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PORTO ALEGRE, DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 FILHO DA RUA Felipe é infantil, mas agressivo; pede ajuda, mas não larga o crack; procura a família, mas vive nas esquinas. A sociedade sustenta seu vício com esmolas. A mãe cansou da luta para resgatá-lo. Projetos sociais dos governos fracassaram na missão de ajudá-lo. Por três anos, ZH seguiu os passos de Felipe e mostra, nesta reportagem, como a mistura de omissão, pobreza, desestrutura familiar e falta de horizontes é o berçário ideal para o nascimento de um menino de rua.

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PORTO ALEGRE, DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

FILHO DA RUAFelipe é infantil, mas agressivo; pede ajuda, mas não larga o crack; procuraa família, mas vive nas esquinas. A sociedade sustenta seu vício com esmolas.A mãe cansou da luta para resgatá-lo. Projetos sociais dos governos fracassaramna missão de ajudá-lo. Por três anos, ZH seguiu os passos de Felipe e mostra,nesta reportagem, como a mistura de omissão, pobreza, desestrutura familiare falta de horizontes é o berçário ideal para o nascimento de ummenino de rua.

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Nesta reportagem especial, você vai conhecer os passos deum menino que peregrina há nove anos pelas esquinassem que ninguém consiga detê-lo. Com autorização doJuizado da Infância e da Juventude, ZH acompanha ajornada de Felipe* desde março de 2009. Identificado

entre 383 crianças e adolescentes em situação de rua emcenso realizado na Capital em 2008, o guri hoje com 14

anos tem uma história que revela um pouco de todos eles.Para contá-la, ZH reconstituiu sua trajetória.

Desde a casa onde Felipe cresceu até as calçadas em quedormia. Das 320 páginas que registram sua passagem

por diferentes instituições às memórias da mãe e deeducadores que conviveram com ele. Das escolas de onde

fugiu aos abrigos que o acolheram.Como ele, outros chegam às calçadas empurrados por ummisto de pobreza, negligência familiar, defeitos na rede de

proteção, indiferença da sociedade, esmola, drogas.Nas páginas a seguir, você vai entender

por que não conseguem sair.

SOZINHOA cidade dá à luz mais

um menino de rua

Os nomes do menino e da família foram trocados para preservar as identidades, conformedetermina o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para consultar os documentos que registram

esta história, Zero Hora obteve autorização da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital.

A mãe aprendeu a ler as sombrasentre as esquinas. Caminhaolhando para os lados, arque-ando as sobrancelhas desenha-das com uma pinça. Em cada

vulto, procura o filho caçula, de 11 anos,a quem não vê há um ano e 18 dias. Se-gue em direção à Vila dos Papeleiros, naprincipal entrada da Capital, forçando aperna esquerda que a paralisia infantilencolheu. Soube por uma vizinha queo menino está nas redondezas, onde háum ponto de venda de crack. Na tardequente deste 27 de março de 2009, car-rega a tensão de uma jornada decisiva.

Sua última busca por Felipe.Cansada da luta para resgatá-lo, Maria

tomou uma decisão.Vai viver ao lado damãe e das irmãs em Torres. Antes, querencontrar o filho. O suor escorre pelopeito enquanto ela espreme as mãos, dei-xando à mostra as unhas pintadas comesmalte rosa cintilante. Não é porque épobre que não tem que se cuidar, diz.

Felipe começou a fugir de casa aos cin-co anos.A mãe admite que nunca conse-guiu cuidar direito dele e dos cinco filhosmais velhos. Passava os dias limpandocasas, cuidando das crianças dos outros.Mas acredita que o menino teria retorna-do para o lar erguido com tábuas de lixoreciclado, no bairro Bom Jesus, se nãoganhasse tanta esmola de gente que ima-gina estar fazendo uma boa ação.

Maria não quer conversar agora – estáocupada distinguindo rastros. Ao entrarna vila, fixa o olhar em um menino mo-reno, com uma camiseta verde grandedemais. Parece com Felipe, embora tãomais magrinho desde o último abraço.Apressa o passo e o menino corre.

– Ele nunca fugiu de mim antes, não

REPORTAGEM: LETÍCIA DUARTE

[email protected]

IMAGENS: JEFFERSON BOTEGA

[email protected]

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As 320 páginas de documentoscompilados desde 1998 sobreFelipe contam sua peregrinaçãopelas ruas e comprovam quepassou imune pelos serviços deproteção em que foi incluído:

❚ Foram 105 encaminhamentosdo Conselho Tutelar

❚ A família foi inserida em5 programas sociais: Bolsa-Escola, Bolsa-Família, Programa deErradicação do Trabalho Infantil,Núcleo de Apoio Sociofamiliarda prefeitura de Porto Alegree Ação Rua

❚ Foram9 encaminhamentosda Promotoria da Infância e daJuventude e3 do Juizado daInfância e da Juventude

❚ Felipe foi internado 7 vezespara tratar sua dependênciaquímica

❚ Omenino passou por3 abrigose foi matriculado em4 escolas.Continua analfabeto

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deve ser ele – raciocina.Era. O menino corre em direção à Ave-

nida Castelo Branco. Maria não o alcança,e pergunta a uma moradora de rua se oconhece.A resposta pesa como sentença:

– Sim,ele me chama de mãe.Quando apareceu em busca de uma

pedra de crack, Felipe havia dito à mulherque seus pais haviam morrido.Maria nemsabe o que dói mais: a fuga ou a morte in-ventada,a mentira ou a realidade.

– Ele sempre vem correndo e me abra-ça. E aí diz: desculpa, mãe, não vou maisfugir. Hoje, ele nem olhou pra trás – la-menta a mãe verdadeira.

Maria acredita que o filho vai voltar.Comprime os lábios, entrelaça os dedosnuma prece sem reza. Espera na casa ofe-recida por uma vizinha do ponto de tráfi-co, onde observa desde crianças até ido-sos sucumbirem ao mesmo vício. Fazemfila diante da porta do traficante. Quandoum jovem de boné e abrigo azul-marinhoaparece para distribuir a droga, 12 delesse amontoam ao seu redor. Convertidosem zumbis, não percebem que são obser-vados. Olhos vidrados, disputam as pe-dras como se fossem diamantes, corremem direções opostas para consumi-las.O vaivém é permanente. No meio da tar-de, a polícia faz uma batida na vila.Vinteconsumidores de crack são encostadosnum paredão. Outros dois fogem. A mãeespreita para ver se reconhece o seu filhoentre eles.Felipe não está ali.

Às 19h30min desta sexta-feira, eladesiste de esperar. Deixa recados entreos moradores, que digam ao filho queela vai embora na quarta-feira, que eleapareça em casa antes para acompanhá-la a Torres. Enxuga as lágrimas pelo ca-minho. Diz que precisa voltar para cui-

dar do neto que cria. Morar no Litoralé também uma tentativa de evitar queo pequeno de seis anos tenha o mesmodestino de Felipe e seus irmãos. Ummorreu assassinado, outro está presopor roubo, um terceiro passou pela Fase.As duas irmãs também caíram nas dro-gas e perambularam pelas ruas.

– Outro dia com a casa vazia – suspira.

AMÃE ESPERA, EMVÃO

Nos dias seguintes, reza para que ocaçula apareça enquanto acomoda asroupas em caixas de papelão para a mu-dança. Levará consigo o filho de 17 anos,o neto e a gatinha de estimação, que rece-beu o nome de Anjinha pela pelagem to-da branca.As filhas são maiores de idade,vão seguir seu próprio destino.

No dia da partida, deixa separada umamuda de roupa limpa, para o caso de en-contrar Felipe pelo caminho. No trajetoda Vila Bom Jesus até a Estação Rodovi-ária, mantém a cabeça colada no vidroda Kombi que contratou para o frete como dinheiro da venda da geladeira e dospoucos móveis. Maria se apega à remotaesperança de que o menino apareça derepente. Sentada em um banco da Rodo-viária, segura com a mão direita a cabeça,que pensa no filho ausente, enquanto vi-gia Anjinha, quieta em uma caixa própriapara o transporte no ônibus.

– Preciso ir com ou sem ele, já pareimuito tempo a minha vida – desiste.

Foge da realidade no dia da mentira,1º de abril de 2009. Desde então, a crian-ça não tem mais uma casa para voltar.A cidade dá à luz oficialmente mais ummenino de rua.

Na Vila dosPapeleiros,Felipe fogede Maria,que percorrea cidade asua procura.Separandomãe e filho,estão as ruas,a esmola eo crack.

Em 2009, aos 11 anos, Felipejá era um veterano das ruas:

perambulava pela Capitaldesde os cinco

DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

Tentativas fracassadas

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Herdeiro deum lar em crise

O flash de uma infância feliz ficouimortalizado na fotografia: aos três anos,um Felipe de cabelos loiros encaracoladosfaz pose em cima de um pônei empresta-do por um vizinho, na Vila Mário Quinta-na,na zona norte de Porto Alegre.

O sorriso eternizado no único retratode sua infância conta pouco de sua his-tória.A foto foi tirada logo após a separa-ção dos pais, em 2001, uma perda nuncacompletamente superada pelo menino.

As fugas se tornaram rotina em segui-da. Longe da vigilância da mãe, que pas-sava o dia fazendo faxinas, dizia que saíapara procurar o pai, a quem sempre idea-lizou como um herói.

Maria explicava ao filho que precisoumandar embora o companheiro de duasdécadas porque estava cansada de apa-nhar. Nos bons tempos, o pai dos seis fi-lhos trabalhava como vigilante no estádioBeira-Rio. Perdeu o emprego de 14 anospor causa do alcoolismo. A esposa nãoconseguia perdoá-lo. As marcas da vio-lência lhe gritavam cada vez que olhavano espelho. De tanto levar socos do mari-do na boca,perdeu três dentes da frente.

– O doutor disse que vão cair todos,

porque ficaram moles, matou a raiz. Doiscaíram de uma tacada só, enquanto eu es-covava os dentes – entristece-se Maria.

Sua sexta gravidez não foi planejada,mas nem por isso era indesejada. Comcinco filhos em idades entre seis e 19anos, a doméstica de 37 anos sentia fal-ta daquelas atenções que só as gestantesrecebem, da emoção que o filho começaa dar para a mãe antes mesmo de serparido. Acreditava que a chegada de umbebê poderia trazer dias melhores. Nun-ca tomou anticoncepcionais, confia queDeus sabe das coisas.

Os pés que anos depois iriam se perderentre as esquinas da Capital já denuncia-vam sua inquietude no Hospital Concei-ção, onde Felipe nasceu, às 18h47min de15 de fevereiro de 1998.

A agitação do bebê que se apresentouao mundo com 3,59 quilos e 51 centí-metros fez com que seis dedos ficassemgravados na ficha do teste do pezinho.Asbochechas vermelhas contrastavam como cabelo castanho do recém-nascido, queirrompeu de parto normal após as 41semanas e um dia em que sacolejou nabarriga de Maria, enquanto a mãe limpa-va casas de família.

Sem poder parar de trabalhar, deixavaFelipe sob os cuidados de uma sobrinhae das filhas, de 11 e 14 anos. Combinavacom elas para que levassem o bebê até o

seu serviço, para que pudesse amamen-tar. Agradecia a Deus por nunca ter lhefaltado leite – e o filho mamaria até osquatro anos de idade.

Afastado do pai, Felipe cresceu sem po-der contar com o exemplo dos irmãos.Longe da vigilância da mãe,que passava osdias batalhando o almoço do dia seguinte,os filhos mais velhos traçavam a própriageografia.Em 2000,quando o caçula tinhadois anos, a irmã de 15 anos e o irmão de16 foram apreendidos por furto de lâm-padas. O filho de 12 tinha reclamações naescola por roubar merenda dos colegas.O mais velho cumpria pena por roubo. Oconsumo de loló virou rotina entre os maisvelhos.Apesar das dificuldades para criara prole, a mãe decidiu não fazer laqueadu-ra após o sexto parto. Pensava: e se depoisquisesse mais um bebê?

Na primeira tentativa de reconstruçãode sua vida, em 2001 a doméstica assu-miu um novo relacionamento, com umservente de pedreiro que havia estudado

até o segundo ano do Ensino Médio e aconquistou com seu jeito trabalhador.

