feyerabend e a metodologia _ regner

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    231 Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231 -247, dez.1996.

    FEYERABEND E O PLURALISMO METODOLGICO*

    Anna Carolina Krebs Pereira Regner Departamento de Filosofia - UFRGSPorto Alegre RS

    Resumo

    Na epistemologia contempornea, Paul Karl Feyerabend, pensador austr aco (1924-1994), cientista (doutor em Fsica), filsofo,especialista em teatro e doutor honoris causa em Letras e Humanidades, um dos mais perspicazes crticos das anlises danatureza da cincia usualmente propostas. Neste texto, analisada suacrti ca contra o racionalismo e sua defesa do anarquismoepistemolgico , o qual se traduz numa metodologia pluralista ,tendo por foco sua obra-chave, Contra o Mtodo. A anlise em pautarevela que Feyerabend se vale de uma estratgia anarquista. Mostra airracionalidade das regras do racionalismo, dado o que esse pretendee os procedimentos que prope, e a razoabilidade das regras que socontrrias s suas (as contra-regras), luz da praxis cientfica. Comoresultado da anlise empreendida, coloca-se a questo: a que

    racionalidade se dirige a crtica de Feyerabend? Na edio inglesamais recente de sua obra -chave, reforada e mais trabalhada a idia, j insinuada na primeira edio, de que o significado da

    racionalidade no se esgota no daquela que criticada. PALAVRAS-CHAVE: Paul Feyerabend , Filosofia da Cincia ,

    racionalismo , racionalismo crtico , pluralismo metodolgico .

    Na trajetria epistemolgica das reflexes sobre a natureza da cincia que povoam o panorama contemporneo, Paul Karl Feyerabend, pensador austraco (1924-1994), um dos crticos mais perspicazes das anlises usualmente propostas, chamadoem rodas mais fechadas de terrorista epistemolgico e por alguns fsicos, maisrecentemente, de o pior inimigo da cincia , encabeando uma lista em que sonomeados Karl Popper, Imre Lakatos e Thomas Kuhn (Scientific American, May/1993,

    * O presente texto foi publicado, sob a forma de artigo, em Epistme: Filosofia e Histria dasCincias em Revista . Porto Alegre, v.1, n.2, 1996, p.61 -78.

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    p.16). Um inimigo, sem dvida, altamente credenciado, pois doutor em Fsica pelaUniversidade de Viena edoutor honoris causaem Letras e Humanidades, pelaUniversidade de Chicago, e, alm de profundo conhecedor de teatro, foi assistente deBerthold Brecht. Trata-se de um profundo conhecedor de Filosofia, com um

    pensamento forjado pelo debate com grupos certamente qualificados na rea -como o daLondon School of Economics, liderado por Popper nos anos 50; o de wittgensteineanos,como Elizabeth Anscombe; o de Herbert Feigl e seu centro nos Estados Unidos - e pelas discusses com Kuhn e Lakatos, lecionando nessa rea em vrias instituies,dentre as quais a Universidade da Califrnia, em Berkeley, e o Instituto Federal deTecnologia de Zurich.

    Buscando uma amostragem significativa do pensamento de Feyerabend, aquesto que vai nos ocupar neste texto a da anlise da cincia que ele oferece. Paraexp -la - ser esta a minha tarefa - tomarei como guia a sua obra mais conhecida entrens, Contra o Mtodo(1977), a favor do que ele chama de anarquismoepistemolgico e que se traduz, em termos metodolgicos, na defesa de um pluralismo metodolgico . Tomo essa edio como guia por ser a mais facilmentedisponvel ao leitor deste artigo. Alm disso, as mudanas ocorridas nas ediessubseqentes no comprometem a linha de anlise aqui escolhida, nem sua discusso.Cabe, contudo, fazer referncia e um convite leitura da ltima edio inglesa destaobra ( Against Method , 1993), com reviso feita pelo prprio Feyerabend em 1992. Nela, o autor rev certas posies que aparecem na 1a edio inglesa, de 1975, sendoessa a verso traduzida na edio brasileira de 1977, posteriormente reeditada. Assimocorre com a posio defendida ao final da Introduo da edio de 1977 (a de 1975,em lngua inglesa), quando diz que poder vir um tempo em que seja necessrio dar razo uma vantagem temporria sobre a metodologia anrquica, mas que no pensavaque estivssemos vivendo esse tempo. Em 1992, assim escreve Feyerabend:

    Esta era a minha opinio em 1970, quando escrevi a primeiraverso deste ensaio. Os tempos mudaram. Considerando algumastendnc ias na educao dos Estados Unidos ( politicamente cor-reto , menus acadmicos, etc.), em filosofia (ps-modernismo) e omundo em geral, penso que se deva dar razo, agora, um pesomaior, no porque ela seja e sempre tenha sido fundamental, mas porque isso parece ser necessrio, dadas circunstncias que ocor-rem bem freqentemente hoje (mas que podem desaparecer amanh), para criar uma abordagem mais humana . (Feyerabend,1993 : p. 13, n12)

    Em 1992, Feyerabend discute em maior detalhe a questo daracionalidade , adentrando-se por uma porta que parece ter deixado, anteriormente,

    timidamente entreaberta, e diz ser possvel avaliar padres de racionalidade e

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    aperfeio -los. Chama tambm a ateno para mal-entendidos simplistas de suas idias,como a que concerne a seu alegado relativismo :

