FIALHO, Daniela. Cidades visíveis (tese)

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    Programa de Ps-Graduao em Histria Linha de pesquisa: Cultura e Representaes

    DANIELA MARZOLA FIALHO

    CIDADES VISVEIS: Para uma histria da cartografia como documento de identidade urbana.

    VOL. 1 Porto Alegre

    2010

  • DANIELA MARZOLA FIALHO

    CIDADES VISVEIS: Para uma histria da cartografia como documento de identidade urbana.

    Vol. 1

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Histria. Linha de Pesquisa: Cultura e Representaes.

    ORIENTADORA: DRA. SUSANA BLEIL DE SOUZA

    Porto Alegre 2010

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    F438c Fialho, Daniela Marzola Cidades visveis : para uma histria da cartografia como documento de identidade urbana / Daniela Marzola Fialho ; orientao de Susana Bleil de Souza. 2010.

    2 v. : il.

    Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Histria, Porto Alegre, RS, 2010.

    1. Histria urbana : Cartografia. 2. Cidades : Porto Alegre (RS) : Mapas. 3. Histria da cultura. 4. Identidade urbana. I. Souza, Susana Bleil de. II. Ttulo.

    CDU: 711.42:528

    Bibliotecria Responsvel

    Elenice Avila da Silva CRB-10/880

  • DANIELA MARZOLA FIALHO

    CIDADES VISVEIS: Para uma histria da cartografia como documento de identidade urbana.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Histria. Linha de Pesquisa: Cultura e Representaes.

    Aprovada pela Banca Examinadora em 22 de abril de 2010

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Susana Bleil de Souza PPG Histria/UFRGS Orientadora

    _______________________________________________

    Profa. Dra. Clia Ferraz de Souza PROPUR/UFRGS

    _______________________________________

    Prof. Dr. Charles Monteiro Histria/PUC/RS

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Maria Luiza Martini PPG Histria/UFRGS

    ________________________________________

    Profa. Dra. Miriam Rossini FABICO/UFRGS

  • Para minha Me Norma Marzola

  • AGRADECIMENTOS

    Meus agradecimentos Sandra Jatahy Pesavento (in memoriam), por ter me incentivado a fazer este doutorado e ter sido minha primeira orientadora. Agradeo-lhe tambm por todas as oportunidades de crescimento pessoal e intelectual, por sua confiana e pelas aventuras que vivemos juntas cujas lembranas sempre levarei pela vida afora.

    minha orientadora, Susana Bleil de Souza, por me acompanhar firmemente nos momentos seguintes desse trabalho.

    Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Histria desta Universidade por ter acolhido meu trabalho. Agradeo tambm aos funcionrios deste PPG, especialmente Marlia.

    Aos Professores Drs. Clia Ferraz de Souza, Charles Monteiro, Maria Luiza Martini e Miriam Rossini por terem aceitado fazer parte da banca de defesa de tese.

    Um agradecimento especial ao Prof. Dr. Jacques Leenhardt, por sua orientao ao longo do ano em que realizei estgio de doutorado sanduche na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, em Paris. Agradeo por sua acolhida, pelos horizontes que abriu ao meu trabalho e pela honra de poder assistir e participar de seu seminrio.

    Agradeo ainda aos amigos que conheci na cole, participando do Seminrio de Jacques Leenhardt, e que me acolheram com sua amizade: Colette Grandclaudon, Edgard Vidal e Jean-Nol Larrieu.

    Aos amigos da Maison du Brsil, agradeo a solidariedade e o apoio no trabalho de pesquisa, o alegre companheirismo das viagens e a convivncia na Cit Universitaire e fora dela: Karina Alves de Toledo, Amilcar Torro Filho, Biagio Avena, Patrcia Reinheimer, Gisela Cardoso, Renata Simes, Valria Cristina da Costa, Isabela Jub Wastowski, Valria Ernestnia Chaves, Andr, Luiz Fernando da Silva Mello e Eliane Mello.

    Agradeo aos meus amigos e colegas da Faculdade de Arquitetura: Jos Carlos Freitas Lemos, Helena Cabeda Petrucci, Silvana Jung Stumpfs, Csar Vieira, Cludio Fischer, Giovanna Santini, Maria Cristina Dias Lay, Tarcisio Reis, Jorge Haussen, Ins Martina Lersch e Edson Krebs. Agradeo tambm na Faculdade de Arquitetura pela colaborao no trabalho junto COMGRAD-ARQ no incio de meu doutorado Airton Darold, Jacqueline Johnsson e Berenice Camargo.

  • Aos colegas e amigos do GT de Histria Cultural: Ndia dos Santos Weber, Dbora Krebs, Claudia Musa Fay e Alessander Kerber, Alexandre Herculano, Monica Velloso e Maria de Ftima Costa.

    Meus agradecimentos aos colegas da diretoria da ADUFRGS: Cludio Scherer, Maria Luiza Holleben, Elizabeth de Carvalho Castro, Maria Cristina da Silva Martins, Paulo Artur Konzen, Maria da Graa Saraiva Marques e Ana Paula Ravazzolo, pela compreenso e pelo apoio recebido. Agradeo tambm aos companheiros de lides sindicais que se tornaram grandes amigos: Regina Witt, Cida Livi, Lcio Hagemann, Lcio Vieira, Eduardo Rolim, Eliane Leo, Tnia Hirochi, Beatriz Couto, Joo Eduardo, Silvia Balinsky, Edson Lindner, Joo Vicente e Flix Gonzalez.

    Devo agradecer tambm a alguns amigos de outras tribos: Vicky Martinez, Thirza Vasconcelos, Isabella Barin e Lcia Medeiros.

    Quanto realizao da minha pesquisa, agradeo a colaborao cientfica de Catherine Bousquet-Bressolier, que to gentilmente me recebeu; ao pessoal da Biblioteca do Museo del Risorgimento em Bologna, Itlia, pela ajuda em relao ao material sobre Zambeccari; Maria Dulce de Faria, por sua ajuda no setor de cartografia da Fundao Biblioteca Nacional; equipe da ONG Viver Cidades, no Rio de Janeiro, por me abrirem as portas de sua biblioteca; equipe do Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Vellinho pela disponibilidade e simpatia com que sempre me atenderam; ao pessoal do Arquivo Histrico da Arquidiocese de Porto Alegre, pela ajuda nas biografias; e a Maria Tereza Fortini Albano pela sua ajuda junto mapoteca da SMOV.

    Por fim, agradeo a compreenso e o incentivo de minha famlia: Norma, Barata, Cristiano, Fernanda e Aguilar.

    Esta pesquisa contou com apoio financeiro da CAPES, que financiou o estgio de doutorado em Paris, a quem tambm agradeo.

  • E o ESPLENDOR dos mapas, caminho abstrato para a imaginao concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

    O que de sonho jaz nas encadernaes vetustas, nas assinaturas complicadas (ou to simples e esguias) dos velhos livros.

    (Tinta remota e desbotada aqui presente para alm da morte, O que de negado nossa vida quotidiana vem nas ilustraes,

    O que certas gravuras de anncios sem querer anunciam.

    Tudo quanto sugere, ou exprime o que no exprime, Tudo o que diz o que no diz,

    E a alma sonha, diferente e distrada.

    enigma visvel do tempo, o nada vivo em que estamos!)

    Fernando Pessoa, 19331. (Fices do Interldio/ Poesias de lvaro de Campos)

    1 PESSOA, Fernando. Obra Potica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p.386-387.

  • RESUMO

    O objetivo geral desta de tese problematizar as relaes entre a histria urbana e a cartografia, mais especificamente, os mapas da cidade de Porto Alegre arrolados como campo e fontes de pesquisa. O tema a cartografia enquanto produo histrica da cidade e as ferramentas tericas usadas envolvem questes da Histria Cultural. Centra-se numa problematizao que busca perverter a maneira clssica de se descrever e analisar as mudanas urbanas, de modo a mostrar que cidades so a produzidas como iderio de representao, registro de memria, inventrio do imaginrio, narrativa histrica da geografia e da paisagem urbana. Vistos como discursos, os mapas produzem as identidades e as mudanas do espao urbano ao longo do tempo, dando visibilidade a significados at ento invisveis, ainda que no ocultos, possibilitando, assim, outras prticas e polticas de interveno urbana.

    Palavras-chave: Cartografia Urbana. Histria Cultural. Histria da Cartografia. Porto Alegre (RS).

  • ABSTRACT

    The overall objective of this thesis is to problematize the relationship between urban history and cartography, in particular, maps of the city of Porto Alegre listed as sources and field of research. The theme is the cartography while historical production of the city and the theoretical tools used involve issues of Cultural History. It focuses on a problematization that seeks to "subvert" the classic way to describe and analyze the urban changes in order to show that cities are produced there as ideas of representation, memory register, inventory of imagery, historical narrative of geography and urban landscape. Seen as speeches, maps produce identities and urban space changes over time, giving visibility to previously invisible meanings, although not hidden, thus allowing, other practices and policies of urban intervention.

    Keywords: Urban Cartography. Cultural History. History of Cartography. Porto Alegre (RS).

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    AHEX Arquivo Histrico do Exrcito, Rio de Janeiro.

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino, Lisboa.

    BNF Bibliothque Nationale de France, Paris.

    FBN Fundao Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

    ICC Instituto Cartogrfico da Catalunha, Barcelona.

    IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro.

    IHGRS Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

    MAPCO Map and Plan Collection Online.

    NYPL New York Public Library, New York.

    SMOV Secretria Municipal de Obras e Viao de Porto Alegre, Porto Alegre.

    USP Universidade de So Paulo, So Paulo.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO... 14 1.1 OBJETIVOS, DEFINIO E DELIMITAO DO OBJETO DE

    ESTUDO..................................................................................................

