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1 O MÉTODO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO, SEGUNDO ENRIQUE DUSSEL Prof. Donato de Oliveira Sem dúvida alguma, Enrique Dussel está entre os mais importantes pensadores do nosso tempo. Nele se aliam de forma brilhante o rigor teórico e a paixão política, típica dos grandes pensadores. Sua obra mais recente, Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão, publicada no México em 1998 e traduzida no Brasil, pela editora Vozes, em 2000, constitui o mais importante esforço de crítica da tradição filosófica ocidental. Trata-se de uma obra que propõe um discurso ético mais abrangente, com a pretensão de fazer a crítica do ´sistema-mundo´ globalizado, a partir do pressuposto de que essa totalidade mundo denominada ´globalização´ ao mesmo tempo que constrói sua identidade — as revoluções do capital tecnológico e do mercado financeiro no sentido do predomínio do capital fictício (como via Marx) — produz também o seu `outro´, ou seja, a exclusão material das grandes maiorias da humanidade, agora denominadas `as vítimas do sistema-mundo´. Segundo as palavras de Dussel, Esta Ética deseja explicar essa dialética contraditória, construindo categorias e o discurso crítico que permitam pensar filosoficamente este sistema perfomativo auto- referente que destrói, nega e empobrece a tantos neste final do século XX. A morte das maiorias exige uma ética da vida, e seus sofrimentos nos levam a pensar e a justificar a sua necessária libertação das cadeias que as prendem.

Filosofia Da Libertacao - Enrique Dussel

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O MÉTODO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO, SEGUNDO

ENRIQUE DUSSEL

Prof. Donato de Oliveira

Sem dúvida alguma, Enrique Dussel está entre os mais importantes

pensadores do nosso tempo. Nele se aliam de forma brilhante o rigor teórico e a paixão

política, típica dos grandes pensadores. Sua obra mais recente, Ética da Libertação: na

idade da globalização e da exclusão, publicada no México em 1998 e traduzida no Brasil,

pela editora Vozes, em 2000, constitui o mais importante esforço de crítica da tradição

filosófica ocidental. Trata-se de uma obra que propõe um discurso ético mais abrangente,

com a pretensão de fazer a crítica do ´sistema-mundo´ globalizado, a partir do pressuposto

de que essa totalidade mundo denominada ´globalização´ ao mesmo tempo que constrói

sua identidade — as revoluções do capital tecnológico e do mercado financeiro no sentido

do predomínio do capital fictício (como via Marx) — produz também o seu `outro´, ou seja,

a exclusão material das grandes maiorias da humanidade, agora denominadas `as vítimas do

sistema-mundo´. Segundo as palavras de Dussel,

Esta Ética deseja explicar essa dialética contraditória, construindo categorias e o

discurso crítico que permitam pensar filosoficamente este sistema perfomativo auto-

referente que destrói, nega e empobrece a tantos neste final do século XX. A morte

das maiorias exige uma ética da vida, e seus sofrimentos nos levam a pensar e a

justificar a sua necessária libertação das cadeias que as prendem.

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O tema da Ética da Libertação no pensamento de Enrique Dussel é o mesmo que o

da Filosofia da Libertação. Apresenta-se como um discurso que é construído de modo

abrangente, ao mesmo tempo que interpretante de particularidades. Um dos temas

importantes na filosofia de Dussel é o da compreensão do lugar da América Latina na

História mundial.

O tema da particularidade latinoamericana em confronto com a totalidade cultural

do Ocidente, européia ou europeizada, norteou Dussel em suas obras até esse início de séc.

XXI, influindo de modo crucial em seu projeto temático e metodológico. A filosofia da

libertação é, para Dussel, inicialmente, latinoamericana que, agora, tem maior abrangência

geo-política e conceitual – propõe-se intepretar a ética das vítimas do capital em sua época

planetária.

Nossa exposição a seguir, se deterá no projeto de uma filosofia da libertação

latinoamericana proposto por Dussel, seus pressupostos e seu método. Cremos que a quase

totalidade de suas obras tratam desse tema. Será a partir da particularidade latinoamericana

que sua filosofia adquirirá abrangência.

1 - A América Latina e a Filosofia

Nas seguintes obras de Dussel, Para uma Ética da Liberação Latinoamericana (5

volumes), Filosofia da Libertação, Ética Comunitária, Método para uma Filosofia da

Libertação, e Oito Ensaios Sobre Cultura Latinoamericana, apresentam-se duas tarefas

importantes:

A primeira, será interpretar a história e as filosofias européias a partir da história e

das culturas latinoamericanas. O pressuposto dessa interpretação será a relação de conquista

violenta e de domínio colonial imposto aos latinoamericanos, que resulta numa relação

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antagônica de opressor-oprimido, ser e não-ser. Segundo Dussel, a Europa, lugar

geopolítico e cultural, desde o século XVI, mantém uma relação de domínio político-

econômico e de segregação sócio-cultural sobre a América Latina, também lugar

geopolítico e cultural, impossível de ser mantida caso a América Latina compreenda seu

próprio ser, seu poder geopolítico e suas riquezas espiritual e material (hoje relegadas à

pobreza e ocultas sob ideologias conservadoras colonialistas).

O método da Filosofia da Libertação deverá oferecer os instrumentos reflexivos para

a construção da crítica às cadeias que há séculos dominam os laninoamericanos, travestidas

de belas ciências, filosofias profundas e tecnologias avançadas. Será a denuncia do caráter

fetichista e fetichizante dessas sabedorias elaboradas em outros contextos e a serviço dos

projetos de violência colonial e opressora, perante as quais a maioria dos latinoamericanos é

considerada ignorante.

A segunda tarefa de Dussel consistiu, então, na elaboração de categorias filosóficas

capazes de permitir aos homens e às mulheres latinoamericanas se auto-compreenderem,

através da análise do núcleos centrais das culturas humanas: a erótica, a pedagógica, a

política, a econômica, as ciências e as religiões.

