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77 Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 77-108, jan./jun. 2017 Filosofia Clínica, Aconselhamento Filosófico, Saúde e Educação Leonardo RICCO MEDEIROS 1 Resumo: A definição de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) encon- tra-se ultrapassada e insuficiente. Neste ensaio, propomos que a Filosofia Clínica participa da composição de outras definições possíveis. Colocando-a em contato com as superfícies do movimento da Promoção à Saúde e relacionando-a com o Aconselhamento Filosófico, investigaremos a definição de Saúde enquanto um estado de razoável harmonia entre a pessoa e sua realidade singular. A ideia de Educação – traduzida como um refinamento da consciência para a descoberta de sentidos existencialmente singulares – será baseada em um processo radicado no indivíduo. Sendo assim, educar aproxima-se da promoção do “exercício existen- cial”, talvez o principal objetivo da Filosofia Clínica. Além disso, considera-se a pessoa (auto)educada, fundamentalmente, uma pessoa saudável. Dividido em seis partes, o texto se faz à luz dos pensamentos de Huberto Rohden e da Logo- terapia, apontando uma objetividade filosófica de verdade universal que pode servir ao filósofo clínico. Palavras-chave: Filosofia Clínica. Aconselhamento Filosófico. Saúde. Educa- ção. Logoterapia. 1 Leonardo Ricco Medeiros. Mestrando em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Filosofia Clínica (Instituto Packter). Conselheiro filosófico nível II (Gabinete Project@ – Portugal). Colaborador do Instituto Mineiro de Filosofia Clínica (IMFIC). Licenciado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

Filosofia Clínica, Aconselhamento Filosófico, Saúde e Educação ideias de Huberto Rohden e da Logoterapia. Na última parte, não concluiremos, em vez disso, suspenderemos o pensamento

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Filosofia Clínica, Aconselhamento Filosófico, Saúde e Educação

Leonardo RICCO MEDEIROS1

Resumo: A definição de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) encon-tra-se ultrapassada e insuficiente. Neste ensaio, propomos que a Filosofia Clínica participa da composição de outras definições possíveis. Colocando-a em contato com as superfícies do movimento da Promoção à Saúde e relacionando-a com o Aconselhamento Filosófico, investigaremos a definição de Saúde enquanto um estado de razoável harmonia entre a pessoa e sua realidade singular. A ideia de Educação – traduzida como um refinamento da consciência para a descoberta de sentidos existencialmente singulares – será baseada em um processo radicado no indivíduo. Sendo assim, educar aproxima-se da promoção do “exercício existen-cial”, talvez o principal objetivo da Filosofia Clínica. Além disso, considera-se a pessoa (auto)educada, fundamentalmente, uma pessoa saudável. Dividido em seis partes, o texto se faz à luz dos pensamentos de Huberto Rohden e da Logo-terapia, apontando uma objetividade filosófica de verdade universal que pode servir ao filósofo clínico.

Palavras-chave: Filosofia Clínica. Aconselhamento Filosófico. Saúde. Educa-ção. Logoterapia.

1 Leonardo Ricco Medeiros. Mestrando em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Filosofia Clínica (Instituto Packter). Conselheiro filosófico nível II (Gabinete Project@ – Portugal). Colaborador do Instituto Mineiro de Filosofia Clínica (IMFIC). Licenciado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

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Clinical Philosophy, Philosophical Counseling, Health and Education

Leonardo RICCO MEDEIROS

Abstract: World Health Organization (WHO) definition of Health is outdated and inadequate. In this essay, we propose that Clinical Philosophy is involved on the composition of other definitions. We will put it in contact with the surfaces of Health Promotion movement and talk it with Philosophical Counseling. We will investigate Health as a state of reasonable harmony between a person and his or her reality. The idea of Education – translated as a refinement of consciousness in the search of existentially singular meanings – will be based on a process rooted in the individual. In this sense, it is close to the “existential exercise”, maybe the main goal of Clinical Philosophy. In addition, it will be considered that an (auto) educated person is, fundamentally, a healthy person. Divided into six parts, the text is written in the light of Logotherapy and Huberto Rohden’s thoughts, indicating a philosophical objectivity of universal truth that can be used by clinical philosophers.

Keywords: Clinical Philosophy. Philosophical Counseling. Health. Education. Logotherapy.

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“Não há um único ser humano que possa dizer que jamais sofreu, que jamais falhou e que não morrerá” (Viktor

Frankl).

Há quase vinte anos, Segre e Ferraz (1997), profissionais inseridos no universo da saúde pública, publicavam um ponto de vista sobre a definição de saúde presente na Constituição de 1946 da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mesmo reconhecen-do seus méritos históricos, identificaram a possibilidade crítica de compreender a definição como irreal, ultrapassada e unilateral. Sem descartar a importância da observação, descrição, avaliação e gestão de indicadores objetivos para as políticas de saúde pública, os autores propunham que muito da ineficiência destas poderia ser bem compreendido com a adoção de uma visão “antipositivista”, cuja abordagem pudesse caminhar “de dentro para fora do ser hu-mano”. Com essa visão, a eficiência seria reparada em contatos mais empáticos, sintonizados e éticos entre profissionais e popula-ção assistida (SEGRE; FERRAZ, 1997).

Tanto a divisão entre mental, social e somático na considera-ção do ser humano, como a perspectiva estatística própria do pro-fissional higienista, vão sendo, circunstancialmente, ultrapassadas. Propomos que a Filosofia Clínica – escola filosófica brasileira com raízes na Medicina – possui especial originalidade para participar da composição de práticas e fundamentações metodológicas per-meadas por um sentido que atribui integralidade à pessoa e aos fe-nômenos humanos.

O presente texto está organizado em seis partes, todas acom-panhadas de epígrafes que lhe intensificam o sentido verdadeiro. Sendo esta a primeira parte, na segunda proponho algumas refle-xões sobre a definição de saúde da OMS, procurando identificar onde poderiam ser justificadas as acusações de irrealidade, uni-lateralidade e de condição ultrapassada. Avançando na dimensão política da Saúde, passamos pela ideia de “empoderamento do pa-ciente”, considerando-a através das perspectivas histórico-crítica e pós-estruturalista. Na terceira parte, apresentaremos traços, termos e procedimentos instrumentais originais que singularizam método

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e objetivo principal próprios da Filosofia Clínica. Também serão levantados indicativos para a pesquisa de suas fundamentações e a perspectiva de considerá-la não apenas um método instrumental, mas uma escola e uma filosofia com caminhadas metodológicas próprias. Na quarta parte, considerando-se a natureza do dossiê em que se inscreve o artigo, faremos um esboço do que se pode convencionar como Aconselhamento Filosófico e algumas de suas diferenças e semelhanças instrumentais com a Filosofia Clínica. Na quinta parte, pensaremos a possibilidade de uma compreen-são de verdade objetiva na Filosofia Clínica, propondo um passeio com os conceitos de Saúde e Educação, inter-relacionando-os às ideias de Huberto Rohden e da Logoterapia. Na última parte, não concluiremos, em vez disso, suspenderemos o pensamento com al-gumas definições de Saúde conforme a Cosmoterapia proposta por Rohden e a noção de Filosofia Clínica enquanto uma práxis ética do cuidado singular à qual cabe sustentar alguma objetividade filo-sófica de verdade universal.

Deve-se alertar que este artigo não se propõe a apresentar aprofundamentos científicos, embora possa incentivar tais movi-mentos. A forma condutora aproxima-se do ensaio, que “[...] diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim” (ADORNO, 2003, p. 17), unificando “[...] livremente pelo pensa-mento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha” (ADORNO, 2003, p. 27) e obrigando “[...] a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a complexidade que lhe é própria” (ADOR-NO, 2003, p. 33). Por sua natureza de pensar em fragmentos, “[...] encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada” (ADORNO, 2003, p. 35). Conscien-te de sua descontinuidade e incompletude, os assuntos adquirirão o caráter de “um conflito em suspenso” (ADORNO, 2003, p. 35), procurando permitir “[...] que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totali-dade tenha de ser afirmada” (ADORNO, 2003, p. 35).