    19

    1.2 DOS CAPTULOS E ALGUNS PRESSUPOSTOS.................. 20

    2 DA HISTRIA DA CARTOGRAFIA URBANA....................... 23 2.1 PR-HISTRIA, EGITO E MESOPOTMIA.......................................... 26 2.2 GRCIA................................................................................................... 29 2.3 ROMA...................................................................................................... 31 2.4 CHINA..................................................................................................... 33 2.5 IDADE MDIA......................................................................................... 35 2.6 RENASCIMENTO................................................................................... 42 2.6.1 A questo das projees...................................................................... 49 2.6.2 O Novo Mundo e o Brasil...................................................................... 53 2.7 O SCULO DO ATLAS.......................................................................... 58 2.8 SCULO XVIII E XIX............................................................................... 62 2.9 A CARTOGRAFIA ATUAL..................................................................... 65

    3 DA GRAMTICA CARTOGRFICA DAS CIDADES............ 68 3.1 DESCONSTRUINDO OS MAPAS.......................................................... 76 3.1.1 Grafismo, Geometria e Figurao........................................................ 77 3.1.2 Mapas e Escrita..................................................................................... 85 3.1.3 A Imagem Cartogrfica......................................................................... 90 4 DO TEMPO E DO ESPAO CARTOGRFICOS: A

    POESIA DOS MAPAS URBANOS......................................... 98 4.1 DOS MAPAS E DA MEMRIA............................................................... 100 4.2 DOS MAPAS E DO ESQUECIMENTO................................................... 104 4.3 DOS MAPAS E DO PLANEJAMENTO URBANO................................. 107 4.4 DO GOVERNO DA CARTA.................................................................... 110

  • 4.4.1 Dos Mapas e da Identidade Nacional.................................................. 112

    5 DAS PLANTAS DAS CIDADES OU COMO A HISTRIA SE CONTA MAPAS DE PORTO ALEGRE (1772-1889).... 115

    5.1 OS MAPAS DE PROPRIEDADE DO SOLO (1772-1825) 115 5.2 O CARTGRAFO REVOLUCIONRIO................................................. 127 5.2.1 A Porto Alegre de Zambeccari............................................................. 141 5.2.2 Do Desenho da Planta de 1833............................................................ 150 5.2.3 Das Leituras do Mapa........................................................................... 159 5.3 A PORTO ALEGRE DO IMPRIO.......................................................... 163 5.3.1 A Cartografia no Imprio...................................................................... 165 5.3.2 Do desenho da Planta de 1838............................................................. 172 5.3.3 Um cartgrafo Legalista....................................................................... 184 5.3.4 Das Leituras do Mapa........................................................................... 189 5.4 A PORTO ALEGRE DE L. P. DIAS........................................................ 191 5.4.1 O Cartgrafo Provinciano..................................................................... 193 5.4.2 Do desenho da Planta de 1839............................................................. 200 5.4.3 Das Leituras do Mapa........................................................................... 215 5.5 A PORTO ALEGRE DE CONRADO JACOB NIEMEYER..................... 220 5.5.1 O Cartgrafo Condecorado.................................................................. 222 5.5.2 Da Carta Corographica do Imprio do Brasil.................................. 226 5.5.3 Do desenho da Planta de 1844............................................................. 235 5.5.4 Das Leituras do Mapa........................................................................... 239 5.6 A PORTO ALEGRE DE ANTONIO ELEUTHERIO DE CAMARGO...... 242 5.6.1 O Cartgrafo Eminente......................................................................... 244 5.6.2 Da Cartografia da Provncia................................................................. 245 5.6.3 Do desenho da Planta de 1868............................................................. 257 5.6.4 Das Leituras do Mapa .......................................................................... 264 5.7 A PORTO ALEGRE DE UM CARTGRAFO ANNIMO...................... 269 5.7.1 Os Cartgrafos Oficiais...................................................................... 271 5.7.2 Do desenho da Planta de 1872............................................................. 274 5.7.3 Das Leituras do Mapa........................................................................... 284 5.8 A PORTO ALEGRE DO MAPA INEXISTENTE...................................... 287

  • 5.8.1 Da Cartografia de Manoel Jos Nunes de Azevedo........................... 289 5.8.2 Do desenho da Planta de 1876............................................................. 290 5.8.3 Das Leituras do Mapa........................................................................... 295 5.9 A PORTO ALEGRE DE HENRIQUE BRETON...................................... 299 5.9.1 O Cartgrafo Singular........................................................................... 300 5.9.2 Do desenho da Planta de 1881............................................................. 302 5.9.3 Das Leituras do Mapa........................................................................... 314 5.10 A PORTO ALEGRE DE JOO CNDIDO JACQUES........................... 315 5.10.1 O Cartgrafo do Colgio Militar........................................................... 316 5.10.2 Do desenho da Planta de 1888............................................................. 318 5.10.3 Das Leituras do Mapa........................................................................... 329

    6 CONSIDERAES FINAIS.................................................... 331

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS................................................... 346 SITES CONSULTADOS..................................................................... 363 FONTE DAS ILUSTRAES............................................................. 365

    ANEXOS (VOLUME 2 ACOMPANHA CD COM IMAGENS TESE)

    ANEXO 1 FICHA TCNICA DAS PLANTAS EXISTENTES ESTUDADAS...... 394 ANEXO 2 RELAO DOS MAPAS ENTRE 1831 E 1845................................ 434 ANEXO 3 RELAO DOS CARTGRAFOS DOS MAPAS ENTRE 1831 E 1845....................................................................................................................... 453 ANEXO 4 MAPAS DE PORTO ALEGRE: RELAO ENTRE AS LEGENDAS .......................................................................................................... 458

  • 14

    1 - INTRODUO

    Cada vez mais as relaes entre Histria e Imagem tm proporcionado uma ampliao desses campos de estudos. As fontes da histria, tradicionalmente focadas no documento escrito, defrontam-se com as outras linguagens pelas quais se representa o real e que se tornam tambm o objeto da histria1. Enquanto linguagem, os mapas das cidades e das paisagens urbanas so imagens com potencialidade de serem arroladas como campo e fonte de pesquisa, possibilitando situar a investigao nas relaes entre a histria urbana e a cartografia

    Adotar como tema de pesquisa a cartografia como uma produo da histria da cidade, faz com que se tenha de entrelaar uma srie de questes que so centrais no debate contemporneo. As ferramentas tericas colocadas por essa temtica envolvem categorias de anlise tais como representao, memria, imaginrio, imagem e produo histrica do espao urbano, categorias essas tratadas e usadas em diferentes perspectivas tericas e que encontram, na Histria Cultural, uma forma especfica de se relacionarem. Da o modo de exposio adotado aqui, pondo em jogo diferentes autores numa espcie de decupagem e edio dos seus achados, maneira de composio benjaminiana.

    Segundo Pesavento2, a presena da Histria Cultural assinala, pois, uma reinveno do passado, reinveno esta que se constri na nossa contemporaneidade, em que o conjunto das cincias humanas encontra seus pressupostos em discusso. Ainda segundo a autora, (...) em termos gerais, pode-se dizer que a proposta da Histria Cultural seria, pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representaes, tentando chegar quelas formas, discursivas e imagticas, pelas quais os homens expressaram a si prprios e o mundo3.

    Nessa perspectiva, os mapas da(s) cidade(s) enquanto fontes de pesquisa nos remetem a vrios campos temticos dentro da Histria Cultural: 1) so imagens, e enquanto e como tais podem e devem ser analisados na sua especificidade, mas tambm como um texto que se d a ler; 2) contm elementos alfabticos, comportando uma escrita manifesta que tambm d margem a uma anlise discursiva; 3) produzem uma identidade da(s) cidade(s) por eles tratados, ao estabelecerem um determinado recorte do espao contido

    1 PESAVENTO, Sandra J. (Org.). Escrita, Linguagem, Objetos. leituras de histria cultural. Bauru: EDUSC, 2004.

    p.8 2 PESAVENTO, Sandra J. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2004a. p.16

  • 15

    num tempo; e 4) pretendem re-tratar a(s) cidade(s), o que remete, ento, aos estudos e s indagaes que so feitos sobre o urbano e sobre as paisagens construdas sobre as cidades (reais e imaginrias).

    Como representao do mundo, a carta uma construo imaginria (da realidade), mas que tem o poder no s de orientar o olhar e a percepo (do real) como tambm de criar a paisagem urbana que representa.

    Essa tese procurou, assim, examinar, descrever e analisar as mudanas urbanas produzidas pelos modos de cartografar a cidade, tomando como fonte os mapas da cidade de Porto Alegre at o final do Imprio. Nesse sentido, o problema desta tese, ao transformar o tema escolhido em objeto de pesquisa, foi o de analisar a maneira como a cartografia se constitui num instrumento de construo visual do imaginrio das cidades. Tendo em conta que os mapas so vistos, aqui, como discursos que produzem os objetos de que falam4, tratou-se de perseguir as identidades e as mudanas urbanas que as plantas da cidade mostram ao longo do tempo, no seu contexto histrico, geogrfico e paisagstico. Em suma, responder a uma indagao: que cidades essas cartas produzem?

    Teixeira5, em sua Cartografia Urbana, faz a descrio usual dos mapas, ao dizer que

    os mapas, cartas e plantas (...) mostram os traados urbanos de cidades ou de partes de cidades (entendendo-se aqui por cidade qualquer ncleo urbano independentemente do seu tamanho). Atravs destas cartas, podemos observar o traado das cidades, a natureza dos seus espaos urbanos, a estrutura de quarteiro e a estrutura de loteamento, a localizao de edifcios e de funes, bem como observar as caractersticas fsicas do stio e as suas relaes com o territrio.

    J Harley6 refere criticamente essa forma de definir a cartografia urbana nos seguintes termos:

    A percepo usual da natureza dos mapas de que eles so um espelho, uma representao grfica de algum aspecto do mundo real. A definio encontrada em vrios dicionrios e glossrios de cartografia confirma esta viso. Dentro das restries da tcnica de pesquisa, da habilidade do cartgrafo e do cdigo dos signos convencionais, o papel dos mapas apresentar um depoimento factual acerca da realidade geogrfica. Embora

    3 PESAVENTO, Sandra J. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2004a. p.42.

    4 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987

    5 TEIXEIRA, Manuel C. A cartografia no estudo da histria urbana. Urbanismo2 de Origem Portuguesa, Lisboa,

    n 2, set. 2000. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2010. 6 HARLEY, J. B. Text and Context in the interpretation of early maps. In: BUISSERET, David (Ed.). From Sea

    Charts to Satellite Image: interpreting North American history through maps. Chicago: The University of Chicago Press, 1990. p.3-4.

  • 16

    os cartgrafos escrevam acerca da arte assim como da cincia da cartografia, a cincia sombreou a competio entre as duas abordagens. O corolrio que quando historiadores acessam mapas, as suas estratgias interpretativas so moldadas por essa idia do que os mapas so ditos ser. Na nossa cultura ocidental, pelo menos desde o Iluminismo, a cartografia tem sido definida como cincia factual. A premissa de que o mapa deve oferecer uma janela transparente sobre o mundo. Um bom mapa um mapa acurado.

    A partir dessa crtica, o autor se coloca uma questo: h, no entanto, uma resposta alternativa questo o que um mapa?, Harley7 responde que, para os historiadores, uma definio apropriada seria a de que um mapa uma construo social do mundo expressa por meio da cartografia (grifos meus). Assim, longe de ser um simples espelho da natureza, do que verdadeiro ou falso, os mapas, segundo este autor, reescrevem o mundo como nenhum outro documento em termos de relaes de poder e de prticas culturais, preferncias e prioridades (grifos meus). E acrescenta: O que lemos num mapa tanto uma relao com um mundo social invisvel e uma ideologia quanto uma relao com os fenmenos vistos e medidos na natureza. Por isso mesmo, os mapas mostrariam sempre muito mais do que uma soma de um conjunto de tcnicas. precisamente esta constatao que faz o autor dizer que a aparente duplicidade dos mapas sua qualidade de escorregadio no um desvio idiossincrtico de um ilusrio mapa perfeito. Pelo contrrio, est no corao da representao cartogrfica.