O ponto de partida do método da Filosofia da Libertação é o reconhecimento de um

ethos cultural latinoamericano (sistema de valores pensados e vividos; os valores presentes

nos estilos de vida práticos, nos hábitos e nos costumes), constituído pôr heranças históricas

de elementos das culturas indígenas e negras, das culturas árabes-semitas, das culturas indo-

européias e da cultura da cristandade colonial européia. Trata-se, para Dussel, de filosofar

sobre esse ethos, nele e a partir dele; de ser capaz de, vivendo e conhecendo-o, re-conhecê-

lo e nele reconhecer a possibilidade de formulação de um discurso original e crítico.

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Ao partir do ethos dos povos latinoamericanos, o filósofo compreende seus valores e

se compromete com o resgate da vida dos oprimidos. A essa filosofia importa compreender

os valores, a religiosidade e a sabedoria dos distintos povos que tecem nosso ser afro-

latinoamericano. Apesar de os europeus terem dominado esse continente pelas armas e pela

imposição dos elementos de sua cultura, trata-se de reconhecer que esse domínio não se

realizou de modo abasoluto. Na Améria Latina, apesar do predomínio generalizado de

elementos da cultura européia, sobrevive, conservado e sempre reinventado o ethos das

maiorias oprimidas que marcaram a nossa cor e o nosso sangue.

Para cumprir seu projeto, a Filosofia da Libertação deve, então, realizar-se em duas

dimensões críticas importantes e complementares: a ético-antropológica e a histórica.

Na dimensão ético-antropológica, a Filosofia da Libertação visa resgatar o ser dos

comportamentos assumidos pelos povos latinoamericanos em suas lutas de resistência e

libertação: as lutas dos índios, dos negros, dos operários e dos lavradores, das mulheres e de

todos os grupos discriminados. Todas essas lutas nos ensinam importantes lições de

fraternidade, de prática da justiça, de exercício do poder, de cooperação, de educação

comunitária e de sabedoria compartilhada. Esse resgate passa, inicialmente, pela construção

de um discurso crítico dos projetos de conhecimento e de práticas político-culturais

etnocêntricos, que submetem um povo ao outro, um ser humano ao outro, quando uns

vivem às custas da morte dos outros. As teorias das ciências, das morais, das políticas, das

pedagógicas, das econômicas, das eróticas, principalmente, que dão justificativa ´racional´ a

esse projeto de dominação devem ser desmistificadas teoricamente e combatidas

politicamente. Por essa dimensão é o que o filósofo da libertação deve afirmar a eticidade

de todo discurso filosófico, e fazer a crítica ética de toda forma de conhecimento

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pretensamente ´neutro´. Para tanto, deve construir um método ou adotar métodos que lhe

permitam construir categorias superadoras das categorias e dos métodos etnocêntricos

europeus, principalmente aqueles que até hoje justificam as relações de dominação amorais,

imorais e antiéticas exercidas sobre os povos da América Latina.

Na dimensão histórica, a Filosofia da Libertação visa resgatar o profundo sentido

das culturas afro-latinoamericanas que se gestaram ao longo de muitos séculos. Não

significa estudar o ´folclore´, reivindicar direitos autorais sobre eventos hoje culturalmente

importantes, mas demonstrar como os ´índios´ e os negros nos trouxeram uma civilização e

formam povos com valores, religiosidade e sabedorias próprias. Contar a história do

massacre desses povos, a história de suas lutas e resgatar o que sobrou. Sabendo essa

história, encontraremos nossas raízes, nossa ancestralidade cultural, que é parte de nossa de

identidade de hoje, e da daí tiraremos os motivos da luta que devemos empreender para nos

libertar dos novos colonizadores que hoje nos oprimem com coca-cola, satélites e

espionagem e mísseis atômicos.

Segundo Enrique Dussel, a Filosofia latinoamericana terá sua originalidade ao se

fundar sobre um projeto ético-antropológico interpretante do ser do homem

latinoamericano. Esse projeto só poderá ser realizado se se constituir numa filosofia sobre

novas bases metodológicas e históricas. Será necessário ao pensamento latinoamericano

ultrapassar os modelos metodológicos das filosofias européias que geram a alienação do

homem latinoamericano. Tais métodos são métodos ideológicos alienantes, etnocentristas.

Também será necessário superar a concepção historiográfica européia no sentido crítico, de

ruptura com a visão de mundo eurocêntrica.

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No aspecto metodológico, Dussel, partindo de Marx e da tradição semita propõe

uma nova formulação metodológica: o Método anadialético. Trata-se de uma metodologia

filosófica original, porque distinta e superadora dos procedimentos e categorias

etnocêntricas da modernidade européia. Ao princípio da identidade (lógico e ontológico)

que milenarmente funda a tradição filosófica européia, o método da Filosofia da Libertação

terá seu ponto de partida no princípio da alteridade. O pressuposto intocável desse método

estabelece que o discurso filosófico tem um caráter eminentemente ético, para além de sua

dimensão lógica. O discurso é válido ou inválido não pôr sua correção lógica, mas por seu

acordo ou desacordo com a justiça. O pressuposto é de que o filosofar antes de ser lógico

deve ser justo. A justiça guarda uma relação fundamental do discurso ao outro. Realiza-se

numa comunidade de falantes; é uma ação dialogal. “O filósofo, antes de ser um homem

inteligente, é um homem eticamente justo, bom, discípulo”, diz Dussel. O filosofar deve,

então, reconhecer seu ponto de partida e seu fim, não como reflexão solipsista, egoística,

numa pretensa busca solitária da ´verdade`, mas no ato dialogal comunitário, interpretante

da palavra do outro, a partir do seu acolhimento.

Na obra Método para uma Filosofia da Libertação, Dussel faz uma exposição e

crítica dos usos que a tradição filosófica ocidental fez da dialética desde Platão até

Heidegger. Encontra nas obras de Karl Marx e de Emmanuel Levinas as categorias centrais

do seu projeto metodológico.

