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Versão em Português do original em Esperanto © Copyright 1997 Evaldo Pauli FILOSOFIA DA RELIGIÃO ÍNDICE SISTÊMICO. 7270y002 Apresentação técnica do texto. 7270y003. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA RELIGIÃO. 7270y005. 7. Introdução à filosofia da religião. 8. Religião sobrenatural. 9. Doutrinação e proselitismo religioso. 10. Atitude filosófica e científica em religião. 11. Divisão geral da filosofia da religião. Ia PARTE FILOSOFIA DA RELIGIÃO: " EM SEUS FUNDAMENTOS. " 12. Introdução geral.

Filosofia Da Religiao

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Page 1: Filosofia Da Religiao

Versão em Português do original em Esperanto© Copyright 1997 Evaldo Pauli

FILOSOFIA DA RELIGIÃO

ÍNDICE SISTÊMICO.

7270y002

Apresentação técnica do texto. 7270y003.

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA RELIGIÃO.7270y005.

7. Introdução à filosofia da religião.

8. Religião sobrenatural.

9. Doutrinação e proselitismo religioso.

10. Atitude filosófica e científica em religião.

11. Divisão geral da filosofia da religião.

Ia PARTE

FILOSOFIA DA RELIGIÃO:

" EM SEUS FUNDAMENTOS. "

12. Introdução geral.

Cap. 1.

PENSAMENTO PRÉ-LÓGICO EM RELIGIÃO.

7270y013.

Page 2: Filosofia Da Religiao

I – Natureza do pensamento pré-lógico. 7270y015.

16. Lógica como ciência e lógica natural.

17. P ensamento primitivo , pré-mágico e mágico da criança.

18. Classificação do pensamento pré-lógico em gêneros e espécies.

Art. 2-o. PENSAMENTO ANIMISTA, MÁGICO, MÍTICO (7270y019).

I – Animismo, magia, e mito como formas de pensamento pré-lógico. 7273y021.

22. A causa aparente na origem do prélogismo.

23. Pensamento animista.

24. Pensamento mágico.

25. O pensamento mítico.

II – Avaliação do pensamento pré-lógico animista, mágico, mítico. 7270y026.

27. Deficiente interpretação das relações da causa e efeito.

28. Diálogo com as causas mágicas.

30. Avaliação das interpretações sobrenaturalistas.

31. Jesus nascido por obra do Espírito Santo.

32. A parte pelo todo. O símbolo pela realidade.

33. O efeito por simples contato ou mera presença.

Art. 3-o. O PENSAMENTO DE COERÊNCIA INCOMPLETA EM RELIGIÃO. 7270y034

I – Formas de pensamento pré-lógico de coerência incompleta, como pensamento conjuntural, e outras formas.

7270y036.

36. O principio de identidade.

37. Pensamento conjuntural.

38. O totem. O brasão. O escudo de armas. A bandeira. O pão.

39. Os rituais do homem de pensamento conjuntural.

40. As rubricas do conjuntural.

41. O conservadorismo e o conjuntural.

42. O pré-logismo moral.

43. Outros casos de prelogismo moral.

II - Avaliação do pensamento conjuntural e outras formas. 7270y044.

45. O pensamento lógico não é contrário à religião.

47. A história das religiões é geralmente apologética.

Page 3: Filosofia Da Religiao

Cap. 2.

EXAME HISTÓRICO-CRÍTICO DAS RELIGIÕES.

7270y049.

Art. 1-o. RELIGIÕES MESOPOTÂMICAS, DE SUMER E BABILÔNIA. 7270y052.

53. As mais remotas raízes conhecidas da tradição cultural e religiosa.

I – A religião de Sumer (Suméria). 7270y055.

56. A história principia com os sumeros.

57. Cronologia da história dos sumeros.

58. Término de Suméria, pela conquista elamita e amorrita.

59. A religião dos sumeros.

60. Narrativas sagradas dos sumeros e o dilúvio. Poema Guilgamesh.

II – Religião de babilônios e ninivitas. 7270y061.

62. Torre de Babel. Zigurat.

63. Hammurabi e o código que leva seu nome.

65. O cativeiro judeu em Babilônia.

66. Queda de Babilônia.

67. A Assíria, um poder paralelo à Babilônia, destrói Israel.

68. Enuma-Elish , poema Babilônico, refere-se à origem do mundo.

Art. 2-o. RELIGIÃO DO ANTIGO EGITO. 7270y070.