    ... filosofias simples, sejam de um tipo dogmtico ou mais liberal,tm seus limites. No h solues gerais. Um alargado liberalismona definio de fato pode ter graves conseqncias, enquanto fazum excelente sentido a idia de que a verdade ocultada e mesmo pervertida pelos processos destinados a estabelec-la. Eu,conseqentemente, novamente alerto o leitor quanto a que notenho a inteno de substituir princpios velhos e dogmticos por outros novos e mais libertrios . Por exemplo, no sou nem um populista para quem o apelo ao povo a base de todo oconhecimento, nem um relativista para quem no h verdadesenquanto tais , mas apenas verdades para este ou aquele grupo e / ou indivduo. Tudo o que digo que os no-especialistas freqentemente sabem mais que os especialistas e devem,conseqentemente, ser consultados, e que os profetas da verdade(incluindo aqueles que fazem uso de argumentos), mais freqenteque raramente, so levados por uma viso que colide com os prprios eventos que essa viso deve explorar . (Feyerabend, 1993: p.XIII)

    Em seu instrutivo Prefcio edio inglesa de 1993, Feyerabend situa o seu pensamento no novo estado de coisas que se configurou desde aquela primeira public ao, com as dramticas mudanas polticas, sociais e ecolgicas ocorridas, ecom uma nova atitude de mdicos e intelectuais, adaptando o que aprenderam nasuniversidades e escolas especializadas para fazer o conhecimento mais eficiente ehumano. Num nvel mais acadmico, ressalta que os historiadores da cincia, da culturacomearam a abordar o passado nos termos prprios deste: ... estamos bem distantesda idia platnica da cincia como um sistema de enunciados crescendo comexperimento e observao e mantendo a ordem por meio de padres racionaisduradouros (Feyerabend, 1993 : p.11). A leitura desse Prefcio proporciona, almdisso, um elucidativo quadro da histria e da sociologia das cincias contemporneas.

    I. Anarquismo epistemolgico

    Feitas as consideraes acima, comecemos esclarecendo o que cabeentender por anarquismo epistemolgico . Inicialmente convm lembrar queanarquismo significa, antes, oposio a um princpio nico, absoluto, imutvel de

    ordem, do que oposio a toda e qualquer organizao. Na sua traduo metodolgica,no significa, portanto, ser contra todo e qualquer procedimento metodolgico, mas

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    contra a instituio de um conjunto nico, fixo, restrito de regras que se pretendauniversalmente vlido, para toda e qualquer situao - ou seja, contra algo que se pretenda erigir como o mtodo, como a caracterstica distintiva, demarcadora doque seja cincia .

    E o que Feyerabend quer que se entenda por anarquismoepistemolgico ?Feyerabend diz que esse anarquismo difere tanto do ceticismo quanto do anarquismo poltico (religioso). Ao anarquista epistemolgico, no lhe indiferente um ou outroenunciado e desejar, talvez, defender certa forma de vida combatida pelo anarquista poltico ou religioso, mantendo ou alterando seus objetivos e estratgias, nadependncia do argumento, do tdio, de uma experincia de converso ou de outrosfatores de ordem emocional e de fora persuasiva. O anarquista epistemolgico no serecusar a examinar qualquer concepo, admitindo que, por trs do mundo tal comodescrito pela cincia, possa ocultar-se uma realidade mais profunda, ou que as percepes possam ser dispostas de diferentes maneiras e que a escolha de uma particular disposio correspondente realidade no ser mais racional ou

    objetiva que outra (Feyerabend, 1977, cap.XVI).Antes de um iderio, oanarquismo epistemolgico uma atitude refletida

    na prpria estratgia utilizada por Feyerabend em sua defesa e na crtica da posturaadversria, oracionalismo , que vem contemporaneamente representado, em sua formamais elaborada, pelo racionalismo crtico de Popper e na forma mitigada desse,representada pelo novo racionalismo de Lakatos. Por que o racionalismo se torna oalvo visado? Para responder a essa questo, faamos duas breves digresses: uma, paraesclarecer o que Feyerabend entende pelo racionalismo que condena, como sendotanto incorreto , para dar conta do desenvolvimento da cincia ( este o ponto a quevamos nos ater), como indesejvel , para uma vida gratificante; outra, para explicitar alguns pressupostos que fundamentam a postura epistemolgica de Feyerabend.

    II. Racionalismo (crtico)

    Em sua crtica, Feyerabend identifica o racionalismo com uma tradio quenasceu na Grcia e inicialmente substituiu os conceitos ricos e dependentes da

    situao, prprios da pica primitiva, por umas poucas idias abstratas e independentesda situao , gerando, numa segunda etapa, estrias especiais, logo chamadas de provas ou argumentos , cuja trama no imposta aos caracteres principais, massegue-se de sua natureza. Desenvolveu-se, assim, igualmente, a idia de que so as

    prprias coisas que produzem a estria e a dizem objetivamente , isto ,independentemente das opinies e das compulses histricas. A presso conjuntadestes dois desenvolvimentos afianou o critrio de que o conhecimento nico - deque existe apenas uma estria aceitvel: a verdade -abstrato, independente da situao( objetivo ) e baseado em argumento (Feyerabend, 1987 : p.9).

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    Sob esse enfoque, podemos entender arazo criticada por Feyerabendcomo a faculdade pela qual os padres de tal tradio se exercem, traduzindo-se emobedincia a regras fixas e a padres imutveis, estabelecendo e submetendo-se a algocomo o mtodo, concentrado, na sua verso contempornea mais fiel, nas seguintesregras :

    1. S aceitar hipteses que se ajustem a teorias confirmadas ou corrobor a-das ;

    2 .Eliminar hipteses que no se ajustem a fatos bem estabelecidos .Essas regras expressam, segundo Feyerabend, a essncia do empirismo e

    do indutivismo (Feyerabend, 1977, captulos I e II) 1. Ao criticar a eficcia de tais regras para dar conta da conduo da cincia, Feyerabend igualmente critica a eficcia, paratal fim, do proceder por razes , ou seja, daquilo que, segundo as regras, podemosalegar como base de legitimao para nosso proceder.