2 - O Método da Filosofia da Libertação

As palavras a seguir indicam o sentido que Dussel quer dar ao seu empreendimento

metodológico. Não se trata de mais um método de teorização, simplesmente; mas, de uma

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filosofia nova, feita a partir do contexto da América Latina e de uma atitude distinta das

filosofias da tradição européia.

Trata-se agora de um método (ou do domínio explícito das condições de

possibilidade) que parte do outro enquanto livre, como um além do sistema da

totalidade; que parte, então, de sua palavra, da revelação do outro e que com-fiado

em sua palavra, atua, trabalha, serve, cria...O método analético é a passagem ao

justo crescimento da totalidade desde o outro e para `serví-lo´ criativamente... A

verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-

dialético). (DUSSEL, E., 1986, pp.196-197).

2.1) A PROXIMIDADE. A relação face-a-face entre Eu e o Outro é anterior ao

mundo, isto é, anterior à totalidade de sentido, de compreensão dos entes. É a partir do face-

a-face do povo em seu viver diverso e plural - enquanto negado pelo capitalismo - que se

constrói a filosofia da libertação.

O face-a-face, segundo Dussel, é movido pelo encontro original, do inusitado, do

desconhecido, do ver o outro e aproximar-se, alterativo, numa relação justa, de respeito

mútuo, de espanto, de acolhimento, amorosa. Práxis é um encontro alterativo, de alteridades

(outros-com-outros ).

A proximidade é ao mesmo tempo originária e histórica. Na sua origem, no seu

nascimento o ser humano nasce em alguém, alimenta-se de alguém, mama. A primeira

relação do ser humano anterior à própria compreensão de seu mundo é a relação com outro

humano. A proximidade primeira é o mamar os seios de uma mãe (acolhimento biológico e

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cultural). Esse ato é anterior a toda distância, a todo conhecimento, ao mundo enquanto

totalidade na qual se nasce.

Da proximidade original do nascer surge a proximidade histórica: o ser humano

nasce fraco e indefeso e depende dos outros, de sua atenção, dos conhecimentos, dos

produtos. Assim é que pouco a pouco o ser humano vai sendo parte de um povo, de uma

cultura, tem um mundo. É no calor da proximidade que o mundo se realiza como mundo. é

na e pela proximidade que o mundo é o que é, esse mundo.

No face-a-face, na proximidade o tempo como que se dilui na alegria de estar

juntos: o tempo de um é o tempo do outro. Não conta a duração, mas o encontro. A

espacialidade perde todo sentido perante a proximidade: a separação ganha sentido no

reencontro, no retorno do face-a-face, na escuta da palavra, no calor da presença. A

proximidade como raiz de toda práxis é essencialmente festa: tempo sem tempo.

Contudo, a proximidade feliz é essencialmente equívoca. Um beijo, por exemplo,

tanto pode ser uma manifestação de ternura e amor, como pode ser a utilização hedonista do

outro, uso objetual.

Os excluídos da história clamam pela proximidade humana originária, dos justos,

dos amorosos (que acolhem o outro ).

Na proximidade, a vida em comum no face-a-face alterativo é afirmada na

semelhança carnal, analogicamente, entre distintos e não, ontologicamente numa mesma

natureza (o gênero), como pensava Aristóteles. A abertura ao outro significa o recebimento

da novidade que ele guarda enquanto outro. Aproximar-se do outro como alguém que surge

do além da origem do meu mundo como condição desse originar; como alguém que

permanece novidade exterior àquilo que está feito (o factum, em latim). Diferente do

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aproximar-se que se põe na proximidade do outro é o dirigir-se às coisas, aos objetos

diferentes do ser humano e isto chama-se proxemia. A relação alterativa com o outro

humano realiza-se como relação analógica de dis-tinção (aquilo que tem outra cor, outro

tom). Com esse termo indica-se a situação na qual ocorre o reconhecimento amoroso, no

encontro erótico; o reconhecimento do filho, na família; o reconhecimento do irmão, na

política; e o reconhecimento do companheiro, no trabalho. A proximidade instaura-se na

dis-tinção, que exige uma atitude analógica, que afirmará as semelhanças; e as semelhanças

conduzem ao acolhimento e, do acolhimento, nasce o reconhecimento mútuo que forma a

comunidade.

O outro nunca é `um só´, mas também `vós´. Cada rosto no face-a-face é igualmente

a epifania de uma família, de uma classe, de um povo, de uma época da humanidade

e da própria humanidade como um todo, e ainda mais, do outro absoluto. O rosto do

outro é um aná-logos; ele é a `palavra´ primeira e suprema, é o dizer em pessoa, é o

gesto significante essencial, é o conteúdo de toda significação possível em ato.

(DUSSEL, E., 1996, p.197).

O pressuposto do método é, então, o que o encontro alterativo é um encontro

analógico, pelo caminho do diálogo, da criação de uma língua, de fala comum. Nesse

caminho não se pode cair na tentação de fazer da linguagem uma metafísica (fora dos

corpos), nem cair na ilusão de afirmar como `natureza comum´ a existência das

semelhanças. As formas da linguagem devem ser entendidas como possibilidades de

revelação daqueles que vivem uma vida em comum e as semelhanças devem ser vistas

como possibilidades analógicas, não como mesmidades ontológicas.