I – Do antigo Egito em geral. 7072y072.

73. Importância da civilização pioneira do Egito e de sua religião.

74. Nem tudo é claro na história egípcia.

75. Decifração da escrita egípcia.

76. Descoberta da literatura egípcia antiga.

77. Divisão da história do velho Egito.

78. O Antigo Império, o mais autenticamente egípcio.

79. Na transição do Antigo Império para o Médio Império desfez-se a unidade.

80. O Novo Império foi uma poderosa potência militar com expansão até a Síria.

81. Legado cultural egípcio.

Page 4: Filosofia Da Religiao

82. Perda definitiva da independência do velho Egito.

83. Helenização pela fundação de Alexandria.

II – A religião do antigo Egito. 7270y085.

86. A religião do Egito.

87. O panteão das divindades egípcias

88. O conceito egípcio de divindade.

89. Totemismo egípcio.

90. A natureza humana de três elementos: corpo, vida, espírito.

91. A moral conservador e os usos sociais dos egípcios.

92. O julgamento dos mortos. O Livro dos mortos.

93. O clero detinha importantes funções na religião e vida social do egípcio.

Art.3-o. RELIGIÃO JUDAICA. 7270y095.

96. A religião judaica exerceu notável influência no mundo.

I – O povo eleito. 7270y097.

98. B’rit, Diathéque, ou seja Aliança, Testamento.

99. A persistência da etnia dos judeus.

100. A história antiga dos judeus em estilo de história heróica

101. Época das grandes mudanças internas do judaísmo, sob os persas.

102. Judeus helênicos.

II – O Judaísmo doutrinariamente. 7270y103.

104. Livros sagrados dos judeus.

105. Judaísmo, um sistema aberto.

106. O paraíso da antropogenia judaica.

107. O nome e o lugar do Paraíso.

108. O judaísmo, uma revelação divina, ou simples herança cultural?

109. O cristianismo um neojudaísmo?

Art. 4-o. RELIGIÃO DOS INDO-EUROPEUS. 7270y110.

111. Origem caucásica dos indo-europeus.

I – A religião Homérica. 7270y112.

113. A fixação da religião grega por Homero.

114. Cosmogonia homérica: Caos, Gea, Eros.

Page 5: Filosofia Da Religiao

116. Continua o processo gerativo dos deuses.

117. Quando a religião homérica entrou em contato com o cristianismo.

II – Religião do Oriente persa. Zoroastrismo (Mazdeísmo, Parsismo). 7270y119.

120. Primeira grande manifestação política, religiosa e cultural de um povo indo-europeu em direção ao

Ocidente.

121. O nome de Deus é indo-europeu.

122. O zoroastrismo vastamente difundido.

123. O livro Zend-Avesta é o que há de melhor.

124. Divide-se o Avesta em cinco livros principais...

125. O profeta Zoroastro.

127. A escatologia, a partir de Zoroastro.

III – Variações ocidentais do zoroastrismo. 7270y128.

129. Orfismo, pensamento grego sob influência persa.

130. Orfeu, taumaturgo e Deus da música.

131. Pitagóricos e neopitagóricos, dualistas.

132. Cosmogonia órfica.

133. Mitraísmo. Mitra, intermediário entre os humanos e Deus supremo.

134. A representação de Mitra como um jovem Deus.

136. O maniqueísmo veio da Pérsia,

138. A gnose.

Art. 5-o. CRISTIANISMO, RELIGIÃO DE REMOTA FONTE SEMITA. 7072y142.

144. O cristianismo (vd A fundação do cristianismo 4251y000).

145. Como foi que surgiu o cristianismo?

I – Cristianismo e cooparticipação das sitas judaicas. 7270y146

147. As seitas judaicas ao tempo da formação do cristianismo.

148. Os Saduceus e o cristianismo.

149. Os Fariseus e o cristianismo.

150. Os Zelotas e o cristianismo.

151 Os Essênios e o cristianismo.

III – Fases iniciais do Cristianismo nascente. 7270y152.

153. A questão das fases de formação do cristianismo.

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A) Fase judaica do Cristianismo nascente. 7270y154.

156. Num primeiro tempo da fase judaica do Cristianismo.

157. O segundo tempo da fase judaica do Cristianismo nascente.

B) O cristianismo de formação helênico-romana. 158.