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2. A DEFINIÇÃO DE SAÚDE E O EMPODERAMENTO DO PACIENTE

“Quando eu uso uma palavra” – disse Humpty Dumpty numa voz um tanto zombeteira, “ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique – nem mais nem

menos”.“O problema é saber se você pode fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”, disse Alice.“O problema, apenas, é saber quem manda, respondeu

Humpty Dumpty” (Lewis Carroll).

A OMS, nos termos do Artigo 57 da Carta Geral das Nações Unidas (ONU, 1945, [n.p.]), é um organismo ou entidade especia-lizada com ampla responsabilidade internacional, criada por acor-do intergovernamental. Consta ser seu objetivo, no primeiro artigo de sua Constituição de 1946 (OMS, [n.p.]), a aquisição, por todos os povos, do nível de Saúde mais elevado que for possível”. No âmbito dos discursos modernos ocupados com a lógica unívoca, carecemos de uma definição de Saúde, um ponto de partida para a conversa – como diz a citação atribuída a Voltaire2. Tal definição vai aparecer no preâmbulo como o primeiro dos princípios basila-res para a felicidade, a segurança e as relações harmoniosas entre os povos do planeta.

Podem render reflexões visualizar os outros princípios envol-vidos: gozar da melhor saúde possível é um direito de todo ser hu-mano, sem distinção de raça, religião, credo político, condição eco-nômica ou social; a saúde de todos os povos depende da cooperação entre indivíduos e Estados; os resultados na promoção e proteção da saúde de um Estado têm valor para todos; a desigualdade entre os países na promoção de saúde e combate às doenças é um perigo comum; é essencial que a criança esteja apta a viver harmoniosa-mente num meio variável para que se desenvolva saudavelmente; os povos devem receber os benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins; uma opinião pública esclarecida e coopera-2 “Se queres conversar comigo, define primeiro os termos que usas”. Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/frase/NTY5Nw/>. Acesso em: 31 maio 2016.

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tivamente ativa participa da melhora da saúde dos povos; os go-vernos devem assumir medidas sanitárias e sociais adequadas pela saúde dos seus povos. Desse contexto relacional é que participa a definição de saúde: “um estado de completo [ou perfeito] bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (OMS).

Etimologicamente, saúde remete ao termo latino salus, do-cumentado no século XIII com o sentido de “salvação” ou “estado de são” (CUNHA, 2010, p. 584). Tais informações iluminam a per-cepção antiga de que saudável era aquele que, simplesmente, havia sido “salvo” de uma determinada enfermidade anátomo-funcional. A não existência ou a eliminação de uma patologia era, por si só, identificada como a saúde. A definição de 1946 amplia o horizonte dessa tradição, sendo reconhecido que superou, em sua época, as dificuldades de uma definição negativa, ampliando o leque para a emergência de políticas sanitárias mais úteis e eficazes (SÁ JU-NIOR, 2004). Três pontos importantes são acrescentados com a nova definição: i) as noções de completude ou perfeição; ii) a ideia de bem-estar; e iii) o destaque para uma tripartição da existência humana. Averiguemos o que passa a ser motivo de questionamento em cada um desses itens.

As noções de completude ou perfeição – termos que apare-cem conforme diferentes traduções – remetem diretamente ao que Segre e Ferraz (1997) chamavam “irrealidade”. Temos reconheci-do, por urbanidade ou eticidade de nossa época, que tais qualifica-ções não pertencem ao mundo da existência humana, por natureza imperfeito e polarizado no devir circunstancial e temporal.

A oração aditiva da definição “e não consiste apenas na au-sência” recupera relações entre o estado de perfeito bem-estar e a doença. Dialeticamente, podemos pensar no estado de completa ausência de doença ao lado do completo estado de saúde. Noções de doença, doente, sofrimento e tratamento são levantadas. A pa-tologia – como veremos mais adiante, um conceito inexistente na Filosofia Clínica – pode aparecer como “um conceito estatístico imprescindível para elaboração de políticas da Saúde pública”. O doente, “um ser humano diferente, que talvez tenha sua vida en-

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curtada”. O sofrimento, uma “dor, inteiramente subjetiva, qualquer que seja a sua origem”. O tratamento, uma espécie de “defesa so-cial” ou “juízo de valor que serve ao controle e normatização so-ciais”. Ultrapassando todas essas definições, é possível identificar a saúde mesmo nas situações onde caibam os rótulos da doença, do doente, do sofrimento e do tratamento (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 541). “Em uma perspectiva rigorosamente clínica [...] a saúde não é o oposto lógico da doença e, por isso, não poderá de modo algum ser definida como ‘ausência de doença” (ALMEIDA FILHO; AN-DRADE, 2003, p. 101 apud BATISTELLA, 2007, p. 55, grifo do autor). “Indivíduos considerados doentes sob o ponto de vista clí-nico e laboratorial, que resistem e afirmam estarem bem, são consi-derados saudáveis em seu meio” (ALMEIDA FILHO; JUCÁ, 2002 apud BATISTELLA, 2007, p. 56).

Seguindo com os itens acrescentados pela definição de saú-de de 1946, quanto à ideia de bem-estar, uma primeira observa-ção refere-se ao papel muitas vezes necessário de seu contrário. Do ponto de vista daquilo que se passa na vida da pessoa, daqui-lo que não assume caráter meramente periférico no processo de sua trajetória existencial, o mal-estar pode cumprir papéis verda-deira e naturalmente imprescindíveis. Os estados de insatisfação e angústia (inclusive com repercussões somáticas, como gastrite ou cólon irritativo) são inerentes à condição humana e podem fun-cionar como condicionantes da conduta de indivíduos e coletivi-dades, permitindo-lhes tecer a existência com a criação de outras perspectivas e necessidades. Outra observação trata da dificuldade ou mesmo impossibilidade de se universalizar, existencialmente, o bem-estar. A percepção e qualificação do estado pessoal estarão sempre sujeitas a descrições contextualizadas, a partir de jogos de linguagem e experiências próprias. O uso semântico do termo – e aqui já nos utilizamos do método da Filosofia Clínica – só poderá ser legitimado na localização existencial da pessoa, em acordo ao funcionamento de sua estrutura de pensamento.

Sobre a tripartição da condição humana, representantes da abordagem psicossomática apresentam clara distinção. A parte biológica (ou física) faz referência às características herdadas ou adquiridas, incluindo órgãos e sistemas (glandular, cardiovascular,

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gastrointestinal etc.) e o metabolismo atuante nos processos de re-sistência e vulnerabilidade. A psicológica (ou mental) correspon-deria aos processos emocionais e intelectuais, conscientes ou não, caracterizadores da personalidade, dos afetos e dos modos com-portamentais de relacionamento com as pessoas e com o mundo. A social associa-se à incorporação e influência de valores, crenças e expectativas originadas nos grupos, pessoas e comunidades com os quais entramos em contato desde o nascimento, incluindo o am-biente físico e as características e funcionalidades dos objetos com que nos relacionamos (FRANÇA; RODRIGUES, 2013, p. 22-23).

Ainda que seja explicitado que tal divisão3 é “apenas didáti-ca” e que “o ser humano reage sempre como um todo complexo, in-terligado em profundas e complexas relações” FRANÇA; RODRI-GUES, 2013, p. 21), há críticas quanto à compreensão separatista dos termos. Para Segre e Ferraz (1997, p. 540, grifo dos autores), por exemplo, “a expressão ‘medicina psicossomática’, encontra-se superada”, pois já se percebe “a inexistência de uma clivagem entre mente e soma, sendo o social também inter-agente, de forma nem sempre muito clara, com os dois aspectos mencionados” (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 540).

Já na década de 1930, no texto O mal-estar na civilização, de Freud, a tradição psicanalítica em formação supunha como pos-sibilidade de defesa social a fuga para manifestações somáticas e psicológicas (variados comportamentos, incluindo neuroses e psi-coses). Atualmente, na etiologia de uma série de “doenças somá-ticas”, aparece como causa a problemática afetiva que, por algum arranjo, não foi possível “ser vivenciada no plano propriamen-te psíquico”. Pergunta-se: o quão já suficientemente “descrito” e “sentido” já não estariam os vínculos entre os estados afetivos e “o infarto, a úlcera péptica, a colite irritativa, a asma brônquica, e até mesmo o câncer” (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 540)?

