu re za re fra tá ria a todo o bem. Eraum fa cí no ra como o Lu cas da Fe i ra e Pe dro Espa nhol, mas sem asqua li da des boas que dis tin gui am-se nos dois sal te a do res.

Fe roz até à cru el da de, o san gue ti nha para ele as ex ci ta çõesdas or gi as bru ta is.

Tri pu di ar por so bre mil ca dá ve res, en so par as plan tas dabesta-fera no lí qui do que alen ta o fa cho da vida, re su mi am para operverso sa pa te i ro da Rua do Cano a atra ção ir re sis tí vel de to dos osabis mos.

272 Melo Mo ra is Filho

1 Cor da de ne gros sen ten ci a dos e pre sos um ao ou tro por uma cor ren te, e de fer roao pes co ço.

Li bam bo, em lín gua bun da, sig ni fi ca cor ren te.

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Ven cer-se a si pró prio, re cal car den tro do pe i to ins tin tosinatos, fora o mes mo que pedir ao pu nhal o se gre do da ví ti ma e per guntar a Satã pelo que fi ze ra da gló ria.

De ma chos aos pés no pro fun do ora tó rio, fi tan do a ima gemde Cris to su pli ci a do, tal vez ti ves se um re mor so, o de não po der as sas -siná-lo, se vi ves se de novo!

O es cra vo de Fi li pe Néri foi um lou co. O seu cri me teve na tu -ral men te ori gem na no i te das sen za las e da es cra vi dão.

Dos ma ri nhe i ros do pa ta cho, que as sas si na ram na tra ves sia os ne go ci an tes de San tos, o mó vel foi o rou bo em ple no mar, e a cer te zade que o ru gi do da vaga aba fa ria o gri to das ví ti mas.

Se qui sés se is sa ber, po rém, qua is fo ram os ju ra dos que vo ta -ram pela pena de mor te do pre to cego da Rua do Ro sá rio, nin guém vosres pon de ria, por que Deus, para pou par à ino cên cia mais uma sú pli ca deper dão, de há mu i to que os fez es que cer!

Cedo co me ça va o povo a des fi lar nas ruas, amon to an do-se no Lar go de San ta Rita e na em bo ca du ra da Rua dos Ou ri ves, que davapara a ca de ia. Mul ti dões com pac tas mo vi am-se igual men te no Lar go doMou ra, to man do lu gar por fora do qua dra do da tro pa, no cen tro doqual a for ca iso la va-se tor va.

A la de i ra do Cas te lo, on du lan te de gen te que su bia, mos tra vano alto uma es pé cie de an fi te a tro eri ça do de ca be ças, que se de bru ça -vam sô fre gas do san gui ná rio es pe tá cu lo.

Nas ja ne las api nha das de fa mí li as, viam-se rom pen do de de -trás, tre pa dos em ca de i ras e em mo chos, me ni nos e mo le ques, ne gras ene gri nhas, que cres ci am da pon ta dos pés, es ti ran do o pes co ço, olhan do para ba i xo, nada per den do do que se pas sa va até avis ta rem o prés ti to.

Eis se não quan do, o sino da fre gue sia ba tia nove pan ca das, oco ad ju tor pa ra men ta do es pe ra va na por ta da sa cris tia, in va din do oLar go de San ta Rita a ir man da de da Mi se ri cór dia, le van do na fren te aban de i ra cons ti tu í da por uma vara pin ta da de pre to e um pa i nel deNos sa Se nho ra da Pi e da de, emol du ra do de ama re lo.

Os fi gu ran tes des sa pro cis são lú gu bre as so ma vam re u ni dos; epe las dez ho ras, quan do o pa de cen te já se ha via con fes sa do e sa cra men ta do,

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 273

Page 256: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

e que o pão-de-ló com vi nho lhe ti nha sido ser vi do, o qua dran te daEter ni da de ia mar car-lhe da vida os ins tan tes fi na is.

E à voz do co man dan te da es col ta que bra da va: “De sem ba i -nhar es pa das!...” – as me i as-por tas do ora tó rio abri am-se, dan do in gres soao juiz das exe cu ções, ao es cri vão do júri, que lia a sen ten ça, ao por te i rodos au di tó ri os, ao car ras co e seu aju dan te, aos me i ri nhos, etc., queacer ca vam a ví ti ma, la de a da de dois fra des.

O car ras co apro xi ma va-se, la nça va-lhe ao pes co ço um ba ra çode cor das no vas, ma ni a ta va-o, de i tan do-lhe um dos sa cer do tes en tre osbra ços uma ima gem do Cru ci fi ca do.

Na cur va da la de i ra, dois ca va los, se gu ros por pa gens, re lin -cha vam es car van do a ter ra, aguar dan do o juiz das exe cu ções e o es cri -vão, que os mon ta ri am no de mar ca do trân si to.

A mul ti dão, re flu in do an te ci pa da men te, aten ta va para a la de i ra,don de, ao pas so dos ca va los, o pre go e i ro re lia, si su do e com a acen tu a -ção vi bran te, a sen ten ça, que aca ba va na se guin te fra se: – Orai por ele!

E o ir mão da Mi se ri cór dia, de ba lan drau e sa co la:– Para a mis sa de nos so ir mão pa de cen te!...Com es pe ci a li da de nes ses dias, con sen tia o Sil vi no, car ce re i ro

do Alju be, que no por tão da ca de ia pe dis sem es mo las ve lhos for ça dos,que por sua vez as re par ti am com os seus com pa nhe i ros de ca la bou ço.

E o prés ti to, len to como a ago nia, adi an ta va-se no lar go...A ban de i ra da Mi se ri cór dia, equi li bra da nos ares, pa ra va em

fren te da igre ja de San ta Rita; e nes se mo men to o pa dre, in cli nan do-sedi an te do al tar-mor, prin ci pi a va a mis sa.

Ape nas des can sa va o cá lix so bre a to a lha al vís si ma, aju da dope los car ras cos e acom pa nha do dos fra des, o en for ca do ajo e lha va-se eou via – da por ta – a mis sa em co me ço.

Antes de le van tar-se a Deus, po rém, os exe cu to res da altajus ti ça o er gui am de sú bi to, e o prés ti to se guia...

O pre go e i ro bra da va: “Vai-se exe cu tar a sen ten ça de mor tena tu ral na for ca pro fe ri da con tra o réu...”

E lia a sen ten ça.

274 Melo Mo ra is Filho

Page 257: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Para a mis sa do nos so ir mão pa de cen te!..., cla ma va oho mem do ba lan drau, apre sen tan do a sa co la.

E o fú ne bre cor te jo, ta ci tur no e pe sa do, pre en chia o seu iti ne -rá rio, se gui do da po pu la ção cu ri o sa e sa tis fe i ta.

Nos so bra dos não fal ta vam es pec ta do res de toda a cas ta; –pa ra dos nas ruas, no ta vam-se ne gros se mi nus, de gar ga lhe i ra ao pes co -ço, de más ca ras de fo lha-de-flan dres, que os im pe di am de em bri a gar-se,dis tin guin do-se al guns com la tas de fo lha pen du ra das ao pe i to e den trodas qua is a po lí cia en con tra va o cer ti fi ca do de afri ca no li vre.

A ir man da de da Mi se ri cór dia, com suas ves tes so le nes, an te -ce dia gra ve o cor te ja da mor te.

Em se gui da, o juiz das exe cu ções, de ca sa ca e cha péu ar ma do, mon ta do a ca va lo, mar cha va, ten do a seu lado o es cri vão do júri e opre go e i ro.

O pa de cen te, de ba ra ço ao pes co ço, tra jan do ge ral men teja que ta, cal ça de cor e com os pés des cal ços, vi nha logo após, com ospul sos li ga dos por uma cor da fina, des can san do-lhe nos an te bra ços,como dis se mos, a ima gem de Cris to.

Jun to ao en for ca do acha vam-se os dois fran cis ca nos; e oscar ras cos – réus de mor te com co mu ta ção de pena – se gui am com osme i ri nhos, for man do a re ta guar da des se gru po si nis tro.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 275

Escra vo co me dor de terra

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Uma pe que na es col ta de po lí cia fe cha va o cor te jo, que se avo lu -ma va a per der de vis ta pelo sé qui to de mu lhe res, ho mens e cri an ças, nãofal tan do no acom pa nha men to mo le ques e ca po e i ras de to dos os ba ir ros.

Ven cen do a an gus ti o sa ex cur são, a cruz da San ta Casa rom pia o qua dra do de ca va la ria e in fan te ria, e o de lin qüen te, de olhos ra sos delá gri mas, mal po den do ter-se nas per nas trê mu las, era con du zi do àfor ca, que se des ta ca va no além como os li ne a men tos das si nas fa ta is.

No meio da lufa-lufa, de gar ga lha das, de pa la vras in dis cre tas,a tur ba mo via-se. As va ran das não po di am con ter mais pes so as; os te -lha dos co ro a vam-se de gen te que apa re cia nas águas-fur ta das, e mu i tosin di ví du os da ple be, es pe ci al men te ca po e i ras e ne gros es cra vos, tre pa -vam em cima de um bar ra cão que exis tia no Lar go do Mou ra, nos bra -ços dos lam piões, para me lhor go za rem da cena do en for ca men to.

Che ga dos ao pa tí bu lo, o pre go e i ro lia pela úl ti ma vez a sen -ten ça, e o ca la frio da mor te ar re pi a va, como uma onda, a epi der me doin fe liz. Um dos fra des fi ca va no lar go jun to do juiz, do es cri vão e de ma isco mi ti va, en quan to que o car ras co e seu aju dan te, au xi li an do o pa de cen te, su bi am com o ou tro ao alto da for ca.

De lá o mal fe i tor fa zia às ve zes uma fala ao pú bli co, pe din doque lhe re zas sem por alma um Pa dre-Nos so e uma Ave-Ma ria, as se gu -ran do que mor ria ino cen te, etc. E o car ras co, amar ran do a pon ta dolaço a uma tra ve do ca da fal so, co lo ca va-se-lhe por trás, ao mes mo tem poque o fra de co me ça va o Cre io-em-Deus-Pa dre, que o pa de cen te re pe tiacom fer vor de li ran te.

Da se gun da me ta de da reza para o fim, o pa dre vi nha des cen doos de gra us da es ca da fu nes ta, e, já de cos tas para o topo, ao pro fe rir – navida eter na, o car ras co em pur ra va o des gra ça do, ca val gan do-lhe os om bros,es tri ban do-se for te men te nos pul sos li ga dos, ta pan do-lhe a boca...

E, ba lan çan do-se no vá cuo, de lín gua para fora, de olhos sal -tan do-lhe das ór bi tas, aque la fi gu ra me do nha es per ne a va-se, de ba tia-se,até à qui e ta ção.

Em se gui da a cor da era cor ta da, ou vin do-se o ba que docor po mor to.

O car ras co, to man do da pon ta os ci lan te, ma ri nha va ágil, e,dan do uma vi ra vol ta, cres cia no es tra do da for ca, aba ten do-se após naes ca da por onde de sa pa re cia.

276 Melo Mo ra is Filho

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Fin do o ato, um dos re li gi o sos fa zia ao povo uma elo qüen te e mo ra li za do ra prá ti ca.

Instan te de po is a pa di o la da San ta Casa trans por ta va o cor podo jus ti ça do, que ia en ter rar-se.

Era de cos tu me quan do a cor da que bra va-se, a ban de i ra daMi se ri cór dia co brir o pa ci en te, que de i xa va por isso de ser jus ti ça do.

A essa usan ça opôs-se o re en for ca men to de um dos ma ri nhe i rosdo pa ta cho San ta Cla ra, que, por or dem do en tão mi nis tro da Jus ti ça, foi ar ras ta do e mo ri bun do so frer a pena ca pi tal.

Lem bram-se os ve lhos de que por essa oca sião hou ve pro tes -tos, tu mul tos, cla mo res, re sul tan do do con fli to mu i tas ca be ças e per nasque bra das.

A ce ri mô nia ter mi na va ha bi tu al men te ao meio-dia, ca u san dono Bra sil, como ain da há bem pou co na Fran ça e na Ingla ter ra, ma ni fes -ta ções de ale gria.

As mul ti dões de ban da vam com a tro pa que se re co lhia aquar téis, com a ir man da de que se guia o mor to, e com os car ras cos quevol ta vam es col ta dos às suas en xo vi as.

Os mes tres de es co la da vam fé ri as para que os dis cí pu los as -sis tis sem à cena... as mães de fa mí li as man da vam os fi lhos... os pa trõesos ca i xe i ros... os mes tres de ofi ci na os apren di zes... e no mes mo dia ouno ime di a to, in ter ro gan do-os so bre as im pres sões re ce bi das, in fli gi am-lhesse ve ros cas ti gos, para que me lhor se re cor das sem de uma li ção que lhesde via apro ve i tar.

Assim, di zi am as mães, so van do os fi lhos: – Anda! Toma!...Para que não di gas na for ca, se ti ve res a mes ma sina: “Se não fos se mi -nha mãe, eu não es ta ria aqui!”

Frag men tos da cor da do en for ca do eram pos te ri or men te dis -tri bu í dos como pre sen tes de rara es ti ma ti va, pois, se gun do a cren ça po -pu lar, pre ser va vam de ma les e – da vam for tu na.

A pena de mor te, en tre tan to, sem o apa ra to clás si co dos an ti -gos dias, nos pa re ce uma li ção e um exem plo...

É pos sí vel que o seja!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 277

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A Co ro a ção de um Rei Ne gro em 1748

Em 1742 fun dou-se no cam po de S. Do min gos a ca pe lade Nos sa Se nho ra da Lam pa do sa, sen do bis po do Rio de Ja ne i ro D. Fr.Antô nio do Des ter ro.

O ter re no para a fun da ção foi ce di do pelo Se na do da Câ ma raà ir man da de da mes ma Se nho ra, que, por fun ci o nar no Ro sá rio, issore que reu e ob te ve.

Do pri mi ti vo tem plo, bem ra ras são as re lí qui as; qua se quenão exis te pe dra so bre pe dra.

Como pre ci o si da des his tó ri cas há a ima gem da ex cel sa pa dro -e i ra, a do San to Rei Bal ta sar, um Após to lo do mes tre Va len tim, e um ad -mi rá vel re tra to a óleo do Mar quês de Pom bal, obra-pri ma da arte an ti ga.

O mais o van da lis mo des tru iu...A len dá ria ca pe la, como todo o Bra sil nos fe li zes tem pos da

co lô nia, teve seus dias cor-de-rosa, suas gló ri as no apo geu.Não obs tan te se rem as ir man da des pos su i do ras do ve lho

tem plo com pos tas de ne gros da Áfri ca e cri ou los, na ma i or par te es cra -vos, o le dor de tra ça das crô ni cas ain da pode des co brir, no pou co queexis te do seu ar qui vo – que nos foi fran que a do pelo in te li gen te, ze lo so e atu al ecô no mo, o Sr. José Ro dri gues da Cos ta So a res, que o sal vou e

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con ser va –, ves tí gi os de seu es plen dor de ou tro ra, de uma gran de zaex tin ta.

Den tre as pe ti ções exis ten tes em ma nus cri tos ori gi na is, al gu masre fe ren tes ao nos so mo ti vo, de pa ra-se a se guin te que, com as de ma is, nosser vi ram de fa cho si de ral, que le van ta re mos para ca mi nhas na es cu ri dãodo pas sa do.

Aos seus la res té pi dos e ao res pi rar ago ni zan te da tra di çãooral, ve ja mos des fi lar a tur ba ne gra que se ex tra va sa va no tem plo efre mia no Cam po de S. Do min gos e na ci da de, an te ci pan do-se à fes ta ece le bran do-a con dig na.

O do cu men to, ei-lo:“Ilmo. e Exmo. Sr. De sem bar ga dor Ou vi dor-Ge ral do Cri me:

– Di zem o Impe ra dor, o Rei, a Ra i nha e mais adep tos da na ção do San toRei Bal ta sar, que eles cos tu mam, em os do min gos e dias-san tos fes ti vos, ti rar as suas es mo las por meio de dan ças e brin que dos que fa zem comas de ma is na ções, o que fa zem com todo o re ca to e sos se go, sem in qui e -ta ção e per tur ba ção al gu ma como é no tó rio, cu jas es mo las são apli ca das com o ne ces sá rio às fes ti vi da des do San to Rei: e por que do mes momodo têm al can ça do do Exmo. Sr. Con de Vice-Rei, como se vê nodo cu men to jun to, e como que rem tam bém a con ces são de V. Exª para o mes mo fim aci ma des cri to e as sim tam bém que rem no dia dos Reis pró -xi mo co ro ar para rei da na ção Re bo lo a Antô nio, fâ mu lo do mes moIlmo. e Exmo. Sr. Vice-Rei, e que nes se dia pre ten dem sair com seusins tru men tos e dan ças da mes ma na ção para ser fe i to com o ma i orob sé quio e dan çar – pelo que pe dem, etc.”

Da ta da de 3 de de zem bro de 1748, a esta pe ti ção, se gui da dasas si na tu ras em cruz dos re que ren tes, acom pa nha va fa vo rá vel des pa cho,e a ir man da de do San to Rei Bal ta sar en tre ga va-se ao gozo pre pa ra ti voda li cen ça do ma gis tra do.

E pe las ruas, pela ci da de, in ter nan do-se nas fa zen das doEnge nho Ve lho, do Enge nho Novo, do Ma ca co, de San ta Cruz, nos li -mi tes da au to ri za ção con ce di da, le vas de pre tos, dan çan do e can tan do,ru fa vam ca i xas de guer ra, tan gi am ins tru men tos mú si cos de seus cli masna ta lí ci os, re ce ben do es mo las pro fu sas, dá di vas va li o sas, que en tra vampara o co fre da ir man da de, por con ta da qual cor ria a des pe sa da fes ta.

280 Melo Mo ra is Filho

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A es ses ban dos tu mul tuá ri os, a es ses ho mens es cul tu ra is, nusda cin tu ra para cima, de ros to de for ma do ou ta tu a do, se gun do os es ti los de suas na ções, su ce di am-se avul ta das tur mas de ou tros ne gros, de mu -lhe res e cri an ças de di ver sas tri bos, que se as so ci a vam a alhe i os pra ze res.

E os fo liões afri ca nos, de cal ça e sus pen só ri os, de fa i xas en -car na das e azu is, a ti ra co lo, com a ca be ça ador na da de pe nas e o pe i tolis tra do de ti ras vis to sas, tam bo ri la vam em seus tam bo rins de dan ça, fa -zi am evo lu ções com a per na no ar, can ta vam suas can ti gas bár ba ras, que re per cu ti am avo lu ma das ou es va e ci das, na pro por ção das dis tân ci as.

Enquan to es ses ran chos am bu lan tes amon to a vam o ca be dalpara o ré gio fes te jo de seus ma i o ra is, na ca pe la da Lam pa do sa eri gia-se o tro no para a co ro a ção, ar ma va-se o al tar do San to Rei Mago, as sen ta -va-se uma pe que na va ran da para o sé qui to real fi can do para a vés pe ra de Reis o cu i da do da ca pi na gem do ter re no fron te i ro à igre ja, que ama nhe -cia lim po, co ber to de are ia fi nís si ma, es mal ta do de fo lhas e flo res, paraos ba i la dos e co me mo ra ções ex ter nas da mo nar quia ele i ta.

Ape nas ama nhe cia o dia de Reis, o Cam po de S. Do min gos,nas pro xi mi da des da ca pe la, opu len ta va-se de um es pe tá cu lo va ri a do ees tra nho, em que mo çam bi ques, ca bun dás, ban gue las, re bo los, con gos,ca çan ges, mi nas, a plu ra li da de fi nal men te dos re pre sen tan tes de na çõesd’África, es cra vos no Bra sil, exi bi am-se au tên ti cos, cada qual com seuca rac te rís ti co di fe ren ci al, seu tipo pró prio, sua es té ti ca pri va ti va.

Ho mens, mu lhe res, e cri an ças, em lar go re go zi jo da li ber da dede um dia, es que ci am por ins tan tes as pal me i ras de sua ter ra, os fe ti chesde seu país, aguar dan do a ce ri mô nia da co ro a ção do so be ra no, e ren den -do cul to ao San to Rei Bal ta sar, que lhes re cor da va pela cor que ti nha acor de sua pele e de seu des ti no.

E o ca pe lão da Lam pa do sa, per cor ren do com a vis ta a igre japom po sa men te ade re ça da, di ri gia-se à sa cris tia, to ma va o Com pro mis so da Irman da de, la vran do os ter mos que de vi am ser au ten ti ca dos pelo Rei epela Ra i nha na ter mi na ção do ato.

Qu a se às 10 ho ras, acen dia-se a ca pe la, o ca pe lão re ves tia-se,os si nos re pi ca vam, e os ir mãos do San to Rei Bal ta sar, com suas opas de seda, es pe ra vam no cor po da igre ja, do bran do lín gua, ba ten do bocaen tre si.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 281

Page 263: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Em bre ve, a vo ze ria con fu sa que se es cu ta va lá fora, ca la va-se; os si nos re pi ca vam mais vi bran tes e rá pi dos, pro du zin do esta mu dan çade efe i to o ro lar sur do das ca i xas de guer ra, o som de rapa das ma cum basem gran de nú me ro, a que da so no ra men te uni for me dos cho ca lhos en fe i -ta dos, de bár ba ra mar cha pre ce den do o prés ti to.

De bra ços no ar, pu lan do e re vi ran do so bre as mãos, ves ti dosde pe nas e es to fos co lo ri dos, qua tro mu a nas (ne gri nhos) ser vi am deba te do res áge is, fa zen do ne ga ças, can tan do, gri tan do...

Atrás da mú si ca ca mi nha vam ma jes to sa men te o Ne u van gue(rei), a Nem ban da (ra i nha), os Ma na fun dos (prín ci pes), o Endo que (fe i ti ce i -ro), os Uan tu a fu nos (es cra vos, vas sa los e vas sa los do rei), lu zi do e vi go ro -so gru po da que las fes tas tra di ci o na is e ge nu i na men te afri ca nas, ce le bra -das no Rio de Ja ne i ro no sé cu lo pas sa do.

O Rei e a Ra i nha, com seus man tos de bel bu ti na es car la te re -ca ma dos de es tre las, com suas ves ti du ras cin ti lan tes de len te jou las e aga -lo a das, aque le com seu ce tro dou ra do, e esta com seu di a de ma res plan -de cen te, pi sa vam gar bo sos à fren te de sua cor te, le van do dois vas sa losas duas co ro as, ves ti dos de capa e es pa da, os ten tan do na ca be le i ra ca ra -pi nha da e no pon tu do to pe te fios de co ra is e mi çan gas, que lhes des ci amem vol tas como um cas co de ca pa ce te.

O Fe i ti ce i ro, de sen ro lan do e en ro lan do em tor no do pes co çoenor me co bra, en ver gan do ves ti men ta de pe les e ru bro co car, olhan domis te ri o sa men te, vol te a vam-lhe os an te bra ços e o colo fi e i ras de mi çan -gas e de pe que nos bú zi os, en tre me a dos de fi gas e ta lis mãs, de ro sá ri os eben ti nhos.

A tur ba mul ta que os acom pa nha va fe cha va o ré gio cor te jo, do qual so men te o Rei, a Ra i nha, os prín ci pes e os vas sa los en tra vam, sen -do aque les para se rem co ro a dos na igre ja.

Uma vez en tro ni za dos pelo ca pe lão, que os re ce bia à por ta do tem plo, co ro a va-os ri tu al men te, con du zin do-os à sa cris tia, onde ou vi amler, mar ca vam em cruz e fa zi am as si nar o do cu men to ofi ci al da co ro a -ção.

Do mes mo ar qui vo da Lam pa do sa, no ci ta do Com pro mis so daIrman da de do San to Rei Bal ta sar, en con tra-se, en tre mu i tos, este ter mo que

282 Melo Mo ra is Filho

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re pro du zi mos, e que de mons tra que na re fe ri da ca pe la es ses cos tu mescon ser va ram-se até mu i to mais tar de, como pode ser ve ri fi ca do:

“Ter mo de co ro a ção do Rei e Ra i nha de na ção Ca bun dá. –Aos seis dias do mês de ou tu bro de 1811, nes ta ca pe la de Nos sa Se nho -ra da Lam pa do sa, ti ve ram pos se e se co ro a ram de Rei, Ca e ta no Lo pesdos San tos, e de Ra i nha, Ma ria Jo a qui na, am bos de na ção Ca bun dá, pores ta rem ele i tos pela sua na ção e por te rem li cen ça do Ilmo. Sr. Inten -den te-Ge ral de Po lí cia, e para cons tar se lhe man dou pas sar este ter mo,no dia, mês e ano aci ma de cla ra do. – Pa dre To más Jo a quim de Melo, ca pe -lão da ir man da de.”

Se gui am-se si na is ou as si na tu ras dos reis co ro a dos e de ou tras di ver sas na ções que tes te mu nha ram o ato.

Re a tan do a des cri ção in ter rom pi da por este cu ri o so au tó gra -fo, tra tan do dos tra di ci o na is fes te jos de 1748, as se gu ra mos que o qua dro era com ple to, a cena pi to res ca e na ti va men te ins tru men ta da.

Con clu í da a so le ni da de re li gi o sa, o Rei, a Ra i nha e os de ma isfi gu ran tes vi nham in cor po rar-se ao sé qui to de i xa do; e per den do-se nodi la ta do Cam po de S. Do min gos, ar ras ta vam após si a mas sa po pu lar,atra í da pela mú si ca es tri den te, pelo ba lan ce ar aé reo e va ri a do de sur pre -sas dos mu a nas, que tan to re al ce da vam nas avan ça das do ma jes tá ti coprés ti to.

À tar de, com a as sis tên cia dos ré gi os per so na gens da ma nhã,ha via as fes tas pú bli cas co me mo ra ti vas, os clás si cos ba tu ques re a li za dospor ne gros de di fe ren tes tri bos, ten do como te a tro o are al de im pro vi sopre pa ra do na fren te do tem plo, for man do um qua dri lá te ro guar ne ci dopor se mi cír cu los de fo lha gens, que pen di am do alto de bam bus fin ca -dos.

