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Itinerários, Araraquara, n. especial, 23-33, 2003 23 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE FIGURATIVIZAÇÃO EM GOTA D’ÁGUA: IDEOLOGIA E LUGAR SOCIAL Diana Junkes Martha TONETO 1 RESUMO: O objetivo deste trabalho é discutir alguns aspectos discursivos, mais espe- cificamente, temas e figuras recorrentes em um trecho da peça Gota d’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, estabelecendo algumas relações entre este texto dramático e o poema “Sobre o sentar-/estar-no-mundo” de João Cabral de Melo Neto. Dada a forma poética do texto teatral, escolhida pelos autores, nele habitam inúmeras figuras semióticas, ali existentes com o intuito de produzir ilusão referencial, uma vez que o discurso não é a produção do real, mas a criação de efeitos de realidade. O enunciador, para criar veridicção em seu trabalho, pode revestir temas como ordem social e amor, de figuras a fim de que seja estabelecido um contrato entre tal enunciador e um suposto enunciatário. Uma das figuras mais recorrentes na peça de Buarque e Pontes é a cadeira que, dentro de seu conjunto sêmico encobre, ao que parece, o tema da hierarquia e das classes sociais, do lugar social dos indivíduos e da própria busca do sujeito para encon- trar o seu percurso de ser e estar no mundo; tal figurativização é reforçada pela leitura conjunta da peça e do poema de João Cabral de Melo Neto, que se mostram bastante semelhantes quanto ao tratamento da figura em questão. PALAVRAS-CHAVE: Actante; competência; figurativização; manipulação; performance; discurso. Ser e estar no Brasil: o contexto de produção da obra Acentuadas reformas econômicas foram implementadas no Brasil após o golpe militar de 1964, que configurou a instalação da ditadura no país. O direito de expressão foi cassado, a voz dos sindicatos calou-se no gargalo da garrafa da igualdade que se partia aos pés das classes menos favorecidas. No período em que foi produzida Gota d’Água, 1973, a situação era caótica, já havia perda de controle de algumas variáveis da política econômica e a sociedade como um todo, inclusive os que tinham apoiado o golpe, começava a perceber a desestruturação social e econômica que vinha dia-a-dia, forte e determinada a acabar com os horizontes promissores do “país do futuro”. 1 Mestranda em Estudos Literários – Faculdade de Ciências Letras – UNESP – CEP 14800-901 – Araraquara – SP – Brasil.

Figurativização Em Gota de Ága

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  • Itinerrios, Araraquara, n. especial, 23-33, 2003 23

    BREVES CONSIDERAES SOBREFIGURATIVIZAO EM GOTA DGUA: IDEOLOGIA E

    LUGAR SOCIALDiana Junkes Martha TONETO1

    RESUMO: O objetivo deste trabalho discutir alguns aspectos discursivos, mais espe-cificamente, temas e figuras recorrentes em um trecho da pea Gota dgua, de ChicoBuarque e Paulo Pontes, estabelecendo algumas relaes entre este texto dramtico eo poema Sobre o sentar-/estar-no-mundo de Joo Cabral de Melo Neto. Dada a formapotica do texto teatral, escolhida pelos autores, nele habitam inmeras figurassemiticas, ali existentes com o intuito de produzir iluso referencial, uma vez que odiscurso no a produo do real, mas a criao de efeitos de realidade. O enunciador,para criar veridico em seu trabalho, pode revestir temas como ordem social e amor,de figuras a fim de que seja estabelecido um contrato entre tal enunciador e um supostoenunciatrio. Uma das figuras mais recorrentes na pea de Buarque e Pontes a cadeiraque, dentro de seu conjunto smico encobre, ao que parece, o tema da hierarquia e dasclasses sociais, do lugar social dos indivduos e da prpria busca do sujeito para encon-trar o seu percurso de ser e estar no mundo; tal figurativizao reforada pela leituraconjunta da pea e do poema de Joo Cabral de Melo Neto, que se mostram bastantesemelhantes quanto ao tratamento da figura em questo.

    PALAVRAS-CHAVE: Actante; competncia; figurativizao; manipulao; performance;discurso.