A ideia de integralidade ou inteireza do ser humano está clara na ontologia e antropologia dimensionais, discursos fundamentais da Logoterapia. Ali a unidade singular do ser humano – “[...] uni-3 Divisões e classificações podem ser entendidas – como lembra Rodis-Lewis (1970 apud 2002, SANTOS, p. 90) em sua reflexão sobre as múltiplas virtudes nos estoicos – como a troca de abstrações vagas por uma inesgotável riqueza de situações concretas ofertadas à vontade racional.

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dade apesar da multiplicidade” (FRANKL, 2011, p. 33) – é des-coberta na “[...] dimensão dos fenômenos noéticos, ou dimensão noológica”, onde “[...] os eventos tipicamente humanos devem ser localizados” (FRANKL, 2011, p. 27-28). Assim como um cone (fi-gura em três dimensões) é a junção de um círculo e um triângulo (cada qual em um plano de duas dimensões), a figura inteira do ser humano é a projeção de figuras somáticas, psicológicas e sociais4. O noético é a dimensão mais inclusiva, abrangente e qualitativa-mente mais complexa, onde a existência humana acontece e deve ser localizada.

Tem sido identificada a “dificuldade de aceitação, por mui-tos profissionais de Saúde, do fato de fincar-se o êxito terapêutico no relacionamento afetivo”. Nesse cenário é explicado o sucesso, “muitas vezes maior do que o da medicina”, das “formas não tra-dicionais de medicina” e suas técnicas, por focarem mais a pessoa, seus afetos e sua integralidade “do que a mera expressão somática de sua turbulência emocional”. Atenta-se, porém, que condições materiais, econômicas e políticas dificultam a “criação e preserva-ção dessa ligação afetiva entre o profissional de Saúde e o cliente”, sendo muitas vezes “tão irreal quanto a expectativa de ‘perfeito’ bem-estar da OMS” (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 540).

É justamente no domínio político da Saúde que parece surgir o conceito de empoderamento (empowerment). Sua aplicação está atrelada a um dos principais modelos teóricos que subsidiam as po-líticas de Saúde, ou da Promoção à Saúde. Aplicado desde a década de setenta em países como Canadá, Inglaterra, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, tal modelo chega ao Brasil em mea-dos da década de 1990. Seus princípios e estratégias passam pela importância da participação social e da atuação nos determinan-tes e causas da Saúde (políticas públicas, ambientes sustentáveis e reorientação dos serviços) e pela Educação (desenvolvimento das capacidades individuais e fortalecimento de ações comunitárias) (CARVALHO; GASTALDO, 2008).

4 Frankl (2014), ao ilustrar com figuras bidimensionais, fala das dimensões biológica e psicológica. A omissão da dimensão social talvez possa ser explicada pela simples impossibilidade didática de se demonstrar visualmente uma projeção em quatro dimensões.

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São identificadas duas perspectivas complementares para se trabalhar o empoderamento. Uma delas é a “crítico-social ou so-cioambiental”. A outra, menos trabalhada, a “pós-moderna ou pós--estruturalista”. A primeira se sustenta na ideia de que os fatos do cotidiano e as formas de pensar e fazer são permeadas por relações de poder e inevitáveis inscrições ideológicas, produtos “de relações sociais e históricas que tendem a naturalizar e reproduzir desigual-dade”. Há a noção de que uma estrutura básica pode explicar os elementos: o valor da parte é sempre relativo à posição que ocupa na estrutura (CARVALHO; GASTALDO, 2008, p. 2030).

O filósofo e educador Paulo Freire aparece como um dos no-mes que alicerçam a visão crítico-social, tanto no empoderamento político-social, como no empoderamento do educando em relação ao educador. Na área da Saúde, essas faces são preservadas, porém, fala-se do empoderamento do paciente. De um lado, são requeridas condições para uma participação ativa dos usuários dos sistemas de Saúde no controle e compartilhamento de responsabilidades transformadoras dos múltiplos determinantes do processo saúde--doença: a dignidade de salário, instrução, paz, moradia, alimenta-ção, cultura e saneamento. De outro lado, fala-se de empoderamen-to na composição de novas relações entre paciente e profissionais, instituições e políticas de Saúde. Nesse último aspecto, situa-se a problemática das estratégias de Educação (dos profissionais e dos usuários dos serviços de Saúde).

A Educação em Saúde e para a Saúde passa pelo enfrenta-mento dos diferenciais de poder na relação “especialistas e não-es-pecialistas”. A Educação empoderadora atuaria na “superação de métodos que reforçam o exercício do poder-sobre-o-outro (power--over)”, via “criação de espaços dialógicos e de co-gestão”, onde se privilegia “o exercício do poder-com-o-outro (power-with)”. Busca-se uma alternativa à concepção hegemônica do profissional de Saúde como repassador de conhecimentos e de experiência e o usuário dos serviços como receptor passivo do que é transmitido. Aos indivíduos, indica-se a possibilidade de aprendizados que pos-sam capacitá-los a “viver a vida em suas distintas etapas” e “lidar com as limitações impostas” (CARVALHO; GASTALDO, 2007, p. 2030-2031).

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De acordo com as reflexões da primeira European Conferen-ce on Patient Empowerment, realizada em 2012, na Dinamarca, os pacientes empoderados são aqueles que ganham confiança e são educados em competências “para reconhecer sintomas de alerta, tomar medicamentos e decidir sobre o tratamento mais adequado para si mesmos”; pessoas que assumem certa compreensão na ges-tão de sua condição, sabendo negociar com diferentes profissionais e “encontrar seu caminho na complexidade dos sistemas de Saúde” (THE LANCET, 2012, [n.p.]).

Voltemo-nos, agora, à perspectiva pós-estruturalista. Ela identifica que o apego a uma estrutura única – como o Estado, uma classe social dominante ou uma essência econômica – impede com-preensões mais aprofundadas da multiplicidade presente nos fenô-menos da opressão, da dominação e da produção da subjetividade. Sob essa visão, o poder no “empoderamento” aparece de forma di-ferente. Não é uma coisa, um “objeto natural que alguns possuem” e que outros devem possuir para atingir certo estado idealmente benfazejo (CARVALHO; GASTALDO, 2008, p. 2034).

Michel Foucault (2004), um dos principais autores que sus-tentam essa perspectiva, ensinava da desconfiança em relação ao tema da liberação. Sem as devidas precauções, podemos ceder à ideia de “[...] uma natureza ou uma essência humana que, após um certo número de processos históricos, econômicos e sociais” teria sido “[...] mascarada, alienada ou aprisionada em mecanismos [...] de repressão” (FOUCAULT, 2004, p. 265). O problema nessa com-preensão está no fato de que bastaria ao ser humano romper essas correntes repressivas para reencontrar-se consigo mesmo, com sua natureza e origem, restaurando uma relação positiva de plenitude. A noção de liberação, em uma via ética, estaria em segundo plano em relação ao que Foucault entende por práticas de liberdade.

O que comumente se entende por “poder” é, na perspectiva foucaultiana, um estado ou uma relação de dominação. Trata-se de um bloqueio cristalizado, um exercício ilimitado de violência ou um estado de completo impedimento de reversibilidade de movi-mentos. No entanto, o poder propriamente dito – que constituiria um novo sentido possível para o empoderamento – está no plural

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das “relações de poder” naturais, inevitáveis e livres. Sob essa vi-são, estamos todos inseridos em redes de prática de poder e coerção institucionais, participando de variados “jogos de verdade” defini-dos, por exemplo, por um modelo médico.

As relações de poder só são possíveis quando há sujeitos li-vres envolvidos. É esse estado que permite organizar consensos e também resistências em torno das verdades de saber institucionais (discursos dominantes e discursos emergentes). Conforme Fou-cault (2004, p. 276-277), “nas relações de poder, há necessaria-mente possibilidade de resistência” e “se há relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado”. Tais relações ocorrem em diferentes níveis: amorosos, institucionais, se-xuais, econômicos, geracionais, familiares, pedagógicos, políticos etc. São elas todas (se são de poder e não de dominação) instáveis, reversíveis e móveis, onde uns tentam, naturalmente, dirigir ou de-terminar a conduta dos outros: “uma espécie de jogo estratégico aberto”.