Esta se gun da fes ta era mais con cor ri da e po pu lar; os ne grosdas fa zen das dos je su í tas, os es cra vos das ca sas fi dal gas, al can çan do para isso con sen ti men to, avul ta vam em tro pa no Cam po de S. Do min gos, em ale gre al ga zar ra, pos tan do-se nas ime di a ções do mag no qua dra do, aosru fos das ca i xas de guer ra ba ti das ao lon ge.

Esqui si tos no tra jar, no sem blan te, nos ges tos, ne gras e ne grosno vos ir rom pi am de cada lado, en tre gues à obe diên cia de seus che fes, àvi gi lân cia nun ca ilu di da da po lí cia, que os es pre i ta va.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 283

Page 265: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E os pan de i ros, os tam bo res, as ma cum bas, os can zás, asma rim bas, pre ce den do à mul ti dão, anun ci a vam es tru gin do a en tra datri un fal dos Con gos nos fes te jos pro fa nos da co ro a ção de um Rei ne gro.

Da ca pe li nha, de por tas fe cha das, o ca pe lão à ja ne la re cre a -va-se do sel va gem es pe tá cu lo, e os ne gros de na ção, em ple no dia deReis, jul ga vam-se ven tu ro sos de sua sor te, es que cen do-se dos de ser tosde sua ter ra e das tra ves si as do mar.

284 Melo Mo ra is Filho

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Na Ter ra e no Mar

Estra nho mo vi men to, sin gu la res es pe tá cu los ti nhamcomo te a tro as pra i as da cos ta da Áfri ca, quan do o Rio de Ja ne i ro ar ma -va os na vi os do trá fi co para as vi a gens da mor te e da es cra vi dão.

Os mer ca dos de Ser ra Leoa, de S. Luís, da Gâm bia, de Ango la,de Lu an da e de Ben gue la re gur gi ta vam da mul ti dão inu me rá vel de ví ti mas, pro te gi dos por tan tos for tes que a Ingla ter ra, a Fran ça, a Di na mar ca, aHo lan da, a Espa nha e Por tu gal sus ten ta vam na que les sí ti os, com o fimde ga ran tir-lhes o tor pe co mér cio.

E aque les mer ca dos re ti ni am de can tos e dan ças dos pri si o -ne i ros de guer ra, cho ca lha vam nas ca de i as so pe sa das pe los es cra vos que mar cha vam à fren te dos con du to res de ca ra va nas, tor na vam-se ad mi rá -ve is ao es tron do das re vol tas he rói cas e in gló ri as dos po bres sel va genscon tra as co bar di as dos al go zes e da ci vi li za ção.

Para re pri mir as su ble va ções que se ini ci a vam nos de ser tos, os pi ra tas pu nham em prá ti ca me i os de se gu ran ça e de de fe sa, cada qualmais de su ma no e fe roz.

Não bas ta vam aos ne gros os lon gos dias de ca mi nho à in so la ção e à sede, ao de sa bri go e à fome. A ti ra nia dos tra fi can tes, vi san do ape nas o

I

Page 267: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

lu cro dos car re ga men tos, des de bem lon ge ma ti ri za va os in fe li zes, atan -do-lhes aos pul sos pe sa das cor ren tes e ao pes co ço gar ga lhe i ras de fer ro.

Ao gan cho rom pen te dos co la res mal di tos não era raro ver-se li ga do o bra ço do es cra vo que, du ran te a vi gí lia e o sono, la men ta va-se ege mia na dor do su plí cio.

Mais co mu men te à be i ra do mar e dos rios es ta be le ci am-se os po pu lo sos mer ca dos ne gre i ros, os gran des cen tros onde vi nham re u -nir-se o que o rou bo, o in cên dio, as de vas ta ções e as des le al da des ha vi amco lhi do para ca ti ve i ro.

Ao lado da mer ca do ria ne gra, o fumo e a aguar den te, ve lhasrou pas de te a tro e ca cos de es pe lho, fi e i ras de mi çan gas e tra pos ver me -lhos ex pu nham-se a to das as vis tas, con vi dan do os ré gu los e che fes bár -ba ros, a mãe e o fi lho, o pa ren te e o ami go à tra i ção e à in fâ mia, isto é, à en tre ga de seus sú di tos ou das pes so as mais ca ras,em tro ca da em bri a guez ou de ador nos fa ta is.

E os to ca do res de fla u ta, exe cu tan dosuas mú si cas à en tra da dos ba za res e dis tan tes,pro vo ca vam as fa mí li as ne gras que aflu íam paraes cu tá-los, se guin do-se a isso o cer co, o apri si o na -men to e o ca ti ve i ro.

De que es tra té gi as não se va li am os bran -cos para re a li zar o cri me que fla ge la va a Áfri ca!...

De tudo quan to a ima gi na ção pode com -pre en der de mais pér fi do e a ti ra nia de mais hor ro ro solan ça va-se mão a todo o ins tan te...

Às ve zes, quem atra ves sa va os de ser tos,via nas som bras umas fla mas mal ex tin tas que se avi -va vam iso la das.

So bre elas um si lên cio de se pul cro es ten -dia-se como uma mor ta lha en vol ven do um cor posem vida.

Aqui e ali, po rém, ca dá ve res de ve lhosafri ca nos e de cri an ças pre tas ja zi am es par sos, vol -te a dos por aves de ra pi na que os de vo ra vam e fe rasque la ti am.

286 Melo Mo ra is Filho

Chi co te e pal ma tó ria

Page 268: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E aque las to chas fu me gan tes ar di am fú ne bres à ca be ce i ra dasvi las e al de i as que, es pa vo ri das pe los in cên di os, lan ça vam-se na es cra vi -dão.

Dos com bo i os em vi a gem era a mor te uma com pa nhe i ra se -re na e ami ga.

A quem ha via per di do a pá tria e a li ber da de, que mais es pe rardo des ti no se não o úl ti mo lan ce?

Os tra tos cru éis, a fa di ga e a sa u da de, atu an do como fa to resdes se epí lo go sus pi ra do pelo es cra vo, di mi nu íam os lu cros da em pre sa,o que não per tur ba va a co bi ça dos ne gre i ros, que se de sen vol via semme di da.

Aos que não su cum bi am no trân si to, lá es ta vam os de pos tos que os aguar dam e os po rões das ga le ras que os trans por ta ri am à Amé -ri ca.

Que im por ta va aos con du to res dos re ba nhos de ho mens osgri tos dos már ti res, o pran to da cri an ça ater ro ri za da ao seio ma ter no, ablas fê mia do sa cer do te fe ti chis ta des cren do de seus ído los?

Os tam bo res e os ins tru men tos mú si cos, à fren te dos ban dos, to ca vam com fre ne si aba fan do-lhes as vo zes e os en co ra jan do na jor -na da; as pro mes sas dos lín guas, co mis si o na dos para in tér pre tes, os cal -ma ri am nas su ble va ções em pro je to; e à che ga da aos mer ca dos a es pe -ran ça os alen ta ria por que mais al guns dias po de ri am ador me cer e so nhar nas ter ras da pá tria.

Se as sim não fos se, o sel va gem vi ti ma ria ao sel va gem, o ne gro ao bran co, a po bre mãe es mi ga lha ria com as al ge mas o crâ nio do fi lhi -nho ma man do-lhe à teta o le i te e o san gue.

Era du ran te a noite que ao lon go da Cos ta do Ouro os fa chos de re si na, os lam piões mul ti co res, as ban de i ras, as sin fo ni as sem artepre lu di a vam às por tas dos ba za res, que se opu len ta vam na mes ma li nhados vas tís si mos mer ca dos.

Ca pi tães de na vi os, cor re to res, ma ri nhe i ros, ne go ci an tes,lu xu o sas fa mí li as sul ca vam as pra i as, ofe re cen do às des se me lhan ças umes pe tá cu lo ja ma is vis to, de tan ta gen te di fe ren te pe los cos tu mes, tipo,mo dos, raça e lin gua gem, que vi nham de ter ras lon gín quas in te res sa daspelo trá fi co.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 287

Page 269: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

As fro tas da es cra vi dão apru man do a qui lha, abi ca vam nosde sem bar ques, des car re gan do mer ca do ri as e tur bas de sal te a do res dis -so lu tos e in te res se i ros.

Do in te ri or, as ca ra va nas nuas e ta tu a das, de pes co ço en fi a doaos bu ra cos de com pri das tá bu as ou acor ren ta das, che ga vam des te ouda que le pon to, o que des per ta va dos tra fi can tes e do co mér cio em ge ralcla mo res ale gres e gra ce jos sa crí le gos.

No meio do con cur so do povo que cir cu la va cu ri o so as fe i rasdos ca ti vos, sons des con cer ta dos de mú si cas im por tu nas mis tu ra vam-secom o pran to, os ade u ses, as im pre ca ções dos es cra vos que tu mul tu a -vam nos hor ren dos de pó si tos, nas vés pe ras da par ti da para o exí lio deonde não vol ta ri am mais.

A em bri a guez e a lu xú ria, a ra pi na e a cor rup ção ani ma vam os mer ca dos em mi ría des, nas so le ni da des ás pe ras de suas fes tas e de suasor gi as no tur nas.

Dos di fe ren tes gê ne ros de bar ra cas que se le van ta vam para os di ver ti men tos pú bli cos, na con ti güi da de da dor e das lá gri mas, uma clas seha via em que uni ca men te se exe cu ta va o que os tra fi can tes cha ma vamdan ça ne gra.

Em cada uma o im pé rio da dis so lu ção e do im pu dor pla na vain co men su rá vel, de acor do per fe i to com o re vol tan te co mér cio da es cra -va tu ra.

Era ao es cu re cer que a dan ça ne gra anun ci a va-se por uma or -ques tra de sa fi na da, de me nes tréis am bu lan tes, à por ta dos ba za res.

Os pi lo tos de bri gues e os gui as de ca ra va nas, os ca pi tães e asme re tri zes, os ne go ci an tes e suas amá si as, as fre qüen ta vam as sí du os, avi -go ran do o es cân da lo e a de pra va ção com os li co res for tes, com os vi -nhos abun dan tes que aí se ven di am por fa bu lo sas so mas.

Jus ta men te ao es cu re cer prin ci pi a vam aque les ba i les, cuja tra -di ção con ser va ain da um res to de ho mens que em pre en de ram vi a gem àCos ta no trá fi co dos ne gros.

Aqui e além, exi bin do-se nas bar ra cas aos apla u sos dos mer -ca do res e da ma ru ja in fre ne, de mu lhe res sem brio e de ve lhos de vas sos, ne gras de di ver sas tri bos, os ten tan do for mas las ci vas, apre sen ta vam-separa a dan ça.

288 Melo Mo ra is Filho

Page 270: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Ao som de uma ra be ca e de um pan de i ro, de uma fla u ta e dotam bor, as ba i la ri nas bár ba ras exe cu ta vam dan ça dos vo lup tu o sos, tre -men do-lhes o seio ao tu mul to das va gas agi ta das da que las pa i xões lú bri -cas...

E imi ta vam os ani ma is imun dos, re que bra vam os flan cosacen den do a vo lú pia, sol ta vam gri tos em pa ro xis mos his té ri cos, acor da -vam de se jos amor te ci dos du ran te tem po ra das de mar e ao gelo dosanos.

Tou ca das de con chas, de pé ro las, de ru bis, as ba i a de i ras afri -ca nas mos tra vam os al vos den tes trans pa re cen do atra vés de sor ri soscon vi da ti vos, e para re tri bu í rem as pal mas dos es pec ta do res cor rup tos,ati ra vam com as pon tas dos de dos es tú pi dos be i jos e re ti ra vam-se tre -men do com as an cas, sa pa te an do, can tan do can ti gas mo nó to nas.

E o de bo che, a crá pu la de sen fre a da e lou ca ul ti ma vam a dan çane gra, que en tra va pela meia-no i te e pela ma dru ga da.

Nos de pó si tos dos ca ti vos, os mur mú ri os pun gi ti vos, os ge -mi dos des pe da ça do res, o so lu ço do in for tú nio ve la vam hora por hora,mo men to por mo men to.

Entre al gu mas tri bos esse ca rá ter do so fri men to não se ma ni -fes ta va: a dor era sur da, pro fun da, si len ci o sa, trans lu zin do so men te naex pres são, nos ges tos, no olhar. À for ça de ser con cen tra do, o so fri men toapa ren ta va in di fe ren ça e cal ma.

Por oca sião do em bar que a po pu la ção flu tu an te de sa pa re ciaaos pou cos, es cas se a va como por en can to, dan do lu gar a mu ta ções dece ná ri os e de es pec ta do res.

Aos bal cões dos de pó si tos os ca pi tães ne gre i ros, acom pa nha -dos de uma par te da tri pu la ção, as sis ti am à sa í da dos es cra vos ins cre ven -do-os nos re gis tros de bor do, os des pen se i ros fa zi am o res tan te das pro -vi sões para os na vi os, os bo tes avi zi nha vam-se da pra ia e os mi se rá ve ises cra vos trans pu nham a por ta de en tra da, en ca mi nhan do-se para fora.

E o chi co te es ta la va, os fer ros ti ni am... Alguns ma ta vam-se te -men do o exí lio; ou tros, es ca pan do à vi gi lân cia dos guar das, ma dru ga vam en for ca dos nas pal me i ras dos are a is; e de lon ge em lon ge, es ti ra do nochão, um sel va gem da Áfri ca es ten dia os bra ços, abra çan do pela úl ti mavez a ter ra da pá tria...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 289

Page 271: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E a fro ta ne gre i ra re ce bia a es cra vi dão para po vo ar a Amé ri cados li vres, as flo res tas da Li ber da de!

II

O pa i nel de to das as ago ni as que se des do bra va na que las pra i as po vo a das de ne gros de di ver sas tri bos não po dia ser mais hor ro ro so ere vol tan te. Os mer ca do res bru ta is di ri gin do o em bar que de cen te nas dedes gra ça dos, lá se acha vam a pos tos, pro te gi dos pela ma ri nha gem quees col ta va os ca ti vos e pe las cor ren tes que os su pli ci a vam dia e no i te.

Ta ci tur nos até en tão, som bri os e re sig na dos no pró lo go doseu in for tú nio, os mí se ros afri ca nos, de i xan do a pá tria, rom pi am comtu mul to o si lên cio guar da do.

Era no ins tan te em que as lan chas en cos ta vam às pon tes parare ce bê-los, em que o pri me i ro de les des cia para ser trans por ta do aospo rões dos na vi os es tan ci a dos em cur va.

Então gri tos agu dos fe ri am o es pa ço, a de ses pe ra ção e oge mi do fa zi am-se ou vir atro a do res, ao mes mo tem po que o chi co tese pa ra va a mãe do fi lho, a es po sa do ma ri do, o ve lho da cri an ça, os con -ter râ ne os da mes ma al de ia, os sa cer do tes do mes mo rito.

E a pri me i ra leva aba tia-se nos ma res como uma nu vem parare a pa re cer a bor do dos bri gues que de sa ta vam as ve las.

Mais lon ge, com os pul sos en san güen ta dos das cor das que osre ti nham, gru pos ha via que im plo ra vam a com pa i xão de seus fe ti ches,que se ati ra vam às va gas pro cu ran do a mor te, que ro la vam na are ia mor -den do-se em fú ri as, que se abra ça vam às ár vo res de onde eram ar ran ca -dos fe ri dos.

E a se gun da leva es cu re cia a trans pa rên cia cal ma das on das,cres cen do nos tom ba di lhos si nis tros das ga le ras...

De po is, um ma ri nhe i ro que mer gu lha sur gin do do pro fun docom um es cra vo dis pu ta do à mor te, a mu ti la ção de uma mes ma fa mí liadis tri bu í da ao Sul e ao Nor te, o ade us bár ba ro do sel va gem às ter ras deseu ber ço, e, aqui e além, no mar e em ter ra, a gar ga lha da sa tâ ni ca dalou cu ra re ti nin do fú ne bre como uma sal va nos fu ne ra is de um povo.

290 Melo Mo ra is Filho

Page 272: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Per cor ren do o con vés, os ca pi tães as sis ti am ao em bar que dacar ga, pre si di am à cha ma da da equi pa gem, en quan to que os des pen se i ros,jun to à es ca da de proa, con fe ri am a nota dos re me ti dos para bor do.

Os ga je i ros des te ou da que le bri gue, to can do a si ne ta doran cho, le va vam aos cães de fila, acor ren ta dos aos mas tros, ra çõesabun dan tes, ami man do-os, açu lan do-os con tra um ne gro que pas sa va,uma cri an ça que cam ba le a va cho ran do...

E den tro em pou co os ecos acor da vam aos la ti dos dos cãesafe i tos à guar da dos po rões, a ar ras ta rem pelo pé o es cra vo que ten tas sefu gir ou lan çar-se n’água.

Ape nas su bi am, os in fe li zes ne gros ti nham de sub me ter-se àdis ci pli na es ta be le ci da no trá fi co.

Os ma ri nhe i ros des pi am-nos, acor ren ta vam-nos de pés emãos, con sen tin do que con ser vas sem uma tan ga, mor ta lha gros se i ra eúl ti ma do pu dor.

Então o api to dava o si nal da for ma, toda a tri pu la ção ali nha -va-se nas amu ra das, em pu nha va es pa das e foi ces, se guin do a essa ma no -bra a des ci da dos es cra vos aos po rões, di vi di dos em obs cu ros cár ce res,des ti na dos a ho mens, mu lhe res e cri an ças, que só se acha vam jun tos nas dan ças do con vés.

Des de logo a face de aze vi che do afri ca no per dia a sua corpri mi ti va, a ex pres são trans for ma va-se, e seu olhar vivo e sel va gem,

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 291

Su plí cio dos anjinhos

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acos tu ma do como as águi as a fi tar o sol dos de ser tos, co bria-se de umvéu de san gue que lhe amor te cia a luz.

Amon to a dos no fun do dos na vi os, de vo ra dos pelo ca lor e afe bre, fe ri dos com as cor ren tes ao bu lí cio do mar, os su pli ci a dos dali ber da de atra ves sa vam o oce a no em pes tan do as tre vas.

Com mais lar gue za em um tú mu lo, aque les de ser da dos dasor te vi nham por tal modo opri mi dos que os te tos de suas pri sões cur -va vam-lhes o cor po e a es tre i te za dos pa vi men tos for ça va-os à imo bi li -da de dos em pa re da dos.

Na cons tru ção dos na vi os para a Cos ta, ti nha-se sem pre emvis ta a eco no mia das pro por ções, o apro ve i ta men to das in sig ni fi cân ci asdo lu gar, aten den do-se uni ca men te ao ma i or nú me ro pos sí vel de mer ca -do ria que pu des sem con ter.

Assim, em gra da ção cres cen te eram co muns as di vi sões esub di vi sões, isto é, ha via com par ti men tos para ho mens, mu lhe res ecri an ças, le van do em con si de ra ção re la ti va men te a es tas a ida de e porcon se guin te os ta ma nhos.

Por tas com enor mes fer ro lhos, gra des de fer ro xa dre za das ees pes sas fe cha vam as en xo vi as flu tu an tes, de onde uma vez por diavi nham os es cra vos aci ma a fim de res pi rar o ar li vre, des cen do umahora de po is.

Qu an do os car re ga men tos ex ce di am a lo ta ção dos bri gues,ex pos tos aos ven tos e às tem pes ta des, os es cra vos man sos ocu pa vam aproa e a popa, acon te cen do nes te caso a per da de qua se me ta de da car ga,que à de so ras ati ra va-se ao oce a no ou era ar re ba ta da pe las va gas quevar ri am os tom ba di lhos.

E os es cra vos, ato pe tan do os po rões, acor ren ta dos dois adois, de sa pa re ci dos para me lhor di zer na que las se pul tu ras mo ve di ças,co me ça vam a vi a gem em que no vos hor ro res iam alar gar ain da mais ocír cu lo pa vo ro so de seus so fri men tos e de seus mar tí ri os.

De i xan do o por to, os ma ri nhe i ros, os ofi ci a is, o mé di co e osca pi tães do trá fi co re pim pa vam-se sob a tol da, en quan to que lá em ba i xo a su fo ca ção e os so lu ços, o de ses pe ro e o cho ro, as pre ces e as mal di -ções es bar ra vam nas pa re des in fec tas da que les cár ce res agi ta dos, ao

292 Melo Mo ra is Filho

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es tou ro da vaga que se re par tia em la men tos e à se re ni da de do céu quenão ou via das al tu ras os gri tos dos des gra ça dos.

Para que as on das em tur bi lhão não inun das sem o in te ri ordos na vi os, as es co ti lhas eram mu i tas ve zes fe cha das, in ter cep tan do apas sa gem do ar às ví ti mas que aba fa vam.

Esta cena, vul ga rís si ma du ran te as tor men tas, não de mo viase quer o ca pi tão a or de nar que vi es sem para o con vés, te men do a re vol tacon tra os ma ri nhe i ros, a vin gan ça do opri mi do con tra o opres sor.

Nos dias bo nan ço sos, po rém, a mú si ca to ca va na proa e a ofi -ci a li da de pre ci sa va de sa bor re cer-se da vi a gem.

Entre os po vos bár ba ros os can tos e as dan ças têm tais fas ci -na ções, que uma das ma ni fes ta ções sen sí ve is do seu mais alto re go zi jocon sis te no ba lan ço da alma ao rit mo das to a das na ti vas acom pa nha dasdo mo vi men to do cor po, ca den ci a do e pró prio.

Os ne gre i ros ave za dos às na ve ga ções da Cos tas so cor ri am-sedes te meio para ale grar os ne gros que su cum bi am nos tál gi cos, fa zen -do-os con du zir à tol da aos dez e aos vin te.

Qu an do os car re ga men tos iam além da ca pa ci da de dos bri -gues, con si de ran do igual men te como me di da hi giê ni ca, a ron da che ga vaaté cem, que vi nham res pi rar mais li vre men te, abrin do ma i or es pa ço àcir cu la ção aé rea nos com par ti men tos in ter nos.

Por tar des al ter na das, a um mo men to dado, um ma ri nhe i rodi ri gia-se à ré, che ga va o mor rão a uma peça, a tri pu la ção pu nha-se emati vi da de, en con tran do-se os ma ru jos, aqui e mais lon ge, su bin do e des -cen do, ar ma dos de fa cas, es pa das e chi co tes.

De re pen te, como de se pul tu ras que se abris sem, um ar fé ti do gi ra va no am bi en te de bor do, a vo ze a ri as con fu sas e ti ni dos de cor ren -tes.

Os gon zos ran gi am nas por tas de fer ro, e os pri si o ne i ros fan -tas mas da es cu ri dão, evo ca dos dos in fer nos ne gre i ros, res sus ci ta vam doabis mo para as dan ças ao es ta lar do chi co te, que, na fra se do trá fi co, ex -pan di am as má go as do afri ca no, dis tan te dos seus e da pá tria.

E a ara gem ma ri nha, des flo ran do com a pon ta da asa a na ri na in cen di da e ne gra dos ca ti vos, alen ta va-lhes pou co a pou co a cha ma davida.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 293

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III

O tom ba di lho guar ne ci do de es cra vos, que, olhan do para omar en tris te ci am-se ain da mais com sa u da des de seus de ser tos, pro je ta vao es cu ro da que las som bras nas on das cres pas que ful gi am em re ba nhosda tri lha do bri gue, e en tor na va nas asas da vi ra ção o pri me i ro si nal damú si ca para a dan ça.

As ne gras, ten do ao colo os fi lhi nhos, sen ta vam-se nuas emvol ta do ca ma ro te do co man dan te, que, se ve ro e em pa la vras bre ves,ga ran tia a sua au to ri da de, pre si din do à or dem dos pa res acor ren ta dos,que en tra ri am no ba i le ne gre i ro.

O chi co te vi bra do pe los ma ri nhe i ros, en du re ci dos e in sen sí -ve is aos so fri men tos, dava âni mo aos mi sér ri mos afri ca nos, por que ador tam bém alen ta o in fe liz para ma i o res tor tu ras.

A fla u ta, o tam bor e a ra be ca, pre lu di an do jun tos uns sonsdis cor dan tes, dis pu nham os ne gros para a fes ta e a mor te, à vis ta da ofi -ci a li da de sen ta da em um ban co que cir cu la va o mas tro gran de.

A dan ça ti nha de co me çar, para o que a es cra va tu ra ba tiaca den ci an do as pri me i ras pal mas, es pe ran do o avi so de fi ni ti vo do pi lo to, que es ta va re pim pa do ao lado do mé di co, can ta ro lan do, rin do àsgar ga lha das dos ma les que lhe não per ten cia, das do res que não eram suas.

294 Melo Mo ra is Filho

De ma chos aos pés

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Então, este per so na gem, acos tu ma do às de pra va ções e às or gi asde bor do, man da va que dois da ron da sal tas sem à fren te, e os ca sa is deca ti vos, em al ga zar ra, em gri tos sel va gens, cho ca lhan do as cor ren tes,lan ça vam-se de li ran tes às dan ças hor rí ve is, como uma pro cis são de lou cos que tri pu di as sem por so bre ru í nas fu me gan tes.

– Ba tam pal mas! Abram roda! Bra da va o ca pi tão e os ofi ci a isdo bri gue, rin do sa tâ ni cos, en tre as ba fo ra das do ca chim bo e o to car deco pos che i os de vi nho, em ale gres sa ú des.

– Se o car re ga men to che gar são e sal vo ao Rio de Ja ne i ro, não há dú vi da que está será uma das nos sas me lho res vi a gens!

– De po is de pas sar mos a li nha, a cer te za será ma i or; poren quan to, nem a nos tal gia, nem a su ble va ção, nem a pes te to ma ram aseu car go di zi mar-nos a mer ca do ria.