– Ele sai de casa pra trabalhar mesmocom chuva. Se precisa, cata latinha, qual-quer coisa – entusiasmou-se.

Apaixonada, Maria começou a dedicarmais tempo para o novo companheiro,e em agosto do mesmo ano, engravidoupela sétima vez. Felipe reagiu mal à mu-dança. Sentindo falta do pai e ciúme damãe, rejeitava aquele estranho que tenta-va impor sua autoridade na casa, dandoordens sobre a hora de comer, de dormir.Não queria saber de outro homem ao la-do de Maria.

– Eu não quero que tu viva com a mi-nha mãe, quero que ela fique sozinha oucom meu pai – dizia para o padrasto.

– Por que tu não volta com meu pai? –repetia para a mãe, que acabou sofrendoaborto espontâneo meses depois.

Embora Maria negasse, os filhos re-lataram às autoridades que o padrastotambém ficava agressivo quando bebia e

Procurar o pai, que saiu de casa porconta do alcoolismo, foi o primeiro

pretexto para Felipe sair às ruas.Mas o reencontro foi decepcionante.

FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

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batia neles. Em 2 de julho, uma das filhasqueixou-se de maus-tratos a técnicos daJustiça Instantânea, que acompanhavama adolescente desde 1998,quando foi acu-sada de roubar roupas em uma loja.

“Disse que o padrasto, no dia anterior,colocou seu irmão D. embaixo da águafria do chuveiro e bateu-lhe com cinta, dei-xando-lhe com vários vergões. Depois seuirmão foi para a escola e, por medo, nãoretornou mais para casa, não sabendo on-de ele se encontra. V., que havia se queixa-do, anteriormente, do padrasto que grita-va muito com ele e quis lhe bater com umespeto, também saiu de casa e não sabemonde ele está. Apesar de Felipe ter apenastrês anos, puxa-lhe as orelhas e coloca-o dejoelhos. Costuma chamar B. de vagabun-da, dizendo que ela não presta para nada.Em outra ocasião, a adolescente queixou-se que a mãe havia lhe agredido com cabode vassoura”, registra o documento.

PASSE LIVRE PARA SAIR DE CASA

Diante do acirramento do conflito fa-miliar, Felipe começou a sair de casa commais frequência.Com a cumplicidade doscobradores de ônibus,que permitiam quepassasse por baixo da catraca, ganhou opassaporte para sair da vila rumo ao Cen-tro.Em suas viagens,descobriu uma novacidade. Ruas calçadas com prédios gran-des e bonitos como nunca tinha visto, opôr do sol do Guaíba, praças cobertas deárvores e brinquedos que não havia nasvilas onde morou.

A busca pelo pai passou a ser pretex-to para caminhar guiado pelos própriosprazeres. Descobriu o Parque da Reden-ção, encontrou meninos e meninas comoele, vagando sem destino. Um mundo di-vertido, onde não precisava seguir regras,e onde as pessoas lhe davam comida edinheiro assim que estendia a mão.

De tanto procurar pelo pai, um dia Feli-pe acabou encontrando.Aos oito anos, emuma de suas andanças pelo centro da Ca-pital, descobriu que seu herói também pe-rambulava sem destino, catando latinhas.Animado pelo reencontro,voltou para casae disse à mãe que iria viver com ele nos ar-redores daVila dos Papeleiros.

A doméstica ficou triste, sabia que omarido não tinha condições de cuidar domenino, mas se achava incapaz de imporlimites.Sem sequer saber o endereço,Ma-ria informou a mudança do menino parao Conselho Tutelar, que avisou o Ministé-rio Público,em 7 de abril de 2006.

Apesar do entusiasmo de Felipe, areaproximação com o pai se revelou umailusão. O Conselho Tutelar nunca chegoua encontrar o papeleiro, e Felipe voltou ase dividir entre a rua e a casa na Bom Je-sus,com a mãe e os irmãos.

Meses depois, o pai apareceu para pro-curá-lo por lá.

– Mãe,o pai tá aí – avisou Felipe.–Vai lá falar com ele – respondeu a mãe.O filho foi até a porta e voltou:– Mas ele tá bêbado – desiludiu-se.– Pois é, meu filho, era isso que eu te

falava – consolou Maria.Desde então,o pai nunca mais foi visto.

Esmola,osustento na rua

Antes mesmo de chegar à idade de en-trar na escola,o menino já palmilhava a ci-dade.Tinha cinco anos na primeira vez emque foi recolhido no centro de Porto Alegrepela Brigada Militar, por volta das 20h dodia 24 de junho de 2003. Levado ao Plan-tão Centralizado do Conselho Tutelar,disseque morava em Alvorada. Como na épocanão havia integração informatizada entreos sistemas de atendimento na Região Me-tropolitana, a mentira foi descoberta ape-nas no dia seguinte.Desde então, a distân-cia de casa só aumentou.

Nas ruas, Felipe descobre ser capaz deconquistar sozinho o que a mãe não po-de lhe dar. Nem precisa dizer nada: bastaestender os braços finos e o dinheiro apa-rece na sua mão.Numa de suas primeirasnoites na rua, aos seis anos, o menino delábios carnudos e cabelo castanho raspa-do arrecada R$ 100 pedindo esmola narodoviária. Volta para casa de táxi, comduas sacolas de rancho. Compra bolachasrecheadas, refrigerante, chocolate – so-nhos de consumo que os R$ 80 mensaisque a mãe ganhava com faxinas nuncapuderam realizar.

– O que foi, meu filho? Tu tá passandonecessidade? Tu não tem comida em casa?– repreende-lhe Maria.

Felipe desconversa,promete que não vaimais fugir, parece tão feliz que a mãe nãoconsegue castigá-lo.Nos dias seguintes, fa-la que vai jogar bola com os amigos e desa-parece novamente. Preocupada, Maria co-meça a segui-lo,recolhê-lo das calçadas doMercado Público, trancar a porta de casa eesconder a chave embaixo do travesseiro.Felipe sempre descobre os esconderijos,in-venta novas desculpas para sair.Reaparececom sorriso aberto e dinheiro no bolso.

– Só tem uma razão para as crianças es-tarem nas sinaleiras: é porque ali ganhamdinheiro.A esmola é o que fixa as criançasna rua – adverte o desembargador BrenoBeutler Júnior, que atuou durante 18 anosna 1ª Vara da Infância e da Juventude daCapital,inclusive no caso de Felipe.

Sem que a família consiga deter a tra-jetória itinerante, a matrícula do meninona pré-escola fica só no papel.A sequên-cia de faltas está registrada no caderno de

chamada de capa verde do Jardim B, daprofessora Neli. Das 50 aulas do primeirobimestre de 2004, o menino de seis anosesteve em apenas quatro. Como até entãonessa faixa etária o ensino não era obriga-tório,nenhuma providência foi tomada.

No ano seguinte, a mãe volta ao Conse-lho Tutelar e pede ajuda para matricularFelipe na primeira série. Sob o número3061, a vaga é assegurada em uma escolaestadual perto de casa, em ficha escolarpreenchida com caneta preta, assinadapor Maria. A esperança dura pouco. Nosprimeiros dias vai à aula, mas, na hora dorecreio, pula o muro de 1m50cm, pega oônibus e volta para o Centro.

Felipe tem 179 faltas consecutivas aolongo do ano,mas só em 20 de outubro de2005 – no final do ano letivo – a mãe re-cebe uma advertência do Conselho Tutelar.Maria argumenta que não consegue con-trolar o filho de sete anos porque trabalhafora,não tem como vigiá-lo.Ainda assim,acobrança tardia obtém algum resultado. Omenino começa a frequentar as aulas em11 de novembro, totalizando 23 presençasao longo do ano.Insuficiente para aprendermais do que as letras do seu nome.

Em relatório enviado ao Conselho Tute-lar em 27 de dezembro,a então diretora daescola, Lucia Araujo, manifesta preocupa-ção com a trajetória de Felipe.

“No pouco comparecimento, foi eviden-ciado [comportamento] agressivo com co-legas,brigas,mentiras, fantasias de situaçõesvividas, conivência da mãe com atitudesinadequadas do filho, pouco acompanha-mento escolar da família, fuga da escola,inquieto para a realização de atividades naaula, além de história familiar de drogaditoe de morte do irmão mais velho. Sugerimosapoio à família, na área assistencial e desaúde,para que haja progresso escolar.”

Com o dinheiro doado por anônimos,Felipe começa a ir cada vez mais longe.Trêssemanas antes de completar oito anos, éencontrado pelo Conselho Tutelar de NovoHamburgo em situação de mendicância,no centro. Quando lhe perguntam quemé, responde que sua casa havia queima-do num incêndio e toda sua família haviamorrido. Mas durante a conversa confessaonde realmente mora. O conselheiro Val-deri Luiz Barbosa leva então o menino devolta a Porto Alegre. Antes que sua men-tira seja descoberta, Felipe foge da sala deespera do conselho da Bom Jesus,aprovei-

tando que os conselheiros estão atarefadoscom outros casos.Volta sozinho para casa.Dois dias depois, a rotina se repete: a mãeé notificada,obrigada a acompanhar a fre-quência escolar do filho.Desta vez,o meni-no é encaminhado para atendimento emserviço socioeducativo conveniado com aprefeitura naVila Bom Jesus.Chega a com-parecer algumas vezes, mas é identificadopela educadora Marta Helena Cardosocomo um aluno turista entre as 160 crian-ças que frequentam a instituição: visita devez em quando, joga futebol, mas não temconcentração na escrita nem se mostra in-teressado na hora do conto.

Em vez de ouvir historinhas de contosde fadas no serviço socioeducativo, elegecomo professores outros moradores de ruaque catam papelão nas imediações da pra-ça Garibaldi, na Cidade Baixa, e no Centro.Em 7 de março de 2006, é recolhido peloplantão do Conselho no Centro, vagan-do às 2h30min.Ao ser questionado sobresua família, diz que a mãe é falecida. Semconferir a informação nem a identidadede Felipe, o plantão conduz o menino aoAcolhimento Noturno, destinado a mora-dores de rua adultos.Assim que o sol nas-ce, Felipe volta a mendigar.Quase um mêsdepois, em 4 de abril, é localizado e levadopor educadores do serviço de aborda-gens da prefeitura para o Lar Dom Bosco,um abrigo diurno que oferece atividadesrecreativas a crianças e adolescentes.

Neste momento, o menino de oito anosjá vaga pelas ruas há três.

BOLSA PARA AJUDAR A FAMÍLIA

Para auxiliar na reestruturação,a famíliaé incluída no Programa de Erradicação doTrabalho Infantil (Peti) e no Bolsa-Famíliaem abril de 2006, recebendo um total deR$ 200 mensais. Embora um dos pré-re-quisitos da bolsa seja a permanência dacriança na escola,Felipe nunca voltou paraa sala de aula. Sem integração com pro-gramas de geração de renda e preparaçãopara o mercado de trabalho, a bolsa nãoaltera em nada a estrutura familiar.

Três meses depois de ser incluído noPeti, que atende 10.313 crianças e ado-lescentes gaúchos atualmente, o meni-no de oito anos é encontrado sozinhoem Guaíba. Recolhido pela BrigadaMilitar, é levado ao Conselho Tutelar.

DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

Quanto as crianças ganham nas esquinas

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À medida que a noite se aproxima,Felipe fica inquieto, corre para a Vilados Papeleiros. É o chamado da droga

FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

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Como diz não ter família, permanece trêsdias abrigado no município até desco-brirem sua verdadeira identidade.Ao seravisada, a conselheira Lucia Kümmel, doconselho da Bom Jesus, pega a Kombi doórgão e vai, junto com a mãe,resgatá-lo.

O caçula abraça e beija Maria ao reen-contrá-la, promete novamente que nuncamais vai fugir. Para manter o filho pormais tempo na vila, a doméstica juntaeconomias e compra de um vizinho umabicicleta usada, que ele tanto sonhava emter. Sobre as duas rodas, o menino vaiembora outra vez.