    Ser e estar no Brasil: o contexto de produo da obra

    Acentuadas reformas econmicas foram implementadas no Brasil aps o golpemilitar de 1964, que configurou a instalao da ditadura no pas. O direito de expressofoi cassado, a voz dos sindicatos calou-se no gargalo da garrafa da igualdade que separtia aos ps das classes menos favorecidas.

    No perodo em que foi produzida Gota dgua, 1973, a situao era catica, jhavia perda de controle de algumas variveis da poltica econmica e a sociedadecomo um todo, inclusive os que tinham apoiado o golpe, comeava a perceber adesestruturao social e econmica que vinha dia-a-dia, forte e determinada a acabarcom os horizontes promissores do pas do futuro.

    1 Mestranda em Estudos Literrios Faculdade de Cincias Letras UNESP CEP 14800-901 Araraquara SP Brasil.

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    Diana Junkes Martha Toneto Breves consideraes sobre figurativizao em Gota Dgua: ideologia e lugar social

    Percebe-se no texto uma preocupao acentuada em fazer vir tona essemomento da nossa histria, quer pelo discurso fortemente ideolgico da introduo,quer pelas figuras dispostas ao longo da obra. Parece bastante possvel, portanto, quese faa uma leitura crtica sobre a realidade brasileira daquele momento, que sublinhada pela fora potica da pea e pelos personagens-tipo que representam valoresde uma sociedade de classes.

    A forma que ns encontramos para refletir esse estado foi a necessidade dapalavra voltar a ser o centro do fenmeno dramtico. No foi a razo quefracassou no nosso caso, foi nossa racionalidade estreita(...) Ns escrevemos apea em versos, intensificando um pouco um dilogo que poderia ser realista,um pouco porque a poesia exprime melhor a densidade de sentimentos que moveos personagens, mas quisemos, sobretudo, com os versos, tentar revalorizar apalavra. (HOLANDA & PONTES, 1998, p.18)

    Essa sensibilidade marcante est presente na tenso daqueles que no podempagar a prestao da casa para o Seu Creonte. Creonte o proprietrio do lugar, o que comanda as rdios, o que toma conta de tudo, de todos, implacvel e egosta.Creonte o prprio governo, uma instuio, no um corao. Os principais personagensso Jaso e sua mulher, Joana, amarga e sofrida. O heri deixa da mulher paracasar-se com Alma, aps compor um samba que explode nas paradas das rdioslocais. O que o povo precisa de alma, de f; assim, Jaso abandona a vida ruim, ovelho, o pobre, a falta, para preencher-se com uma vida diferente, alegre, boa; talvez,por isso, queira Alma. Mas eis que Alma a filha de Creonte, a alma no dopovo, do poder, da elite, estar bem estar com o governo e isso (im)possvel.Como ficar com a moa sem trair as origens?

    A personagem Joana passa, ento, a ser uma mulher amargurada, desesperada eenlouquecida pelos cimes, pelo abandono e pela urgncia de ter que sustentar sozinhaa casa e os dois filhos, os dois abortos como so chamados no texto. Essa avalanchede paixes desencadeia, maneira da Media de Eurpedes, uma srie de discussesentre o casal e o arquitetar de um plano de vingana por parte da mulher trada que,ao contrrio da mulher-princesa da Clquida, no possui um carro de sol para resgat-la e, talvez, veja sua prpria morte como um resgate de tantas faltas e ausncias, umencerramento de tantas mazelas.

    O progresso de Jaso, ao unir-se com a elite, apenas exceo, porm sobreele que nos iremos debruar um pouco ao longo desta anlise quando se estiverfalando da figura cadeira. A transformao pessoal da personagem que se contrape,de certa forma, estagnao do grupo a que pertence ser compreendida a partir darelao estabelecida entre os actantes Jaso e Creonte, mediados pela figura da cadeira.Jaso, a todo momento parece ter que se competencializar para desenvolver suasprprias aes e, em determinado momento, Creonte aproveita-se de sua condio

    fraca enquanto sujeito para tentar manipul-lo, utilizando a cadeira como elementodo mundo real que reconhecido por ambos e que pode reapresentar a realidade deforma contundente.