159. Condições de universalização.

160. O contato direto com o gentio.

161. Acentuou-se, por parte dos cristãos, a prática dos mistérios.

162. O gnosticismo também participou na formação do Cristianismo.

163. O gnosticismo destaca dois conceitos: o conhecimento e o dualismo.

164. O gnosticismo cristão integra a Jesus no esquema peculiar a esta mentalidade.

III – Situamento do Islamismo. 7270y165.

166. O islamismo, uma reformulação de um longo passado.

167. O islamismo sem a Trindade das pessoas divinas.

IV – Divisão dos cristãos: católicos, ortodoxos, protestantes. 7270y168.

169. Igreja ortodoxa.

170. O episódio que dividiu os cristãos em católicos e protestantes.

171. A liberdade de consciência um destaque do protestantismo.

172. Reação de Martinho Lutero (1483-1546), de 1517.

173. Decisões da Dieta de Augsburgo, de 1518.

174. Proteção à vida de Lutero.

175. Enquanto traduzia a Bíblia.

177. Consolida-se a divisão catolicismo e protestantismo.

Art. 6. RELIGIÕES ORIENTAIS: INDUS, CHINESAS E OUTRAS. 7072y179.

180. As religiões orientais também se expandem no Ocidente.

I – Bramanismo, Hinduismo e Budismo. 72270y182.

183. O Bramanismo .

185. O princípio fundamental do universo é Brama.

186. Hinduísmo é a forma atual do bramanismo.

187. O Budismo, variante do bramanismo.

Page 7: Filosofia Da Religiao

188. O Budismo doutrinariamente.

II – Referência às religiões e filosofias da China e Japão. 7270y189.

191. O Confucionismo

192. O Taoísmo.

193. O Xintoísmo

194. O Budismo alcançou o Japão no século 6-o d.C.

195. Cultos surgidos mais recentemente no Japão.

Cap. 3.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO.

7270y196.

197. A filosofia da religião principiou com a mesma filosofia.

Art. 1-o. O DEUS DOS PRÉ-SOCRÁTICOS. 7270y198.

199. A filosofia da religião e os pré-socraticos.

200. A filosofia da religião nasceu monista.

201. Quando nasceu o conceito de um Deus como causa externa.

202. A propósito ainda do divino na filosofia monista de Tales.

Art. 2-o. O DEUS DE SÓCRATES, DE PLATÃO E DE ARISTÓTELES. 7270y204.

205. Três nomes sempre lembrados em filosofia da religião.

I – A teologia de Sócrates. 7072y206.

207. Estabeleceu Sócrates resolutamente a existência de Deus.

208. Provas de Sócrates para chegar a Deus.

209. O argumento teleológico, de Sócrates, para chegar a Deus.

210. O argumento da existência de Deus baseado na causa eficiente.

211. Sócrates e a natureza de Deus.

212. Sócrates e os atributos de Deus.

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213. Sócrates por fim declara a Deus venerável .

II – Teologia trinitária de Platão: idéias reais, Demiurgo, matéria eterna. 7072y214.

215. Uma teologia confusamente trinitária.

216. A natureza divina no sistema filosofico de Platão.

217. Não há, todavia, nestas trindade platônica, uma processão sucessiva.

218. A idéia arquétipa é um elemento notável na filosofia de Platão.

219. Deus move o mundo, esclarece Platão.

III – Para Aristóteles: Deus Motor imóvel e ato puro. 7270y221.

222. A noção de Deus na filosofia de Aristotéles (384-322 a. C.).

223. Uma explicação ampla do movimento tentada por Aristóteles.

224. O movimento nos seres naturais.

225. Deus é um Motor Imóvel.

226. O problema da criação não diretamente abordado por Aristóteles.

227. Um mover como atração.

228. A questão da eternidade do mundo em Aristóteles.

229. O tempo como determinação da coisa, segundo Aristóteles.

230. Estabilidade do mundo presente.

231. Deus de Aristóteles: forma pura na ordem da essência, ato puro na do ser.

232. Deus como pensamento de pensamento, dito por Aristóteles.

Art. 3-o.MATERIALISMO ESPIRITUALISTA ESTOICO. 7270y233.