Com o pós-estruturalismo, empoderar-se – uma vez que não inviabilizemos o conceito – é mais do que liberar-se. Mesmo reco-nhecendo que a liberação seja uma condição necessária (“políti-ca ou histórica para uma prática de liberdade”), o empoderamento passa a ser, sobretudo, a experiência de certo controle nas relações de poder vivenciadas como práticas de liberdade. Trata-se da cons-tituição, organização e instrumentalização de estratégias que, se-gundo Foucault, ética e ontologicamente passam pelo cuidado de si, “uma prática de si” ou “um exercício de si sobre si mesmo atra-vés do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser” (FOUCAULT, 2004, p. 265-267).

Nota-se que, diante dessas reflexões, não há um mal sem cir-cunstâncias no poder (como disse Sartre5). Nem em “um dado jogo de verdade”, onde alguém “sabendo mais do que um outro, lhe diz o que é preciso fazer, ensina-lhe, transmite-lhe um saber, comuni-ca-lhe técnicas”, nem em políticas de intervenção que, assumindo--se como práticas de controle, contribuem para a saúde das pesso-as envolvidas (FOUCAULT, 2004, p. 284). O pensamento crítico pode se voltar mais detidamente à dominação, que é, por definição, 5 “O poder é o mal” (cf. FOUCAULT, 2004).

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arbitrária e sem possibilidade de livre resistência (CARVALHO; GASTALDO, 2007, p. 2034).

3. FILOSOFIA CLÍNICA

“Aquilo que se considera violação de um direito numa sociedade, pode ser preceito óbvio e intocável noutra; aquilo que para alguns é liberdade de consciência, para outros pode ser só confusão. Na realidade, as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral, se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”

(Papa Francisco).“Essa capacidade humana de encontrar o sentido escondido por trás de cada situação singular é o que

chamamos de consciência” (Viktor Frankl).

Neste ensaio propomos a Filosofia Clínica – daqui em diante, FC – como um elemento ativo na composição de sentidos para a Saúde no século XXI. Igualmente, defendemos sua real condição de participar da fundamentação – via práticas, método e metodo-logia – de uma visão integral do ser humano (que ultrapassa as simplificações derivadas dos particionamentos social, somático e psicológico), refletindo-se em contatos mais empáticos e éticos en-tre profissionais da Saúde e população assistida.

A FC – tal qual a trabalhamos – origina-se da sistematização e técnica de intervenção filosófica elaborada pelo graduado em me-dicina e filósofo brasileiro Lúcio Packter. Nasce atrelada à área da Saúde, objetivando o enfrentamento, o cuidado, o abrandamento e o acolhimento ético das dores existenciais (tanto no campo físico quanto no psíquico). Após um período de maturação, estudos, ex-periências de aplicação e constantes readequações próprias de um trabalho individual de práxis filosófica, em 1989, na cidade de Por-to Alegre, Rio Grande do Sul, inicia-se sua difusão instrucional e os primeiros movimentos de pesquisa e investigação intersubjetivas. Um marco inicial foi a formação de duas turmas de estudantes, compostas em sua maioria por professores e recém-graduados (como era a condição do filósofo sistematizador) do curso de Filo-

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sofia da PUC-FAFIMC – Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição da Pontifícia Universidade Católica. Os tra-balhos organizaram-se em um instituto educativo fundado pelo pró-prio filósofo. Atualmente, cerca de meia centena de livros, revistas científicas, produções acadêmicas e não acadêmicas, programas de rádio, centenas de colóquios, encontros, cursos e seminários na-cionais, regionais e internacionais vinculam-se a associações, ins-titutos regionais e centros de formação espalhados em quase vinte estados do país (informação verbal)6.

O filósofo clínico forma-se para atuar com um instrumental definido. Em seus jogos de linguagem são centrais alguns conceitos para gerir a relação com as pessoas que recebem seus cuidados. Por exemplo, essas são chamadas “partilhantes”, consideradas sujeitos de partilha de trajetórias existenciais (diferente do termo “pacien-tes”, que pode gerar a ideia de exclusiva aceitação com relação ao profissional de Saúde). A relação de partilha é verificada e classi-ficada via ideia de interseção, inspirada na teoria dos conjuntos da filosofia matemática. Os tipos de interseção são classificados em positivos, negativos, indeterminados, confusos ou em transição.

Nessa relação, e sobretudo nela, o filósofo clínico considera a existência de duas verdades: uma subjetiva (referente ao que conta, literalmente, o discurso do partilhante) e outra objetiva (ou inter-subjetiva, associada às convenções sociais). Aqui são pressupostos dois nomes da tradição filosófica: Protágoras, com a proposição “[...] o ser humano é a medida de todas as coisas, da existência das coisas que são e da não existência das coisas que não são” (PLA-TÃO, 2007, p. 57) e Schopenhauer (2001, p. 9), com a noção de mundo como representação pessoal: “[...] o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe”.

A pessoa, diz-se na FC, é “uma criatura plástica cuja identidade se molda conforme sua Estrutura de Pensamento se forma e evolui” (PACKTER, 1998, p. 9). Estrutura de Pensamento, ou EP, pode ser entendida como um conceito equivalente ao que algumas tradições chamam de alma ou psykhé. Também os termos “malha intelectiva” 6 Palestra “O que é filosofia clínica”, ministrada por L. Packter na Conferência de abertura do XVI Encontro Nacional de Filosofia Clínica, em Forquilhinha, em setembro de 2014.

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e “engenharia intelectiva” são usados para expressar sua natureza funcional e energética, permitindo aproximações da FC com uma espécie de engenharia mental7. Conforme apontamentos de Carva-lho (2013, p. 22), a noção de “estrutura” em FC é diferente daquela do estruturalismo de Levy Strauss, que não consideraria o devir e a historicidade. Ela possui base fenomenológica, implicando aber-tura e possibilidade de interação entre os “campos de consciência”.

A pesquisa da EP do partilhante ocorre na observação de trinta tópicos estruturais: T1. Como o mundo parece; T2. O que acha de si mesmo; T3. Sensorial e abstrato; T4. Emoções; T5. Pré--juízos; T6. Termos agendados no intelecto; T7. Termos: universal, particular e singular; T8. Termos: unívoco e equívoco; T9. Discur-so: completo e incompleto; T10. Estruturação de raciocínio; T11. Busca; T12. Paixões dominantes; T13. Comportamento e função; T14. Espacialidade: inversão, recíproca de inversão, deslocamento curto e deslocamento longo; T15. Semiose; T16. Significado; T17. Padrão (armadilha conceitual); T18. Axiologia; T19. Singularidade existencial; T20. Epistemologia; T21. Expressividade; T22. Papel existencial; T23. Ação; T24. Hipótese; T25. Experimentação; T26. Princípios de verdade; T27. Análise da estrutura; T28. Interseções de EP; T29. Dados da matemática simbólica; T30. Autogenia.

Cada tópico possui uma definição específica e seus aprofundamentos ocorrem conforme os desenvolvimentos da me-todologia da FC, amparados no pensamento filosófico-acadêmico. Os tópicos são considerados abertos ao infinito e inter/intra/infra relacionados. A partir do T23, compreende-se o que se denomina Matemática Simbólica, ensinamentos avançados da FC, cujos con-teúdos têm sido gradualmente pesquisados e trabalhados.

As observações dos tópicos e das forças com que se mani-festam na EP do partilhante – de determinantes a nulas – ocorrem atreladas à pesquisa da historicidade. Só há clínica filosófica (na FC) e observação tópica do funcionamento da EP, a partir da co-7 Temos trabalhado tal suposição em recentes produções, onde a Filosofia Clínica poderia ser metaforicamente associada à: i) uma engenharia mental; ii) uma escritura de ensaios filosóficos existenciais; e iii) uma escritura de narrativas existenciais. No que tange ao primeiro item, baseando-nos em definições de engenharia, olhamos para ela como “prática, ciência ou arte” do pensamento adequado em “organização, design e construção” singulares, resultando em combinações mais vantajosas e eficientes em relevância, segurança, economia, durabilidade, velocidade e simplicidade.