    O discurso figurativizado relaciona-se com o extradiscursivo, atravs das figuras,temas como igualdade, justia social e outros vm tona, superfcie do texto. Nestasuperfcie mais facilmente se detecta a ideologia, muito embora ela j esteja presenteno texto desde o nvel fundamental. , porm, a convocao discursiva realizada nonvel superficial em que se exploram realidades culturais e histricas. De fato, issoacontece porque no h sujeito sem ideologia, no h discurso sem ideologia; quandoalgum escreve, escolhe escrever sobre determinado tema; presa a ele, como o feto me, vem a ideologia e, nesse caso, no h o que rompa o cordo umbilical que osune, pelo contrrio, h a figurativizao que os sublinha.

    Portanto, o que se tentar mostrar na prxima seo que a figurativizaosustenta um fazer-crer ao qual o enunciador submete o enunciatrio, dado por imagensdo mundo que so reconhecidas como verdades fundamentadas num contrato fiduciriode veridico.

    Figurativizao e Lugar Social A cadeira

    Muitos so os temas que podem se identificados no texto de Gota dgua.Vrias so as abordagens a seu respeito; aqui a preocupao maior ser com atematizao de ordem social e econmica. Procurar-se- mostrar que os valoresabstratos dispostos, ao longo do texto, recebem investimentos figurativos queestabelecem uma isotopia da cadeira como lugar social. O texto passar a ser, a partirdo incio da pea, um balaio que acolhe figuras para que se ampliem os seus significados,encobertos por metforas e metonmias. Os traos, figuras e objetos do mundo natural,passam a ser transformados, substituindo os significantes originais por outros. Afigurativizao delineia o prprio modo de pensar do sujeito (GREIMAS &FONTANILLE, 1993, p.13).

    A seguir, a partir da discusso de alguns fragmentos da pea de Chico Buarque edo estabelecimento de intertxtualidade entre eles e o poema de Joo Cabral de MeloNeto, procurar-se- elucidar as diferentes etapas da figurativizao a passagem dotema a figura e a iconizao, que encerra o processo de figurativizao, criandoiluses referenciais. Veja-se a seguinte passagem do texto:

    CREONTE. No sei como comear. (tempo) Essa cadeira... repare uminstante...

    J viu?...

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    Diana Junkes Martha Toneto Breves consideraes sobre figurativizao em Gota Dgua: ideologia e lugar social

    JASO. Que que tem?...CREONTE. Escute, rapaz,voc j parou pra pensar direitoo que uma cadeira? A cadeira fazo homem. A cadeira molda o sujeitopela bunda, desde o banco escolarat a ctedra do magistrioExiste algum mistrio no sentarque o homem, mesmo rindo, fica srioVoc j viu palhao sentado?Pois o banqueiro senta a vida inteira,o congressista senta no Senadoe a autoridade fala de cadeiraO bbado sentado no tropea,a cadeira balana mas no cai sentando ao lado que se comeaum namoro. Sentado est Deus-Pai,o presidente da nao, o donodo mundo e o chefe da repartioO imperador s senta no seu tronoque uma cadeira coimaginaoTem cadeira de rodas pra doenteTem cadeira pra tudo que desgraaOs rus tm seu banco e o prprio indigenteque nada tem, tem no banco da praaum lugar para sentar. Mesmo as meninasdo ofcio que se diz o mais antigotm escritrio em todas as esquinase carregam as cadeiras consigoE quando o homem atinge o seu momentomais s, mais pungente de toda a estrada,mais uma vez encontra amparo e assentonuma cadeira chamada privada(tempo) Pois bem, esta cadeira a minha vidaVeio do meu pai, foi por mim honradae eu s passo pra bunda merecida. (HOLANDA & PONTES, 1998, p.49)

    No fragmento acima possvel identificar a formao ideolgica do discurso, ouseja, o conjunto de representaes que esclarecem, explicam as condies deorganizao social. Fica bastante claro aqui que a viso de Creonte corresponde viso da classe dominante: sua cadeira assemelha-se a um trono. Seu discurso educativo; ele pretende, atravs da fala, ensinar a Jaso o que uma cadeira e qualtipo de cadeira mais valioso.