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2.2) A Totalidade. Da proximidade imediata outro-outro, o ser humano instaura

historicamente, a totalidade de um mundo, um projeto coletivo de ser. Estabelece múltiplas

relações com muitos seres humanos e com a natureza, organiza-se econômico, político e

socialmente. Cria um sistema de vida, de produzir, de agir, de viver. Isto forma uma

totalidade muito abrangente, que nem mesmo pode ser vista imediatamente, mas só

mediatamente, pelo conhecimento. Nas sociedades capitalistas, essa totalidade de mundo

forma-se em torno do capital, existe por ele e para ele. Deve-se usar a racionalidade

dialética para explicar a realidade considerada desse modo. Marx é quem melhor ensina o

uso do procedimento dialético, através de sua obra. Aí, a dialética mostra-se como um

trabalho de pensamento essencialmente histórico, visto que põe-se a pensar a realidade em

seus movimentos de mudança e transformação, como devir. O procedimento reflexivo

central consiste em apreender as totalidades históricas na forma de unidades e divisões pôr

oposições de contrariedade e de contradição. A análise dialética compreende, então, que é a

luta entre os interesses humanos é que movem a história. Pôr isso, a dialética é materialista

e histórica, porque apreende o modo como os seres humanos constróem suas vidas, criam

seus mundos.

2.3 - MEDIAÇÃO. A mediação é a qualidade de um ente servir como elemento

para a realização de um determinado projeto. Ora, sendo a proximidade a imediatez do

face-a-face com outro, e a totalidade o conjunto das relações culturais vividas no mundo em

função de um determinado projeto de vida, as mediações tanto podem possibilitar a

proximidade do face-a-face como a sua ruptura. As relações de trabalho constituem os atos

mediadores das relações humanas. Trabalho não deve ser pensado no sentido capitalista de

produtividade, mas de criatividade (poiesis), criação de “coisas-sentido”. O Ser humano

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descobre, retira da natureza aquilo que lhe interessa e o que lhe é necessário. Dá sentido e

importância a muitas coisas que julga necessário para viver. Por isso produz um mundo.

Entretanto, temos que distinguir a noção de valor da noção de sentido. O “valor”

refere-se à dimensão estimativa, operacional das relações humanas enquanto prático-

utilitárias. Insere-se na dimensão pragmática da vida humana e aí deve ser compreendido. O

“sentido” deve ser referido ao trabalho e às condições ético-antropológicas que possibilitam

sua efetivação. Há uma grande diferença entre produzir uma coisa para atender a

determinado uso e produzí-la para ser vendida no mercado capitalista.

2.4) A Exterioridade. À totalidade de mundo vigente contrapõe-se a exterioridade

daquilo que ela nega e a nega, que aparece como sua negação, seu lado ruim. Entretanto,

essa exterioridade deve ser vista como positividade ético-antropológica exterior e dis-tinta

(de cor diferente ). Na exterioridade é que o ser alterativo do ser humano guarda sua dis-

tinção, sua recusa à mesmidade do sistema vigente. É nela que a novidade está sendo

gestada e a solidariedade originária está sendo vivida. Para apreender esse aspecto da vida

humana é preciso um olhar analético ( ver além do dado, do feito, do fato, da totalidade ).

A razão sistêmica não dá conta de explicar a realidade radical do outro em sua revelação ao

mesmo tempo como semelhante e dis-tinto. Enquanto exterioridade livre da ontologia

totalizadora e autoritária do sistema vigente, o outro é a voz que denuncia a opressão

sofrida e reivindica a justiça. Os excluídos do sistema capitalista vigente o denunciam como

desumano, etocida e genocida. O discurso só assume criticidade radical ao demonstrar a

contraposição da exterioridade à totalidade vigente. Ao denunciar a ruptura da proximidade

humana originária. Há diversos níveis de exterioridade que cumpre investigar: a erótica, a

pedagógica, a econômica, a política, etc..

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2.5) A Alienação. A alienação consiste no fato se tomar o “outro enquanto

instrumento”( objeto prático, para...), isto é, enquanto um ser que serve de mediação para a

realização das vontades de alguém, aniquilando a semelhança e a dis-tinção. A alienação é

resultando de uma práxis de dominação, que é a afirmação de um projeto totalizador

opressor e autoritário. Nesse âmbito o projeto do sistema imperante impõe univocamente a

todos os seres seu horizonte de abrangência, utilizando e instrumentalizando a tudo e a

todos em função de uma cultura individualista, por exemplo. Para assegurar a realização

desse projeto seus interessados promovem diversos tipos de alienação, a do trabalho, da

cultura, a política, a religiosa, etc. Deve-se observar que a alienação apresenta-se não só na

forma do discurso, mas, principalmente, ao nível das ações práticas, das condutas.

2.6) A Libertação. A libertação consiste na desalienação das pessoas, povos,

culturas e instauração de uma nova ordem fundada no respeito à alteridade e exterioridade

ético-antropológicas.

No processo de desalienação é preciso cuidar para não compreender o outro apenas

como dimensão objetiva do mundo, um meio para realizar determinado “projeto

libertador”. O outro deve ser sempre o mistério insondável da fonte da criatividade e do

novo. É preciso cuidar para não construir uma totalidade na qual o outro aparece como

objeto da ação de outros. É preciso um crítica constante a toda ontologia de sistemas

totalizantes. O ethos, o caráter da libertação exige não repetir o mesmo, a ordem antiga,

mas criar o novo a serviço do outro. Esse ethos, segundo Dussel, se estrutura a partir da

comiseração ( acolhimento alterativo, amor de justiça, acolhimento do outro enquanto outro

), que nos leva a compartilhar de sua miséria, da miséria de um povo, dos sofrimentos dos

excluídos, dos explorados. Daí somos impulsionados à busca de relações fraternas e

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solidárias que nos motiva à subversão do sistema para reconstruí-lo numa justiça real que

afirma a dignidade alterativa humana. Por isso, não é a pura conquista do poder do Estado

que deve guiar a revolução, mas a bondade e a solicitude.