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lheita e composição de uma narrativa histórica do partilhante. A historicidade adquire consistência, ampliação e profundidade com remissões explanatórias propostas pelo filósofo, preenchendo-a com dados divisórios e enraizamentos (ou aprofundamentos epis-temológicos). É a partir dela que se torna possível visualizar, por exemplo, quando determinados funcionamentos escrevem, exis-tencialmente, muito pouco ou de maneira superficial por tópicos como o T18. Axiologia, mas são profundos em tópicos como o T3. Sensorial e abstrato.

A historicidade e a EP precisam ser localizadas existencial-mente. Para tal, a FC dispõe dos Exames Categoriais. Todo e qual-quer movimento clínico exige do filósofo atenção às cinco catego-rias: lugar (como são as disposições internas conforme o espaço), tempo (objetivo e subjetivo), relações (com pessoas, coisas, situa-ções etc.), circunstâncias (época, cultura, disposições etc.) e assun-tos (último e imediato). No que se refere a essa última categoria, seu exame será determinante para o encaminhamento dos termos e fatos que se mostraram pertinentes e, também, para a escolha dos procedimentos clínicos adequados.

Os procedimentos clínicos são chamados de submodos, pois devem ser submetidos aos exames categoriais, coleta e composição da historicidade e análise tópica da EP. São trinta e dois tipos que, também como os tópicos, abrem-se ao infinito e são passíveis de fusão relacional. A escolha de qual usar estará ligada à presença habitual ou positiva desses procedimentos na vida do partilhan-te (quando, então, são denominados pela FC de “procedimentos informais”). São eles: S1. Em direção ao termo singular; S2. Em direção ao termo universal; S3. Em direção às sensações; S4. Em direção às ideias complexas; S5. Esquema resolutivo; S6. Em dire-ção ao desfecho; S7. Inversão; S8. Recíproca de inversão; S9. Di-visão; S10. Argumentação derivada; S11. Atalho; S12. Busca; S13. Deslocamento curto; S14. Deslocamento longo; S15. Adição; S16. Roteirizar; S17. Percepcionar; S18. Esteticidade (bruta); S19. Es-teticidade seletiva; S20. Tradução; S21. Informação dirigida; S22. Vice-conceito; S23. Intuição; S24. Retroação; S25. Intencionalida-de dirigida; S26. Axiologia; S27. Autogenia; S28. Epistemologia;

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S29. Reconstrução; S30. Análise indireta: Ação, hipótese e experi-mentação; S31. Expressividade; S32. Princípios de verdade.

Aprende o filósofo clínico que, antes da opção pelos procedi-mentos clínicos, deve operar “agendamentos mínimos”. Perguntas e afirmações do tipo “o que te entristece”, “por que acha isso”, “como era sua relação com seus pais”, entre outras, direcionam ou “agendam” a EP para determinados tópicos que podem ter muito pouco a ver com ela ou com o assunto último. Nos exemplos, res-pectivamente, temos ênfase direta em: T4. Emoções, T10. Estru-turação de raciocínio, T1. Como o mundo parece, e outros. Aqui incide também o cuidado com clichês e a priori terapêuticos. Bus-car ajustes com determinadas conclusões de teorias científicas ou atribuir centralidade ao amor, destacar a importância do equilíbrio, da harmonia, da felicidade e do autoconhecimento são movimentos que exigem atenção do filósofo clínico. As crenças do filósofo de-vem ser reconsideradas na interseção com o partilhante e no amparo analítico-aproximativo das ferramentas metodológicas utilizadas. Movimentar elementos segundo universalismos pode – conforme entende a FC – gerar encobrimentos de questões importantes, erros éticos e graves sequelas ou consequências existenciais.

Há um respeito evidente pela singularidade da pessoa huma-na. Conhecimentos particulares e universais doutrinários cedem espaço à prática do ouvir, do acompanhamento, do discernimento, da aproximação e da integração. Enquanto conduta, a FC pode ser rotulada de relativista, porém, como esclareceu Lúcio Packter, ela é assim apenas em partes. Para outra de suas partes cabe o rótulo de subjetivista e, na maioria, objetivista. Tais afirmações nos fazem reconhecer certa semelhança com a ideia de unicidade do sentido e da essência de cada singularidade, conforme escrevia Viktor Frankl sobre as bases de outra técnica e sistema, a Logoterapia. Eis uma passagem que bem ilustra essa observação:

Mas sentidos e valores são, realmente, tão relativos e sub-jetivos quanto se faz crer? Em certo sentido, sim, mas de um modo diferente dos concebidos pelo relativismo e pelo subjetivismo. O sentido é relativo na medida em que se re-laciona a uma pessoa específica, que está enredada numa situação específica. Pode-se dizer que o sentido difere, de

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homem para homem e, depois, de dia para dia e, de fato, até de hora para hora.

[...] eu prefiro falar da unicidade – mais do que da relativi-dade – do sentido. Esse caráter de algo único é uma carac-terística não só de uma situação, mas da própria vida como um todo, já que esta se apresenta como uma sequência de situações únicas. Desse modo, o homem é único tanto em termos de essência como de existência.

Em última análise, ninguém pode ser substituído, exata-mente, em virtude desse caráter de unicidade da essência de cada homem. A vida de cada ser humano é absoluta-mente singular: ninguém pode repeti-la (FRANKL, 2011, p. 72).

Na FC não há o conceito de doença ou patologia. Tal opção foi, nos primórdios da área, justificada com base nas obras Elogio da loucura, de Erasmo, e História da loucura, de Foucault. Não havendo doença, não há cura. Nesse sentido, a associação da área com a terapêutica envolve extensões de sentido do termo grego the-rapeía (θεραπεíα), como cuidado, respeito pelo paciente, solicitude e tratamento. A dimensão de consciência da alteridade da FC não a relaciona com a promoção do bem-estar, felicidade ou estados análogos, mas à busca de “[...] melhores acomodações existenciais subjetivas à pessoa” (PACKTER, [s.d.], p. 21), ao aprimoramento da composição narrativa existencial da alteridade ética e ao chama-do exercício existencial. Aqui reside o objetivo declarado da FC.

Bertoche (informação verbal)8 explora o viés do exercício existencial para identificar o lugar da FC na tradição filosófica. Apoiando-se na obra do filósofo francês Pierre Hadot, ele a colo-ca na “retomada do pensamento filosófico helênico”. Estaria a FC, fundamentalmente, na recuperação de uma concepção da Filosofia diferente de um “conjunto de conhecimentos teóricos” (“como ela foi vista desde o século VI até o século XX”) e semelhante à “ela-boração teórica que visa a proporcionar uma vida melhor a quem a ela se dedica ou dela compartilha”. Tais dedicação e partilha envol-veriam práticas helênicas que Hadot descobre sob o nome de “exer-cícios espirituais”. Exercícios que, “por meio do direcionamento do 8 Palestra “Ser terapeuta e ser singular”, ministrada por G. Bertoche no IV Colóquio Nacional da Filosofia Clínica, em Porto Alegre, em maio de 2015.

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discurso, visavam a mudar todo o ser da pessoa: intelectualmente, emocionalmente, no nível das representações”.

Diante de questionamentos sobre a falta de fundamentação teórica e um método filosófico específico da FC, Packter (1998) responde que os métodos são o historicista, o fenomenológico e o epistemológico. Quanto às fundamentações, estariam no historicismo, logicismo formal, empirismo inglês, analítica da linguagem, epistemologia e na matemática simbólica. Sobre inda-gações acerca dos principais autores da tradição trabalhados com a FC, recentes cursos conduzidos pelo filósofo9 (“Filósofos e Filo-sofia Clínica: partes I, II e III” e “Os grandes terapeutas e a Filo-sofia Clínica”) apontam para os seguintes nomes: Sócrates (a Ética e o Saber); Platão (teoria das ideias e realidade: o Ser, o Bem); Aristóteles (Metafísica, Lógica, Física, Estética, Ética e Política); filósofos estoicos e epicuristas; Agostinho (Deus, alma, homem); Galileu Galilei e Isaac Newton (ciência como saber apriorístico); Descartes (a razão e o ser); Spinoza (metafísica e Ética); Leibniz (percepção e apercepção em conhecimento); Hume (sensualismo e o ceticismo); Kant (crítica, razão e conhecimento); Hegel (dialéti-ca, lógica e espírito); Schopenhauer (mundo como vontade e repre-sentação); Comte (história, ciência, filosofia); Nietzsche (moral); Brentano (psicologia e Ética); Dilthey (filosofia e vida); Bergson (espaço, tempo, intuição); William James (pragmatismo); Bertrand Russell (pontes entre linguística e matemática; os novos tempos); Husserl (fenomenologia); Heidegger (ontologia), Levinas (alterida-de), Simon Blackburn (estudos em quase-realismo); Rudolf Carnap (empirismo básico e os instrumentos lógicos a partir de Frege e Russell); Noam Chomsky (gramática filosófica); Donald Davidson (monismo anômalo); Daniel Dennett (postura intencional); Jacques Derrida (desconstrução); Lévi-Strauss (relações); Saussure (valor e linguística); Foucault (dimensão histórica das categorias sociais); Gadamer (teoria da interpretação); Habermas (natureza da comuni-cação, da autoconsciência, o papel causal na ação social); Jaegwon Kim (elementos psicofísicos e propriedades das relações); Tho-mas Kuhn (revoluções científicas); Merleau-Ponty (corporeidade e fenomenologia); Karl Popper (a experiência e o cientificismo em

