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FICO, HISTRIA E MEMRIA EM ALMEIDA GARRETT E JOS
SARAMAGO
Haid Silva1 (USP)
RESUMO: O objetivo do presente trabalho analisar as relaes entre Fico, Histria e Memria nas obras Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett e Viagem a Portugal, de Jos
Saramago. Escrita no sculo XIX, Viagens na Minha Terra considerada uma produo
paradigma da primeira fase do Romantismo em Portugal, cuja proposta literria era justamente
ser a crnica do passado, a histria do presente, o programa do futuro, de acordo com o
prprio autor- narrador. E, atravs da viagem pelo interior de seu pas, o autor-narrador busca o
sentido do que ser portugus em um momento de drsticas mudanas no pas, j que o a obra
tem como contexto histrico a Revoluo Liberal. Viagem a Portugal, por sua vez escrito no
final do sculo XX, resultado de uma viagem que o autor fez por Portugal, com o intuito de
descobrir novos caminhos, para alm daqueles que todos conhecem e identificam, conforme as
palavras do prprio autor No sei por onde vou, s sei que no vou por ai, o lema da
viagem. O dilogo que se estabelece entre as obras aparece explicitamente na dedicatria de
Saramago, e de certa forma, serviu de fonte de inspirao para o desenvolvimento e elaborao
do presente trabalho: A quem me abriu portas e mostrou caminhos e tambm em lembrana
de Almeida Garrett, mestre de viajantes. Tal dilogo vai muito alm do fato de ambas as obras
serem relatos de viagem, uma vez que a viagem faz referncia a uma srie de reflexes
polticas, histricas, filosficas e existenciais que as personagens protagonistas tratam cada uma
a seu modo e ao tecer essas reflexes estabelecem-se relaes entre fico, histria e memria.
Palavras-chave: Fico. Histria. Memria.
Introduo
Fico, Histria e Memria em Almeida Garrett e Jos Saramago tm o
propsito de analisar como se estabelecem as possveis relaes entre Fico, Histria e
Memria nas obras Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett e Viagem a Portugal,
de Jos Saramago.
Escrita no sculo XIX, Viagens na Minha Terra considerada uma produo
paradigma da primeira fase do Romantismo em Portugal, cuja proposta literria era
1 Haid Silva. Doutora em Letras: Literatura Portuguesa pela Universidade de So Paulo. Professora da
rede estadual e municipal em So Paulo. Professora dos cursos de Letras e Pedagogia do Instituto
Superior de Educao Alvorada Plus, no perodo de 2010 e 2013. E-mail: haidesilva1@terra.com.br
mailto:haidesilva1@terra.com.br
justamente ser a crnica do passado, a histria do presente, o programa do futuro, de
acordo com o prprio autor- narrador. E, atravs da viagem pelo interior de seu pas, o
autor-narrador busca o sentido do que ser portugus em um momento de drsticas
mudanas, j que o contexto histrico a Revoluo Liberal.
Viagem a Portugal, por sua vez escrito no final do sculo XX, resultado de
uma viagem que o autor fez por Portugal, com o intuito de descobrir novos caminhos,
para alm daqueles que todos conhecem e identificam, conforme as palavras do prprio
autor No sei por onde vou, s sei que no vou por ai, o lema da viagem.
O dilogo que se estabelece entre as obras aparece explicitamente na dedicatria
de Saramago, e de certa forma, serviu de inspirao para o desenvolvimento e
elaborao do presente trabalho: A quem me abriu portas e mostrou caminhos e
tambm em lembrana de Almeida Garrett, mestre de viajantes. Tal dilogo vai muito
alm do fato de ambas as obras serem relatos de viagem, uma vez que a viagem faz
referncia a uma srie de reflexes polticas, histricas, filosficas e existenciais que as
personagens protagonistas tratam cada uma a seu modo e ao tecer essas reflexes
estabelecem-se relaes entre fico, histria e memria.
Viagens na Minha Terra
A respeito da obra Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, Massaud
Moiss, em A Literatura Portuguesa atravs dos textos (2006) afirma o seguinte:
Incerta a classificao desta obra, mista de jornalismo, literatura de
viagens, dirio intimo e prosa de fico. Publicada em 1846, seu fio
narrativo compe-se de uma viagem levada a efeito por Garrett em
1843, entre Lisboa e Santarm, a convite do poltico Passos Manuel.