    Ainda mais: ao fazer a introduo das maneiras de interpretar os mapas da Amrica descritos no livro de Buisseret8, Harley9 prope

    (...) que os mapas sejam discutidos como textos em vez de um espelho da natureza. Os mapas so textos no mesmo sentido que outros sistemas de sinais pinturas, impressos, teatro, filmes, televiso, msica so textos. Mapas tambm compartilham muitas preocupaes comuns com o estudo do livro, exibindo uma funo textual no mundo e sendo sujeitos a controle bibliogrfico, interpretao e anlise histrica. Mapas so uma linguagem grfica a ser decodificada. Eles so uma construo da realidade, imagens carregadas com intenes e conseqncias, as quais podem ser estudadas nas sociedades de nosso tempo. Como os livros, eles so tambm produto

    7 HARLEY, J. B. Text and Context in the interpretation of early maps. In: BUISSERET, David (Ed.). From Sea

    Charts to Satellite Images: interpreting North American history through maps. Chicago: The University of Chicago Press, 1990. p.4. 8 BUISSERET, David. From sea charts to satellite images: interpreting North Amaerican history through maps.

    Chicago: The University of Chicago Press, 1990. 9 HARLEY, J. B. Text and Context in the interpretation of early maps. In: BUISSERET, David (Ed.). From Sea

    Charts to Satellite Images: interpreting North American history through maps. Chicago: The University of Chicago Press, 1990. p.4.

  • 17

    de ambos: a mente individual e os valores culturais mais amplos, em sociedades particulares.

    O conceito de mapa pode ser ainda mais extensivo, num sentido j explicitado por David Buisseret10 quando tenta explicar porque havia to poucos mapas na Europa em 1400 e tantos por volta de 1650:

    Uma vez que comecemos a procurar sinais de mapas no apenas na produo daquilo que, desde sempre, tem sido reconhecido como mapa, mas tambm na emergncia de outras formas de imagem locacional, ento podemos traar de forma mais convincente as razes daquilo que, de outro modo, pareceria um inexplicvel florescimento da cartografia. Quando o povo medieval esculpia orbes, modelava palcios ou desenhava planos elaborados de abadias, eles estavam se movendo para um tipo de imagem locacional que apenas mais tarde encontrou a sua plena expresso. Este impulso de mapeamento precoce necessita ser procurado no incio da Europa moderna, quando vistas olho de pssaro, desenhos arquitetnicos, modelos de fortificao e, ainda, diagramas militares exemplificam a necessidade emergente de entender e controlar o mundo pela produo de imagens locacionais do mesmo (Grifos meus).

    Entende-se que essa abordagem extensiva, que relaciona Histria e Imagem, permite ir muito alm da questo da representao da cidade pelo mapa, numa linguagem concreta de dominao, conhecimento e governo do territrio. Tomada como imagem locacional, a cartografia da cidade relaciona-se, efetivamente, com a paisagem urbana. Nesse sentido, tem de ser vista como uma unidade geogrfico-cultural, dirigida no s para a descrio contingente das realidades fsicas e humanas da cidade, mas tambm para a construo de um imaginrio do lugar, ou seja, do territrio das idealidades coletivas. O desafio, ento, reconstruir um itinerrio das paisagens urbanas constitudas pelos mapas de uma cidade, levando em conta, ainda, a transformao dos modos de leitura dessas paisagens.

    Buisseret11, de certa forma, j alerta para isso, ao mostrar a relao entre cartografia e sociedade. Diz ele que:

    Eventualmente, por volta de 1500, uma conscincia precoce dos mapas veio penetrar as elites de muitas partes da Europa Ocidental, (...), e depois daquele tempo, cada novo desenvolvimento social teve sua contrapartida cartogrfica. Assim, h cartografias da Reforma e da Contra-Reforma, da

    10 BUISSERET, David. The Mapmakers Quest: depicting New Worlds in Renaissance Europe. Oxford: Oxford

    University Press, 2003. p.xii. 11

    BUISSERET, David. The Mapmakers Quest: depicting New Worlds in Renaissance Europe. Oxford: Oxford University Press, 2003. p.xii.

  • 18

    Revoluo Militar, da expanso da Europa no mundo, e assim por diante. Aqui, tentamos analisar essas cartografias no apenas em termos dos mapas produzidos, como em termos das mudanas da sociedade que deram origem a eles. Assim, invertendo a ordem normal de procedimento, (...), esperamos mostrar como a cartografia tem influenciado e exemplificado o curso da histria da Europa moderna de vrias maneiras insuspeitadas at agora.

    Por outro lado, e mais especificamente em relao questo da paisagem urbana, interessante lembrar a emergncia da paisagem descrita por Schama12:

    A prpria palavra landscape [paisagem] nos diz muito. Ela entrou na lngua inglesa junto com herring [arenque] e bleached linen [linho alvejado], no final do sculo XVI, procedente da Holanda. E landschap, como sua raiz germnica, Landschaft, significava tanto uma unidade de ocupao humana - uma jurisdio, na verdade - quanto qualquer coisa que pudesse ser o aprazvel objeto de uma pintura. Assim, certamente no foi por acaso que nos campos alagados dos Pases Baixos, cenrio de uma formidvel engenharia humana, uma comunidade desenvolveu a idia de uma landschap, que, no ingls coloquial da poca, se tornou landskip. Seus equivalentes italianos, o ambiente idlico e pastoril de riachos e colinas cobertas de dourados trigais, eram conhecidos como parerga e constituam os cenrios auxiliares dos temas comuns da mitologia clssica e das escrituras sagradas. Nos Pases Baixos, contudo, o desenho e uso da paisagem por parte do homem - sugerido pelos pescadores, vaqueiros, caminhantes e cavaleiros que povoam os quadros de Esaias van de Velde, por exemplo - era a histria, espantosamente auto-suficiente.

    Nesse sentido, os mapas, como a pintura, enquadram e fixam uma paisagem urbana histrica, ou seja, um imaginrio do lugar que supe um determinado modo de leitura. Mas, como somos mais livres do que imaginamos13, mostrar as determinaes histricas do que somos mostrar o que possvel fazer, j que h muitas coisas com as quais ainda podemos romper.

    12 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.20-21.

    13 FOUCAULT, 1979. Apud MOREY, M. Introduccin: la cuestin del mtodo. In: FOUCAULT, M. Tecnologas del

    yo y otros textos afines. Barcelona: Paids, 1991, p.44.

  • 19

    1.1 - OBJETIVOS, DEFINIO E DELIMITAO DO OBJETO DE ESTUDO

    Esta tese partiu de um objetivo geral que o de examinar as relaes entre a histria urbana e a cartografia. , pois, a partir desse recorte amplo que o objeto deste estudo foi definido e delimitado. Para tanto, parti de uma problematizao envolvendo meu objeto de pesquisa.

    Castro14 chama a ateno para as diferentes tradies cartogrficas, as quais explica da seguinte maneira:

    Atravs da histria, mapas foram produzidos em diversas sociedades. Egpcios, chineses, astecas e nativos da Polinsia fizeram mapas que variavam em simbolismo, escala e materiais, com diferentes propsitos. Cada uma dessas tradies cartogrficas representava a cultura da sociedade onde se originou. Nem sempre os mapas foram um produto do empirismo geogrfico, tal como nosso senso comum os imagina. Embora em alguma medida respondam a exigncias prticas, seria um erro reduzi-los a uma mera representao geogrfica. (...).

    Se os mapas no so uma mera representao geogrfica, que forma de representao eles constituem? E, ainda mais, que forma de representar essa que varia, como afirma o autor, em simbolismo, escala e materiais, com diferentes propsitos?

    Ao examinar, descrever e analisar as mudanas urbanas produzidas pelos diferentes modos de cartografar a cidade, tive em conta que esses modos no apenas so histricos, mas delimitam tanto o espao territorial mais amplo como o nosso prprio espao no territrio delimitado. Tomados como um problema de pesquisa, isto , problematizados, os modos de cartografar a cidade e os artefatos histricos produzidos nessa prtica os mapas no puderam mais ser vistos como reflexos grficos do desenvolvimento urbano, mas como discursos que produzem as cidades que eles desenham. E isto colocou uma outra questo de pesquisa, complementar primeira: que mudanas urbanas, isto , que identidades urbanas so criadas pelos mapas histricos de uma cidade e que efeitos eles produziram? Ou seja: como definiram as posies geogrficas dos diversos segmentos da populao urbana? Como fixaram as vocaes dos seus diferentes bairros? Como favoreceram, assim, um determinado desenvolvimento urbano? Em outras palavras, que

    14 CASTRO, Celso. Uma viagem pelos mapas do Rio. In: CZAJKOWSKI, Jorge (Org.). Do Cosmgrafo ao Satlite: mapas da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro de Arquitetura e Urbanismo, Secretaria

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    imagens criaram e propuseram cidade, ao condicionarem determinados modos de leitura de sua paisagem?

    A partir da definio dessa problemtica de pesquisa, trabalhei com os mapas de Porto Alegre, perseguindo as identidades e as mudanas urbanas que os mapas dessa cidade produzem e mostram ao longo do tempo. Porto Alegre fundada no sculo XVIII e a primeira planta que existe do sculo XIX. Pode-se, no entanto encontrar uma quantidade razovel de mapas que retratam a cidade e/ou partes dela. Nesse contexto, foram adotados dois delimitadores. O primeiro diz respeito rea de abrangncia do mapa, ou seja, as plantas analisadas mostram a cidade como um todo. O segundo delimitador temporal e decidiu-se escolher um momento histrico importante para definir essa questo, portanto as plantas da cidade de Porto Alegre que foram estudadas vo da fundao da cidade, em 1772, at o final do Imprio, em 1889.

    1.2 - DOS CAPTULOS E ALGUNS PRESSUPOSTOS

    O Captulo 1 Da Histria da Cartografia Urbana trata da histria da cartografia urbana tal como ela narrada habitualmente, a partir de pressupostos tcnicos e cientficos, mostrando, ao mesmo tempo, como ela afetou a cartografia brasileira em geral e os mapas da cidade de Porto Alegre. Este captulo no se encerra em si mesmo, pois parte dessa histria est relacionada com a dos mapas da cidade aqui estudados.

    O Captulo 2 Da Gramtica Cartogrfica das Cidades trata da histria dos significados, das diferentes interpretaes cartogrficas da cidade. Para isso, procurou-se ver como, ao longo da histria, a prtica de cartografar foi significada e regulada pelos discursos da cartografia e da histria. Este captulo, portanto, tratou da questo metodolgica, ao dar visibilidade s gramticas sintaxe e semntica utilizadas na feitura dos mapas.

    Ao longo do tempo, os mapas das cidades mostraram suas ruas, seus prdios, Igrejas, pontes, seu espao abrangente, seus limites geogrficos e polticos. Suas culturas urbanas foram, assim, modeladas, formatadas pelo modo como o espao foi organizado. E foi a cartografia, como uma gramtica do espao, que ordenou, classificou, normatizou e

    Municipal de Urbanismo, 2000. Exposio de julho a setembro de 2000, realizada no Centro de Arquitetura e

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    organizou o espao urbano, de acordo com regulaes cartogrficas definidas historicamente, isto , de acordo com as regras dominantes em determinado tempo e lugar. Por isso a cartografia, aqui, vista como um dispositivo criado para produzir efeitos especficos e por isso, tambm, este estudo pretende indagar no o que ela ou o que ela significa, mas como ela faz o que faz, ou seja, como ela funciona como uma prtica poltica e cultural.