    De modo similar, critica aracionalidade , enquanto marca caractersticadaquela tradio e ateoria esttica da racionalidadea que esta concepo d lugar 2,desacreditando a imponncia de uma teoria da cincia que aponte a tais padres e regrase se pretenda autorizada por algumateoria da racionalidadedo fazer cientfico(Feyerabend, 1987)3, por algum princpio nico de legitimao e organizao. Casono possamos resistir tentao de buscar um princpio (meta-metodolgico) que sejaaplicvel a todas as situaes (ou contextos), concede que o nico seria o princpio tudovale (Feyerabend, 1977, cap.I) 4.

    1 Assim, em que pesem as crticas de Popper aoindutivismo , podemos ver que compartilha oempirismo deste, ao tomar a experincia como "o" rbitro para a aceitabilidade (via "falsea-mento") de nossas teorias. Desse modo, podemos entender que Feyerabend chame o procedi-mento que se oponha quelas regras e aos preceitos do prprioracionalismo crticode contra -induo .2 "E como regras e padres so usualmente tomados como constituintes da 'racionalidade', infiroque episdios famosos na cincia, admirados por cientistas, filsofos do mesmo modo que por pessoas comuns, no foram 'racionais', no ocorreram de uma maneira 'racional', a 'razo' no foia fora motora por detrs dos mesmos e eles no foram julgados 'racionalmente'" (Feyerabend:1978, p.14).3 Feyerabend explicitamente critica seu enfoqueesttico :"a idia de um mtodo esttico ou deuma teoria esttica da racionalidade funda-se numa concepo demasiado ingnua do homem ede sua circunstncia social". (Feyerabend: 1977, p.34).4 No cabe aqui a crtica de que este princpio seria auto-destrutivo. Entendido como um meta- princpio, poderia compreender sob si o princpionem tudo valecomo princpio de ordem inf e-rior, atinente a um particular contexto, enquantotudo valeseria o nico princpio que se aplicariaa todos os contextos. Cabe igualmente ressaltar que a anlise da cincia feita por Feyerabend,com a crtica que elabora contra o "racionalismo", no depende da prvia aceitao desse princpio ou de qualquer princpio que fosseuniversalmente vlido, no pretendendo uma nova

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    III. Pressupostos do anarquismo epistemolgico

    Em contrapartida, quais os pressupostos em que se apia a viso deFeyerabend? O exame que faz da cincia se projeta na perspectiva de uma rede de pressupostos epistemolgicos, ontolgicos, antropolgicos e pedaggicos, que excedemuma pauta meramente metodolgica. V o mundo que desejamos explorar como umaentidade em grande parte desconhecida. E v a cincia construda em seu acesso, comoum modo de conceber essa entidade, dando-lhe sentido, (1) admitindo que acoisa e acompreenso de umaidia corretadessa coisa so, muitas vezes, partes de um nico eindivisvel processo (Feyerabend: 1977, p.32) e que no h fatos nus , estando osfatos sempre sujeitos contaminao fisiolgica e histrico-cultural da evidncia(Feyerabend: 1977, cap.V), (2), tomando a Histria como um labirinto de interaes e(3) propondo que a educao cientfica de seus atores seja conciliada com uma atitudehumanista , libertadora, de vida completa e gratificante, junto tentativacorrespondente de descobrir os segredos da natureza e do homem (Feyerabend: 1977, p.22). Essa rede de pressupostos faz-se presente na concepo deconhecimento queFeyerabend oferece:

    O conhecimento ... no um gradual aproximar-se da verdade. ,antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatveis (e, tal-vez, at mesmo incomensurveis), onde cada teoria singular, cadaconto de fadas, cada mito que seja parte do todo fora as demais partes a manterem articulao maior, fazendo com que todas con-corram, atravs desse processo de competio, para o de senvolv i-mento de nossa conscincia. Nada jamais definitivo, nenhuma forma de ver pode ser omitida de uma explicao abrangente ,

    refletindo -se na sua anlise da cincia :

    A tarefa do cientista no mais a de buscar a verdade ou a delouvar a Deus ou a de sistematizar observaes ou a de aper-

    feioar previses . Esses so apenas efeitos colaterais de uma ativi-dade para a qual a sua ateno se dirige diretamente e que tor-

    "teoria da cincia" ou da "racionalidade". No Prefcio 2a edio inglesa deAgainst Method (1988) e reproduzido na 3 a edio (Feyerabend: 1993, p.7), Feyerabend diz:

    tudo vale no um princpio que eu defendo - no penso que princpios possam ser usados e frutiferamente discutidos fora da situao concreta de pesquisa que se espera que eles afetem -mas a aterrorizada exclamao de um racionalista que olha mais de perto a histria. Lendo asmuitas crticas exaustivas, srias e completamente desorientadas que recebi aps a publicaoda 1a edio inglesa, freqentemente me lembro das minhas trocas com Imre; o quanto ambosteramos rido se fssemos capazes de ler essas efuses juntos.

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    nar forte o argumento fraco , tal como disse o sofista, para, dessemodo, gar antir o movimento do todo (Feyerabend: 1977, p.40-41).

    Essa viso da cincia, por sua vez, recolhida da trama de um outro pressuposto, que jogar papel central na estratgia argumentativa de Feyerabend: a deuma freqente oposio entre a epistemologia oficial (sob a gide doracionalismo ) ea prxis cientfica (que se revelariairracionalista , segundo os critrios daepistemologia oficial ).