    A anlise pode ser aprofundada se for considerado o lexema cadeira, a fim deidentificar o que esse lexema traz do mundo extralingstico; mais do que simplesfigura, a cadeira passar a representar uma conexo entre expresso e contedo,instaurando uma nova forma de viso e entendimento de mundo, a partir do momentoem que todo o conjunto smico cadeira acionado para conscientizar Jaso de queprecisa passar de um sujeito de estado para um sujeito do fazer, medida que for seapropriando de um objeto-valor que a ascenso social, medida que um querer-serse afirme em sua performance, tudo condicionado pelas sanes impostas por seudestinador-julgador, Creonte.

    Pode-se dizer que, no fragmento acima, o intuito de Creonte manipular Jasopor meio da tentao e da seduo, a fim de que ele se sinta competente para ocuparcerta posio que lhe ser oferecida quando se casar com Alma, a filha do poderoso.A fim de atingir seus objetivos, Creonte reveste o tema da ascenso social e dodesequilbrio entre as oportunidades oferecidas s diferentes classes sociais, com afigura da cadeira, mostrando que a mesma passa por um processo de metamorfosecom vistas realizao do sujeito pragmtico (sujeito do fazer).

    Ao mesmo tempo, o enunciador, com o intuito de criar iluso referencial para oenunciatrio, faz um reinvestimento figurativo no tema da ordem social e econmica,mostrando, mais do que a ascenso social, a luta de classes e a sociedade de castasa qual julga estar vigindo na sociedade - a hereditariedade da fortuna, da sorte, afinala cadeira passa de pai para filho. Tambm vai mais alm quando iguala todos suacondio humana, disjunta de seus objetivos, disfrica o homem na privada.

    Essa fala decorre de uma seqncia de aes em que Jaso est na casa deCreonte e l existe uma espcie de trono. A cadeira do rei. Pode-se perceber queCreonte, ao explicar para Jaso o que de fato esse mvel no qual se senta, usa umasrie de figuras aparentadas: a cadeira, o trono, o banco da praa, o banco escolar. Oque ele quer provar a Jaso , justamente, que a cadeira pode moldar o homem;ironicamnete, coloca o baixo corpo como o destinador da ao, da mudana de estadosdo sujeito. A cadeira consiste em um objeto dinmico, pois permite o transitar de umapara outra classe social. Creonte tenta convencer Jaso de que, ao compreender oque de fato significa esse mvel, ele poder valer-se de um objeto-valor que lhegarantir a competncia para desfrutar o que de melhor o mvel pode oferecer.

    Conforme essa figurativizao vai sendo processada, a coerncia semntica dodiscurso refora-se pelos efeitos de realidade causados a cadeira reconhecida,por ambas as partes, Jaso e Creonte, e ancora determinados tempo e espao,concretizando a formao discursiva.

    Jaso no sabe exatamente o que quer, mas ao desabafar compondo a Gotadgua e relacionando-se com Alma, passa a perceber que a superao de sua condiode proletrio, de muturio da casa prpria possvel. Troca a mulher envelhecida por

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    Diana Junkes Martha Toneto Breves consideraes sobre figurativizao em Gota Dgua: ideologia e lugar social

    uma nova, promissora, para assumir uma posio de destaque enquanto sambista,enquanto ser humano; mas, por outro lado, parece ignorar que est deixando de lado achance que possui de ser uma voz que ecoe em favor de sua prpria classe aperspectiva de assentos mais confortveis (e cmodos) que o seduz; manipulado, adquirecompetncia para colocar-se contra os seus, defendendo os interesses de Creonte.

    Da mesma forma, a sociedade brasileira havia trocado as incertezas da democraciapor um grande respaldo ao golpe civil-militar de 1964. Os anos do Milagre Econmico(1967-1973) assinalaram grandes tronos elite e classe mdia; mal sabiam que,assim como Jaso, teriam que, cedo ou tarde, sacrificar-se em prol de seu novoassentamento na vida poltica e econmica do pas. A traio feita a Joana equivale traio feita ao povo de maneira geral. Em poucos anos descobriramos que o discursodo pas do futuro era falacioso (CASTRO, 1984).