Sem notícias do filho há mais de ummês, Maria volta a recorrer ao ConselhoTutelar. Localizado no Lar Dom Bosco,Felipe diz que prefere ficar ali,“pois o pro-fessor de capoeira é bem legal”, mas quegostaria de visitar a mãe de vez em quan-do,“porque gosta dela”. Ao fim das suasdeclarações, anotadas a caneta por umaeducadora do lar, está uma constatação: omenino“não sabe assinar”.

Até hoje, aos 14 anos, Felipe não foialfabetizado.

Entre a casae as calçadas

Quanto mais o tempo passa, mais a ruadissolve os vínculos familiares de Felipe.Aos 11 anos, está há um ano morandopelas calçadas quando reaparece sozinhona rua de chão batido onde foi criado, naVila Bom Jesus.Ao chegar, em 15 de abrilde 2009, encontra aberto o portão de tá-buas irregulares da casa onde morava.Porinstantes, Felipe pensa que a mãe ainda oespera. Ao espiar entre as frestas, vê queoutra família ocupa o cenário de sua in-fância.A mãe havia se mudado para Tor-res 15 dias antes.

Já tinham lhe contado da partida.Ao verpor si próprio,reage com indiferença.

– Acho melhor ficar na rua porque meupadrasto bate em mim – diz o menino,com o olhar sombreado pelo boné verdemilitar e o corpo infantil encoberto pelacamiseta cinza tamanho adulto,com man-gas batendo no cotovelo.

Confessa ter saudade da mãe, mas nãodesfaz o sorriso.

– Diz pra ela que eu amo ela muito, praela não sentir minha falta.

Embora apresente o olhar um tantoperdido,a fala enrolada,aos olhos dos vizi-nhos ainda parece o mesmo guri que gos-tava de jogar futebol quando pequeno.Asvizinhas espiam pelos portões para confir-mar se é ele mesmo.Em minutos,uma de-zena de crianças forma um círculo ao seuredor.A todos os que se aproximam,Felipesaúda com um abraço,um sorriso.

– Oi, eu voltei – repete, como quem re-gressa de uma viagem.

Entre os amigos que o cercam, está umvizinho da mesma idade,que durante doisanos foi engraxate no centro da cidade e,com ajuda do Conselho Tutelar, regressouao lar.No caso dele,o vínculo com a escolafoi decisivo.Mesmo quando ia para o Cen-

tro, nunca parou de frequentar a sala deaula, e àquela altura, está na terceira série.Ali também estão dois meninos, de novee 10 anos, que já venderam amendoim ebergamota nas sinaleiras da Ipiranga,per-to do entroncamento da PUCRS.

– A gente só parou de ir vender na sina-leira porque o cara deixou de nos dar ser-viço – contou um deles.

A volta do ex-vizinho é transitória.Pouco antes das 17h, Felipe decide partir.Atravessa a rua principal da Bom Jesusrumo à parada de ônibus, deixando peloasfalto o rastro dos papéis das balas queganhou dos amigos. Entra na linha 671da Unibus, passando por baixo da roleta.O destino é a Vila dos Papeleiros, onde háum ponto de crack.

– O certo seria não deixar esses gurispassarem, mas sabe como é, a gente temmedo. Uma vez, um cobrador não deixoue depois o pai do guri, que era traficante,deu três tiros na cabeça dele – justifica ocobrador, contando que em linhas como aEducandário chegam a passar 80 criançaspor baixo da catraca a cada dia.

Sentado no fundo do ônibus,Felipe can-ta versos de glória, aleluia. Músicas quelembram a religiosidade de sua infância,no tempo em que ia com a mãe à igreja esonhava em ser pastor. Diz que não saberezar,mas acredita em Deus.

– Acho que ele pode me tirar dessasdrogas – crê.

Não gosta de falar sobre o crack, nemsobre onde dorme.Corta a conversa dizen-do que quer parar com tudo.Arrisca pla-nos para o futuro.

– Se alguém me oferecer um serviço,vou trabalhar e vou parar de usar. Voucomprar uma casa e uma televisão e voucomprar minhas roupas,meu guarda-rou-pa e um carro ou uma moto – enumera,num sorriso tímido.

À medida que o Centro se aproxima,as-sume outra personalidade.Não quer maisconversar. Desce do ônibus correndo, naAvenida Cristóvão Colombo. Desvia dospedestres com seu tênis Mizuno brancoencardido, que garante ter comprado porR$ 1. Apanha um pedaço de arame dacalçada,começa a apontá-lo a quem cruzaseu caminho.

– Passa a bolsa,passa a bolsa – grita pa-ra uma mulher,sem deixar de correr,nummovimento que faz balançar os pingentesem formato de estrelinha da corrente pra-teada que carrega no pescoço.

No caminho rumo ao ponto de crack,atravessa a rua cortando a frente de umônibus. Passa por uma banca de churras-quinho montado sob as paradas dos cole-tivos e ganha um espetinho.

– Eu sempre dou força pra esse menino– acredita José Bento,o dono da banca,umdos que ajudam a mantê-lo na rua.

Sai mastigando. Pensa em parar parapedir esmola diante de um supermer-cado, mas segue adiante. Recolhe umapedra no chão, faz de conta que vai ati-rar contra um outro morador de rua quepassa pela calçada.

– Que que é,rapaz? – provoca,agressivo.Ao chegar à Vila dos Papeleiros, cum-

primenta conhecidos, senta no pátio deuma casa onde costuma vender latinhas

que arrecada na rua para comprar crack.Puxa um cigarro amassado, um isqueirodo bolso e começa a fumar.Ri de cenas dodesenho animado Pica-Pau que passamna televisão da vizinha. Está ansioso, querdinheiro. Nesta tarde, não pediu esmola,ainda não pode comprar a pedra. Minu-tos depois,se despede com um abraço.Dizque está com sono e vai dormir. Não querser acompanhado.Ao avistar um isqueiroda grife Zippo nas mãos do fotógrafo, Fe-lipe pede para ver e sai correndo levandoo objeto. Desaparece outra vez pelas es-quinas, na escuridão das 20h. Já tem umamoeda de troca para as drogas.

A ROTINA É FUGIR DE ABRIGOS

Será mais uma noite vagando pelasruas, entorpecido. Uma rotina que nema Justiça conseguiu interromper. Um anoantes, Felipe havia sido abrigado por de-terminação judicial na Casa de Acolhi-mento da prefeitura. Como a mãe nãoconseguia cuidar do filho, a Promotoriada Infância entrou com uma ação de des-tituição do poder familiar, em 2 de abrilde 2008.A guarda foi concedida proviso-riamente ao abrigo municipal. Mas a ins-tituição se revelou incapaz de segurá-lo.De 10 de novembro até 15 de março de2009, Felipe fugiu três vezes. Na primei-ra, aproveitou um passeio na pracinha eescapou,enquanto o educador dava aten-ção às outras crianças.

– Que abrigo é esse que criança foge?– indignou-se a mãe.

A coordenação do abrigo admite que asfugas são rotina. Diz que ali é um espaçode moradia, não de detenção, por isso ascrianças não são trancadas. Mas reconhe-ce falta de estrutura. Na época, em um es-paço para 30 crianças,havia 64 – e apenasseis educadores sociais em cada turno.

– Quando se olha para o lado,um já pu-lou o muro – explicou o educador socialGilberto Lopes Leal,em 2009.

Apesar das falhas da rede, o psicólogoLucas Neiva-Silva, pesquisador do Centrode Estudos Psicológicos sobre Meninos eMeninas de Rua da UFRGS, discorda daideia de fracasso do sistema.

– Na história de várias outras criançaso sistema tem sido efetivo, ajudando-as asair das ruas. Talvez, sem essas interven-ções, o menino estivesse hoje em situaçãoainda mais vulnerável – pondera.

Em uma das vezes em que voltou aoabrigo, em 5 de março de 2009, depois dequase um mês na rua, Felipe não queriafalar com ninguém.Dormiu por dois diasseguidos. Quando despertou, começou adesenhar os automóveis que aprendeu aapreciar nas ruas. Em formas coloridas,reproduzia com fidelidade os detalhes decada peça, do motor aos equipamentosde som. Diante dos progressos, os edu-cadores conseguiram animá-lo a voltarà escola. Felipe ficou entusiasmado aocontemplar a mochila. Pediu pra ver oscadernos, o lápis, o estojo.As aulas come-çariam no dia 16, segunda-feira, na Esco-la Aberta da Vila Cruzeiro. No domingoda véspera, fugiu outra vez. Lá fora, algomais poderoso o atraía: o crack.

DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

Page 8: FILHODARUA - leticiaduartedotcom.files.wordpress.com · meninoderua. NaVilados Papeleiros, Felipefoge deMaria, quepercorre acidadea suaprocura. Separando mãeefi lho, estãoasruas,

C onheceu a droga na rua, ondecada R$ 5 ganhos com esmo-la compravam uma pedra. Elogo descobriu que o prazerinstantâneo, que vicia desde os

primeiros usos, provocava uma angústiasem fim. Mãe de dois filhos, a conselhei-ra Lúcia Kümmel ouviu consternada,mas não surpresa, o relato do menino.Sabia que há tempo o loló deixara de sera droga mais consumida pelas criançasque perambulam pelas esquinas. O desa-fio de tirá-las das ruas, com o crack, foielevado a um novo patamar.

Depois de uma mobilização do conselhopara disputar uma das 32 vagas disponíveisno município na época, Lúcia conseguiuencaminhar Felipe para um período de 21dias de desintoxicação na Clínica São José,em Porto Alegre.No dia da alta,em 7 de ja-neiro de 2007,a mãe foi apanhá-lo.Ao che-gar em casa, o menino disse que ia brincarcom os amigos e não voltou mais.

Trocou os lençóis, que a mãe fazia ques-tão de esfregar no tanque para que ficassemcheirosos, pela companhia de ratos e bara-tas dos esgotos.Em 25 de janeiro de 2007,oConselho Tutelar recebeu a informação deque o menino estava vivendo na ponte daIpiranga com a Barão do Amazonas, comsuspeitas de exploração sexual. Durante aabordagem, repararam que Felipe estavacom uma faca,num dos primeiros indíciosde agravamento da violência. Quatro diasdepois,o conselho relatou os fatos à Promo-toria da Infância e sugeriu a internação emfazenda terapêutica para protegê-lo.

Às vésperas do aniversário de nove anosde Felipe, a conselheira Lúcia tentou umaestratégia diferente para estreitar vínculos.

8

CRACKNo meio do caminho

tinha uma pedraAos oito anos, Felipe confessa à mãe por que não consegue mais

voltar para casa, mesmo quando quer. Os olhos vermelhos, alíngua enrolada e o jeito agressivo mostram o início de um novodrama que, desde então, só se agravou. Com medo da sensação

que não compreende, o menino aceita ir com a mãe até oConselho Tutelar em dezembro de 2006. Lá, pede socorro.

– Me ajuda, tia. Quero parar, mas não sei o que fazer. Me levapara algum lugar, tia – suplica à conselheira Lúcia Kümmel.

É o apelo de quem sucumbiu ao crack.

Felipe descobriu as drogas nas ruas e, com oito anos, já pedia ajuda parase livrar da dependência. Encontrou uma rede insuficiente para atendê-lo

FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

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C onheceu a droga na rua, ondecada R$ 5 ganhos com esmo-la compravam uma pedra. Elogo descobriu que o prazerinstantâneo, que vicia desde os

primeiros usos, provocava uma angústiasem fim. Mãe de dois filhos, a conselhei-ra Lúcia Kümmel ouviu consternada,mas não surpresa, o relato do menino.Sabia que há tempo o loló deixara de sera droga mais consumida pelas criançasque perambulam pelas esquinas. O desa-fio de tirá-las das ruas, com o crack, foielevado a um novo patamar.

Depois de uma mobilização do conselhopara disputar uma das 32 vagas disponíveisno município na época, Lúcia conseguiuencaminhar Felipe para um período de 21dias de desintoxicação na Clínica São José,em Porto Alegre.No dia da alta,em 7 de ja-neiro de 2007,a mãe foi apanhá-lo.Ao che-gar em casa, o menino disse que ia brincarcom os amigos e não voltou mais.

