55

FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

FICHA TEacuteCNICA

TIacuteTULO LIBRETOS MATERIAIS PARA O FIM DO MUNDO ndash 12

Maio de 2020

PROPRIEDADE E EDICcedilAtildeO INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA WWWILCMLCOM | VIA PANORAcircMICA SN 4150-564 PORTO PORTUGAL E-MAIL ilcletrasuppt TEL +351 226 077 100

CONSELHO DE REDACCcedilAtildeO DE LIBRETOS DIRECTORES ANA LUIacuteSA AMARAL ANA PAULA COUTINHO JOANA MATOS FRIAS MARIA DE FAacuteTIMA OUTEIRINHO

ORGANIZADOR DO LIBRETO Nordm 21 PEDRO EIRAS

AUTORES MARIA DE FAacuteTIMA LAMBERT PATRIacuteCIA LINO PEDRO EIRAS

ASSISTENTE EDITORIAL LURDES GONCcedilALVES

CAPA Fotografia de Pedro Eiras (placa indicativa de nomes de praias entre Leccedila da Palmeira e Vila do Conde)

PUBLICACcedilAtildeO NAtildeO PERIOacuteDICA

VERSAtildeO ELECTROacuteNICA ISBN 978-989-54784-0-8 DOI 10217479789895478408fdm12

OBS Os textos seguem as normas ortograacuteficas escolhidas pelos autores O conteuacutedo dos ensaios eacute da responsabilidade exclusiva dos seus autores

copy INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA 2020

Esta publicaccedilatildeo eacute desenvolvida e financiada por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do Programa Estrateacutegico ldquoUIDP005002020rdquo

21 Materiais para o Fim do Mundo - 12

Org Pedro Eiras

052020 5 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a1

Nota de abertura

No dia 21 de Dezembro de 2012 a expectativa de um fim do mundo ndash tatildeo

espectacular quanto improvaacutevel ndash foi vivida agrave escala planetaacuteria Entre terrores genuiacutenos e

um iroacutenico ambiente de festa a data fatiacutedica passou sem incidentes e profecias de novas

datas para uma destruiccedilatildeo do planeta comeccedilaram imediatamente a surgir

O que eacute o fim do mundo Um juiacutezo universal da humanidade conforme dizem os

textos vetero- e neotestamentaacuterios Uma cataacutestrofe ecoloacutegica global e iminente provocada

pelo homem A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas vogando sem

verdade e sem destino apoacutes Auschwitz e Sarajevo O pretexto para a seduccedilatildeo do

espectaacuteculo entre filmes-cataacutestrofe e um delicioso imaginaacuterio da destruiccedilatildeo Ou o confronto

de cada qual com a sua morte proacutepria Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar

nunca resolvido ndash e o que temos a ganhar com a exploraccedilatildeo do nosso proacuteprio terror

Para estudar o imaginaacuterio do fim do mundo o Instituto de Literatura Comparada

Margarida Losa organizou entre 2013 e 2018 uma seacuterie de seminaacuterios abertos coincidindo

com os equinoacutecios e os solstiacutecios Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem

alguns ensaios apresentados nesses seminaacuterios ou textos afins Neste uacuteltimo libreto da seacuterie

Materiais para o Fim do Mundo Maria de Faacutetima Lambert analisa as viagens a vaacuterios confins

do mundo da escritora Maria Graham Callcott (1775-1842) avaliando o que significa ser

uma mulher viajante e escrever relatos de viagem numa interminaacutevel dialeacutectica entre o

conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar Patriacutecia Lino retoma algumas

questotildees do seu ensaio ldquolaquoComeccedilava soacute para ti o fim do mundoraquordquo (Materiais para o Fim do

Mundo 1 2014) pensando a dimensatildeo poliacutetica da poesia a invenccedilatildeo e a resistecircncia ao

cacircnone a criaccedilatildeo do mundo e a observaccedilatildeo ldquoempaacutetica e humilderdquo do mundo do outro e eu

proacuteprio faccedilo um saldo dos seminaacuterios realizados entre 2013 e 2018 gizando algumas

conclusotildees possiacuteveis antevendo novas pesquisas a realizar

Pedro Eiras

5

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7

[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas

Maria de Faacutetima Lambert

InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto

Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do

mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem

manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e

procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou

expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da

produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos

expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas

afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)

tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas

consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares

Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas

Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the

end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to

be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]

transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic

mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not

surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that

fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with

emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian

(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her

considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies

Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Stop the world I want to get out