    Assim sendo, todo o percurso do sujeito figurativizado a ao de sentardetermina o que cada um socialmente e as possibilidades de xito ao se passar deuma cadeira dura, injusta, desequilibrada ao trono to confortvel. Aos poucos, Jasoadquire competncia para essa ao de sentar; vai, gradativamente, sendo e estandono mundo de outra forma. Enquanto Joana se desequilibra de um banco a outro, semassento, sem dinheiro, sem f e com muita raiva, Jaso passa da arquibancada cadeira numerada, avaliando-a euforicamente.

    Jaso chega mesmo a atribuir um conjunto smico cadeira de Creonte bastantesignificativo: macia, gostosa, d para relaxar o corpo. evidente que, sendo acadeira de Creonte a cadeira do poder, tudo bom, no h preocupaes, no h oque temer a elevao na hierarquia social implica aumento de segurana econmica a cadeira de Creonte tentadora, sedutora e isso permite que o heri sejamanipulado. Ele precisa estabelecer-se enquanto sujeito. Ao longo de toda a pea nose mostra como um sujeito do fazer: Joana que o competencializa a ser um homemde fato, mestre Egeu, o lder dos moradores, que o competencializa a ter umaprofisso, que lhe ensina uma profisso. Creonte que o tornar competente paraascender socialmente enquanto abandona aqueles que precisam de sua voz.

    Essa ascenso de Jaso ser-lhe- atribuda pelo casamento, embora mereadestaque o ponto em que Creonte o alerta sobre a hereditariedade do assento. Esseaspecto muito interessante e refora a inteno dos autores, destacada na introduo:no h como mudar de vida; quem nasceu pobre e fracassado continuar assim, umavez que a lgica perversa de transferncia de renda do proletrio para a elite a almada acumulao capitalista que estava sendo, cada vez mais, vivenciada no pas deforma assustadora.

    Opem-se a todo momento as condies do sentar. O sentar significa enquadrar-se ou ser classificado o sentar corresponde ao ser e estar no mundo. Vejamosalgumas passagens com mais detalhes:

    Creonte, assumindo seu papel temtico dentro do discurso, comea explicandoque a cadeira molda o sujeito pela bunda desde a escola at os postos mais elevadosda hierarquia social, molda pelo assento, pela deformao que causa na extremidade docorpo usada para sentar a bunda, a destinadora da ao. A cadeira, dentro da ironiado discurso acima apresentado, o que equilibra o homem, que acolhe a fortuna ou omalogro. O palhao, se visto enquanto povo, no tem onde sentar, s imagina cadeiras, motivo de risos, de tristeza clown, A cadeira do povo iluso, como o circo.

    O discurso de Creonte reitera a dignidade dos tronos e assentos divinos e desnudaas humildes cadeiras daqueles que vm de baixo, que esto abaixo das cadeiras e malse erguem para nelas sentarem-se. o caso das prostitutas, dos bbados, dos doentes,dos deformados pela pobreza. Ainda que todos os homens se sentem, se sintam, naprivada ela no a mesma para todos.

    Ao final dessa fala, Creonte convida Jaso a sentar-se e nesse momento queele desenvolve, na seqncia, comentrios que correspondem ao conjunto smico doconforto da cadeira, j destacados acima:

    CREONTE: Muito bem, Noel RosaUm dia vai ser sua essa cadeiraQuero ver voc nela bem sentado,como quem senta na cabeceirado mundo. Sendo sempre respeitado,criando progresso, extirpando pragas,traando o destino de quem no tem,fazendo at samba, nas horas vagasPorm... Existe um pequeno pormNo vai ser assim, pega, senta e bastaPrimeiro voc vai me convencerque tem condies de assumir a pasta(...) J que vamos dividir este assento,um trabalhinho j apareceupara voc demonstrar o seu talentoAquele Egeu, parece at que seucompadre...(HOLANDA & PONTES, 1998, p.52 et seq.)

