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O ANDARILHO DOS SERTÕES: UM CARTOGRAMA INTELECTUAL DE FRANCISCO DE ASSIS IGLÉSIAS (1889-1969) Filipe Oliveira da Silva * Nas últimas décadas, diversos campos disciplinares têm reavaliado o binômio natureza e cultura. Dualismo resultante do pensamento iluminista que separou o homem do espaço natural, esta dicotomia tem-se tornado cada vez mais dilapidada no interior da discussão antropológica e histórica. Assim, entende-se que a “história humana é produto de diversos modos de relação humano-ambientais”, tal como a natureza resguarda um quantum de representações socioculturais. Parece-nos menos possível, atualmente, manter dissociações em ambos conceitos, pois são intercambiáveis. (DESCOLA; PALSSÓN, 2001, p.25) Para cada um deles, no entanto, demandaram-se políticas específicas, quer seja de proteção à natureza, quer seja de preservação/conservação do patrimônio cultural. Estas duas modalidades de políticas na trajetória de pensamento social brasileiro, longe de se manterem afastadas, emergiram em conjunturas equivalentes e, embora, à primeira vista, dissociadas, foram profundamente imbricadas. Políticas florestais e culturais tiveram nos anos posteriores a 1930 sua ascensão e intensificação por meio da criação de instituições e da agência de intelectuais que participaram deste processo. Ambas políticas são entrecruzadas, uma vez que a natureza se constrói a partir das representações das culturas dos grupos sociais. Para exemplificar esse emaranhado entre políticas de natureza e culturais, podemos ilustrar com o decreto n.25 de 1937 que cria o SPHAN. Nele, o segundo parágrafo do primeiro artigo é esclarecedor da indissociabilidade entre políticas de natureza e cultura: considera “monumentos naturais” e “sítios e paisagens” de “feição notável” passíveis de tombamento pelo Serviço (BRASIL, 1937). Tal visão é reiterada no primeiro número do periódico institucional, por meio do artigo “A natureza e os monumentos culturais”. Este material escrito pelo antropólogo do Museu Nacional Raimundo Lopes havia sido publicado na Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza em 1934. Pautando-se na geografia tradicional francesa, Lopes sublinhava: “protege-se a natureza * Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e bolsista financiado pelo CNPq sob orientação da Prof. Dra. Juniele Rabêlo de Almeida. Contato: [email protected]

Filipe Oliveira da Silva

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O ANDARILHO DOS SERTÕES:

UM CARTOGRAMA INTELECTUAL DE FRANCISCO DE ASSIS IGLÉSIAS

(1889-1969)

Filipe Oliveira da Silva*

Nas últimas décadas, diversos campos disciplinares têm reavaliado o binômio natureza e

cultura. Dualismo resultante do pensamento iluminista que separou o homem do espaço natural,

esta dicotomia tem-se tornado cada vez mais dilapidada no interior da discussão antropológica e

histórica. Assim, entende-se que a “história humana é produto de diversos modos de relação

humano-ambientais”, tal como a natureza resguarda um quantum de representações socioculturais.

Parece-nos menos possível, atualmente, manter dissociações em ambos conceitos, pois são

intercambiáveis. (DESCOLA; PALSSÓN, 2001, p.25)

Para cada um deles, no entanto, demandaram-se políticas específicas, quer seja de proteção à

natureza, quer seja de preservação/conservação do patrimônio cultural. Estas duas modalidades de

políticas na trajetória de pensamento social brasileiro, longe de se manterem afastadas, emergiram

em conjunturas equivalentes e, embora, à primeira vista, dissociadas, foram profundamente

imbricadas. Políticas florestais e culturais tiveram nos anos posteriores a 1930 sua ascensão e

intensificação por meio da criação de instituições e da agência de intelectuais que participaram

deste processo.

Ambas políticas são entrecruzadas, uma vez que a natureza se constrói a partir das

representações das culturas dos grupos sociais. Para exemplificar esse emaranhado entre políticas

de natureza e culturais, podemos ilustrar com o decreto n.25 de 1937 que cria o SPHAN. Nele, o

segundo parágrafo do primeiro artigo é esclarecedor da indissociabilidade entre políticas de

natureza e cultura: considera “monumentos naturais” e “sítios e paisagens” de “feição notável”

passíveis de tombamento pelo Serviço (BRASIL, 1937).

Tal visão é reiterada no primeiro número do periódico institucional, por meio do artigo “A

natureza e os monumentos culturais”. Este material escrito pelo antropólogo do Museu Nacional

Raimundo Lopes havia sido publicado na Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza

em 1934. Pautando-se na geografia tradicional francesa, Lopes sublinhava: “protege-se a natureza

*Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e bolsista financiado

pelo CNPq sob orientação da Prof. Dra. Juniele Rabêlo de Almeida. Contato: [email protected]

para o bem da cultura; e a reciproca é verdadeira: o amparo aos monumentos da cultura reverte em

proteção à natureza” (LOPES, 1937, p.78).

Os próprios agentes que participavam dos organismos administrativos das políticas

florestais, por outro lado, eram empenhados na constituição de uma cultura nacional. O propósito

deste trabalho consiste em apresentar, de maneira sumária e inicial, a trajetória do engenheiro

agrônomo, folclorista e homem de letras Francisco de Assis Iglésias (1889-1969)1. Trata-se de um

desses homens que participaram simultaneamente do desenvolvimento de políticas culturais e

florestais no Brasil. Ciente dos diversos fios que tecem sua vida, selecionar a dimensão das

representações da natureza tornou-se indispensável para traçar seu cartograma, ou seja, sua

abrangência, deslocamentos e metamorfoses no tempo e no espaço. Articula-se, assim, história

ambiental à escala biográfica. (WORSTER, 2011)

De Piracicaba à cidade de São Paulo: as dinâmicas familiares e estudantis

Como sabemos, as narrativas prescindem de marcos temporais e espaciais que as estruturem.

Pensar o ponto de origem de uma biografia é um exercício que pode parecer algo trivial, isto é,

iniciar pela data de nascimento e a cidade natal do sujeito analisado. No caso de Francisco Iglésias

seria no dia de reis – 6 de janeiro – do ano de 1889 na cidade de Piracicaba. Em suas memórias,

demarca estes dois referenciais para sua identidade, pois é no interior paulista que se traçam

representações de sua infância e juventude. (IGLÉSIAS, 2003)

Recorrer a estes referenciais, entretanto, não pode ser estanque na busca de interpretação da

trajetória do intelectual. Como filho de João e Anna Iglésias, imigrantes espanhóis que vieram ao

Brasil na segunda metade do século XIX, é necessário redimensionar estes marcos biográficos. A

Catalunha dos anos de 1870 poderia aparecer como o cenário dinâmico em que a trama começa a se

gestar. Diferentemente de grande parte do território espanhol que perdurava as relações sociais

1Embora sua trajetória seja fundamental para compreender as políticas públicas de proteção à natureza e o

desenvolvimento científico do campo agronômico brasileiro, Iglésias é reduzido a breves menções ao longo de

trabalhos, verbetes em dicionários biográficos ou em notas de apêndices. São informações esparsas e diminutas de

sua vida que não se propõem a analisá-lo no centro da perspectiva e historicizá-lo. Lembramos aqui que ele é

homônimo de um conhecido historiador mineiro (1923-1999) com enfoque para a história das atividades

econômicas brasileiras, porém não foi constatado qualquer vínculo de parentesco ou sociabilidade. Entre os

trabalhos que o mencionam o agrônomo constam: HILTON (1948, p.115); MELO (1954, p.281); FREITAS (1996,

p.13); GRUPIONI (1998, p.59); LISBOA (2004, p.156); PERECIN (2004, p.354); MARCOVITCH (2005, p.77)

TELES e IOKOI (2005, p.77) SOMBRIO et all (2008, p.316-317); NOVAES (2009, p.83); MENDONÇA (2010,

p.131); ADIALA (2011, p.107); PFROMM NETTO (2013, p.273-274); SAAD (2013, p.77); FREITAS (2014,

p.18); ANTUNES (2015); LUZ (2015, s/p).

agrárias antigas, os catalães presenciavam neste momento a ascensão de um segmento social urbano

que tinha sua economia em torno das indústrias têxtil algodoeira, da produção e exportação de

vinhos, da siderurgia e de indústrias mecânicas. (GUIMARÃES, 1988, p.15)

Decorrente desse processo de transformações nos meios técnicos e das relações de trabalho,

milhares de pessoas que residiam na região adotaram a América com uma perspectiva imaginária de

melhoria das condições de suas vidas. A família de Iglésias é, por exemplo, oriunda desta região

espanhola que vivenciava um processo de industrialização e movimentos operários de grande

magnitude, tais como o anarquismo. Seus aspectos biográficos, portanto, remetem à

contextualização destes processos imigratórios e das políticas de branqueamento do Estado

brasileiro para a constituição de mão-de-obra nas lavouras cafeeiras. (SCHWARCZ, 1993).

Além de integrar uma família de imigrantes subvencionada pelo governo paulista, o jovem

Iglésias aproximou-se dos membros oligárquicos que disputavam o poder republicano. Esses

vínculos foram configurados, principalmente, nas instituições educacionais em que esteve

matriculado. Eram as principais escolas da cidade que crescia em termos demográficos e também

urbanísticos, coadunando educação a uma busca de civilização dos trópicos. Seu próprio pai, João,

acompanhou esta ascensão da cidade de Piracicaba. Como comerciante de madeiras para a

construção civil, ele forneceu suporte material para a instalação de novas residências e instituições,

obtendo, assim, bons rendimentos que possibilitaram a manutenção dos estudos de seu filho.

O primeiro colégio que estudou, o Grupo Ipiranga, por exemplo, foi um dos lugares de

sociabilidade materializados com a serraria de seu pai. Ele era dirigido por Manoel de Barros

Morais, irmão do então presidente da República, Prudente de Morais. Além do Ipiranga, também

adentrou à Escola Complementar, onde conheceu o seu amigo e futuro escritor paulista Sud

Mennucci. Nestas escolas, esteve subordinado a práticas pedagógicas tradicionais, tais como a

palmatória do “perverso” Mestre Justino, que professavam, institucionalmente, duas principais

matrizes religiosas, a católica e metodista.