    Em relao questo do discurso, Peter Turchi15 estabelece, como o prprio ttulo de sua obra j diz --Maps of the Imagination: The Writer as a Cartographer --, uma identificao entre o escritor e o cartgrafo. No livro, o autor compara a maneira que um escritor guia o leitor atravs do mundo imaginrio de uma estria, uma novela ou um poema com a maneira com que os fazedores de mapas mapeiam o mundo fsico16. Concluindo que: Perguntar por um mapa dizer, conte-me uma histria17. Assim, e invertendo a lgica de Turchi, o mapa produzido pelo cartgrafo no foi tomado, aqui, como um meio ou um modo de contar uma histria, mas , ele mesmo e por si mesmo, um discurso, uma histria.

    O capitulo 3 Do Tempo e do Espao Cartogrficos: a Potica dos Mapas Urbanos trata da questo da cartografia como representao, as relaes de representao, o que levou discusso das questes relacionadas ao imaginrio, identidade, memria e ao esquecimento. Nesse contexto, no se engloba apenas o que se poderia chamar uma representao textual do territrio, mas tambm aquelas representaes projetuais (planos urbansticos) da cidade, que podem no se configurar em sua totalidade, mas que tambm so representaes da cidade que produzem seu imaginrio enquanto planejamento urbano. Ainda no contexto deste captulo, trato Do Governo da Carta onde abordei as questes das relaes de poder que estabelecem determinada Carta e no outra, e fazem com que ela seja reconhecida na sua poca, tornando-se instrumento de governo. A Carta, enquanto forma generalizada e homognea de normatizao e controle do espao, produz, assim, uma identidade da cidade ou da nao.

    O ltimo captulo Das Plantas das Cidades ou Como a Histria se conta trata de como tudo isso se conjuga na produo das identidades, ou seja, das subjetivaes de determinados espaos urbanos, neste caso Porto Alegre de seus mapas.

    Urbanismo do Rio de Janeiro. p.8. 15

    TURCHI, Peter. Maps of the Imagination: the writer as a cartographer. San Antonio: Trinity University Press, 2004. 16

    TURCHI, Peter. Maps of the Imagination: the writer as a cartographer. San Antonio: Trinity University Press, 2004. Orelha do livro. 17

    TURCHI, Peter. Maps of the Imagination: the writer as a cartographer. San Antonio: Trinity University Press, 2004. p.11.

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    Nesse sentido, afirmar que os mapas so documentos fundamentais para o estudo do passado muito pouco, j que os processos histricos so intersectados e produzidos por eles. Podemos ver neles desde tratados territoriais at o futuro (planejado) das cidades. E, como imagens, permitem e direcionam suas leituras.

    Segundo W. Bolle,

    A imagem a categoria central da teoria benjaminiana da cultura: alegoria, imagem arcaica, imagem de desejo, fantasmagoria, imagem onrica, imagem de pensamento, imagem dialtica com esses termos se deixa circunscrever em boa parte a historiografia benjaminiana. A imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e a formas primitivas de conhecimento, s quais a literatura sempre esteve ligada, em virtude de sua qualidade mtica e mgica. Por meio de imagens no limiar entre a conscincia e o inconsciente possvel ler a mentalidade de uma poca. essa leitura que se prope Benjamin enquanto historigrafo. Partindo da superfcie, da epiderme de sua poca, ele atribui fisiognomia das cidades, cultura do cotidiano, s imagens do desejo e fantasmagorias, aos resduos e materiais aparentemente insignificantes a mesma importncia que s grandes idias e s obras de arte consagradas. Decifrar todas aquelas imagens e express-las em imagens dialticas coincide, para ele, com a produo de conhecimento da histria18.

    Bolle19 afirma ainda que para o autor das teses Sobre o Conceito de Histria, a tarefa do historiador consiste no resgate e na redeno do passado. (...). A histria, segundo Benjamin, torna-se objeto de uma construo, cujo lugar no o tempo homogneo e vazio, mas uma determinada poca, uma determinada vida, uma determinada obra; esses elementos so arrancados do curso homogneo da histria.

    Dentre esses elementos, podem-se situar tambm os mapas. Ler a histria nos mapas o empreendimento que esta tese prope, pois, como diz Le Goff, onde o homem passou e deixou alguma marca da sua vida e inteligncia, a est histria.20 , portanto, nos mapas e planos em que a cidade de Porto Alegre foi re-tratada, ao longo do tempo, que as suas histrias se do a ler.

    18 BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna: representao da histria em Walter Benjamin. So Paulo:

    Editora da Universidade de So Paulo, 1994. p.42,43. 19

    BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna: representao da histria em Walter Benjamin. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1994. p.25,26. 20

    LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: Editora da Unicamp, 1994. p.107.

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    2 DA HISTRIA DA CARTOGRAFIA URBANA

    Os mapas tm ligaes ntimas com a histria desde a pr-histria at os nossos dias, e tm um grande impacto no mundo em que vivemos. Eles produziram e mudaram o mundo por eles mostrado, ao longo do tempo, desenhando e cartografando a economia e a poltica das naes. Em sua produo, eles nos contam muito acerca das pessoas e dos poderes que se exercitaram na sua criao. E dizem e impem a sua verdade dos lugares que mostram. Alm disso, a representao do mundo atravs dos mapas apresenta evidncias histricas da necessidade humana de descrever, situar-se e controlar o mundo, domesticando-o e tornando-o familiar, conhecido, um espao habitvel.

    Denis Wood expe, de forma bastante potica, como o mundo dos mapas foi construdo:

    Uma cornucpia de imagens, atordoante em sua variedade: este o mundo dos mapas. Gravetos e pedras, pergaminho e folha de ouro, papel e tinta... nenhuma substncia escapou de ser usada para formar uma imagem do mundo em que vivemos. Como os pssaros e as abelhas ns os fizemos danar nos gestos do nosso viver; desde o nascimento da linguagem ns os esboamos nos sons da nossa fala. Ns os desenhamos no ar e os traamos na neve, ns os pintamos em pedras e os inscrevemos nos ossos de mamute. Ns os cozinhamos em barro e os entalhamos em prata, ns os imprimimos em papel, ... em t-shirts21.

    Salienta, ainda, a perenidade dos mesmos e os sentimentos que evocam:

    Muitos deles j se foram; bilhes perdidos no fazer ou evaporados com as palavras que os trouxeram vida. A chegada da onda alisou a areia onde eles estavam desenhados, o vento os apagou da neve. Pigmentos desbotaram, o papel apodreceu ou foi consumido pelas chamas. Muitos simplesmente no podem ser encontrados. (...). E quando falamos do velho mapa da Europa que tambm desapareceu estamos falando de certezas com as quais crescemos, no de um pedao de papel. E contudo... e, no entanto difcil, no final, separar essas certezas daquele mesmo pedao de papel, o qual no apenas descreve aquele mundo, mas o dota com uma realidade que todos ns aceitamos22.

    21 WOOD, Denis. The Power of Maps. New York: Guilford, 1992. p.4

    22 WOOD, Denis. The Power of Maps. New York: Guilford, 1992. p.4

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    Assim, os mapas que sobraram e as notcias que temos de outros perdidos nos mostram no apenas uma histria. dessa realidade produzida e, ainda mais, aceita por todos ns que preciso tratar. E isso inclui os modos histricos de sua produo, que no se reduzem tecnologia, mas que expressam interesses econmicos e polticos, abrindo uma janela para o passado, para usar as palavras de Silberman23.

    No entanto, ao longo da histria da cartografia, a questo tcnica parece prevalecer, a partir mesmo da questo de como representar o globo terrestre em um plano. Nessa circunstncia, o problema tcnico se aproxima da arte, na melhor tradio grega da techn o desenho, a pintura e a cartografia necessitam de artes para representar o mundo tridimensional em duas dimenses. E isto porque, como afirma Turchi, o mapa nos mostra, concisamente, algo que ningum jamais viu. Foi preciso, portanto, arte para transformar uma superfcie curva e irregular numa superfcie plana, para tornar possvel ver um continente inteiro, as fronteiras polticas dos estados, ou os nomes dos lugares. Segundo Turchi, as cores da terra foram cuidadosamente selecionadas para criar um esquema matiz de elevao. Esta imagem clara , ento, uma representao artstica de certas caractersticas naturais e polticas. uma construo intelectual24.

    Essa construo intelectual transparece na cartografia urbana de vrias formas, conforme os diferentes mapas. Neles podemos ver a cidade como um todo, muitas vezes abstrada do seu contexto geogrfico. Vemos os nomes de ruas, praas e bairros, a demarcao de suas fronteiras e, em alguns casos, suas edificaes.

    Da no se poder separar arte de cartografia. Alis, aspectos significativos da cartografia, como o desenho ornamental e o letreiro, sempre estiveram relacionados a desenvolvimentos grficos e artstico-culturais. Essa relao, que se estabeleceu ao longo da histria tanto da cartografia como da arte, tem a ver com as relaes estabelecidas historicamente entre arte e cincia, arte e tecnologia. A arte da cartografia sublinha a complexa mescla de arte e cincia que pode ser encontrada no mapa e no fazer mapas. Os desenvolvimentos, na histria da cartografia, no reconhecem nenhuma demarcao histrica ou artstica entre o ornamental e o cientfico, mas incorporam, ao longo do tempo, culturas e realizaes tcnicas passadas. Pode-se ainda observar o papel do artista no fazer mapas, o impulso cartogrfico no artista, o carter iconogrfico dos mapas e as fontes do desenvolvimento de alguns elementos cartogrficos como a cor, o letreiro e os smbolos.

    Considerados como documentos cientficos, os mapas so vistos e supostos como objetivos e neutros. J quando tomados como objetos estticos, eles so conformados por

    23 SILBERMAN, Robert B. Maps and Art: The pleasure and power of worldviews. In: SILBERMAN, Robert Bruce.

    World Views: maps and art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. p.27

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    vrias escolhas formais, incorporando, assim, valores culturais e crenas polticas ao figurarem e reconfigurarem o espao. E isto porque a arte e a cartografia inventam e do cincia dos espaos, ao produzirem o mundo e seus lugares. Ou seja: interpretam e arquitetam, sua maneira, o espao.

    Tradicionalmente, os mapas cativam por sua concepo artstica ou por suas bases tcnicas, mas o fascnio torna-se maior quando as duas coisas so levadas em conta ao mesmo tempo, aumentando ainda mais a fora com que revelam universos culturais em constante transformao e conflito. Os mapas responderiam, assim, necessidade de descrever, entender e controlar o mundo.

    Para Yi-Fu Tuan, a fuso arte/tcnica tornada possvel pelo material. Nas suas palavras,

    mapas desenhados na areia, apenas para responder uma questo prtica, tem muito pouco ou nenhum valor artstico. No entanto, to logo so desenhados em um material mais durvel barro, madeira, papiro, ou papel o impulso artstico encontra expresso. como se os seres humanos fossem incapazes de inscrever linhas, ngulos, quadrados e crculos sem serem engolfados na esttica de configurao e design. Este impulso ainda mais poderoso quando a cor, a representao pictrica da topografia e os traos feitos pelo homem so adicionados 25.