2.7 - Síntese

Assim, o momento analético que tem por princípio a distinção é o ponto de partida

para um discurso metódico ou ponto de apoio a novos desdobramentos; abre ao sujeito o

âmbito meta-físico referindo-se semanticamente ao outro homem, grupo ou povo para além

da totalidade, tendo por categoria própria esta exterioridade do outro que, ao ser afirmada,

supera a totalidade, sustentando a inovação do sistema. Este momento é somatória da

sequência de quatro outros: 1) A totalidade é questionada pela interpelação do outro; 2) a

escuta da palavra como consequência ética; 3) aceitação respeitosa da palavra por

impossibilidade de interpretá-la adequadamente; 4) o lancar-se do interpelado à práxis do

oprimido. Portanto, o momento analético é crítico e superador do método dialético triádico

( tese-antítese-síntese ), assumindo-o e completando-o; é afirmação da exterioridade, não

somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade.

Sob outra perspectiva, o método analético é um método cujo ponto de partida é uma

opção ética e uma práxis histórica concreta. Aqui deve-se aliar o rigor teórico especulativo

e a ação ético-política prática em favor da libertação humana. A indiferença compactua com

o sistema vigente. A posição a-ética só é possível idealmente. Daí que, o intelectual, antes

de ser uma pessoa inteligente, deve ser eticamente justo, bom, discípulo. Não é pela lógica e

a eficácia que deve-se medir o conhecimento, mas pelo seu caráter humanizador, justo.

A partir dessa consideração, pode-se também fazer a seguinte crítica às filosofias e

às ciências, qual seja, a de que os discursos das filosofias ontológicas e das ciências

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positivas partem, em geral, de algum critério de verdade, mas que, seja qual for ele, terá a

pretensão de universalidade. E isto consiste em afirmar que alguma verdade conhecida é

toda a verdade, ou uma verdade absoluta. Essa pretensão é, sob a ótica a Filosofia da

Libertação, não só uma contradição lógica, mas antes de tudo, uma inegável contradição

ética, pois, alguma verdade só pode ser dita como toda a verdade se o discurso de quem a

profere pretende que o mesmo seja proferido tautologicamente pôr todos os seres humanos.

Entretanto, a pretensão ontológica totalizadora desse discurso torna-se inconsistente e

fluidifica-se perante o caráter da distinção alterativa do face-a-face humano originário, no

qual dá-se toda possibilidade de linguagem. Esse discurso totalizador pode, então, ser

criticado como encobrimento ideológico de negação do outro, como fetiche que oculta e

subssume o outro na ilusão de uma aparente homogeneidade.

Dussel se propõe a compreender o processo de construção da linguagem e do

conhecimento, não a partir dos procedimentos das filosofias e das ciências

homogenizadoras do ser humano e das culturas, mas, a partir da implicação radical de

conhecimento-linguagem-alteridade. Pôr essa implicação, conhecimento e linguagem

dão-se como escuta e acolhimento, numa relação amorosa e pedagógica. Pela palavra o

outro abre-se ao para-o-outro (como diria Heidegger), revela-se como origem da

possibilidade da palavra e do discurso. A palavra daquele que ouve torna-se assim,

recolhimento alterativo. No diálogo instaurado procura-se dizer a verdade, mas, no sentido

de uma verdade analógica, porque funda-se na analogia do ser distinto radical que os

envolve. Escutar e interpretar a voz do outro no sentido do seu acolhimento e recolhimento

para que, confiando na palavra vivida e compartilhada possamos viver nossas verdades e

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nossas culturas. Falar nossas linguagens constitui a máxima expressão da racionalidade, se

é que algo ainda pode ser significado com esse termo.

A filosofia, o filósofo, devolve ao outro sua própria revelação como renovada e re-

criada, crítica, interpelante. O pensar filosófico não aquieta a história ex-pressando-

a pensativamente para que possa ser arquivada nos museus. O pensar filosófico,

como pedagogia analética da libertação latinoamericana, é um grito, um clamor, é a

exortação do mestre que faz reincidir sobre o discípulo a objeção que antes havia

recebido; agora, como revelação reduplicadamente pro-vocativa, criadora.

(DUSSEL, E. 1986, p.211).

3 – Filosofia da História da América Latina

Uma filosofia da história da América Latina é uma decorrência necessária e uma

exigência prático-pedagógica da Filosofia da Libertação. Nesse tema são abordadas duas

questões cruciais para nossas gentes: a que investiga nossas origens étnicas – nossa arké,

segundo o modelo mítico grego – e a que investiga as distintas formações nacionais

decorrentes da processo de colonização européia. Que trajetórias seguiram os povos

latinoamericanos em suas formações? Que papel desempenharam as distintas etnias

envolvidas nesse processo? Que fatores atuam como características das variadas distinções

nacionais e que fatores atuam como unificadores de tradições comuns? Que jeitos de viver

dão a esse continente uma identidade comum – a latinoamericana? Poderá a filosofia pensar

o ser da América Latina a partir de sua história? Pôr onde deverá principiar o discurso dessa

história?

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Um pressuposto do qual devemos partir impõe-se pela constatação de que os

estudantes das nossas escolas encontram à sua disposição inúmeros manuais de ensino de

história que lhes apresentam uma exposição estereotipada das distintas formações dos

povos da América Latina. Essas obras de história apenas repetem, adaptam, ou

simplesmente copiam as filosofias e os métodos científicas e seus padrões conceituais,

elaborados no contexto das teorizações da historiografia européia e, como tal, norteadores

do modos de vida e dos projetos dos povos europeus. Em sua maioria, esses manuais tratam

da formação da América Latina como obra preponderante da ação dos europeus, isto é,

apresentam suas leis, sua iniciativas, suas guerras, seus heróis, seus empreendimentos, suas

formas religiosas e jurídicas, suas artes, entre outras, como se constituíssem a `alma´ do

`povoamento´ da América Latina.

Pode-se observar que em algumas obras de história da América Latina que seu

discurso é formulado a partir de uma visão evolutivo-funcionalista das sociedade humanas e

que isto torna, consequentemente, quase inevitável a formulação de classificações,

comparações e mesmo o estabelecimento de posições éticas eurocêntricas.