Trocou os lençóis, que a mãe fazia ques-tão de esfregar no tanque para que ficassemcheirosos, pela companhia de ratos e bara-tas dos esgotos.Em 25 de janeiro de 2007,oConselho Tutelar recebeu a informação deque o menino estava vivendo na ponte daIpiranga com a Barão do Amazonas, comsuspeitas de exploração sexual. Durante aabordagem, repararam que Felipe estavacom uma faca,num dos primeiros indíciosde agravamento da violência. Quatro diasdepois,o conselho relatou os fatos à Promo-toria da Infância e sugeriu a internação emfazenda terapêutica para protegê-lo.

Às vésperas do aniversário de nove anosde Felipe, a conselheira Lúcia tentou umaestratégia diferente para estreitar vínculos.

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CRACKNo meio do caminho

tinha uma pedra

– Por que tu mora embaixo da ponte?– questionou.

– Ah,eu vou lá pra comer melhor – res-pondeu Felipe.

– Mas o que tu não tem em casa?– Ah,xis...pastel...– Então, se eu te der pastel, tu volta pa-

ra casa?– Ah, eu sou louco por pastel.Vai ser o

melhor do mundo! – empolgou-se.No dia da festa, em 15 de fevereiro de

2007, a conselheira levou todos os ingre-dientes para a casa do menino. A mãepreparou tudo com esmero. Enquantocontemplava o sorriso do filho comendoos pastéis que substituíam o bolo de ani-versário, torcia para que a data marcasseo início de um novo ciclo.

Mas nada mudou. Como a rede muni-cipal ainda não tinha vagas para internarcrianças dependentes de crack por maisde 21 dias,o Conselho Tutelar levou quatromeses para conseguir um lugar para Felipena Chácara Nova Vida, fazenda terapêuticamantida por uma organização religiosa nomunicípio de Sertão Santana. Na primeirasemana,a educadora responsável registrouo progresso do menino em suas anotações.

“Segunda: chegou hoje. Está em adapta-ção. Demonstra ser bem espontâneo. É umpouco alterado e sem controle.

Terça: é bem agitado, mas tem condições,é bem esperto.

Sexta: é muito espertinho. Disse para oSamuel para incomodar bastante, que as-sim ele consegue o que quer.”

O plano era que ficasse nove meses in-ternado para se tratar. Ficou dois. Nesseperíodo, tentou fugir quatro vezes,até con-seguir, em 13 de setembro. Dizia ter sau-

dade da mãe, que alegava dificuldades detransporte para visitá-lo.Acabou devolvidopela direção, que argumentava não poderabrigar alguém contra a vontade.

– A fazenda tem 50 hectares e fica nomeio do mato, não temos estrutura pa-ra vigiar todos os meninos. É perigoso,os meninos podem sair e ser picados poruma cobra no meio do caminho. Por is-so, nem trabalhamos mais com meninos.Muitas mães largam aqui e nem buscammais.Parece que querem se livrar – justifi-cou em 2009 a presidente da Chácara NovaVida,NoemiAlves da Silva.

Enquanto o vício corrompia as chancesde reabilitação, os laços de Felipe com afamília se enfraqueciam.A mãe cansou deprocurar o filho sem encontrá-lo,seguindopistas esporádicas recebidas de vizinhosque o avistavam em algum lugar.Em feve-reiro de 2008, o Conselho Tutelar recebeua informação de que ele estava pedindoesmola diante de um posto de gasolina,na Avenida Farrapos. A conselheira Tâ-nia Frydrych foi até lá, acompanhada deMaria. As duas procuraram em todos oscantos. Só enxergaram um saco de lixopróximo ao cordão da calçada.De repente,tiveram uma visão estranha. O saco apre-sentava contornos humanos. Era o meni-no. Maltrapilho, sujo e drogado, em nadaparecia uma criança.A mãe sentiu um ar-repio.Pensou que Felipe estava morto.Me-xeu no seu corpo e ele não acordou. Mariainsistiu até ver seus olhos abrirem.

– Parecia que tinham colocado piche ne-le, de tão sujo. Os olhos, parecia que jorra-vam sangue,de tão vermelhos – contou.

No mesmo dia, Felipe foi internado nohospital São Pedro para nova rodada dedesintoxicação. Às vésperas de sua libera-ção, em 28 de fevereiro de 2008, a rede en-frentava um novo dilema. Não havia paraonde encaminhá-lo. O município só tinhavagas para adolescentes a partir dos 15anos. Se voltasse para casa, recairia nova-mente.O Conselho Tutelar tentou um lugarnovamente em Sertão Santana,mas a ONGque administra havia desistido de internarcrianças,pelo alto índice de fugas.

Após três semanas de espera, a mãefoi ao Conselho Tutelar buscar informa-ções. Estava esperançosa porque o filhocontinuava em casa e, graças aos medi-camentos, recuperara peso e estava “bemgordinho”. Mas a vaga tão esperada paraencaminhamento não veio. Mais uma vez,a tentativa de recuperação fracassou. Omenino voltou para casa.E para as ruas.

– A prefeitura disse que só tinha con-vênio em clínica de tratamento para ado-lescentes com mais de 15 anos.Mas,nesseritmo, ele pode não chegar aos 15 anos– preocupou-se Lúcia, que acompanhouFelipe até 2009,quando ele tinha 11 anos.

Com o aumento de vagas para trata-mento na rede municipal, outras criançaspodem ser poupadas do drama enfren-tado por Felipe.Atualmente, Porto Alegredispõe de 128 leitos para desintoxicaçãode crianças e adolescentes, com tempomédio de 21 dias de internação, e de 20vagas em comunidades terapêuticas, querecebem dependentes a partir dos 12anos,para nove meses de internação.

Apesar do aumento da rede, os profis-

sionais que assistem às frequentes recaí-das dos meninos lastimam o desperdíciode esforços: sem o acompanhamento ne-cessário após a internação, o período de21 dias de desintoxicação se revela inóquo.

– É dinheiro jogado fora. As criançasficam dopadas na clínica e, quando saem,começa tudo de novo – lamenta a psicólo-ga Claudiana de Oliveira Freitas,que traba-lhou no programa Ação Rua Eixo Baltazar/Nordeste e também tentou resgatar Felipe.

No caso dele, nada funcionou. Aos 14anos, o adolescente soma sete interna-ções. Sem sucesso. A única diferença éque, como cresceu e não ganha mais es-molas tão facilmente como antes, come-çou a roubar para sustentar o vício. Norosto, carrega um sinal da degradaçãoimpulsionada pela pedra: seu sorriso jáperdeu um dente na arcada inferior.

VIOLÊNCIA À ESPREITA

Com queimaduras de segundo grauno tórax e na face, Felipe chega ao Hos-pital de Pronto Socorro (HPS), em PortoAlegre, conduzido pela Brigada Militar, às20h4min de 19 de maio de 2009. Cobertode bolhas, que se destacam sobre a pelevermelha e suja, o menino de 11 anos éencaminhado para a Unidade de Queima-dos. Está consciente e conta uma históriaque sensibiliza toda a equipe médica.

Diz que dois homens atearam fogosobre seu corpo na Estação Farrapos daTrensurb, enquanto descansava. E quepassa os dias vendendo bala de gomapor ali. Sem mais nem menos, os doisagressores teriam chegado, atirado álcoole, em seguida, arremessado um palitode fósforo aceso. Em chamas, o meninosaiu correndo e se atirou em uma po-ça d’água. Conseguiu evitar que o fogocausasse maior dano. As enfermeiras seemocionam, redobram os carinhos aomenino de olhos amendoados e cílioslongos, que não tem casa para voltar.Quando perguntam por que os homenso queimaram, Felipe é lacônico:

– Não sei.Foi por maldade – diz.Como não aparecem testemunhas, nin-

guém sabe se a história se passou exa-tamente do jeito como ele contou. Mastampouco alguém ali está preocupadoem questioná-lo, só querem cuidar dosferimentos.Em três dias,Felipe estaria emcondições de alta. Permanece apático, so-nolento.A pele se recupera, mas as quei-maduras exigem cuidado especial paranão haver infecção e cicatrizes.

Acionada, a então assistente social doHPS Maria Nailê Morales começa a pro-curar pela família do paciente. Entra emcontato com o serviço de AcolhimentoNoturno, com o Conselho Tutelar. Des-cobre que o menino fugira do abrigo eque a mãe se mudara para Torres. Nãodesiste. Com ajuda da conselheira Lúcia,que acompanhava o caso na Bom Jesus,descobre o novo endereço da mãe. Juntas,acionam o Conselho Tutelar de Torres pa-ra avisá-la. Em uma demonstração rarade articulação eficiente na rede de assis-tência, o que parecia improvável se reali-za: o reencontro entre mãe e filho.

Aos oito anos, Felipe confessa à mãe por que não consegue maisvoltar para casa, mesmo quando quer. Os olhos vermelhos, a

língua enrolada e o jeito agressivo mostram o início de um novodrama que, desde então, só se agravou. Com medo da sensação

que não compreende, o menino aceita ir com a mãe até oConselho Tutelar em dezembro de 2006. Lá, pede socorro.

– Me ajuda, tia. Quero parar, mas não sei o que fazer. Me levapara algum lugar, tia – suplica à conselheira Lúcia Kümmel.

É o apelo de quem sucumbiu ao crack.

Felipe descobriu as drogas nas ruas e, com oito anos, já pedia ajuda parase livrar da dependência. Encontrou uma rede insuficiente para atendê-lo

Nesse ritmo, elepode não chegaraos 15 anos

LÚCIA KÜMMEL,conselheira tutelar, em 2009

9FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

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– Por que tu mora embaixo da ponte?– questionou.

– Ah,eu vou lá pra comer melhor – res-pondeu Felipe.

– Mas o que tu não tem em casa?– Ah,xis...pastel...– Então, se eu te der pastel, tu volta pa-

ra casa?– Ah, eu sou louco por pastel.Vai ser o

melhor do mundo! – empolgou-se.No dia da festa, em 15 de fevereiro de

2007, a conselheira levou todos os ingre-dientes para a casa do menino. A mãepreparou tudo com esmero. Enquantocontemplava o sorriso do filho comendoos pastéis que substituíam o bolo de ani-versário, torcia para que a data marcasseo início de um novo ciclo.

Mas nada mudou. Como a rede muni-cipal ainda não tinha vagas para internarcrianças dependentes de crack por maisde 21 dias,o Conselho Tutelar levou quatromeses para conseguir um lugar para Felipena Chácara Nova Vida, fazenda terapêuticamantida por uma organização religiosa nomunicípio de Sertão Santana. Na primeirasemana,a educadora responsável registrouo progresso do menino em suas anotações.

“Segunda: chegou hoje. Está em adapta-ção. Demonstra ser bem espontâneo. É umpouco alterado e sem controle.

Terça: é bem agitado, mas tem condições,é bem esperto.

Sexta: é muito espertinho. Disse para oSamuel para incomodar bastante, que as-sim ele consegue o que quer.”

O plano era que ficasse nove meses in-ternado para se tratar. Ficou dois. Nesseperíodo, tentou fugir quatro vezes,até con-seguir, em 13 de setembro. Dizia ter sau-

dade da mãe, que alegava dificuldades detransporte para visitá-lo.Acabou devolvidopela direção, que argumentava não poderabrigar alguém contra a vontade.

– A fazenda tem 50 hectares e fica nomeio do mato, não temos estrutura pa-ra vigiar todos os meninos. É perigoso,os meninos podem sair e ser picados poruma cobra no meio do caminho. Por is-so, nem trabalhamos mais com meninos.Muitas mães largam aqui e nem buscammais.Parece que querem se livrar – justifi-cou em 2009 a presidente da Chácara NovaVida,NoemiAlves da Silva.

Enquanto o vício corrompia as chancesde reabilitação, os laços de Felipe com afamília se enfraqueciam.A mãe cansou deprocurar o filho sem encontrá-lo,seguindopistas esporádicas recebidas de vizinhosque o avistavam em algum lugar.Em feve-reiro de 2008, o Conselho Tutelar recebeua informação de que ele estava pedindoesmola diante de um posto de gasolina,na Avenida Farrapos. A conselheira Tâ-nia Frydrych foi até lá, acompanhada deMaria. As duas procuraram em todos oscantos. Só enxergaram um saco de lixopróximo ao cordão da calçada.De repente,tiveram uma visão estranha. O saco apre-sentava contornos humanos. Era o meni-no. Maltrapilho, sujo e drogado, em nadaparecia uma criança.A mãe sentiu um ar-repio.Pensou que Felipe estava morto.Me-xeu no seu corpo e ele não acordou. Mariainsistiu até ver seus olhos abrirem.