    IV. Estratgia anarquista

    Encerradas nossas digresses, voltemos, ento, ao teor mais imediato dadefesa do anarquismo epistemolgicoou pluralismo metodgicofeita por Feyerabend.Pretende ele fornecer uma nova metodologia ou uma nova teoria da racionalidade? No,seu objetivo convencer o leitor de quetodas as metodologias, mesmo as maisbvias, tm limit aes (Feyerabend: 1977, p.43). Como procede? Na leitura deContrao Mtodopodemos encontrar, subjacente sua narrativa, uma estratgia que, refletindoseu anarquismo, se desenvolve em duas frentes, a suportarem-se mutuamente. De umlado, busca implodir a posio do adversrio. Lutando em seu campo e com as suasarmas, mostra a irracionalidade do racionalismo5 , uma vez que suasregras , levadass suas ltimas conseqncias, dentro da prpria esfera lgica e epistemolgica em quese aliceram, tornam-se auto-destrutivas, inviabilizam o alcance de seus objetivos econflitam com os fundamentos que as suportam.

    Dada a contaminao histrica e fisiolgica da evidncia - admitidamesmo por posiesracionalistas como a de Popper e de Lakatos -, a condiodecoerncia encerrada naregra 1: S aceitar hipteses que se ajustem a teoriasconfirmadas ou corroboradas,impede a explorao da evidncia. Alimenta uma visoconformista e dogmtica, de preservao dostatus quo, e supe uma autonomia da prpria experincia, uma vez que, tornando irrelevante a explorao de alternativastericas para o acesso a ela, supe que, independentemente da teoria que a condiciona, aexperincia seja capaz de revelar-se, tornando-se a medida para o contedo emprico

    de uma teoria (Feyerabend: 1977, cap. III). Por sua vez, aregra 2: Eliminar hiptesesque no se ajustem a fatos bem estabelecidos, se observada, nos deixaria sem qualquer teoria, dado o desacordo tanto quantitativo como qualitativo que toda a teoria exibe comrelao aos fatos de seu domnio. Para avaliar tais discordncias, bem como permitir aexplorao da evidncia, escavando as ideologias subjacentes (Feyerabend: 1977, cap.

    5 O passatempo favorito do anarquista "perturbar os racionalistas, descobrindo razes fortes para fundamentar doutrinas desarrazoadas" (Feyerabend, 1977 : p.293).

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    V), e a discusso crtica de teorias, torna-se indispensvel o trabalho com alternativastericas conflitantes - no podemos descobrir o mundo a partir dedentro . Hnecessidade de um padroexterno de crtica: precisamos de um conjunto de pressupostos alternativos (Feyerabend: 1977, p.42).

    De outro lado, Feyerabend mostra a razoabilidade do irracionalismo ,viabilizando o progresso da cincia, em qualquer uma das acepes que lhe sejaemprestada (Feyerabend: 1977, cap.II). Assim como o racionalismo foi caracterizado pelas regras acima mencionadas, o irracionalismo o ser atravs das contra -regras(opostas s regras do racionalismo ):

    1. Introduzir hipteses que conflitem com teorias confirmadas oucorroboradas ;

    2. Introduzir hipteses que no se ajustem a fatos bem estabelecidos .Se asregras do racionalismo representarem a essncia do indutivismo

    - ao tomarem a experincia (enunciados singulares) como rbitro para conferir aceitabilidade / legitimidade s teorias (enunciados universais) - as contra -regrasrepresentaro o que se pode chamar de contra-induo . A razoabilidade dacontra -induo estabelece-se na medida em que suas contra-regras so necessrias explorao da evidncia e discusso crtica pretendidas pelasregras do racionalismo emostram -se corroboradas pela prxis cientfica, tal como pode ser visto no seuestudode caso6 sobre a defesa da doutrina copernicana e introduo de uma nova Fsica por Galileu (Feyerabend, 1977, caps.VI -XIII).

    Esse estudo de caso de Feyerabend revela como a nova teoria, a deCoprnico, admitindo o movimento da Terra, conflitava com teoria e fatos aceitos e bem estabelecidos - a teoria aristotlica, com uma slida epistemologia e ontologia, esua bem sucedida administrao dosenso comum, provendo-lhe o requerido suporteemprico. A estratgia para a defesa da nova viso demandou a substituio do padrosensorial e lingstico-conceitual vigente, atingindo diferentes estratos da experincia,desde uma nova teoria da sensao (que deveria ser acompanhada de razo ) e da percepo (com o uso de um sentido superior -o telescpio), at uma nova concepodo movimento e da prpria experincia. Consistiu, em primeiro, garantir-lhe espao,com um movimento inicial de recuo, evitando o confronto direto com a teoria

    aristotlica e neutralizando o apoio da evidncia disponvel, apelando no s aargumentos, mas propaganda, a razes eventuais e procedimentos para os quaisGalileu no dispunha de boas razes , como o do uso do telescpio. Posteriormente,os novos padres orientaram a busca da evidncia favorvel ao novo sistema, com odesenvolvimento de hipteses (cincias) auxiliares, novos instrumentos e procedimentos, ao qual serviram recursos proibidos pelas regras d o mtodo , como

    6 Procedimento coerente com sua recusa a oferecer uma nova teoria da cincia.

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    uso de adaptaesad hoc, afastamento da evidncia contrria e privilgio evidnciacorroboradora.