Observe-se a classificação das culturas dos povos americanos praticada pôr muitos

historiadores:

1 – Culturas Primitivas – no Brasil: Gês ou Tapuías, Botocudos, Xavantes,

Timbiras; no Uruguai: Charruas; na América do Norte: Esquimós.

2 – Média Cultura – na América do Norte: Pueblos; Antilhas e Norte da América do

Sul: Caribes e Aruaques; Colômbia e América Central: Chibchas; no Brasil: Tupi Guarani.

3 – Altas Culturas – nos Andes: Incas; México: Astecas; Guatemala e Península

mexicana de Iucatan: Máias.

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A questão que se impõe perante essa classificação é, sem dúvida, a de saber se há

critérios classificatórios de culturas diferentes e se é possível, do ponto de vista

antropológico, fundamentar tais critérios sem se colocar de um certo ponto de vista

etnocêntrico. É evidente que parece muito difícil a proposta de uma classificação qualquer

isenta de valoração e inocente pôr princípio. No mínimo, a leitura da vida cultural de povos

estranhos feita nessa ótica, é feita a partir dos elementos culturais relevantes da cultura do

historiador. Daí, as aberrações da classificação historiográfica em conceituar os povos

diferentes como `sem escrita´, `sem Estado´, `sem Religião´, `guerreiras´, `primitivas´,

`poligâmicas´, `nuas´, entre outras, insinuando que essas ausências são indícios de

inferioridade evolutiva; ou que essas formas de vida são anomalias sociais.

Mas há um outro tipo de narrativa da historiografia latinoamericana que nos parece

também produzir equívocos – é a que se faz intitulando-se como dialética. Apesar de

assumirem algumas categorias da filosofia marxista, terminam repetindo as figuras da

história objetiva do espírito tal como compreendia Hegel. Terminam pôr expor totalidades

histórico-temporais sem expor suas determinações práticas, suas diferenças e suas

contradições. E então, as figuras históricas aparecerão sem fundos práticos, sociais, sem

vida. A ciência da história nada mais será que uma narrativa ideológica que encobre as

relações coloniais sem relações de produção, sem trabalhadores, sem cansaços, sem

escravidão e sem lutas contra a escravidão. Aparece uma história como tentativa de

construir uma figura histórica que tem seu significado no próprio arranjo de certos eventos

já previamente escolhidos como históricos. Formula, então, um discurso que narra eventos

ocorridos fora da vida social, fora do dia a dia dos trabalhos do povo. É isto que denomino

uma história sem fundo. Tal como uma pintura sem fundo. Dessa forma, algumas dessas

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obras que se identificam como inspiradas no marxismo não escapam das garras do modelo

teórico positivista evolutivo, ficando de dialético apenas a roupagem linguística, enquanto o

conteúdo permanece eurocêntrico.

Pode-se observar também, particularmente, que vários autores de livros de história

do Brasil constróem seus discursos centrados no sistema cultural da vida urbana,

orientados pela perspectiva dos grandes centros urbanos. Fazem afunilar toda a diversidade

cultural em função de categorias compreensivas da vida urbana. Passam uma ilusão de

homogeneidade, a partir de uma preocupação explícita em narrar os processos de

hegemonia de figuras históricas centrais. Daí, perde-se a diversidade característica das

culturas humanas. A história perde seu fundo.

Com o termo fundo histórico quero apontar para a trama cultural vivida pelos povos

em suas múltiplas configurações e formações de modos vida. Pretende apontar para o

conjunto de relações assimétricas, de atividades e funções exercidas pelos membros de uma

coletividade. Um povo se configura como um povo particular na medida em que tem um

ethos próprio, um jeito de ser e de viver seu dia a dia. O fundo histórico é a dimensão das

atividades que uma gente realiza todo dia para permanecer vivo, para preservar seus

valores, para educar as novas gerações.

Narrar a história a partir de seu fundo é narrar a partir do ethos. Nessa perspectiva, a

história da América Latina ganha vitalidade e movimentação; deixa de ser a figura de povos

bonzinhos que recebem, com missa e presentes inocentes, aos estrangeiros, cedendo a eles

suas terras e seus corpos; deixa também de ser a história etnocêntrica da ação européia

`civilizadora´, doadora do valor e do sentido aos `lugares vazios´ e aos povos `sem cultura´,

tratados como se nada fossem; deixa de ser a história dos dominados, pobres, fracos e

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impotentes perante os dominadores ricos e poderosos. Um bom exemplo de narrativa

histórica sem fundo, esquecida do ethos das gentes é a que nos conta sobre o regime de

trabalho instaurado nas colônias espanholas e portuguesas: os sistemas de trabalho da

`mita´, da `encomienda´, da escravidão de índios e negros nas fazendas e nas cidades –

mostram a vida como se fosse feita de decreto régios e de obediência aos poderosos. Mas

dentro disso tudo, no fundo das instituições e dos grandes acontecimentos há de não se

esquecer dos valores de fazeres de uma gente, das capacidades que carregam de geração em

geração, das aprendizagens que realizam, das possibilidades que inventam.

Existem variados componentes dos sistemas culturais vividos pelos povos latino-

americanos, cuja significação só pode ser bem compreendida se formos capazes de lançar

um olhar pôr sobre os próprios sistemas; se formos capazes de expor não só as figuras

temporalmente dominantes, mas também expor seu fundo, que as transcende e lhes é

exterior, distinto.

Um exemplo pode ilustrar o que estou querendo dizer: a explicação de como se

formou a língua brasileira. A pesquisa diacrônica explica através de modificações na língua

portuguesa, acréscimos de termos emprestados de outras línguas e incorporação de

idiossincrasias. A pesquisa sincrônica explica a partir de contextos históricos específicos,

quando uns termos caem em desuso e outros modificam-se pôr força de hábitos, usos, ou da

ação institucional. Ora, dependendo do alcance dessas pesquisas elas mal saem do óbvio, do

que se pretende descrever. Se não saem do âmbito específico da linguística através de um

mergulho em outras dimensões da vida cultural prática – das práticas sociais, eróticas,

pedagógicas, religiosas, econômicas, artísticas, etc. – deixam sem fundamentação suficiente

o objeto da pesquisa, ficando apenas nas aparências do constatável. É insuficiente expor

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apenas a dinâmica das mudanças ocorridas na formação de uma língua. As lacunas não

podem ser preenchidas com casuismos. Para quem deseja fazer ciência de tal assunto, é

necessário expor os fundamentos condicionantes dessa dinâmica e das mudanças.