– Parecia que tinham colocado piche ne-le, de tão sujo. Os olhos, parecia que jorra-vam sangue,de tão vermelhos – contou.

No mesmo dia, Felipe foi internado nohospital São Pedro para nova rodada dedesintoxicação. Às vésperas de sua libera-ção, em 28 de fevereiro de 2008, a rede en-frentava um novo dilema. Não havia paraonde encaminhá-lo. O município só tinhavagas para adolescentes a partir dos 15anos. Se voltasse para casa, recairia nova-mente.O Conselho Tutelar tentou um lugarnovamente em Sertão Santana,mas a ONGque administra havia desistido de internarcrianças,pelo alto índice de fugas.

Após três semanas de espera, a mãefoi ao Conselho Tutelar buscar informa-ções. Estava esperançosa porque o filhocontinuava em casa e, graças aos medi-camentos, recuperara peso e estava “bemgordinho”. Mas a vaga tão esperada paraencaminhamento não veio. Mais uma vez,a tentativa de recuperação fracassou. Omenino voltou para casa.E para as ruas.

– A prefeitura disse que só tinha con-vênio em clínica de tratamento para ado-lescentes com mais de 15 anos.Mas,nesseritmo, ele pode não chegar aos 15 anos– preocupou-se Lúcia, que acompanhouFelipe até 2009,quando ele tinha 11 anos.

Com o aumento de vagas para trata-mento na rede municipal, outras criançaspodem ser poupadas do drama enfren-tado por Felipe.Atualmente, Porto Alegredispõe de 128 leitos para desintoxicaçãode crianças e adolescentes, com tempomédio de 21 dias de internação, e de 20vagas em comunidades terapêuticas, querecebem dependentes a partir dos 12anos,para nove meses de internação.

Apesar do aumento da rede, os profis-

sionais que assistem às frequentes recaí-das dos meninos lastimam o desperdíciode esforços: sem o acompanhamento ne-cessário após a internação, o período de21 dias de desintoxicação se revela inóquo.

– É dinheiro jogado fora. As criançasficam dopadas na clínica e, quando saem,começa tudo de novo – lamenta a psicólo-ga Claudiana de Oliveira Freitas,que traba-lhou no programa Ação Rua Eixo Baltazar/Nordeste e também tentou resgatar Felipe.

No caso dele, nada funcionou. Aos 14anos, o adolescente soma sete interna-ções. Sem sucesso. A única diferença éque, como cresceu e não ganha mais es-molas tão facilmente como antes, come-çou a roubar para sustentar o vício. Norosto, carrega um sinal da degradaçãoimpulsionada pela pedra: seu sorriso jáperdeu um dente na arcada inferior.

VIOLÊNCIA À ESPREITA

Com queimaduras de segundo grauno tórax e na face, Felipe chega ao Hos-pital de Pronto Socorro (HPS), em PortoAlegre, conduzido pela Brigada Militar, às20h4min de 19 de maio de 2009. Cobertode bolhas, que se destacam sobre a pelevermelha e suja, o menino de 11 anos éencaminhado para a Unidade de Queima-dos. Está consciente e conta uma históriaque sensibiliza toda a equipe médica.

Diz que dois homens atearam fogosobre seu corpo na Estação Farrapos daTrensurb, enquanto descansava. E quepassa os dias vendendo bala de gomapor ali. Sem mais nem menos, os doisagressores teriam chegado, atirado álcoole, em seguida, arremessado um palitode fósforo aceso. Em chamas, o meninosaiu correndo e se atirou em uma po-ça d’água. Conseguiu evitar que o fogocausasse maior dano. As enfermeiras seemocionam, redobram os carinhos aomenino de olhos amendoados e cílioslongos, que não tem casa para voltar.Quando perguntam por que os homenso queimaram, Felipe é lacônico:

– Não sei.Foi por maldade – diz.Como não aparecem testemunhas, nin-

guém sabe se a história se passou exa-tamente do jeito como ele contou. Mastampouco alguém ali está preocupadoem questioná-lo, só querem cuidar dosferimentos.Em três dias,Felipe estaria emcondições de alta. Permanece apático, so-nolento.A pele se recupera, mas as quei-maduras exigem cuidado especial paranão haver infecção e cicatrizes.

Acionada, a então assistente social doHPS Maria Nailê Morales começa a pro-curar pela família do paciente. Entra emcontato com o serviço de AcolhimentoNoturno, com o Conselho Tutelar. Des-cobre que o menino fugira do abrigo eque a mãe se mudara para Torres. Nãodesiste. Com ajuda da conselheira Lúcia,que acompanhava o caso na Bom Jesus,descobre o novo endereço da mãe. Juntas,acionam o Conselho Tutelar de Torres pa-ra avisá-la. Em uma demonstração rarade articulação eficiente na rede de assis-tência, o que parecia improvável se reali-za: o reencontro entre mãe e filho.

Nesse ritmo, elepode não chegaraos 15 anos

LÚCIA KÜMMEL,conselheira tutelar, em 2009

9DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

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No reencontro,a esperança

O Conselho Tutelar de Torres bate àporta da mãe de Felipe numa quinta-feiraà noite, anunciando a internação do filhoem Porto Alegre.A orientação é que Ma-ria aguarde até que consigam um carropara levá-la à Capital, mas ela não conse-gue esperar. Como até sexta-feira de ma-nhã o carro não aparece, pede R$ 39 em-prestados à irmã para pagar a passageme embarca. Quando chega ao Hospital dePronto Socorro, Felipe se transforma. Oguri apático e sonolento salta da cama,começa a chorar e rir ao mesmo tempo,abre os braços para receber o abraço doqual fugia há mais de um ano.

– Mãe! Mãe! Tu tá aqui comigo! – fes-teja Felipe.

– Sim, meu filho, vou ficar contigo.O menino de 11 anos volta a repetir

que não conhece quem fez aquilo comele, desconversa quando Maria diz quegostaria de ir atrás dos responsáveis.

– Ah, mãe, mesmo que eu conhecesseeles, eu não queria que a senhora fosseatrás. O importante é eu estar aqui agoracom a senhora.

Medicado e afastado das drogas du-rante a internação, Felipe anima-se coma ideia de ir morar em Torres. Tambémpergunta por Pedro, o companheiro damãe, a quem agora chama de pai.

– Ué, mas tu não falava que não gos-tava dele? – surpreende-se a mãe.

– Não, traz ele aqui. Eu quero que opai vá morar com nós lá em Torres – diz.

A mãe vai à Vila Bom Jesus procurarPedro, de quem estava afastada há al-guns meses, por brigas conjugais. Osdois se reconciliam e o padrasto vai até ohospital ver o menino, prometendo quese mudará para viver com eles em Tor-res assim que acabe o serviço em umaobra, na semana seguinte.

A assistente social do HPS se emocio-na com as mudanças, sentindo-se re-compensada pelo esforço para reatar osvínculos familiares.

– Parece que ele nasceu de novo quan-do viu a mãe. Fizemos uma tentativa edeu certo, isso nos deixa muito emocio-nados – comemora.

Com carona de um microônibus daprefeitura de Torres, mãe e filho partemjuntos de Porto Alegre, no fim da tarde de24 de maio.Antes da alta, as enfermeirasdão brinquedos e uma camiseta do Grê-mio de presente para o menino, que usaos lápis de cor emprestados por elas paradeixar uma mensagem de agradecimento.Auxiliado pelos adultos, desenha as letrascom traços imprecisos para escrever aprimeira carta de sua vida.

– Obrigado pelas folhas. Obrigado pe-los briquedos. Obrigado pelas ropas – es-creve, rumo ao novo endereço, a chancede traçar um novo caminho.

Quando perguntam o que ele quer serquando crescer, hesita. Depois de instan-tes em silêncio, pensativo, responde:

– Acho que vou ser padre ou pastor

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evangélico. Eu vou vir visitar e vou ben-zer vocês tudo – sonha.

Na nova vida, o menino acostumado adormir debaixo da ponte passa a ter co-mo playground o tradicional cartão-pos-tal da mais bela praia gaúcha. Nas areiasdo Estado que mais atraem turistas du-rante o verão, corre com o vento de ou-tono soprando no rosto, fazendo estreli-nhas que aprendeu nas aulas de capoeirano abrigo por onde passou em Porto Ale-gre. Abre os braços como se tudo aquiloali lhe pertencesse. Sorri com uma ino-cência que até duas semanas atrás pare-cia ter sido consumida pelo crack. Comas unhas limpas, um moletom amarelonovo e um boné azul para proteger o ros-to do sol, obedecendo às recomendaçõesmédicas, Felipe desfila com orgulho anova versão de si mesmo.

Assustado pelas queimaduras quesofreu, pelas lembranças do corpo emchamas, abandona o figurino maltrapi-lho. Satisfeito ao reencontrar a proteçãomaterna, faz uma promessa à mãe.

– Eu juro que nunca mais vou fugir.Eu nunca mais vou ficar longe de ti, por-que se eu não tivesse na rua isso não te-ria acontecido. Se eu tivesse ouvido tu eo Pedro, eu não teria me machucado. Arua só me leva mal – admite.

Sela o compromisso com um beijo norosto, um abraço apertado. Demonstra-ções de afeto que passa a exibir váriasvezes ao dia, como se quisesse recuperaro tempo perdido.

– Te amo, mãe. Eu tava com saudade– repete o menino.

Faz questão de dormir de mãos dadascom Maria na nova casa, localizada emuma vila atrás da Praia da Guarita. Éuma construção de alvenaria que esta-va desabitada e foi emprestada à famíliapor uma vizinha.

– Acho que ele tem medo que eu váfugir – brinca a mãe.

A casa onde moram não tem sequerenergia elétrica: a antiga locatária sumiudeixando dívidas de R$ 200 em contasde luz e água. Mas tem dois quartos episo colocado – luxos para a família quechegou a Torres só com caixas de roupa.Com uma prancha de isopor que encon-trou jogada na praia, Felipe agora temcomo principal diversão o sandboarding.Sobe com a prancha nas dunas de areia,que ele chama de “barranco de terra”, edesliza de peito,em estilo peixinho.

– Olha, tia – exibe-se.Felipe é matriculado em uma escola

municipal no bairro São Francisco. De-pois do almoço de 27 de maio de 2009,vai até lá para conhecer. Sai sozinho, le-vando o sobrinho de seis anos, o filhoda irmã criado pela mãe. Volta anima-do, dizendo que a escola é “tri”. A mãe oadverte de que será matriculado na pri-meira série.

– Tu sabe que tu vai ter que estudarcom os pequeninhos, né? Não vai repa-rar, não vai ficar brabo.

– Não vou ficar brabo, eu quero é es-

tudar – garante Felipe.O clima de otimismo prevalece, mas é

rondado por uma ameaça. O crack estátão incrustado na vila, que até nos fun-dos da casa da tia materna, que mora auma quadra de distância do novo lar dafamília, há um ponto de tráfico. Os trêsprimos sucumbiram à pedra: um foiassassinado com dois tiros aos 14 anos,por desavenças envolvendo a droga. Ou-tro, pescador, virou dependente. E o ter-ceiro foi preso por tráfico de crack.

Além de ver seus três filhos derruba-dos pelo crack, a tia convivia com outrodrama no pátio de casa. Um ano antes,sua neta de criação, de 15 anos, passoua viver com um traficante em uma casaalugada por ela no mesmo terreno on-de morava. A tia começou a desconfiarquando viu a movimentação de carrosdiante do portão, especialmente à noite.Ao pressionar a adolescente, ouviu delaa confissão. Atordoada, a tia planejavavender a propriedade para forçar o casala deixar sua casa.

– Não quero me incomodar, sou anal-fabeta e não entendo muito as coisas,mas não gosto disso. Já avisei o Conse-lho Tutelar – explicou.