    V. Crtica metodologia do racionalismoTais recursos e procedimentos ferem os ditames doracionalismo crtico , a

    metodologia positivista mais liberal hoje existente (Feyerabend: 1977, p.269).Feyerabend contesta cada uma de suas regras metodolgicas (Feyerabend: 1977,cap.XV). Alega que, freqentemente, instituies, idias e prticas se desenvolvem a partir de atividades sem importncia. A formulao clara do problema parte daquele processo de mtua clarificao dacoisa e da idia corretada coisa. Comparte ascrticas de Lakatos (1979) a umprincpio estrito de falseamento, a que este chama de

    falseamento ingnuo7. Critica a exigncia de contedo crescente (excedente) ou decrescimento emprico , atribuindo sua pretensa aferio a uma iluso epistemolgica :

    o imaginado contedo das teorias anteriores {...} diminui e podereduzir -se at o ponto de tornar-se menor que o imaginadocontedo das novas ideologias (Feyerabend: 1977, p.276-277).

    Pois,

    o aparato conceitual da teoria, que emerge lentamente, logocomea a definir seus prprios problemas, sendo esquecidos ou postos de lado como irrelevantes os problemas, os fatos, asobservaes anteriores(p.275).

    Ou pode ser que esses problemas, fatos, observaes sejam trazidos esfera da nova teoria atravs de recursosad hoc, redefinio de termos ou simplesafirmao da

    decorrncia de seu ncleo dos novos princpios bsicos.Em que pesem seus pontos de convergncia com a anlise de Lakatos,

    Feyerabend estende sua crtica face conservadora de sua proposta racionalista. Essa

    proposta apresenta-se comometodologia dos programas de pesquisa. Os critrios deavaliao propostos por essa metodologia referem-se, antes, asries de teoriasestruturadas num programa , dotado de umncleo , que inclui o componente metafsico,a idia diretora e "irrefutvel" que o caracteriza e move. Desenvolve-se atravs de sua s

    7 Lakatos concorda com a crtica de Popper, segundo a qual nenhuma teoria pode ser verificvel,mas vai alm, criticando ao prprio Popper - contra Popper, defende o carter histrico, retr o-spectivo dos chamados "experimentos cruciais" e a impossibilidade derefutar conclusivamentequalquer conhecimento ou teoria.

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    heursticas positivae negativa. A heurstica negativaestabelece que caminhos devemser evitados, visando a preservao do ncleo - estabelece a formao de um "cinto de proteo", pela articulao e / ou inveno de hipteses auxiliares; redirige omodustollens ao "cinto de proteo", procedendo a ajustes ou substituio total do "cinto". Aheurstica positivadiz respeito poltica de pesquisa a ser seguida - sugestes sobrecomo modificar e sofisticar o "cinto" refutvel, incluindo a construo ecomplexificao de uma "cadeia de modelos" sucessivos, sendo esperada e antecipada aexistncia de "refutaes", bem como a estratgia para digeri-las. So as "verificaes"(e, no, as "refutaes") que mantm o programa , a ser avaliado em funo datransferncia progressivade problemas. luz desse critrio, umasrie de teorias

    progressiva , quando terica e empiricamente progressiva;teoricamente progressivaquando cada nova teoria tem algumexcesso de contedo emprico(prediz fatos novos,em relao sua predecessora);empiricamente progressivaquando parte do contedoemprico for corroborado;degenerativa quando no for progressiva. Aaceitabilidadede um programa requer que exiba,pelo menos, transferncia teoricamente progressivade problemas. Programas so rejeitados por outros programas , com os quaiscompetem, em vista de suafora heurstica -capacidade para produzir fatos novos,explicar refutaes no decorrer do crescimento e, quando possvel, estimular amatemtica. (Lakatos, 1979)

    Tais avaliaes, entretanto, no so instantneas, nem de aplicaomecnica 8. Tanto a novidade de uma proposio fatual como as avaliaes de casos"corroboradores" e "falseadores" so sempre retrospectivas e a evidncia contrria auma teoria ser sempre corroboradora de outra. No h razes lgicas ou empricas que possam decretar o falseamento conclusivode um programa. Programas emdegenerao podem se recuperar. Incompatibilidades geralmente surgem com aexpanso dos modelos: "No se trata de propormos uma teoria e a Natureza poder gritar NO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias e a Natureza poder gritar INCOMPATVEIS" (Lakatos: 1979, p.159). E "alguns dos maiores programas deinvestigao cientfica progrediram sobre fundamentos inconsistentes" (Lakatos: 1987a, p.52). Segundo Feyerabend, quando Lakatos permanece consistente com suas prpriasregras , ou seja, com oracionalismo liberal que apregoa, seu racionalismo um

    anarquismo disfarado; quando, porm, afastando-se de suasregras , de seuliberalismo, admite a coero prtica, d lugar a uma ideologia conservadora ,divergindo do anarquismo . Feyerabend, contudo, diz que, no nosso atual estgio de

    8 Em uma nota de p de pgina, defendendo-se de crtica que lhe feita por Kuhn e Feyerabend,Lakatos apela necessidade - de resto presente, segundo ele, em todas as metodologias - devalermo -nos do "senso comum" (isto , de juzos de casos particulares que no se fazem segundoregras mecnicas, mas que apenas seguem princpios que deixam algumSpielraum )" para aplica-o das regras (Lakatos: 1987a, p.36 -37, nota 58).

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    conscincia filosfica, essa ambigidade de Lakatos e seu racionalismo fazem mais pelo anarquismo que uma defesa ostensiva deste e que, ele prprio, Feyerabend, aoconcluir seu livro, ser um lakatiano (Feyerabend: 1977, cap.XVII).