– É a nos sa boa es tre la, dou tor. Ape sar das pre ca u ções e dotra to, se is cen tos e vin te e qua tro ne gros na bar ri ga de um na vio é car nebas tan te para pro du zir uma in di ges tão, adi an ta o ca pi tão en xu gan do detodo a se gun da gar ra fa.

– Can tai, mi se rá ve is! Dan çai! Ba tei pal mas! Excla ma va o con -tra mes tre, se gui do dos ma ri nhe i ros, tan gen te rijo o açoi te nas ná de gasen san güen ta das dos ba i la do res em tro pel.

E a mú si ca to ca va mais es tri den te; do po rão e da tol da erammais pun gi ti vos os la men tos, ao tom das va gas e das can ti le nas, dosbrin des e da em bri a guez.

Ao co mér cio de es cra vos a per ver si da de li ga va-se de tal modo que a mú si ca e as dan ças, ou tro ra o bem su pre mo do lar sel va gem, lon gede re quin tar-lhes o gozo, avi va vam-lhe mais a sa u da de do pas sa do e oin for tú nio do pre sen te.

Enquan to a ron da fer via tu mul tuá ria, os me ne i os lú bri cosdes per ta vam os apla u sos da equi pa gem; gru pos ha via que es ta ca vam ains tan tes, como que so nhan do com a ca ba na de seus de ser tos e os cli massem pre me i gos de suas pal me i ras na ta is.

E um olhar dos ne gros des do bra-se me lan có li co por so bre ooce a no, me nos lon go do que a sua ago nia, me nos pro fun do do que osseus pe sa res.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 295

Page 277: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Que a dan ça re fer va, que a mú si ca não ces se, que o chi co tees ta le, em bo ra se per cam al gu mas go tas de san gue, que tri bu ta re mos aomar! Era a voz do ca pi tão, em ba ra ça da pelo ál co ol em do ses pro gres si vas.

– Diz bem, co man dan te, as ne gras são las ci vas, os ne grosar den tes, e esse di ver ti men to pá trio os re a ni ma rá du ran te a vi gem.

–- De pres sa! Adi an te! Re pe ti am os ma ru jos chi co te an do a tur ba, que dan ça va ale gre, ver ti gi no sa, des can san do em ra ros in ter va los.

Nis so dois es cra vos, li ga dos pela mes ma cor ren te, pa ra ramofe gan tes. Seus olhos acen de ram-se como cha mas, e seus mem bros tre -mi am em um ca la frio hor ro ro so.

Den tro em pou co, ao ran ger do na vio em ba la do pe las on das,dois cor pos ro la vam no oce a no, abra ça dos com a mor te.

Na luta de ses pe ra da, na que le tran se que vai da vida ao úl ti moins tan te, os su i ci das es car ne ci am da es cra vi dão, al te an do nas va gas ofa cho da li ber da de.

Os ma ri nhe i ros que os ti nham vis to con ti nu a ram mar can do adan ça, e os ofi ci a is, nas cal ma ri as de fogo, cis ma vam ape nas nas oda lis casda noite, ao fres co dos ven tos e ao ca lor dos li co res.

Mo men tos ha via em que o ban do fan tás ti co ro do pi a va tãove loz como um tu fão de de mô ni os à be i ra de um abis mo.

O sol, que ia no cre pús cu lo, pa lhe ta va de cla rões ru bros ocon vés, onde o san gue co a gu la do ou cor ren do em fios pa re cia roto co larde ru bis.

Os tu ba rões, com pa nhe i ros in se pa rá ve is da na ve ga ção daCos ta, cres ci am aos flan cos do bri gue, fa re ja vam o ar, aos dez, aos cem,aos mil...

À amu ra da da proa, du ran te al gum tem po, uma cri an ça pre ta,como que es pre i tan do o ho ri zon te, des co bria no mar um es pe tá cu loes tra nho e si nis tro.

As va gas atro pe la vam-se fu ri o sas... um ras tro de es pu ma eraver me lho de san gue... e sur gin do do pro fun do e mer gu lhan do após, osdois ca dá ve res ro la vam no tor ve li nho, co ro a dos de tu ba rões vo ra zes que ro íam-lhes o crâ nio e des pe da ça vam-lhes os mem bros.

Vi sões no tur nas, apa ri ções aé re as, so nhos fe bris vi nham àmen te dos que es ta vam nos cár ce res dos po rões, en quan to os seus

296 Melo Mo ra is Filho

Page 278: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

com pa nhe i ros de des ti no pro lon ga vam em cima a vida res pi ran do o arpuro, ao lado do su plí cio e da es cra vi dão.

– Mú si ca! Mais mú si ca! Bra da va o ca pi tão, di ri gin do-se aosme nes tréis na va is, que se es bo fa vam no ba i le dos ne gros...

E os sa pa te a dos, os ron cos, as to a das bár ba ras, as pal mas acom pas so, e o re ti nir dos fer ros acom pa nham os mo vi men tos doses cra vos na ron da fan tás ti ca, que fa zia es tre me cer o so a lho es cor re ga -dio de san gue e da po e i ra das águas.

Os mons tros do mar, ar re ga nhan do os den tes, ca mi nha vamno ras tro do na vio, acos tu ma dos às re fe i ções de car ne hu ma na que lhespro di ga li za vam os ne gre i ros.

Como se a vida não lhes fos se mais do que uma som bra en tre dois abis mos, os afri ca nos mu i tas ve zes can ta vam e riam con ten tesdo mi nan do o hor ror de seus dias.

O bri gue na ve ga va cal mo e nem uma vela ata da aos mas trosfa zia-o jo gar à que da dos ven tos.

O en tu si as mo da ofi ci a li da de, fi tan do a es cra va tu ra lu zi dia,to ca va a seu auge, e o co man dan te agar ra va-se com os san tos de suade vo ção para que o car re ga men to che gas se sem ava ri as, por isso que asua co mis são o com pen sa ria lar ga men te dos la bo res da tra ves sia.

De re pen te um tri lar do api to des per tou os na u tas ne gre i rosda doce ilu são de suas cis mas, fa zen do-os crer em uma in sur re i ção abor do.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 297

Cepo e corrente

Page 279: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Os mar can tes de ba i le fi ze ram pa rar as dan ças, os ma ri nhe i ros ti ra ram da cin ta a faca pon ti a gu da, os es cra vos afas ta ram-se em gru popara o cen tro do con vés, e uma sal va de ar ti lha ria atro ou os ares.

Os ne gros ame dron ta dos ba i xa ram-se, aco co ra ram-se trê mu los, en quan to que a ma ri nha gem dis po ní vel des ceu ao po rão, se gui da doco man dan te, que es bra ve ja va pen san do nos pre ju í zos pro vá ve is.

Apro xi man do-se das gra des de fer ro da en xo via, sen tiu que se es ca pa va de den tro um odor in fec to e ca rac te rís ti co, no tan do igual -men te a vo ze a ria de ne gros que apon ta vam para a es cu ri dão, es pa vo ri dose cho ran do.

O ca pi tão, cha man do o in tér pre te, sou be que três dos es cra vos, para se li ber ta rem do ca ti ve i ro, ha vi am na noite an te ce den te re vi ra do alín gua con tra a epi glo te, su i ci dan do-se.

A po dri dão era in su por tá vel... a de com po si ção ca da vé ri ca,uni da ao ba fio das de je ções e dos vô mi tos, acen di am o de ses pe ro e afe bre em par te da mer ca do ria.

É pos sí vel que o mo tim fos se o re sul tan te do de lí rio.Me ti dos em for ma, ao man do do ca pi tão, os ma ru jos trans pu -

se ram o in fer nal re cin to gui a dos pelo con tra mes tre que sus pen dia nafren te uma lan ter na de aze i te de pe i xe.

À pas sa gem des tes, os ge mi dos e o cho ro das cri an ças eramcom pun gi do res.

Como de um tú mu lo, re ti ra dos aque les mor tos, os ma ri nhe i rosos car re ga ram à tol da.

As lu zer nas, pen du ra das de há pou co nas ver gas, ilu mi na vamcom cla rões de fogo aque la cena fú ne bre.

E os três ca dá ve res, er gui dos à al tu ra da fron te pe los ma ri -nhe i ros pos san tes, fo ram lan ça dos ao mar, que fe chou-se so bre elescomo um abra ço ma ter no.

Nes se mo men to, os ecos, des flo ran do o ca be ço das on das,le va ram para bem lon ge os la men tos dos afri ca nos, que car pi am, acor -ren ta dos no tom ba di lho e ao pran to das es tre las, a es cra vi dão da vida ea li ber da de da mor te.

298 Melo Mo ra is Filho

Page 280: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Va lon go

Até à abo li ção do trá fi co, era o Va lon go o gran deba ir ro do Rio de Ja ne i ro em que os ar ma zéns de es cra vos no vos os ten -ta vam-se pro fu sos.

Ima gi ne-se o as pec to na u se a bun do da que les sí ti os ha bi ta doscons tan te men te por le vas afri ca nas que se re no va vam, po vo a dos por ci -ga nos e mi ne i ros que re a li za vam al tas es pe cu la ções, pela ma ri nha gemdos na vi os ne gre i ros, es pa lha da aqui e ali, con tra tan do-se para as vi a -gens, em bri a gan do-se nas ven das ato pe ta das da ca na lha e dos ne gros.

De via ser cu ri o sís si mo o que se ob ser va va na que las ruasimun das, a qual quer hora, a qual quer mo men to do dia e da noite.

As lín guas bár ba ras pro nun ci a das com a acen tu a ção na ti va,pon tas de es cra vos acor ren ta dos e se mi nus, acom pa nhan do os em -pre ga dos dos de pó si tos e os fa zen de i ros do in te ri or, ca pi tães ne gre i ros com pran do bu gi gan gas para o co mér cio das per mu tas – tudo en fimdes ti na va-se a pro du zir so bre es pec ta do res es tra nhos o efe i to maisvivo e im pres si o na dor.

Ajun tan do a isso os gri tos de dor das ví ti mas re ce ben do so breas es pá du as ou ou tras re giões do cor po as mar cas de fer ro em bra sa, nada fal ta va para com ple tar o ar ca bou ço das ce nas pró pri as da que les mer ca dos e que tan to de bi li ta vam o sen so mo ral na que les tem pos.

O mo vi men to co mer ci al do Va lon go har mo ni za va-se ple nocom as cru el da des ab so lu tas que se pra ti ca vam, cru el da des pró pri as dogê ne ro ne fan do do ne gó cio.

Page 281: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Em sua ati vi da de la bo ri o sa, cres ci do nú me ro de in te res sa dosper cor ria aque las ruas, exa mi nan do, in da gan do, ajus tan do a mer ca do riane gra, que, ex pos ta nos ba za res, de sa fi a va o co bi ça dos pre ten den tes dedi ver sas ca te go ri as e con di ções.

Em toda a Pra i nha, es sas ca sas exis ti am a tal pon to agre mi a das, que se po dia as se gu rar que me ta de das lo jas ou pa vi men tos tér re os dalo ca li da de eram ocu pa dos por ar ma zéns de es cra vos, in clu in do nes saes ta tís ti ca os es cri tó ri os dos cor re to res, que ace i ta vam uni ca men teen co men das de car re ga men tos, com as pre fe rên ci as de tri bos ou de ra ças.

As ta tu a gens bi zar ras dis tin gui am evi den te men te as na ções desua pro ce dên cia, como, por exem plo, as in ci sões ver ti ca is do mon jo lo,os tu bér cu los ci ca tri ci a is e em for ma de cris ta de galo dos es cra vosmi nas, o lu xu o so pen te a do em di a de ma dos ne gros ven di dos na cos tade Mo çam bi que.

Cum pre no tar, po rém, que em re la ção às di ver sas tri bos queabas te ci am o Va lon go, ha via gos tos dis tin tos, ama do res mais ou me nosapa i xo na dos.

Para cer ta clas se de in di ví du os as mon jo las va li am alto pre ço,por isso que, ape sar de fe i as, fa la vam me lhor aos ins tin tos sen su a is doque as do Con go e as de Ben gue la.

As fa mí li as es co lhi am as do Con go por se rem mais ale gres edó ce is.

Des de que os ne gros no vos de sem bar ca vam, o ca mi nho ime -di a to a se guir era a dos men ci o na dos de pó si tos.

300 Melo Mo ra is Filho

De pó sito de es cra vos no Valongo

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Acom pa nha dos por pra ças de po lí cia e ma ri nhe i ros dos res -pec ti vos na vi os, acor ren ta dos mu i tos e al ge ma dos ou tros, tro pas dees cra vos che ga vam ao seu des ti no, isto é, aos ar ma zéns do Va lon go.

Qu an to à dis po si ção ge ral, a par te des cri ti va des ses an trosli mi ta-se a pou co.

Não é ne ces sá rio en cher fo lhas de pa pel fa zen do-se-lhes oin ven tá rio dos mó ve is, de ins tru men tos de su plí cio, dos aces só ri os, poisa ima gi na ção do le i tor po de rá su prir o que nos es ca par à pena.

Em am plos li ne a men tos, as ca sas de que tra ta mos com pre en -di am à pri me i ra vis ta a sala da fren te, onde sen ta dos em dois ban cos depau de di men sões va riá ve is, es ten di am-se duas fi las de ne gros que aíes ta vam para ser ven di dos.

Acima da ca be ça do cor re tor, as mais das ve zes ci ga no,repotre a do em sua ca de i ra de bra ços, via-se um gros so chi co te de pen du ra do no muro; uma mesa ocu pa va ocentro e uma mo rin ga che ia de água des can sa va nobaten te de uma ja ne la.

De den tro, es pi an do atra vés de gra des defer ro, mo le ques e ne gros nus, ma gros e do en tes,viam-se em tur mas, co çan do as sar nas, sa cu din do ale pra.

Na sala, à noite trans for ma da, com per mis -são dos do nos, em re cin to de ba i le para os ne gros, oses cra vos con ser va vam-se em gru pos se pa ra dos, epara que se co nhe ces se a quem per ten ci am, as tan gaseram de cor di fe ren te.

Fa min tos, opi la dos, hé ti cos, co ber tos defe ri das, aque les es que le tos sen ta dos ou de có co rasapre sen ta vam-se com a pele lus tro sa e im preg na da de óleo de rí ci no, que, com o odor das se cre ções es pe ci a isà raça, mis tu ra va-se no ar, tor nan do-o di fi cil men teres pi rá vel.

Do mes mo modo que com os ca va los, osci ga nos usa vam, no seu co mér cio, de ex pe di en tesmúl ti plos.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 301

Ba ca lhau de cin co per nas

Page 283: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Para ilu di rem os com pra do res, pu nham to dos os ar ti fí ci os em con tri bu i ção: uma fru ta fe cha da na mão para ocul tar um de fe i to fí si co,um pu nha do de açú car ati ra do às cos tas de uma boa peça, a fim de atra iras mos cas e de pre ci ar o gê ne ro.

Na lufa-lufa do povo quan do che ga vam os bri gues e as ga le rasda Cos ta da Áfri ca, as ce nas mais es tra nhas pas sa vam-se no Va lon go,avil tan do os nos sos sen ti men tos e os nos sos cos tu mes.

Aqui era um pre ten den te que re vis ta va o cor po e os den tes de uma po bre es cra va; ali um in di ví duo exi gen te que fa zia dan çar um ne gro para cer ti fi car-se de sua agi li da de; aco lá um fa zen de i ro que es co lhia umlote, de po is de ta te ar a mer ca do ria mais ape te ci da, le van do à con ta osexo e a ida de.

Os mo le ques e as ne gri nhas, bor dan do as cal ça das, des per ta -vam os de se jos dos me ni nos e das me ni nas, que pe di am aos pais para os com prar, o que em re gra su ce dia.

Nos bons ar ma zéns, além da sala e de ou tros com par ti men tos ge ra is, ha via dor mi tó ri os vas tos, cada um com a sua ta ri ma, em que apro mis cu i da de só di ta va se ve ra lei.

Dia e no i te em co mum, amon to a dos como ani ma is, os ca ti vosde Áfri ca, per ma ne ci am na imun dí cie mo ral até que fos sem ven di dos,avul tan do em tais es pe lun cas o con tá gio da pes te e da sí fi lis a pa u tamor tuá ria.

302 Melo Mo ra is Filho

Ne gro no tronco

Page 284: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Enquan to isso se pas sa va no Va lon go, a Cos ta do Ouro co a -lha va-se de ne gre i ros, que, à som bra do pa vi lhão na ci o nal, de vas ta vamos de ser tos de seus fi lhos e po vo a vam o oce a no de ca dá ve res.

À meia-noite, as re don de zas dos ar ma zéns, exa lan do odo respo dres, re ti ni am de can ti gas bár ba ras e de dan ças con vul si o ná ri as.

Eram os po bres es cra vos que car pi am no de lí rio do pan go sa u -da des da ca ba na de seus pais e dos rios de sua ter ra.

E por que não mor re ram em suas are i as? Por que não seamor ta lha ram em seus de ser tos, onde o céu tem sem pre uma es tre la, e a es tre la uma lá gri ma de luz para os que su cum biram na tra ves sia davida?...

Mas os tu ba rões er gui am a tes ta cha ta na ar den tia dos ma res;os bri gues, pas san do a li nha, pre ci sa vam che gar a sal vo ao Rio de Ja ne i ro,e os ris cos de co mér cio ur gi am que fos sem dis si pa dos.

O trá fi co, sem con di ções, sem re gu la men to, sem leis, cons ti -tu ía um ele men to de lu cros e de pro gres so, e o Va lon go não po dia seren tor pe ci do na sua mar cha as cen si o nal e pro ve i to sa.

A Pra i nha e o cais da Impe ra triz re gur gi ta vam de com pra do resde ser ra aci ma, de ne gros em trân si to, de ci ga nos rou ba do res de es cra vos, das tri pu la ções que de sem bar ca vam, gi ran do en tre to dos a des con fi an ça, os sen ti men tos mais de si gua is e as in cer te zas mal di tas.

A cal ati ra da nos po rões, os pre ven ti vos gros se i ros queem pre ga vam os ca pi tães ne gre i ros, nem sem pre bas ta vam para con ju rar o es cor bu to, a gan gre na, a di sen te ria e a ce gue i ra que aco me ti am osafri ca nos, fla ge los para os qua is – car ga ao mar – im pu nha-se, às ve zes,como um de ver do re gu la men to ne gre i ro.

A al ga zar ra e os la men tos, o cho ro e as chi co ta das, ins tru -men tan do o es pe tá cu lo da es cra vi dão, au men ta vam-lhe o hor ror, cri an doum ci clo ig no ra do no in fer no dan tes co.

Como epí lo go da tra gé dia ne gra, cir cu la vam na que las pa ra -gens re des e ban güês que trans por ta vam os mor tos ar ran ca dos às se pul -tu ras dos cár ce res pri va dos e do pro fun do dos ar ma zéns, onde a at mos -fe ra as fi xi a va e as ago ni as não en con tra vam um seio ami go.

Ao fumo das can de i as de aze i te de pe i xe, às exa la ções dagan gre na cor ro en do os mem bros ul ce ra dos, as dan ças e os con tos

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 303

Page 285: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

sel va gens dos es cra vos no vos ator do a vam a re don de za, acor dan do osecos no tur nos, que re pe ti am lú gu bres os tons fi na is do con cer to.

Por ve zes a mer ca do ria ra re a va e a pro cu ra dos mi ne i rosle van ta va cri ses: isso se dava em cer tas épo cas do ano as so la das pe losna u frá gi os, pe las ca la mi da des de bor do, pe las epi de mi as, em que avul ta -dís si mos car re ga men tos afun da vam-se no oce a no ou eram lan ça dos àsva gas a fim de im pe dir a trans mis são do con tá gio à equi pa gem.

Não obs tan te, o trá fi co do mi na va im pu ne nos ma res, o rou bo e as de vas ta ções cons ti tu íam a se nha da pi ra ta ria au daz, e o Va lon gode sa fi a va com os seus hor ro res as mal di ções do fu tu ro.

304 Melo Mo ra is Filho

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Um Fu ne ral Mo çam bi que em 1830

Na ter ra do exí lio, na pra ia do ca ti ve i ro, os po bres es cra -vos re u ni am-se para en ter rar os seus mor tos, se gun do cos tu mes pró pri ose usos pri va ti vos.

O na vio ne gre i ro e o Va lon go po di am ca ti var-lhes a li ber da dedo cor po, po rém ja ma is con se gui ram to lher-lhes o vôo da alma no sen -ti men to co mum, na união es tre i ta da des gra ça.

Cho rar no mes mo pran to, ge mer em um só ge mi do era a sina dos mí se ros es cra vos de Áfri ca che ga dos a es tas pla gas, e esse pen sar,essa dor eter na que lhes bro ta va do seio como das ca cho e i ras as águasque se es pa da nam, eles as trans mi ti am aos seus des cen den tes cri ou los,que na pri mi ti va hon ra ram a raça de seus pais apri si o na dos em lon gester ras.

Povo es sen ci al men te afe ti vo, os ne gros no Bra sil apa re cempor um lado tão sim pá ti co que fora uma in jus ti ça da His tó ria não re co -lher-lhes as tra di ções ad mi rá ve is, na luta em pe nha da atra vés do ca ti ve i ro e da ci vi li za ção.

Vi ven do co nos co no tem po e na ação, os es cra vos do mi na -ram às ve zes de tão alto que a eles de ve mos en si no e exem plos.

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Em sua exis tên cia ig no ra da e na pu re za dos seus cos tu mes,quan to não te ri am de apren der duas par tes da imi gra ção atu al, paraquem o úni co Deus é o ouro, e o ide al nos so ani qui la men to?...

Entre tan to o es que ci men to se tem fe i to so bre o seu pas sa doim po lu to, mes mo por que des cen den tes bas tar dos re pu di am tor pes asa gra da ori gem de que pro ce de ram.

Per cor ren do a His tó ria, de i xan do ilu mi nar-nos a fron te a luzama re len ta das crô ni cas, não sa be mos ao cer to quem ma i or in fluên ciaexer ceu na for ma ção na ci o nal des ta ter ra, se o por tu guês ou o ne gro.

Cha ma dos para juiz nes ta ca u sa, ne ces sa ri a men te o nos sovoto não per ten ce ria ao pri me i ro.

Na ti vis ta con vic to e por he ran ça de fa mí lia, não se re mos nósquem sa cri fi que pelo café as tra di ções his tó ri cas de três ra ças po de ro sas, de que este país é a re sul tan te cons ti tu í da.

Como pes qui sa et no grá fi ca, ne nhu ma das le vas co lo ni za do ras me re ce-nos mais aten ção que as im por ta das da cos ta da Áfri ca e suapro le.

Des de o cre pús cu lo ma ti nal da co lô nia, fo ram es tas que sus -ten ta ram, à se me lhan ça de ca riá ti des, o pór ti co das nos sas ins ti tu i çõesso ci a is, con tri bu in do lar ga men te para o nos so pre sen te, ame a ça do atodo o ins tan te por na ci o na li da des que nos in va dem sem obs tá cu los.

Ape sar de bár ba ros, de avil ta dos pela con di ção, os nos sos es -cra vos pos su íam cos tu mes che i os de po e sia e de gra ça, de cer ta tris te zaque en le va e en can ta.

Das di fe ren tes tri bos que abas te ci am os mer ca dos do Rio deJa ne i ro, os mo çam bi ques e os re bo los co lo ca ram-se em pla no mais dis -tin to, com re fe rên cia à ca rac te rís ti ca de seus cos tu mes na ci o na is, aquimo di fi ca dos, é ver da de, se gun do as exi gên ci as dos me i os.

Re ser van do al guns ca pí tu los des ta obra a essa po bre gen teque tan to amou e so freu, der ru ban do flo res tas, fun dan do ci da des,acom pa nhan do-nos em nos sas ale gri as e em nos sos pe sa res, li ne a men -tos ét ni cos de sua vida de re la ção, an tes de pa rar mos hor ro ri za dos empre sen ça dos qua dros de seus mar tí ri os.

306 Melo Mo ra is Filho

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Como aci ma dis se mos, os ne gros do Rio de Ja ne i ro en ter ra -vam os seus de um modo com ple ta men te par ti cu lar, quan to ao ce ri mo -ni al que an te ce dia ao ato da inu ma ção.

Di ver si fi ca do con for me as tri bos, os mo çam bi ques sa li en ta -vam-se no apa ra to fú ne bre, a que fa zi am pre ce der por ve zes de ou trosde ve res, de pen den tes dos re cur sos pe cu niá ri os do com pa tri o ta mor to.

Assim, quan do fa le cia um po bre de sua na ção, os pa ren tes epar ce i ros o con du zi am em uma rede que fi ca va des de o ama nhe cer jun toao muro de uma igre ja ou à por ta de qual quer ven da.

Duas ne gras, de face pe sa ro sa e ves ti das de luto, con ser va -vam-se com duas ve las ace sas jun to à rede fu ne rá ria, re co lhen do dospas san tes o óbo lo da ca ri da de para o en ter ro, com ple tan do a soma oscom pa trí ci os do de fun to que apa re ci am no mo men to.

Os en ter ra men tos dos es cra vos fa zi am-se an ti ga men te noce mi té rio da Mi se ri cór dia, e por ex ce ção nos tem plos.

Se gun do o que sa be mos, ne nhum in di gen te mo çam bique, por fal ta da quan tia exi gi da, de i xou de ser se pul ta do com de cên cia, isto é,pa gan do os in te res sa dos três pa ta cas ao hos pí cio da San ta Casa, que sein cum bia de man dar bus car o cor po e do mais.

Não sen do o fi na do to tal men te mi se rá vel, pos su in do bens oudi nhe i ro, as pom pas fú ne bres tor na vam-se re gu la men ta res, e tan to maisru i do sas quan do se tra ta va de al gum per so na gem ilus tre en tre eles, taiscomo reis, ra i nhas e prín ci pes de raça.