Sammy Davies Jr

Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo

Augusto Alfred Schmidt

1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de

qualquer um e eacute diferente

Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011

Yinka Shonibare Girl on Globe 2012

A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e

em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma

produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos

cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave

tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um

nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se

destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava

reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios

quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo

8

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda

precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo

Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e

correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo

isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e

culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a

terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas

obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as

derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip

passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e

ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo

destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos

A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du

Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre

prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs

era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)

Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)

Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8

partes com as designaccedilotildees francesas

I Liturgie de cristal

II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps

III Abicircme des oiseaux

IV Intermegravede

V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus

VI Danse de la fureur pour les sept trompettes

VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps

VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus

Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie

de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica

das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de

Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant

9

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 2: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

21 Materiais para o Fim do Mundo - 12

Org Pedro Eiras

052020 5 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a1

Nota de abertura

No dia 21 de Dezembro de 2012 a expectativa de um fim do mundo ndash tatildeo

espectacular quanto improvaacutevel ndash foi vivida agrave escala planetaacuteria Entre terrores genuiacutenos e

um iroacutenico ambiente de festa a data fatiacutedica passou sem incidentes e profecias de novas

datas para uma destruiccedilatildeo do planeta comeccedilaram imediatamente a surgir

O que eacute o fim do mundo Um juiacutezo universal da humanidade conforme dizem os

textos vetero- e neotestamentaacuterios Uma cataacutestrofe ecoloacutegica global e iminente provocada

pelo homem A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas vogando sem

verdade e sem destino apoacutes Auschwitz e Sarajevo O pretexto para a seduccedilatildeo do

espectaacuteculo entre filmes-cataacutestrofe e um delicioso imaginaacuterio da destruiccedilatildeo Ou o confronto

de cada qual com a sua morte proacutepria Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar

nunca resolvido ndash e o que temos a ganhar com a exploraccedilatildeo do nosso proacuteprio terror

Para estudar o imaginaacuterio do fim do mundo o Instituto de Literatura Comparada

Margarida Losa organizou entre 2013 e 2018 uma seacuterie de seminaacuterios abertos coincidindo

com os equinoacutecios e os solstiacutecios Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem

alguns ensaios apresentados nesses seminaacuterios ou textos afins Neste uacuteltimo libreto da seacuterie

Materiais para o Fim do Mundo Maria de Faacutetima Lambert analisa as viagens a vaacuterios confins

do mundo da escritora Maria Graham Callcott (1775-1842) avaliando o que significa ser

uma mulher viajante e escrever relatos de viagem numa interminaacutevel dialeacutectica entre o

conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar Patriacutecia Lino retoma algumas

questotildees do seu ensaio ldquolaquoComeccedilava soacute para ti o fim do mundoraquordquo (Materiais para o Fim do

Mundo 1 2014) pensando a dimensatildeo poliacutetica da poesia a invenccedilatildeo e a resistecircncia ao

cacircnone a criaccedilatildeo do mundo e a observaccedilatildeo ldquoempaacutetica e humilderdquo do mundo do outro e eu

proacuteprio faccedilo um saldo dos seminaacuterios realizados entre 2013 e 2018 gizando algumas

conclusotildees possiacuteveis antevendo novas pesquisas a realizar

Pedro Eiras

5

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7

[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas

Maria de Faacutetima Lambert

InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto

Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do

mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem

manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e

procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou

expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da

produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos

expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas

afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)

tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas

consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares

Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas

Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the

end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to

be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]

transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic

mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not

surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that

fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with

emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian

(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her

considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies

Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Stop the world I want to get out

Sammy Davies Jr

Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo

Augusto Alfred Schmidt

1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de

qualquer um e eacute diferente

Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011

Yinka Shonibare Girl on Globe 2012

A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e

em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma

produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos

cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave

tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um

nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se

destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava

reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios

quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo

8

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda

precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo

Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e

correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo

isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e

culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a

terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas

obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as

derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip

passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e

ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo

destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos

A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du

Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre

prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs

era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)

Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)

Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8

partes com as designaccedilotildees francesas

I Liturgie de cristal

II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps

III Abicircme des oiseaux

IV Intermegravede

V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus

VI Danse de la fureur pour les sept trompettes

VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps

VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus

Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie

de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica

das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de

Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant

9

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 3: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 5 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a1

Nota de abertura

No dia 21 de Dezembro de 2012 a expectativa de um fim do mundo ndash tatildeo

espectacular quanto improvaacutevel ndash foi vivida agrave escala planetaacuteria Entre terrores genuiacutenos e

um iroacutenico ambiente de festa a data fatiacutedica passou sem incidentes e profecias de novas

datas para uma destruiccedilatildeo do planeta comeccedilaram imediatamente a surgir

O que eacute o fim do mundo Um juiacutezo universal da humanidade conforme dizem os

textos vetero- e neotestamentaacuterios Uma cataacutestrofe ecoloacutegica global e iminente provocada

pelo homem A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas vogando sem

verdade e sem destino apoacutes Auschwitz e Sarajevo O pretexto para a seduccedilatildeo do

espectaacuteculo entre filmes-cataacutestrofe e um delicioso imaginaacuterio da destruiccedilatildeo Ou o confronto

de cada qual com a sua morte proacutepria Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar

nunca resolvido ndash e o que temos a ganhar com a exploraccedilatildeo do nosso proacuteprio terror

Para estudar o imaginaacuterio do fim do mundo o Instituto de Literatura Comparada

Margarida Losa organizou entre 2013 e 2018 uma seacuterie de seminaacuterios abertos coincidindo

com os equinoacutecios e os solstiacutecios Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem

alguns ensaios apresentados nesses seminaacuterios ou textos afins Neste uacuteltimo libreto da seacuterie

Materiais para o Fim do Mundo Maria de Faacutetima Lambert analisa as viagens a vaacuterios confins

do mundo da escritora Maria Graham Callcott (1775-1842) avaliando o que significa ser

uma mulher viajante e escrever relatos de viagem numa interminaacutevel dialeacutectica entre o

conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar Patriacutecia Lino retoma algumas

questotildees do seu ensaio ldquolaquoComeccedilava soacute para ti o fim do mundoraquordquo (Materiais para o Fim do

Mundo 1 2014) pensando a dimensatildeo poliacutetica da poesia a invenccedilatildeo e a resistecircncia ao

cacircnone a criaccedilatildeo do mundo e a observaccedilatildeo ldquoempaacutetica e humilderdquo do mundo do outro e eu

proacuteprio faccedilo um saldo dos seminaacuterios realizados entre 2013 e 2018 gizando algumas

conclusotildees possiacuteveis antevendo novas pesquisas a realizar

Pedro Eiras

5

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7

[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas

Maria de Faacutetima Lambert

InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto

Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do

mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem

manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e

procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou

expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da

produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos

expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas

afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)

tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas

consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares

Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas

Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the

end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to

be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]

transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic

mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not

surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that

fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with

emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian

(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her

considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies

Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Stop the world I want to get out

Sammy Davies Jr

Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo

Augusto Alfred Schmidt

1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de

qualquer um e eacute diferente

Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011

Yinka Shonibare Girl on Globe 2012

A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e

em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma

produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos

cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave

tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um

nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se

destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava

reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios

quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo

8

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda

precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo

Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e

correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo

isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e

culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a

terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas

obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as

derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip

passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e

ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo

destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos

A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du

Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre

prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs

era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)

Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)

Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8

partes com as designaccedilotildees francesas

I Liturgie de cristal

II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps

III Abicircme des oiseaux

IV Intermegravede

V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus

VI Danse de la fureur pour les sept trompettes

VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps

VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus

Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie

de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica

das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de

Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant

9

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 4: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7

[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas

Maria de Faacutetima Lambert

InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto

Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do

mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem

manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e

procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou

expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da

produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos

expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas

afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)

tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas

consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares

Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas

Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the

end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to

be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]

transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic

mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not

surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that

fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with

emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian

(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her

considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies

Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Stop the world I want to get out