Após concluir os estudos primários e secundários, dirigiu-se para o ensino superior,

reforçando a sua distinção enquanto elite política numa sociedade majoritariamente analfabeta e

excludente. Uma área, no entanto, aparecia-lhe com tintas fortes através das relações oligárquicas

que tecia e do ambiente em que vivia. A agronomia apresentava-se ao jovem como um campo

científico promissor e em vias de institucionalização. No limiar dos séculos XIX para o XX, os

espaços institucionais destes saberes científicos que priorizavam a agricultura e pecuária

proliferaram no país, desde a criação de periódicos destinados a atender a este público, passando

pela contratação de técnicos estrangeiros até a fundação de escolas de formação de engenheiros

agrônomos. O cenário econômico de dependência de agroexportações do café, além disso, favorecia

a constituição deste campo agronômico. (PERECIN,2004; MENDONÇA, 1997 e 2010).)

A curta distância da Escola de Prática Agrícola Luiz de Queiroz e essa busca pelo

desenvolvimento da agricultura nacional foram, talvez, fatores essenciais para a escolha da

profissão de agrônomo. Ao matricular-se, Iglésias deparou-se com uma bibliografia eminentemente

estrangeira, com livros vindos, principalmente, da Europa e dos Estados Unidos. Uma exceção à

esta regra era a obra “Cultura dos campos” do estancieiro gaúcho Assis Brasil. O livro foi um

manual para a sua geração intelectual. Era uma obra lida aos olhos atentos, memorizado seus

capítulos e aplicado suas técnicas: um cânone da agronomia, uma referência obrigatória a todo

aquele que ingressasse neste campo. (IGLÉSIAS, 2003, p.140.)

Após as leituras e práticas agrícolas, Iglésias diplomou-se em 1909. Uma semana após ser

formado, entrou no Instituto Soroterápico do Butantã, tal como entravam muitos outros no sistema

público, ou seja, através das práticas de alianças e conchavos entre os diferentes grupos

oligárquicos. Essa instituição de saber médico era recente (Ibidem, p.66). Completava, a essa altura,

sua primeira década de existência. Havia sido projetada em 1899 para controlar, através da

fabricação de vacinas e soros, a pandemia de peste bubônica que assolava a cidade de Santos, cujas

bactérias se preparavam para alastrar na capital paulista. (STEPAN, 1976, p.69.)

Essas instituições médicas que institucionalizaram o campo da medicina no Brasil no final

do século XIX e alvorecer do seguinte, como se sabe, para além da erradicação das doenças,

promoviam o médico enquanto profissional capaz de diagnosticar os problemas nacionais e

estabelecer medidas profiláticas para transformação do caráter racial brasileiro. Como funcionário

do Butantã, trocou correspondências com os diversos intelectuais do mundo, tornando-se sócio de

agremiações científicas expressivas, dentre as quais, a Sociedade Entomológica da França.

Rumo ao norte: de São Paulo ao pau-a-pique do Seu Raimundo

Em 1913, entretanto, Iglésias interrompeu suas atividades no Butantã, pois foi convidado

pelo seu antigo professor Emílio Charroupin, chefe da Seção de Botânica da Comissão de Defesa da

Borracha de Juazeiro a integrar a este projeto de recuperação da extração de látex no país. A

borracha, passava nos anos de 1910 por um descenso na produção que assolava os interesses

oligárquicos da Amazônia e Meio-Norte do Brasil. Os preços da mercadoria despencavam no

cenário internacional, além de proliferação de fungos e epidemias acometendo levas de

trabalhadores (DEAN, 1989, p.27). O Estado demandava, portanto, de homens que pudessem

oferecer soluções científicas a estes problemas que afetavam a economia nacional.

Embarcando nesta proposta, Iglésias arrumou suas malas, rumo ao Rio de Janeiro e a

posterior ida aos “sertões” do Norte do país. Este projeto de ir ao interior do Brasil intensificou-se

nos últimos anos do século XIX, quando Euclides da Cunha divulgava na imprensa paulista a

necessidade de cientistas reconhecerem as populações sertanejas que traziam o que havia da

“autêntica” e “legítima” nacionalidade brasileira. (LIMA, 1999). No início do século XX diversas

expedições científicas, para além da viagem de Canudos do jornalista Euclides da Cunha, foram

percebidas na história do país. Várias delas eram organizadas pelo Instituto de Manguinhos e o

Museu Nacional. Dentre as mais significativas para a compreensão da vida de Iglésias, cumpre

destacar a “missão civilizatória” de seu amigo pessoal, o médico Arthur Neiva e, seu compadre, o

sanitarista Belisário Penna.

Esta expedição que percorreu o planalto brasileiro ofereceu o grande alicerce argumentativo

para a viagem de Iglésias. Sua aventura pelo interior é entendida aqui como sintoma de uma

geração que vivenciava os acontecimentos da Grande Guerra na Europa. Reconfigurava, portanto,

este continente no que se referia à modernidade e à civilização. Uma vez contestados estes valores,

era fundamental diagnosticar como o sertanejo vivia por razões de organização de um exército em

caso de futuras conflitos bélicos e, principalmente, para forjar a identidade nacional brasileira, uma

vez que estes intelectuais afirmavam inexistir um sentimento pátrio entre os homens que aqui

habitavam.