Outro exemplo de superficialidade consiste em pretender uma fundamentação

cultural para a afirmação de que o povo brasileiro é formado pôr uma `mistura de raças´; é

resultado de um “cadinho cultural”. Isso é vago, no mínimo uma afirmação improvável. Os

documentos da “colonização” revelam bem outra coisa. A partir deles, o que é preciso

admitir, em princípio, é que o europeu exerceu papel opressor em terras da América Latina.

Num primeiro momento, todos; depois, alguns. Os portugueses e os espanhóis ricos e

poderosos violentaram os índios e as índias, os negros e as negras, roubaram suas riquezas,

negaram seus modos de ser e os usaram como mercadorias e como objetos de prazer

irresponsável. É preciso compreender que as relações de aproximação e comunhão de

alguns europeus com negros e índios se deram não como “mistura” de coisas diferentes.

Juntos ficaram o negro e o índio oprimidos e os portugueses pobres, também oprimidos.

Comungaram uma cultura de oprimidos, pode-se supor. Ora, se as diferenças biológicas não

constituem critérios relevantes para a diferenciação antropológica e se se demonstra a

existência de uma unidade cultural entre eles, então, não há motivos para falarmos de

“mistura de raças”. O que ocorreu pode ser melhor compreendido como uma formação

social própria àquele dado momento histórico. Aliás, talvez inúmeras formações sociais

específicas. Assim, podem ser essas formações constituídas no interior do processo

colonial, envolvendo portugueses pobres, negros e índios, que produziram uma cultura

comum, cujos elementos explicam muitos elementos de nossa cultura atual.

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Se admitirmos a hipótese da reunião ou assimilação de diferentes raças com

elementos culturais diferentes, teremos de explicar a necessidade e possibilidade dessa

reunião. Uma explicação que pode ser dada consiste em atribuí-la a circunstâncias fortuitas,

ocasionais; outra, consiste em atribuí-la a sentimentos especiais da natureza humana, o que,

na verdade, não nos fornece uma explicação, mas apenas uma retórica vazia. Pôr esse

caminho a dificuldade só aumenta. Deve-se abandoná-lo. O que é preciso fazer e que é o

mais difícil, é pesquisar a existência das formações sociais em suas variadas configurações

contextuais em cada momento da nossa história, de tal modo que fique demonstrada a

existência de uma linha de continuidade cultural capaz de explicar nossa cultura de hoje em

dia.

Considero como uma interpretação insuficiente supor um “cruzamento de raças”

como mistura de coisas diferentes, como se fosse uma química. Na verdade, houve

segregação cultural, etnocentrismo por parte dos europeus. Aquilo que, equivocadamente,

alguns denominam cultura resultante da “mistura de raças” não provém de nenhuma

“mistura” que se queira tenha ocorrido, mas certamente é resultado de formações sociais

específicas. No plano social, não há nível de aproximação entre diferentes, mas somente

entre iguais. Para além de quaisquer diferenças biológicas que se possa suspeitar

predominou, de modo determinante, a unidade humana, a comunhão de valores, a

solidariedade necessária aos oprimidos. Pôr isso, a cultura brasileira não é resultado da

“mistura” de coisas diferentes, mas a comunhão de coisas iguais pôr um povo, pôr classes

de gente que, na opressão, forjaram um modo de ser e de viver a nós legado historicamente.

Há que se recontar a história das culturas latinoamericanas, particularmente, das

culturas brasileiras. Pelo caminho proposto, repito, das formações sociais, é muito mais

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difícil. Através da reflexão – do olhar sobre nós mesmos – atingiremos a consciência do

nosso ser cultural. Precisamos resgatar as culturas indígenas, africanas e populares que

permeiam nossos modos de ser. Devemos estudá-las pôr necessidade de esclarecimento da

nossa própria cultura, para demonstrarmos a proeminência nuclear desempenhada pôr essas

culturas na formação do nossa gente.

A metodologia de investigação da Filosofia da Libertação poderá revigorar os

estudos de história latinoamericana na direção em que estamos apontado, superando a

perspectiva historiográfica eurocêntrica. O método ana-dialético de Enrique Dussel poderá

expor a totalidade histórica a partir das múltiplas configurações culturais vividas

dinamicamente pelas etnias e grupos sociais, cujo ethos jamais está absolutamente incluído

no projeto de dominação das classes colonizadoras.

Nos oito ensaios sobre cultura latinoamericana, publicado na obra Oito Ensaios

sobre Cultura, em 1492: O Encobrimento do Outro e, na Introdução da Ética da

Libertação, Dussel aponta para a consideração da possibilidade da existência de uma

antiga rota de navegação pelo Oceano Pacífico ligando as costas do Chile e do Peru aos

povos asiáticos. Essa possibilidade nos abre uma nova compreensão da pré-história das

culturas ameríndias e oferece outra explicação sobre o povoamento do nosso continente.

Segundo Dussel, os estudos de história de da América Latina deveriam compor-se temporal

e culturalmente a partir das seguintes épocas: primeira, as culturas ameríndias; Segunda, a

cultura da cristandade colonial; terceira, a cultura dependente do capital industrial – e,

financeiro, atualmente - e, Quarta, a cultura popular pós-capitalista. Considerando a

relatividade da dimensão epocal dessa divisão, o mais importante é que essa proposta visa

compreender a história da América Latina a partir das práticas culturais comuns dos povos

Page 23: Filosofia Da Libertacao - Enrique Dussel

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que a formam, em contraposição ao domínio da cultura européia e, ou norte americana,

fundadas na expansão da produção e dos mercados capitalistas.