    VI . Novos questionamentos: a incomensurabilidade

    A crtica de Feyerabend ao racionalismo (ou, a sua defesa doanarquismo ) atinge certos pontos cruciais s anlises contemporneas da cincia - as

    supostas distines entre observacional/terico , histria da cincia/filosofia dacincia e, relacionada a esta, contexto-de-descoberta / contexto-de-justificao , comum slido ponto de ataque no material histrico para question-las. Enquanto a primeira se encontra j bastante desacreditada , as duas ltimas ainda so divisores degua importantes entre modos de analisar a cincia, cujo questionamento recebe umnovo enfoque a partir dosestudos de casorealizados por Feyerabend. Esses estudosconferem histria das cincias um papel substantivo para a sua compreensofilosfica, 9 com minuciosos exames do papel de fatores contextuais e circunstanciais ereconstituio do contexto de descoberta , levando a uma crtica daquelasdistines. 10 Levam-nos, dentro deste quadro, a algumas discusses de questes bastante problemticas, tais como as da comensurabilidade / incomensurabilidade deteorias, das relaes cincia/no-cincia e, de um modo um tanto velado, mas como o ponto que est no cerne de todas as discusses contemporneas, a da racionalidade/

    irracionalidade . Detenho-me, daqui em diante, no exame de algumas dessas questes e,sobretudo, no da primeira, ponto nevrlgico das polmicas acerca da mudana nacincia e alvo central da discusso racionalidade / irracionalidade . Pois aincomensurabilidade no s fere as pretenses de um conjunto nico de regras ou

    princpios, a presidir a caracterizao e o progresso da cincia, como contextualiza a prpria racionalidade cientfica , qualquer que seja o sentido a ela atribudo.

    9 Revestem de significao prpria a parfrase de Kant feita por Lakatos: "A Filosofia da Cinciasem a histria da cincia vazia; a Histria da Cincia sem a filosofia da cincia cega"(Lakatos:1987a, p.11). Feyerabend refere-se a esse mtuo remetimento da reflexo filosfica e do materialhistrico em termos da necessria combinao do argumento abstrato com o malho da histria:"O argumento abstrato imprescindvel porque imprime sentido nossa reflexo. A histria,entr etanto, tambm imprescindvel, ao menos no atual estgio da filosofia, porque d fora anosso s argumentos" (Feyerabend: 1977, p.244).10 "Na histria da cincia, padres de justificao probem, freqentes vezes, formas de agir provocadas por condies psicolgicas, scio-econmico -polticas e outras de carter 'externo' - ea cincia to-somente sobrevive porque se permite que essas formas de agir prevaleam" (Fey-er a bend: 1977, p.260).

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    A questo da iluso epistemolgica decrescimento emprico, h poucoreferida, um fio privilegiado para a discusso daincomensurabilidade de teorias11 .Para seu exame, Feyerabend procede de modo similar ao adotado na imploso do

    racionalismo pelas suasregras - revela as j mencionadas deficincias internas dasmetodologias da comensurao, representadas pelo racionalismo crtico de Popper e pela face conservadora do racionalismo da metodologia dos programas de pesquisade Lakatos, abrindo espao para examinar as razes a favor da tese daincomensurabilidade . Por incomensurabilidade de teorias Feyerabend entende suaincomparabilidade, pelo menos na medida em que esto em jogo os padres maisfamiliares de comparao , notadamente os de comparao das classes deconseqncias das teorias em questo (Feyerabend: 1979, p.271-274). Aincomensurabilidade est estreitamente relacionada ao significado e depende do modocomo sejam interpretadas as teorias cientficas. Coloca-se para uma interpretaorealista , que concebe as teorias cientficas como pretendendo dizer algo acerca da

    constituio ontolgica do mundo que tomam como objeto de investigao 12.Feyerabend arrola trs teses centrais a favor daincomensurabilidade : a

    existncia (1) de esquemas de pensamento incomensurveis entre si, (2) de estgiosincomensurveis no desenvolvimento da percepo e do pensamento no indivduo(reportando -se a Piaget), (3) de princpios ontolgicos condicionantes das ideologiassubjacentes a culturas diversas que impedem,tornam sem sentido, determinadossistemas conceituais e que agem base das cosmovises encerradas nas nossas teorias

    cientficas13

    . A mera diferena conceitual no suficiente para tornar duas teoriasincomensurveis 14; para que isso ocorra, o uso de qualquer conceito de uma devetornar inaplicveis os conceitos da outra - o que tem lugar quando esto em jogo teoriascompreensivas , que abrigam diferentes fundamentos ontolgicos:

    Afinal, supe-se que uma teoria abrangente envolva tambm umaontologia com o propsito de delimitar o que existe e assimdelimitar o mbito dos fatos possveis e possveis interrogaes(Feyerabend: 1977, p.276).

    11 Esse um dos traos mais caractersticos da anlise de Feyerabend e que o aproxima dasconsideraes de Thomas Kuhn (1979), parecendo afast -lo de Lakatos.12 No se colocaria, por exemplo, para uma interpretao "instrumentalista", luz da qual asteorias so instrumentos para fazer previses acerca do comportamento de fenmenos (supondouma linguagem comum de observao).13 Sob esse enfoque ontolgico, partilha a concepo de Whorff acerca da linguagem, como"modeladora de eventos", trazendo classificaes cosmolgicas implcitas.14 Feyerabend, em nota de p-de-pgina (Feyerabend: 1981, p.154), diz que Kuhn ocasional-mente descuida desse ponto.

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    E, para sua investigao semntica ser empreendida, Feyerabend propeque se proceda como um antroplogo ao estudar a cosmologia de uma tribo: aprendesua linguagem e informa-se dos seus hbitos sociais bsicos; investiga as relaesdesses com outras atividades, mesmo as que paream irrelevantes; procura identificar asidias -chave e, ento, entend -las , interiorizando-as, sem buscar tradues

    prematuras 15; completado seu estudo com o conhecimento da sociedade nativa e de seu prprio desenvolvimento pessoal, pode estabelecer comparaes entre, por exemplo, omodo de pensar europeu e o nativo, e decidir acerca da possibilidade ou no dereproduzi -lo na linguagem ocidental (Feyerabend: 1977, cap. XVII) 16.

    Por fim, cabe mencionar que, no bojo desses novos questionamentos enutridas pela detalhada anlise que faz da questo daincomensurabilidade , esto asreflexes de Feyerabend acerca das relaes entre subjetividade e objetividade, entre

    cincia e outras gerais, coerentes e frutferasconcepes de mundo, entrecincia e sociedade , repercutindo na sua viso acerca daracionalidade . Quanto ao primeiro ponto, Feyerabend critica o desiderato de objetividade do racionalismo , de algum modocentrado na tradicional identificao daobjetividade com o que sejaracional ,abstrato , independente da situao(de opinies e compulses histricas), produzido

    pelas prprias coisas. Diz (Feyerabend: 1981, nota 17, p.238) que nenhum dos autoresque defendem standards objetivos explicam o que esta palavra significa. Os popperianos, segundo Feyerabend, ocasionalmente conectam objetividade com verdade

    15 Feyerabend refere-se igualmente aprendizagem da lngua materna pela criana, ou, mesmo,ao seu aprendizado de outras lnguas, que no se processa via "traduo", e pergunta-se, ento, porque os adultos tambm no poderiam aprender ou penetrar em novas teorias cientficas semsupor sua traduo ("comensurao") com outras teorias j conhecidas.16 Essas condies sob as quais cabe falar de incomensurabilidade devem ser consideradasquando essa questo confrontada com a seguinte objeo: como falar da prpriaincomensura-bilidade de duas teorias, caso ela exista, sem comensur-las? A esse primeiro ataque, cabe lem- brar as ressalvas de Feyerabend e ter em mente que no podemos dizer quediferentes teoriassejam, por essa nica razo,incomensurveis , e que o sejam sob qualquer aspecto. Devem ser teorias compreensivas , estabelecendo princpios ontolgicos conflitantes, e ser interpretadas de

    uma determinada maneira,realisticamente , atentando constituio ontolgica. Mesmo assim,ainda podem ser comparadas, com os alcances e limites de uma traduo lingstica, como a deum idioma nativo numa lngua europia: "O que no quer dizer que essa lngua,tal como falada,independentemente da comparao, seja comensurvel com o idioma nativo. Significar que aslnguas podemorientar - se em muitas direes e que a compreenso independe de qualquer par-ticular conjunto de regras" (Feyerabend: 1977, p.376). Feyerabend (1979) e Kuhn (1979) exami-nam detidamente a questo da incomensurabilidade em termos de "traduo de lingua-gens".Assim, podemos situar-nos num patamar "fora" das teorias envolvidas e, procedida a inves-tigao semntica nos termos domtodo antropolgicopreconizado, examinarmos suacome n- surabilidade / incomensurabilidade. Essa uma questo que se coloca quando nosso objeto aanlise de teorias constitudas .

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    e chamam de objetivas as comparaes entre teorias apenas se baseadas numacomparao docontedo de verdade. Chamam os standards remanescentes desubjetivos e essa a razo pela qual Feyerabend assim se refere a tais standards .

    Alis, um dos temores frente tese daincomensurabilidade o de que elaimpea a refutao emprica e uma escolha entre teorias por razes empricas.Feyerabend, contudo, afirma (Feyerabend: 1981, p.238) que h comparao, mesmocomparao objetiva , mas que essa comparao um procedimento muito maiscompl exo e delicado do que os racionalistas supem. Em explcita resposta quelaobjeo, lembra que, embora caiba exigir de uma teoria apenas o que ela prometeexplicar, as previses que estabelece comumente dependem de seus enunciados etambm das condies iniciais, podendo ser contraditas pela experincia. Certamentenos decidimos entre teorias - dentro de um mesmo ponto-de-vista cosmolgico, so possveis juzos de verossimilitude; no caso de diferentes pontos de vista cosmolgicosabrangentes, cabe considerar contradies internas s teorias estabelecidas, juzosestticos, de gosto, preconceitos metafsicos, aspiraes religiosas; em suma,o queresta so nossos desejos subjetivos, a cincia devolvendo ao indivduo uma liberdadeque ele parece perder quando em suas partes mais vulgares (Feyerabend, 1977 : p.412).Sua posio a de que h muitas e complexas interaes entre sujeito e objeto emuitas maneiras pelas quais um desemboca no outro. (Feyerabend, 1981 : p.2.) Diz:

    possvel conservar o que mereceria o nome de liberdade de cr i-ao artstica e us-la amplamente, no apenas como trilha de f u-

    ga, mas como elemento necessrio para descobrir e, talvez, alterar os traos do mundo que nos rodeia. Essa coincidncia da parte como todo (o mundo em que vive), do puramente subjetivo e arbitrriocom o objetivo e submisso a regras, constitui um dos argumentosmais fortes em favor da metodologia pluralista (Feyerabend:1977, p.71).