    Trata-se, ento, para este autor, de adicionar arte tcnica. E no de admirar sua tentativa de juntar elementos que foram, historicamente, separados. Desde que essa separao foi definida, a grande maioria dos autores tem se dedicado a estabelecer uma ponte entre esses dois opostos. A tradio de pensamento ocidental tratou, primeiro, de separar arte e tcnica como dois plos opostos. Estabelecida essa separao como verdadeira, tratou-se, ento, de tentar unir o que foi separado e definido como uma oposio. Seja adicionando um plo ao outro, como o faz ingenuamente Yi-Fu-Tuan, seja pela sofisticao de um movimento dialtico, como fazem os marxistas. Em todos os casos, a tentativa tem se mostrado infrutfera, ainda que tenha produzido inmeros efeitos nas prticas de pensar e fazer mapas.

    No cerne dessa questo encontra-se, sem dvida, o problema da representao. Como bem salienta Christian Jacob, a histria da cartografia

    (...) no pode fazer economia de uma questo fundamental: porque recorremos representao grfica do espao? As respostas variam

    24 TURCHI, Peter. Maps of the imagination: the writer as a cartographer. San Antonio: Trinity University Press,

    2004. p.85. 25

    TUAN, Yi-Fu. Maps and art: identity and utopia. In: SILBERMAN, Robert Bruce. World views: maps & art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. p.11.

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    segundo as culturas e as sociedades, mas no poderiam se reduzir somente s finalidades prticas a viagem, o ponto de referncia, a gesto territorial26.

    Em sua concepo, o mapa, essa imagem/representao,

    o traado cartogrfico um gesto performtico que cria o espao mais do que o representa. Ele elabora um novo objeto intelectual onde os significados, os efeitos cognitivos e os usos potenciais no resultam somente da adio das informaes locais, das medidas, das marcas de referncia empricas mobilizadas em sua gnese. As modalidades de apropriao visual e as operaes intelectuais que constroem os significados do mapa no se reduzem a uma gramtica geral da percepo dos signos, mas se apiam em categorias culturais, em esquemas de aprendizado e de semantizao fortemente contextualizados, em campos de saberes e crenas sobre a materialidade e a finitude do mundo e, mais fundamentalmente, na atitude do esprito humano de dominar e modelar este mundo27.

    Concluindo o seu raciocnio, Christian Jacob afirma que:

    O mapa , deste modo, uma interface. Por um lado, um objeto simblico que gera um sentimento de reconhecimento e de pertencimento entre os que dominam os cdigos e, por outro lado, uma tela sobre a qual se projeta a enciclopdia de uma sociedade, sua viso de mundo, sua memria sua axiologia e sua prpria organizao28.

    , pois, dessas diversas enciclopdias sociais que se pretende, neste capitulo, mostrar um panorama.

    2.1 PR-HISTRIA, EGITO E MESOPOTMIA

    A moderna antropologia supe, segundo Morales, que as idias geomtricas de espao e sua representao podem ter surgido na Idade da Pedra29. Os povos da Pr-Histria no possuam escrita, mas registravam em suas pinturas e gravuras cenas do seu

    26 JACOB, Christian. Quand les Cartes Rflchissent. Espaces Temps Les Cahiers, Paris, n. 62/63, 1996. p.37.

    27 JACOB, Christian. Quand les Cartes Rflchissent. Espaces Temps Les Cahiers, Paris, n. 62/63, 1996. p.37.

    28 JACOB, Christian. Quand les Cartes Rflchissent. Espaces Temps Les Cahiers, Paris, n. 62/63, 1996. p.37.

    29 MORALES, Mrio Ruiz. Ensayo Historico de Cartografia Urbana. Mapping Interactivo, Madrid, n.71, jul./ago.

    2001.Disponible en: . Acesso em: 10 mar. 2009.

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    cotidiano. Geralmente o tema das cenas mais representado o da caa. Vrias dessas pinturas mostram uma preocupao em mostrar relaes de distncia e profundidade. Pode-se encontrar tambm cenas que tentam mostrar o tempo atravs de uma sucesso de acontecimentos, e desenhos que tentam mostrar o espao. Miller30 e Morales31 concordam que o mapa de cidade mais antigo conhecido o plano mural de atal-Hyk, datado de cerca de 6200 a.C., encontrado na provncia de Konya, a oeste da Turquia. Como descreve Morales, no muro aparece uma planta de um ncleo urbano do neoltico (provavelmente o mesmo atal-Hyk) e figura, tambm, por trs das vivendas, o perfil de uma montanha com dois promontrios, um dos quais associado por Mellaart32 com o vulco Hasan-Dag em erupo33. Em relao a esta ltima imagem, h uma discusso se a figura interpretada por Mellaart como um vulco no seria um leopardo. Parece ser incontroverso, contudo, que as formas colocadas junto ao vulco/leopardo so muito semelhantes ao traado da cidade neoltica de atal-Hyk (fig.1), com suas casas de formas retangulares colocadas lado a lado. Outra imagem cartogrfica da pr-histria, datada, segundo Morales, entre os sculos XV e XX a.C., a Pedra de Bedolina (fig.2) ou petroglifo, localizada em Capo di Ponte, Itlia. Hipteses existem de que o mapa desta pedra seja a representao da paisagem circundante.

    Fig.1- Imagem da planta de atal-Hyk Fig.2- Imagem esquemtica da Pedra de Bedolina

    Segue-se, pela cronologia, o antigo imprio do Egito (2780-2380 a.C.), cujos conhecimentos geomtricos so visveis j de partida pelas pirmides que construram. Devido s cheias do Nilo, os egpcios desenvolveram fortemente a agrimensura (fig.3), pois a cada nova inundao eles eram obrigados a reconstituir os limites dos campos, sendo necessrio para tanto registros cadastrais, que so registros cartogrficos. Foram os

    30 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000.

    31 MORALES, Mrio Ruiz. Ensayo Historico de Cartografia Urbana. Mapping Interactivo, Madrid, n.71, jul./ago.

    2001.Disponible en: . Acesso em: 10 mar. 2009. 32

    Trata-se do arquelogo britnico J. Mellaart, que em 1961 abriu um canteiro de escavao em atal-Hyk e em 1967 publica um livro sobre os seus achados.

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    egpcios que fizeram o que considerado o primeiro mapa topogrfico-geolgico conhecido, o Papiro de Turin (fig.4). Este papiro mostra os caminhos de acesso a minas de ouro da Nbia.

    Fig.3 Mural egpcio com imagens de agrimensores Fig. 4 Papiro de Turin

    J a Mesopotmia nos legou vrias tabuletas de barro, com amostras de sua capacidade cartogrfica. Eles nos deixaram no s representaes de cidades, como tambm do territrio por eles conhecido e um mapa-mndi (fig.5). Uma delas, descoberta na cidade de Nuzi (Ga-Sur) uma representao que mostra a Babilnia junto ao rio Eufrates, e trs faixas que representam os mares que separam os pases. Segundo a Histria da Cartografia34, ela nos d a idia que os babilnios tinham do mundo, concebido como uma massa discoidal, cujo contorno define o mar, sob a abbada celeste. Indo alm na interpretao, diz-se que o grande historiador Bagrow mostrou a semelhana desta concepo com a viso cosmolgica do esquim. Em relao cartografia urbana, pode-se ver um plano (18x21cm.) de cidade de Nippur (fig.6), de cerca de 2000 a.C. e considerado o mais antigo dos planos desenhados em escala. Neste plano, pode-se identificar, pelo menos, o rio Eufrates, o templo de Enlil e as muralhas da cidade.

    Fig. 5 mapa-mndi babilnico Fig. 6 Plano de Nippur

    33 MORALES, Mrio Ruiz. Ensayo Historico de Cartografia Urbana. Mapping Interactivo, Madrid, n.71, jul./ago.

    2001.Disponible en: . Acesso em: 10 mar. 2009. p.1 34

    HISTRIA da Cartografia. Rio de Janeiro: Codex, 1967. Sem autor, apresentao de Jos Aguilar. p.16.

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    2.2 GRCIA

    Da Antiga Grcia no se possui evidncias cartogrficas diretas, mas sim grandes avanos sobre o conhecimento geogrfico da Terra e o desenvolvimento matemtico necessrio para a sua representao. Os gregos, segundo Morales, deram um impulso decisivo para o progresso da cincia ao assentar as bases para o posterior desenvolvimento cartogrfico, com concepes muito mais profundas, abstratas e racionais que todas as precedentes35. Cabe citar a evoluo das idias sobre a forma da Terra desde Anaximandro e Hecateu de Mileto (sc. VI a.C.) at Claudio Ptolomeu (sc. II) passando por Herdoto (sc. V a.C.), Demcrito, Plato, Aristteles (sc. IV a.C.), Dicearco (sc. III a.C.), Eraststenes (sc. III a.C.) e Estrabo (sc. I a.C.). Deve-se aos gregos a afirmao de que a Terra redonda. No livro Histria da Cartografia Homero (sc. VIII e IX a.C.) tambm citado, levando-se em conta que o poeta da Ilada e da Odissia no apenas mencionava em seus poemas os diferentes lugares onde a ao transcorria como tambm descrevia sua concepo do que seria a forma da Terra.

    A tradio grega, conforme Jacob (1996), atribua a Anaximandro de Mileto (fig.7), discpulo de Tales de Mileto, o primeiro mapa da terra habitada. Fala-se aqui da tradio grega, pois, de sua obra, ns s possumos fragmentos, vestgios esparsos de um tratado Sobre a Natureza, recortados, reescritos e interpretados pelos estratos da tradio doxogrfica antiga: a partir da escola de Aristteles, com efeito, filsofos e fsicos fazem do reexame da tradio um dos instrumentos de sua prpria reflexo36. Para Jacob, o pensamento de Anaximandro analgico e metafrico, pois, ao definir como seria a Terra, ele a descreve como um volume cilndrico semelhante a um pedao de coluna, onde a altura igual a um tero de sua largura. O importante que com essa descrio ele tornou a Terra um objeto mensurvel. O mapa de Anaximandro salienta as mesmas operaes mentais que a figura e a metfora. No se trata mais de uma imagem mental ou discursiva, mas de uma projeo grfica sobre uma tabuleta. O mapa se inscreve em um processo global de modelizao do cosmos, (...)37.

    Em relao a mapas de cidades, Miller afirma que evidncia de planejamento ortogonal encontrada nas cidades gregas da sia Menor, onde um padro de grelha

    35 MORALES, Mrio Ruiz. Ensayo Historico de Cartografia Urbana. Mapping Interactivo, Madrid, n.71, jul./ago.

    2001.Disponible en: . Acesso em: 10 mar. 2009. 36

    JACOB, Christian. Quand les Cartes Rflchissent. Espaces Temps Les Cahiers, Paris, n. 62/63, 1996. p.38. 37

    JACOB, Christian. Quand les Cartes Rflchissent. Espaces Temps Les Cahiers, Paris, n. 62/63, 1996. p.41

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    (grade) usado como meio de levantamento topogrfico um mtodo seguidamente atribudo a Hippodamus de Mileto, em 479 a.C.38.