Exclu in do os car re ga do res da rede mor tuá ria, o mes tre dece ri mô ni as e o tam bor-mor, o prés ti to com pu nha-se de mu lhe res ou deho mens, con for me o sexo do ca dá ver.

O de pes so as re a is con gre ga va am bos e mais ain da as cri an ças,que des fi la vam com es tré pi to pe las ruas até à igre ja, que es pe ra va o mor to com as por tas en cos ta das e cí ri os guar ne cen do a ‘eça’.

Nes sas ce ri mô ni as, sem pre atra en tes pela ori gi na li da de, osin fe li zes afri ca nos ma ni fes ta vam a seu modo a dor pro fun da que os aca -ba va de fe rir, a de so la ção da tri bo ven do-se se pa ra da de um dos seusmem bros.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 307

Page 289: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E nem se diga que o aban do no in ter pu nha-se à vida e à mor te,que os es cra vos não se de sem ba ra ça vam do ca ti ve i ro para de bru çar-se li -vres à be i ra dos se pul cros.

A igre ja da Lam pa do sa, que em 1830 era ser vi da pelo cle rone gro e per ten cia a uma ir man da de de mu la tos, cons ti tu iu-se a ne cró po lefi dal ga dos afri ca nos des ta ci da de, e di an te do adro vi nham pa rar osfú ne bres prés ti tos, exe cu tan do o seu ri tu al lú gu bre, no meio de ala ri dossel va gens e dan ças fu ne rá ri as.

O acom pa nha men to era o mais atro a dor e rude, não de i xan dopor isso de re ve lar uma fi si o no mia es pe ci al de cos tu mes au tên ti cos epri mi ti vos.

A pro cis são, que, até à sa í da do cor po, li mi tar-se-ia a meiadú zia de pa ren tes e ra ros ami gos do de fun to, des de um pou co adi an teavo lu ma va-se con si de rá vel, por isso que os ne gros da mes ma ter ra, oscon ter râ ne os da mes ma pá tria o se gui am às des pe di das do ca ti ve i ro e do tú mu lo.

À fren te ia o mes tre de ce ri mô ni as, um pou co mais atrás otam bor-mor, e la de an do a rede co ber ta com um pano pre to sul ca do deuma cruz bran ca, a fa mí lia, ro de a da de mo çam bi ques, que ba ti am pal masca den ci a das e can ta vam os seus la men tos.

Se gu ran do dos la dos a cor ti na mor tuá ria, os fi lhos e os ín ti mos ca mi nha vam va ga ro sos, ao es tron do do tam bor, que a cada pas sofa zia-se ou vir eco an do lú gu bre.

Por vol ta das 5 ho ras da tar de che ga va ha bi tu al men te o cor te joà Lam pa do sa.

De por tas fe cha das, em ra zão de ajun ta men tos, os cu ri o sosto ma vam-lhe os de gra us, e de fron te, es ten di dos em alas, os ga nha do rese as qui tan de i ras etío pes, com os ces tos e ta bu le i ros à ca be ça, es pe ra vam o prés ti to, que ao lon ge era anun ci a do por dois si nos.

Ape nas es tes do bra vam, os con tris ta dos pre tos ar ri a vam nochão as suas car gas, en sa i a vam os seus la men tos, com a boca fe cha da ato dos os ri sos e os olhos ar ra sa dos das mais quen tes lá gri mas.

Den tro em pou co a igre ja se abria e os pa dres vi nham aope que no adro para re ce ber o ca dá ver.

308 Melo Mo ra is Filho

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E per to, bem per to, o tam bor atro a va, e uma me lo péia ás pe rae sel va gem ou via-se pró xi ma.

Os con vi da dos da mor te, na ob ser vân cia de seus ri tos so le nes,trans pu nham o Lar go do Ro cio e en tra vam na Rua do Sa cra men to.

Com dois len ços ver me lhos co brin do-lhe o pe i to, de cal çacur ta, e de ro di lha ver de na ca be ça, o mes tre de ce ri mô ni as, rom pen do a mar cha, fa zia evo lu ções com uma vara à ca dên cia das pal mas que ba ti amos ne gros nas cal ça das e os acom pa nha do res.

Nis so os si nos tan gi am pela úl ti ma vez, e o ne gro do tam bor,es can cha do em seu bom bo, ba tu ca va com os pu nhos cer ra dos, apro ve i -tan do o si lên cio que su ce dia ao se gui men to da rede para o re cin to daigre ja.

Ape nas esse fé re tro aé reo en ca mi nha va-se ba lan çan do, oscân ti cos fú ne bres em hon ra do mor to re a ni ma vam-se, as pal mas re pro -du zi am-se mais ace le ra das, o ru far bár ba ro do tam bor era mais ve loz, ea rede, len ta como a ago nia, pe sa da como o in for tú nio, pe ne tra va notem plo.

De po is... a cal ma era pro fun da. E a tre va, des cen do si len tenos bra ços da noite, ve la va o úl ti mo sono do ca ti vo, que se li ber ta ra davida e da es cra vi dão.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 309

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Lu cas da Fe i ra

Na ga le ria dos cri mi no sos cé le bres, ocu pa esse fa cí no ra, no Bra sil, um dos pon tos mais cul mi nan tes.

Nas ceu Lu cas na fa zen da do Saco do Li mão, na pro vín cia daBa hia, e era es cra vo de uma D. Antô nia, rica pro pri e tá ria na Fe i ra deSan ta na.

Por mor te des ta se nho ra, pas sa ram os seus bens a seu so bri -nho o pa dre João Alves Fran co, que re ce be ra, com os avul ta dos ca be da isda ter ra, es co lhi da es cra va tu ra, de que fa zia par te o mo le co te Lu cas.

Na ida de de 20 anos, o pa dre seu se nhor man dou-o apren dero ofí cio de ca ra pi na, e nes sa apren di za gem fu gia a mi ú do, vol ta va apa -dri nha do, até que, per den do o medo, de i xou de pro cu rar pa dri nho, eco me çou a as sal tar e rou bar no mato e nas es tra das, ma tan do a quan toslhe re sis ti am.

Os dias pre di le tos para as suas vi o lên ci as e as sas si na tos eramas ter ças-fe i ras e de po is as se gun das – dias de fe i ra no lu gar – por issoque nes sas oca siões o povo que vi nha à ci da de tra tar de ne gó ci os cres cia mu i tís si mo de nú me ro.

Assen tan do des tar te a sua ten da de sal te a dor na Fe i ra de San -ta na, a ele se fo ram as so ci an do vá ri os es cra vos fu gi dos, que for ma ram aas som bro sa qua dri lha de que Lu cas era o che fe hor ren do e pa vo ro so.

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O Dr. Vi cen te Fer re i ra Alves dos San tos, pri me i ro juiz le tra do do ter mo, du ran te o seu exer cí cio, fez o mais que pôde para pren derLu cas, ten do des ta ca do, além da for ça de po lí cia, al gu mas pra ças deca va la ria, que, ao re cla mo dos as sal ta dos ou a qual quer no tí cia, se gui ame vol ta vam sem nada con se guir, em bo ra au xi li a dos por ca bo clos daPe dra Bran ca, ras te a do res ha bi tu a dos e de ou vi dos exer ci ta dos.

Re pe ti das ve zes, por es sas di li gên ci as frus tra das, pren di am eaçoi ta vam, nas gra des da ca de ia, um pri mo e par ce i ro de Lu cas, su pon -do-se exis tir cor res pon dên cia en tre am bos, e daí se cre to avi so.

O Dr. Vi cen te Fer re i ra Alves as sis tiu à exe cu ção das sen ten çasde mor te na for ca a que fo ram con de na dos os es cra vos Fla vi a no eJa nuá rio, sal te a do res da re fe ri da qua dri lha.

A guar da ne gra de Lu cas ar re gi men ta va cer ca de trin ta in di ví -du os, ne gros e mu la tos, to dos es cra vos de se nho res-de-en ge nho e depe que nos la vra do res.

Ni co lau, em uma noite de ter ça-fe i ra, com Lu cas, na es tra dada La goa Sal ga da, as sal tan do um gru po que vol ta va da Fe i ra para casa,foi mor to a tiro, e com ele uma pre ta sua com pa nhe i ra no cri me.

Os as sal ta dos cor ta ram a ca be ça do mal fe i tor, e na ma nhãse guin te en tra ram com ela fin ca da em um pau pe las ruas da ci da de.

Por or dem da au to ri da de, o ci rur gião José Ma ria So a res deMelo ex tra iu-lhe o en cé fa lo, sal gou-a, e em um pos te, no Cam po doGado, no lu gar onde se le van ta ra a for ca, fi cou ex pos ta ao pú bli co.

Nes sa tar de en tra ram na po vo a ção os dois ca dá ve res às cos tasde um ani mal, su ce den do-se ao cor po de de li to dar-se se pul tu ra à ne grae en tre gar-se o cor po de Ni co lau à po pu la ça in fre ne, que, de po is dear ras tá-lo pe las ruas, lan çou-o em uma enor me fo gue i ra, que o re du ziu a cin zas.

O de le ga do su plen te que en tão ser via, par ti ci pan do a ocor -rên cia ao Go ver no, foi se ve ra men te re pre en di do pelo che fe de po lí cia,por ter con sen ti do em ta ma nha sel va ge ria.

O ne gro sal te a dor con ta va em seu grê mio fo ra gi dos re so lu tos, ba lu ar tes re sis ten tes aos em ba tes da luta e do im pre vis to.

312 Melo Mo ra is Filho

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Da ár vo re, a cuja som bra er guia a sua ten da, de sen ro la va-seuma rede de ci pós em vá ri as di re ções, uma es pé cie de te lé gra fo, quetrans mi tia, por meio de con ven ção pré via, avi sos e no tí ci as.

Lu cas era um ban di do de ma i or es ta tu ra que Pe dro Espa nhol, co me teu mais de cen to e cin qüen ta as sas si na tos, rou bou com mais afoi -te za, os de flo ra men tos por ele pra ti ca dos fo ram inú me ros.

Na es tra da e nos as sal tos às fa zen das ele e os seus ma ta vamho mens, cri an ças e mu lhe res, e a al gu mas des tas de po is de avil tá-las com as suas tor pe zas.

Às ve zes, sa tis fe i tos os seus bru ta is de se jos, as de i xa vam nuas, un ta das de mel do tan que, amar ra das a um tron co de ár vo re, até quemor ri am de fome e de mor de du ras de in se tos.

A ter rí vel qua dri lha in fes ta va mu i tís si mas es tra das – ao sul, ada Ca cho e i ra e San to Ama ro; ao nor te, a de S. José, Ca na vi e i ras e S. Vi cen te;a les te, La goa do Fur no, Re gis tro e La goa Sal ga da; a oes te, Ja cu í pe,Ca tum bi e Pe dra do Des can so.

Em al gu mas en tra das no mato a po lí cia e a for ça de li nhacon se gui am pren der um ou ou tro do ban do, que su bia à for ca semre mis são nem agra vo.

Fla vi a no e Ja nuá rio as sim aca ba ram.Di a ri a men te mar cha vam con tra os fa cí no ras pes so as ar ma das,

e dis pos tas aos ris cos da aven tu ra, ca in do mor to por bala o sal te a dorque re sis tia iso la do ou que não as ti nha pres sen ti do.

Lu cas e os seus se qua zes as sas si na vam au to ri da des, car gue i ros,vi a jan tes, por ta do res de di a man tes e di nhe i ro, sa ben do de vés pe ra o iti -ne rá rio dos in di ví du os e de quan to le va vam con si go.

A acre di tar-se em bo a tos, o sal te a dor da Fe i ra dis tri bu ía o que rou ba va com al guns ne go ci an tes da ci da de e al tas in fluên ci as po lí ti cas,mo ti vo por que es ca pa va às to ca i as e es pe ra va cer te i ro os co mer ci an tesem trân si to, con du zin do por mais de vin te anos uma vida de rou bo, dede vas ta ção e de as sas si na tos.

De uma fe i ta sen do mor tos na vila do Tu ca no o juiz mu ni ci palDr. Pro có pio e oito pes so as daí, mais o che fe de po lí cia Dr. Fran cis coGon çal ves Mar tins (de po is Ba rão de S. Lou ren ço) teve de se guir para olo cal do cri me a fim de sin di car o fato e ins ta u rar pro ces so.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 313

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Na Fe i ra de San ta na, por onde pas sou, de mo rou-se pou cosdias, dan do pro vi dên ci as so bre uma ou tra mor te – a de Fir mi no Fer re i ra Sar men to, e so bre o meio prá ti co de se pren der Lu cas.

Nes te sen ti do man dou afi xar edi ta is e pu bli car pela im pren saque o Go ver no da ria qua tro con tos de réis a quem o fi zes se.

E Lu cas, ape sar de es pi o na do e per se gui do, pros se guia te me -ro so e in dô mi to em sua car re i ra.

Lu cas era a fi gu ra do Di a bo. Con tam-se dele tan tos ca sos,nar ram-se a seu re se pe i to tan tas le gen das, que en che ri am vo lu mes.

Uma oca sião, um ne go ci an te, que ia para a Fe i ra, me teu porpre ven ção o di nhe i ro, que le va va, den tro da gra va ta e pe que na quan tiano bol so, que era para Lu cas, como ele di zia.

Na es tra da, Lu cas sai-lhe ao en con tro e obri ga-o a en tre gar oque tra zia, ao que o vi an dan te sem ré pli ca ace deu, fran que an do-lhe asal gi be i ras.

O sal te a dor, mi ran do-o de cima aba i xo, sa que ia-o e, ape nas oman da em bo ra, fá-lo vol tar.

– Meu ioiô, dis se Lu cas, dê a seu ne gro essa gra va ta, se nãomor re.

O po bre ho mem, que su pu nha-se es ca po com a vida e afor tu na, não he si tou um ins tan te, de sa tou-a e en tre gou des con fi a do,as sus ta do.

Por ve zes, en fron tan do no ser tão com o pa dre seu se nhor,to ma va-lhe a bên ção, pe dia-lhe rapé e de i xa va-o ir seu ca mi nho.

Di zem os ve lhos que Lu cas ti ve ra um re mor so: – o de ha veras sas si na do uma ra pa ri ga de 15 anos, a quem des vir gi na ra e, en ter ran -do-a na flo res ta, acon te ceu que pas san do por per to na ma nhã se guin te,viu le van tar-se da cova uma nu vem de pás sa ros, que fo ram can tan doper der-se no além.

O ne gro e a sua qua dri lha, de po is do prê mio ofe re ci do, nãocon ta vam com um mo men to de tré gua, ca pi tães-do-mato, ras te a do res,sol da dos, gen te do povo, en fim, se gui am-lhe no en cal ço, de sa fi an domais as re pre sá li as do ban do.

E os as sal tos aos en ge nhos e aos vi a jan tes, o rou bo de gado ede ba ga gens, os ca dá ve res apo dre ci dos nas ár vo res re pro du zi am-se sem

314 Melo Mo ra is Filho

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ter mo, ati van do es ses cri mes a vi gi lân cia e sa ga ci da de do che fe de po lí -cia e das au to ri da des lo ca is, que não se pou pa vam a to das as di li gên ci as.

Do Alju be da ci da de, Ca zum bá, com pa dre de Lu cas e réu ina -fi an çá vel, eva di ra-se e ba tia as ma tas.

Na sua exis tên cia er ran te e so bres sal ta da, ga ran tia dar cabodo sal te a dor da Fe i ra, uma vez que, com os qua tro con tos pro me ti dos,lhe fos se ofe re ci da a ab sol vi ção dos de li tos.

Esta no tí cia es pa lhan do-se, as au to ri da des da pro vín cia to ma -ram co nhe ci men to do fato e fa zen do vir à sua pre sen ça Ca zum bá, fi couo ajus te as sen ta do sob a pa la vra do Go ver no e a re so lu ção do ban di do.

Daí por di an te a es tre la de Lu cas co me çou a ser-lhe fu nes ta.Ca zum bá, acom pa nha do de Mar ce li no, a quem se as so ci ou,

me teu mãos à obra, le van do dias e noi tes à to ca ia de Lu cas.Atra ves sa va flo res tas, trans pu nha va les e ser ras, em bar ca va

em di fe ren tes lu ga res, pon do-se-lhe à pis ta, até que, na tar de de se gun -da-fe i ra, 24 de ja ne i ro de 1848, em bos ca do em uma das pi ca das daPe dra do Des can so, per ce beu o fa cí no ra ar ma do de cla vi no te, que pas -sa va ao lon ge.

E Ca zum bá dis pa rou-lhe um tiro...A bala, fra tu ran do-lhe o bra ço di re i to, não o im pe diu de es ca -

par, de em bre nhar-se nas sel vas, de i xan do após si um ras tro de san gue.Avi sa dos, in con ti nen ti, sub de le ga dos, de le ga dos, ju í zes de paz

e ins pe to res de quar te i rão, par ti ram to dos, se gui dos de tro pa, em bus cado es con de ri jo de Lu cas, po rém inu til men te.

Em ca mi nho, vi ram ca dá ve res pu tre fa tos, in di ví du os amar -ra dos e se vi ci a dos, uma moça bran ca en le a da con tra os es pi nhos de umpé de man da ca ru, baús, al fa i a is da igre ja de Bro tas, e ob je tos rou ba dos,nas cla re i ras do mato.

Frus tra da a di li gên cia, no de clí nio das es pe ran ças, quan do jáse ha vi am per di do mu i tas jor na das em bus ca do sal te a dor ba le a do,acu diu a al guém a idéia de man dar cha mar o ne gro Be ne di to, ami go deLu cas e sal vo-con du to dos vi a jan tes da Ca cho e i ra à Fe i ra de San ta na,para dar con ta dele.

De po is de ame a ças e pro mes sas, Be ne di to com pro me teu-se ain di car o pouso, e, se guin do à fren te, pu se ram-se em mar cha au to ri da des

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 315

Page 296: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

e tro pas, Ca zum bá e Mar ce li no, que o pren de ram em uma fur na ondeera pen sa do por uma ra pa ri ga, tor nan do-se para isso ne ces sá rio que lhedes sem ou tro tiro.

A fe ro ci da de do ne gro, ape sar de fe ri do e pi lha do, era ina u di ta.O fato pas sou-se pela ma dru ga da.E às sete ho ras da ma nhã, em uma rede go te jan te de san gue,

che gou Lu cas aos Olhos-d’Água, aflu in do para vê-lo inú me ro povo.Às oito ho ras en trou na ci da de, onde a po pu la ção o te ria

linchado se não fos se a nu me ro sa guar da de ba i o ne ta ca la da, que o pro tegia.Por três dias o pra zer e as fes tas tor na ram-se in des cri tí ve is:

gi rân do las de fo gue tes, re pi ques de sino, em ban de i ra men to das ruas,lu mi ná ri as à no i te, pas se a tas, to ca tas de vi o lão, etc.

Na ca de ia da ca pi tal, para cuja pri são foi re mo vi do, am pu ta ram-lhe o bra ço, e res pon den do ao júri que o con de nou à pena úl ti ma, su biuà for ca em se tem bro ou ou tu bro de 1849.

Lu cas ti nha mais de 45 anos de ida de. No alto do pa tí bu lo fez uma fala ao povo, pe diu per dão e – na for ca ou na pri são – ja ma is com -pro me teu pes soa al gu ma.

Note-se que, como dis se mos, Lu cas não rou ba va para si. E aesse res pe i to pos su í mos do cu men tos de gran de va lor.

Na que le mal fe i tor, en tre tan to, na que la mons tru o si da dehu ma na, dois sen ti men tos bons con ser va ram-se – a gra ti dão e a ca ri da de.

O cru el sal te a dor da Fe i ra nun ca ofen deu a quem lhe fi ze ra ao bem, e era o so cor ro ig no ra do de mu i tas fa mí li as po bres que vi vi am desuas es mo las.

Além do prê mio da tra i ção, Ca zum bá re ce beu pre sen tes dedi nhe i ro do co mér cio da Ca cho e i ra, da Fe i ra de San ta na, de San to Ama ro e da Ba hia.

É es ti lo no Nor te os acon te ci men tos no tá ve is se rem can ta dos pe los Ho me ros po pu la res: as fa ça nhas do Lu cas es ta vam nes te caso.

Do mu i to que pro du ziu a po e sia anô ni ma do tem po, o ABCdo Lu cas é a mais ori gi nal e ca rac te rís ti ca.

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O Na vio Ne gre i ro

No cen tro do oce a no, de ba i xo da Li nha, des de o gol foda Gu i né até ao Bra sil, lé guas e lé guas se dis ten dem onde o céu é umafor na lha, e as vi ra ções não so pram agi tan do ma ci as as ve las dos na vi os.

No tem po do trá fi co essa ex ten são enor me era o ca mi nhofú ne bre da fro ta ne gre i ra, que abas te cia os mer ca dos de Li ver po ol e doRio de Ja ne i ro, de es cra vos rou ba dos pela pi ra ta ria à cos ta da Áfri ca.

Na que le mar mor to cada bri gue pa re cia uma ilha de fan tas masque ti nham por asas os pa nos bran cos ao lon go dos mas tros os ci lan tes e si nis tros.

Na que las pa ra gens a cal ma ria en con tra va à no i te o ca pi tãoes ten di do à som bra da ver ga, os ma ri nhe i ros dor min do nos es ca le ressus pen sos, en quan to que no po rão, com as vi gi as aber tas, a pes te e ocon tá gio vi si ta vam a de so ras a es cra va tu ra que se su fo ca va à po dri dão eao ca lor.

Pa ra dos no mar – o con fi den te do cri me ne gre i ro – os bri -gues res so a vam com os es ter to res dos ago ni zan tes, de i xa vam es ca parge mi dos do lo ro sos, vo zes de de ses pe ro e de afli ção.

Na imo bi li da de pa vo ro sa, a úni ca ma ni fes ta ção da vida era amor te.

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Pe ne trar nas en xo vi as quan do qual quer epi de mia de cla ra va-sea bor do era um es pe tá cu lo cujo hor ror só po dia ser com pa ra do ao dapró pria es cra vi dão.

Aqui via-se um ne gro mo ri bun do abra ça do a um ca dá ver, aliuma cri an ça que ma ma va no seio da mãe mor ta, aco lá ou via-se o ve ló rio bár ba ro do sel va gem à ca be ce i ra do in se pul to da vés pe ra...

E a lan ter na do ro dan te, pro je tan do um cla rão de fogo nochão dos po rões, des ta ca va um es cra vo de i ta do so bre o ven tre, res pi ran do o pus e as de je ções; ou tro, co ber to de sar nas, aco co ra do e nu, mor den doos pu nhos cer ra dos; mais ou tro ain da, in di fe ren te pela ce gue i ra, pes ta ne -jan do mo ri bun do à luz que o fe ria com seus ra i os...

Ao ama nhe cer, o co man dan te es ta va no seu pos to, a equi pa -gem co me ça va a lide, e os ca dá ve res e os do en tes mais gra ves eramlan ça dos às on das e aos tu ba rões vo ra zes.

E o na vio, apro ve i tan do a ara gem, des fral da va as ve las, fe cha vaum pou co as es co ti lhas, se guin do o rumo da na ve ga ção.

Por to dos os la dos o con tá gio epi dê mi co acha va aber tas nosna vi os do trá fi co.

De vi do à sede, à fome, ao es cor bu to, à nos tal gia, às aglo me ra -ções, à ali men ta ção e às de com po si ções, so bre tu do, a fe bre ama re la, ale pra, o tifo e a di sen te ria ca u sa vam gran des des tro ços ao co mér cio decar ne hu ma na, ex pon do-o com ple ta men te ao al can ce das mo lés ti asin fec to-con ta gi o sas.

Com fre qüên cia a mor ta li da de abran gia as tri pu la ções, nãosen do li mi ta dos os ca sos de bri gues aban do na dos a equi pa gens de ca dá -ve res.

O alar ma pro du zi do pe los pri me i ros sin to mas epi dê mi cospre dis pu nha o cri me para no vos cri mes, a ti ra nia dos tra fi can tes parama i o res ti ra ni as.

A cru el da de dos ofi ci a is e da ma ru ja para com os mi se rá ve ises cra vos não ti nha nome, não en con tra va me di da: se ha via qual quersi nal de le van te, as mais hor ro ro sas pu ni ções fla ge la vam os ca ti vos, a cal vir gem pe ne i ra va-se por ho ras in te i ras no âm bi to das pri sões, os su pos tos che fes da in sur re i ção aca ba vam na sur ra e nos den tes dos cães que

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atro a vam com la ti dos os na vi os, ou eram ati ra dos às va gas que os abra -ça vam de mor te.

Os ca nhões dis pa ra vam ame dron tan do os ne gros, tri los deapi tos e gri tos do ca pi tão acor da vam os ecos no tur nos das en xo vi as, acor re ria dos ma ri nhe i ros no con vés e nas es ca das ín gre mes en chi am dees pan to os se di ci o sos, que bus ca vam no su i cí dio e no as sas si na to umatré gua à es cra vi dão.

Não há dú vi da que não se pode acor ren tar sem se sen tir opeso da cor ren te: era jus ta men te o que acon te cia quan do a re vol ta in si -nu a va-se tor va nos po rões, ou sur gia fu ri o sa da que les an tros – ci da de lasflu tu an tes do ca ti ve i ro e do ani qui la men to.

Esses fa tos, po rém, um tan to vul ga res nos ana is do trá fi co,dis tan tes fi ca vam do pâ ni co que se apo de ra va das equi pa gens ao apa re -ci men to de uma epi de mia, e da fe ro ci da de exer ci da nos bri gues a fim de im pe dir-se a trans mis são do con tá gio.

Qu al quer que seja a con di ção ou a di fe ren ça do es ta do so ci al,a sen si bi li da de do co ra ção pode vin gar a cus to, pode en con trar um lu gar onde me dre como uma flor so bre uma co ro la de ro che dos. No trá fi co,en tre tan to, na na ve ga ção ne gre i ra essa lei era vi o la da, essa re gra im pos ta pela na tu re za so fria um gol pe pro fun do.