    Quanto s relaes entrecincia e outras concepes de mundo,Feyerabend diz : H mitos, h dogmas da teologia, h metafsica e h muitas outrasmaneiras de elaborar uma cosmoviso (Feyerabend: 1977, p.279). As similaridades

    entre a estrutura, processo de elaborao e dinmica da funo explicativa do mito e dacincia so surpreendentes (Feyerabend: 1977, cap.XVIII). Segundo sua avaliao, noapenas consideraes de ordem especulativa, mas prtica, face represso a outrasmaneiras de elaborar cosmovises que coincidem com o surgimento da cinciamoderna, ensejam que hoje questionemos as relaes entre Estado e cincia - o que nosleva ao terceiro ponto levantado: o daracionalidade cientfica. A cincia possui umaideologia prpria e cabe-lhe imp-la a seus adeptos; mas no deve ter prerrogativasmaiores que as concedidas a outras ideologias num Estado democrtico, onde oscidados devem ter a oportunidade de poder escolher a forma de vida desejada. Em sua

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    educao, deveriam ser expostos a diferentes cosmovises, antes que fizessem suaescolha pelacincia , com suas exigncias prprias: Cabe ensin-la, mas to-somentequeles que decidiram aderir a essa particular superstio. (Feyerabend: 1977,

    p.464)17

    Conforme sua anlise, a razo do tratamento especial que a cincia recebe sedeve ao conto de fadas de que a cincia no mera ideologia, mas medida objetiva detodas as ideologias (Feyerabend: 1977, cap.XVIII). A desmistificao desse contorevela o carter democrtico da cincia na sua dinmica interna18 , e, apesar de seuocultamento na sua apresentao ao pblico maior, os cientistas alegam que s os fatos,a lgica, a metodologia decidem.

    VII. Uma nova racionalidade?

    O desvelamento da cincia, expondo-a em seus mecanismosirracionais , luz dasregras do racionalismo, acaba sendo o meio pelo qual qualquer deciso pelacincia seja muito maisracional , calcada na viso esclarecida e sopesada derazes , doque tem sido. E conclui Feyerabend seuContra o mtodo, dizendo: a racionalidade denossas crenas se ver consideravelmente acentuada. (Feyerabend, 1977: p.466.) Essaconcluso leva-nos a indagar se, base das reflexes que animam a anlise da cincia

    feita por Feyerabend, no se encontra o questionamento das relaes entrerazo e anti -razo , deixando aberta a porta para pens -las em termos de uma nova racionalidad e.

    Trazendo para seuanarquismo epistemolgicoas palavras de Hans Richter

    sobre o dadasmo, cita Feyerabend: A compreenso que razo e anti-razo, sentido esem sentido, inteno e acaso, conscincia e no-conscincia [e, acrescentaria eu,humanitarismo e anti-humanitarismo] so, em conjunto, partes necessrias de um todo{...}. (Feyerabend: 1977, p.294.) Querazo seria essa, parceira de sentido, inteno,conscincia, humanitarismo e de anti-razo e seus associados? No deve ser aquela datradio de uma estria nica -e, se o fosse, seria essencialmente modificada por suasnovas relaes, vale dizer,contextualizada . Onde esto as fronteiras entre racional eirracional ? A anlise de Feyerabend incita-nos, de um lado, a repensar essa questo,

    nos termos de umaracionalidade que faa crescer nossa humanidade, nossas aptides e

    17 A sociedade moderna 'copernicana', mas no porque a doutrina de Coprnico haja sido posta em causa {...}; 'copernicana' porque oscientistas so copernicanos e porque lhes aceita-mos a cosmologia to acriticamente quanto, no passado, se aceitou a cosmologia de bispos ecardeais (Feyerabend, 1977 : p.456.)18 No fundo, pouqussima diferena h entre o processo que leva ao anncio de uma nova leicientfica e o processo de promulgao de uma nova lei jurdica: infor ma-se todos os cidados ouos imediatamente envolvidos, faz-se a coleta de 'fatos' e preconceitos, discute-se o assunto e,finalmete, vota -se (Feyerabend: 1977, p.457.)

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    nossa concincia, vindo ao encontro daquela idia motora da sua concepo deconhecimento. De outro lado, contudo, a discusso desse ponto, na verso de sua obraque aqui nos serve de guia, fica circunscrita a uma viso tradicional deracionalidade ,apenas esgueirando-se a possibilidade de umanova racionalidade por entre insinuaese dissimulaes. Que a anlise de Feyerabend nos permita tal abertura parece vir aoencontro de sua viso permanentemente questionadora, inconformada , com relao aseu prprio pensamento, dando a esse novas e penetrantes verses ao longo de suatrajetria.

    De um modo geral, difcil criticar a anlise empreendida por Feyerabend,devido, em grande parte, ausncia de umateoria da cinciaque lhe possa ser imputada, luz da qual pudessem ser julgados seus alcances e limites, sua propriedadee suas inconsistncias. Podemos criticar-lhe o fato de no oferecer essateoria ,entendida como uma grande viso ou um grande esquema aplicvel a diversoscontextos da cincia, uniformizando sua anlise? Mas a que ttulo caberia tal cobrana?Os princpios gerais que encontramos em Feyerabend, como otudo vale, sosuficientemente vagos , podendo comportar variadas determinaes. E no cabecobrar -lhe esta vagueza, pois no pretende construir uma crtica com base num novocorpo de princpios firmes e imutveis. Podemos cobrar-lhe que se vale de umadeterminada viso dahistria das cincias, talhada de modo a emprestar fora aoseu(de Feyerabend) argumento abstrato? Teriam as coisasefetivamente ocorrido dessemodo? Essa pergunta, contudo, revela-se inapropriada ou incua, luz dos pressupostos de anlise tomados - pois basta, para Feyerabend, trazer elementos, na suareconstituio histrica, que no se enquadrem nos esquemas analticos que elecritica. Ao no se enquadrarem , cairo sob o abrigo de uma viso que acolhe fatorescomplexos e diversos, como a sua. Todavia, teria a sua crtica o mesmo efeito, casotomasse como alvo no a razo monoltica , esttica, a que se refere, em 1970, masuma razo contextualizada- possibilidade que se v aberta pelo prprio fato dasuacrtica e de que, em 1992, ele admite presente nas anlises mais recentes da cincia?

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