Enquanto conta seu drama, um Golfbranco com assentos de couro estacionadiante da casa e a adolescente aparecepara lhe entregar uma sacola. Cinco mi-nutos se passam e um motoqueiro paraem frente ao portão,também procurandopela casa dos fundos.

Em meio ao vaivém do ponto de trá-fico, Felipe circula de bicicleta, aparente-mente indiferente ao movimento.

– Ele nem sabe que aqui vende essascoisas.Acho que não tem perigo – mini-miza a mãe.

Mas tinha.

Em Torres, a mãe imagina que Felipeestará longe da droga, mas o crackjá domina a vida dos primos

Com a reaproximação da família, o menino volta a ser criança:brinca na areia e começa a frequentar a escola no Litoral Norte

FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

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A voltapara as ruas

Nos dois primeiros dias em que compa-rece às aulas na escola em Torres, em 18 e20 de junho de 2009,o menino de 11 anosse irrita com as risadas dos colegas de seteanos da primeira série, que o chamavamde grandão. Briga com a professora, quepede que tire o boné dentro da sala de aula.Contorna com dificuldade as letras do alfa-beto, copia sem entender cinco frases pas-sadas pela professora,como“Vovó plantouo rabanete”e“Totó é amigo do gato”.

Perdido naquele lugar, acanhado peladisciplina que nunca aprendeu a obedecer,Felipe começa a rejeitar a escola. Volta aprocurar as ruas e o crack. Embora conti-nue regressando para casa, chega cada vezmais tarde.Meia-noite,uma hora,duas ho-ras, três horas, quatro horas da madruga-da.A mãe reconhece a incompetência paradar limites.Tem medo de xingá-lo,magoá-lo a ponto de ele nunca mais voltar. Tolerasuas escapadas. Só quer que ele volte paracasa todas as noites,que nunca mais desa-pareça.E então o ciclo recomeça.

Em agosto,o menino passa sua primeiranoite fora.E a segunda.A mãe procura pe-la vila e não o encontra. No terceiro dia deausência, o padrasto, que cumpriu a pro-messa e se mudou para Torres para morarcom a família, sai a procurá-lo pelo cen-tro.Vai a pé, porque Felipe havia sumidocom a bicicleta que Pedro usa para catarlatinhas. De repente, ao se aproximar doginásio municipal Alberto Teixeira Rosa,em frente à Lagoa do Violão,vê o contornodo enteado.Apesar do anoitecer das 18h,consegue reconhecer as feições do menino,iluminadas pela chama vinda de um ca-chimbo improvisado com lata de alumínio

para fumar crack. Está em companhia deum adulto,que aparenta ter 30 anos.Ao vero padrasto se aproximando, Felipe larga alata e sai correndo,assustado,até ser alcan-çado e levado para casa.

Com auxílio do Conselho Tutelar,a mãeconsegue internar o filho em uma clínicapara desintoxicação dois dias depois, em2 de setembro. Fica 16 dias no HospitalSanta Luzia, em Capão da Canoa. No pri-meiro dia em casa, chega a voltar para aescola. Como está sob o efeito da medica-ção e não consegue acompanhar as aulas,a direção sugere que Felipe passe a rece-ber acompanhamento escolar doméstico.Mas, no segundo dia em casa, foge outravez. Diz que vai encontrar os amigos edesaparece, numa rotina conhecida dafamília.A segunda internação ocorre em7 de novembro, depois de Felipe passarmais de três semanas longe. São mais 17dias no hospital.Em vão.

Em dezembro, o menino começa a pe-dir esmolas a senhoras bem-vestidas quesaem carregadas de sacolas em frente aomaior supermercado de Torres, ao ladoda Rodoviária. Diz a elas que tem fome equer comprar feijão para ajudar em casa.Com o dinheiro, fuma crack na soleira doginásio abandonado.

– Quando elas me dão o dinheiro eu saiocorrendo, né, se eu contar o que eu vou fa-zer elas vão me xingar. É melhor pedir doque roubar,né – diz.

ANIVERSÁRIO SEMFESTA

Segunda-feira de Carnaval em Torres. Odia em que Felipe completa 12 anos, em15 de fevereiro de 2010. Não há festa nempresente, mas o menino aproveita a festados outros. Carregado de sacos plásticos,passa a madrugada na Praia Grande com a

mãe e o sobrinho. Enquanto veranistas sedivertem com o show do trio elétrico à bei-ra-mar, a família aproveita para catar latasde refrigerante e cerveja.

Se perde da mãe e do sobrinho e retor-na sozinho à vila onde a família mora, às6h50min, carregado com quatro sacolascheias de latinhas.Assim que chega, se di-rige a um ferro-velho para vendê-las.Ar-recada R$ 20 e compra o café da manhãpara a família – dois sacos de bebida lácteae pães, além do cigarro.A mãe e o sobri-nho haviam chegado um pouco antes.Emcasa, Felipe come com todo mundo e dor-me, cansado. Às 11h, desperta e começaa insistir que a mãe vá vender as latinhasque ela juntou durante a madrugada. Em15 minutos, o menino fuma dois cigarros,deitado na cama. Joga as cinzas no chão ea fumaça para cima,olha para o teto.

– Eu não gosto que ele fume,mas é me-lhor fumar cigarro do que as porcarias,né?– resigna-se Maria.

A casa está revirada, com roupas pelochão.Ao lado da cama de Felipe estão osdois sacos cheios de latinhas. O padrastotambém está lá, mas permanece quieto,cortando tomates para o almoço, sobre apia de madeira.Pedro e a mãe do meninobrigaram.Ela se revoltou porque,no meiode uma briga com Felipe, ele bateu no ca-çula.Ficaram marcas nas costas.

O dia é como outro qualquer, não é porser o seu aniversário que seria diferente.Nem no Natal ganhou um presente, porque no aniversário ganharia? Quandoperguntado sobre o que queria,hesita.

– Queria ganhar qualquer coisa. O queeu mais queria era um boné – responde.

De tanto mentir a idade para os poli-ciais que o abordam, dizendo que tem 14,o menino esquece até de quantos anosestá completando.

– Quantos anos eu tenho mesmo? – per-

gunta para a mãe.– São 12 anos.Doze anos de sem-vergo-

nhice! – brinca Maria.Felipe sabe do que a mãe está falando,

e não disfarça. Diz que quer ser inter-nado em uma fazenda para se tratar dadependência do crack. Ficar nove meses,para completar o tratamento. Prometeque desta vez não vai fugir, que desta vezserá diferente. A mãe já pediu vaga parao Conselho Tutelar, aguarda desde a se-mana anterior.Acha que um tempo maislongo é a única solução. As internaçõesprovisórias não fazem efeito.

– Quero ir, eu vou conseguir ficar lá prame tratar um pouco – concorda o menino.

Mas agora a fissura dá sinais de estarvoltando, e Felipe insiste novamente pa-ra que a mãe vá vender o alumínio reco-lhido no Carnaval. Já tem R$ 10 no bolsodas suas latinhas, mas quer mais dinhei-ro. Maria havia prometido que lhe dariauma parte da venda, em retribuição porele auxiliar na casa, no café da manhã. Eentão a mãe obedece às ordens do filho,que joga os dois sacos de latinha sobreos ombros. Maria segue atrás dele namesma rua, até o vizinho, que compra oalumínio. É Felipe quem comanda todaa negociação, coloca os sacos na balan-ça, pega os R$ 10 do pagamento e dá ametade para a mãe.

No caminho para casa, encontra umaadolescente de 16 anos que conheceu napraia.A menina veio de Sergipe para ven-der artesanato,vai embora no fim do Car-naval. O aniversariante pega na mão dela,diz que é sua namorada. E vai embora aseu lado. No bolso, tem dinheiro suficien-te para três pedras de crack.

A mãe olha o filho ir embora com a es-perança de que ele volte.

– Tenho muito medo. Já perdi um filho,se eu perder mais um,fico louca – teme.

O dinheiro de uma noite recolhendo latinhas noCarnaval de 2010, em Torres, rendeu três pedras 11DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

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ENCRUZILHADALonge da família,perto do crime

Criada nos escombros do que seria um hospital, a Vila do Esqueleto é o palco da encruzilhada emque Felipe se encontra aos 14 anos. Sem banheiro, sem água encanada e com ligação irregular de

energia elétrica, o novo endereço adotado pela família em Porto Alegre, após a tentativa frustradade recomeço em Torres, é o retrato do desamparo que ameaça o destino do adolescente. Felipe seguevagando pelas ruas, com passos cada vez mais violentos. Sem conseguir tanta esmola – com quase

1m70cm, não parece mais criança – comete infrações em busca do crack. Em momentos de lucidez,diz querer parar com tudo. Na fissura, é capaz de qualquer desatino por mais uma pedra.

FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

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O s vizinhos são despertadospelos gritos que ecoam na Vilado Esqueleto,em Porto Alegre.Passa das 23h de domingo, 26de fevereiro de 2012. O palco

da briga é há dois meses o novo endereçoda família de Felipe. Bêbado, o padrastoameaça o enteado de 14 anos, que rea-pareceu em casa após três semanas nasruas e tomou o seu lugar na cama de ca-sal,dormindo ao lado de Maria.

– Pode arrumar as vela que eu vou ma-tar esse guri – anuncia Pedro para a mu-lher,com um pedaço de pau na mão.

Os moradores ouvem tudo sem intervir.Não querem se intrometer na confusãodos recém-chegados à favela, que ganhouo nome de Esqueleto por ter crescido aoredor dos escombros de uma obra ina-cabada, diante da Avenida Protásio Alves,no caminho para Viamão. As vigas quedeveriam sustentar um hospital do Mon-tepio dos Funcionários do Município daCapital – uma entidade de poupança pri-vada que quebrou no meio da constru-ção – delimitam desde 2006 a ocupaçãoirregular, alvo de disputa judicial.

Nessa noite, ao perceber que o compa-nheiro chegou embriagado, Maria tentaimpedir a sua entrada no lar, o que de-sencadeia a briga.Ao deparar com Felipedormindo no seu lugar, o padrasto inter-preta o gesto da mulher como uma prefe-rência pelo filho, com quem sempre teveuma relação tumultuada.

– Tu prefere ficar com um ladrão e va-gabundo do que comigo – berra Pedro,que nunca se conformou com a passivi-dade de Maria em relação a Felipe.

Revoltado, o padrasto força a entrada ederruba a porta da casa com socos e pon-tapés. Sobe na cama pisoteando o corpodo enteado, que se vira e revida a agres-são pisando no peito de Pedro. Transtor-nada diante da luta, Maria pega uma facae se mete no meio dos dois. Acerta umgolpe no braço do companheiro, que fo-ge urrando de dor.Ao buscar atendimentomédico,recebe 10 pontos no ferimento.

– Meus filhos vão estar sempre em pri-meiro lugar. Eu não ia deixar ele matar omeu filho – justifica Maria.

Por mais que a doméstica diga que osatos de violência do companheiro são es-porádicos, suas irmãs cansaram de vê-laostentando marcas de agressões.

– Que adiantou trocar um bêbado poroutro? – questiona uma delas, lembrandodo pai de Felipe.

O tumulto familiar é apenas mais umsintoma dos riscos a que o menino estácada vez mais exposto. Foi para tentarprotegê-lo que a mãe decidiu voltar aPorto Alegre, após dois anos em Torres.Temia que o filho acabasse morto em re-presália pelos furtos cometidos no Litoral.A decisão foi selada no dia em que Mariachegou em casa, ao retornar do aparta-mento de cobertura onde trabalhava co-mo doméstica, e foi cercada por mais de20 pessoas. Cobravam que ela pagassetudo o que o filho surrupiara de um vizi-nho, incluindo serras elétricas, máquinasde cortar grama e furadeiras.

Foi uma das raras vezes em que alguémapanhou Felipe. Como parte de sua rotinade peregrinação pelas ruas, movida a cra-ck, o menino vigiava casas em suas ma-drugadas insones, aguardava os proprie-tários saírem, quebrava as janelas, furtavao que conseguia e saía sem que ninguémpercebesse. Preferia notebooks, que sãorentáveis e mais fáceis de levar numa mo-chila,mas carregava nos ombros até TV deplasma.Com os eletrônicos,conseguia“pe-lo menos R$ 100” – cada cédula era con-vertida em pedras de crack.De casa,Felipelevou tudo. Quando não sobraram maismóveis e eletrodomésticos para vender,arrancou a porta e as janelas.Como sumiuaté com o colchão, a família chegou a dor-mir no chão.Às vezes, levava o irmão maisvelho para acompanhá-lo. Depois do ata-que a uma obra,em 2010,seu irmão de 19anos acabou preso,quando os dois fugiamcom furadeiras nas costas. Por ser menorde idade, Felipe foi liberado. O adolescenteconta a história rindo, como se tudo nãopassasse de uma brincadeira. Mas temconsciência de que seu período de imuni-dade está se esgotando.

– Agora eu já tenho 14, se assaltar voupreso. Por exemplo, se eu te matar, já

vou pra Febem (hoje Fase). Se eu roubarjá vou pra cadeia, e eu não quero – dizFelipe à repórter.

Apesar dos furtos praticados pelo fi-lho e da angústia cotidiana por não sa-ber quando ele vai aparecer em casa,Maria estava feliz ao chegar à Vila doEsqueleto, depois de seis meses moran-do de favor na casa da filha de 29 anos,na Vila Bom Jesus. Negociou com trafi-cantes da quadrilha “Bala na Cara”, quechefia os negócios na favela, e pagouR$ 200 pelo terreno.Avisou o filho de queali ele não podia“mexer nas coisas de nin-guém”,senão seriam expulsos da vila ondemoram pelo menos 200 famílias.

A vizinha Márcia Adriana Gomes Cor-rêa,33 anos,se queixa das condições de vi-da no lugar,dos ratos de até 30 centímetrosque dividem o espaço com crianças, doscarrapatos que sobem pelas paredes noverão. Mas Maria se sente privilegiada porestar ali.Pela primeira vez na vida,tem um“pátio grande” para estender roupa, umavista para um matagal que lhe faz pensarque mora em uma“fazenda”.

– Tomara que não me tirem do meu pa-raíso – torce, preocupada com a ação quepede a reintegração de posse do terreno eameaça de despejo os moradores.

Só que o filho é apenas um visitanteeventual do casebre de duas peças. Passouo aniversário de 14 anos longe de casa e,aoretornar,virou o pivô da briga familiar tes-temunhada pela vizinhança.Após as ame-aças do padrasto,Felipe voltou às ruas.

– Enquanto eles são crianças,todo mun-do fica com pena e dá esmola. Quandocrescem, as mesmas pessoas que os acos-tumaram a receber dizem: vai trabalhar,vagabundo. Como não conseguem maisdinheiro, ficam violentos – analisa o soció-logo Ivaldo Gehlen, coordenador do Censodas Crianças eAdolescentes em Situação deRua de PortoAlegre,publicado em 2008.

PARA A REDE, UMA LENDA

Com passos desconhecidos em suasandanças, Felipe é procurado desde janei-ro por educadores sociais do programamunicipal Ação Rua.Ao todo, 13 equipespercorrem a cidade à procura de criançase adolescentes que perambulam pelas es-quinas. A partir da mudança da famíliapara a Vila do Esqueleto, o caso, que vinhasendo acompanhado pelo núcleo da BomJesus, na região Leste, foi repassado para aunidade da região Baltazar/Nordeste.

Os desencontros que se seguiram a par-tir daí são um exemplo de por que a redede proteção não consegue proteger. Pas-sados cinco meses, os educadores desig-nados para acompanhar Felipe ainda nãoconseguiram encontrá-lo.

– A gente brinca que o Felipe é umalenda. Estamos sempre atrás dele, masnunca conseguimos encontrar.Ainda nãoo conhecemos – lamenta a coordenadorado núcleo do Ação Rua Baltazar/Nordeste,Paulina Gonçalves.

Entre 24 de janeiro e 5 de abril, os edu-cadores foram nove vezes à casa de Ma-ria. Lamentam pelo fato de a mãe, que sófoi encontrada em três dessas ocasiões,

não ter cumprido a combinação de avisarquando o filho aparecesse.

Isso não significa que Felipe esteja de-saparecido: nesse mesmo período, foivisto duas vezes na Vila Bom Jesus poreducadores sociais do Ação Rua queatuam nas redondezas.

– Foram contatos rápidos e não fomosavisados na hora.Mas agora nós reafirma-mos que,assim que o pessoal do outro nú-cleo o enxergar, tente uma estratégia paramanter o menino por perto,para que pos-samos encontrá-lo e uma terceira vez nãoaconteça – diz a psicóloga Claudiana Po-erscke de Oliveira Freitas, que até maio es-tava ligada aoAção Rua Baltazar/Nordeste.

Há quatro meses,o próprio Felipe pediuajuda ao Conselho Tutelar. Na véspera deseu aniversário de 14 anos, em 14 de feve-reiro, apareceu na sede da Bom Jesus pe-dindo para ser internado em uma fazendaterapêutica.Queria se libertar do crack.Foiatendido pela conselheiraAna Cristina Me-deiros Lima,que entrou em contato com oAção Rua.A equipe foi até a casa de Felipe,no mesmo dia, à tarde, mas não o encon-trou.Conhecidas como“as cheirosas”pelosvizinhos da Vila do Esqueleto, as educa-doras deixaram um cartão de aniversário,escrevendo ao adolescente analfabeto quequeriam conhecê-lo.Até o início de junho,continuavam sem notícias.A burocracia ea falta de estrutura fizeram Felipe sair ou-tra vez do alcance da rede.

– Em uma semana, ele veio duas vezesaqui.Num dia,eu liguei para o Ação Rua eelas disseram que não tinham Kombi parao transporte,e a coisa acabou se perdendo– lamenta Ana Cristina, que explicou nãopoder encaminhar ela mesma a internaçãoporque Felipe já não pertence a sua região.

As falhas de comunicação entre os servi-ços da rede são apenas um dos furos destamalha da qual Felipe costuma escapar.Responsáveis pelo acompanhamento de98 crianças e adolescentes nas redondezas,os sete integrantes do Ação Rua na regiãoBaltazar/Nordeste não conseguem daratenção individual aos casos.

– Não é uma rede, são caniços. São de-mandas ultraurgentes e, se tu vais nos lo-cais, nos abrigos, é tudo superlotado... On-de está o furo? Está na necessidade de maisequipes e vagas – avalia Claudiana.

Mesmo com as limitações, a Fundaçãode Assistência Social e Cidadania (Fasc)comemora a diminuição do número decrianças que dormem nas ruas da Capital:já chegou a 200 e atualmente é de 70.

– Temos conseguido reduzir o númerotodo mês com monitoramento sistemáti-co,mas há casos mais complexos – ponde-ra Júlia Obst, da equipe de coordenaçãodeste setor na Fasc.

Entre abril e junho deste ano, ZH en-controu Felipe três vezes. No dia 19 deabril, ao lado da mãe, a repórter locali-zou-o depois de uma hora de buscas pelaVila Bom Jesus. Perambulava vestido decamiseta polo, calça e tênis que um diaforam brancos, encardidos com graxa epó. Surgiu atrás de uma cortina de fuma-ça do lixo queimado na Rua Marta Fran-zen, em frente ao Clube Náutico. Seguiaem direção a um ferro-velho onde costu-ma vender o que cata na rua.

Maria trouxe o menino de volta à Capital,mas Felipe é um visitante: passa semanas

sem aparecer na nova casa

13DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

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A mãe nãosabe o que fazer

– Ô,meu filho,tu tá todo sujo – repreen-de-lhe a mãe ao abraçá-lo.

– Ah, eu tava trabalhando – respondeFelipe, retribuindo sem jeito o carinho damãe,que não via fazia quatro dias.

Explica que estava desmontando o mo-tor de uma geladeira “lá no seu João”, odono de outro ferro-velho na vizinhança.Responde às perguntas sem tirar as mãosdo bolso, não mostra disposição para es-ticar a conversa. Está com o semblante fe-chado, escorado em um poste, em frente aum esgoto a céu aberto.Repete que quer irpara uma fazenda se livrar das drogas.

A mãe tenta uma aproximação.– Não quer um colo? – pergunta.– Não sou mais criancinha.– Vem cá, meu filho.Não é mais nenezi-

nho,né,já fez 14 anos...– insiste.Felipe obedece ao chamado,dá mais um

abraço. Mas diz que tem que ir embora.Precisa trabalhar. Despede-se apressado,como se a mãe atrapalhasse seu caminho.

– Vai com Deus – diz para a mãe no úl-timo abraço.

Na mesma noite,pega emprestada umabicicleta do dono do ferro-velho para iraté o ponto de crack. Seu primo lhe deuR$ 20 para comprar quatro pedras paraos dois compartilharem. Felipe some como dinheiro e com a bicicleta. Um de seusrefúgios é um matagal perto de um pos-to de gasolina da Avenida Protásio Alves,mas o adolescente muda de esconderijo acada vez que é descoberto.

Maria volta para a Vila do Esqueleto,onde tenta impedir que o neto de noveanos siga o mesmo destino do tio – oque parece improvável. Foi chamada naescola porque o menino começou a fal-tar aulas e a relaxar nos deveres de casa.

– Por que eu tenho que ir para a escola,se o Felipe não vai? – questiona.

Maria sabe que nunca conseguiu darlimites para os filhos.Aparenta estar resig-nada com as circunstâncias.Tem convicçãode que tentou tudo para salvar Felipe.

– Eu não sei mais o que fazer – confessa.Em abril,ela se preparava para a chegada

do segundo neto – a namorada do filho de20 anos estava grávida, mas a família nãotinha certeza se o filho é dele ou de Felipe,que também teve um relacionamento coma mulher,de 29 anos.A dúvida permanece-rá para sempre: aos sete meses de gravidez,a gestante sofreu duas paradas cardíacas emorreu antes de dar à luz.

Embora todos tenham lamentado,ninguém na família pareceu se espantar.Felipe já perdeu um irmão assassinadoe outra irmã de tuberculose. Em março,ele mesmo foi ameaçado com um revól-ver 38 por um vizinho, depois de derru-bar uma criança de dois anos no chão aotentar tirar de suas mãos um par de tênis.O tio do menino foi tirar satisfações e sóbaixou a arma porque Maria apareceu derepente.Felipe diz não temer mais nada.

– Depois que me queimaram na rua,perdi o medo de tudo.

14

A CRIANÇA VIROU UMMOÇO

Em fevereiro deste ano, ao chegar aum supermercado na Avenida ProtásioAlves para fazer compras, acompanhadapelos dois filhos, a ex-conselheira tutelarLúcia Kümmel é surpreendida por umdos pedintes, que levanta da calçadaapressado e atravessa seu caminho.

– Oi,lembra de mim?Lúcia demora para reconhecer o rosto

que não vê há quase três anos.Quando Fe-lipe se identifica, percebe que o guri mir-rado que tentou tirar da rua durante doismandatos como conselheira na Vila BomJesus virou um moço de quase 1m70cm,aface salpicada de cravos e espinhas.Antesde cabeça raspada,agora ostenta um cabe-lo castanho crespo,com reflexos aloirados.

Apesar dos tantos casos que atendeu nosseis anos em que trabalhou no ConselhoTutelar,a socióloga que hoje integra o Con-selho Municipal dos Direitos da Infância eda Adolescência não se esqueceu de Felipe.Foi um dos casos que mais a marcaram.Lembra bem da incursão que fez para ti-rá-lo de baixo da ponte e do dia em queele bateu à porta do conselho para pedirtratamento contra o crack. Mesmo ao verque o adolescente continua nas ruas, Lú-cia não acha que seu trabalho foi em vão.Se a rede não tivesse tentado tudo o quetentou,o quadro hoje seria pior.

– Para mim, a boa notícia é ele estar vi-vo.É inédito – avalia.

Uma notícia ruim é o que a mãe de Fe-

lipe mais teme.Maria costuma acordar nomeio da noite assustada com barulho deautomóveis. Pressente que chegará o diaem que um deles vai parar diante de suacasa para lhe comunicar uma tragédiaenvolvendo seu filho caçula. Reza por ummilagre para que Felipe escape das duasúnicas opções de futuro que Maria vêpara ele, caso continue sua peregrinaçãopelas ruas: a cadeia ou a morte.

– Eu falei pra ele: sai dessa enquanto tunão tá morto. Se existe Deus no céu, queolhe pra baixo e tire meu filho dessa – ora.

Para Felipe,futuro ainda é um lugar lon-ge demais.Ele não sabe sequer onde estaráamanhã. Age movido pelos instintos damente e pela fissura do corpo. Mas senteque chegou a uma encruzilhada.

– Às vezes eu penso pra frente, às vezeseu penso pra trás. Quando eu penso prafrente, penso que não vou usar mais dro-gas, vou ficar perto da minha mãe. Quan-do penso pra trás, a droga pensa mais altodo que eu – reflete.

Por enquanto, ainda não sabe se vai pa-ra frente ou para trás.Vive repetindo quequer ir para uma fazenda terapêutica.Masem novembro, quando foi internado paranova rodada de desintoxicação de drogasna clínica São José e tinha uma chanceconcreta de conseguir uma vaga, disse aoseducadores do Ação Rua que não queria,como mostra o relatório do programa:

“Em visita na clínica novamente no mêsde novembro, Felipe colocou que não gosta-ria mais de ir para a fazenda terapêutica e

que já havia conversado com a mãe. Disseque iria estudar e fazer um curso. Felipe re-latou que, se tivesse levado umas palmadasquando criança, hoje não estaria na clínica.Se seu pai estivesse com ele, também não.”

Felipe inventa tantas versões de si mes-mo,que é difícil descobrir em qual se podeconfiar. Sua fala é pontuada por mentirase omissões. Três anos atrás, mentia sobreseu endereço, sobre sua família, sobre suaidade.Hoje,mascara o que faz para conse-guir dinheiro nas ruas.Ao ser questionadosobre o furto de uma bicicleta naVila BomJesus, primeiro nega sete vezes, insistindoque havia devolvido o objeto dias depois.Como percebe que a mentira não conven-ce, acaba admitindo o furto – que tinhasido relatado anteriormente a ZH pelo do-no da bicicleta e pelo primo de Felipe quehavia dado dinheiro a ele para comprarcrack.E por quanto vendeu o veículo? Feli-pe responde assim:

–Vendi por 100 real...Faz uma pausa de dois segundos e em

seguida completa a frase:– Mentira!O jogo entre mentira e verdade, uma

constante em sua jornada,se repete:– Foi 50 real... mentira! Foi por mil

real...mentira! Não,não,vendi por 60 real...mentira!

Em meio às gargalhadas,continua:–Adivinha por quanto?– 10?– Menos...– 5...

Na Redenção, umde seus lugarespreferidos, as

brincadeiras levamFelipe à infânciaperdida na rua

FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012

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15DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012 | FILHO DA RUA

Entre a família eo crack, o menino

teme terminarpreso, mas nãoconsegue deixar

as drogas

– Menos...– Menos de 5?– 25! Mentira...Vendi por 5 real.– Só? O valor de uma pedra?–A bicicleta tava toda quebrada...Em sua última versão, diz que a correia

estragou, que teve de ir caminhando des-de a Vila Bom Jesus até o bairro RubemBerta com a bicicleta na mão até conse-guir vendê-la. O diálogo se dá na manhãde 4 de junho,quando Felipe está em casa.Apareceu na noite anterior para dormir,após nove dias de ausência.Nesse período,diz que estava trabalhando em uma obra,nos arredores do posto de saúde 24 horasda Vila Bom Jesus. Contou que ganhou“R$ 65 e depois R$ 55” por 10 dias detrabalho como servente de pedreiro, car-regando sacos de cimento, preparando amassa.E que gastou tudo em crack.

– Eu caí de novo nas drogas – conta,co-mo se a pedra não fosse sua rotina.

Depois,ele mesmo emenda:– Pra falar a verdade, eu só não fumo

quando eu não tenho dinheiro. Eu vou nomercado, peço, peço (esmola)... aí a pedrafala mais alto do que eu.

Felipe conversa coçando a cabeça. Dizque é caspa, a mãe desconfia de piolho.Tem as mãos encardidas, as pontas dosdedos queimadas – marcas deixadas pelofumo de crack. Os braços são repletos decicatrizes – cada uma conta parte de suahistória.Exala o cheiro de quem não tomabanho há dias. Não para quieto. Pega umasacola com três bergamotas, começa a fa-zer malabares típicos de quem pede esmo-la na sinaleira. Come uma atrás da outra.

Pega uma faca na mão e começa a golpe-ar o peito de um papagaio de gesso que éuma das únicas peças decorativas da casa,erguida com tábuas do lixo.

– Eu não tenho maldade com ninguém,sou um guri legal – diz.

Tem consciência de que nem sempreage como um guri legal. Com um martelona mão, bate em um banco de tábuas emfrente à casa a cada frase, como se desseuma sentença para a própria vida:

– Quando eu tô na rua, não faço nada.Só uso droga. Me destruo. Acabo com aminha vida.Jogo minha infância fora.Des-truo a minha mãe.Destruo a vida do meusobrinho – julga,entre marteladas.

Felipe tem vergonha por não saber ler.Diz que quem passa por ele nas ruas pen-sa que ele é“um burro, um pateta”.Queriaque fosse diferente.

– Todo mundo diz pra mim: “Ah, umguri tão bonito atirado nas drogas”.

No dia 9 de maio, quando ZH o encon-trou outra vez em casa, estava inquieto.Queria sair. Escolheu como destino o Par-que da Redenção,o lugar de que mais gos-ta na cidade. Nessa tarde, passa correndoao lado do monumento ao Expedicionário,cumprimenta a “tia” que vende sucos emuma barraquinha, dá uma cantada emduas jovens que caminham pelo parque.

– Gosto de dar tapas na bunda das gu-rias e sair correndo – confessa, com umsorriso maroto.

Ao se aproximar do chafariz onde costu-ma tomar banho,se agacha.Finca as mãosimpregnadas da sujeira das ruas e começaa revirar o chão arenoso da Redenção.Feli-

pe desenha corações em volta de seu corpo.Sai dali deixando pegadas com um chinelode cada cor e cinco corações na areia.

Nessas horas, parece apenas um guri.Quando volta para casa, diz que nem sabepor que foge, de tanto que gosta de estarali. Certa noite, ao acordar ao lado da mãee perceber que ela havia posto um cober-tor sobre ele,perguntou.

–A senhora que me tapou?– Sim,tava frio.–Ah,eu tenho uma mãe tão boa...– E por que tu faz isso,meu filho?Felipe se virou para o lado e não respon-

deu. De manhã, pediu polenta com ovo.Comeu dois ovos de duas gemas,um pratocheio de polenta.E foi para a rua outra vez.

Vagando sem destino,pensa que alguémpode lhe cravar um ferro nas costas e ma-tá-lo enquanto está dormindo. Fala com aexperiência de quem já viu amigos teremo mesmo destino nas esquinas da Capital.A naturalidade com que discorre sobre orisco de morte não combina com as espi-nhas de sua adolescência. É a voz de umveterano das ruas, que oscila as risadas decriança e o olhar nublado de quem aparen-ta estar permanentemente entorpecido. Omesmo guri afetuoso que costuma distri-buir abraços apertados e dizer“eu te amo”para quem gosta também admite que po-de acabar na cadeia em poucos anos, casosiga o caminho do crime.

– Um dia o mundo acaba... um dia elesconseguem me pegar.

Acostumado a escapar de quem tentaprotegê-lo,completa com um desafio:

– Mas duvido me buscarem na corrida.

383crianças eadolescentesestavam emsituação derua na Capitalem 2008.

440perambulamatualmentepelas ruas,das quais70 dormemao relento.

Reportagem: Letícia Duarte. Imagens: Jefferson Botega. Edição: Rodrigo Müzell. Projeto gráfico: Diego Borges e Thais Longaray. Vídeo: Bruna Riboldi, Omar Freitas Jr. e Luan Ott.

Fontes: Censo das Criançase Adolescentes em Situação

de Rua de Porto Alegre,2007/2008 (Fasc/UFRGS) e

levantamento da Fasc em 2012

Page 17: FILHODARUA - leticiaduartedotcom.files.wordpress.com · meninoderua. NaVilados Papeleiros, Felipefoge deMaria, quepercorre acidadea suaprocura. Separando mãeefi lho, estãoasruas,

Fontes: IvaldoGehlen, professor de sociologia daUFRGSe coordenador doCensodeCrianças eAdolescentes emSituaçãodeRuadePortoAlegre, 2007/2008, Kevin Krieger, ex-presidente da Fasc,LucasNeiva-Silva, professor de psicologia daUniversidade Federal doRio Grande epesquisador doCentro de Estudos Psicológicos sobreMeninos eMeninas deRuadaUFRGS,Márcia Herbertz,

presidente doConselho Estadual dosDireitos daCriança e doAdolescente (Cedica), Maria Antonieta daCosta Vieira, socióloga integrante do FórumNacional de Estudos sobre a População de Rua.

FAÇA SUA PARTECidadãos

❚ NÃO DÊ ESMOLA – A esmola (e isso inclui comida)só contribui para fixar as crianças na rua. Frequentemen-te,serve para sustentar o consumo de drogas.

❚ DÊ ATENÇÃO – Em vez de dar bens materiais, vocêajudará mais se conversar com as crianças.Em pesquisas,boa parte dos meninos de rua relata: o maior sonho é nãocausar medo nas pessoas.

❚ CHAME AJUDA – Em Porto Alegre, contate o AçãoRua quando vir uma criança em situação de rua: (51)3289-4994. Os educadores conversam com as crianças eprocuram encaminhá-las a programas, mas não as reti-ram à força da rua.

❚ CONTRIBUA COM QUEM AJUDA – Uma boa al-ternativa é fazer doações aos fundos municipais ou es-tadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. A con-tribuição garante que uma parcela do seu imposto derenda seja aplicada em programas sociais. Se os gaúchosdoassem 6% do imposto devido aos fundos municipais eestadual,o Estado arrecadaria em torno de R$ 60 milhõespara financiar projetos de assistência.

ONDECONTRIBUIR:

Fundo Estadual da Criança e do Adolescente

❚ Doações para abatimento do imposto de renda po-dem ser feitas pelo site www.podcrianca.rs.gov.br ou pordepósitos bancários:

❚ Conta: 03.231350.0-1❚ Agência: 0597,do Banrisul

❚ Quem optar pelo depósito bancário precisa comunicarao Conselho Estadual a doação feita, informando o no-me, CPF ou CNPJ, e o valor doado para garantir a entre-ga do recibo.A comunicação pode ser feita pelo telefone(51) 3288-6625 ou pelo e-mail [email protected].

Fundos municipais

❚ Busque informações no Conselho Municipal dos Di-reitos da Criança de seu município

❚ Na Capital, você pode fazer sua doação a partir dosite www.portoalegre.rs.gov.br (clique em “Secretarias”,depois em “Governança”. No canto esquerdo, clique em“Funcriança”)

Organizaçõesnão-governamentais

❚ INVISTA EM PROJETOS QUE PROMOVAMLAZER E CULTURA NAS VILAS – A falta de locaisadequados para brincar e ocupar o tempo perto decasa é um dos primeiros motivos que impulsionamas crianças para longe.

❚ CRIE PONTES PARA O MERCADO DE TRA-BALHO – Projetos de capacitação profissional e degeração de renda para adolescentes e suas famíliassão fundamentais para garantir que as famílias trans-formem sua realidade. Crianças em situação de ruadificilmente concluem o Ensino Médio, mas comocostumam desenvolver habilidades de comunicaçãopodem se tornar bons atendentes de telemarketing,por exemplo.

❚ AMPARO ÀS FAMÍLIAS – Desenvolver projetoscomunitários que acolham as mães, ensinando-as adar limites aos filhos e a demonstrar afeto, por exem-plo, faz diferença na vida dessas crianças, reforçandoos vínculos familiares.

Como cada um podecontribuir para evitar amigração de crianças eadolescentes para as ruas

ZEROHORA.COMNo site, assista aowebdocumentário queretrata a luta de quemtrabalha para resgatar osmeninos de rua da Capital.

16 FILHO DA RUA | DOMINGO, 17 DE JUNHO DE 2012