Mobilizado pelo mesmo repertório de ideias, Iglésias visitou entre junho de 1913 e julho de

1918 diversas comunidades às margens dos rios Itapicuru e seus afluentes. Nesse tempo de viagem,

coletou espécies de animais e vegetais para estudos científicos posteriores, entrevistou grupos

ribeirinhos e reconheceu as estratégias para sua sobrevivência na natureza considerada hostil e

pródiga, de secas frequentes – tais como a de 1915 no Ceará -, de falta de abastecimento hídrico, de

ausência das condições de higiene básica e da desassistência governamental. Os grupos oligárquicos

são tomados como homens que buscavam interesses mesquinhos, além de negligenciarem as

populações que precisam do Estado, entendido como uma entidade acima das lógicas regionais que

poderia solucionar as questões.

O final desta expedição resultou em uma publicação fracionada no primeiro semestre de

1919 na Revista do Brasil, principal periódico em circulação do país à época2 (IGLÉSIAS, 1919).

Para entender a inserção de seu texto neste impresso, é fundamental reiterarmos a posição de amigo

de Arthur Neiva que lhe apresentou o editor Monteiro Lobato. Iglésias, leitor assíduo de Lobato,

reproduziu em personagens reais do cotidiano a figura literária de Jeca-Tatu, sobretudo no eleitor

“inconsciente” Bernardo e o “depauperado” pela diamba Raimundo (IGLÉSIAS, 1918).

Destes grupos que Iglésias descreve, uma recorrência chama-nos atenção na textualidade de

suas obras. Os caboclos são entendidos enquanto homens que tomam em suas mãos o tição e o

machado para devastar as matas. A natureza é entendida como patrimônio nacional e algo exterior

ao humano, tendo um caráter imaculado. Protegê-la é, assim, uma demanda que cabe aos poderes

públicos. Esta percepção da natureza consiste em uma continuidade das ideias de Euclides da

Cunha que responsabiliza as populações locais (“tapuias” ou “aborígenes”) pela degradação das

florestas. (CUNHA, 2009)

Tanto os estudos das práticas algodoeiras, da pecuária bovina e da erradicação das mortes

por picadas de cobras nas populações rurais pelo Conepatus chilensis, resultantes da viagem aos

“sertões” trazem uma característica forte nas pesquisas científicas de Iglésias: elas tinham uma

conotação pragmática e empenhada com o desenvolvimento das práticas econômicas agrícolas. A

agricultura era, sob a ótica dele, o meio do progresso nacional. (IGLÉSIAS, 1921.)

De volta ao litoral cosmopolita: a projeção política no Rio de Janeiro

Mesmo que já tivesse retornado à São Paulo em 1918, seus trabalhos ainda estavam

concentrados nas viagens que havia realizado nos ditos “sertões”. Eles, como já mencionamos,

foram essenciais para deslocar a posição do intelectual ao centro das discussões nacionais. Com

isso, seu nome foi designado para dirigir o Serviço de Sementeiras do Ministério da agricultura, sob

a administração de Idelfonso Simões Lopes. Ali, ele investiu no desenvolvimento de práticas de

ampliação da produção de sementes que seriam a base em campos experimentais e estações

agrícolas brasileiras. Ainda durante a pasta de Lopes no governo de Epitácio Pessoa entre 1919 e

1922, Iglésias esteve envolvido com a criação em 1921 da primeira instituição destinada

exclusivamente à proteção às florestas no país: o Serviço Florestal do Brasil, que seria apenas

inaugurado em 1925.

2Para informações na historiografia sobre este periódico, consulte os trabalhos de LUCCA, Tania Regina de. A Revista

do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999.

Nesse clima que favorecia à proteção das florestas como suportes estratégicos à nação,

Iglésias foi nomeado pelo ministro da agricultura Miguel Calmon para diretor do Serviço Florestal.

Sua nomeação, em função das relações de amizade, foi tenazmente criticada na imprensa, sobretudo

pelo médico e jornalista José Mariano Filho. Ao não ser nomeado para a administração da recém-

instituição, o médico foi audaz nas suas críticas em relação aos gastos públicos e sólido ao afirmar

que este posto tinha sido obtido devido a “pistolões políticos” que Iglésias esteve envolvido.

Chegou a acusá-lo, posteriormente, de ter sido multado por derrubar as matas da própria chácara

que Iglésias mesmo residia. (MARIANO FILHO, 1933.)

Independentemente de quem deveria ou não obter o cargo de direção, esta rivalidade

intelectual marcava, portanto, os dissensos no projeto de conservação à natureza no Brasil e

evidenciava que, mesmo dentro do recente movimento florestal, havia heterogeneidade quanto ao

modo pelo qual podia-se alcançar a proteção. Como diretor do serviço, apoiou iniciativas de

reflorestamento no país, escreveu a apresentação do Álbum Florístico e organizou festas das árvores

(IGLÉSIAS, 1932). Além disso, colaborou com a criação da Revista Florestal, órgão da imprensa

que apareceu em julho de 1929 centrado em assuntos florestais3. Foi o seu primeiro articulista,

defendendo uma legislação mais rígida e o ensino dos preceitos da silvicultura.