    Hecateu teria includo em seu tratado Priplos, de acordo com testemunho de Herdoto, um mapa que o segundo dos conhecidos no mundo heleno39.

    Fig. 7 Reconstituio do modelo de Homero e do de Anaximandro

    Fig. 8 Reconstituio do mapa de Dicearco

    Herdoto e Estrabo, historiadores em suas respectivas pocas, nos deram as notcias desses primeiros mapas. Dicearco (fig.8)

    foi autor de uma clebre carta e criador de um sistema simplificado de coordenadas geogrficas mediante o traado de uma linha diretriz, eqidistante do sul e do norte, divisria da superfcie da Terra em uma parte setentrional e outra meridional, aproximadamente iguais. Esta linha, qual Dicearco chamou diafragma e que se alongava de Oriente a Ocidente, passava por Cdiz, Siclia, o Peloponeso e a ilha de Rodes; e a outra perpendicular, de Norte a Sul, cruzava a Terra altura desta ltima. Ambas estavam divididas em estdios, e a dimenso da circunferncia total terrestre calculada em 300.00040.

    Eraststenes (fig.9) mediu a longitude da Terra com notvel preciso e foi ele quem desenvolveu o sistema de paralelos e meridianos como referncia para a medida de pontos sobre a superfcie terrestre.

    38 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 9.

    39 HISTRIA da Cartografia. Rio de Janeiro: Codex, 1967. Sem autor, apresentao de Jos Aguilar. p.24.

    40 HISTRIA da Cartografia. Rio de Janeiro: Codex, 1967. Sem autor, apresentao de Jos Aguilar. p.24.

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    Fig. 9 Reconstituio do mapa de Eraststenes Fig. 10 Reconstituio de mapa de Ptolomeu,

    de manuscrito

    Claudio Ptolomeu foi um pensador grego reconhecido pelos seus trabalhos em astrologia, astronomia e cartografia (onde ficou conhecido por ser um dos primeiros cartgrafos, se no o primeiro, a usar escala em mapas). Em sua obra Planisphaerium ele estava preocupado com a projeo estereogrfica da esfera da Terra em um plano. Seu maior trabalho Geografhia, em oito livros, tenta mapear o mundo conhecido dando coordenadas a mais de 8000 lugares e contribuindo com o sistema de latitude e longitude. Nesta obra, ele apresenta sua maneira de resolver a representao da terra em um plano. Os mapas de Ptolomeu (fig.10) eram geralmente fiis viso de mundo do grande gegrafo, perpetuando tanto seus acertos quanto seus erros. Seu engano mais significativo foi o clculo errado do comprimento de um grau de longitude, o que tornou a Eursia mais extensa. Considerado o pai da Cartografia, mapas seus so feitos baseado em seu livro. Viveu em Alexandria e dirigiu a famosa biblioteca de 150 a 127 a.C.

    2.3 ROMA

    Dos Romanos, alguma cartografia conservada. De carter eminentemente pragmtico, eles abandonaram o pensamento grego e no se preocuparam com a questo da representao da Terra por projees mais adequadas. Eles trasladaram as terras ao plano, tal como a descobriram em sua falsa ptica, arriscando mesmo a situar os povos em lugares errados, embora assinalando com exatido as distncias entre eles41. Vrios de seus mapas eram o que se convenciona chamar Itinerrios. H os numricos, que eram

    41 HISTRIA da Cartografia. Rio de Janeiro: Codex, 1967. Sem autor, apresentao de Jos Aguilar. p.37.

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    listas de lugares com as distncias entre eles, e os grficos. O mais famoso o itinerrio chamado Tabula Peutingeriana (fig.11), que atribudo a Cartorius que o teria construdo no sc. IV e da qual nos chegou uma cpia feita no sc. XII ou XIII. De origem militar, temos os chamados Notitia dignitatum (fig.12), que representavam planos de encraves urbanos.

    Fig. 11 Imagem da Tabula Peutingeriana Fig. 12 Imagem da Notitia dignitatum

    No que concerne s cidades,

    sob o comando romano, o mapeamento foi designado aos topgrafos da terra (agrimensores), que dividiam a terra por meio de centuriaes (baseado em um sistema de quarteires; em cidades, estes quarteires eram chamados insulae, ou quadras), uma forma estabelecida atravs do imprio, como indicado em tratados Latinos antigos42.

    Uma das plantas de cidade desta poca que apresenta este traado a famosa Forma Urbis Romae (fig.13), uma planta de Roma da qual se conhecem fragmentos, que mostram edificaes importantes:

    Embora desenhado em escala, algumas inconsistncias aparecem, algumas devidas a caractersticas particulares tais como arcos de aquedutos, que so mostrados em elevao mais do que em plano. Assim, os romanos juntaram-se tradio pictrica do fazer mapas para fazer mapas de levantamento topogrfico desenhados em escala. Como outros projetos de edifcios monumentais e de reformas institucionais, este mapa em grande escala, e outros anteriores gravados sob Augustus e Vespasiano, tinha a inteno de comunicar de outra forma a grandeza e a glria do Imprio Romano43.

    42 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 9

    43 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 9.

  • 33

    Fig. 13 Forma Urbis Romae (fragmento) Fig. 14 Reconstituio do mapa de Agrippa

    Julio Csar teria encarregado feitura de um mapa do Imprio, que foi iniciado pelo General Agrippa (fig.14). O mapa foi colocado em um prtico que se ergueu em sua honra por iniciativa de sua irm Vipsania Polla, que o completou aps a morte do general.

    2.4 CHINA

    De acordo com Thrower, os mapas chineses esto entre os mais antigos

    O primeiro levantamento topogrfico da China (Y Kung) contemporneo com o primeiro relatrio de atividade cartogrfica grega, a de Anaximandro (VI sc. B.C.). (...)Nos sculos seguintes, h notveis paralelos entre a literatura geogrfica chinesa e aquela da Grcia e do Oeste latino, (especialmente escritores Romanos tardios). (...) Os mapas foram largamente utilizados na dinastia Han (207 B.C. 220 A.C.) por governantes, militares e eruditos. Aparentemente o grid retangular (um sistema de coordenadas de quadrados iguais), que bsico para grande parte da cartografia cientifica na China, foi formalmente introduzido pelo astrnomo Chan Heng, um contemporneo de Ptolomeu44.

    44 THROWER, Norman J.W. Maps & Civilization: cartography in culture and Society. 2. ed. Chicago: The

    University of Chicago Press, 1999. p. 27-28.

  • 34

    Para ele, foi durante a dinastia Chin (265-420) que se estabelecero as bases para a cartografia oficial chinesa. Com a expanso posterior do territrio chins, fizeram-se mapas em diferentes escalas45.

    Steinhardt relata que o mais antigo plano de cidade chinesa sobrevive numa placa de bronze incrustada com ouro e prata descoberta na dcada de 1970 numa tumba de um Rei Zhongshan chamado Cud no moderno Condado de Pingshan, Hebei46 (fig.15). Pela forma como foi descoberto, estima-se que o mapa tenha sido feito na segunda ultima dcada do sc. 400 BC.47.

    Fig. 15 Desenho do mapa com inscrio em chins moderno.

    De acordo com Thrower os trabalhos cartogrficos chineses, ao longo do tempo, podem ser

    Exemplificados por um mapa da China datado do ano 1137 (fig. 16). O mapa em questo tem uma malha retangular com uma escala de mil li (cerca de 36 milhas) para cada quadrado. (...) O mapa foi esculpido em pedra. (...) Outro marco da cartografia chinesa, aproximadamente do mesmo perodo o primeiro mapa impresso (fig.17) conhecido feito cerca de 1155, que predecessor do primeiro da Europa em trs sculos. (...) O ponto culminante da cartografia chinesa nativa se deve a Chu Ssu-Pen (1273-1337) e seus sucessores, cuja tradio cartogrfica se estendeu at o sc. XIX. Os cartgrafos no tempo de Chu Ssu-Pen conheciam os

    45 THROWER, Norman J.W. Maps & Civilization: cartography in culture and Society. 2. ed. Chicago: The

    University of Chicago Press, 1999. p. 30-33. 46

    STEINHARDT, Nancy Shatzman. Mapping the Cinese City: The Image and the Reality. In: BUISSERET, David (Ed.). Envisioning the City: six studies in urban Cartography. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. p.11. 47

    STEINHARDT, Nancy Shatzman. Mapping the Cinese City: The Image and the Reality. In: BUISSERET, David (Ed.). Envisioning the City: six studies in urban Cartography. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. p.11.

  • 35

    princpios de geometria e possuam instrumentos que facilitavam suas atividades cartogrficas48.

    A partir do sc. XVI, com a chegada dos jesutas sia, os registros cartogrficos da regio estiveram disposio dos europeus e foram incorporados em seus mapas regionais e mundiais49.

    Fig. 16 Mapa China 1137 Fig. 17 Mapa impresso chins de 1155

    2.5 A IDADE MDIA

    Na Europa e no mundo islmico, durante o perodo correspondente Idade Mdia no mundo ocidental, o conhecimento geogrfico50 continuou se desenvolvendo, assim como a tcnica cartogrfica. Do legado bizantino, cabe citar o mosaico de Madaba (cerca de 565), que contm planos de cidades, sendo um deles a cidade de Jerusalm (fig. 18). O mundo islmico foi afetado pela traduo para o rabe da obra de Ptolomeu, sendo o nome de Al Idrisi, autor da Tabula Rogeriana do sculo XII, bastante conhecido.

    48 THROWER, Norman J.W. Maps & Civilization: cartography in culture and Society. 2. ed. Chicago: The

    University of Chicago Press, 1999. p. 30-33. 49

    THROWER, Norman J.W. Maps & Civilization: cartography in culture and Society. 2. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1999. p. 38. 50

    Sendo que, para vrios autores, entre eles Morales (2006), na Europa teria havido um atraso, j que inclusive a esfericidade da Terra foi considerada hertica, por no se adequar aos ensinamentos da Bblia.

  • 36

    Fig. 18 Jerusalm no mosaico de Madaba.

    A viso cosmolgica medieval vinculada a uma viso crist do Universo, regida pela Bblia, e que em funo da vida de Cristo, concebe Jerusalm como o centro da Terra. Desta poca so originrios os mapas do tipo T-O. O primeiro destes mapas (T e O) se atribui a Isidoro de Sevilla (fig.19) no sculo VII, do qual no se conhece o original, mas sim cpias posteriores. Nestes mapas (fig.20) o O a circunferncia que envolve todo o mapa e representa a Terra cercada pelo mar. O T representava os trs rios que saam do paraso terreno e dividia, por sua vez, a terra nos trs continentes conhecidos: Europa, sia e frica. Grande parte desses mapas tinha como centro a cidade de Jerusalm. Sua expresso mxima so os mapas-mndi de Ebstorf e Hereford, ambos do final do sc. XIII.