    Percebe-se que, ao procurar manipular Jaso, seduzindo-o com a perspectivade ascender socialmente, Creonte realiza seu programa de manipulao sobre umsujeito, uma vez que este j est prximo de um querer-ser e deve passar ento deum sujeito de estado a um sujeito do fazer, indo do estado de pobre e muturio deCreonte condio de genro e herdeiro da fortuna e das mesquinharias do futurosogro. O samba ser feito nas horas vagas e, para merecer sentar-se no trono preciso executar algumas tarefas como, por exemplo, falar com Egeu, que organizaum movimento popular contra Creonte.

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    A figura da cadeira bastante rica para a discusso do homem na sociedade declasses e recorrente tambm em outros autores. Veja-se, por exemplo, o seguintepoema de Joo Cabral de Melo Neto, publicado no livro A educao pela pedra,escrito entre os anos de 1962 a 1965, portanto anterior ao trabalho de Chico Buarquee Paulo Pontes.

    SOBRE O SENTAR-/ ESTAR-NO-MUNDO

    Ondequer que certos homens se sentemsentam poltrona, qualquer assento.Sentam poltrona: ou tbua-de-latrina,assento alm de anatmico, ecumnico,exemplo nico de concepo universal,onde cabe qualquer homem e a contento.

    Ondequer que certos homens se sentemsentam bancos ferrenhos, de colgio;por afetuoso e diplomata o estofado,os ferem ns debaixo, seno pregos,e mesmo a tbua de latrina lhes negao abaulado amigo, as curvas de afeto.A vida toda se sentam mal sentados,e mesmo de p algum assento os fere:eles levam em si os ns-seno-pregos,nas ndegas da alma, em efes e erres.

    Ao ler o poema, uma das constataes a que se chega que prprio dacondio humana estar/ser sentar/sentir ondequer que certos homens se sentem.Veja-se aqui que podemos fazer tanto a leitura relacionada ao verbo sentar, quanto aosentir. O poema anuncia que tratar da condio humana, ir discorrer sobre o sentar/estar no mundo. Sentar enquadrar-se em determinada posio, seja um sentarpoltrona ou um sentar tbua-de-latrina; bastante marcada a semelhana entre essepoema e o fragmento extrado da pea. Sentar um moldar-se pela parte inferior docorpo, pelas ndegas do corpo que podem encontrar afetos de veludo (ondequer quecertos homens se sentem/sentam poltrona, qualquer assento) ou desafetosproporcionados por ns-seno-pregos (ondequer que certos homens se sentem/sentambancos ferrenhos, de colgio). Alguns homens so, outros apenas esto no mundo; odesconforto surge da condio humana, da condio trgica do ser humano preso ssuas paixes, s instituies sociais que o constituem enquanto sujeito social, entretantas outras coisas.

    Aqui a condio do estar coloca-se antes da condio do ser. Na verdade, osentar que determina a forma de estar no mundo. No importa a classe social; odesconforto surge da condio humana que, se premia alguns com afetos para as

    ndegas do corpo (sentam poltrona), os fere, em efes e erres, em fezes e erros, nasndegas da alma.

    As ndegas da alma precisam de afeto mais do que tudo. H sempre um sentar malsentado. Aqui, alm do tema da ordem social e da explorao do homem pelo homem, possvel apreender, dado o revestimento figurativo, que os seres humanos no fogem a umponto de partida, que os pe iguais, apesar das especificidades: a cadeira objeto/smbolo dacondio humana. Ondequer generaliza os assentos, torna o ato de sentar universal.