A am bi ção, que di ri gia a em pre sa, e o cri me que se cons ti tu iudes de o pri me i ro ins tan te a mola real do ne gó cio, tor na vam o ho memde uma fe ro ci da de tal, que em sua alma a co mi se ra ção e a ca ri da de, ador e os re mor sos fi ca vam cá fora de sa len ta dos di an te do im pos sí vel.

Uma vez, uma ga le ra que tra zia um car re ga men to de mais dequi nhen tos es cra vos para o Rio de Ja ne i ro foi pre sa, no alto-mar, deuma epi de mia im pla cá vel, cu jas ava ri as ou pre ju í zo to tal da car gaer gui am-se ine vi tá ve is.

O con tá gio do mal in fi ci o nan do al guns tri pu lan tes, o ego ís mo do tra fi can te, su pe ri or ain da à sal va ção pró pria, pla ne jou uma tra gé diamons tru o sa, ten do como te a tro os com par ti men tos obs cu ros e imun dos dos cár ce res e o tom ba di lho já sal pi ca do de san gue como um as sas si no.

À ca la mi da de de uma epi de mia de con jun ti vi te pu ru len ta quecega va os ne gros e pro pa ga va-se aos ma ri nhe i ros, ur gia um pa ra de i ro de

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 319

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bron ze, a dis ten são de um cor dão sa ni tá rio que pu ses se a res guar do osnão ata ca dos.

O de ses pe ro ca u sa do pelo dano ao ne gó cio e a de su ma ni da de ab so lu ta do ca pi tão en con tra ram de pron to um re cur so ti râ ni co, su pre mo, ina u di to...

E o que fa zer? O ar era ar den te, o pus inun da va a face de aze vi che dos afri -

ca nos sen ta dos, go te jan do em fios ao am plo do pe i to e do tron co.A pes te, vi a jan do no na vio, opu nha-se a ten ta ti vas inú te is e

afas ta va os ou tros que ne ga ri am hos pi ta li da de à ma ri nha gem in fec ta da.E o ma ru lho dos va gas, trans por tan do para o além o eco de

um tiro de ca nhão, for mou uma abó ba da so no ra que en vol veu a ga le ra,que ba lan çou en tre o céu e as águas como um es qui fe des cen do em umtú mu lo.

A este si nal de alar ma os ofi ci a is e a ma ru ja su bi ram à tol da,to cou à for ma, es can ca ra ram-se as es co ti lhas, e os cães de fila, acos tu -ma dos a es tran gu lar os ne gros, fo ram sol tos, ar ri an do os flan cos jun toàs es ca das de de sem bar que.

Ao man do do ca pi tão, os ma ri nhe i ros des ce ram rá pi do aospo rões, e quan do re a pa re ce ram os pri me i ros, uma fi le i ra de ce gos, nus ecam ba le an tes, es ca ni fra dos e ta te an do as tre vas, cres cia va ga ro sa do fun do da ga le ra, con du zin do às mães os fi lhos ao colo e pelo bra ço ma gro dees que le tos.

Esten di dos em li nha, à di re i ta e à es quer da, com o ros to vol -ta do para o oce a no, os olhos dos es cra vos, acos tu ma dos às tor ren tes defogo do sol de seus de ser tos, per ma ne ci am pa ra dos e co ber tos de umvéu opa co e en san güen ta do.

E o ca pi tão di ri gia as ma no bras, aos ge mi dos das ví ti mas naig no rân cia de seu des ti no...

À se me lhan ça de um pu nha do de pe dras pre ci o sas, os olha res dos ne gros cin ti la vam à luz do cre pús cu lo nos in cên di os do oci den te...

E a ofi ci a li da de e os tri pu lan tes, es pe ran do a voz de “car gaao mar”, dis pu nham-se a as sis tir ao epí lo go da tra gé dia ne gre i ra no apo -geu de sua cru el da de e seus hor ro res.

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As cor ren tes cho ca lha vam ti ra das do pes co ço e dos pés ul ce -ra dos dos es cra vos, im pre ca ções bár ba ras des flo ra vam os lá bi os dafa lan ge da mor te, e os cães la ti am mais for te apa vo ran do os des gra ça -dos nos seus úl ti mos mo men tos.

A ce le u ma dos ca ti vos, chi co te a dos sem in ter rup ção, en chia o na vio de ala ri do e po vo a va o es pa ço de la men tos sem fim.

Tra i ço e i ra men te ha bi tu a dos à pe no sa mar cha que os pre pa ra vapara a der ra de i ra in ves ti da, o ca pi tão or de nou que for mas sem “dois adois” e se guis sem para a amu ra da aber ta.

Nes se mo men to o tu mul to cres ceu, os que po di am ain da verhor ro ri za vam-se fu gin do, e en quan to ro la vam aque les ca mi nhan do paraas on das, os ma ri nhe i ros lu ta vam com es tes, agar ran do-os pela go e la eafo gan do-os no mar.

Os cães, per se guin do as ví ti mas, la ti am en fu re ci dos...A imen si da de re tum ba va do ala ri do dos ce gos no ba lan ço das

va gas, dos gri tos de mi se ri cór dia e de blas fê mia que es ca la vam o céu, do de ses pe ro da mãe es cra va, que sus pen dia na dan do o fi lhi nho nos bra ços...

E para con tras tar com esta cena ater ra do ra e mal di ta, o na vione gre i ro, como um ban di do, es gue i ra va-se si len ci o so, per den do-sefú ne bre no oce a no e na no i te.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 321

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TIPOS DA RUA

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Ca po e i ra gem e Ca po e i ras Cé le bres

(RIO DE JANEIRO)

Entre as clas ses po pu la res a dos ca po e i ras avul tou semprenes te País, as si na lan do nos pri me i ros tem pos cos tu mes de uma tor ren tede imi gra ção afri ca na, e de po is uma he ran ça da mes ti ça gem no con fli todas ra ças.

Como a fe bre ama re la, que não sa be mos por que es pan ta atan ta gen te e quer-se a todo o tran se de be lar, a ca po e i ra gem, que é umaluta na ci o nal, de ge ne ran do em as sas si na tos, tem me re ci do per se gui çãosem des can so, guer ra sem con di ções.

Entre tan to na Eu ro pa o tifo, a dif te ria, o có le ra e mais epi de mi as pro du zem anu al men te gran des des tro ços e a ciên cia não co gi tou nun cado seu ex ter mí nio, mas de pre ve ni-las; os jo gos de des tre za e de for çasão re gu la dos em seu exer cí cio, dis ci pli na dos pela arte, não ha ven doquem se opo nha se não aos abu sos.

Na Ingla ter ra há fa mí li as de re ma do res, de jo ga do res de soco; de in di ví du os que se dis tin guem por ati vi da des mo to ras, que de sen vol -vem, que exer ci tam des de a in fân cia, e que os tor nam no tá ve is pelafor ça mus cu lar.

I

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Esses jo gos, es ses exer cí ci os so bem da der ra de i ra ca ma dapo pu lar à mais an ti ga aris to cra cia, e são para o in glês o que os jo gosolím pi cos eram para os gre gos, a luta para os ro ma nos – um meio deaper fe i ço a men to de for mas, um re cur so de com ba te.

Nas Me mó ri as de Lor de Byron, con ta Th. Moor que, no dia dofa le ci men to da mãe do ilus tre po e ta, o can tor da Pa ri si na jo ga ra o sococom seu cri a do.

Lor de Pal mers ton, mu i tas ve zes de po is de ca lo ro sas dis cus sõesno Par la men to, ves tia-se de ma ri nhe i ro e re ma va no seu ba tel ao lon godo Tâ mi sa.

Os por tu gue ses têm o jogo do pau, os fran ce ses a sa va te, etc.Essas lu tas, es sas ap ti dões, que va ri am de povo para povo,

mas com o fim que aci ma in di ca mos, con cor rem para re u nir mais umtra ço à fi si o no mia na ci o nal, e têm me re ci do de es pí ri tos emi nen tes sé ri asre fle xões. Dar win e Ri bot so cor re ram-se des ses ele men tos no es tu do dage ne ra li za ção das leis da he re di ta ri e da de.

No Bra sil, e es pe ci al men te no Rio de Ja ne i ro, há uma es pé ciede cas ta que re cla ma um lu gar en tre as suas con gê ne res e que tem todoo di re i to a uma nes ga de tela no qua dro da his tó ria dos nos sos cos tu mes – a dos ca po e i ras.

O ca po e i ra não é nada mais, nem nada me nos do que oho mem que en tre dez e doze anos co me çou a edu car-se nes se jogo (aca po e i ra gem), que põe em con tri bu i ção a for ça mus cu lar, a fle xi bi li da dedas ar ti cu la ções e a ra pi dez dos mo vi men tos – uma gi nás ti ca de ge ne ra da em po de ro sos re cur sos de agres são e pas mo sos au xí li os de de sa fron ta.

O ca po e i ra, co lo ca do em fren te a seu con ten dor, in ves te, sal ta,es gue i ra-se, pi no te ia, si mu la, de i ta-se, le van ta-se e, em um só ins tan te,ser ve-se dos pés, da ca be ça, das mãos, da faca, da na va lha, e não é raroque um ape nas leve de ven ci da dez ou vin te ho mens.

A na va lha e um ca ce te, que nun ca ex ce de de cin qüen ta cen tí -me tros, pre so ao pul so por uma fina cor da de li nha, são-lhe as ar maspre di le tas, nun ca fa zen do uso das de fogo.

À se me lhan ça dos bo xers na Ingla ter ra, ti ve mos ex ce len tesca po e i ras nas emi nên ci as da po lí ti ca.

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Os ar se na is, o exér ci to, a ma ri nha, as clas ses me nos abas ta dasfor ne cem con ti gen tes avul ta dos, e são na má xi ma par te mu la tos e cri ou los.

A po lí cia tam bém os pos sui, po rém des li ga dos da co mu nhão,de tes ta dos, e nos con fli tos com os trâns fu gas são es tes qua se sem precor ta dos, o que, se gun do a gí ria, quer di zer mar ca dos.

Os ca po e i ras for mam mal tas, isto é, gru pos de vin te a cem,que, à fren te dos ba ta lhões, dos prés ti tos car na va les cos, nos dias de fes -tas na ci o na is, etc., fa zem de sor dem, es bor do am, fe rem...

Cada mal ta tem sua de no mi na ção: a Ca de i ra da Se nho ra é da fre -gue sia de San ta na; Três Ca chos, fre gue sia de San ta Rita; Fran cis ca nos, de S.Fran cis co de Pa u la; Flor da Gen te, fre gue sia da Gló ria; Espa da, do Lar go daLapa; Gu a i a mu, da Ci da de Nova; Mon tu ro, da Pra ia de San ta Lu zia, etc.

O ca po e i ra gos ta da oci o si da de, e en tre tan to tra ba lha; ase gun da-fe i ra é para ele um pro lon ga men to do do min go. Qu an do sede di ca a al guém é in ca paz de uma tra i ção, de uma des le al da de... No seuom bro tis na do es co rou-se até há pou co o Se na do e a Câ ma ra, paraonde, à luz da na va lha, mu i tos dos que nos go ver nam su bi ram.

O seu tra jar é ca rac te rís ti co: usa de cal ças lar gas, pa le tó-sacode sa bo to a do, ca mi sa de cor, gra va ta de man ta e anel cor re di ço, co le tesem gola, bo ti nas de bico es tre i to e re vi ra do e cha péu de fel tro. Seu an dar é os ci lan te, gin ga do; e na con ver sa com os com pa nhe i ros ou es tra nhos,guar da dis tân cia, como em po si ção de de fe sa.

Esguio e ágil, o ca po e i ra de mons tra na com ple i ção de açouma ati vi da de cir cu la tó ria ver da de i ra men te tro pi cal; e o seu olhar comoque mer gu lha no âni mo do ad ver sá rio, sur pre en den do-lhe as emo çõesmais sú bi tas, as lem bran ças mais rá pi das.

Se acon te ce ser aco me ti do, quan do de sar ma do, ma chu ca ocha péu ao com pri do, e nas evo lu ções cos tu ma das des via com ele gol pes cer te i ros.

Este tipo, en tre tan to, não é o ca po e i ra trans pon do as bar re i rasco lo ni a is, des sas fa lan ges que ele va ram a arte à al tu ra de uma ins ti tu i ção.

O ca po e i ra an ti go ti nha igual men te seus ba ir ros, o pon to dere u nião das mal tas; suas es co las eram as pra ças, as ruas, os cor re do res. A mal ta de San ta Lu zia cha ma va-se a dos lu si ta nos; a do Cas te lo, de San toIná cio; a de S. Jor ge, da lan ça; dos os sos, a do Se nhor Bom Je sus do Cal vá -rio; flor da uva, a de San ta Rita, etc.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 327

Page 306: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Qual o seu pes so al? Ge ral men te eram com pos tas de afri ca nos,que ti nham como dis tin ti vos as co res e o modo de bo tar a ca ra pu ça, ou demes ti ços (al fa i a tes e cha ru te i ros), que se da vam a co nhe cer en tre si pe loscha péus de pa lha ou de fel tro, cu jas abas re vi ra vam, se gun do con ven ção.

À ca te go ria de che fe de mal ta só atin gia aque le cuja va len tia o tor na va inex ce dí vel, e de che fe dos che fes o mais afoi to de en tre es tes,po rém o mais re fle ti do e pru den te.

Os ca po e i ras, até há vin te anos pas sa dos, pres ta vam ju ra men toso le ne, e o lu gar es co lhi do para isso eram as tor res das igre jas. As ques -tões de fre gue sia ou de ba ir ro não os des li ga vam, quan do as cir cuns tân -ci as exi gi am de sa gra vo co mum; por exem plo: um se nhor, por mo ti vo de ca po e i ra gem, ven dia para as fa zen das um es cra vo fi li a do a qual quer mal ta; eles re u ni am-se e de sig na vam o que ha via de vin gá-lo.

No tem po em que os en ter ra men tos fa zi am-se nas igre jas eque as fes tas re li gi o sas ami u da vam-se, as tor res en chi am-se de ca po e i ras, fa mo sos si ne i ros, que mon ta dos na ca be ça dos si nos acom pa nha vamtoda a im pul são dos do bres, aben ço an do das al tu ras o povo que osad mi ra va, api nha do na pra ça ou na rua.

A ca po e i ra gem an ti ga e a mo der na têm a sua gí ria, a suama ne i ra de ex pres são, pela qual são com pre en di dos os lan ces do jogo.De ve ras ar ris ca dos, di fí ce is, e de pen den do da ra pi dez e há bi to, não ésem lon ga prá ti ca que con se guem tais lu ta do res fa zer-se no tá ve is.

Para dar mos uma pá li da idéia da gí ria e do jogo, ajus te mospor aque las al gu mas evo lu ções des te.

Um dos pre pa ra ti vos mais ru di men ta res do ca po e i ra é orabo-de-ar ra ia. Con sis te ele na fir me za de um pé so bre o solo e na ro ta -ção ins tan tâ nea da per na li vre, var ren do a ho ri zon tal, de sor te que a par tedor sal do pé vá ba ter no flan co do con ten dor, se guin do-se, após a ca be ça da ou a ras te i ra, in fa lí ve is co ro lá ri os da ini ci a ção do com ba te.

Por es co rão en ten dem eles am pa rar ines pe ra da men te, com o pé de en con tro ao ven tre, o ad ver sá rio, o que é um sub ter fú gio, que di fe redo pé de pan zi na, que é o mes mo no re sul ta do, po rém que o fa zem nãocomo um re cur so do jogo, mas de i xan do à des tre za tem po de var rê-lo.

O pas so a dois (gí ria mo der na) é um sa pa te a do rá pi do que an te -ce de à ca be ça da e à ras te i ra, do qual o aco me ti do se li vra ar man do oclu be X, que quer di zer o afas ta men to com ple to das tí bi as e união dos

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jo e lhos, que, for man do lar ga base, es ta be le cem equi lí brio, re ce ben do no em ba te o sal to da bo ti na, que ain da ofen de o ad ver sá rio.

O tom bo de la de i ra é to car no ar, com o pé, in di ví duo que pula;a ras te i ra a ca ça dor é o meio gi nás ti co de que ser vem-se para, de i xan do-secair so bre as cos tas, ao mes mo tem po que fir mam-se nas mãos, der ru -ba rem o con trá rio, im pri min do-lhe com o pé vi o len ta pan ca da na ar ti cu la -ção tí bio-tar si a na.

O tron co, raiz e fe de go so, tal vez o lan ce mais fe liz do jogo, vis tode pen der de uma agi li da de in crí vel e con si de rá vel so li dez mus cu lar, for ma a sín te se dos ar ris ca dos es tu dos da ca po e i ra gem.

II

Fi gu re mos uma are na: os con ten do res apro xi mam-se, osolhos cin ti lam, os lá bi os mur mu ram fra ses de des dém, de ame a ça.Ondu lan do em mo vi men to ser pen ti gi no so, ba lan çam os bra ços, con ser -van do a ca be ça e o pes co ço na imo bi li da de.

Um de les, en la çan do im pre vis to com o bra ço di re i to os mem -bros su pe ri o res e o tó rax do ou tro, com a ve lo ci da de do raio, com apres te za do re lâm pa go, une-o, flan co so bre flan co, e as sim to lhi do, es co -ra-lhe na per na os mem bros in fe ri o res, re vi ra-o do alto, ca in do-lhe portrás, frio como um ca dá ver, iner te como a mor te.

Não é sem pre fa tal este lan ce, pois a arte ofe re ce ain da nes tecaso ex pe di en tes ad mi rá ve is.

As es co las de ca po e i ra gem mul ti pli ca vam-se nes ta ci da de,per ten cen do cada tur ma de dis cí pu los a esta ou àque la fre gue sia.

Des de a dos ca xin gue lês, me ni nos que iam à fren te das mal taspro vo car ba ir ros ini mi gos, até à dos mes tres que ser vi am para exer cí ci os pre pa ra tó ri os, es ses cur sos re gu la res fun ci o na vam co nhe ci dos, sen do osmais fre qüen ta dos o da pra ia do Fla men go, o do mor ro da Con ce i ção, o da pra ia de San ta Lu zia, não fa lan do nas tor res das igre jas – ni nhos atro a -do res dos ca po e i ras de pro fis são.

Alis ta dos nos ba ta lhões da Gu ar da Na ci o nal, os ca po e i rasexer ci am po de ro sa in fluên cia nos ple i tos ele i to ra is, de ci di am das vo ta -ções, por que nin guém me lhor do que eles ar re gi men ta va fós fo ros, em pre -nha va ur nas, afu gen ta va vo tan tes.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 329

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Mu i tos dos co man dan tes de cor pos e gran de par te da ofi ci a li -da de en ten di am do jogo, ou eram ha bi lís si mos na arte.

Os de sa fi os en tre as fre gue si as trans mi ti am-se por meio depan ca das de sino con ven ci o na is e em ho ras de ter mi na das.

Os as sal tos, os com ba tes se da vam nas pra ças, nas ruas, em sí ti os mais ou me nos dis tan tes e de ser tos.

Às ve zes, in ter rom pen do a mar cha de uma pro cis são, odes fi lar de um cor te jo, ou via-se, aos gri tos das se nho ras cor ren does pa vo ri das, das ne gras le van do os se nho res mo ços ao colo, dos pais de fa mí lia pon do a abri go a mu lher e os fi lhos, o hor ro ro so Fe cha! Fe cha!

Os ca xin gue lês vo a vam na fren te, a ca po e i ra gem dis pa ra vain dô mi ta, se guin do-se ao dis túr bio ca be ças que bra das, lam piões ape -dre ja dos, fa ca das, mor tes...

A po lí cia, ame dron ta da e sem for ça, fa zia cons tar que per se -guia os de sor de i ros, acon te cen do ra rís si mas ve zes ser pre so este ouaque le, que res pon dia a pro ces so.

Per ten cen do à se gun da fase da ca po e i ra gem no Rio de Ja ne i ro,es sas ce nas ti ve ram lu gar du ran te a ad mi nis tra ção po li ci al de Eu sé bio deQu e i rós e de seus su ces so res, de sa pa re cen do to tal men te com a Gu er rado Pa ra guai, que não aca bou so men te com os ca po e i ras, po rém as si na louo ter mo do pa tri o tis mo bra si le i ro.

É ge ral men te sa bi do pela tra di ção que no Se na do, na Câ ma rados De pu ta dos, no Exér ci to, na Ma ri nha, no fun ci o na lis mo pú bli co, nacena dra má ti ca e mes mo nos cla us tros ha via ca po e i ras de fama, cu josno mes nos são co nhe ci dos.

Nas gar ra fa das de mar ço, um dos nos sos mais elo qüen tesora do res sa gra dos fez pro dí gi os nes se jogo, li vran do-se de seus agres -so res; re cor da mo-nos ain da de um fra de do Car mo, que, por oca sião deuma pro cis são do en ter ro, de ban dou a ca be ça das e a ras te i ras um gru po de in di ví du os im pru den tes que o pro vo ca ram.

Per gun te-se por aí qual o ator cuja va len tia ou des tre za, como ca po e i ra, eram res pe i ta das, e acre di tai que a po pu la ri da de pre ci sa ria su birmu i to para atin gir-lhe o pe des tal.

Qu an do es tu dá va mos no Co lé gio de Pe dro II, foi nos so pro -fes sor de fran cês o ba cha rel Gon çal ves, bom pro fes sor e me lhor ca po e i ra.

330 Melo Mo ra is Filho

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O Dr. D. M., ju ris con sul to emi nen te e des lum bran te gló ria datri bu na cri mi nal, cul ti vou em sua mo ci da de essa luta na ci o nal, en tu si as ti -ca men te le va da a ex ces sos pelo povo ba i xo, que a afo gou nas de sor dens, em cor re ri as re pro va das, em ho mi cí di os hor ro ro sos.

Pode-se di zer que de 1870 para cá os ca po e i ras não exis tem: seum ou ou tro, ver da de i ra men te dig no des se nome pela le al da de an ti ga, pelacon fi an ça pró pria e pelo co nhe ci men to da arte que res ta por aí, veioda que le tem po em que a ca po e i ra gem ti nha dis ci pli na e di ri gia-se a seus fins.

Na va lhar à tra i ção, de i xar-se pren der por dois ou três sol da dose es pan car a um po bre ve lho ou a uma cri an ça, ser va ga bun do e ra to -ne i ro, nun ca cons ti tu í ram os es pan to sos fe i tos das mal tas do pas sa do,que bri ga vam fre gue sia com fre gue sia, dis pu ta vam ele i ções ar ris ca das,le va vam à dis tân cia ca va la ria e sol da dos de per ma nen tes quan do in ter vi -nham em con fli tos de sus ce ti bi li da de co mum.

O ca po e i ra iso la do, na que les tem pos, tra ba lha va, cons ti tu ía fa -mí lia, a va di a gem lhe era pro i bi da, não era ga tu no, afron ta va a for ça pú -bli ca e só se en tre ga va mor to ou qua se mor to.

Como fi ze mos ver em prin cí pio, as tur mas mi li ta res con den -sa vam as clas ses ope rá ri as e os es cra vos, ex pres são ní ti da de ca po e i ra -gem da rua.

Não sen do es tra nhos ao jogo, por tu gue ses ha vi am de se ali aràs mal tas avul sas, dis tin guin do-se en tre eles ho mens de ina u di ta co ra -gem e es pan to sa agi li da de.

Lu zi das com pa nhi as de ba ta lhões da Gu ar da Na ci o nal, deque ti nham or gu lhos os bri o sos co man dan tes, re u ni am mag ní fi ca ra pa -zi a da, de onde eram ti ra das pra ças para di li gên ci as pe ri go sas, ser vin doigual men te para as cam pa nhas ele i to ra is.

A pro va de que a ca po e i ra gem en tra va nos nos sos cos tu mesestá em que não ha via me ni no que não bo tas se boné de ban da e sou bes se gin gar, nem es co las que se não de sa fi as sem para bri gar, sen do de datare cen te as lu tas en tre os fa mo sos Co lé gi os Sa bi no, Par dal e Vi tó rio.

Hoje que tudo se acha mu da do, que se di zem ca po e i rasga tu nos e as sas si nos, em que a bo ba gem dos du e los arma a po pu la ri da deao des fru te, o jogo na ci o nal da ca po e i ra gem é ape nas vis to pelo que tem de mau e bár ba ro, como se fos se me nos mau e me nos bár ba ro do queas lu tas da mes ma na tu re za usa das por ou tros po vos.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 331

Page 310: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

De en tre os che fes de mal ta, dos cam peões que mais lus trede ram à arte na ca po e i ra gem pú bli ca, uns eram co nhe ci dos por al cu nhas,ou tros pe los no mes au tên ti cos.

Sen do-nos di fí cil ci tar a ex ten sa lis ta no mi nal des ses va len tes,re gis tra mos ape nas os no mes da que les que a tra di ção tem per pe tu a dona lem bran ça po pu lar.

O Ma me de, o Chi co Car ne-Seca, o Qu e bra-Coco, o Fra di nho, o Na ti vi da de, o Ma ne ta, o Bo na par te, o Le an dro, o Ale i xo Açou gue i ro,o Bem-te-vi, o Pe dro Co bra, etc. – para não fa lar mos no Ca pi tão Nabu co, um Hér cu les, o ho mem de mais for ça que tem tido o Rio de Janeiro – , es ti ve ram nos ga la rins do pres tí gio, nas emi nên ci as da re pu ta ção jus ta eme re ci da.

So bre na dan do ao esque ci men to que en vol ve os seus maisesfor ça dos com pa nhe i ros, o Man du ca da Pra ia ja ma is foi con de na do àmes ma pena, pois o povo re pe te ain da as fa ça nhas que mo ti va ram-lhe ano me a da.

Co nhe ci do por toda a po pu la ção flu mi nen se, con si de ra docomo ho mem de ne gó cio, te mi do como ca po e i ra cé le bre, ele i tor crô ni coda fre gue sia de S. José, ape nas res pon deu a 27 pro ces sos por fe ri men tos le ves e gra ves, ain da ab sol vi do em to dos eles pela sua in fluên cia pes so ale dos seus ami gos.

332 Melo Mo ra is Filho

Ca pan ga ele i to ral

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O Man du ca da Pra ia era um par do cla ro, alto, re for ça do, gi ben to, e quan do o vi mos usa va bar ba cres ci da em pon ta, gri sa lha e cor de co bre.

De cha péu de cas tor bran co ou de pa lha ao alto da ca be ça, de olhos in je ta dos e gran des, de an dar com pas sa do e re so lu to, a sua fi gu rati nha al gu ma coisa que in fun dia te mor e con fi an ça.

Tra jan do com de cên cia, nun ca dis pen sa va o ca sa co gros so ecom pri do, gran de cor ren te de ouro que pren dia o re ló gio, sa pa tos debico re vi ra do, gra va ta de cor com um anel cor re di ço, tra zen do so men tecomo arma uma ben ga la fina de cana-da-ín dia.

O Man du ca ti nha ban ca de pe i xe na Pra ça do Mer ca do, eraliso em seus ne gó ci os, ga nha va bas tan te e tra ta va-se com re ga lo.

Cons tan te mo ra dor da Ci da de Nova, não re ce bia in fluên ci asda ca po e i ra gem lo cal nem de ou tras fre gue si as, fa zen do vida à par te,sen do ca po e i ra por sua con ta e ris co.

Des tro como uma som bra, foi no cur ro da Rua do La vra dio,can to da do Se na do, onde é hoje uma co che i ra de an do ri nhas, que eleini ci ou a sua car re i ra de ra paz des te mi do e va len tão, agre din do tou rosbra vi os so bre os qua is sal ta va, li vran do-se.

Nas ele i ções de S. José dava car tas, pin ta va o di a bo com ascé du las.

Nos es fa que a men tos e nos sa ri lhos pró pri os do mo men to,nin guém lhe dis pu ta va a com pe tên cia.

Um dia, na fes ta da Pe nha, o Man du ca da Pra ia ba teu-se comtan ta vanta gem con tra um gru po de ro me i ros ar ma dos de pau, que algunsfi ca ram es ten di dos e os mais inu ti li za dos na luta.

O fato que mais o ce le bri zou nes ta ci da de re mon ta à che ga dado De pu ta do por tu guês San ta na, ca va lhe i ro dis tin tís si mo e in ven cí veljogador de pau, do ta do de uma for ça mus cu lar pro di gi o sa.

San ta na, que gos ta va de bri gas, que não re cu a va di an te dequem quer que fos se, ten do no tí cia do Man du ca, pro cu rou-o.

Encon tran do-se os dois, hou ve de sa fio, acon te cen do àque lesaltar nos ares ao pri me i ro ca ne lo do nos so ca po e i ra, de po is do quebebe ram cham panhe am bos, e con ti nu a ram ami gos.

A ca po e i ra gem, como arte, como ins tru men to de de fe sa, é aluta pró pria do Bra sil.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 333

Page 312: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Ca pi tão Na bu co

O pe dan tis mo ra quí ti co de nos sa so ci e da de atu al não ces sade apre go ar o tre cho la ti no mens sana in cor po re sano, ao mes mo tem poque em des pro ve i to do pró prio cor po en tu lha o cé re bro de as ne i ras, deuma ciên cia in di ges ta, não se lem bran do que a gran de par te da atro fia de que se res sen te o povo da ca pi tal flu mi nen se é de vi da a um tra ba lhoin com ple to de ci vi li za ção.

À se me lhan ça de abor tos, de fe tos que se de sen vol ve ram fora da vida ute ri na, mais do ter ço des ta po pu la ção faz mal di zer o sol quede i xa ra de ser es cul tor para cons ti tu ir-se fa bri can te de ca ri ca turas, deindi ví du os ama re los, de per nas fi nas, es pin go la dos e mío pes, ver da deirossím bo los da de ge ne ra ção da mes ti ça gem bra si le i ra, tão cor re ta e dis tin ta nos seus tron cos pri mi ti vos.

Essas con si de ra ções que po dem ser con tras ta das a qual quermo men to, que se ve ri fi cam em pre sen ça de nos sa mo ci da de, en tre aqual se po dem es co lher li vre men te es que le tos am bu lan tes, cor de lo bi so -mem, nos sur pre en de ram de im pro vi so, ao re cor dar mos um Hér cu les dePu get, nas for mas e na for ça – o Ca pi tão Na bu co.

I

Page 313: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Des cen den te de uma fa mí lia ilus tre, fi lho de um de sem bar ga -dor e mem bro do Su pre mo Tri bu nal de Jus ti ça, o Na bu co con vi veu aprin cí pio com a me lhor gen te do tem po e o seu nome e o seu pul so,bem como os dos he róis de Ho me ro, são acla ma dos pela voz pú bli caen vol vi dos em uma at mos fe ra de le gen da.

Sem dis cre pân cia, con ter râ ne os seus, que ain da exis tem, con -ser vam-se fiéis à tra di ção, não ha ven do a me nor di ver gên cia so bre opro dí gio de sua for ça e as his tó ri as de seu va lor.

Per gun tai aos ha bi tan tes des ta ci da de, cuja ida de ex ce da dostrinta anos, quem foi ele, e de no ven ta por cen to ou vi re is ca sos as som brosos de suas lu tas atlé ti cas, de sua di nâ mi ca de bron ze.

Esse ho mem, em cuja os sa da in se ri am-se mús cu los de fer ro,era de es ta tu ra me di a na, cham pru do e ti nha o bra ço e o an te bra ço for -ne ci dos por mus cu la tu ra de ci clo pe, bu ri lan do-lhe o tor so um mo de la do de jo ga dor de dis co de es ta tuá ria gre ga.

Sen tan do pra ça no exér ci to, o ca de te Na bu co teve de se guirpara Ná po les, fa zen do par te da co mi ti va que foi bus car Sua Ma jes ta de aImpe ra triz. Ali, ao que se diz, es te ve para ca sar-se com uma prin ce sa,po rém a sor te foi-lhe ad ver sa nes se pon to.

Desde que che gou ao Rio de Ja ne i ro, o Ca pi tão Na bu coatirou-se ao tu mul to e aos des re gra men tos, acom pa nha do de ra pa zesdes te mi dos e va len tes.

Cal mo qua se sem pre, en tro ni za do na sua for ça des co mu nal,não cons ta que fos se uma úni ca vez agres sor, nem pro vo ca dor de lu tas e de de sor dens.

Se por aca so o em pur ras sem no ca mi nho, ele não se aba la va,mas se guia; se lhe ati ra vam com o cha péu por atro a men to ou des cu i do,ele aba i xa va-se, apa nha va-o e não ti ra va o mí ni mo des for ço.

Len to nos mo vi mentos, im per tur bá vel di an te do pe ri go,discreto em suas re so lu ções de for te, nas ce ra an tes para mo ver mon tanhasdo que der ru bar homens, para ma lhar ca de i as do que apri si o narvenci dos.

Como Tu bal-Cã, ti nha al gu ma co i sa dos pri mo gê ni tos daTer ra, dos co e tâ neo do caos e das sa la man dras dos abis mos.

336 Melo Mo ra is Filho

Page 314: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Qu an do re tra ía o bra ço, qual mola fle ti da, o suor caía-lhe emgo tas como os or va lhos pri mi ti vos, e o seu pe i to es ta la va da im pul sãosú bi ta.

Arro ja do aos ex ces sos, às imo de ra ções bá qui cas al guns epi sódiosde sua vida co lo ri am-se de re fle xos ca rac te rís ti cos, o que não im pe diaque o ro che do fi cas se fir me e de pé, ao em ba te das va gas e aos ru mo resdas tem pes ta des.

Na car re i ra mi li tar o Ca pi tão Na bu co sa li en tou-se bem pou co,mes mo por que tinha ne ga ção à ati vi da de dis ci pli nar do sol da do, àobediên cia pas si va a um la bi rin to de leis.

No meio de seus so nhos, de suas fan ta si as lou cas, o seu gê nio de i xa va-se ar ras tar na tor ren te dos ca pri chos que o tor na vam de lin -qüen te.

Daí, tal vez, a sua re ti ra da das fi le i ras, em bo ra fos se es ti ma docomo ca va lhe i ro e um exem plo como ami go.

Res pe i ta do pelo povo, pois é do povo ren der ver da de i ro cul to ao que é for te, o Na bu co, sem os ten ta ção, sem ex te ri o ri da des, exer ciaopor tu na men te a ação de seu bí ceps gi gan te, fa zen do es tre me cer deassom bro os es pec ta do res que o ad mi ra vam.

Par tir uma mesa com um soco, sus pen der nos ares um bi lhar,ar ran car uma sa ca da de fer ro e va re já-la à rua, eram fa tos tão pre sen ci a -dos por mu i tos, que toda a po pu la ção ju ra va tê-los tes te mu nha do, as se -ve ran do-os.

Com pa nhe i ro do Man du ca da Pra ia, do Ata li ba e, de po is, do De pu ta do por tu guês San ta na, o nos so cam peão ho mé ri co ex ce dia-os de dis tân cia in co men su rá vel na va len tia do pul so e do bra ço.

Ami go dos pri me i ros, veio a co nhe cer a este úl ti mo no caféTro yon da Rua Di re i ta, onde é hoje o ho tel do Glo bo.

O exí mio joga dor de pau, o Hér cu les lu si ta no, al me ja va oinstan te que se apre sen ta va de me dir for ças com o Ca pi tão Na bu co,visto como a sua fama o ten ta va e a seu pu nho não en con tra ra ri val.

Eram nove ho ras da no i te quan do San ta na en trou no café,pre ve ni do de que lá se acha va a ce le bri da de com que de via lu tar.

Ape nas en ca rou-o, ar ras tou uma ca de i ra para jun to da mesaonde es ta va o ca pi tão, sen tou-se, di ri gin do-lhe a pa la vra:

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 337

Page 315: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Cre io que falo com o Ca pi tão Na bu co...– Sou um seu cri a do.– Apos to que não me co nhe ce.– Não apos to, por que em nada me in te res sa.– Pois fi que sa ben do que sou o San ta na.– E o que me quer?– Que es co lha as ar mas para ba ter-se co mi go.– Ora, não me abor re ça, para lhe dar pan ca da não pre ci so

esco lher ar mas, nem le van tar-me.– Per dão, re pli cou San ta na, tra ta-se de me dir mos for ças e o

ca va lhe i ro não pode re cu sar.– Pois seja.– Aqui mes mo?– Aqui mes mo.– É em fren te um do ou tro, bra ço con tra bra ço que com ba -

te re mos, até que o mais fra co se aba ta ven ci do.– Pois olhe, con ti nua frio e com pas sa do o Hér cu les flu mi nen se:

eu para o se nhor nem mudo de po si ção, nem me che go para a mesa...Va mos!

E aque le cotovelo mons tru o so eco ou pe sa do na tá bua, aflu indo a vê-los to dos os gru pos do sa lão.

San ta na, cru zan do o pu nho com o do seu ad ver sá rio, em pre ga va o ma i or es for ço ape ga do àque la bar ra de bron ze que nem de leve semo via... o suor cor ria-lhe gota a gota da fron te, e o ron co do tó rax per ce -bia-se dis tin to, os cir cuns tan tes ad mi ra vam os lu ta do res ter rí ve is; po rémNa bu co, im per tur bá vel e logo que quis, ar ri ou-lhe o bra ço so bre a mesa,co lo cou-se ou tra vez em po si ção, or de nan do-lhe tran qüi lo e so bran ce i ro:

– Ago ra bote dois: de bru ce-se so bre a mesa, re cos te-se,deixe-se cair pen du ra do, como qui ser!

Os as sis ten tes pror rom pi am em ex cla ma ções ao es for ça doofi ci al, quan do San ta na, ace i tan do o al vi tre ofe re ci do, em pe nhou-se emnovo pu gi la to.

Sen do ain da uma vez der ro ta do na que da do pul so, res ta va ao ca pi tão pro vo cá-lo para a úl ti ma luta. Erguen do en tão o an te bra ço, aolon go do qual as ve i as de se nha vam-se como cor das no do sas e os múscu los

338 Melo Mo ra is Filho

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com a ri je za do bronze, le van tou o dedo in di ca dor e de sa fi ou ocampeão es tran ge i ro:

– Para você não pre ci so de mais.– Ace i to, res pon deu-lhe o fi dal go, seu con ten dor, con ven -

ci do do de sas tre que o aguar da va, mas que ren do as sim ele var a quem ohu mi lha va.

E com a pres te za de um pes ta ne jar, aque le ma lho de fer rocaiu so bre a mesa e o pu nho alvo do for ço so de pu ta do, à voz do Ca pi tãoNa bu co, que des de nha va se re no e de bom hu mor:

– Já vês que não pres tas para nada.– Entre tan to, co nhe ci um ho mem!Os dois abra ça ram-se, be be ram cham pa nhe, os apla u sos cou -

beram a am bos, res tan do do pu gi la to ti tâ ni co ami za de que só um pul socon se guiu se pa rar – o da mor te.

II

A fama des te acon te ci men to foi tão es tron do sa que mu i tagen te ain da re pe te o que vira ou ou vi ra, do mes mo modo, sem a me nordis cre pân cia.

Na vida des se ho mem ex tra or di ná rio, uma sé rie de fa tosjusta põe-se com pro van do a sua ener gia mus cu lar.

Inter ro gai a tra di ção, con ver sai com os ve lhos sol da dos eofi ci ais seus com pa nhe i ros de ar mas, e vos con ven ce re is, pela uni for midadedas informa ções, que os bo a tos aqui pas sa dos pela le tra de fôr maexprimem a ver da de na sua pu re za pri mi ti va.

O Ca pi tão Na bu co, na exis tên cia mais ou me nos aci den ta daque sem pre con du zia, avul ta va como um pro dí gio, como uma or ga ni za -ção pri vi le gi a da e es tu pen da.

De uma agilida de pas mo sa, sal ta va de um so bra do de doisanda res, exe cu ta va ma ra vi lhas de gi nás ti ca, sen do ter rí vel se o aca so oco lo ca va di an te de um povo de ad ver sá ri os.

Admi ra dor apa i xo na do de João Ca e ta no, fre qüen ta dor as sí duodo te a tro lí ri co, fi li a va-se a par ti dos, e os epi só di os que se nar ram de suaslu tas não des to am ab so lu ta men te de seus cré di tos es pan to sos.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 339

Page 317: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Com pen di an do, em bo ra frag men ta das, al gu mas no tí ci as comre la ção à sua for ça, o Ca pi tão Na bu co se ria um per so na gem fan tás ti co,se o tes te mu nho de ge ne ra is de ter ra e de mar, de mais de me ta de dapo pu la ção des ta ci da de, não es ti ves sem aí para con fir mar o que va mosex pen der.

Fe liz men te a ar qui ban ca da é vas ta e não fa la mos a por tasfe cha das.

Em uma no i te cla ra e es tre la da, o Ca pi tão Na bu co, acom pa -nha do do San ta na, do Man du ca da Pra ia e do Ata li ba, di ri gi ra-se apas se io ao pi to res co ba ir ro das La ran je i ras.

Na que le tem po, ain da pou co ha bi ta do, o cal ça men to co me ça va a ser as sen ta do, e na atu al Rua do Gu a na ba ra, por onde tran si ta vam ostrês va len tões, exis tia no chão um fra de de pe dra que lhes em ba ra ça va oca mi nho.

A esse pe que no obs tá cu lo su ce deu ir ri ta do mur mú rio, ao que o nos so Hér cu les, sus pen den do nos bra ços a co lu na de gra ni to, an doucom ela de um lado para ou tro, pe din do aos com pa nhe i ros que lhe in di -cas sem onde a de via co lo car.

Na no i te se guin te, no quar tel de ca va la ria – con tou-nos umdos nos sos mais ilus tres ge ne ra is – ar re ben tou com um soco uma por tade ma de i ra rija e cha pe a da de fer ro.

Na ma jes ta de de seu vi gor, no do mí nio ple no de suas ener gi as,o jo vem ca pi tão sen tia-se des fa le cer.

Às ve zes, di zia ele de sa len ta do:– Olhem, meus ami gos, eu sou tão des gra ça do que só pos so

apa nhar; por que se eu der, mato.Des cu i do so de seu fu tu ro, afo gan do-se no tor ve li nho da vida,

os seus dias es co a vam-se em no i tes ve la das nos sa lões dos ho téis, nasca sas de bi lhar, nos atro pe los de toda a cas ta, como que se an te ci pan doà mor te.

Alvo das vis tas po pu la res, or gu lho so do res pe i to das tur bas que o fes te ja vam por suas pro e zas, o es for ça do flu mi nen se exi bia-se naspra ças pú bli cas, se gun do o seu ca pri cho ou a opor tu ni da de do mo men to.

Uma oca sião ro da va pelo Lar go de S. Fran cis co de Pa u la umagôn do la ti ra da por qua tro bes tas no vas e aris cas.

340 Melo Mo ra is Filho

Page 318: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O ca pi tão fa zen do si nal ao co che i ro para que pa ras se, estenão o obe de ceu, res pon den do-lhe que a lo ta ção es ta va com ple ta, quenão ha via lu gar.

Abor re cen do-se Na bu co com o que lhe dis se ra esse ho mem,deu al guns pas sos, ao que chi co te es ta la ra re pe ti do da bo léia, fus ti gan doas bes tas em dis pa ra da.

De re pen te as pa re lhas em pi na ram, a gôn do la es ta cou, ou vin -do-se uma voz que bra da va:

– Se não me der lu gar, não se gue!Era o nos so Hér cu les que, se gu ran do com a mão di re i ta o

eixo da roda e com a es quer da um dos ra i os, a im pe dia de mo ver-se.À vis ta des sa re so lu ção, um dos pas sa ge i ros su biu para as

im pe ri a is e o Ca pi tão Na bu co, gal gan do o es tri bo, sen tou-se.No Lar go do Ro cio, es tan do ele na Pe ta ló gi ca, o de sem bar ga dor

seu pai pas sa va de car ro.Ao avis tar o fi lho, com quem ti ve ra li ge i ra de sa ven ça, or de nou

ao co che i ro que to cas se os ca va los, que to cas se sem pre.Nis so o for ço so ofi ci al aban do na os ami gos, es pe ra a car ru a -

gem, e ape nas se lhe põe ao al can ce, tra va-a de sú bi to, pe din do a bên ção a seu ve ne ran do pai e um su pri men to de di nhe i ro.

Em tais ca sos, o que fa zer?Qu an do esta ci da de era vi si ta da anu al men te por ce le bri da des

eu ro péi as, quan do es cri to res, sá bi os, gi nas tas, can to res, ar tis tas dra má -ti cos, mú si cos no tá ve is, hér cu les de te a tro e de bar ra cas, vi nham en tre nós con quis tar mais lou ros à sua fama, aqui apor ta ra um lu ta dor de re no me,cha ma do Mr. Char les.

Os anún ci os de de sa fio cho vi am em car ta zes, com re tra to,pre ga dos às por tas dos te a tros e nas pa re des dos edi fí ci os; os jor na ispu bli ca vam a no tí cia dos es pe tá cu los e as con di ções da luta; e o povo eas fa mí li as, pre ve nin do-se de bi lhe tes e en tra das, an si a vam pela fes ti vano i te ver da de i ra men te ro ma na.

No ma i or se gre do di zia-se aqui e ali que este ou aque le ne go -ci an te, este ou aque le in di ví duo al ta men te co lo ca do to ma ria parte noes pe tá cu lo, para o que man da va fa zer lu xu o sa ves ti men ta de meia, ecom pra ra nes ta ou na que la loja a más ca ra para ba ter-se in cóg ni to.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 341

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Os bo a tos es pa lha vam-se em to dos os cír cu los, à pro por çãoque o nome do lu ta dor fran cês cres cia na ima gi na ção pú bli ca como ide alda for ça e da arte.

Na no i te mar ca da o te a tro de S. Pe dro abriu mais cedo as suas por tas, re ce ben do des de logo en chen te real.

Nos ca ma ro tes as fa mí li as co lo ca vam so bre ca de i ras be losra mos de flo res com que jun ca ri am a es tra da do pal co tri lha da peloven ce dor.

A luz bri lha va no gran de lus tre do cen tro, as aran de lasjor ra vam fios de âm bar nos ra i os da luz, e a or ques tra ter mi na va aou ver tu re.

O con tra-re gra, to can do o api to, o pano su biu e al gum tem po de po is apa re ceu em cena Mr. Char les, o Hér cu les for mi dá vel, que vi nhaajus tar for ças no Rio de Ja ne i ro.

Na re a li da de es ta va-se em pre sen ça de um co los so: alto,ro bus to, atlé ti co; o fran cês pos san te or gu lha va-se da mus cu la tu ra cor re tae ti tâ ni ca.

Adi an tan do-se na cena, as pal mas fo ram es tre pi to sas e osapla u sos sem fim.

Che gan do-se mais, co lo cou-se no meio do ta bla do, es co lheu a po si ção de luta, sa in do-lhe o pri me i ro mas ca ra do ao en con tro.

Na que le cor po un tu o so como o dos seus an te ces so res ro ma nos, a mão do con ten dor, de i xan do de en con trar apo io fir me, es cor re ga va, o que equi va lia pron ta der ro ta ao es for ço do pri me i ro.

Este e ou tro e ain da mais ou tro mor de ram a are na, qua se sem luta, quan do um novo más ca ra, trans pon do os bas ti do res, che ga-se paraa boca da cena, in cli na-se di an te do pú bli co e, me din do o seu ter rí velcom pe ti dor, apro xi ma-se ma jes to so.

– Era o Ca pi tão Na bu co!O en con tro dos dois Hér cu les dir-se-ia o en tre cho que de duas

mon ta nhas. Por al guns mi nu tos a luta cor reu se gun do as re gras, os pre -

ce i tos es ta be le ci dos.

342 Melo Mo ra is Filho

Page 320: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Num mo men to, po rém, como que pre so en tre duas te na zesde fer ro, Mr. Char les ar que jou opres so e caiu re don do como um cor pomor to.

A pla téia, os ca ma ro tes, as tor ri nhas acla ma ram e ati ra ramflo res so bre o tri un fa dor, que não apa ren ta va a mais leva fa di ga.

O fran cês cus pia san gue...

O Ca pi tão Na bu co fa le ceu em 1863 ou 1864, de i xan do umfi lho que lhe her da ra a mes ma ener gia mus cu lar.

Qu an do essa cri an ça ti nha ape nas seis anos – re fe re quem aco nhe ceu – sus pen dia um peso de ar ro bas.

Que des ti no teve, se é vivo ou mor to, não pu de mos in da gar.A me mó ria de seu pai, en tre tan to, está viva como ou tro ra na

lem bran ça do povo.Nes te país já é al gu ma coisa!

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 343

Page 321: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Estra da de Fer ro

Não é um trâns fu ga dos hos pí ci os de ali e na dos o cri ou lo Emi li a no, vul gar men te co nhe ci do pelo Estra da de Fer ro.

É um pre to in te li gen te, fiel, deve ter per to de 45 anos, andaves ti do de cal ça e ja que ta de brim de cor, cha péu ba i xo de pêlo de le bre, não ha ven do a seu res pe i to coisa que o de sa bo ne.

A sua fi si o no mia é fran ca, seus olhos são vi vos; os ten ta gran debe i ço la, é tor to de uma per na, tor nan do-se sin gu lar pela au sên cia com -ple ta e na tu ral de qual quer pro je to de bar ba.

Fi lho da es cra va Rosa, per ten cen te à dis tin ta e an ti ga fa mí liaFran ça Le i te, foi mo rar com seus se nho res à Rua do Prín ci pe, nas vi zi -nhan ças da es ta ção da estrada de fer ro D. Pe dro II, onde, por al gumtem po fez sé rio es tu do pro cu ran do imi tar o si bi lo da lo co mo ti va, que atodo o ins tan te so a va aos ou vi dos.

Antes, po rém, de ali re si dir, Emi li a no exi bia-se ad mi ra vel men te na exe cu ção de pe ças in te i ras, sem dis cre pân cia de uma nota, ba ten docom os de dos nas bo che chas, con ser van do a boca aber ta.

So pran do no côn ca vo das mãos uni das, imi ta va um ins tru -men to so no ro, re pro du zin do com a ma i or ex pres são pol cas e val sas.

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Essas pren das en tre tan to, que o ex clu íam das ra i as co muns,bem lon ge es ta vam de con fe rir-lhe a ce le bri da de de que jus ta men te goza nas ruas, de po is que con quis tou o ape li do de Estra da de Fer ro.

Pa re ce in crí vel a ha bi li da de imi ta ti va de que é do ta do essene gro; ao ouvi-lo à dis tân cia, afir ma-se, jura-se que uma lo co mo ti vaven ce o es pa ço, com tal pro pri e da de des fe re ele o gri to es trí du lo, o somdas ba fo ra das do va por, o bor bu lho da má qui na, o as so bio agu do dotrem de fer ro à dis tân cia ou che gan do à es ta ção.

Pas sa ge i ro cons tan te dos ca ras-du ras, o Estra da de Fer ro lá vaiguin chan do a in ter va los, che gan do a con ven cer, com a ver da de da imi ta -ção, a mo ra do res de ar ra bal des lon gín quos, que o que es cu tam, que sãovo zes do trem de fer ro, tra zi das pe los ecos da es ta ção cen tral.

Nes sa dú vi da es ti ve mos nós, que mo ra mos no Ca te te, quan do por aca so o ou vía mos a cer tas ho ras da noite.

Dan do con ve ni en te em pre go a tão rara ap ti dão, os em pre sá ri osde te a tros o con vi dam, quan do põem em cena a Vi a gem à roda do Mun doe ou tros dra mas, a fim de exe cu tar o seu pa pel de Estra da de Fer ro,se gun do as exi gên ci as da ru bri cas.

O Estra da de Fer ro não sabe ler, mas co nhe ce e es cre ve to dos os nú me ros, por isso que a sua ma nia é com prar bi lhe tes de lo te ria.

Em 1887, ti ran do num vi gé si mo a sor te de dois con tos equi nhen tos mil-réis, le vou-os a seu se nhor, o Ma jor Fran ça Le i te, emtro ca de sua li ber da de; e este não os ace i tou, con ce den do-a des de logo,es pon tâ nea e li be ral men te.

E o Estra da de Fer ro, na pla ta for ma ou nos es tri bos dosca ras-du ras atra ves sa esta ci da de, pro du zin do o cu ri o so efe i to das lo co -mo ti vas em trân si to.

A ilu são não pode ser mais per su a si va, nem mais per fe i ta.

346 Melo Mo ra is Filho

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O Fi ló so fo do Cais

(Dr. Melo Mo ra is, Pai)

“Esse per so na gem co nhe ci do no Rio de Ja ne i ro pelotí tu lo de Fi ló so fo do Cais ou do Lar go do Paço, era João Adal ber toMa ti as, Ba rão de Schind ler, fi lho úni co do Ba rão Ansel mo Schind ler,da an ti ga no bre za da Ale ma nha, nas ci do em 1795, o qual, che gan doaos 17 anos, as sen tou pra ça na mi lí cia da Ba vi e ra, e foi com o seuba ta lhão re u nir-se às for ças de Na po leão Bo na par te, com ba ter a San ta Ali an ça, após os de sas tres da cam pa nha da Rús sia. Sen do fe ri do gra ve -men te na ba ta lha de Le ip zig, foi trans por ta do para o cas te lo dos se -nho res de Mock witz-Kat zi nel lu bo gen, e nele pen sa do pela jo vem efor mo sa Con des sa Erme lin da, per ten cen te a uma an ti ga e no bi lís si mafa mí lia da Sa xô nia, e fi lha do Con de Mock witz-Kat zi nel lu bo gen. Oscu i da dos des ta for mo sa jo vem ao do en te Ba rão Schind ler e o con ta tofre qüen te, ge ra ram ne les sim pa tia e mais logo pa i xão ve e men te de umpara o ou tro.

“Res ta be le ci do o Ba rão Schind ler, pe diu ao ve lho Con deMock witz a mão da prin ce sa Erme lin da para sua es po sa, e o con de pai‘lha’ ne gou, por que sen do ri quís si mo a des ti na va para es po sa de um

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prín ci pe rus so. Adal ber to era es tre me ci da men te ama do de Erme lin da, e, já sen do te nen te, fora ele va do ao pos to de ca pi tão pe las bra vu ras quema ni fes tou na san gui no len ta ba ta lha de Wa ter loo, da qual mi la gro sa -men te ti nha es ca pa do com vida. Che gan do a Pa ris, ob te ve li cen ça e cor -reu a Mock witz, e, ali che gan do, sou be que o ve lho con de ti nha par ti docom a Con des sa Erme lin da para Dres de, com o fim de a ca sar com oprín ci pe rus so, e que a ce ri mô nia do ca sa men to se fa ria no dia se guin te.Para ali cor reu e, sa ben do que o con de e Erme lin da, bem como o prín -ci pe rus so ti nham se en ca mi nha do para a ca te dral, indo Erme lin daba nha da em lá gri mas, pe ne trou no tem plo gri tan do que nada fi zes sempor que o ver da de i ro no i vo era ele; e, se apro xi man do ao al tar, viu que ace ri mô nia nup ci al es ta va ter mi na da. Adal ber to caiu por ter ra sem sen -ti dos, e foi le va do lou co para o ho tel vi zi nho, e daí para o hos pí cio dosali e na dos, onde foi cu ra do pelo Dr. Schwar zer. No hos pí cio en tre gou-se aos li vros e pôde des va ne cer seu ma lo gra do amor. Sa in do do hos pí ciores ta be le ci do, foi ao cas te lo de seus pais, e já eram mor tos. Pas san dopor Mu ni que, en con trou-se com um es tran ge i ro mis te ri o so, que se su -põe ser um des cen den te de Te o fras to Pa ra cel so.

“Em 1820 par tiu para a Gré cia, e em 1821 dan do-se in ti ma -men te de ami za de com o che fe gre go Mar cos Boz za ris, este lhe mor reunos bra ços em Mis so long hi, e an tes de ex pi rar lhe pe diu que to mas sepor es po sa sua lin da e en can ta do ra fi lha Pe né lo pe. Adal ber to ti nha oco ra ção ain da che io de seu pri me i ro amor; mas não de sam pa rou a for -mo sa fi lha de seu ami go, e a ca sou com o cé le bre Ca pi tão Co lo co tro ni.De i xou a Gré cia e vol tou para a Ale ma nha, e, como nes se tem po sees ta va en ga jan do sol da dos para o Bra sil, ofe re ceu-se tam bém o Ba rãode Schind ler e che gou ao Rio de Ja ne i ro em 1824 com os pri me i rosale mães, e par tiu com a tro pa para o Rio Gran de do Sul. A fe ri da doco ra ção ain da não es ta va ci ca tri za da, e as in tri gas de seus ca ma ra das, eas suas re cor da ções o fi ze ram cair em pro fun da me lan co lia, e se se pa rou da tro pa ale mã, re sol ven do-se ir aca bar en tre os sel va gens, me ten do-sepe los ma tos, ca mi nhan do sem des can so até que, sen do agar ra do por um ban do de sel va gens, foi sal vo pelo ve lho che fe in dí ge na, que era fran cês, na tu ral de Per pig nan, cha ma do Pre ux, que o le vou para sua ca ba na, e oman dou cu rar pela for mo sa fi lha de nome Ali ce.

348 Melo Mo ra is Filho

Page 325: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

“Pre ux lhe pe diu que se ca sas se com sua fi lha, que em bo ranas ci da nas sel vas, ele a ha via edu ca do à moda da Eu ro pa; mas Adal ber toera in sen sí vel. Mor ren do o che fe Pre ux, foi es co lhi do para o subs ti tu irAdal ber to, Ba rão de Schind ler, e como al guns ín di os as pi ra vam à pos sede Ali ce, lhe de se ja vam a mor te; mas Ali ce que o ama va lou ca men te,sen tin do-lhe a in di fe ren ça, pede a uma ve lha ín dia fe i ti ce i ra para lhe pre -pa rar um fil tro que ins pi re amor em Adal ber to para ela: a ve lha o pre pa rae ele bebe, e ca in do em sono, se lhe apre sen ta a fi gu ra de Erme lin da jávi ú va, e ra la da de sa u da des por ele. Se guiu-se fe bre com de lí rio, e comoAli ce se con ser vas se sem pre a seu lado, toma-a por Erme lin da, e a es tre i ta nos bra ços ab sor vi do na mais vi o len ta pa i xão. De re pen te, le van ta-se, esai pre ci pi ta da men te da ca ba na e em bre nha-se pe las mata, onde an douva gan do até que apa re ceu em um ca fe zal no Rio Gran de do Sul, e seen con tra com um seu com pa tri o ta, de nome Fre de ri co, que lhe dá aga -sa lho, e a no tí cia de exis tir no cor re io duas car tas para ele. Impa ci en tequer ir ao cor re io no mes mo tra je em que es ta va; mas o seu com pa tri o ta o con te ve, e fa zen do-o ves tir-se me lhor, foi com ele ao cor re io, e re ce bi -das as car tas uma era da prin ce sa Erme lin da, já vi ú va do prín ci pe rus so,que an si o sa o cha ma ra, para ca sar-se com ela, e mes mo com a car ta namão dan ça va, can ta va e so lu ça va. A se gun da car ta, era a no tí cia da mor tede Erme lin da, anun ci an do-lhe que a prin ce sa Erme lin da no seu tes ta -men to lhe de i xa va toda a sua gran de for tu na. Logo às pri me i ras li nhas,de i xou cair a car ta, deu um gri to hor rí vel, e sal tan do pela ja ne la de sa pa -re ceu; e anos de po is che gou o Ba rão Schind ler ao Rio de Ja ne i ro, tra jan doum ves tuá rio ver de, ten do na ca be ça um dis for me bo ne tão de cou ro, ede po is o subs ti tu iu por ou tro de ve lu do.

“Esmo la va em cer tas ca sas, e ja ma is ace i ta va ou tro di nhe i roque não fos se de co bre, que de po is tro ca va por bi lhe tes do Te sou ro, eos tra zia den tro do len ço que con ti nha a rou pa.

“Va ga va dia e no i te, sem pre mar chan do pelo Lar go do Paço.No cres cen te da lua, ele se des con cer ta va, e era nes se pe río do quees cre via os acon te ci men tos de sua vida, e fa zia a con ta dos ju ros dafa bu lo sa ri que za que pos su ía na Ale ma nha, e nar ra va a cor res pon dên -cia que ha via tido com as mu i tas pes so as de suas re la ções, em di ver sospa í ses.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 349

Page 326: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

“Escre via nos ca der nos os diá lo gos es qui si tos que ti nha tidocom os mo le ques, qui tan de i ras, guar das mu ni ci pa is e ga ro tos. De i xouno tas cô mi cas que teve com um ho me o pa ta, que o que ria cu rar pelomag ne tis mo. A po lí cia o man da, sem ra zão de ser, me ter na casa de cor -re ção, onde es te ve al guns dias. Fa zia a co mi da mes mo no cais. E dor mia no arco do Te les ou nos adros da Ca pe la Impe ri al e igre ja de S. José. Oque co mia das qui tan de i ras não pa ga va.

“Era alto, ma gro, e an da va com os pés des cal ços.“Em abril de 1855, sen do aco me ti do de uma fe bre per ni ci o sa,

foi re co lhi do à San ta Casa da Mi se ri cór dia, onde, den tro de oito dias,fa le ceu, sen do se pul ta do na vala o Ba rão de Schind ler, ou o Fi ló so fo doCais.

“As no tas que aqui enu me ro as ex traí de um li vro que, emPor to Ale gre, se im pri miu a res pe i to da vida des se fi dal go ale mão.

“Mu i tas ve zes pa i xões de pri men tes ou um amor ex ces si voar ras tam os in di ví du os a ex ces sos des co mu na is e à lou cu ra, sen do es sesmes mos in di ví du os dig nos de ver da de i ra com pa i xão; e cre io que foipelo pres sen ti men to na tu ral no povo, que o Fi ló so fo do Cais não foiper se gui do pe los mo le ques e ga ro tos das ruas.”

350 Melo Mo ra is Filho

O Fi ló so fo do Cais

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A For te-Lida

A his tó ria des ta mu lher tal vez fos se um des sesdra mas ig no ra dos que con du zem o pro ta go nis ta ao su plí cio da lou cu ra.

Por mais que ten tás se mos, nun ca con se gui mos des co brir ose gre do da que la exis tên cia vol ta da aos as so bi os dos mo le ques, às apu pa -das dos me ni nos, às pro vo ca ções da va di a gem, que anun ci a vam-lhe aen tra da nas ruas.

Ba te do res tur bu len tos da ali e na da iras cí vel, os ban dos deoci o sos to ma vam-lhe a fren te, ati ra vam-lhe pe dras, em uma al ga zar rase gui da e in fer nal.

A For te-Lida re si dia em Mata-Ca va los. Era vi ú va e ti nha al gu macoisa de seu e an da va sem pre acom pa nha da de uma es cra va.

De es ta tu ra aci ma de me di a na, ma gra, tri gue i ra, be xi go sa, deca be los gri sa lhos, pa re cia não ter mais de qua ren ta e pou cos anos, quan do a co nhe ce mos.

O seu tra jar, ain da mais que sua fi si o no mia, re ve la va um es ta do men tal em de sor dem, ou an tes a per da ab so lu ta da ra zão.

Page 328: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Ves tia saia de co res vi vas, ca mi sa en tre me a da de ren das, pen -dia-lhe da cin ta uma enor me ros ca e uma gran de cha ve, ja ma is es que -cen do a vara de mar me lo com que se de fen dia dos mo le ques.

A ti ra co lo, como as pre tas ba i a nas, des do bra va um xale en car -na do, do qual lhe pro ve io o se gun do ape li do de Man ta de Fogo.

To dos os me ses, im pre te ri vel men te ao meio-dia, a For te-Lidaapre sen ta va-se no Te sou ro, onde re ce bia uma pen são que lhe de i xa ra oma ri do.

O mais do tem po gas ta va ela em per cor rer os car tó ri os, a fimde sa ber de uma de man da na qual se acha va en vol vi da.

Nes sas oca siões a mo le ca da a pre ce dia e se guia, cor ren do,saltan do, gri tan do: – Ó For te-Lida! Ó Man ta de Fogo!...

E a po bre lou ca es bra ve ja va, des com pu nha, tan gia a vara,que i xan do-se re pe ti das ve zes aos pe des tres, aos ins pe to res de quar te i rão e até aos mi nis tros de Esta do.

A For te-Lida, ao que su po mos, mor reu mu i to de po is da guer ra do Pa ra guai.

352 Melo Mo ra is Filho

A For te-Lida

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O Mi gue lis ta

Na Rua Lar ga de S. Jo a quim, es qui na da Rua do Re gen te, mo ra va o Mi gue lis ta, um dos ti pos pre di le tos da can zo a da, que ja ma is ode i xa va se guir em paz seu ca mi nho.

Este in di ví duo era um fer re i ro por tu guês, alto, mus cu lo so,bar ba do, usa va bo tas e cal ça cur ta, ja que ta, cha péu re don do en ca pe la do,ten do o cos tu me de em bri a gar-se mu i tís si mas ve zes.

Su je i to da na do, quan do es ta va na chuva me tia-se em casa, iapara o quin tal, pu nha-se nu como para to mar ba nho, e, le van tan do osbra ços, ar ri an do-os, ba ten do com as mãos nas ná de gas, gri ta va a en sur -de cer: – “Vi zi nhas! Estou na área!”

Os mo le ques, que sa bi am da his tó ria, en con tran do-o na rua,pre ga vam-lhe pe dras, ou vin do-se da qui e dali: – “Ó Mi gue lis ta! ÓMigue lis ta!...”

E ele dis pa ra va atrás, cor ria em zi gue za gues, de sen ca de a va ovo ca bu lá rio da por no gra fia, ati ran do-lhes às per nas um gran de ca ce te de cas tão de fer ro com que an da va.

O Mi gue lis ta era um tipo de rua, com ple to e co nhe ci dís si mo.

Page 330: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Po li car po

Mu i ta gen te exis te que se lem bra ain da do cé le brePo li car po, es ti ma do mú si co da ca pe la im pe ri al.

Qu an do nos con ta ram sua ve sâ nia, acha mos in te res se no tipo, dig no cer ta men te de fi gu rar nes ta pe que na ga le ria de mo no ma nía cos,al guns dos qua is re tra tam com a ma i or fi de li da de cer to lado es pe ci al daépo ca em que vi ve ram.

Não é pre ci sa men te este o caso do mú si co aci ma; po rém oque é fora de dú vi da é que o Po li car po dá a me di da da im por tân cia quese li ga va aos ali e na dos, no tem po em que ele vi veu li vre men te com a sua en fer mi da de, com a sua ma nia.

O Po li car po era um ho mem ale gre, ex pan si vo e jo vi al. Naca pe la os com pa nhe i ros o tra ta vam com ame ni da de e o dis tin gui amcom lou vor.

De um mo men to para ou tro, no tou-se-lhe di fe ren ça nosmo dos, no ges to, no sem blan te.

Da ma ne i ra por que esse fe nô me no se ha via ope ra do, nun capu de mos evi den ci ar, em bo ra o nos so em pe nho fos se se gui do e per -ti naz.

Page 331: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Pro cu ramos di ver sas pes so as que o co nhe ce ram, que o viramcum prin do o seu fadário de lou co, e nem por isso mais adi an ta dosfica mos.

E como se re ve la ram as per tur ba ções men ta is que o cons ti -tu íam alvo das aten ções po pu la res, e lhe da vam en tra da no pa lá cio aé reo dos ti pos da rua?

Do modo mais sim ples e ori gi nal; sob for ma pal pi tan te men tenova e ca rac te rís ti ca.

O Po li car po não im pli ca va com os vi zi nhos, não pro vo ca vaos tran se un tes, não des com pu nha a nin guém.

Até aí fora in jus ti ça qual quer acu sa ção, qual quer cen su ra, amí ni ma des con fi an ça a res pe i to de sua in te gri da de mo ral.

Das cin co ho ras da tar de, por di an te, o ne gó cio com pli ca -va-se: o Po li car po to ma va um lar go pa le tó de pa drão es co cês, en fi a va aca be ça em uma ca ra pu ça de ba e ta ver me lha, pe ga va na ra be ca, me tia-ade ba i xo do bra ço e saía...

Mas onde ia o Po li car po com o seu so nho in sen sa to? Com tal as si du i da de, a que cas te lo fe u dal se di ri gia aque le me nes trel de ca ra pu çae cham brão?

À casa do meu ami go Pa i va, em pre ga do no cor re io e re si den teà Rua das Mar re cas.

356 Melo Mo ra is Filho

O Po li car po

Page 332: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Ape nas en tra va, o Pa i va agar ra va o vi o lão, con cer ta va a pri ma, afi na va-o, per cor ria a es ca la, e am bos vi nham para a rua.

E da por ta do Pas se io Pú bli co ao cha fa riz das Mar re cas, e docha fa riz das Mar re cas à por ta do Pas se io Pú bli co, o Po li car po e o Pa i vaan da vam em amo la do ra se re na ta, des de o es cu re cer até à meia-noite,exe cu tan do ape nas duas pe ças de mú si ca, abor re ci das e des con cha va das.

Ima gi ne-se um ins tan te o su plí cio da vi zi nhan ça!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 357

Page 333: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Bo len ga

Antô nio Fran cis co de Pa u la, por an to no má sia – oBo len ga – nas ceu em Ita bo raí, fre qüen tou o se mi ná rio de S. José, nun cacon se guin do pas sar do Mun dus a Do mi no cons ti tu tus est, du ran te cer ca dedez anos que cur sou as au las de la tim.

O Bo len ga era ba i xo te, cla ro, de olhos ver des, sem blan te oval, tra zia ca be lo ren te, an da va qua se sem pre de cha péu na mão e lim pan doo suor com um len ço de rapé, gran de e ver me lho.

Tra ja do de pre to, por ba i xo do co le te e da so bre ca sa ca en se -ba da as sen ta va o ca be ção de pa dre, a vol ta guar ne ci da de uma ren daes tre i ta e suja, di fi cil men te con ci liá ve is com a atu al te o ria dos mi cró bi os.

For mi gão crô ni co, che gou a re ce ber a pri me i ra das or densme no res, in ter rom pen do a sua bri lhan te car re i ra para en trar como do na tono con ven to de San to Antô nio.

Não lhe con vin do o em pre go, po rém per sis tin do na ma niare li gi o sa de or de nar-se, foi ser sa cris tão de S. Pe dro, do Car mo, de di ver sasigre jas e fi nal men te da ca pe la im pe ri al.

Cons tan te men te bur la do em sua pri mi ti va vo ca ção, o amá vele sim pló rio Bo len ga pre ten deu ser no me a do bis po para a di o ce se quemais de pron to va gas se.

Page 334: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Os ca po tes, que não dor mi am, to ma ram o pa dre Pa u lo para seudi ver ti men to e, já na ca pe la, já nas se cre ta ri as, o des fru tá vel Bo len gagi ra va numa roda-viva.

Man da vam-lhe pre sen tes de mi tras com pra das nos bel chi o res, en vi a vam-lhe de cre tos de no me a ção re di gi dos em la tim ma car rô ni co eau ten ti ca dos com se les ex tra va gan tes, ao que o ton su ra do idi o ta pres ta vafé, jul gan do-se fe liz.

E cho vi am os ofí ci os re la ti vos ao car go que ia exer cer, car tasde pa ra béns pela acer ta da es co lha, par tin do ele, pou co de po is, a mos trar es ses do cu men tos aos mon se nho res, cô ne gos e mais pa dres do coro daca pe la, que riam-se ou pro cu ra vam de si lu di-lo.

– Ah!... di zia o Bo len ga, le van tan do para um lado o ros to ear re ga çan do uma das ex tre mi da des do lá bio su pe ri or – ah!... fui no me a dobis po de Ma ra nhão, ah!... e os na vi os do es ta do es tão pre pa ra dos parame con du zi rem à di o ce se, ah!

E mos tra va os pa péis.Uma vez re ce beu um ofí cio que o em pra za va a com pa re cer

no Te sou ro, onde re ce be ria um ca i xão de li bras es ter li nas, a aju da decus to da vi a gem.

E o Bo len ga não fal tou.Algu mas ve zes, des con fi an do da ga i ta, isto é, su pon do pro po -

si ta is as de lon gas, ves tia a ba ti na, pro cu ra va os mi nis tros em au diên cia eque i xa va-se amar ga men te dos em pre ga dos da se cre ta ria do Impé rio e da re ce be do ria da Cor te, por não o des pa cha rem com ur gên cia.

– Ah! Se nhor mi nis tro, seus em pre ga dos são tão des can sa dos,ah!... te nho per di do tan to tem po, ah!...

Os pa dres e os fun ci o ná ri os pú bli cos, au to res ou im pli ca dosno ne gó cio, de bi ca vam ou des cul pa vam o po bre ve lho, que, como úl ti more cur so, se guia para o paço de S. Cris tó vão, le van do a Sua Ma jes ta de oImpe ra dor os seus mo ti vos de agra vo con tra o ex pe di en te da re par ti çãodo Impé rio.

– Ah!... Impe ri al Se nhor, ah!... Que tan ta de mo ra nas se cre ta -ri as, ah!... Ve nho agra de cer a Vos sa Ma jes ta de a mi nha no me a ção debis po, ah!... Estou can sa do de ta ma nha lida, ah!...

360 Melo Mo ra is Filho

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O Impe ra dor que sa bia-lhe a ma lu qui ce e que o co nhe cia daca pe la, tra ta va-o com fa vor e bon da de.

Fa le ceu este ho mem, que era ho nes to, leal e agra de ci do, em1879, na avan ça da ida de de 74 anos.

No seu ca rá ter de tipo de rua, o Bo len ga foi o úni co, tal vez,que pas sou in có lu me das pe dra das dos mo le ques, e das sur ri a das dosva di os.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 361

Page 336: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Pica-Pau

Não há mu i tos anos, mo ra va em uma casa no bre daRua de Mata-Ca va los, um in di ví duo ma gro, fa na di nho, pá li do, im ber be,de an dar ve lo cís si mo, co nhe ci do ge ral men te pelo Pica-pau.

A ra zão da al cu nha es ta va em ter ele enor me na riz, ri di cu la -men te aqui li no, cuja pon ta ul tra pas sa va o lá bio in fe ri or.

O Pica-pau tra ja va com de cên cia, usa va de ca ra pu ça e, quan dofu ma va, o cha ru to saía-lhe do cres cen te for ma do pelo que i xo e o ló bu lo na sal, se pa ran do pelo meio a vis to sa pren da.

Como pro du to te ra to ló gi co, o po bre idi o ta po de ria fi gu rar em um mu seu de ana to mia, não sen do de pe que na im por tân cia o es tu do do caso.

Em sua alma, po rém, al gu ma co i sa exis tia que con tras ta va-lhe com a fe al da de do cor po, e com o de sen vol vi men to re tar da tá rio docé re bro: era um amor sin ce ro, uma de di ca ção per ti naz a uma moça com que pre ten dia ca sar-se.

Esti ma dís si mo no seio da fa mí lia que o abri ga va, as ma ni fes -ta ções do seu sen tir não sig ni fi ca vam mais do que um de va ne io de idi o ta,uma pre o cu pa ção im be cil.

Page 337: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Na rua, o li ge i ro Pica-pau era se gui do pe los mo le ques e osme ni nos de es co la, que da vam-lhe tro tes, que pu xa vam-lhe o pa le tó, que gri ta vam, acom pa nhan do-o: “Ó Pica-pau! Ó Pica-pau!...”

E ele cor ria, sal ta va, vo a va...– Vou me casá cum si nhá, di zia ele em casa e aos co nhe ci dos:

“Si nhá é tão boa! Eu que ro tan to bem a si nhá!”Um dia, o ide al de suas ado ra ções, a pi e da de, tal vez, para

aque le de for ma do, foi pe di da em ca sa men to, e os es cra vos e cri a dos oin ter pe la vam, rin do e zom ban do:

– Então, Pica-pau? Si nhá vai ca sar?– Não é pos sí vel! res pon dia, fir me e con ven ci do.– Mas os pa péis que le vas te on tem à Con ce i ção, são os do

seu ca sa men to com o Sr...– Não é pos sí vel! não é pos sí vel! – e re ti ra va-se zan ga do.Uma tar de o sa lão es ta va che io de flo res, a ma dri nha es pe ra va

a no i va, os con vi da dos com par ti ci pa vam da fe li ci da de do novo par e dafa mí lia.

Estan ci a das ao lon go da rua, as car ru a gens ro da vam in ter mi -ten tes, a in ter va los...

E no por tão, ves ti do como para o no i va do, o mons tro zi nhoes pe ra va al guém ou al gu ma co i sa. O seu sem blan te tor na va-se lí vi do,a in qui e ta ção bri lha va-lhe no olhar, uma ago nia ín ti ma e pro fun dage mia-lhe no co ra ção, como a der ra de i ra sa u da de à ca be ce i ra dos su pli -ci a dos.

Qu an do a no i va des ceu, ele a fi tou um ins tan te e, ape lan dopara a sua ru di men tá ria ra zão, mur mu rou con si go ain da uma vez: “Nãoé pos sí vel!”

Abriu a por ti nho la do car ro, deu-lhe pas sa gem; tor nou a seupos to.

Qu an do o prés ti to che gou da igre ja, o Pica-pau ha via per di do a úl ti ma cren ça e a úl ti ma es pe ran ça. Ten tan do um es for ço so bre simes mo, foi de en con tro ao car ro dos no i vos, pu xou ne vo so a por ti nho la,en ca rou re sig na do o anjo que lhe sus ten ta ra com a luz do olhar a ra zãoamor te ci da e ex cla mou pe sa ro so e ful mi na do: “Meus olhos vi ram! Ago raeu cre io, si nhá!”

364 Melo Mo ra is Filho

Page 338: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

E de sa pa re ceu... A no i te não po dia ser mais ale gre: har mo ni as, per fu mes,

so nhos que não fin dam, ilu sões que não men tem.As es tre las pa re ci am flo res de ouro, e as flo res as es tre las do

ver gel.Tar de, bem tar de já, a qui e ta ção fez-se nas sa las e no ban que te.As bên çãos do Céu e da Ter ra can ta vam em tor no dos côn ju ges,

e os al vos cor ti na dos do le i to nup ci al, como as asas do anjo-da-guar da,pro te gi am, cer ran do-se, o san tuá rio mis te ri o so da nas cen te fa mí lia.

Uma ja ne la que de i ta va para a chá ca ra abria-se...E ama nhe cia.E a essa hora em que as pre ces e os pás sa ros voam para

Deus, em que os es cra vos bus ca vam o tra ba lho, pen du ra do a uma cor da pre sa à rama de um ta ma ri ne i ro, um ca dá ver, ves ti do de pre to e com alín gua de fora, ba lan ça va aos tons in de ci sos da luz e do ne vo e i ro...

O Pica-pau se ha via en for ca do!

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 365

Page 339: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Pa dre Kelé

Era um par do já ve lho, ma gro, cor cun da, cam ba io, deros to com pri do; an da va apres sa do, sus pen dia o pas so como quem ca mi -nha na lama ou na are ia.

Não che gan do a re ce ber as qua tro or dens me no res, fi cou empri ma ton su ra, pelo que usa va bar ba ra pa da e co roa de mi no ris ta.

Antes de sua ex ten sa po pu la ri da de, o nos so apren diz de pa dre cha ma va-se o Sr. Cla u di no.

Idi o ta de nas ci men to, ex cên tri co em seus há bi tos e eró ti co àsocul tas, es sas três qua li da des jun ta vam-se a ten dên ci as hi pó cri tas, a re li -gi o si da des exa ge ra das, a cos tu mes bi zar ros, que tão ma ra vi lho sa men tecon cor re ram para a sua jus ta ce le bri da de como tipo da rua.

Des de a sua ini ci a ção no sa cer dó cio, o par do Cla u di no ma ni -fes tou-se pu bli ca men te ma nía co. Anda va sem pre de ba ti na, sa pa to de fi ve la e meia pre ta, bar re te fe cha do na mão e capa mag na tra ça da, ob je toses ses que fi la va de mon se nhor Nar ci so.

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De ba i xo do bra ço – cos tu me que con ser vou até a mor te –tra zia in se pa rá vel um maço de jor na is, que lia quan do can sa va de an dar,sen ta do no úl ti mo de grau da es ca da de al gum cor re dor.

Aqui e ali, mas sem pa rar, ro ça va nos tran se un tes, es ten diasor ra te i ro a mão li vre, e di zia tam bém, rá pi do e ba i xi nho: – “Ca ma ra di -nha, me dá um vin ten zi nho?”

Imbe cil e ca ro la, no co me ço de sua vida de clé ri go, era in fa lí -vel às la da i nhas dos sá ba dos na igre ja do Car mo; po rém sen do ta ti bi ta te, acon te cia que, em vez de pro nun ci ar kyri e le i zon , res pon dia, acom pa nhan do a reza – Kelé –, fi can do por isso co nhe ci do pelo Pa dre Kelé.

Des de en tão os mo le ques for ma vam-lhe na rua um es ta -do-maior sal ti tan te, atro a dor e fes ti vo.

– Ó Kelé! Ó Kelé!...

E o Kelé corria, des com pu nha, sol ta va pa la vra das, nãodeixando de pe din char ame dron ta do, as som bra do, a esta ou aque la pessoa,jun to a quem res va la va:

– Me dá um vin tém, ca ma ra di nha?

– Ó Kelé! Ó Ca ma ra di nha!... Ó pa dre Kelé!...

Con do í do do po bre ho mem por ver a ba ti na do sa cer do teas sim de sa ca ta da, o de le ga do de po lí cia Dr. Cu nha de ter mi nou-lhe que não trou xes se mais as ves tes que usa va, ao que Kelé ace deu sem re cal -ci trân cia.

A re for ma não po dia ser mais ra di cal: no dia se guin te o Keléfez a sua en tra da na ci da de e nas ruas ves ti do de ca sa ca, cal ça cur ta emu i tís si mo lar ga, con ser van do uni ca men te sa pa tos ba i xos, meia de seda, co roa aber ta e o maço de jor na is so bra ça do.

Sem pre de cha péu na mão, ja ma is re la xan do o ri gor des sefigu ri no, o Kelé ou o Ca ma ra di nha afron ta va as va i as, as pe dra das, astem pes ta des dos mo le ques pa cho las e va di os:

– Ó Kelé! Ó Ca ma ra di nha!...– Ca ma ra di nha, me dá um vin tém?O pa dre Kelé to ca va vi o lão e can ta va lun dus em ca sas co nhe -

ci das, gos ta va de fa lar mal da vida alhe ia, era ava ren to, e en tre ti nha re la -

368 Melo Mo ra is Filho

Page 341: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

ções de ami za de com um dis tin to mé di co re si den te no Lar go do Ro cio,a quem dava a guar dar o que re ce bia de es mo las.

Em vá ri as oca siões era sur pre en di do nos cor re do res e atrásdas por tas, au men tan do-lhe a de mo ra nes se lu ga res o en fra que ci men topro gres si vo das fa cul da des ce re bra is.

O Ca ma ra di nha fa le ceu em 1876.To dos os jor na is anun ci a ram-lhe a mor te, in clu si ve o Jor nal do

Co mér cio, que lhe con sa grou um es plên di do fo lhe tim es cri to por Fer re i rade Me ne ses.

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 369

O Pa dre Kelé

Page 342: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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A Ma ria Doida

Nesta imen sa e po pu lo sa ci da de mu i ta gen te exis te quedá no tí ci as exa tas da Ma ria Do i da, por tê-la co nhe ci do de vis ta oumesmo go za do de sua pri vança.

Esta mu lher era uma par da vi ú va, re gu la va ter uns 50 anos,tra ja va de pre to, usan do cons tan te men te de dois lon gos ca chos de ca be -los fi nos e gri sa lhos, que con tras ta vam sen si vel men te com a sua ca be leiradura e in cor ri gí vel, de ver da de i ra mes ti ça.

Di zem que a po bre da ve lha per de ra a ra zão em con se qüên cia de lhe ha ve rem rou ba do al gum di nhe i ro que lhe de i xa ra o ma ri do.

Seja como for, essa in fe liz an da va de casa em casa, vi si tan doesta ou aque la fa mí lia, pas san do dias aqui e ali, co men do, be ben do edor min do onde a le va va o aca so.

Anda ri lha e vesânica, a Ma ria Do i da ves tia três ou qua trosaias, duas ca mi sas e igual nú me ro de pa res de me i as, nun ca dis pen san douma trou xi nha com mais rou pa de uso, vis to que o seu pou so eraincer to.

Fe cha do na mão, tra zia um em bru lho de pa pel con ten do rapé, e nas pi ta das a sua li be ra li da de não co nhe cia li mi tes.

Page 343: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

Ape nas che ga va a uma casa co nhe ci da, de po is dos cum pri -men tos e ma ça das do es ti lo, de al mo çar ou jan tar, a par da Ma ria en ca mi -nha va-se para o quin tal, abria a trou xa, mu da va a rou pa suja, pe dia sa bão,e la van do o en xo val o es ten dia em cor das, nos cor re do res, nas áre as, nas ja ne las, sem pre fa lan do, sem pre to man do rapé.

No meio dos de sar ra zo a dos, saía-se com pi lhé ri as que fa zi amrir as pe dras.

A me ni na da, já se sabe, cer ca va-a; as mo ças di ver ti am-se à sua cus ta, e as do nas de casa fi ca vam de so bre a vi so com as suas le va das.

Não obs tan te, a Ma ria Doida era es ti ma da, aca ta da, ze la da...Qu an do as ne gras e as ne gri nhas apa nha vam, ela in ter ce dia,

es bra ve ja va, ser via de ma dri nha.Abstra ção fe i ta de sua vida er ran te, de sua ba ga gem por tá til,

de al ber gar-se em ca sas alhe i as, o lado mais ca rac te rís ti co de sua ali e na -ção eram os re pen tes chis to sos, as fra ses equí vo cas que lhe bro ta vam de im pro vi so, de sa pon tan do o sexo frá gil que a es cu ta va.

Um dia, a Ma ria Do i da, que pas sa va a se ma na com a fa mí liaF. L., in ves te pela es ca da do quin tal, apro xi ma-se da Srª D... que se acha vana va ran da com suas fi lhas, e lhe diz ar re pi an do-se toda:

– Si nhá dona, sabe de uma coisa?– Ora, Se nho ra Dona Ma ria...– O seu peru me ga lou!– Pelo amor de Deus, de i xe-se de in con ve niên ci as... – Escu te, re tor quiu ela; eu es ta va aga cha da, la van do os meus

pa ni nhos...– Cale a boca, se nho ra...– E veio o seu peru... ar ras tou a asa... tre pou no meu om bro...

e ba ten do com o bico na mi nha ca be ça, fez toc!A mãe e as fi lhas não pu de ram con ter as gar ga lha das.– Já vê, por tan to, afir ma ela, que seu peru me ga lou!Como este são inú me ros os ca sos que se con tam da Ma ria

Doida, que não sa be mos se já fez sua úl ti ma vi si ta – ao do mi cí lio ondese en tra com os olhos fe cha dos para não se abri rem ja ma is!

372 Melo Mo ra is Filho

Page 344: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Pra ia Gran de

Em 1850, a qual quer hora do dia, quem pas sa va peloLar go do Paço via um in di ví duo de 45 anos, alto, ma gro, aca bo cla do,de pou ca bar ba, tra jan do cons tan te men te so bre ca sa ca abo to a da, car to lama chu ca da e ve lha, e de gra va ta jus ta ao pes co ço.

De olhar vivo e in qui e to, er ran te sem pre no lar go e no cais,vol te an do o mer ca do e as qui tan das das pre tas, dor mia ao re len to noadro do Car mo ou de ba i xo do Arco do Te les.

A po pu la ção e os mo le ques in cor ri gí ve is o co nhe ci am peloPra ia Gran de, não o pou pan do es tes das ha bi tu a is pro vo cân ci as.

O Pra ia Gran de, en tre tan to, não se exal ta va, por isso que asua ma nia li mi ta va-se a um cír cu lo res tri to de idéi as, sem ma ni fes ta çõesati vas e vi o len tas.

Excep ci o nal men te, po rém, isto é, du ran te cer tas fa ses da lua,o seu sis te ma ner vo so tor na va-se mais ir ri tá vel, e o Pra ia Gran de an da va em uma roda-viva, agre din do e sen do agre di do.

No mais, ima gi na va-se um per so na gem ilus tre, e re pe tiaconten te e em tom afir ma ti vo: – “Sou che fe! Sou che fe!”

Em ou tros mo men tos, se cun dan do a pa la vra com a ex pres são e o ges to, es tre me cia no meio de per ti naz pre o cu pa ção, es fre ga va as

Page 345: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

mãos, es ta la va o be i ço, pro nun ci an do a mi ú do: – “Que be los, que be los, que be los!”

O Pra ia Gran de vi via de es mo las e da ca ri da de das qui tan de i ras,sem pre fi gu rou no Lar go do Paço, e al guns epi só di os de vi dos à suave sâ nia ser vi ram de mo ti vo a uma far sa re pre sen ta da no Te a tro deS. Pe dro, sob o tí tu lo O Fi ló so fo do Cais e o Pra ia Gran de.

374 Melo Mo ra is Filho

Page 346: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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Bar re to Bas tos

Ino fen si vo, bom e ho nes tís si mo era o Bar re to Bas tos, es ti ma docor re tor da pra ça do Rio de Ja ne i ro.

De es ta tu ra re gu lar, che io de cor po, fi si o no mia se re na e mo dos tran qüi los, ti nha o cos tu me de an dar com uma das mãos no bol so dacal ça e a ou tra em pu nhan do um cha péu de sol, que adi an ta va um pou co para a fren te, em for ma de bor dão.

Por tu guês de ori gem, usa va bar ba cer ra da e bi go de ra pa do,tra ja va cha péu de cou ro de pêlo de le bre, de copa alta, pa le tó pre to, deal pa ca, cal ça e co le te de brim bran co.

Con ser van do a ple na cons ciên cia de seus atos, a sua pri me i rama nia re ve la va-se em to das as ma nhãs, an tes das oito ho ras, apre sen -tar-se na Rua Di re i ta, ti rar o re ló gio e acer tá-lo pelo in di ca dor do ob ser -va tó rio do Cas te lo.

Mais tar de, re la ci o nan do-se com os jor na lis tas do Mer can til,en ten deu que de via ser po e ta, e ei-lo do mi na do por uma se gun da ve sâ -nia que o ce le bri zou.

Os re da to res da fo lha to ma vam lar go pa go de à sua con ta, e oSr. Ra fa el J. da Cos ta, pro pri e tá rio do re fe ri do jor nal, fran que a va-lhe as

Page 347: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

co lu nas, onde Bar re to Bastos pu bli ca va as suas po e si as po lí ti cas, deve rasapre ci a das pe los as si nan tes e o povo.

Entre as inúmeras pro du ções es ta pa fúr di as de sua la vra,conquistaram re no me as in ti tu la das Altas Con go nhas na mão e vá ri as Sátiras e Ré ci tas, bem como esta ao Mi nis té rio, que fi el men te re pro du zi mos, doori gi nal im pres so:

RÉCITA

São, mun do, car ne, e di a bo To dos três têm mu i to rabo É pre ci so po lhe os qui a bo Ata do nos seus mui rabo.

Re mé dio na me di ci na é qui a bo

Sou ces de sete fa zem mu i to rabo

Ape li ca mos al gu ma pi as sa bo A ver se lhe atran ca mos o rabo.

Lon gos e lar gos ar ti gos têm rabo Mas to dos eles não de se jam o cabo Por que lhe fa zem a con ta no fi a bo Não de se jam que tudo fi que no cabo.

376 Melo Mo ra is Filho

O Bar re to Bas tos

Page 348: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O Chi co Cam bra ia

Não é mo der no este tipo: é bem an ti go.

O Chi co Cam bra ia era um par do de 50 anos, alto, cor pu len to,cor de for mi ga; to ca va vi o lão e can ta va mo di nhas e lun dus.

A sua voz, um pou co afla u ta da, mar che ta va de cer ta gra ça osfa di nhos que exe cu ta va, es pe ci al men te em tons me no res.

Pro pen so às ter nu ras, nin guém como ele mo du la va:

Ai, meu bem, se você vis seMeu co ra ção como estáVe ria que seu des pre zoPra cas ti go bas ta já...

Por Deus, eu su pli coSo cor ro, per dão!Pan ca di nhas as simNão me dê mais, não...

O seu em pre go con sis tia em pe dir es mo las para as Almas, noque re li gi o sa men te gas ta va to das as se gun das-fe i ras.

A sua opa e a sua ba cia de pra ta re lu zi am es pe lhan tes, bemcomo a vara de pra ta, com a ima gem de S. Mi guel e Almas, que dava abe i jar aos de vo tos.

Page 349: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

O Chi co Cam bra ia re si dia em uma casa tér rea na Rua doHos pí cio, onde por ve zes re u ni am-se ir mãos das Almas e de ou tras con -fra ri as, que vi nham con fe ren ci ar so bre os pro ven tos do ofí cio, ou ou virto car e can tar o amá vel co le ga.

Qu an do ha via en for ca do, o nos so Chi co acom pa nha va oprés ti to, e pe dia para a mis sa do nos so ir mão pa de cen te, com uma en to a çãosen ti da e gra ve.

No dia de Fi na dos, des de o al vo re cer, fa zia plan tão à por tadas prin cipais igre jas, e, a cada pes soa que en tra va para os ofí ci os fúne bres, apre sen ta va a sal va, im plo ran do so le ne:

– Pra mis sa das al mas!...Ordi na ri a men te, se guin do o seu fado, pe dia es mo las aos tran -

se un tes, e pos su ía lis ta das boas ca sas onde cos tu ma va pe dir.Com o pro du to de sua cli en te la es co lhi da, o Chi co re co lhia-se

aos seus pe na tes, no tan do-se que nem sem pre ace i ta va es mo las de fru tas e de ovos, que os po bres ne gros de i ta vam-lhe na ban de ja.

Che gan do à por ta, es pi a va pelo xa drez da ró tu la, ba tia trêspan ca das, ao que cor ri am a mu lher e os fi lhos para re ce bê-lo.

Ape nas en tra va, a cara-me ta de des pia-lhe a opa, e o Cam bra ia,de i tan do a sal va so bre a mesa re don da, di zia, se pa ran do as mo e das:

– Se nho ra, as ba na nas são para as me ni nas e os ovos parauma fri ta da.

Por vol ta do es cu re cer, o im pa gá vel tipo acen dia a vela decarna ú ba da man ga de vi dro, fe cha va as ja ne las da sala, co lo ca va so bre o apa ra dor o di nhe i ro das Almas e co me ça va, jo gan do o pa cau:

– Ora, va mos lá; é de ma ni nha-maninha o nos so jogo...Tomem lá duas car tas, se nho ras Almas, e eu fico com as que me cou be ram por sor te.

E o Chi co Cam bra ia de i ta va o ba ra lho par ti do à di re i ta, e, emfren te da sal va e adi an te de si, em pi lha va mo e das de co bre e de pra ta,que ti ra va do re po si tó rio das es mo las, acres cen tan do:

– Não se as sus tem... o meu é em pres ta do.De quan do em quan do, es cu ta va-se uma re cla ma ção, uma

resin ga, imi tan do o jo ga dor duas vo zes dis tin tas, isto é, a sua e a dasAlmas.

378 Melo Mo ra is Filho

Page 350: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

– Cin co e três, oito... peço uma!– Seis e três, nove, ga nhei!E o ti ni do do di nhe i ro ar re ca da do co ro a va ao fi nal da par ti da,

sen do dis tri bu í das no vas car tas do mes mo ou ou tro ba ra lho.– Qu e ro uma...– Qu a tro e cin co, nove! Ga nhei de boca!... Não pode!– Mos tre o jogo!– Não mos tro!– Nada! Des ta vez vo cês me en ga na ram, mi nhas Almi nhas,

ex cla ma va ele, car re gan do com todo o di nhe i ro e o me ten do na arca doquar to de dor mir.

No ajus te de con tas com a con fra ria, a qual quer ob ser va ção do te sou re i ro, à vis ta do re sul ta do qua se ne ga ti vo da sal va, o Chi co Cam bra ia aba na va com a ca be ça, en co lhia os om bros e re tor quia pa ci en te:

– Meu ami go, o ne gó cio não pin ga por que os te mpos estãobi cu dos...

Vol tan do à casa, caía na boa pe i xa da, no ex ce len te vi nho, noclan des ti no pa cau e nas mo di nhas, à es pe ra da pró xi ma se gun da-fe i ra,em que vi si ta va os seus fre gue ses e per cor ria a ci da de, de opa ver de eba cia de pra ta, pe din do aqui e ali, sem pre aten ci o so e cor re to:

– Pra mis sa das Almas!...

Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Brasil 379

Page 351: Festas e Tradições Populares do Brasil - Melo Morais Filho

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O “Não Há de Ca sar”

Vindo de Mo çam bi que, de sem bar ca ra nes ta ci da de o bri ga de i roMon te ne gro, porta dor da ma nia de ca sar no Bra sil com moça rica eboni ta.

Esta idéia, per fe i ta men te fi si o ló gi ca em ou tros, tor nou-se-lhemór bi da; e para se gui-la, o nos so bri ga de i ro en ver ga va cor re to o seuuni for me mi li tar, pas se a va gar bo so nas ruas e, quan do des co bria à ja ne la de al gum so bra do uma ra pa ri ga lin da e fa ce i ra, pa ra va, sor ria me i go, edi zia-lhe: “Que bela moça para ca sar com um ge ne ral!”

Se a moça acha va gra ça, se não lhe fa zia qual quer des fe i ta,ele apro xi ma va-se, ver ga va para trás, abria a boca, e di zia: “Cus paaqui!”

Os mo le ques, per ce ben do o ne gó cio, en ve re da vam para obri ga de i ro, nun ca mais o lar ga vam.

Em todas as ruas, em to dos os lu ga res o atro pe la vam, as so biando e gri tan do: “Não há de ca sar!...”

O Mon te ne gro en fu re cia-se, de sem ba i nha va a es pa da, ia so breeles, dis tri bu in do pran cha das a tor to e a di re i to.

Na Rua do Ro sá rio, a ca i xe i ra da era im pla cá vel; tan to as simque, para evi tar um cri me, foi-lhe pro i bi do an dar ar ma do.

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Inde pen den te dis so e da in ter ven ção da po lí cia, os mo le quese os ca i xe i ros o de ses pe ra vam; e de po is de mu i ta cor ri da e de mu i ta pa -la vra da, do clás si co aci o na do in de cen te, o “Não há de ca sar” saía-secom este es tri bi lho que an te ce dia a no vas e mais es tre pi to sas sur ri a das:“Cam ba da de co lo nos, isto há de ser de Por tu gal, e en tão agüen tem-se.”

Na se gun da fase de sua ali e na ção, o bri ga de i ro Mon te ne grotra ja va so bre ca sa ca azul com a fita ver me lha da Ordem de Cris to naabo to a du ra, cha péu de pêlo, cal ça e co le te bran co, tra zen do uma ben ga lade ca na-da-índia na mão di re i ta, ao mes mo tem po que con ser va va aesquer da na al gi be i ra.

Reza a tra di ção que o mo ti vo de seu trans tor no men tal forauma re pre en são em or dem do dia.

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O “Não há de ca sar”

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O To más Ca cha ço

Em 1844, época flo res cen te do con tra ban do e do Va longo, exis tia nes ta ci da de um por tu guês de al tu ra me di a na, gor do, de olhosazu is es bu ga lha dos, meio cal vo, alou ra do, bar ba do e bar ri gu do, co nhe -ci do geral men te pelo To más Ca cha ço.

E o que fa zia ele? Em que se ocu pa va esse ce tá ceo que, depal ma tó ria no bol so, er ra va para as ban das da Pra i nha, Rua de S. Pe dro,Rua da Sa ú de?

Ensi na va dou tri na cris tã aos ne gros no vos; fre qüen ta va oVa lon go e as ca sas par ti cu la res onde ha via es cra vos, re ce ben do mil oudois mil-réis men sa is pe las li ções de reza.

Ape nas o To más Ca cha ço avo lu ma va-se ao lon ge, os ne grostor na vam-se fu los de ter ror, a dou tri na apren di da de cor apa ga va-se-lhes da me mó ria, e o si nal-da-cruz co me ça va a ser en sa i a do de ba i xo paracima, do om bro para a tes ta, de trás para di an te, tão per tur ba dos ficavamos bo ça is dis cí pu los.

De mais per to, o pan çu do mes tre de reza sa ca va da palmató ria,ti ra va o cha péu, lim pa va com um len ço de Alco ba ça o tou ti ço né dio, efa zia a sua en tra da na es co la dos ne gros bra bos.

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E a bo la ria, de pé atrás, ron ca va por mais de uma hora,instrumen ta da de gri tos, de sú pli cas, de cho ro, acom pa nha dos de palavrasbár ba ras e se mi bár ba ras.

– Hei de ga nhar o Céu en si nan do a es ses pa gãos! Di zia To másra chan do bo los na ne gra da, que se tor cia ver gan do o cor po, so pran do as mãos, es fre gan do-as en tre os jo e lhos.

Os ca i xe i ros e os se nho res as sis ti am ha bi tu al men te às li ções,com o que mais o alen ta vam na fa i na, ou vin do-se aos ber ros, en tre oala ri do e o es tron do das pal ma to a das, o se guin te tó pi co do en co le ri za do e ter rí vel pre cep tor: – “Co ra gem não me fal ta! As for ças me so bram! Senão fos se a mi sé ria em que vivo, te ria sido mi nis tro do Sr. D. Pe dro I!...”

Ter mi na da a aula, o To más Ca cha ço pu xa va a ca i xa da amos tri -nha, ti ra va uma pi ta da e, en tu pin do as ven tas, pre pa ra va-se para sair.

Nis so os ne gros apro xi ma vam-se, do bra vam ra pi da men te ojo e lho, es ten dia a mão pe din do a bên ção, e re ti ra vam-se.

Se algum, po rém, adi an ta va-se, im plo ran do ate mo ri za doqualquer ex pli ca ção, o ofe gan te e obe so mes tre em pu nha va ou tra vez apal ma tó ria, e a cada erro no Pa dre-Nosso ou na Ave-Maria, fa zia-orepe tir o ter mo com a fra se, in ter rom pen do a reza:

– Não! Esta não en gu lo eu!O To más Ca cha ço fale ceu em 1852, de i xan do um nome

céle bre como doutri na dor e tipo, que era, do tem po e da rua.

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Fes tas e Tra di ções Po pu la res do Bra sil, de Melo Mo ra is Fi lho, foicom pos to em Ga ra mond, cor po 12, e im pres so em pa pel Ver gê Are ia 85g/m2 nas ofi ci nas da SEEP (Se cre ta ria Espe ci al deEdi to ra ção e Pu bli ca ções), do Se na do Fe de ral, em Bra sí lia.Aca bou-se de im pri mir em mar ço de 2002, de acor do com opro gra ma edi to ri al e pro je to grá fi co do Con se lho Edi to ri al doSe na do Fe de ral.