    Fig. 19 Mapa T-O de Isidoro de Sevilla Fig. 20 Cosmologia T-O Mapa de Metz

    O mapa de Hereford (fig.21) est na Catedral de Hereford, na Inglaterra. Produzido entre 1290 e 1300, o mapa medieval ingls mais velho a ter sobrevivido e o maior, mais detalhado e mais perfeito mapa medieval preservado no mundo. Nele, Jerusalm est localizada no centro do mapa (imagem de Jesus), o leste est no topo e o norte esquerda. Suas legendas contam no s os nomes de cidades, rios, montanhas e ilhas, mas tambm contm dados cosmolgicos, zoolgicos, histricos, teolgicos e etnogrficos.

  • 37

    Existiram tambm mapas de itinerrios, como o de Matthew Paris (fig.22), de cerca de 1252, um mapa itinerrio de Londres a Jerusalm. Neste mapa h uma representao de Londres (fig. 23) que, de acordo com uma tradio pictrica anterior, desenhada como uma cidade murada, mas distinguida por alguns marcos como a catedral de St. Paul e a Tower Bridge. Essa questo da distino atravs dos marcos importante ser mencionada, pois, em representaes anteriores, as cidades eram mostradas de forma indistinta: eram representadas com as muralhas, o castelo e a Igreja, mas o mesmo desenho era repetido para diferentes cidades.

    Fig. 21 Mapa de Hereford Fig. 22 Itinerrio de Matthew Paris

    Fig. 23 Londres no Itinerrio de Matthew Paris

    Um importante desenvolvimento desta poca foram os mapas portolanos, promovidos pelos avanos tcnicos da navegao martima, seu objetivo era guiar os navegadores de porto a porto. Pelo sculo XIV, os exploradores careciam de orientao para se deslocarem num mundo pouco conhecido e cada vez mais disputado. Por isso, as cartas martimas portulanos passaram a ter um carter prtico, pois seu objetivo principal era servir navegao. As principais escolas foram italiana e a espanhola (catal

  • 38

    e de Maiorca). Dessa forma, eram desenhados com muitas linhas de rumo e poucas representaes geogrficas - basicamente o litoral e os pontos do interior que poderiam ser vistos do mar, e servir como referncia aos navegantes que raramente perdiam a costa de vista. As cartas portulanos no possuam coordenadas geogrficas, mas retas direcionais (linhas de rumo) que partiam de uma rosa dos ventos principal e se entrecruzavam com linhas de outras rosas dispostas ao redor daquela. Este traado permitia calcular os pontos de diferentes rotas com o auxlio da bssola, uma novidade tecnolgica da poca. Nos portulanos, freqentemente o Norte aparece direita e o Oeste na parte superior. Mesmo no possuindo marcaes de latitude e longitude, os portulanos eram eficientes cartas de navegao. Sua atualizao era contnua, a partir de informaes obtidas dos dirios de bordo e pela determinao de distncias e posies atravs da leitura da bssola. Naquela poca, cada navio levava um cartgrafo para atualizao e aperfeioamento dos portulanos com a feitura do traado dos novos lugares descobertos, e para orientao pessoal do capito. Dois exemplos interessantes (fig.24 e 25) so a Carta Pisana (c. 1290) e o Atlas Catalo (1375), este ltimo feito por Cresques Abraham. Os rabes tambm fizeram mapas Portulanos. No imprio Otomano, o capito Piri Reis (1470-1554) foi um cartgrafo que fez mapas portulanos. Em alguns mapas Portulanos podem-se ver representaes de cidades, principalmente de cidades costeiras (fig.26 e 27).

    Fig. 24 Carta Pisana Fig. 25 Atlas Catalo

    Fig. 26 Damasco no portulano de Petrus Roselli (1462) Fig. 27 Veneza no Mapa de Cantino (1502)

  • 39

    Entre cartgrafos e artistas se estabeleceram, ao longo da histria da cartografia, uma srie de relaes. No comeo, eram artistas que tambm trabalhavam com a cartografia. Os primeiros desses artistas/cartgrafos, segundo Buisseret, foram os irmos Limbourgs e os irmos Van Eick. Supe-se que os irmos Limbourgs (Paul, Hermann e Jean) nasceram entre 1370 e 1380 e teriam morrido por volta de 1416. Teriam vindo de Nimwegen (hoje Flandres), mas so geralmente referidos como alemes. O que os distingue o fato de terem trabalhado para Jean, Duc de Berry (1340-1416), e feito sob sua encomenda o livro Trs Riches Heures. Este manuscrito um clssico exemplo do Livro das Horas medieval, uma coleo de textos litrgicos para cada hora do dia. Sua estrutura continha um calendrio de estaes e, em cada ms, um castelo foi retratado contra um fundo de atividade rural. Mas o que impressiona a fidelidade com que os edifcios so retratados. Como afirma Buisseret, cada castelo nas sries representado com tal fidelidade que parece como se os Limbourgs estivessem tentando nos oferecer guias topogrficos destes grandes edifcios51. Nessas figuras, podemos reconhecer entre outros o Palais de la Cit Paris (junho), o Castelo de Saumur (fig.28) que ilustra o ms de setembro, o Louvre (fig.29) residncia real em Paris (outubro) e o Castelo de Vincennes (dezembro).

    Fig. 28 Limbourgs setembro Fig. 29 Limbourgs outubro

    Vrios exemplos da obra dos irmos Limbourgs ilustram bem esse estilo inovador e suas ligaes com a cartografia. Na parte do Livro de Horas que trata do Ciclo de Ofcios e

    51 BUISSERET, David. The Mapmakers Quest: depicting New Worlds in Renaissance Europe. Oxford: Oxford

    University Press, 2003. p. 30.

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    de Santos, So Miguel retratado em sua luta com o drago, no alto da Abadia do Mont Saint Michel (fig.30), tambm meticulosamente retratado. Um exemplo importante o Plano de Roma (fig.35) folio 141 v do Livro de Horas , que no seria uma imagem muito comum neste tipo de livro. Segundo Buisseret, o Duc de Berry possua vrios mappae mundi, nos quais os irmos talvez tenham se inspirado neste Plano de Roma, os principais monumentos da cidade podem ser identificados, tendo sido dispostos segundo sua distribuio geogrfica.

    Ainda conforme Buisseret,

    o trabalho dos Limbourgs mantm uma relao prxima com o dos irmos Van Eick. (...). Jan Van Eick (1390 1441) era tambm um mestre do realismo topogrfico, produzindo pinturas (fig.31) cujos detalhes parecem nos levar direto ao mundo dos Pases Baixos do incio do sculo quinze. (...). Mais notavelmente ainda, ele teria pintado um globo terrestre, que o seu quase contemporneo, o historiador Bartolomeo Facio, descreve como o mais perfeito trabalho do nosso tempo, no qual se pode distinguir no apenas os lugares e os continentes, mas tambm as distncias que os separam. Se realmente o globo era trabalho de Van Eick, uma demonstrao a mais da forma como um pintor reconhecido estava simultaneamente vendo o mundo em termos cartogrficos.52

    Fig. 30 Limbourgs Mont Saint Michel Fig. 31 Van Eick A virgem do Chanceler Rolin

    Pode-se dizer, portanto, que quase no havia distino entre o fazer artstico e o fazer cartogrfico desses artistas, na medida mesma em que se capta, nesses

    52 BUISSERET, David. The Mapmakers Quest: depicting New Worlds in Renaissance Europe. Oxford: Oxford

    University Press, 2003.p. 31-32.

  • 41

    artistas/cartgrafos, uma mudana na maneira de desenhar e apreender o espao de uma forma prtica, experimental.

    Tambm se conservam desta poca vistas e plantas de cidades. Segundo Miller53:

    Durante a Idade Mdia, encontramos um legado considervel de mapas de cidade como vinhetas em manuscritos, mapas das Terras Sagradas no tempo das cruzadas e mapas de cidades italianas tanto celebrativos como territoriais, ligados ao revivescimento da vida urbana Romana nas comunidades do medieval tardio. Outros mapas eram de forma laudatria, tais como a vista do sculo nono de Verona, que pode estar ligada ao poema mtrico Versus de Verona, um panegrico cidade. Homenagens (encmia) em elogio a cidades italianas, datadas do sculo XII, equiparam-se a mapas de cidades contemporneos. Exemplos incluem mapas de Milo em manuscritos, um afresco na parede de uma capela em Santo Antnio de Pdua, e um mapa ilustrando uma louvao popular cvica como a Mirabilia Urbis Romae, 1143.

    de se destacar que, nesta poca, a cartografia estava quase que restrita aos detentores de poder, aos homens cultos e aos navegantes. Uma das razes para isso a inexistncia da impresso, o que tornava difcil a divulgao de livros e mapas devido s haver poucas cpias feitas, principalmente, pelos monges copistas.

    Em suma, a tradio historiogrfica da cartografia, da pr-histria ao final da Idade Mdia, bastante descritiva, como acabamos de ver. Mas possvel ver, nessa descrio, elementos daquela enciclopdia social de que fala Christian Jacob. Assim, as pinturas pr-histricas definem uma enciclopdia da construo do imaginrio de um determinado lugar, ao constiturem um territrio de idealidades e valores coletivos. J o conhecimento matemtico do antigo Egito definiu uma enciclopdia agrimensora, com vistas a controlar e tirar proveito das enchentes do Nilo. Por sua vez, os gregos antigos criaram uma enciclopdia de conceitos abstratos para o conhecimento geogrfico da Terra, inventando-a como um objeto mensurvel. A partir da, definiram, matematicamente, a longitude e a latitude da terra, o sistema de paralelos e meridianos e usaram escalas para mapear o mundo, criando todo um processo de modelizao do cosmos. Os romanos, com interesses de conquista e dominao militares, desprezaram, nesse quesito, as invenes gregas, constituindo uma enciclopdia pragmtica feita por itinerrios numricos e grficos do plano, com efeitos nas plantas das cidades, divididas em quarteires ou quadras. A enciclopdia chinesa, por seu lado, definida pelos conhecimentos de geometria (quadrcula retangular) e pela astronomia. Mas , sobretudo o domnio dos materiais que vai

    53 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 9.

  • 42

    definir sua cartografia: o mapa em pedra de 1137 e o mapa impresso de 1155, trs sculos antes do primeiro mapa impresso europeu.

    O predomnio do Cristianismo na Idade Mdia forja uma enciclopdia que tem como centro Jerusalm, fazendo com que, nos primeiros mapas dessa poca, todos os caminhos se definissem em relao a essa cidade santa. Nos ltimos sculos da Idade Mdia, a produo de mapas se diversifica, atendendo a interesses diversos, correspondendo fragmentao existente entre burgos e entre feudos. As plantas das cidades comeam a dar relevncia a seus castelos e monumentos, para mostrar sua grandiosidade e poder, num realismo topogrfico ao qual no escapam grandes pintores da poca, como Van Eick. As cartas martimas os portulanos --, de carter eminentemente prtico, mostram-se abertas a atualizaes e acrscimos, constituindo-se em registro (prova) de descobertas de lugares e de conquista de novos territrios.