    Se for possvel pensar na intertextualidade referente aos textos analisados nestetrabalho, na comunicao que estabelecem, pela semelhana, pode-se ver que, ostextos mais do que historicamente marcados, tratam de aspectos da subjetividadehumana. Tratam do querer- ser, do vir-a- ser, do tornar-se homem. Jaso, alm deser um muturio da casa prpria, de no estar devidamente assentado, bem comoseus companheiros da Vila do Meio-Dia (local onde decorre a ao da pea), podeno ser visto como um sujeito em si; a todo momento busca sua metamorfose emalgo que no . Se no comeo de sua vida adulta senta-se ao colo de Joana, meJoana, mulher mais velha e experiente, se aparece, se est atrs do balco da loja deconsertos de rdio de Mestre Egeu ou se, finalmente, senta-se e sente-se assentado,fundassentado, no trono de Creonte porque pode haver uma busca maior em todo oseu percurso, uma busca que supera sua condio de pobre, uma busca pelo velocinode ouro, de um ouro que sequer sabe se existe, mas que tenta, deseperadamente,conseguir. Mais do que estar no mundo, Jaso quer ser no mundo e efetivar-seenquanto sujeito, o que no significa que v conseguir.

    Jaso um sujeito trgico, no tanto pela sua imperfeio, mas por no perceber,por no se dar conta da totalidade de sua imperfeio.

    Concluses

    Os discursos acima analisados, dentro da perspectiva das isotopias figurativas etemticas, isto , reiterao de quaisquer unidades smicas, tm sua coerncia semnticaassegurada por essas recorrncias de figuras e temas. A cadeira metfora do lugarsocial e metonmia de uma estrutura social de classes.

    Enquanto figura de palavra ou frase a cadeira funciona como um conector deisotopia quando pensamos que a a cadeira molda o sujeito pela bunda pois a maneirade cada um ser determinada pelo assento em que se senta, estabelecendo a oposioentre o trono confortvel e a dureza dos ns, seno pregos, passando por diversostipos de assento do banco da praa cadeira de rodas, todos trazendo a idia de quea cadeira reflete a maneira do ser humano perceber-se enquanto sujeito, dado oassento em que se senta permite-nos supor a cadeira enquanto um destinador alm deser o prprio objeto-valor que o destinador do sistema elegeu.

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    Diana Junkes Martha Toneto Breves consideraes sobre figurativizao em Gota Dgua: ideologia e lugar social

    tambm um desencadeador de isotopia quando passamos a fazer uma leitura deque a cadeira reflete no apenas o ser, mas tambm o estar no mundo. O lexemaprivada traz a idia de que a igualdade material pode ser uma falcia; a igualdade dada pela sensao de desafeto que percebem as ndegas da alma; estar na privada noiguala ningum, pois trono, bancos de praa e de colgio, cadeiras de prostitutas apenasferem cada um com os pregos do estigma da classe social a que pertencem, opondo ariqueza do trono ausncia de assento do palhao, aqui entendido como povo.

    Por fim, procurou-se discutir a possvel interdiscursividade entre o texto deChico Buarque e Paulo Pontes e o poema de Joo Cabral para que a anlise fosseilustrada e reforada por posies de enunciao que dialogam, embora cada umaapresente suas especificidades.

    Importante ressaltar tambm que, se partirmos da enunciao-enunciada feitana introduo da pea A Gota d gua, poderemos verificar que entre tantas outrasfiguras presentes no enunciado, ali institudas com o objetivo de criao de realidade,de iluso da verdade, a cadeira busca um contrato de veridico entre o enunciador eo enunciatrio, desde que ambos a reconheam como figura do mundo natural e queestabeleam a conexo dela como forma de reiterar uma nova viso e uma novaperspectiva do mundo a fim de transform-lo.

    TONETO, D. J. M. Brief considerations about figurativization in Gota Dgua: ideologyand social milieu. Itinerrios, Araraquara, n. especial, p. 23-33, 2003.

    ABSTRACT: The aim of this work is to discuss some discoursive aspects, morespecifically the figures and themes present in the play Gota dgua, by Chico Buarquee Paulo Pontes, estabilishing relations between this dramatic text and a poem byJoo Cabral de Melo Neto Sobre o sentar-/ estar no mundo. Considering the poeticcharacteristc of both the play and the poem, semiotic figures appear and allow us tonotice many referencial ilusions created to produce real effects once the discourse isnot the reality per si, but a mecanism of reality presentation. The chair, in both object-texts, is one of these figures and it covers not only the social class and the socialfight themes but also the way people can find their own being as long as theirhuman trajectory lasts.

    KEYWORDS: Semiotic; discourse; performance; figures and themes; competence,manipulation.

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