A falta de verbas sobressaltadas na crise internacional de 1929 seria um dos fatores

importantes para que o Serviço fosse extinto. Em 1932, demonstrava a fraqueza institucional e o

isolamento político na esfera do Estado na seguinte carta endereçada a Luiz Simões Lopes (1903-

1994)4, o técnico florestal que havia trabalhado naquela instituição e que no momento ocupava o

cargo de oficial do gabinete provisório da República:

(...) é com dificuldade que estou arcando com a responsabilidade da direção do Serviço

Florestal, que tem grandes problemas a resolver. Acho, portanto, meu caro Luizinho, que

devo encarar minha carreira de funcionário público, dando oportunidade para a atuação de

novos valores.

3Iglésias publicou na Revista Florestal três artigos, a saber: IGLESIAS, Francisco de Assis. Efeitos econômicos da ação

do Serviço Florestal e o problema do reflorestamento. Revista Florestal, Rio de Janeiro, Ano I, n.1, p.4, julho de

1929; IGLÉSIAS, Francisco de Assis. O crescimento das essências florestais brasileiras. Revista Florestal, Rio de

Janeiro, ano II, n.1, p.5-10, jul-ago.1930; IGLÉSIAS, Francisco de Assis. Cinco anos no Norte do Brasil: notas a

margem do Dr. Arthur Neiva e Belisário Penna sobre o norte. Revista Florestal, Rio de Janeiro, ano II, n.1,

Fevereiro de 1932, p.15. 4Em 1990, quando Luiz Simões Lopes fornece depoimento ao CPDoc/FGV subordinado à Fundação Getúlio Vargas,

instituição que administrou desde 1944 até 1990, o agrônomo indica que Francisco de Assis Iglésias era “uma

pessoa de grande valor, de dedicação ao serviço público e ao problema florestal” e que foi ele quem o convidou a

integrar o Serviço Florestal. Tal fato, demonstra o papel de Iglésias na seleção daqueles que participariam deste

projeto de proteção à natureza. Ver SILVA, 2006, p.55. Sobre a proteção à natureza nos anos de 1920-1940, cf.

DUARTE, 2010; FRANCO e DRUMMOND, 2009.

Entendo - e isto segundo o método do grande estadista Mussolini – que ninguém tem o

direito de envelhecer nos cargos, principalmente os da direção: é preciso que cada um saiba

vencer a sua vaidade pessoal e a ofereça em holocausto ao bem da pátria, permitindo que

outros valores mais novos se levantem. (...)

Sinto que cheguei no ponto da substituição: desejo me aposentar! Uma grande preocupação

assaltou-me o espírito: Quem seria o meu sucessor? Tu sabes que o Serviço Florestal, desde

o seu início, bem ou mal, foi elaborado por mim: é, portanto, justo que eu me preocupe pelo

seu futuro. Dos nomes que, mentalmente, examinei, dois tanto pela capacidade técnica

como pela integridade moral – se me afiguram capazes de levar avante a tarefa a que me

venho dedicando de corpo e alma: um é o teu e o outro o do nosso amigo Octávio [Silveira

de Mello, agrônomo assistente do Serviço Florestal]. (CARTA, 3/11/1932, LSL

1928.08.03)

Esta correspondência chama-nos atenção muito mais pelo conteúdo nela expressa do que por

seus aspectos formais. As quatro folhas eram de tamanho reduzido redigidas por máquina de

escrever em papel cartão creme (hoje amarelados com o tempo), sem timbres, carimbos oficiais do

Serviço Florestal do Brasil ou do Ministério da Agricultura. Como se vê, é caracterizada pela

informalidade e coloquialidade de Iglésias, com substantivos no diminutivo, o que evidencia a

afetividade entre eles. Demonstra, portanto, que essas ações de transição de diretores não se davam

no rigor burocrático do Estado, mas, principalmente, pelas relações amistosas e privadas entre os

sujeitos sociais. Esta carta, portanto, permite entrever o binômio indissociável entre público e

privado na composição das políticas florestais do Brasil.

O que ocorreria com Iglésias após a extinção do serviço na arquitetura do Estado em 1933?

O caminho adotado pelo ex-diretor da instituição foi o de retornar ao estado paulista para chefiar, à

convite de secretário de agricultura do estado, Fernando Costa, o Serviço da Sericicultura. Neste

organismo, o agrônomo estreitou suas relações com os governos mais inclinados ao totalitarismo,

tais como a Itália e o Japão. Para ele, estes países eram modelos de cooperativismo e de unidade de

comando que permitiam o bom desenvolvimento das práticas econômicas. (IGLÉSIAS, 1936).

A chegada de seu amigo, o agrônomo paulista Fernando Costa, ao ministério da Agricultura

representou um ponto de inflexão na sua trajetória. De esquecido e à margem na secretaria do

estado, quando Vargas revitalizou o Serviço Florestal em 1938 incumbiu-lhe novamente da gestão

de diretor. Para além desta retomada, em 1939, o ministro realizou uma troca de presidentes no

Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas. No lugar do botânico Paulo

Campos Porto (1889-1968) substituiu por Iglésias. Fato é que a realocação não foi bem vista por

membros já antigos, tais como a antropóloga Heloísa Alberto Torres (1895-1977) (LISBOA, 2004,

p.87; GRUPIONI, 1997, p.59). Além dessa cadeira de presidente, Iglésias passava a ocupar também

assentos como representante do serviço no Conselho Nacional de Proteção aos Índios e no Conselho

Florestal Federal. As participações nestes conselhos atribuíam a função de Iglésias como membro

de uma elite técnica nesta gestão burocrática do Estado.

Como se vê, Iglésias estava no emaranhado desta sociabilidade intelectual em prol da

articulação da natureza como patrimônio constituinte da nação brasileira. Tinha carteira de sócio da

Sociedade dos Amigos das Árvores, compondo o quadro do Conselho Técnico de Sugestões. Foi,

ademais, um dos artífices do principal evento realizado por aquela agremiação: a Primeira

Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, ocorrida entre 8 e 15 de abril de 1934.

Em sua gestão no Serviço Florestal de 1938 a 1942, foram implantados os primeiros parques

nacionais do país, sobretudo, o Itatiaia decretado em 1937, o da Serra dos Órgãos e do Iguaçu em

1939. Iglésias endossava, em trabalho apresentado ao Congresso Brasileiro de Geografia de 1940, a

ideia de que a delimitação destas “zonas geográficas” ou “museus naturais” era o melhor meio de

proteção à natureza. (IGLÉSIAS, 1942b). Reiterava para isso, que outras nações, dentre as quais, os

Estados Unidos, desde 1872, tinha implantado o Parque Nacional de Yellowstone. Tal

acontecimento, segundo ele, mereceu atenção do engenheiro André Rebouças que defendeu a

criação em 1876 dos Parques Nacionais do Araguaia e do Iguaçu no Brasil. Entretanto, o projeto

não foi levado adiante e suscitou ao longo do tempo vozes de “autorizados” homens da República

em defesa desta proposta.

O que fazia Iglésias neste texto era, em primeiro lugar, materializar que o Estado Varguista

foi responsável para concretização de projetos que protegessem à natureza, com enaltecimento da

figura do presidente enquanto representante destes interesses nacionais. Da mesma forma,

prevalecia no discurso o projeto de expansão e integração territorial do Estado Novo designado de

“Marcha para Oeste”. Um dos parques nacionais implantados, o Iguaçu, exprimiam em sua

narrativa um sintoma dessa apropriação sobre o território nacional, principalmente, nas áreas de

fronteiras com outras nações sul-americanas (FREITAS, 2014). Além disso, demonstrava uma

percepção de parques como espaços de fruição estética que expressavam a majestade da natureza.

Os conflitos territoriais para a desapropriação das comunidades tradicionais foram ocultados

e silenciados por Iglésias nas narrativas. Sendo assim, não podemos entender sua trajetória sem

denotar, concordando com o historiador William Cronon, que a implantação destes parques

nacionais esboçava uma ideia de retorno à uma idade do ouro, ou seja, a uma era do sublime e

prístina onde haveria uma intocabilidade da natureza, uma ausência completa da intervenção

humana (CRONON, 1996, p.69). Logo, concretiza propostas de desterritorialização dos grupos

sociais que historicamente habitavam os ambientes físicos e construíram neles laços simbólicos-

materiais.

Essa adesão mais intensa ao projeto de parques nacionais norte-americano era, portanto,

uma dobradiça significativa de sua vida. Isso se deu, principalmente, após o alinhamento do Brasil

às potências aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1939, entretanto, tinha apoiado a

aproximação do país para com a Itália de Mussolini, tendo inclusive, realizado viagens àquele

território e à Alemanha de Hitler em 1938 para desenvolvimento da sericicultura no Brasil.

(IGLÉSIAS, 1939, p.66)

Dessa forma, o agrônomo asseverou a interconexão entre italianos e brasileiros e defendia a

aproximação diplomática e econômica entre as nações. No entanto, com o desenrolar das mudanças

o seu projeto é modificado. De defensor das tropas dos camisas verdes, Iglésias reforçou em maior

grau o horizonte dos Estados Unidos. Chegou, inclusive, a integrar nos anos de 1940 a missões de

estudos técnico-científicos ao norte da América, para fins de análise do ensino agrícola daquela que

passaria a considerar como a “Grande República”. (CARTA, 11/10/1945, GC b Iglesias, F.) Com

base nestes estudos, propôs um projeto na Diretoria de ensino agrícola ao ex-ministro Capanema

sobre o estado de São Paulo, voltados à higienização das populações e instalações. Datam-se desta

época, portanto, os primeiros centros que iriam resultar no Campus de Pirassununga da

Universidade de São Paulo (TELES e IOKOI, 2005, p.77).

Vale recordar que nestes anos de 1940, receosas quanto à ampliação dos interesses das

potências do Eixo nos trópicos, a política externa norte-americana reduziu seu belicismo sobre a

América Latina e, principalmente, buscou estreitar laços de proximidade histórico-cultural, tais

como se percebeu na Política da Boa Vizinhança. O governo norte-americano, nesse sentido, através

da Fundação Rockefeller, estimulou estágios nos Estados Unidos e intercâmbios técnico-científicos

entre as repúblicas latino-americanas e a “grande nação” norte-americana (TOTA, 2000, p.80).

Essa proximidade técnico-científica entre os países reforçava seu papel enquanto agrônomo.

Ao longo de sua formação, o intelectual não deixava de sobressaltar e definir os espaços deste

campo profissional que estava em constante processo de reconfiguração. Nos anos de 1940 isso se

tornou flagrante à medida que valorizava a memória de outros profissionais deste campo,

principalmente do então ministro da agricultura Fernando Costa. Em discurso proferido na cidade

de Pirassununga para inauguração de um busto de bronze do paulista, Iglésias, enalteceu os traços

biográficos de seu amigo pessoal. Certo de que construía a imortalidade de um homem, mas

também a memória da profissão de agrônomo, Iglésias ressoou em alta voz:

Quando a História julgar este período político caracterizado pela criação do Estado Novo,

tenho firme convicção de que essa grandiosa obra [a participação de Fernando Costa na

agricultura nacional] constituirá um atestado insofismável das intenções patrióticas e do

acerto dos que guiavam os destinos do Brasil (grifos nossos) (IGLÉSIAS, 1942a, p.16-17).

Este fragmento deixa-nos revelar seu posicionamento dentro desta esfera governamental,

sob, pelo menos, três prismas que se entrecruzam: o político, o intelectual e o cultural. No âmbito

do primeiro, Iglésias delimita este momento como centralizador, ao qual o Estado atribuía-se de

uma multiplicidade de atividades. A definição delas, no entanto, era realizada pelo segundo prisma -

os intelectuais – que dentro do regime tinham a função de guiar, orientar e organizar o país. Tais

metas, assim, deveriam estar voltadas para incutir uma cultura nacional e os valores patrióticos.

Dessa forma, Iglésias inscreve-se dentro desta lógica do Estado que convoca os intelectuais à arena

política com a missão de ser “representante da consciência nacional” (VELLOSO, 2001).

Retorno às tradições do interior paulista: entre a memória e a história

Em 1942, quando se retirou do Serviço Florestal e das atribuições de conselheiro nos

diferentes organismos estatais, Iglésias realizou sua viagem aos Estados Unidos e retornou ao

interior paulista. Em vez de residir em Piracicaba, situou-se na vizinhança: a cidade de Campinas.

As décadas de 1950-1960 para o agrônomo são fundamentais para a busca de uma consagração de

sua memória no cenário político nacional. Isso se deve, principalmente, à participação em projetos

editoriais formadores da nação brasileira, condecorações recebidas e o papel destacado em

academias literárias.

O evento mais significativo que demarca esta nova fase da trajetória de Iglésias é a

publicação de sua obra “Caatingas e Chapadões” na Coleção Brasiliana (IGLÉSIAS, 1951). Esta

edição já era esboçada desde o retorno dos “sertões” do meio-norte do Brasil em 1918. O máximo

que tinha realizado, porém, era publicação de artigos na Revista do Brasil e na Revista Florestal.

Era interesse seu, pressionado por Arthur Neiva e Monteiro Lobato, a edição de uma obra com

perfil descritivo da fauna, flora, solos, hidrografia, clima, relevo, costumes, festas e populações que

visitou. Tratava-se, assim, de esquadrinhar o território nacional no que se referia à cultura e à

natureza, dois conceitos que aparecem estanques e compartimentados na textualidade das suas

obras. Escrevendo nos anos finais da década de 1940, Iglésias compõe este livro a partir da

conotação positiva de sua aventura, como desbravador dos sertões, semelhante ao seu admirado e

“inigualável” amigo pessoal, marechal Cândido da Silva Rondon (IGLÉSIAS, 2003, p.218).

Tal como a proposta daquela coleção, esta obra buscava a formação da uma certa

“conscientização nacional”. De fato, conforme sublinha Eliana de Freitas Dutra, o livro tornou-se na

primeira metade do século XX, “o grande repositório da cultura nacional e indicador do grau de

civilização do Brasil” (DUTRA, 2013, p.230). A coleção Brasiliana, organizada pela Companhia

Editora Nacional em 1931, era um dos principais veículos da nacionalidade no mercado editorial

brasileiro. Segundo Pontes, ela não almejava apenas o lucro material decorrente da comercialização

dos livros, mas visava, principalmente, a função didático-pedagógica que poderia desempenhar no

cenário político de construção de uma nação (PONTES, 1989). O sucesso editorial e a política de

reedições na gestão da coleção, proporcionou uma segunda edição de “Caatingas e chapadões” em

1958, ou seja, sete anos depois da primeira.

Muito consumida no mercado, a publicação pode ter sido um dos fatores fundamentais para

a relativa recordação de Iglésias no campo do folclore. A temática do livro despertava a curiosidade

de como viviam aquelas comunidades que narrava, mas também traçava um paralelo de ação para

contornar os problemas que ainda estavam em vigor naquela região do pais. A recepção bem-

sucedida também pode ter como razão um processo que se ampliava: “a folclorização do popular”

(GARCIA, 2010).

Frente à crescente internacionalização de produtos estrangeiros no mercado nacional, os

anos de 1950 revalorizaram a cultura popular como forma de assegurar a salvaguarda do que se

considerava ser a “autêntica” e “original” identidade nacional. Essa publicação de Iglésias aparece

como sintoma deste momento em que se revitalizava as categorias de “sertão” e de “popular” para

compreender o processo de nacionalidade brasileira. O homem sertanejo, de indolente e mal-

educado passa a ser reforçado por desfrutar de habilidades, principalmente na orientação espacial

dentro das matas. À edição de “Caatingas e Chapadões” na Brasiliana, somavam-se no Estado

brasileiro diversas iniciativas de valorização do folclore, tais como a criação da Campanha de

Defesa do Folclore Brasileiro.

As narrativas de suas andanças lhe renderam premiações e homenagens em academias

literárias e sociedades ruralistas, sobretudo, a Academia Piauiense de Letras, em 1952, e na

Confederação Nacional de Agricultura, que lhe forneceu a condecoração de “Honra ao Mérito

Agrícola”, em 1966. No Piauí, Iglésias foi recebido sob aplausos na Assembleia Legislativa estadual

devido à ressonância que conferia ao estado na esfera nacional. Ganhou, inclusive, o título de

“cidadão piauiense” por tentar reportar os costumes populares das comunidades (ACADEMIA

CAMPINENSE DE LETRAS, 1966, p. 319).

Além das condecorações, Iglésias foi convidado em 1956 para ser o fundador da cadeira de

número 32 da Academia Campinense de Letras. Tal assento tinha como patrono o seu antigo

“mestre”, o cientista Vital Brazil, com quem trabalhou nos tempos Butantã. Ainda que tenha tido

nos anos de 1950-1960 uma relativa consagração de sua obra, Iglésias deparava-se com dois

problemas principais: o primeiro deles é que estas instituições que lhe renderam homenagens não

eram mais percebidas, majoritariamente, como as principais instâncias de consagração intelectual,

tal como eram as academias de letras durante a Primeira República. Essa posição estava sendo

acantonada e entendida enquanto bacharelesca, que remetia às tradições oligárquicas.

Deste primeiro, deriva-se um segundo problema: seu nome foi associado à prática

folclorista, principalmente, após citações de sua obra por Luís da Câmara Cascudo. (CASCUTO,

1976). A grande questão, no entanto, é que nos anos de 1960 e os subsequentes, a sociologia

paulista de Florestan Fernandes, visando instituir um saber acadêmico enquanto “científico”,

criticou os trabalhos desses homens que consideramos aqui como “andarilhos dos sertões” pelo seu

caráter descritivista e, impondo-lhe um olhar “pré-científico”. Atribuíam-lhes, assim, categorias

pejorativas àquilo que se referia ao folclórico. No bojo destas mudanças epistemológicas, Iglésias

faleceu em 13 de julho de 1969, deixando apenas sua esposa, visto que não teve filhos em vida.

Seu nome, porém, foi esquecido e diluído na constituição da memória e da historiografia

brasileira. Tornou-se mero substantivo de logradouros nas cidades de Campinas e Piracicaba, além

de ter sido pontuado em trabalhos historiográficos recentes, como um dos portadores do saber

médico-sanitarista da Primeira República, titular de alguma instituição que pertenceu ou pela

extração de passagens folclóricas de seu trabalho. Não conectavam, porém, as diversas faces de sua

vida profissional, tal como não lhe concediam centralidade na narrativa acerca da construção do

pensamento social brasileiro.

Considerações finais

Ao mapear esta longa e descontínua cartografia intelectual, podemos evidenciar que este

trabalho consistiu em um exercício, embora de natureza sumária e incipiente, de observar a

trajetória profissional de Francisco de Assis Iglésias. Desnovelamos as longitudes e latitudes de sua

vida, por meio de quatro momentos significativos que buscaram redimensionar sua ação no cenário

público visando à formação da cultura nacional, a saber: em primeiro lugar, no que concerne às

formações familiares advindas das políticas imigratórias do final do século XIX e educacionais na

configuração do campo agronômico.

Em segundo lugar, percorremos as viagens que realizou nos sertões do Meio-Norte do país.

A partir delas, percebemos seu interesse pela medicalização e saneamento das culturas sertanejas.

Após atravessá-los e publicar obras acerca das viagens, sua posição no campo intelectual tomou

importante projeção, inserindo-se dentro de postos públicos elevados na estrutura estatal. Por

último, percebemos que também atuou em projetos editoriais de grande monta da construção da

nacionalidade brasileira, tais como a Coleção Brasiliana. Seu trabalho, porém, não ganhou grande

expressão na historiografia e na memória nacional.

Pretendíamos, portanto, mostrar os diferentes lugares que ocupou no campo intelectual em

diversos contextos históricos e, principalmente, as descontinuidades e conexões de seu cartograma.

Ambos fios, porém, estiveram vinculados à redefinição e constituição da identidade nacional

brasileira a partir de políticas culturais e florestais, tais como a edição de obras e patrimonialização

da natureza.

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