    2.6 O RENASCIMENTO

    Vrios fatores devem ser levados em considerao para explicar o desenvolvimento cartogrfico que aconteceu na Renascena. Dentre eles, podemos destacar: 1) a transmisso e a traduo da Geographia de Ptolomeu; 2) a apario da imprensa na Europa, que permitiu a difuso dos livros e posteriormente dos mapas; 3) as viagens ultramarinas levadas a cabo pelos europeus; e 4) o relaxamento dos laos que atavam o pensamento cientfico ao pensamento religioso.

    A obra de Ptolomeu chegou Itlia com a queda de Constantinopla, de onde vieram tambm outros manuscritos e documentos cientficos. Os mapas e as idias geogrficas de Ptolomeu foram, ento, redescobertos.

    Tanto Lucia Nuti quanto Naomi Miller ressaltam que uma das primeiras colees conhecidas de mapas de cidades apareceram em trs manuscritos da Geografia de Ptolomeu. Produzido em Florena, na segunda metade do sc. XV estes mapas de cidades foram anexados ao mapa do mundo e aos mapas regionais54. Como aponta Miler todos esses trs manuscritos so baseados na traduo de Jacopo dAngelo da Geografia do

    54 MILLER, Naomi. Mapping the City: Ptolemys Geography in the Renaissance. In: BUISSERET, David (Ed.).

    Envisioning the City: six studies in Urban Cartography. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. p.34.

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    grego para o latim, completada em 1406. Alm disso, compartilham o mesmo escriba, o copista francs Ugo Comelli da Mezires e o mesmo artista, Pietro del Massaio55.

    Segundo Nuti os trs manuscritos so conhecidos por o Vaticanus, o Urbinas e o Parisinus. Os dois primeiros esto guardados na Biblioteca Apostlica Vaticana e o Parisinus est na Biblioteca Nacional Francesa. Nesses manuscritos os pintores haviam inserido representaes de cidades significativas para o mundo mediterrneo, seja na poca antiga quanto na medieval: Milo (fig.32), Florena, Roma, Veneza, Constantinopla, Damasco, Jerusalm (fig.33), Alexandria e Cairo56. Estas nove cidades estavam nos trs manuscritos, no Parisinus foi acrescentada a cidade de Adrianpolis. J no Urbinas tambm com dez cidades em vez de Adrianpolis foi adicionada Volterra. Para Nuti havia nascido um modo ainda no autnomo, mas apenas como apndice a uma coleo de cartas geogrficas, o primeiro embrio, o primeiro esboo incerto de Atlas de cidades, isto , uma seqncia de representaes validas por si s, independente de um texto escrito57.

    Fig. 32 Milo, Parisinus Fig. 33 Jerusalm, Parisinus

    Com o advento da impresso em Ulm, de 1482-86, um primeiro mapa Ptolomaico foi impresso (fig.34). Nesta edio, destaca-se o mapa do mundo, onde se observa uma vontade de utilizar uma projeo cartogrfica adequada e uma grande melhoria nos detalhes geogrficos.

    55 MILLER, Naomi. Mapping the City: Ptolemys Geography in the Renaissance. In: BUISSERET, David (Ed.).

    Envisioning the City: six studies in Urban Cartography. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. p.34. 56

    NUTI, Lucia. Ritratti di Citt: Visione e memoria tra medievo e Settecento. Veneza: Marsilio, 1956. p.22. 57

    NUTI, Lucia. Ritratti di Citt: Visione e memoria tra medievo e Settecento. Veneza: Marsilio, 1956. p.23.

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    Fig. 34 Mapa do Mundo de Ptolomeu, verso impressa em Ulm em 1482-86

    importante salientar que, nesta poca, os cartgrafos continuaram a produzir mapas utilizando as tcnicas medievais, nomeadamente os mapas portulanos, convivendo com a projeo de Ptolomeu e, mais tarde, com a projeo de Mercator.

    Apesar disso e de acordo com Miller58,

    Poucos trabalhos tiveram tanto impacto na arquitetura e no planejamento urbano da Renascena como os Ten Books on Architecture de Vitruvius, redescobertos no incio do sculo quinze. Escritos na era de Augusto, o nico tratado de arquitetura sobrevivente que registra as prticas construtivas dos antigos. No Livro I, Vitruvius discute o plano da cidade, o seu stio e seu layout com muralhas circulares fechadas e torres, desenhadas estritamente para propsitos defensivos. Para os arquitetos da Renascena, a sua forma geomtrica refletia o ideal Platnico da harmonia e da perfeio csmica. Mas de longe o maior mpeto na troca de mapas deu-se com a inveno da imprensa, que permitiu uma distribuio estendida de trabalhos at ento raros.

    Buisseret mostra os avanos dessa cartografia e sua relao com os artistas em diversos pontos da Europa. Para este autor, a questo da emergncia da produo dos mapas relacionada com o que os historiadores da arte h muito tempo apontam:

    (...) houve uma grande mudana estilstica na arte ocidental Europia entre 1400 e 1500. Quer a chamem de advento do novo realismo ou a chegada da Renascena, ou mesmo a idade das descobertas, todos concordam que um grande vento de mudana soprou ao longo do sculo quinze. O que

    58 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 10.

  • 45

    no foi to bem compreendido que este novo modo de ver o mundo aplicava-se tambm produo de mapas, onde novos estilos surgiram, desenvolvidos por pintores h muito tempo reconhecidos como inovadores. Era como se a pintura e o mapeamento fossem simplesmente meios diferentes de representar artisticamente a mesma realidade, de um novo ponto de vista59.

    Reforando essas idias, Silberman, por sua vez, afirma que: uma histria da arte poderia ser escrita, ao se traar a histria da pintura em relao com a histria dos mapas. No Ocidente, a histria da arte da renascena at a ascenso do modernismo parece realmente correr paralela histria da cartografia60.

    O florentino Leon Battista Alberti (1404 1472) que, alm de arquiteto, foi pintor, escultor, autor, poeta, dramaturgo, matemtico e filsofo, foi o autor da primeira anlise cientifica da perspectiva, no tratado De Pictura, que marcou uma etapa decisiva na histria da arte renascentista ao passar da prtica experimental teorizao dos princpios da perspectiva. A inveno da perspectiva por Brunelleschi, no incio do sculo XV, e sua exposio por Alberti possibilitaram este grande salto para uma cartografia mais rigorosamente metodolgica, uma cartografia preocupada com relaes de proporo, isto , com desenhos mensurveis61. Em sua obra Descriptio Urbis Romae, Alberti fez o primeiro levantamento da cidade de Roma (fig.36) e seus monumentos, e props uma soluo matematicamente baseada para delinear a cidade.

    Fig. 35 Plano de Roma - Limbourgs Fig. 36 Plano de Roma segundo Alberti

    59 MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 29.

    60 SILBERMAN, Robert Bruce. Maps and art: the pleasures and power of worldviews. In: SILBERMAN, Robert

    Bruce. World views: Maps & art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. p.35. 61

    MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 10.

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    O prprio mapa de Alberti no sobreviveu, mas foi feita uma reconstruo, no sculo XIX, com base nas suas notas, que deram um resultado altamente acurado (Fig.36). Em cartografia, como tambm na pintura, Alberti descreveu, com efeito, tcnicas que iriam servir a muitos fazedores de mapas e artistas nos sculos que se seguiram62.

    Leonardo da Vinci (1452 1519), assim como Alberti, dedicou-se tambm cartografia, delineando grandes reas de territrio tanto planimetricamente quanto em termos de vista de olho de pssaro. No entanto, seu estudo para a renovao de Milo (fig.37), de 1508, pouco conhecido.

    O sketch grosseiramente circular, em cima, mostra trs quartos do permetro da cidade, e a rpida vista de olho de pssaro, em baixo, posiciona os principais edifcios, incluindo o castelo e o leprosrio (hospital para doenas contagiosas). Leonardo usou claramente ambos os ngulos ao formular sua imagem da cidade e a mudana a ser feita. Produziu, tambm, uma vista puramente planimtrica (rigorosamente vertical) de Imola, em 1502, num celebrado grande esforo para o seu tempo. Muitas dcadas seriam necessrias antes que muitos planejadores de cidades pudessem segui-lo, a fim de mostrar, por exemplo, todas as feies de uma cidade desta maneira63.

    A importncia do Plano de Imola (fig.38) na histria da cartografia suscitou uma srie de comentrios, entre eles o de Miller:

    Um mapa militar estritamente desenhado em escala, o Plano de Imola o primeiro de tais mapas desde a era Romana, muito embora admita tambm convenes medievais, tais como a direo dos ventos. Colocado no interior de um crculo, com uma circunferncia marcada por 64 graus, o mapa de Leonardo presta homenagem aos princpios cosmolgicos de uma antiga era, ao mesmo tempo em que efetua uma revoluo no mapeamento. Neste plano iconogrfico, Imola representada como se vista de um nmero infinito de pontos de vista64.

    62SILBERMAN. Robert Bruce. Maps and art: the pleasures and power of worldviews. In: SILBERMAN, Robert Bruce. World views: Maps & art. Minneapolis:University of Minnesota Press, 1999. p.34. 63

    BUISSERET, David. The Mapmakers Quest: depicting New Worlds in Renaissance Europe. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 35-36. 64

    MILLER, Naomi. Mapping Cities. Seattle: University of Washington Press, 2000. p. 10.

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    Fig. 37 Milo, Leonardo da Vinci Fig. 38 Imola, Leonardo da Vinci

    Outros artistas tambm estiveram ligados tanto pintura quanto cartografia: Raphael Sanzio (1483 - 1520) plano idealizado de Roma a pedido do Papa Leo X; Michelangelo Buonarroti (1475 -1564) planos para a fortificao de Florena; Albrecht Drer (1471 - 1528) desenho de um mapa-mundo e de duas esferas celestiais; Augustin Hirschvogel (1503 - 53) grande plano de Viena; Pierre Pourbus (1524 - 84) grande carta de Bruges; Cornelis Anthonisz (1499 1556) Plano de Amsterdan (fig.39).

    Os vrios planos de cidades italianas do sculo XV, entre elas Florena, Npoles, Roma e Gnova, mostram uma crescente conscincia das relaes de escala. Mas h um mapa que supera em muito as representaes cartogrficas da poca: trata-se do mapa de Veneza de Jacopo de Barbari (fig.40), de 1500. Suas dimenses (4 x 9 ps), em seis blocos de xilogravura, mostram uma

    cidade recriada como uma obra de arte, num tributo sua prosperidade e poder. (...) O plano de Veneza (o delineamento das ruas e dos edifcios desenhados em contorno, como uma planta baixa) foi desenhado apenas dois anos antes do iconogrfico mapa de Imola de Leonardo da Vinci, de 1502. Em ambos, vrios croquis de diferentes pontos de vista foram traados, numa estrutura de perspectiva que pode ter sido calculada a partir de plantas baixas da cidade similares quelas usadas pelas autoridades de Veneza para a manuteno de ruas e canais65.

    Schulz em