9 Disponível em: <http://www.institutopackter.com.br>. Acesso em: 25 maio 2016.

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questão), Hilary Putnam (realismo interno); Quine (lógica mate-mática); Paul Ricoeur (verdade); Richard Rorty (dialética das con-versações); Roger Scruton (arquitetura e estética); John Searle (a mente intencional); Peter Singer (moral e ética); Alan Turing (mate-mática e pensamento); Ludwig Wittgenstein (linguagem); Skinner (condicionamento operante); Freud (psykhe humana); Adler (sin-gularidade e comportamento); Rorschach (elementos introversivos e extratensivos); Wertheimer, Koffka e Kohler (a Gestalt); Piaget (estágios de desenvolvimento); Carl Rogers (o conhecimento via percepção pessoal); Maslow (a hierarquia de necessidades); Kurt Lewin (a teoria de campo de Einstein na psicologia); Jung (questão e paradoxos dos arquétipos); Karen Horney (neurose como função e sintoma); Erich Fromm (fuga da liberdade); e Lev Vygotsky (o fa-tor cultural). Apesar da limitada referência, considera-se essa lista aberta e interminável.

Alguns acadêmicos, como Carvalho (2013; 2014), autor do livro Filosofia Clínica: estudos de fundamentação, negam à FC um papel de Escola Filosófica, de metodologia filosófica e de Filoso-fia. Definida como “técnica de ajuda pessoal” (CARVALHO, 2013, p. 19 e p.100), “[...] uma forma de aconselhamento psicológico” (CARVALHO, 2013, p.19) ou “[...] técnica de ajuda psicológica” (CARVALHO, 2013, p.100), é reduzida a um elemento do “[...] pensamento contemporâneo que poderíamos resumir como escola fenomenológica e existencial” (CARVALHO, 2013, p. 21). A FC, tendo como fundamento básico a Fenomenologia – método inse-rido no “[...] movimento amplo de justificação da Psicologia, en-quanto ciência nova que nasceu na segunda metade do século XIX” (CARVALHO, 2014, p. 84) – seria uma participante:

[...] do mesmo movimento que deu origem à Gestalt te-rapia, ou a psiquiatria existencial conhecida por Dasei-nanalyse de M. Boss ou L. Binswanger, a logoterapia de Viktor Frankl, a terapia centrada na pessoa de Carl Rogers e tantas outras, que se reúnem sob o nome genérico e nem sempre muito preciso de psicologia existencial (CARVA-LHO, 2013, p. 21).

Tenho assumido, entretanto, diante de nossa prática de com-posição da área no Brasil e no Mundo, que é possível considerá-la

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uma Escola (com princípios doutrinais, mestres, ensinamentos e dis-cípulos) e uma Filosofia (processo criador de conceitos) com méto-do e metodologia originais. Por método, entendo a estrada pela qual transita o intelecto no enfrentamento das factualidades existenciais em busca da Verdade. São os tipos de pavimentação, as curvas, os atalhos; a técnica, o instrumento, o conjunto técnico-instrumental de conceitos principais à disposição do caminhante (historicidade, categorias, tópicos, partilha, EP, submodos etc.). Por metodologia, a produção discursiva colaborativa, lógica e clara, nascida do cami-nhar com um ou mais métodos. É a caminhada propriamente dita, da qual resultam as produções textuais da ciência acadêmica. A FC caminha, metodologicamente, ao expressar-se na troca de informa-ções entre filósofos clínicos, partilhantes, praticantes, estudiosos e pesquisadores. Questões de perspectiva e proposição.

4. ACONSELHAMENTO FILOSÓFICO E FILOSOFIA CLÍNICA

“O que importa, realmente, nunca é a técnica por si mesma, mas o sentido, a intenção que a guia” (Viktor

Frankl).

O alemão Gerd Achenbach é considerado o fundador da Fi-losofia Aplicada, ou do Philosophical counseling. Em 1981, inicia suas consultas de Filosofia. Tal afirmação se reveste de polêmica. Leonard Nelson, estudioso do chamado método socrático, faleci-do em 1927, poderia aparecer em alguma lista como precursor do aconselhamento (NELSON, 1929, [n.p.]). Em 1967, John Van Veen abria na Holanda consultas com incursões claramente filosóficas. Em 1974, Paul Sharkey trabalhava como orientador filosófico (sob a categoria de “filósofo residente”) em um hospital na Filadélfia. Na mesma década, o professor de filosofia Michael Russell abria ses-sões de consulta filosófica inspirado pela experiência com alunos que o procuravam para conversar sobre questões pessoais (BAR-RIENTOS RASTROJO, 2014, p. 15). Seymon Hersh, em 1980, es-crevia um primeiro e pequeno artigo sobre o tema na revista ameri-cana The Humanist. Em 1994, ocorria o 1º Congresso Internacional

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de Aconselhamento Filosófico coordenado pelos norte-americanos Ran Lahav e Lou Marinoff (JANA, 2014, p. 11-12).

Essa recente história remete ao movimento que tem sido co-nhecido como Aconselhamento Filosófico (daqui em diante AF), vinculado a movimentos mais amplos da Filosofia Prática e Filo-sofia Aplicada. Filósofos clínicos e pesquisadores da FC têm inte-ragido e conversado com alguns de seus expoentes, pensando for-mas de uni-las em práticas profissionais, apontando semelhanças e diferenças. A principal proximidade é, ao meu ver, a pesquisa e a formação prática do filósofo (clínico ou consultor/conselheiro) no pensamento filosófico e nas competências filosóficas e de consulta.

Em ambas as áreas é valioso que o profissional desempenhe um pensamento filosoficamente ativo, que apresente graus satis-fatórios de análise conceitual, distinção entre redes conceituais e sistemas filosóficos, criticidade, exame de pressupostos, dialogi-cidade, utopia, compreensão fenomenológica, criatividade e pro-blematização. Igualmente, quanto às competências de consulta: sa-ber receber; saber escutar e perguntar quando não entender; saber atentar-se à formalidade do que diz o consultante, sem considerar motivos de análise psicológica, juízo moral ou pessoal; saber prio-rizar o assunto relevante; saber demonstrar compreensão resumida das palavras do consultante; saber sintetizar as questões essenciais; saber apoiar o consultante numa exploração de seus problemas; sa-ber quando realizar perguntas abertas e fechadas; saber relacionar aspectos do discurso do consultante; saber explicitar contradições quando necessário; saber demonstrar atitude de interesse e recepti-vidade, motivando o consultante; saber demonstrar os objetivos do trabalho e explicitar os esquemas realizados; saber utilizar-se do silêncio (DIAS, 2010, p. 259-261).