Sammy Davies Jr

Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo

Augusto Alfred Schmidt

1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de

qualquer um e eacute diferente

Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011

Yinka Shonibare Girl on Globe 2012

A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e

em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma

produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos

cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave

tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um

nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se

destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava

reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios

quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo

8

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda

precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo

Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e

correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo

isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e

culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a

terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas

obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as

derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip

passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e

ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo

destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos

A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du

Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre

prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs

era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)

Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)

Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8

partes com as designaccedilotildees francesas

I Liturgie de cristal

II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps

III Abicircme des oiseaux

IV Intermegravede

V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus

VI Danse de la fureur pour les sept trompettes

VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps

VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus

Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie

de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica

das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de

Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant

9

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 5: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Stop the world I want to get out

Sammy Davies Jr

Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo

Augusto Alfred Schmidt

1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de

qualquer um e eacute diferente

Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011

Yinka Shonibare Girl on Globe 2012

A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e

em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma

produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos

cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave

tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um

nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se

destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava

reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios

quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo

8

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda

precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo

Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e

correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo

isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e

culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a

terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas

obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as

derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip

passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e

ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo

destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos

A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du

Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre

prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs

era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)

Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)

Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8

partes com as designaccedilotildees francesas

I Liturgie de cristal

II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps

III Abicircme des oiseaux

IV Intermegravede

V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus

VI Danse de la fureur pour les sept trompettes

VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps

VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus

Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie

de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica

das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de

Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant

9

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 6: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda

precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo

Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e

correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo

isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e

culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a

terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas

obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as

derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip

passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e

ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo

destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos

A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du

Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre

prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs

era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)

Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)

Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8

partes com as designaccedilotildees francesas

I Liturgie de cristal

II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps

III Abicircme des oiseaux

IV Intermegravede

V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus

VI Danse de la fureur pour les sept trompettes

VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps

VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus

Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie

de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica

das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de

Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant

9

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 7: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et

son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange

que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par

celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la

Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder

aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e

circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos

individuais quer gregaacuterios

Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo

compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973

Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou

em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa

primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968

Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash

humano

Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009

httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira

As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura

[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de

prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente

o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a

isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a

10

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 8: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A

linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso

preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a

palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m

u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo

num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao

mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a

exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez

Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle

Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de

fugitifs deux-mecircmes

Madame de Lambert

Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde

Manuel Antoacutenio Pina

O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de

mudar os mapas

Arnaldo Antunes

11

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 9: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Era a minha cidade ao norte do mapa

numa velocidade chamada

mundo sombrio (hellip)

E a seiva

sombria vinha escorrendo do mapa

desse girassol no mapa

do mundo

Herberto Helder

Teus ombros suportam o mundo

E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila

Carlos Drummond de Andrade

Chamar-te visatildeo seria

malconhecer as visotildees

de que eacute cheio o mundo

e vazio

Carlos Drummond de Andrade

Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera

Clarice Lispector

Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou

(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel

Clarice Lispector

A uacuteltima casa desta aldeia estaacute

tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo

Rainer Maria Rilke

Eu estou aqui

no mundo das palavras-objectos

que mudamente me falam

com quem mudamente falo

ao usaacute-las

mas que uso fazem elas de mim

Ana Hatherly

12

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 10: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O mundo eacute grande

incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)

Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi

agrave minha custa e agrave das coisas para

criar real o mundo e os olhos que

no mundo reconhecem o real

Jorge de Sena

Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber

a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que eacute que as borboletas de tarjas

vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia

num fagote tem salvaccedilatildeo

Manoel de Barros

Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o

poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e

os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a

nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem

em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute

algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro

Pascal Quignard

2 Viagens ateacute ao fim do mundo

Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando

pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo

cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias

subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que

13

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 11: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o

final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim

Wenders (1991)

Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia

que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem

Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php

httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope

EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim

Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos

Porque sou ainda muito mau poeta

Porque o universo me ultrapassa

Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro

Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas

E tenho medo

Blaise Cendrars

Quero ver o que haacute no mundo

O que resta

O que deitaram fora

O que deixou de se apreciar

O que teve de se sacrificar

O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem

Susan Sontag

14

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 12: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o

explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar

Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital

Michel Maffesoli

La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par

des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le

genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une

singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des

reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme

reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas

Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement

dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se

fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe

Jean Starobinski

3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham

Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-

by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english

Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute

ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me

nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott

15

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 13: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao

debate que se venha a seguir

Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar

Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de

viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por

literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente

todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute

um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia

de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do

imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e

demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo

A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)

alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que

indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os

seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se

guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia

Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do

mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela

forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra

Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip

Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo

de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe

o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi

prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo

necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam

aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e

espessavam as topografias

Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours

sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa

Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du

monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute

16

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 14: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes

ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le

nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau

aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle

peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il

ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les

marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres

classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation

sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les

autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de

pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent

(Rousseau 1754 95)

Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus

que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que

lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais

Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-

Jacques Rousseau

1 Marinheiros

2 Comerciantes

3 Soldados

4 Missionaacuterios

E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que

deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas

Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash

Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse

escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo

literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que

mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma

caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja

distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se

com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo

17

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 15: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos

primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e

concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave

semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres

Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-

alten-ansichtenrom-egeriahtml

Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria

wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-

egeriahtml

Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do

tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma

classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio

cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no

prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos

anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe

quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da

viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla

die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst

einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit

es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen

muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das

suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos

As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no

contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada

18

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 16: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que

teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda

imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os

investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo

recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina

Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio

natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante

Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2

- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do

Egipto

- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra

Prometida

- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute

- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e

Calcedoacutenia

Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres

empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo

qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao

fim do mundo

Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo

experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo

trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um

recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de

embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)

As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio

suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados

apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se

ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e

fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-

lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como

19

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 17: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da

passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se

mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para

quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real

mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o

protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em

acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios

Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que

empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias

fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma

tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu

de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A

adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor

No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de

viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores

comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos

absorvidos de modo diferente em alguns aspetos

Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia

(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as

mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu

reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas

parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo

figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c

1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o

Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida

atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo

Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se

uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu

apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado

no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus

sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa

20

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 18: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem

com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame

Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que

tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi

uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver

Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis

Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo

ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos

Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma

primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa

Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por

Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde

Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819

Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo

sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo

Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute

referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-

se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer

21

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 19: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de

problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o

seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX

Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes

Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O

que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e

torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da

sua vida

Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com

artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe

sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha

agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam

objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na

sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones

Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour

menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um

receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se

consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili

informazioni sul percorsordquo (1995 7)

Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens

como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos

viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que

diferenciam os viajantes

Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs

categorias

- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer

- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno

- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de

Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem

Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son

Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes

22

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 20: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en

quelque sorterdquo

- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo

- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo

- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo

- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e

mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do

dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens

em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)

As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados

qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920

(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente

- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo

- Viagens e meios de transportes

- Viagens de peregrinaccedilatildeo

- Viagens de Turismo

Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile

1824

Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente

focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott

23

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 21: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias

- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em

aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos

definitoacuterios desses conceitos)

- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento

- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du

Monde Libraire Hachette 1860

- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias

- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash

ldquoponto de fuga na paisagemrdquo

- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por

via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash

ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas

- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades

nos caminhos

- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens

transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente

em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais

Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a

possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma

certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens

que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX

ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the

time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)

- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo

financeiramente em termos intelectuais

- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash

atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo

relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que

procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras

do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da

Igreja (Venayre 2012 12)

- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou

marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos

24

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 22: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

- Formaccedilatildeo

- Estudos

- Lazer

- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de

viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as

situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas

relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)

- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das

escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era

dominado subjugado

- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a

proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt

espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si

- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da

pintura

- A diferenciar no caso da escrita

- Diaacuterios

- Cartas

- Ensaios

- Anotaccedilotildees

- A diferenciar no caso das artes visuais

- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos

troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na

cronologia entre ambas o caso de Maria Graham

- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto

pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta

subjacente ao Grand Tour

- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e

mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o

nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)

- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que

assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para

25

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 23: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em

relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no

entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em

alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta

- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento

empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e

eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em

conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento

rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham

publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa

On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit

(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et

drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y

prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de

position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par

rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus

facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle

drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)

Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes

viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se

referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a

condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam

acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem

tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila

No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a

figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem

agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa

viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com

quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo

antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a

convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora

convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando

continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra

26

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 24: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir

August Callcott

Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no

Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo

do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur

celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve

Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie

publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice

dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl

I 250) (cf Pereira 1990)

Eis a listagem das suas publicaccedilotildees

Obras assinadas como Maria Graham

1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf

ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages

Paris 1841)

2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814

3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray

Londres 1815

4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman

Londres e Constable Edimburgo 1820

5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo

1820

6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in

1823 Longman etc e John Murray Londres 1824

8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the

Right Hon Lord Byron Commander 1826

9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro

(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional

vol LX 1940

Com o nome de Maria Callcott

1 A Short History of Spain Murray Londres 1828

27

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 25: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains

Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres

1834

3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from

Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835

4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835

5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836

6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838

7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840

8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841

9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842

Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822

1823 (1824)

Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios

Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]

iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu

princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma

planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma

fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a

quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e

convicta

Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a

seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do

desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe

28

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 26: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos

incertos

Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e

descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas

fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes

Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios

(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo

basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)

Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o

presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo

determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se

trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip

Bibliografia

Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote

Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes

Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi

Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira

Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores

29

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 27: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le

Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)

Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha

Il Molino

Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom

downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt

Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-

Universidade Federal de Uberlacircndia

Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool

goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml

Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation

de la Culture et de la Formation nordm 248

Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert

Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru

Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie

Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les

grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud

Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta

em fevereiro de 2019)

Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco

Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record

30

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 28: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle

httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+

monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg

ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-

PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=

benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf

=false

Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-

murray-iiindexhtml

Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees

(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France

Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta

(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12

Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim

Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate

Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias

Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro

do Dia

Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses

httpsjournalsopeneditionorgclio7553

Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et

franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et

litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg

Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute

httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-

linC3A9galitC3A9-1754pdf

Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70

31

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 29: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira

Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal

Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora

Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques

Paris Les Belles Lettres

Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia

Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga

Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -

Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em

Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -

2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e

Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA

[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e

formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em

Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas

Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e

Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo

Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989

Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados

32

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 30: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2

NOTAS

1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a

lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens

obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura

(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca

(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste

atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada

2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de

2018)

3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall

Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no

National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com

Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim

como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National

Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees

4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml

33

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 31: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35

Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo

Patriacutecia Lino

UCLA (University of California Los Angeles)

Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em

causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se

reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro

Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone

Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience

challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-

education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other

Keywords poetry performance orality canon

A

Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios

Heraclito (B116)

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 32: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

0 Um claratildeo luminoso

A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a

expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo

antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra

palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar

naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou

o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer

do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da

voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e

dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no

contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer

Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra

poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e

memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute

artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito

pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra

poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a

tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer

Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo

luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do

fim

Consecutivamente

1 O perigo da poesia

Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno

estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E

a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos

parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior

ao lugar da filosofia

36

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 33: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um

veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para

Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico

Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico

Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema

ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e

confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a

poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico

2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar

As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo

literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder

da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas

A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao

escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar

de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco

que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)

Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram

sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que

depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto

de desmaiar2

O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto

ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro

contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do

mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e

recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria

Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)

aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a

mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num

movimento inverso a sociedade

37

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 34: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos

salvarmos

Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um

fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos

do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos

dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser

cantado eternamente pelos poetas

A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o

canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa

fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas

A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem

como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito

algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a

obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George

Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil

pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao

segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A

comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para

os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal

(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute

original plena incontrolaacutevel

B

Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo

Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo

Caetano Veloso

38

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 35: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio

A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento

da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente

europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a

necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que

transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte

que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios

especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os

discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII

Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um

objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o

termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees

(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da

liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular

dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da

identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos

Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas

e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou

reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta

A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as

manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de

organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)

integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma

mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais

transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre

outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua

A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande

literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo

Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo

conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias

Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute

39

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 36: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre

outros pontos nesse conjunto de regras

O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o

estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela

categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone

estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na

Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais

do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX

Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele

esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou

quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste

pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser

identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras

palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura

como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila

simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como

ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)

Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que

queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)

Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra

no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)

Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do

Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano

A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo

tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e

porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o

proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se

Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano

com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o

mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria

40

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 37: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

2 O cacircnone acidental

A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo

das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de

Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo

O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido

pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados

Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro

mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica

excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a

multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da

superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se

1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)

negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena

2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave

sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo

autores(as)

3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo

basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou

deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o

trabalho de um autor europeu branco

4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria

conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo

centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a

interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria

desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da

qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)

A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada

41

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 38: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Primeiro paradoxo

A literatura parece ter entatildeo de politizar-se

Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e

pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria

parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito

deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos

modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)

Segundo paradoxo

Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou

ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto

literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do

que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de

questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e

anaacutelise de todos e todas

Terceiro paradoxo

O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees

literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais

Quarto paradoxo

Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer

parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram

C

Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis

Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha

Porque a vida do povo eacute assim

agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim

Cidinho e Doca

42

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 39: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

1 Outro claratildeo luminoso

A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute

intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas

brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo

publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica

das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa

puacutebico)

A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por

um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as

outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta

Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que

dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)

autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes

Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo

Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de

Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me

Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)

A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de

estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um

aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda

da primeira das vozes do mais antigo dos sons

Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos

interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no

Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da

poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no

viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal

como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a

imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e

novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela

capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original

43

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 40: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave

experiecircncia proacutepria do Outro

A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como

moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a

partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que

estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do

mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o

cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui

O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado

que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe

Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare

Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a

poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)

poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo

2 O que haacute depois do fim do mundo

Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo

do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de

multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente

entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o

movimento tecnoloacutegico da poesia

Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta

que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de

Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos

muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente

sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer

estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia

44

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 41: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Bibliovideografia

Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from

mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro

Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj

Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-

oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company

Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7

Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]

Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan

Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo

Perspectiva

Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo

Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123

Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New

York Times 12 de Setembro

Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas

Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1

Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio

Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de

Fevereiro

Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich Cosac Naify

45

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 42: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e

cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de

Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands

(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou

apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua

investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e

audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute

editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom

NOTAS

1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica

ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais

abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz

1972 11-12)

2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio

imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto

VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles

imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)

3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens

reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is

not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the

audiencerdquo (Manguel 2014 122)

4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest

you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet

incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia

And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done

a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the

46

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 43: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3

Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up

remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the

Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You

canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has

given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The

people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)

5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983

6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico

ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que

o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no

que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a

violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo

parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais

passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da

obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por

encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos

Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de

ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)

7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da

poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e

resistente ainda longe do olhar editorial

8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes

9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)

10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 44: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49

Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Pedro Eiras

Universidade do Porto - ILC

Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua

uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados

e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas

Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo

Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session

(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines

of research developed

Keywords End of the World Seminars balance occultation

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 45: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Porto 13 de Dezembro de 2018

Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim

anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto

para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no

dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os

antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra

deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no

dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou

Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova

oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e

obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do

Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em

2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do

planeta para 2060 Isaac Newton dixit

Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam

substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim

nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura

Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates

Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo

nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda

um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim

Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra

dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com

Paulo de Medeiros

No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash

quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios

participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a

todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-

me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo

50

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 46: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um

tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos

temposhellip

Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar

repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim

dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash

ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de

continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o

Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em

laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir

Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de

laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute

simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em

pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo

Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente

econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de

linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na

literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos

convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos

estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria

piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em

duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim

Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou

receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a

Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de

PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o

trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas

transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de

cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo

nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror

51

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 47: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem

fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no

Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de

movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as

poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas

da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses

fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir

Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas

de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a

complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute

escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando

Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande

ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem

sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras

vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos

Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o

Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a

apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento

sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da

Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo

Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro

52

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 48: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;

052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4

Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto

Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede

Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de

ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos

questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila

(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas

(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e

2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais

para o Fim do Mundo

53

Page 49: FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa interminável dialéctica entre o conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar;