Filipa Vasconcelos de Assuncao

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  • CATLICA DISSERTATIONS

    No. 1/2013

    Dissertao de Mestrado orientado para a Investigao

    A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas Em Especial a Problemtica da Culpa

    Filipa Vasconcelos de Assuno

    Esta dissertao pode ser descarregada gratuitamente em:

    www.fd.lisboa.ucp.pt/research

  • CATLICA DISSERTATIONS 1

    Universidade Catlica Portuguesa

    Faculdade de Direito

    Escola de Lisboa

    A Responsabilidade Penal das

    Pessoas Colectivas Em Especial

    a Problemtica da Culpa

    Filipa Vasconcelos de Assuno

    Orientador: Professor Doutor Germano Marques da Silva

    Mestrado Forense orientado para a investigao

    Junho 2010

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 2

    Agradecimentos

    Universidade Catlica Portuguesa, pela oportunidade. Ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, pelo conhecimento.

    minha famlia e amigos, pelo apoio.

  • CATLICA DISSERTATIONS 3

    A Responsabilidade Penal das Pessoas

    Colectivas Em Especial a Problemtica da Culpa

    Filipa Vasconcelos de Assuno

    I. INTRODUO ...................................................................................... 6

    II. A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS ................. 7

    1. A evoluo histrica da problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas ............................................................ 9

    2. Argumentos contra a responsabilidade penal das pessoas colectivas ........................................................................................ 13

    2.1. A natureza jurdica das pessoas colectivas ....................... 14

    2.2. A licitude do objecto social das pessoas colectivas e a limitada competncia dos seus rgos ...................................... 16

    2.3. O princpio da personalidade das penas ............................ 17

    2.4. A pena privativa da liberdade ........................................... 19

    2.5. Os fins das penas ................................................................ 20

    2.6. A incapacidade de aco das pessoas colectivas ............... 22

    2.7. A incapacidade de culpa das pessoas colectivas ............... 24

    3. Argumentos a favor da responsabilidade penal das pessoas colectivas ........................................................................................ 26

    4. Direito Comparado .................................................................... 30

    4.1. Unio Europeia ................................................................... 31

    4.2. Conselho da Europa ............................................................ 33

    4.3. Holanda ............................................................................... 35

    4.4. Frana ................................................................................. 36

    4.5. Blgica ................................................................................. 37

    4.6. Sua .................................................................................... 38

    4.7. Alemanha ............................................................................ 38

    4.8. Espanha .............................................................................. 40

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 4 4.9. Itlia .................................................................................... 41

    4.10. Inglaterra e Estados Unidos da Amrica ........................ 42

    III. A PROBLEMTICA DA CULPA NO INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS ....................................................... 44

    1. O princpio da culpa .................................................................. 45

    2. A noo de culpa ........................................................................ 47

    3. A culpa das pessoas colectivas no mbito da responsabilidade civil ................................................................................................. 51

    4. As principais teorias sobre a culpa penal das pessoas colectivas ........................................................................................................ 52

    4.1. A teoria do pensamento analgico ..................................... 53

    4.2. A teoria da racionalidade material dos lugares inversos . 54

    4.3. A teoria da culpa pela organizao .................................... 55

    4.4. Outras teorias ..................................................................... 57

    5. Os modelos de responsabilidade penal das pessoas

    colectivas ........................................................................................ 59

    5.1. O modelo de responsabilidade indirecta das pessoas colectivas .................................................................................... 60

    5.1.1. Os agentes singulares que podem responsabilizar a pessoa colectiva segundo o modelo de responsabilidade indirecta ............................................................................... 60

    5.1.2 As dificuldades do modelo de responsabilidade indirecta ............................................................................... 62

    5.2. O modelo de responsabilidade directa das pessoas colectivas .................................................................................... 63

    5.2.1. Os agentes singulares que podem responsabilizar a pessoa colectiva segundo o modelo de responsabilidade directa ................................................................................... 66

    5.2.2 As dificuldades do modelo de responsabilidade directa .............................................................................................. 66

    6. A responsabilidade penal das pessoas colectivas independentemente de culpa ......................................................... 68

    IV. A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS NA LEI PORTUGUESA ...................................................................................... 70

    1. O Cdigo Penal portugus ......................................................... 70

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    1.1. A evoluo do Cdigo Penal portugus relativa ao regime de responsabilidade criminal das pessoas colectivas ............... 71

    1.2. O mbito de aplicao subjectiva do artigo 11., n. 2 do Cdigo Penal portugus ............................................................. 73

    1.3. O catlogo de crimes imputveis s pessoas colectivas .... 75

    1.4. Os requisitos da imputao jurdico-penal dos crimes s pessoas colectivas ...................................................................... 77

    1.4.1. A posio de liderana ............................................... 79

    1.4.2. Os factos praticados em nome da pessoa colectiva .. 82

    1.4.3. Os factos praticados no interesse colectivo ............... 84

    1.4.4. A violao dos deveres de vigilncia ou controlo ...... 85

    1.5. A excluso da responsabilidade penal da pessoa colectiva em virtude da actuao dos agentes contra ordens ou instrues expressas de quem de direito .................................. 86

    1.6. O princpio da responsabilidade cumulativa ..................... 88

    1.7. A independncia da responsabilidade penal das pessoas colectivas da responsabilidade individual dos agentes singulares ................................................................................... 89

    1.8. O modelo de imputao jurdico-penal .............................. 91

    1.9. As penas aplicveis s pessoas colectivas ......................... 95

    2. A legislao penal avulsa portuguesa ....................................... 95

    2.1. O Diploma sobre as Infraces contra a Economia e Contra a Sade Pblica Decreto-Lei n. 28/84, de 20 de Janeiro ..... 95

    2.2. O Regime Geral das Infraces Tributrias Lei n. 15/2001, de 5 de Julho ............................................................... 97

    2.3. O Cdigo de Propriedade Industrial Decreto-Lei n. 36/2003, de 5 de Maro .............................................................. 97

    2.4. A Lei de Combate ao Terrorismo Lei n. 52/2003, de 22 de Agosto .................................................................................... 98

    2.5. O Regime Jurdico de Entrada, Permanncia, Sada e Afastamento de Estrangeiros do Territrio Nacional Lei n. 23/2007, de 4 de Julho ............................................................... 98

    2.6. O Regime de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos Lei n. 50/2007, de 31 de Agosto ......................................................................................... 99

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 6 2.7. O Cdigo do Trabalho Lei n. 7/2009, de 12 de Fevereiro .................................................................................................. 100

    2.8. A Lei da Criminalidade Informtica Lei N. 109/2009, de 15 de Setembro que revogou a Lei N. 109/91, de 17 de Agosto .................................................................................................. 100

    V. CONCLUSO .................................................................................. 101

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 104

    I. INTRODUO

    As sociedades contemporneas, massificadas e industrializadas, assinalaram uma sociedade de risco e insegurana, trazendo novos problemas jurdicos incontornveis que o Direito teve de resolver atravs da inovao do paradigma penal e da adaptao das categorias tradicionais da responsabilidade penal. Um desses problemas jurdicos resultou, precisamente, do crescimento da criminalidade econmica, desenvolvida atravs de organizaes empresariais complexas. De facto, as pessoas colectivas so os principais agentes dos crimes econmicos, cujas condutas assumem propores bem mais graves do que as dos crimes praticados pelas pessoas individuais, uma vez que pem em risco reas comunitrias como a sade pblica, o mercado financeiro, a zona fiscal, o meio ambiente, o emprego e outras.

    Este contexto de globalizao e liberalizao econmica exigiu a interveno do Direito na proteco dos bens jurdicos colectivos e o afastamento do dogma da responsabilidade penal exclusivamente individual, na medida em que s a responsabilidade da colectividade seria eficaz no controlo da criminalidade. O Direito teve, assim, de encontrar uma soluo legal para a problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas, adoptando um regime pragmtico que, por um lado, respondesse s necessidades poltico-criminais de punio e que, por outro, fosse compatvel com os princpios da dogmtica jurdico-penal clssica, em especial, com o princpio da culpabilidade.

    Decorridos quase 3 anos aps a entrada em vigor da Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, que veio implementar em Portugal a possibilidade de responsabilizar penalmente as pessoas colectivas no mbito do direito penal de justia, assume especial importncia desenvolver um trabalho que demonstre todo o caminho percorrido, desde a percepo da necessidade jurdico-social de punir criminalmente as sociedades, at efectiva e directa responsabilizao destas entidades. Neste sentido, continuam a

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    assumir grande interesse a anlise da evoluo histrica da problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas, o estudo dos argumentos que, ao longo dos tempos, foram apresentados em recusa e em defesa deste regime e a referncia s solues encontradas pelos mais importantes sistemas jurdicos do Mundo. Ao lado da anlise da problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas impe-se, ainda, um estudo aprofundado da questo da incapacidade de culpa penal destas entidades. Este foi sempre o principal obstculo punio criminal das sociedades, o que exige a anlise das vrias teorias apresentadas pela doutrina e dos principais modelos desenvolvidos sobre a culpa penal das colectividades. Com este estudo pretendemos, tambm, afastar do instituto da responsabilidade penal das pessoas colectivas as teorias que assentam na defesa de uma responsabilidade penal objectiva, na medida em que continuamos a preservar o respeito absoluto pelo princpio nulla poena sine culpa.

    Aps o desenvolvimento de toda a problemtica da culpa das colectividades, analisaremos, detalhadamente, o regime consagrado no actual artigo 11. do Cdigo Penal portugus, atravs da interpretao da lei e do estudo dos pressupostos da responsabilizao e do modelo adoptado para a punio criminal das sociedades. Por fim, analisaremos, ainda, o regime de responsabilidade penal das pessoas colectivas consagrado na principal legislao penal avulsa em vigor em Portugal. Apesar de, at 2007, no se prever, expressa e directamente, a punio das sociedades no direito penal de justia, a verdade que se admite, h alguns anos, esta punio no direito penal secundrio.

    Assim, atravs de uma investigao desenvolvida sobre o estado de arte da questo da responsabilidade penal das pessoas colectivas, pretendemos reunir, neste trabalho, o estudo geral da problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas e a anlise detalhada do argumento da incapacidade de culpa das sociedades. Desta forma, esperamos poder estabilizar a discusso levantada sobre a susceptibilidade de punir criminalmente as sociedades, uniformizar as diferentes concepes formuladas a seu respeito e tomar posio sobre a correcta interpretao e avaliao do regime consagrado na lei penal portuguesa.

    II. A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS Ao longo de muitos anos, a questo das pessoas colectivas poderem ser ou no alvos de punio penal foi discutida de forma intensa,

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 8 tendo sido invocados fortes argumentos que sustentavam tanto a impossibilidade destas entidades serem susceptveis de responsabilidade criminal, como a clara necessidade de as abranger no mbito de proteco do direito penal. No entanto, a opinio maioritria continuava a apontar para a ideia de que as pessoas colectivas no podiam ser responsabilizadas penalmente, defendendo-se o princpio societas delinquere non potest.

    Contudo, perante fenmenos como o da globalizao e da liberalizao do comrcio mundial que incentivam a criminalidade econmica levada a cabo por organizaes empresariais, o direito penal no podia ficar indiferente punio das pessoas colectivas. De facto, com a exploso do liberalismo econmico, as medidas clssicas de controlo da economia levadas a cabo pelos Estados no se revelaram eficazes no combate criminalidade, obrigando o Direito a adoptar novas formas de imputao da responsabilidade penal, principalmente no que diz respeito responsabilidade das pessoas colectivas no mbito do direito penal econmico.1

    Assim, face crescente criminalidade empresarial, a doutrina e legisladores da maioria dos pases tm vindo, recentemente, a admitir alguns desvios ao princpio da responsabilidade penal individual e a aceitar a punio criminal das pessoas colectivas, baseando-se na necessidade de recorrer ao direito penal para travar as ameaas protagonizadas por empresas e entidades equiparadas. Seguindo-se de perto o exemplo anglo-saxnico, pioneiro na consagrao da responsabilidade criminal das pessoas colectivas, assiste-se, um pouco por todo o Mundo, a um movimento de aceitao da punio penal das empresas, com expresso preponderante no campo do direito econmico.2

    Nesta medida, e atendendo ao nmero de sistemas jurdicos que hoje consagram a responsabilidade penal das pessoas colectivas, podemos admitir que o tradicional princpio societas delinquere non potest tem vindo a ser progressivamente substitudo pelo moderno princpio societas delinquere potest. Neste sentido, a

    1 BRAVO, Jorge dos Reis, Critrios de Imputao Jurdico-Penal de Entes Colectivos (Elementos para uma Dogmtica Alternativa da Responsabilidade Penal de Entes Colectivos), Revista Portuguesa de Cincia Criminal, Ano 13, Fascculo 2., Abril-Junho, 2003, pgina 209 e ss.

    2 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos Ensaio sobre a Punibilidade de Pessoas Colectivas e Entidades Equiparadas, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pgina 44; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas Novas Perspectivas, in Direito Penal Econmico e Europeu: Textos Doutrinrios, Volume I Problemas Gerais, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pgina 431; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos Seus Administradores e Representantes, Lisboa, Verbo, 2009, pgina 110.

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    doutrina continua a debater a problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas, tendo em vista a concretizao de uma teoria que permita consagrar a punio das sociedades e outras pessoas colectivas anlogas pelos crimes cometidos no mbito do direito penal de justia, sem violar os seus tradicionais princpios dogmticos.3

    Mas esta posio recente resulta de uma longa discusso, o que exige que faamos uma anlise da evoluo histrica, desde a recusa aceitao, da responsabilidade penal das pessoas colectivas.

    1. A evoluo histrica da problemtica da responsabilidade penal

    das pessoas colectivas Ao longo da histria, a posio do Direito perante a problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas no foi constante, tendo havido pocas em que recusou esta responsabilidade e outras em que admitiu a punio destas entidades.

    No Direito Romano, s com a poca imperial surge a concepo da personalidade colectiva. Contudo, apesar dos municipia, collegia e universitates serem titulares de direitos e obrigaes, estas entidades eram vistas como meras criaes fictcias do direito e, portanto, insusceptveis de responsabilidade penal. O Direito Romano defendia, assim, o princpio societas delinquere non potest, posio que assentava na defesa da incapacidade de actuao e de vontade das pessoas colectivas.4 J no Direito Cannico, ao contrrio do Direito Romano, a maioria dos estudiosos admitiu a responsabilidade penal das pessoas colectivas. Os canonistas preocuparam-se em definir os pressupostos da punio destas entidades, as regras da comparticipao e a responsabilidade individual dos membros da

    3 QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, O Advento da Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, no Direito Penal de Justia, Luz da Reforma do Artigo 11. do Cdigo Penal Portugus (Contributo para uma Leitura Compreensiva dos Critrios de Imputao Jurdico-Penal), Tese da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2008, pgina 11 e ss.

    4 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 34; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas: do Repdio Absoluto ao Actual Estado das Coisas, Revista do Ministrio Pblico, Ano 30, N. 118, Abril-Junho, 2009, pgina 47; SOUSA, Joo Castro e, As Pessoas Colectivas em Face do Direito Criminal e do Chamado Direito de Mera Ordenao Social, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pgina 26; VARALDA, Renato Baro, A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica (Macrocriminalidade e a Globalizao), Tese da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2003, pgina 20.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 10 colectividade que tivessem actuado com culpa. Porm, o Papa Inocncio IV revelou-se contra esta posio, tendo vindo a rejeitar a punio das pessoas colectivas por considerar que as mesmas no passariam de construes abstractas e entidades ficcionais, incapazes de actuar e querer.5 Na Idade Mdia, os Glosadores consideraram que a vontade e a actuao da colectividade era determinada pela vontade e actuao dos seus membros. Para se reconhecer a existncia de uma infraco colectiva, os Glosadores exigiram, num primeiro momento, que esta tivesse sido praticada por todos os membros da colectividade para, mais tarde, virem apenas exigir uma actuao da maioria. J no sculo XIII, os Postglosadores, influenciados pelo Direito Cannico, consideraram que a entidade colectiva era uma entidade distinta dos membros que a compunham. Brtolo, o maior representante deste entendimento, defendeu a imputabilidade delitual das colectividades, afirmando que a pessoa colectiva no era uma entidade ficcional para o Direito, tendo vontade e capacidade para actuar. No entanto, os Postglosadores adoptaram o mesmo critrio dos Glosadores, exigindo, num primeiro momento, a unanimidade da vontade dos membros para responsabilizar a colectividade, tendo, mais tarde, passado a exigir apenas a maioria daquelas vontades.6

    Por fim, o Direito Germnico passou por trs perodos distintos no que diz respeito responsabilizao das pessoas colectivas. Numa fase mais primitiva assumiu importncia a figura da famlia e da comunidade: quando um dos membros da comunidade praticasse um delito e o culpado no fosse entregue famlia da vtima, os demais membros da comunidade contribuam para o pagamento de uma reparao famlia da vtima. Mais tarde, assumiu relevncia a figura da tribo, onde se defendia que esta deveria responder pelas infraces dos seus membros. Reconhecia-se, j nesta altura, a existncia de ilcitos colectivos quando as infraces fossem cometidas por todos os membros, ou quando esta resultasse da aco de um rgo representativo. Por fim, as cidades ganharam importncia e estabeleceu-se a diferena entre a colectividade e os membros que a compem. Mas apesar de se terem admitido vrias formas de responsabilizao de diversas entidades colectivas, fica demonstrado, pela exposio destas trs

    5 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 35; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 47; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 27 e ss; VARALDA, Renato Baro, ob. cit., pgina 20.

    6 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 35 e 36; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 30 e ss; VARALDA, Renato Baro, ob. cit., pgina 20.

  • CATLICA DISSERTATIONS 11

    fases distintas, que o Direito Germnico nunca conseguiu compreender a natureza e essncia da personalidade colectiva.7

    J noutra fase da nossa histria, foi provado que, at ao sculo XVIII, era comum a aplicao de penas a entidades colectivas, nomeadamente s tribos, vilas, comunas, cidades e famlias8.

    No entanto, com a Revoluo Francesa e a consagrao do princpio da responsabilidade individual, o Direito concentrou-se na pessoa humana e as pessoas colectivas foram retiradas do mbito de aplicao da punio penal. Como consequncia desta concentrao do Direito na pessoa singular, foi tambm adoptado um conceito de culpa construdo segundo uma perspectiva puramente individualista. Neste sentido, foi o Direito Liberal que, ao instituir o princpio da responsabilidade pessoal e as concepes individualistas de Kant e Hegel, afastou a responsabilidade penal das pessoas colectivas. Contudo, a principal razo do afastamento das colectividades do mbito de aplicao do direito penal encontra-se no facto de, nesta altura, as pessoas colectivas terem perdido a importncia que possuam durante a Idade Mdia, o que significou o desaparecimento da necessidade de punir estas entidades. S mais tarde, com a industrializao do sculo XIX e a renovao da importncia das organizaes empresariais na indstria e na economia, se voltou a constatar a importncia de responsabilizar criminalmente as pessoas colectivas.9

    Mais tarde, j no sculo XX, surgiu, mais acentuadamente, a necessidade de responsabilizar os entes colectivos. Com a globalizao e o aumento da criminalidade econmica praticada pelas empresas, passou a ser aceite que as pessoas colectivas desenvolviam actividades socioeconmicas ilcitas, cometendo crimes e gerando riscos para os bens jurdicos colectivos, o que exigiu que o direito penal se envolvesse na punio destas entidades.10

    7 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 37; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 47; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 34 e 35.

    8 GONTIJO, Sophia Costa, A Questo da Culpa na Responsabilizao Penal do Ente Colectivo, Tese da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2007, pgina 4.

    9 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 33 e 34; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 47; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 131; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 23 e 24.

    10 CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 48; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 112.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 12 No que diz respeito evoluo histrica da problemtica da

    responsabilidade penal das pessoas colectivas em Portugal, importa referir que, no direito ancestral do nosso pas, no existiram preceitos que previssem a aplicao de penas especficas s pessoas colectivas. Contudo, era prtica comum aplicar s pessoas colectivas as penas previstas para as pessoas singulares, modificando-se a sano ou substituindo-a por outra semelhante. De facto, era corrente igualar as pessoas colectivas s pessoas singulares.11

    Sendo j frequente aplicarem-se penas s entidades colectivas, no constituiu surpresa o facto do projecto do Cdigo Criminal de Pascoal Jos de Melo Freire admitir, claramente, a responsabilidade criminal colectiva, sem justificar tal posio. Porm, com a Revoluo Francesa, a responsabilidade penal das pessoas colectivas desapareceu do nosso Direito e passou a defender-se o princpio societas delinquere non potest, posio que resultou da influncia, em Portugal, das ideias liberais e individualistas tpicas desta etapa da histria. Assim, como o demonstrava o artigo 11. da Constituio da Repblica Portuguesa de 1822, que estabelecia que toda a pena deve ser proporcionada ao delito; e nenhuma passar da pessoa do delinquente, entendia-se, nesta altura, que as pessoas morais no podiam delinquir e que o delinquente era sempre uma pessoa humana.12

    Mais tarde, o artigo 22. do Cdigo Penal de 1852 e o artigo 26. do Cdigo Penal de 1886 vieram reforar a ideia de que no se admitia, em Portugal, a responsabilidade penal das pessoas colectivas, ao referir que somente podem ser criminosos os indivduos que tm a necessria inteligncia e liberdade. No entanto, com o artigo 11. do Cdigo Penal de 1982, que estabelecia que salvo disposio em contrrio, s as pessoas singulares so susceptveis de responsabilidade criminal, passou a admitir-se, excepcionalmente, a responsabilidade penal das pessoas colectivas, sobretudo no direito econmico. Apesar deste artigo trazer alguma

    11 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina

    38; CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Dissertao de Licenciatura, Justia Portuguesa, Ano 4., N. 45, Setembro, 1937, pgina 129 e 130; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 46.

    12 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 39; CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 4., N. 45, Setembro, 1937, pgina 129 e 130; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 51 e 52.

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    novidade para o nosso Cdigo Penal, a verdade que o princpio societas delinquere non potest continuava a prevalecer.13

    No que diz respeito doutrina portuguesa tradicional, a maioria dos autores defendeu a inadmissibilidade da responsabilidade penal das pessoas colectivas. Se esta era a soluo legal, entende-se que a doutrina se tenha pronunciado no mesmo sentido, como foi o caso de CAEIRO DA MATTA 14 , MARCELLO CAETANO 15 , BELEZA DOS SANTOS 16 , CAVALEIRO DE FERREIRA17 e EDUARDO CORREIA 18. Mas houve alguns autores que defenderam posies excepcionais, como por exemplo, ANTNIO CRESPO SIMES DE CARVALHO19 e MRIO CORRA AREZ20, que entendiam que a responsabilidade penal das pessoas colectivas devia ser admitida.21

    Actualmente, a punio criminal das pessoas colectivas tem vindo a ser defendida pela maioria da doutrina internacional e consagrada na legislao de diversos pases. Contudo, antes de analisarmos a orientao dos principais sistemas jurdicos, importa expor as teorias e argumentos que, ao longo dos anos, foram sendo apresentados contra e em defesa da responsabilidade penal das pessoas colectivas.

    2. Argumentos contra a responsabilidade penal das pessoas

    colectivas 13 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina

    40; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 52 e 53; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 113.

    14 Direito Criminal Portugus, II, Coimbra, F. Frana Amado, 1911, pgina 217 e 218.

    15 Lies de Direito Penal, 1936-1937, pgina 297. 16 Direito Criminal, 1936 (Lies coligidas por Hernni Marques),

    pgina 321 e ss. 17 Direito Penal, I, 1956-1957, (Lies coligidas por Eduarda Silva

    Casca), pgina 156 e ss. 18 Direito Criminal, Volume I, Reimpresso, Coimbra, Almedina,

    2008, pgina 234 e 235. 19 Ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 6., N. 70, Outubro, 1939, pgina

    146, N. 71, Novembro, 1939, pgina 173 e 174 e N. 72, Dezembro, 1939, pgina 189 e ss.

    20 Da Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Scientia Ivridica, Revista Bimestral Portuguesa e Brasileira, Tomo XI, N. 60, Outubro-Dezembro, 1962, pgina 503 e ss.

    21 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 40 e ss; CARVALHO, Jos Manuel Costa Galo Tom de, ob. cit., pgina 53 e ss; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 187 e ss.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 14 Ao longo da histria e evoluo do Direito, vrias foram as teorias construdas de forma a recusar a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, invocando-se, principalmente, a violao dos princpios essenciais do Estado de Direito e do direito penal. Apesar deste trabalho incidir, especialmente, sobre a problemtica da culpa penal das pessoas colectivas, principal argumento de oposio responsabilidade penal destas entidades, no podemos deixar de fazer uma breve anlise de outros argumentos, tambm importantes, que sustentaram a recusa desta responsabilidade.

    2.1. A natureza jurdica das pessoas colectivas Um dos argumentos invocados pela doutrina que defende a recusa da responsabilidade penal das pessoas colectivas prende-se com a natureza especfica das colectividades e a ausncia de personalidade jurdica destas entidades. E importa aqui referir as principais teorias formuladas sobre a natureza da personalidade colectiva.

    A teoria dominante do sculo XIX, protagonizada por SAVIGNY e denominada de teoria da fico, defendia que todo o direito existe por causa da vontade e liberdade moral do homem e que apenas os homens podem ser sujeitos de direitos. Por um lado, esta tese individualista considerava que o conceito de sujeito de direito se reduz ao conceito de ser humano, baseando-se no sentido tico-filosfico da noo de personalidade da filosofia kantiana. Por outro lado, esta teoria entendia que, ao contrrio do homem que existe por criao da natureza, a pessoa colectiva resulta de uma exigncia legal e, por isso, uma entidade incorprea e abstracta e uma fico criada pelo Direito, incapaz de querer e de actuar por si mesma. Entendia, assim, SAVIGNY, que s o homem tem vontade e s este pode possuir direitos e contrair obrigaes, no se podendo imputar pessoa colectiva qualquer actuao no mundo jurdico porque os actos ilcitos no se podem reflectir nas colectividades criadas pelo Direito. Deste modo, segundo a teoria da fico, entendia-se que os delitos imputados s pessoas colectivas so praticados pelas pessoas fsicas que as integram e que a personalidade jurdica da pessoa colectiva est sempre dependente dos seus representantes e membros, o que impede que se admita a responsabilidade penal destas entidades. Porm, esta teoria no obteve o consenso da doutrina e foram apresentadas vrias falhas

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    que a teoria da fico no conseguiu explicar, como, por exemplo, a existncia do prprio Estado como pessoa jurdica. 22

    A segunda teoria relativa natureza da personalidade colectiva surgiu por oposio teoria da fico e foi denominada de teoria orgnica ou teoria da realidade. Esta orientao, defendida por GIERKE, partia do pressuposto que a pessoa colectiva uma pessoa real, constituda por pessoas singulares organizadas, que prossegue interesses prprios distintos dos interesses dos indivduos que a integram. Deste modo, a teoria orgnica entendia que o ente colectivo um organismo social dotado de vontade prpria e capaz de ser um verdadeiro sujeito de Direito com personalidade jurdica. Assim, para GIERKE, as pessoas colectivas so capazes de aco e de culpa, pois praticam crimes atravs dos seus rgos que actuam no mbito das suas competncias. No entanto, tambm esta teoria pecou ao considerar que a pessoa jurdica tinha vontade prpria, igual vontade da pessoa natural.23 Aps as crticas formuladas s teorias de SAVIGNY e GIERKE surgiu a teoria da realidade jurdica, que conjugava a teoria da fico e a teoria orgnica e defendia que a pessoa colectiva constitui uma figura real distinta das pessoas individuais que a compem e que titular de uma realidade tcnica e de uma vontade composta por interesses distintos dos interesses particulares.24

    Estas teorias trouxeram novas posies dogmticas que influenciaram a doutrina e serviram de fundamento discusso da problemtica da responsabilidade criminal das pessoas colectivas. E perante as vrias teorias formuladas sobre a natureza da personalidade colectiva, podemos afirmar que seguimos de perto a teoria da realidade jurdica, teoria esta que entendia que a sociedade tem uma vontade prpria e distinta da vontade dos indivduos que a compem. Desta forma, entendemos que as sociedades constituem realidades sociais dotadas de capacidade para serem titulares de direitos e deveres jurdicos e a quem o Direito atribui uma vontade prpria. Neste sentido, consideramos

    22 CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 4., N. 46, Outubro, 1937, pgina 145 e ss; CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, A Responsabilidade por Omisso dos Administradores das Pessoas Colectivas, Tese da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005, pgina 39 e ss; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 5 e 6; VARALDA, Renato Baro, ob. cit., pgina 15.

    23 CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 4., N. 48, Dezembro, 1937, pgina 190; CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 42 e 43; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 6; VARALDA, Renato Baro, ob. cit., pgina 16.

    24 GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 6 e 7.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 16 que a pessoa colectiva tem uma personalidade jurdica anloga do ser humano.25

    No entanto, ao contrrio do homem que resulta da natureza, as pessoas colectivas so realidades jurdicas a quem a lei atribui personalidade e capacidade para ser titular de direitos e deveres. Contudo, para que a lei atribua personalidade a uma entidade colectiva no basta a existncia de um interesse colectivo. preciso, tambm, que exista uma vontade ao servio desse interesse. Como s o homem capaz de uma vontade natural, a soluo encontrada para atribuir vontade pessoa colectiva passa por admitir a existncia de uma vontade colectiva, manifestada atravs da vontade dos rgos da sociedade. Entende-se, ento, que as pessoas colectivas possuem uma vontade funcional colectiva formada pela vontade manifestada pelos rgos da sociedade.26

    Assim, segundo a teoria da realidade jurdica, devemos entender que as pessoas colectivas so meras realidades jurdicas que exigem a interveno das pessoas singulares. Desta forma, para responsabilizar criminalmente uma sociedade por acto prprio, devemos imputar a infraco praticada pelo rgo ou representante da pessoa colectiva prpria pessoa colectiva, uma vez que a actuao desta entidade se faz por representao das pessoas singulares qualificadas como rgos ou representantes.27 2.2. A licitude do objecto social das pessoas colectivas e a limitada

    competncia dos seus rgos Outro argumento defendido pela doutrina, para negar a responsabilidade penal das pessoas colectivas, est ligado licitude dos fins sociais da sociedade e limitada competncia dos seus rgos.

    Como consequncia da exigncia de legalidade do fim social da pessoa colectiva e da limitao da competncia dos seus rgos realizao do objecto social da empresa, parte da doutrina entendia que no podemos aceitar como juridicamente reconhecida uma pessoa colectiva cujos objectivos sociais esto ligados prtica de

    25 ANDRADE, Manuel Antnio Domingues de, Teoria Geral da Relao Jurdica, Volume I, Coimbra, Almedina, 1960, pgina 49 e ss; MARQUES, Jos Dias, Teoria Geral do Direito Civil, I, Coimbra, Coimbra Editora, 1958, pgina 161 e ss; MENDES, Joo de Castro, Teoria Geral do Direito Civil, I, Lisboa, AAFDL, 1978, pgina 227; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 133 e 134.

    26 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades., pgina 132 e 133.

    27 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 140 e 141.

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    crimes, como tambm no podemos admitir que os rgos que praticam factos ilcitos os praticam dentro das suas competncias. Recusando a existncia de sociedades com um objecto social ilcito, esta teoria defendia que no se pode responsabilizar criminalmente as pessoas colectivas, nem se pode aceitar que os rgos que violam a lei actuam como rgos, actuando, antes, fora das suas funes.28

    Na nossa opinio, esta teoria fundamenta-se numa confuso de dois momentos diferentes. certo que no podemos aceitar a constituio de sociedades com um objecto social contrrio ao Direito. Contudo, temos de admitir que as sociedades regularmente constitudas podem, ocasionalmente, praticar factos ilcitos e desviar-se dos seus fins sociais. De facto, quando as pessoas colectivas praticam actos ilcitos no mbito da sua actividade, continuam a ser sociedades e a actuar atravs dos seus rgos. Mas bastar esta argumentao para aceitarmos a responsabilidade penal das pessoas colectivas?29 A doutrina que nega a punio criminal prpria das pessoas colectivas invoca que so as pessoas humanas que praticam os actos contrrios ao Direito e que, neste sentido, os destinatrios das sanes deveriam ser os indivduos. Porm, esta posio parece afastar a utilidade da atribuio de personalidade jurdica s sociedades e tornar as sanes ineficazes. O Direito, ao reconhecer a personalidade jurdica da pessoa colectiva, tem tambm de aceitar a sua responsabilizao penal e prevenir a criminalidade empresarial. Temos, assim, de exigir s empresas que se organizem e que actuem de forma a evitar os perigos decorrentes da sua actividade, garantindo que a sua estrutura e os seus organismos de deciso sejam eficazes e actuem de acordo com as imposies legais.30

    2.3. O princpio da personalidade das penas

    Um outro obstculo responsabilidade penal das pessoas colectivas encontra-se na impossibilidade de adaptao do princpio da personalidade das penas s pessoas colectivas, na medida em que alguns autores retiram deste princpio o entendimento que s ao agente criminoso individual pode ser aplicada uma pena.

    28 MATTA, Caeiro da, ob. cit., pgina 217 e 218; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 146.

    29 SENDIM, Paulo, Sociedades Comerciais, Lisboa, AAFDL, 1988, pgina 69 e 70; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 147.

    30 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 148 e 149.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 18 O princpio da personalidade ou da intransmissibilidade das

    penas, consagrado no artigo 30., n. 3 da Constituio da Repblica Portuguesa, determina que a responsabilidade penal insusceptvel de transmisso. Assim, entendia parte da doutrina que, por respeito ao princpio da personalidade das penas, no se pode aplicar sanes criminais pessoa colectiva, pois tal aplicao pode significar atingir membros inocentes da colectividade. verdade que a pena de dissoluo pune eficazmente a sociedade mas afecta tambm, por exemplo, os trabalhadores, os accionistas da sociedade que no participam na actuao criminosa e os membros do conselho da administrao que votam contra a deciso que deu incio prtica do crime.31

    Contudo, parece-nos que esta teoria no suficiente para negar a responsabilidade penal das pessoas colectivas, pois, se invertermos o pensamento lgico, constatamos que a soluo contrria violaria de forma mais grave o princpio da personalidade das penas. Se no aplicarmos penas s pessoas colectivas que cometem o crime no seu interesse e benefcio prprio e aplicarmos to-s penas s pessoas humanas que representam funcionalmente a vontade da pessoa colectiva, estamos, agora sim, a transmitir a pena do delinquente (pessoa colectiva) para um terceiro (pessoa humana).32

    Por outro lado, esta tese tambm no nos convence no argumento de que a responsabilidade penal das pessoas colectivas se traduz numa aplicao indiferenciada de penas a culpados e inocentes. Importa, aqui, esclarecer que a condenao da pessoa colectiva no significa a condenao das pessoas humanas que a compem. A culpa s da pessoa colectiva e dos membros que cometeram o crime e, por isso, s as pessoas colectivas e singulares culpadas so condenadas. No entanto, admitimos que as penas aplicadas s pessoas colectivas podem afectar terceiros inocentes, como os scios e os trabalhadores. Porm, este efeito tambm comum na aplicao de indemnizaes e multas por ilcitos civis e administrativos e na aplicao de penas s pessoas singulares,

    31 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 66; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, A Legitimao da Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Tese da Universidade Catlica Portuguesa, Lisboa, 1999, pgina 11; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 10; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 438.

    32 DIAS, Jorge de Figueiredo, Para uma Dogmtica do Direito Penal Secundrio. Um contributo para a Reforma do Direito Penal Econmico e Social Portugus, Direito e Justia, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Catlica Portuguesa, Volume IV, 1989/1990, pgina 7 e ss; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 150.

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    nunca tendo sido considerado um obstculo responsabilidade nestes campos de direito e formas de punio.33

    2.4. A pena privativa da liberdade

    Um outro argumento invocado pela doutrina, que recusa a responsabilidade penal das pessoas colectivas, refere-se ao facto de no ser possvel aplicar algumas penas s pessoas colectivas, como o caso da pena de priso. Entendiam alguns autores que, sendo apenas possvel aplicar penas pecunirias s pessoas colectivas, conseguir-se-iam alcanar os mesmos efeitos se o direito civil ou o direito administrativo estivessem encarregues da punio destas entidades.34

    No entanto, no concordamos com este argumento. A impossibilidade de aplicar penas privativas da liberdade s pessoas colectivas no motivo suficiente para negar a responsabilidade penal destas entidades, tanto mais que, actualmente, a poltica criminal assenta num princpio de subsidiariedade das penas detentivas em relao s penas no detentivas. De facto, o direito penal no encontra o seu fundamento na previso de penas de priso e a aplicao destas penas no obrigatria para estarmos perante uma punio penal. Sabemos que as penas criminais no so iguais para todo o tipo de destinatrios e no seria adequado prever penas para as pessoas colectivas iguais s penas previstas para as pessoas singulares. O direito deve, assim, prever penas adequadas natureza dos agentes dos crimes, como j o faz noutras ocasies, nomeadamente no artigo 12., n. 2 do Regime Geral das Infraces Tributrias.35

    Neste sentido, para resolver o problema da inaplicabilidade da pena de priso s pessoas colectivas, bastar incluir no Cdigo Penal uma norma que regule a converso da pena de priso

    33 ROSA, Manuel Cortes, O Problema da Aplicabilidade de Multas s Pessoas Colectivas, por Violao dos Deveres Fiscais, in Direito Penal Econmico e Europeu Textos Doutrinrios, Volume II Problemas Especiais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pgina 48; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 150 e 151; WELLS, Celia, Corporations and Criminal Responsibility, 2. Edio, Oxford, Oxford University Press, 2001, pgina 146 e ss.

    34 GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 11; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 10; MATTA, Caeiro da, ob. cit., pgina 218; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 439; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 117 e 118.

    35 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 154 e ss; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 114 e 115.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 20 prevista para as pessoas singulares em pena de multa a aplicar s pessoas colectivas. Porm, existem outras penas principais que podem ser aplicadas s pessoas colectivas, sem serem levantadas objeces, nomeadamente a pena de multa e a pena de dissoluo.36

    Quanto sugesto proposta por esta teoria das pessoas colectivas serem responsabilizadas apenas no mbito do direito civil ou administrativo, parece-nos que existem diferenas essenciais entre estes ramos do direito e o direito penal que impossibilitam esta soluo. A verdade que s o direito penal possui uma forte censura social capaz de fazer cumprir os fins de preveno geral e especial.37

    2.5. Os fins das penas O prximo obstculo responsabilidade penal das pessoas colectivas est ligado ao facto de parte da doutrina ter entendido que os fins das penas no so alcanados quando se aplica uma pena s pessoas colectivas. Como sabemos, a principal finalidade das penas a de preveno geral, que consiste na tutela necessria de bens jurdicos e na manuteno da paz juridco-social. Por outro lado, as penas possuem tambm um fim de preveno especial, que se traduz na reintegrao do delinquente na sociedade e na socializao do agente do crime.38

    Invocavam os defensores deste argumento que as pessoas colectivas no tm vontade nem inteligncia prprias e que, por isso, no distinguem o lcito do ilcito. Assim, na opinio desta teoria, as colectividades no so capazes de arrependimento, por no poderem ser reeducadas ou intimidadas, impossibilitando que as finalidades das penas se realizem. Contudo, na nossa opinio, as sanes aplicadas s pessoas colectivas traduzem-se numa verdadeira reprovao que afecta a credibilidade, o prestgio e a

    36 DIAS, Jorge de Figueiredo, Para uma Dogmtica do Direito Penal Secundrio, pgina 51; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 439; SILVA, Germano Marques da, Direito Penal Portugus, Parte Geral, Volume III Teoria das Penas e Medidas de Segurana, 2. Edio Revista e Actualizada, Lisboa, Verbo, 2008, pgina 87; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 115.

    37 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 118.

    38 CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 6., N. 70, Outubro, 1939, pgina 146; DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questes Fundamentais/A Doutrina Geral do Crime, 2. Edio, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pgina 78 e ss; SILVA, Germano Marques da, Direito Penal Portugus, Parte Geral, Volume III, pgina 47 e ss.

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    confiana na pessoa colectiva. De facto, a censura e a ameaa da aplicao de penas pecunirias e outras s sociedades parecem realizar os fins de preveno das sanes criminais. Nas palavras de ANTNIO CRESPO SIMES DE CARVALHO 39 , com a aplicao de uma pena possvel intimidar uma pessoa colectiva que cometeu um crime acidentalmente. o que sucede se lhe for aplicada uma pena pecuniria, por exemplo. Tambm perfeitamente admissvel a correco de uma colectividade que delinquiu e que parece ser corrigvel. Por isso, consideramos que as penas aplicadas s pessoas colectivas tambm alcanam a finalidade de preveno especial e de proteco de bens jurdicos.40

    No podemos deixar de ter ainda em considerao os efeitos simblicos das sanes penais aplicadas s pessoas colectivas. A condenao de uma sociedade pela prtica de ilcitos penais prejudica a confiana e credibilidade do mercado na sua actividade, princpios muito importantes no mundo dos negcios. Desta forma, parece-nos que a ameaa da aplicao de uma sano penal cumpre, desde logo, a sua funo de preveno da criminalidade e da reincidncia. Pelo contrrio, no seria alcanado o fim de preveno da criminalidade se apenas se aplicassem as penas s pessoas singulares. A pessoa singular titular do rgo da pessoa colectiva pode ser substituda por deciso da empresa e esta continuar a praticar crimes. Mas o que verdadeiramente interessa que a prpria sociedade no cometa crimes e que no os repita.41

    Por fim, importa reforar uma ideia relativamente aos fins das penas aplicadas pessoa humana que pratica os crimes em nome da pessoa colectiva. A verdade que os agentes dos crimes econmicos so, muitas vezes, pessoas socializadas, com formao acadmica e qualificaes profissionais, que a moderna criminologia denominou de delinquente de colarinho branco. Este tipo de agente de crimes no o principal alvo dos fins de ressocializao das penas, na medida em que estes agentes j esto socialmente integrados e adaptados. Se este facto no obsta a que se apliquem penas s pessoas singulares que compem os rgos

    39 CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia

    Portuguesa, Ano 6., N. 71, Novembro, 1939, pgina 173. 40 GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 10 e 11; ROCHA, Manuel

    Antnio Lopes, ob. cit., pgina 439; SHECAIRA, Srgio Salomo, Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica, 2 Edio, So Paulo, Editora Mtodo, 2003, pgina 104; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades..., pgina 157.

    41 ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 439; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 157.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 22 das sociedades, o mesmo no pode acontecer relativamente ao cumprimento dos fins das penas em relao s pessoas colectivas.42

    2.6. A incapacidade de aco das pessoas colectivas Para afastar a responsabilidade penal das pessoas colectivas, parte da doutrina invocava, ainda, a sua incapacidade de aco, pressuposto essencial da punio penal. EDUARDO CORREIA43, defensor da teoria da incapacidade de aco das pessoas colectivas, adoptou um conceito neoclssico de aco, definindo-a como a negao de valores pelo homem. A partir desta noo de aco, logo percebemos que s o comportamento humano pode configurar uma aco criminal. Neste sentido, EDUARDO CORREIA entendia que as pessoas colectivas no possuem conscincia nem vontade prprias para infringir a lei e negar os valores do direito, no sendo possvel estas entidades praticarem aces penalmente relevantes e possurem capacidade de aco no campo do direito penal. Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS44, a respeito dos crimes e das contra-ordenaes fiscais, nenhum pragmatismo de ordem poltico-criminal pode encobrir a verdade singela de que as pessoas colectivas no agem, no praticam condutas voluntrias. Podem destacar-se dois conceitos de pessoa relevantes para o Direito a cada um dos quais corresponde um sentido diferente de aco: o de uma pessoa como sujeito de Direito, titular de direitos e deveres (capacidade jurdica), a que corresponde uma ideia de aco como acto de imputao normativa de efeitos jurdicos neste sentido so capazes de aco tanto as pessoas singulares como as pessoas colectivas; o de pessoa como sujeito moral, dotado de autonomia tica, a que corresponde uma noo de aco, como actuao dominada pela vontade (aco natural) nesta acepo capazes de aco apenas podem ser as pessoas singulares. S este conceito de aco interessa para efeitos de responsabilidade criminal. 45

    42 ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 439. 43 Direito Criminal, pgina 234. 44 Crimes e Contra-Ordenaes Fiscais, in Direito Penal Econmico e

    Europeu: Textos Doutrinrios, Volume II Problemas Especiais, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pgina 248.

    45 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 67; COSTA, Jos Faria, Aspectos Fundamentais da Problemtica da Responsabilidade Objectiva no Direito Penal Portugus, Separata do Nmero Especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jos Joaquim Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1981, pgina 45; FIALHO, Belmira Vieira, Da Responsabilidade Criminal das Pessoas Colectivas, Tese da Faculdade de Direito da Universidade de

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    Muitas foram as crticas apresentadas pela doutrina contrria a esta posio de incapacidade de aco das pessoas colectivas.

    Por um lado, invoca-se que o conceito de aco no est definitivamente determinado. De facto, ao longo da histria, o conceito de aco foi alvo de diversas definies. Por exemplo, a Escola Clssica optou por uma concepo naturalista, definindo a aco como um movimento corpreo. J os neo-clssicos definiram a aco como a negao dos valores. Por ltimo, surgiu uma concepo finalista que considerava que a aco o agir com vista obteno de uma finalidade. Assim, perante a dificuldade em definir a aco criminal, a doutrina optou, ou por desvalorizar o conceito de aco, passando logo a analisar a sua tipicidade, ou por explicar o seu significado segundo outras perspectivas. Por exemplo, SMITH trouxe-nos a ideia de aco social, onde o que releva se socialmente um certo comportamento pode ser qualificado como uma aco que nega valores.46

    Por outro lado, alguns autores, como HIRSCH, entendiam que, se as pessoas colectivas tm capacidade de aco noutros ramos do Direito, tambm possuem essa capacidade no mbito do direito penal. Porm, no podemos concordar com esta posio porque, efectivamente, o direito penal composto por normas que tm um contedo tico mais intenso, o que exige um especial juzo de censura.47

    Contudo, um forte argumento que afasta a teoria da incapacidade de aco das pessoas colectivas encontra-se na impossibilidade de negar que as empresas lesam bens jurdico-penais. Desta forma, se aceitamos que as pessoas colectivas podem cometer crimes, temos, forosamente, de admitir que estas so capazes de aces criminais.48

    Lisboa, 1995, pgina 22; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 10 e 11; SOUSA, Joo Castro e, ob. cit., pgina 111 e ss.

    46 CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, Para uma Dogmtica do Direito Penal Secundrio, pgina 49; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 28 e 29; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 163.

    47 HIRSCH, Hans Joachim, La Cuestion de la Responsabilidad Penal de las Associaciones de Personas, in Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Ministerio de Justicia, Madrid, Tomo XLVI, Fascculo III, Setembro-Dezembro, 1993, pgina 1105 e ss; QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, ob. cit., pgina 14 e 15.

    48 QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, ob. cit., pgina 15; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 163.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 24 Aps a exposio destes contra-argumentos, temos de

    aceitar a capacidade de aco das pessoas colectivas, pois, se aceitamos que a lei atribui personalidade jurdica e vontade prpria s entidades colectivas, temos tambm de reconhecer que estas podem praticar actos criminais. O que est aqui em causa a capacidade das colectividades para praticar actos volitivos e, na nossa opinio, as pessoas colectivas possuem essa capacidade de querer e agir.49

    Concluindo, parece-nos que a lei adopta o caminho da analogia com as pessoas singulares para atribuir capacidade de aco s pessoas colectivas, considerando o acto praticado pelos rgos no exerccio das suas funes como um acto praticado pela prpria entidade colectiva. Deste modo, a capacidade de aco das colectividades manifesta-se pela capacidade de aco das pessoas fsicas que actuam como rgos ou representantes da sociedade, na medida em que os titulares dos rgos e as prprias entidades colectivas esto ligados por um vnculo de identificao, sendo que quando o rgo age a prpria pessoa colectiva que age. 50

    2.7. A incapacidade de culpa das pessoas colectivas O ltimo e o mais importante argumento apresentado pela doutrina contra a responsabilidade penal das pessoas colectivas visa garantir o respeito pelo princpio de que no h responsabilidade penal sem culpa e assenta na convico da incapacidade de culpa das pessoas colectivas. De facto, a lei penal s admite a responsabilidade criminal por actos prprios culposos, isto , por actos que manifestem uma vontade culpvel. Para aceitarmos uma responsabilidade penal prpria das pessoas colectivas no podemos deixar de exigir que se cumpra o requisito da culpa e de provar a existncia de culpa das pessoas colectivas na prtica do crime.51

    Perante esta exigncia do sistema jurdico-penal do respeito pelo princpio da culpa, muitos autores entendiam que no se devia aceitar a responsabilidade penal das pessoas colectivas por considerarem que estas no so capazes de culpa. Defendiam estes

    49 CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 60; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 16 e 17; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 159 e 160.

    50 CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 60 e 61; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 17; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 162 e ss.

    51 CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 62; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades., pgina 164 e 165.

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    autores que a culpa, entendida como a censura tico-jurdica pela violao do Direito, pressupe a liberdade da vontade do homem, liberdade e vontade estas prprias do ser humano inteligente. Os defensores desta teoria invocavam que a falta de conscincia e de vontade prpria e livre das pessoas colectivas implica uma incapacidade de culpa, pois sem inteligncia e vontade, no h culpa e sem o suporte axiolgico-normativo da culpa, no h pena. Alguns autores afirmaram mesmo que, admitir a responsabilidade penal das pessoas colectivas tem de significar aceitar uma responsabilidade objectiva ou optar por consagrar presunes de culpa e violar todo o sistema jurdico-penal.52

    No entanto, no podemos aceitar esta teoria sem a debater. HIRSCH, por exemplo, considerava que as aces das

    pessoas colectivas se manifestam por intermdio das pessoas humanas que a compem, o que significa que na aco das pessoas colectivas est sempre presente o pressuposto da liberdade da vontade exigido pelo conceito de culpa e prprio do ser humano. Desta forma, j no existiriam argumentos para negar a capacidade de culpa das sociedades, pois seria possvel criar um paralelismo entre a culpa das pessoas humanas que compem a colectividade e a culpa das prprias pessoas colectivas.53

    Por outro lado, no podemos deixar que se confundam os conceitos de culpa e de conscincia. verdade que seria impossvel aceitar uma conscincia colectiva, pois a conscincia est intimamente ligada ao ser humano. Contudo, a culpa no algo que esteja ligado natureza das pessoas singulares, sendo apenas um instituto de que o direito penal se socorreu para justificar a sua legitimidade para punir comportamentos ilcitos.54

    Por fim, a prpria concepo de culpa evoluiu e, sobre ela, foram formuladas vrias teorias, afastando-se, assim, a ideia de

    52 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina

    69 e 70; CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 62; FIALHO, Belmira Vieira, ob. cit., pgina 14; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 10; GONTIJO, Sophia Costa, ob. cit., pgina 10 e 11; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 440 e 441.

    53 HIRSCH, Hans Joachim, La Criminalisation du Comportement Collectif Allemagne, in DOELDER, Hans de/TIEDEMANN, Klaus, Acadmie Internationale de Droit Compar, La Criminalisation du Comportement Collectif, Haia/Londres/Boston, 1996, pgina 37 e ss; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 165.

    54 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 70; FIALHO, Belmira Vieira, ob. cit., pgina 17; ROCHA, Manuel Antnio Lopes da, ob. cit., pgina 442.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 26 que a pessoa colectiva no tem capacidade de culpa devido sua neutralidade moral.55

    No desenvolveremos, neste momento, a problemtica da culpa penal das pessoas colectivas, pois dedicaremos um captulo autnomo para discutir pormenorizadamente esta questo e apresentar as vrias teorias formuladas a seu respeito. No entanto, podemos j antecipar que, ao lado dos outros ramos do Direito que j aceitaram a existncia de uma culpa colectiva, o direito penal j admite, tambm, a capacidade de culpa das pessoas colectivas.

    3. Argumentos a favor da responsabilidade penal das pessoas

    colectivas A aceitao da responsabilidade penal das pessoas colectivas tem vindo a ser debatida ao longo dos ltimos anos pelas vrias doutrinas, tanto nacionais como estrangeiras. E no mbito desta discusso, os autores que defendem a admisso da responsabilidade penal das pessoas colectivas tendem a invocar argumentos de ordem pragmtica e de clara necessidade de punir criminalmente estas entidades.56

    Nas palavras de ANTNIO CRESPO SIMES DE CARVALHO57, a punibilidade das pessoas colectivas tem ainda por seu lado, supomos, o ser imposta por uma necessidade social. O Direito deve facilitar a constituio de pessoas colectivas, mas deve tambm evitar que estas pratiquem crimes, sendo que o melhor caminho para alcanar esse objectivo o de aplicar penas s empresas. Este autor entende, ainda, que a responsabilidade penal das pessoas colectivas igualmente imposta pelo princpio de justia. Este princpio exige que se responsabilize o agente do crime e aquele que beneficiou com a sua prtica e impe que o direito penal puna as entidades colectivas. Injusto seria se a lei punisse apenas as pessoas fsicas que praticam os actos em nome da pessoa colectiva, pois o verdadeiro delinquente a empresa.58

    55 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 165 e 166.

    56 DESPORTES, Frdric/GUNEHEC, Francis Le, Le Nouveau Droit Pnal, 3. Edio, Paris, Edition Economica, 1996, pgina 443; PRADEL, Jean, Droit Pnal Gneral, 14. Edio, Paris, Editions Cujas, 2002, pgina 472.

    57 CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 6., N. 72, Dezembro, 1939, pgina 191.

    58 CARVALHO, Antnio Crespo Simes de, ob. cit., Justia Portuguesa, Ano 6., N. 71, Novembro, 1939, pgina 174 e N. 72, Dezembro, 1939, pgina 191 e 192.

  • CATLICA DISSERTATIONS 27

    Contudo, h autores que continuam a defender que a responsabilidade individual, na vertente de crimes de comisso por omisso, seria suficiente para resolver toda a problemtica da aceitao da responsabilidade penal das pessoas colectivas. No entanto, o que interessa punir a atitude criminal colectiva da sociedade, assegurando que no h uma mera substituio das pessoas fsicas punidas e que a pessoa colectiva continua com a sua poltica criminosa. Como foi referido por ADNR VITU num relatrio apresentado no 7. Congresso Internacional de Direito Penal, em 1957, os entes colectivos devem ser penalmente perseguidos, porque a sua responsabilidade permite repartir melhor as sanes repressivas e atingir no apenas os indivduos que actuam fsica e intencionalmente mas tambm os guarda-ventos, atrs dos quais se abrigam e nos quais depositam os meios materiais propcios sua aco. A responsabilidade penal tende a no ser somente uma questo de indivduos, de seres humanos que executam actos materiais volitivos, mas tambm a sano de uma actividade colectiva tanto mais temvel quanto implica o risco de ser mais poderosa e mais annima. Desta forma, a simples punio das pessoas fsicas titulares dos rgos das pessoas colectivas afigura-se como uma punio insuficiente. E isto, porque as penas aplicadas s pessoas fsicas no produzem qualquer efeito na pessoa colectiva, que opta por substituir o titular do rgo punido e continuar a desenvolver a sua actividade, ficando a sociedade novamente apta a praticar crimes.59

    Temos de admitir que a responsabilizao das pessoas humanas que compem os rgos da pessoa colectiva e que agem funcionalmente em nome desta no suficiente para cumprir os objectivos do direito penal nem os fins de preveno das penas criminais. Se punssemos apenas as pessoas fsicas que so titulares dos rgos da pessoa colectiva e praticam os crimes em nome da sociedade, as pessoas colectivas contratariam pessoas fsicas para figurarem como administradores falsos (os chamados

    59 FIALHO, Belmira Vieira, ob. cit., pgina 13; MENDES, Paulo de

    Sousa, Vale a Pena o Direito Penal do Ambiente?, 1. Impresso, Lisboa, AAFDL, 2000, pgina 392; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 436; SCHNEMANN, Bernd, Cuestiones Bsicas de Dogmtica Jurdico-penal y de Poltica Criminal acerca de la Criminalidad de Empresa, in Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Ministerio de Justicia, Madrid, Tomo XLI, Fascculo II, Maio-Agosto, 1988, pgina 551; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 118 e 119.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 28 homens de palha ou testas de ferro), garantindo que os verdadeiros administradores e agentes dos crimes nunca seriam punidos.60

    Tambm em termos de cumprimento dos objectivos de preveno e intimidao, a responsabilidade individual no suficiente. De facto, o pblico no conhece, muitas vezes, os administradores das empresas e a condenao penal s alcana o seu efeito de preveno se for condenada a prpria pessoa colectiva, isto , o verdadeiro culpado. Deixar impune a entidade colectiva traduzir-se-ia na violao do princpio de que as penas devem anular os benefcios que resultem da prtica do crime e punir quem os tenha obtido.61

    Por outro lado, a responsabilidade penal dos entes colectivos tambm se justifica pelo crescimento da actividade econmica das empresas, pela alterao da caracterizao das sociedades e pelo aumento do nmero de pessoas colectivas.62

    Vivemos, actualmente, numa sociedade globalizada, com modelos empresariais complexos que lideram a economia mundial e cuja actividade exige uma regulamentao pelo direito penal. Como nos demonstra a criminologia actual, as sociedades so entidades capazes de cometer e incentivar a prtica de graves ilcitos criminais e representam um risco para os bens jurdicos do mundo moderno e desenvolvido. Neste sentido, a criminalidade econmica, principalmente cometida no seio das empresas, exige que o direito penal responsabilize criminalmente estes agentes, de forma a lutar eficazmente pela proteco dos bens jurdicos colectivos como a sade, o ambiente, a propriedade e a economia.63

    60 CATANZARO, Raimondo, Il Delitto come Impresa: Storia Sociale della Mfia, Pdua, Liviana Editrice, 1988; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 115.

    61 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito penal de Entes Colectivos, pgina 65; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 118 e 119.

    62 ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 438; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 116.

    63 BRAVO, Jorge dos Reis, Critrios de Imputao Jurdico-Penal, pgina 209 e 210; CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 8; COSTA, Jos de Faria, A Responsabilidade Jurdico-penal da Empresa e dos seus rgos (ou uma Reflexo sobre a Alteridade nas Pessoas Colectivas, Luz do Direito Penal), Revista Portuguesa de Cincia Criminal, Ano 2, Fascculo 4., Outubro-Dezembro, 1992, pgina 543 e 544; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 6 e 7; QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, ob. cit., pgina 22 e ss; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 438; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 117; WELLS, Celia, Corporations and Criminal Responsibility, pgina 8 e ss.

  • CATLICA DISSERTATIONS 29

    Em virtude do fracasso das tradicionais medidas estaduais de controlo da criminalidade econmica, exige-se um aperfeioamento das formas de imputao da responsabilidade criminal, impondo-se a punio das pessoas colectivas pelo direito penal. Caso contrrio, estaramos a favorecer as pessoas colectivas com um tratamento privilegiado em relao s pessoas singulares, beneficiando-as com uma impunidade impossvel de justificar luz dos princpios de justia.64

    Por fim, invocam alguns autores que, admitida a necessidade de punir criminalmente as pessoas colectivas, no podemos ficar presos aos princpios e conceitos tericos da dogmtica clssica, nomeadamente ao princpio da interveno mnima, ao princpio da legalidade e ao princpio da culpa e, assim, recusar a responsabilidade penal das pessoas colectivas, Devemos, antes, adaptar o sistema jurdico-penal nova realidade e reformular os princpios tradicionais do direito penal para que estes se adaptem nova criminalidade e admitam a responsabilidade penal das pessoas colectivas.65

    Contudo, parte da doutrina entende que bastaria punir as pessoas colectivas atravs do direito contra-ordenacional, pondo termo a esta discusso. Parece-nos, no entanto, que tendo em conta a dimenso dos prejuzos alcanados com a criminalidade econmica praticada pelas sociedades, imperativo recorrer forte censura tica, tpica e exclusiva do direito penal. De acordo com a concluso da 12. Conferncia de Directores de Institutos de Investigao Criminolgica publicada pelo Conselho da Europa, se a criminalidade de colarinho branco se desenvolve e adquire propores que, em valor, ultrapassam, segundo os pases, dez a cem vezes o que nos obstinamos a chamar de direito comum, no somente a nossa terminologia que fracassa a nossa sociedade, o nosso sistema econmico que esto ameaados. De facto, recorrer ao direito penal para punir as pessoas colectivas a melhor e nica soluo para a actual problemtica do aumento da criminalidade econmica e da ofensa dos bens jurdicos colectivos, onde as organizaes empresariais assumem um papel primordial.66

    64 BRAVO, Jorge dos Reis, Critrios de Imputao Jurdico-Penal,

    pgina 209 e 210; QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, ob. cit., pgina 25. 65 BRAVO, Jorge dos Reis, Critrios de Imputao Jurdico-Penal,

    pgina 211; QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, ob. cit., pgina 27 e 28; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 120 e ss.

    66 BRAVO, Jorge dos Reis, Critrios de Imputao Jurdico-Penal, pgina 211; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 9.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 30 No basta fundamentar a responsabilizao penal das

    pessoas colectivas nestes argumentos de poltica criminal para, pura e simplesmente, a aceitarmos. No nos podemos guiar por meras razes utilitaristas e responsabilizar penalmente as pessoas colectivas, sem questionar a sua eficcia e legitimidade. Temos, ainda, de indagar sobre a fundamentao da sua punio, sobre a articulao desta punio com os princpios do direito penal e sobre os pressupostos desta responsabilidade colectiva. Mas, como referiu Figueiredo Dias a respeito do direito penal secundrio, se, em sede poltico-criminal, se conclui pela alta convenincia ou mesmo imperiosa necessidade de responsabilizao das pessoas colectivas em direito penal secundrio, no vejo ento razo dogmtica de princpio a impedir que elas se considerem agentes possveis dos tipos-de-ilcito respectivos. O importante aceitar as razes pragmticas que exigem que se consagre uma responsabilidade criminal das pessoas colectivas e adaptar a dogmtica penal tradicional a estas exigncias.67

    Desenvolveremos, aprofundadamente, a questo da adaptao do tradicional princpio da culpa natureza das pessoas colectivas num captulo autnomo, por se tratar de uma questo fulcral no mbito da responsabilidade penal das empresas e por este trabalho incidir, especialmente, sobre a problemtica da culpa penal destas entidades. Apresentaremos a as diversas teorias que foram formuladas pela doutrina a respeito do princpio da culpa, de forma a justificar e fundamentar a responsabilidade penal das pessoas colectivas.

    4. Direito Comparado

    Antes de fazermos uma anlise da soluo legislativa portuguesa para a problemtica da responsabilidade penal das pessoas colectivas, importa fazer uma contextualizao internacional, demonstrando a opo da Unio Europeia, as recomendaes do Conselho da Europa e fazendo uma anlise sinttica das solues encontradas pelos principais pases da Europa e da Inglaterra e dos Estados Unidos da Amrica, para esta matria.

    67 COSTA, Jos de Faria, A Responsabilidade Jurdico-penal da Empresa e dos seus rgos, pgina 547 e 548; DIAS, Jorge de Figueiredo, Para uma Dogmtica do Direito Penal Secundrio, pgina 49; GONALVES, Joaquim Jos Brigas, ob. cit., pgina 7; QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa, ob. cit., pgina 27.

  • CATLICA DISSERTATIONS 31

    4.1. Unio Europeia

    A Unio Europeia foi sempre um marco de referncia e influncia para os sistemas jurdicos dos Estados-membros. E tal influncia tambm se revelou de grande importncia no mbito do direito econmico e na configurao de um sistema de responsabilizao penal das pessoas colectivas.

    Desde cedo, e logo com os primeiros Tratados, a Comunidade Europeia admitiu a necessidade de impor sanes s empresas, em especial no campo do direito da concorrncia68. Ao entender que as multas por violao das regras da concorrncia deviam ser aplicadas fundamentalmente s empresas, a Comunidade Europeia tratou logo de criar critrios subjectivos de imputao especiais para as entidades colectivas.69

    Quanto ao pressuposto da culpa, a Comunidade Europeia entendeu que os critrios de dolo e negligncia deviam ser critrios prprios da pessoa colectiva e a culpabilidade foi vista como um defeito de organizao. Para afirmar o dolo, no necessrio que a empresa tenha conscincia de infringir a proibio contida das normas pertinentes, suficiente que no pudesse ignorar que o objecto ou o efeito da conduta que se lhe imputa era restringir a concorrncia do mercado 70 . Desta forma, estabeleceu-se uma responsabilidade prpria das empresas, autnoma da responsabilidade da pessoa singular.71

    Pelo exposto, podemos afirmar que, em matria de direito da concorrncia, a Comunidade Europeia pautou-se por critrios pragmticos e admitiu a responsabilidade das pessoas colectivas, aplicando-lhes directamente multas, embora estas multas no possussem um carcter propriamente penal.72

    68 Artigo 83., n. 2 do Tratado de Roma que institui a Comunidade Europeia.

    69 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 65 e ss.

    70 Acrdo T-29/92.SPO contra Comisso. Recompilao 1995, t., II, pgina 294.

    71 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 68; SILVA, Paulo Gomes da, Algumas Notas sobre a Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas: A Culpa Colectiva, Tese da Universidade Catlica Portuguesa, 2008, pgina 37 e 38.

    72 FRIDEN, Georges, Les Garanties Procdurales en Droit Communautaire de la Concurrence, in TULKENS, Franois/BOSLY, Henri D. (direco), La Justice Pnale et lEurope, Bruxelas, Bruylant, 1996, pgina 481 e ss; HENNAU-HUBLET, Christiane, Les Sanctions en Droit Communautaire: Rflexions dun Pnaliste, in TULKENS, Franois/BOSLY, Henri D. (direco), ob. cit., pgina 487 e ss; SILVA, Germano Marques da,

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 32 Mais tarde, e com o aumento da criminalidade econmica,

    foi celebrada, em 1995, a Conveno Relativa Proteco dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias. No seguimento desta Conveno foi adoptado pelo Conselho um segundo Protocolo que previa, no seu artigo 3., a responsabilidade penal das pessoas colectivas pelos crimes de fraude, corrupo e branqueamento de capitais, aconselhando os Estados-membros a adoptar as medidas necessrias para garantir a punio das entidades colectivas.73

    No que diz respeito s Aces Comuns e s Decises-Quadro da Unio Europeia, emitidas no mbito do direito criminal, estas no impem a responsabilidade criminal das pessoas colectivas aos Estados-membros, prevendo apenas que estes possam optar, em alternativa, por responsabilizar estas entidades atravs do direito criminal ou do direito administrativo. Neste sentido, parece que a Unio Europeia admite a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, deixando, todavia, aos Estados-membros a opo de decidir sobre esta problemtica de acordo com os seus sistemas jurdicos constitucionais e penais.74

    Apesar de se prever, em diversas Convenes, Tratados e normas de Direito Comunitrio, a possibilidade de se aplicarem sanes directamente s pessoas colectivas, a verdade que se tende a qualificar as sanes comunitrias como sanes de natureza administrativo-punitiva. Esta falta de competncia em matria penal, por parte da Unio Europeia, dificulta a harmonizao dos sistemas jurdico-penais dos Estados-membros, na medida em que no existe ainda uma regulamentao homognea. No entanto, continua a tentar alcanar-se esta harmonizao europeia atravs do Corpus Juris, projecto que tem em vista desenvolver um sistema normativo supranacional de proteco de bens jurdicos individuais e colectivos e lutar contra a criminalidade empresarial e contra as fraudes comunitrias. Neste Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 66 e ss; SILVA, Paulo Gomes da, ob. cit., pgina 37; STUYCK, Jules/DENYZ, Christine, Les Sanctions Communautaires, in TULKENS, Franois/BOSLY, Henri D. (direco), ob. cit., pgina 423; ZIGA RODRIGUEZ, Laura del Crmen, Bases para un Modelo de Imputacin de Responsabilidad Penal a las Personas Jurdicas, Navarra, Aranzadi Editorial, 2000, pgina 143 e 144.

    73 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentrio do Cdigo Penal Luz da Constituio da Repblica e da Conveno Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Catlica Editora, 2008, pgina 76 e 77; Jornal Oficial C 316 de 27.11.95; Jornal Oficial C 11 de 15.05.97; Jornal Oficial C 221 de 19.07.97; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 70 e 71.

    74 ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, ob. cit., pgina 77.

  • CATLICA DISSERTATIONS 33

    projecto, o actual artigo 13. (antigo artigo 14.) consagra expressamente a responsabilidade penal das pessoas colectivas. Espera-se, assim, que o Corpus Juris contribua para se alcanar, no futuro, um Direito Penal Europeu ou Comunitrio que imponha a responsabilidade penal das entidades colectivas a todos os Estados-membros, evitando que as empresas optem por se concentrar nos pases europeus que no consagram a punio das pessoas colectivas nas suas leis penais internas e que saiam impunes dos crimes que cometerem.75

    4.2. Conselho da Europa

    Como resultado de vrias Resolues, Recomendaes e Convenes do Conselho da Europa, constata-se uma crescente orientao dos pases do continente europeu para aceitar a responsabilidade penal das pessoas colectivas, principalmente no mbito da criminalidade econmica.76

    Em 1977, o Comit de Ministros do Conselho da Europa aprovou a Resoluo (77) 28 sobre a importncia do direito penal no combate aos crimes ambientais. Esta Resoluo continha uma disposio que aconselhava os Estados-membros a reexaminar os princpios da responsabilidade penal e a ponderar a aceitao da punio criminal das pessoas colectivas em algumas matrias. J em 1981, o Comit de Ministros do Conselho da Europa voltou a aconselhar, atravs da Recomendao n. R (81) 12, o estudo da possibilidade de consagrar a responsabilidade penal das pessoas colectivas, agora no mbito da criminalidade econmica. Em 1982, com a Recomendao n. R (82) 15, a respeito da contribuio do direito penal para a proteco dos consumidores, o Comit de

    75 ALMEIDA, Lus Duarte de, Direito Penal e Direito Comunitrio O Ordenamento Comunitrio e os Sistemas Juscriminais dos Estados-Membros, Coimbra, Almedina, 2001, pgina 37 e ss; BANDEIRA, Gonalo N. C. Sopas de Melo, Responsabilidade Penal Econmica e Fiscal dos Entes Colectivos Volta das Sociedades Comerciais e Sociedades Civis sob a Forma Comercial, Coimbra, Almedina, 2004, pgina 305 e ss. e 321 e ss; BOULLANGER, Herv, La Criminalit conomique en Europe, Paris, PUF, 2002, pgina 66 e ss. e 114 e ss; BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 141 e 142; CAEIRO, Pedro, Perspectivas de Formao de um Direito Penal da Unio Europeia, Revista Portuguesa de Cincia Criminal, Ano 6, Fascculo 2., Abril-Junho, 1996, pgina 189; DANNECKER, Gerhard, Evolucin del Derecho Peanl y Sancionador Comunitrio Europeu, Trad. Carmen Bascn Granados, Madrid, Marcial Pons, 2001; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 73 e ss.

    76 SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 11.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 34 Ministros convida, novamente, os Estados-membros a aproveitarem a oportunidade para introduzir, nas respectivas leis nacionais, a punio criminal das pessoas colectivas. Por fim, uma Recomendao muito influente do Conselho da Europa foi a Recomendao n. R (88) 18, sobre a responsabilidade de entidades com personalidade jurdica por infraces cometidas na sua actividade, onde se estabeleceu a importncia de punir penalmente as pessoas colectivas, referindo a necessidade de se ultrapassar as dificuldades de identificao das pessoas fsicas responsveis pelos crimes, garantindo a punio dos verdadeiros agentes e a preveno do aumento da criminalidade.77

    Em todas estas Recomendaes, o Conselho da Europa aconselhava os Estados-membros a estenderem a responsabilidade penal s pessoas colectivas, mas sempre ponderando a natureza da infraco, a necessidade de preveno de novos crimes e a adaptao desta nova vertente de punio ao direito penal interno de cada Estado-membro. Mais tarde, a Conveno do Conselho da Europa sobre a Corrupo (1999) e a Conveno do Conselho da Europa sobre o Cibercrime (2001), consagraram, expressa e directamente, a responsabilidade penal das pessoas colectivas, estabelecendo os pressupostos e critrios dessa punio.78

    Concluindo, podemos afirmar que a tomada de posio do Conselho da Europa sobre a matria da responsabilidade penal das pessoas colectivas contribuiu, de forma decisiva, para a aceitao do princpio societas delinquere potest por grande parte dos pases europeus. Actualmente, e porque ainda no podemos afirmar que haja um consenso de doutrinas e de sistemas jurdicos no que respeita a esta matria, o Conselho da Europa criou um Comit de Peritos, que conta com a colaborao de KLAUS TIEDEMANN, com competncia para estudar e analisar as diferentes formas possveis de introduzir o princpio da responsabilidade penal das pessoas colectivas no direito positivo dos sistemas jurdicos dos vrios Estados-membros.79

    77 BANDEIRA, Gonalo N. C. Sopas de Melo, ob. cit., pgina 309 e ss; BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 132; CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 9; ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 434; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 80 e ss.

    78 BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 130 e ss; CAVALCANTI, Cristvo Tadeu de Sousa, ob. cit., pgina 9; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 85 e 86.

    79 ROCHA, Manuel Antnio Lopes, ob. cit., pgina 435; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 83.

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    4.3. Holanda

    A Holanda foi o primeiro pas europeu a introduzir na legislao a responsabilidade das pessoas colectivas de uma forma ampla. De facto, a Holanda admite a responsabilidade das pessoas colectivas em matria de direito aduaneiro e fiscal desde o sculo XIX.80

    No mbito do direito penal de justia, o Cdigo Penal holands de 1886 consagrava, ainda, o princpio societas delinquere non potest, mas logo na segunda metade do sculo XX optou-se pela consagrao da responsabilidade penal das pessoas colectivas. Nos anos 50, o artigo 15. da Lei dos Delitos Econmicos foi a primeira norma a consagrar a possibilidade das pessoas colectivas serem penalmente punidas cumulativamente com as pessoas singulares que cometessem uma infraco no mbito do direito penal econmico. Mais tarde, foi o artigo 50.A do Cdigo Penal holands que reconheceu a qualidade de autor s pessoas colectivas, apesar de continuar a considerar que as penas eram aplicadas s pessoas fsicas titulares dos rgos que tivessem cometido a infraco. Foi em 1976, com a introduo do artigo 51. no Cdigo Penal da Holanda, que se estendeu o princpio da responsabilidade penal das pessoas colectivas a toda a legislao penal e se passou a admitir a aplicao de sanes criminais s pessoas colectivas ao prever que as infraces podem ser cometidas por pessoas fsicas ou colectivas. Este artigo parece estabelecer que a responsabilidade das entidades colectivas cumulativa com a responsabilidade das pessoas fsicas que figurem como dirigentes ou como responsveis pela deciso de cometer a infraco. Deste modo, a punio criminal das pessoas colectivas no direito holands indirecta, na medida em que depende da responsabilidade individual das pessoas fsicas.81

    80 BANDEIRA, Gonalo N. C. Sopas de Melo, ob. cit., pgina 274; DOELDER, Hans de, Criminal Liability of Corporations Netherlands, Acadmie Internationale de Droit Compar, in DOELDER, Hans de/TIEDEMANN, Klaus, ob. cit., pgina 290; BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 151; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 94.

    81 BANDEIRA, Gonalo N. C. Sopas de Melo, ob. cit., pgina 274 e 275; BRAVO, Jorge dos Reis, Direito Penal de Entes Colectivos..., pgina 151 e 152; DOELDER, Hans de, ob. cit., pgina 304 e ss; SILVA, Germano Marques da, Responsabilidade Penal das Sociedades, pgina 94 e 95; VERVAELE, John A. E., La Responsabilit Pnale de et au sein de la Personne Morale aux Pays-Bas, Mariage entre Pragmatisme et Dogmatisme Juridique, in DELMAS-MARTY, Mireille (direco), La Responsabilit Pnale dans lEntreprise: Vers un Espace Judiciaire Europen Unifi?, Paris, Dalloz, 1997, pgina 325 e ss.

  • A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS 36 4.4. Frana

    A Revoluo Francesa determinou a construo de um direito penal individualista e afastou a responsabilidade penal das pessoas colectivas. S mais tarde, com a reforma do Cdigo Penal de 1974 e o aumento crescente do poder das empresas, esta problemtica voltou a ser debatida pela Comisso de Reforma do Cdigo Penal francs. Desta discusso resultou a aceitao da punio das pessoas colectivas e, actualmente, o Cdigo Penal francs, em vigor desde 1994, consagra expressamente, no seu artigo 121., n. 2, a responsabilidade penal destas entidades. Na aceitao desta vertente da punio criminal, a doutrina francesa foi orientada por princpios pragmticos e o brocardo societas delinquere potest foi aceite sem grandes dvidas de fundamento jurdico, invocando-se a necessidade de acompanhar o direito estrangeiro, a moderao da responsabilidade das pessoas singulares titulares dos rgos das pessoas colectivas, a gravidade dos crimes praticados pelas empresas e o facto das suas decises serem tomadas pelos rgos sociais.82

    O artigo 121., n. 2 do Cdigo Penal francs estabelece os requisitos da responsabilidade penal das pessoas colectivas, estabelecendo que as pessoas morais, com excluso do Estado, so responsveis penalmente, segundo as distines dos artigos 121-4 a 121-7 e nos casos previstos pela lei ou regulamento, pelas infraces cometidas, por sua conta, pelos seus rgos ou representantes. Quanto ao conceito de infraco cometida por sua conta, a doutrina tem entendido que esta expresso deve ser interpretada como infraco cometida por ocasio de actividades destinadas a assegurar a organizao e o funcionamento da pessoa colectiva. J no que diz respeito ao pressuposto da culpabilidade, a doutrina e jurisprudncia francesas tm defendido que a responsabilidade penal das pessoas colectivas assenta na culpa dos titulares dos rgos ou representantes da pessoa colectiva. Perante a letra da lei e esta posio da doutrina quanto ao requisito da culpa, podemos

    82 BANDEIRA, Gonalo N. C. Sopas de Melo, ob. cit., pgina 242; DESPORTES, Frdric/GUNEHEC, Francis Le, ob. cit., pgina 443 e ss; PRADEL, Jean, A Responsabilidade Penal das Pessoas