Depreende-se dos filósofos e conselheiros filosóficos por-tugueses Jorge Humberto Dias (2010) e Nuno Paulo Tavares (A CONSULTA FILOSÓFICA, [s.d.]) que o foco de ação do AF é a “necessidade filosófica”, geradora de problemas que não encontram respostas ou se deparam com um elevado número de respostas in-suficientes e pouco satisfatórias. Exemplos: dilemas éticos (pro-fissionais ou de moralidade privada); dificuldades em relações

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interpessoais (familiares, profissionais, amorosas); dúvidas exis-tenciais; questões sobre o sentido e o valor da vida; paralisia face à necessidade de decisões; busca de definição ou redefinição de projeto de vida; adaptação a novas circunstâncias; crenças indeter-minadas ou confusas; experiências de perda e de luto; proximidade com doença ou sofrimento de entes queridos; preocupações ineren-tes à Educação dos filhos; escolha de percurso pessoal, profissional ou acadêmico; questões de identidade pessoal; estados de angústia, tristeza e desmotivação.

O AF também é definido pela via negativa: não é medicina, psicologia, psicoterapia e nem prática clínica (com sintomas, diag-nósticos, tratamentos e cura). Não lhe cabem funções que possam substituir tratamentos médicos ou psicoterapêuticos, tratar doenças, perturbações psíquicas ou problemas psicológicos (A CONSULTA FILOSÓFICA, [s.d.]). Nessa mesma linha, Brénifier (2016, [n.p.]) ressalta em sua prática a “violência do pensamento”, dizendo que, “ao contrário de uma consulta de psicologia”, o foco é “um trabalho de razão”. Diz tratar-se do pensamento ao invés da narrativa e do sentimento.

O AF aposta na ideia de que sua base é a promoção do pen-samento filosófico. Tal pensamento acaba por se identificar com a busca de satisfação da necessidade filosófica. Essa busca é tradu-zida por um determinado tipo de prática racional “[...] empenhada em formas organizadas, sérias, intensas e profundas de reflexão” (DIAS, 2010, p. 158). Diante do problema que se mostra significa-tivo, são utilizados recursos conceituais e lógico-argumentativos, tentando promover no consultante a atualidade de “uma aventu-ra conceitual” (DIAS, 2010, p. 160). Esse tipo de consultoria se presta, portanto, ao que se pode chamar de orientação racional e organização do pensamento do consultante. Haverá um apoio téc-nico-racional-conceitual objetivando, inclusive, desvelar erros de pensamento e más formas de pensar. Há ainda uma noção de que o sentido dessa busca aponte para a felicidade ou para níveis de ver-dade cada vez mais profundos (DIAS, 2010).

O trabalho do consultor filosófico também aparece como um laboratório onde serão testados conceitos, métodos, hipóteses re-

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flexivas, crenças e valores. Tais testes são de responsabilidade do profissional, autorizado por seu cliente a propor questionamentos, descobertas, aprendizagens e caminhos de conhecimento de si com o outro. Tal autorização merece justificativa nas competências em que o consultor se exercita.

Se a base do AF é a promoção do pensar filosófico, não se pode dizer o mesmo da FC. Para esta, promover o pensamento do tipo filosófico no partilhante é utilizar submodos específicos como S4. Em direção às ideias complexas, S10. Argumentação deriva-da, S21. Informação dirigida etc. Tal opção, ainda, só poderia ser tomada depois de verificada a predominância de tópicos como T3. Abstrato, T10. Estruturação de raciocínio, T13. Comportamento e Função, dentre outros, e uma real demanda de exercício existencial desse tipo, baseando-se na historicidade, EP, procedimentos infor-mais e exames das categorias. A Filosofia em FC mais diz respeito ao filósofo cultivar e exercitar do que ao partilhante.

Acreditamos que tanto o AF como a FC possam servir a tra-balhos na área da Saúde. No entanto, parece-nos que o escopo de ação para a promoção de vidas saudáveis na FC é um tanto mais amplo, uma vez que não depende dos funcionamentos singulares dos partilhantes serem ou não afeitos ao pensamento próprio da Filosofia.

5. SAÚDE E EDUCAÇÃO

“Os verdadeiros defensores da doutrina não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o homem; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de

Deus e do seu perdão” (Papa Francisco).“O homem intelectual (psychikós) não compreende as coisas que são do espírito (pnêuma, sinônimo de lógos), que lhe parecem estultície; nem as pode compreender, porque as coisas do espírito devem ser compreendidas

espiritualmente” (1Cor 2:14).

Iniciamos este ensaio com a apresentação de uma crítica à definição de Saúde da OMS. As noções levantadas da singulari-zação do bem-estar, da realidade de uma integralidade unitária do

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ser humano e de uma tendência à maior consciência da liberdade e do controle (empoderamento) dos processos de Saúde pelo pa-ciente lembram os movimentos da FC no sentido da importância e do respeito às demandas existenciais singulares do partilhante. Diante desse cenário reflexivo, perguntamos se seria possível uma definição de Saúde que pudesse estar presente, senão na relativida-de e subjetividade próprias de uma interseção única entre filósofo clínico e partilhante, na objetividade que é dito sustentar a “maior parte” da Filosofia Clínica. Sendo possível, seria factível pensar uma Educação ou processo educativo a ela atrelada?

Segre e Ferraz (1997, p. 542) concluem aquele seu trabalho com uma pergunta sobre a definição de Saúde: poderíamos pensá-la como “um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade”? Diante de uma investigação mais detalhada dos termos, a resposta me parece afirmativa.

Harmonia, em analogias com a música, pode ser traduzida como uma sucessão ou cadência de elementos da existência da qual participa a EP do sujeito em obediência a determinadas leis identificáveis. Seja com dissonâncias “jazzísticas”, padrões “mais comportados”, tons maiores, menores, mais ou menos tensos, se-gundo a definição de Saúde, há uma harmonia estabelecida entre dois elementos. De um lado, o sujeito, a pessoa ou o partilhante. De outro, sua própria realidade ou o mundo como representação do partilhante, em múltiplas localizações existenciais. Se há Saúde quando o partilhante e seu mundo estão em razoável harmonia, o que é ser razoável? Trata-se de uma harmonia assim identificada pela Razão. Mas, quais são os critérios que a sustentam? O que entender por Razão?

O filósofo da religião e expositor de ideias sobre a afinidade entre matemática, metafísica, mística e medicina, o jesuíta Huberto Rohden (1976, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2009, 2013), chama atenção para a raridade da devida distinção entre intelecto e ra-zão. Dizia ele que, no uso comum, “as palavras razão e racional e o termo ‘lógico’ [...] se referem, quase sempre, à atividade do intelecto”. Um intelectualista analítico ou alguém que pensa logi-camente é tido como guiado “[...] pelos ditames da inteligência”.

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Para Rohden, razão vincula-se “[...] ao que os gregos chamavam ‘Lógos’ (diferenciando-a do ‘nóos’, ou intelecto) e que os romanos designavam pelo termo ‘ratio’”, uma “[...] faculdade ultra-intelec-tiva” da natureza humana (ROHDEN, 2009, p. 31, grifos do autor). Entendia, ainda, o intelecto como “um prelúdio necessário” para a razão (ROHDEN, 2009, p. 33).

De fato, não se trata de duas faculdades separadas, como à primeira vista parece; trata-se duma única faculdade, a qual, quan-do imperfeitamente realizada, se chama intelecto ou inteligência e, quando em plena maturação, se chama razão ou logos. Semente e planta são essencialmente a mesma coisa, embora existencialmente diferentes (ROHDEN, 2009, p. 33).

Apoiando-se na análise comparada de textos sacros e filosó-ficos em diversas culturas, Rohden densifica o conceito através de sua teoria dos três níveis ou planos do universo existencial. Todos os níveis, também chamados “planos de consciência”, podem ser des-critos e observados no “fenômeno ‘homem”. O plano inconsciente (ou subconsciente) refere-se à natureza infra-hominal (“harmonia mecânica, automática, infinita”) e se liga aos sentidos (ROHDEN, 2009, p. 55). Trata-se do “homem senso-consciente” (ROHDEN, 2009, p. 80, 81 e 83), “homem pré-histórico senso-consciente” (ROHDEN, 2009, p. 84), “homem-Maya” (ROHDEN, 2009, p. 81, p. 82, p. 84 e p. 85), “homem animal” (ROHDEN, 2009, p. 80), “infra-homem” (ROHDEN, 2009, p. 26 e p.80), “infra-homem neu-tro do Éden” (ROHDEN, 2009, p. 26). O plano semiconsciente é tido como “a zona penumbral” (ROHDEN, 2009, p. 56 e p. 57), cujo predomínio cabe ao intelecto. Fala-se aqui do “homem ego--consciente” (ROHDEN, 2009, p. 26, p. 45, p. 80, p. 81, p. 82, p. 83 e p.125), “homem histórico ego-consciente” (ROHDEN, 2009, p.84), “homem-Aham” (ROHDEN, 2009, p. 81, p. 82, p. 84 e p. 85), “homem hominal” (ROHDEN, 2009, p. 80), homem “no pla-no da Serpente” (ROHDEN, 2009, p. 79). O plano pleniconscien-te exige o exercício do logos, da “faculdade intuitiva da Razão” (ROHDEN, 2008b, p. 32). Trata-se do “homem cosmo-consciente” (ROHDEN, 2009, p. 45, p. 80, p. 81 e p. 83), “homem-Atman” (ROHDEN, 2009, p. 81, p. 82, p. 84 e p. 85), “homem divinal” (ROHDEN, 2009, p. 80), “supra-homem” (ROHDEN, 2009, p. 80),

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habitante do “novo Éden” (ROHDEN, 2009, p. 80), homem “no plano do Vencedor da Serpente” (ROHDEN, 2009, p. 79).