A proposta de estudos historiográficos de Dussel intenta desvendar o ser sócio-

cultural das gentes da América Latina a partir da investigação de sua ancestralidade cultural

e, ou mítico-religiosa e produtiva, pôr um lado; e, pôr outro lado, intenta afirmar a

existência de uma identidade própria e singular dos povos da América Latina. Afirma a

existência do ethos de cada povo, distinto do ethos dos europeus; não igual nem inferior.

Para pensar, então, uma história da América Latina, Dussel propõe uma ruptura com o

modelo de exposição historiográfica da Europa.

Um pressuposto importante para pensar a história da América Latina a partir de sua

origem, consiste em negar a teoria da história evolucionista, em função da Europa, nascente

nos povos do Mediterrâneo e culminante nos Estados Modernos. Denunciar o caráter

ideológico e fetichista da divisão da história universal em “antiga, medieval, moderna e

contemporânea”, que repete um modelo eurocêntrico. Esse modelo parte do Paleolítico e

Neolítico da eurásia, ajunta as culturas desde a China, Índia, Pérsia, Grécia, Roma e Idade

Média, para só, graças à “audácia” de Colombo, “descobrir” a Ameríndia. Para Dussel, essa

é uma abordagem falsa e ideológica. Nega a história cultural originária dos povos

ameríndios. Não só porque nega é falsa, mas porque é incoerente com as próprias

investigações étno-antropológicas e históricas. Ao contrário dessa visão universalista

eurocêntrica, pode-se compreender melhor a origem criadora, o princípio gerador das

culturas ameríndias, como apontam investigações atuais, a partir de suas ligações com os

povos do Pacífico [ da Polinésia e Micronésia ], da Ásia Oriental e de todo o continente

euroasiático e africano.

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Segundo Dussel, a perspectiva arqueológica fundadora do começo da história

européia deve ser revista em seu significado cultural. A compreensão das formações

sociais avançadas entre os povos do Mediterrâneo Oriental e do mundoárabe deve conduzir

o historiador a estabelecer um ponto de partida a partir do Oriente, dos povos do oceano

Pacífico, para a seguir, compreendendo as culturas desses povos, acompanhar seu

movimento de expansão rumo ao Ocidente, rastreandoos sinais dessas culturas, ora

inovadores no novo contexto, ora fundadores de novo modo de vida. Nessa perspectiva, a

Europa perde sua centralidade e passa à posição de periferia. O início da emancipação

econômica e cultural da Europa só ocorre a partir de 1492, com as viagens de Colombo,

dando inícios à colonização espanhola, seguida pela colonização portuguesa do Brasil,

fazendo surgir a América Latina como terra de exploração de riquezas comerciais. A partir

do século XVI, graças ao uso à de novas tecnologias de navegação [como resultado da da

combinação de vários elementos adquiridos em suas viagens comerciais através do Oriente]

e da organização de um poderio bélico baseado no uso da pólvora é que a Europa adquiriu

uma posição de centralidade mundial. Com isso, ao constituir-se como centro colonizador e

desenvolver suas escolas de filosofia e de ciências, seus historiadores construíram uma

narrativa evolutiva, cujo ápice encerra-se nessa civilização. E é assim que, na perspectiva

dessa historiografia, a América Latina aparece como um mundo “bárbaro” e

subdesenvolvido a ser “civilizado”. Caberá aos historiadores latinoamericanos refutar essa

ideologia e denunciá-la como falsa ciência. Ou, ao menos, como ciência em favor da

manutenção da exploração colonialista sobre a América Latina.

Uma outra proposta importante para uma historiografia a partir da América Latina,

segundo a perspectiva de Dussel, é a afirmação de uma proto-história cultural dos povos

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latinoamericanos, constituída pelas culturas indoeuropéias, as culturas semitas [incluindo a

África] e a cultura da cristandade colonial. Esse estudo deverá nos revelar as origens de

múltiplos elementos da vida cultural latinoamericana: nas línguas, nas artes, nas religiões,

nas economias, nos sistemas jurídicos, nas organizações familiares, nos hábitos e costumes,

entre outros. Só assim poderemos desvendar e reconhecer a ancestralidade cultural dos

povos latinoamericanos e tornar possível a construção de nossa história como reveladora da

nossa identidade cultural, daquilo que tece a cor da nossa tez cultural.

As reflexões até aqui elaboradas são trilhas de uma caminhar que se está fazendo. O

seu sentido é o de reconhecer aquilo que já é conhecido e vivido: a dominação e exploração

colonial do nosso continente e de criticar os pressupostos históricos dos sucessivos

movimentos de recolonização a que somos submetidos ao longo de séculos a fio. No

estudo da nossa história precisamos compreender os elementos que nos vem das culturas

estrangeiras e, compreendendo-os desde sua origem, aprender a desprezar o que é

desprezível e nos faz mal. O importante para nós não é apenas julgar o olhar do estrangeiro

sobre nós, mas, sobretudo, o nosso olhar sobre nós mesmos, para que não nos vejamos com

olhar de estrangeiros.

Nota Bibliográfica

DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação. SP, Louola, 1977.

------. Para uma Ética da Libertação Latinoamericana. 5 vol., SP, Louola, 1980.

------. Ética Comunitária. Petrópolis, Vozes, 1986.

------. Método Para Uma Filosofia da Libertação Latinoamericana. SP, Loyola, 1986.

------. Caminhos da Libertação Latinoamericana. 4 vol., SP, Paulinas, 1985.

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------. Oito Ensaios Sobre Cultura Latinoamericana e Liberatação. SP, Paulinas, 1977.

------. 1492: o Encobrimento do Outro. Petrópolis, Vozes, 1992.

------. Ética da Libertação – na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis, Vozes,

2000.