Repartida em 49 captulos, como que escritos ao sabor da viagem, a
obra relata as peripcias ocorridas entre aquelas duas cidades e as
reflexes que elas desencadeiam na mente do viajante, acerca dos
mais variados assuntos, desde o amor at a poltica. Ao chegar a
Santarm, o narrador toma conhecimento da historia amorosa da
Joaninha dos olhos verdes, a menina dos rouxinis, e de seu primo
Carlos: ambos se apaixonam, mas ele julga-se preso ao sentimento de
Georgina, que ficara na Inglaterra; por fim, desfeito o impasse,
Georgina entra para o convento e Joaninha morre, enquanto Carlos,
recomposto do transe, retoma sua trajetria de dndi e homem
pblico. (MOISS, 2006, p. 261)
Saraiva & Lopes, em Histria da Literatura Portuguesa (2008), no captulo em
que tratam da novela de Garrett, afirmam que o escritor portugus nos deixou duas
novelas, um histrica, O Arco de SantAna e outra contempornea, uma novela inserta
nas Viagens na Minha Terra, e ambas revelam uma predileo antiga de Garrett tanto
pelo romanesco histrico quanto pela novela testemunhal. Os autores comparam as duas
novelas:
Muito diferentes quanto forma e inteno, oferecem, no entanto,
uma arquitectura romanesca comparvel: nO Arco de SantAna, o
heri, Vasco, , sem o saber, filho ilegtimo de um bispo que lhe
abusara da me (uma judia), e os acontecimentos decorrem de maneira
que o pai, senhor feudal do Porto, e o filho, chefe de uma revolta
popular, vm a encontrar-se frente a frente, a combater em partidos
opostos; s no momento em que est prestes a mat-lo, o filho
reconhece o pai. Nas Viagens, o heri, Carlos, tambm, sem o saber,
filho de um frade que fez a desgraa de sua me e de sua famlia; o
mesmo antagonismo poltico e social separa o filho, combatente
liberal, do pai, monge, dando-se em circunstancias semelhantes o final
reconhecimento. Esta situao dramtica [...] parece ser imagem
obsessiva de uma situao histrica, e talvez tambm biogrfica. O
liberalismo triunfou em Portugal atravs de uma guerra civil que
dividiu muitas famlias, inclusive a de Garrett. (SARAIVA & LOPES,
2008, p. 693)
Viagens na Minha Terra uma obra constituda por duas histrias interligadas
pelas circunstncias: a primeira justamente a viagem feita pelo narrador, a vapor, a p,
a cavalo, que parte de Lisboa e tem seu ponto de chegada na cidade histrica de
Santarm; e a segunda, a dos amores de Carlos e Joaninha, histria que o narrador
afirma ter ouvido do seu companheiro de viagem. O contexto histrico, a que j nos
referimos acima, a guerra civil em Portugal.
Quanto ao foco narrativo, a obra narrada em primeira pessoa, quando o
narrador se refere sua prpria viagem de Lisboa a Santarm, e em terceira pessoa,
quando re(conta) a histria de amor entre Carlos e Joaninha e tambm quando trata dos
aspectos da guerra civil em Portugal. Portanto, a narrativa oscila entre a primeira e a
terceira pessoa.
Dessa forma, Viagens na minha terra uma obra cuja narrativa se tece no
cruzamento de trs histrias: a do escritor em sua viagem a Santarm; a de Carlos e
Joaninha; e a da guerra civil que envolveu a todos. No entanto, no momento em que o
narrador resolve relatar suas impresses de viagem, os acontecimentos relatados j
tinham terminado e ento, ele precisou recorrer memria para evoc-los. Uma vez
evocados pela memria, muitos dos comentrios trazidos pela lembrana so recriados e
ampliados pela imaginao. Assim, a imaginao tece a fico, que por sua vez
preenche as lacunas da memria e constri os registros da histria nestas Viagens de
Almeida Garrett.
Mas a escrita, nesse caso, no apenas um exerccio de memria, pois o autor-
narrador faz questo de deixar bem claro o que almeja alcanar com o relato de suas
viagens:
Estas minhas interessantes viagens ho-de ser uma obra-prima,
erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do sculo.
Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; no cuide
que so quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o ttulo de
Impresses de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da
Europa sem nenhum proveito da cincia e do adiantamento da espcie.
Primeiro que tudo, a minha obra um smbolo... um mito, palavra
grega, e de moda germnica, que se mete hoje em tudo e com que se
explica tudo... quanto se no sabe explicar. um mito porque
porque... J agora rasgo o vu, e declaro abertamente ao benvolo
leitor a profunda ideia que est oculta debaixo desta ligeira aparncia
de uma viagenzita que parece feita a brincar, e no fim de contas uma
coisa sria, grave, pensada como um livro novo da feira de Leipzig,
no das tais brochurinhas dos boulevards de Paris. (GARRETT, s/d,
p. 9)
O autor-narrador teve o cuidado de esclarecer ao leitor que a sua viagem no
deve ser tomada como os relatos de viagens em moda na poca, e que pretende fazer
uma obra sria. Ainda a respeito do que a viagem significa para si, o autor-narrador
esclarece que:
E aqui est o que