Se ao intelecto baseado nos sentidos cabe conhecer causas e efeitos múltiplos, à razão cabe intuir ou perceber a “causa única” (ROHDEN, 2009, p. 30, p. 31 e p. 55). Para compreender essa uni-cidade da causa, deve-se remeter à cosmologia proposta por Roh-den. Segundo ela, o termo que designa com maior precisão o “ca-ráter” da palavra grega kósmos (beleza) e sua correspondente latina mundus (pureza) é Universo. Suas letras compõem-se do “uni” ou do “uno” – que indica a essência única, real e infinita – e do “(di)verso” – que aponta para a pluralidade da existência de fatos e fini-tudes (ROHDEN, 2009, p. 35).

Se há identificação racional, há intuição de uma causa única, do Uno do Universo. Sendo Verso e Uno inseparáveis no Universo, a noção ou intuição do Uno não é algo transcendente (separado dos diversos), nem imanente (identificado com a soma dos diversos). Trata-se de uma relação transcendente com imanência ou imanente com transcendência, a unidade na diversidade. Uma compreensão próxima das ideias de Viktor Frankl10 sobre o ser humano enquanto “unidade, apesar da diversidade” e da consciência do sentido em cada situação singular.

Na era do vácuo existencial [...] parece que o papel da Edu-cação, mais do que transmitir tradições e conhecimentos, deveria ser o de refinar a capacidade humana de encontrar sentidos únicos. [...] deve, sim, encorajar e desenvolver a capacidade individual da tomada de decisões autênticas e independentes. Numa era em que os Dez Mandamentos parecem ter perdido sua validade incondicional, o ser hu-mano tem de aprender, mais do que nunca, a ouvir os dez mil mandamentos relacionados às dez mil situações sin-gulares nas quais sua vida consiste. Quanto a tais manda-mentos, o ser humano deve reportar-se à sua consciência, confiando a ela seu papel de guia (FRANKL, 2011, p. 84).

É sob esse espectro que propomos um pensamento possível para a Educação vinculada à ideia de Saúde como harmonia razoá-vel. Bem mais do que um “processo de doutrinação que mescla 10 Além dos escritos onde apresenta vínculo e conhecimento da Logoterapia de Viktor Frankl, em entrevista à Xênia Bier, Rohden diz possuir as “obras completas de Frankl sobre Logoterapia” (ROHDEN, 2009; 1976).

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princípios de uma teoria mecanicista do ser humano e uma filo-sofia de vida relativista”, a Educação para a vida saudável deve, primordialmente, permitir ao ser humano “meios para encontrar o sentido”. Acreditamos que estes tenham relação com os exercícios existenciais de que fala a FC (FRANKL, 2011, p.108).

Rohden (1976, [n.p.]), ao falar sobre o tema da Logoterapia, dizia sobre um “viver de acordo ao que nós somos”. Em algumas de suas obras, aparece nítida a relação dessa ideia com Educação11: uma atividade, segundo ele, “eminentemente individual” ou “ra-dicada no indivíduo”, cujo vínculo social está naquilo que dela se propaga, por indução, na sociedade. A rigor, para ele, Educação não é instrução, é autoeducação da consciência, processo conceituado como autoconhecimento ou autorrealização individual. Instrução – normalmente confundida com Educação, assim como se misturam os termos razão e inteligência – é atividade eminentemente social, atrelada a ministérios e políticas públicas: da alçada da inteligência e da formação do erudito, que possui domínio de certos conheci-mentos técnicos. Já a Educação forma o sábio harmoniosamente saudável.

6. LINHAS SUSPENSAS

“Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. [...] exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto”

(Agostinho da Silva).

11 Rohden possui duas obras de destaque sobre o tema da Educação: “Novos rumos para a Educação” (ROHDEN, 2005b), originada de uma série de conferências sobre a proposta de uma nova forma de democracia – a cosmocracia – realizadas em 1958 e 1959 no auditório do Ministério da Educação no Rio de Janeiro; e “Educação do Homem Integral” (ROHDEN, 2005a), escrita sob a motivação da promulgação do Decreto-lei no 869, de 1969, que pretendeu estabelecer uma base filosófica para a Educação.

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Ainda não investiguei as relações entre a Saúde conforme va-mos conceituando e as possíveis definições que aparecem atreladas à proposta da chamada Cosmoterapia, de Huberto Rohden. A Saúde é ali um atributo “da alma do Universo” (ROHDEN, 2009, p. 22, p. 26, p. 38, p. 63, p. 70, p. 83, p. 116 e p.117), do “Uno da Essência Infinita” (ROHDEN, 2009, p. 24, p. 37 e p. 111), da “Fonte Infi-nita” (ROHDEN, 2009, p. 25, p. 27, p. 56, p. 84, p. 100 e p. 116); uma realidade onipresente cuja “presença objetiva [...] é um fato permanente e universal” (ROHDEN, 2009, p. 40); parte integrante da natureza “inconscientemente cósmica”, “quer fora quer dentro do homem” (ROHDEN, 2009, p. 26-27); o “real positivo”, que atua sobre o “factual negativo da doença” (ROHDEN, 2009, p. 50).

Rohden acreditava que o homem-ego, ou o ser humano, por viver, predominantemente, no plano semiconsciente do intelecto analítico, vive uma ilusão central: “eu faço vida, Saúde e felici-dade” (ROHDEN, 2009, p. 26). Essa ilusão, fruto das escolhas do livre arbítrio humano, seria separatista e obstrutora dos canais que unem ser humano e Universo. A egoidade não é fonte da Saúde. Se há necessidade de curas, trata-se de nossa condição existencial, da “zona das existências múltiplas”. Dizia o filósofo que o ser humano deve aprender a evocar (chamar de dentro para fora e não de fora para dentro) a Saúde que é presente em todos os corpos do Universo, sem exceção. Deve experimentar que a realidade existencial e polarizada do Verso se vincula ao termo latino vértere, “aquilo que foi ‘vertido’, derramado pelo centro da Essência rumo às periferias das Existências” (ROHDEN, 2009, p. 36). O ser ho-minal, no plano do ego, está “livre de alguma coisa, mas sem saber para quê” (ROHDEN, 2009, p. 38).

A FC não afirma que o autoconhecimento, a prática da li-berdade ou mesmo o encontro do sentido sejam um caminho ideal universal. O singular real estará sempre à frente, provando que, em alguns casos, o que se chama autoconhecimento, harmonia ou equilíbrio podem levar a sofrimentos arbitrários dos mais diversos. Assim também acontece com as propostas de definições para Saú-de e Educação, conforme localizações existenciais diversas. Apesar dessa compreensão, vamos reparando que essa optada relatividade e subjetividade do discurso – anterior às interseções únicas entre

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filósofos clínicos e partilhantes – não fazem parte da objetivida-de que cabe ao profissional da FC. A ele, em sua práxis ética de cuidado singular, cabe sustentar alguma objetividade filosófica de verdade universal.

Temos certo que estudos, críticas e debates vão seguir às re-flexões aqui verbalizadas. Que, sobretudo, adquiram força para ilu-minar práticas e trabalhos vivos de serviço ao próximo.

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