233. O estoicismo como escola.

234. No plano religioso o estoicismo foi moderador.

235. Criaram os estoicos uma física e metafísica.

236. A física e metafísica dos estoicos é materialista.

237. Monismo estoico.

238. Fogo racional e fogo empírico.

239. Diferentes formas do fogo racional.

240. Estrutura lógica do mundo, no estoicismo.

241. A idéia de uma religião natural junta-se ao monismo estoico.

242. Moral natural e lei natural, no monismo estoico.

Art. 4-o.MISTICISMO-RELIGIOSO NEOPITAGÓRICO E NEOPLATÔNICO. 7270y244.

245. Um forte movimento místico-religioso.

Page 9: Filosofia Da Religiao

I- Neopitagorismo e religião. 7270y246.

247. Os primeiros neopitagóricos.

248. Versos de ouro , atribuídos a Pitágoras.

249. A crença dos neopitagócos na revelação.

250. A subida da alma ao céu astronômico.

II – Neoplatonismo e religião. 7270y251.

252. A importância do neoplatonismo em filosofia da religião.

253. O ordenamento da história do neoplatonismo sofre dificuldades.

A) Neoplatonismo judaico e religião. 7270y254.

255. O pensamento judaico e cristão, formado com a filosofia de Alexandria.

256. Aristóbulo, o mais antigo judeu filósofo.

257. Filon de Alexandria o maior representante da filosofia neoplatônica judaica.

B) Neoplatonismo de Saccas e Plotino e discípulos. 7270y259.

260. Amônio Saccas (c.175-242 d.C.) na origem do neoplatonismo.

261. Plotino (c.205-270) o último antigo a criar um grande sistema.

262. O monismo panteísta de Plotino.

263. O esquema trinitário de Plotino principia pelo Uno.

264. A inteligência ( Logos ) emana do Uno por necessidade de conhecer.

265. A Alma do mundo emana como forma geral de todas as coisas.

266. As almas individuais se encontram multiplicadas na Alma do mundo .

267. A matéria, como último estágio da emanação, segundo Plotino.

268. A ética de Plotino.

C) Neoplatonismo da patrística cristã. 7270y270.

271. O sucesso político do cristianismo devido a Constantino.

272. Patristica como filosofia e teologia dos primeiros séculos cristãos.

272 a) Período de formação da patrística (até C. de Nicéia, ano 325).

272 b) Século da grande patrística (325-430).

272 c) Patrística de transição para a Escolástica (430-c. 800).

273. Agostinho de Hipona (354-430) primeiro grande filósofo patrístico.

274. O pensamento neoplatonizante de Agostinho.

275. Iluminismo agostiniano.

276. Investigou Agostinho especialmente a Trindade Divina.

Page 10: Filosofia Da Religiao

277. Dionísio o Areopagita, ou Pseudo-Dionísio, patrístico.

278. Boécio, patrístico.

279. Concluindo sobre neopitagorismo e neoplatonismo em religião.

Art. 5-o. PENSAMENTO POLÍTICO SOCIAL HELÊNICO-ROMANO E RELIGIÃO 7270y280.

281. O Direito Romano uma conquista notável dos tempos antigos.

282. Fatores do desenvolvimento político e social do mundo helênico-romano.

283. Importância adquirida pelas organizações.

284. As escolas socráticas menores marcam a abertura para os novos tempos.

285. Arrolamento das conquistas sociais dos romanos.

Art. 6-o.PENSAMENTO RELIGIOSO MEDIEVAL. 7270y287.

288. Mundos distintos da Idade Média: ocidental, bizantino, árabe.

I – A Igreja política da Idade Média. 7270y289.

290. Algumas características da Igreja Medieval.

290a) O Sacro Império.

290b) A Santa Inquisição.

290c) A investidura dos governantes atribuída ao Papa.

290d) Estados Pontifícios.

290e) Criação do Colégio Cardinalício.

290f). Heresias na Idade Média.

290g). Igreja Ortodoxa.

292. A Escolástica latina medieval.

II – A Escolástica latina. 7270y291.

293. Filósofos escolásticos medievais do período de formação.

293a) Alcuíno de York (c. 735-804).

293 b) João Escoto Erígena (c. 800-870).

293e). Santo Anselmo de Canterbury (1033-1109).

293i). Pedro Lombardo (c.1100-1160).

294. Escolásticos do período de apogeu, agostinianos ecléticos (séc.13).

294d). Rogério Bacon (c.1214-1294).

294e). Henrique de Gand (c. 1217-1293).

294f). São Boaventura (1221-1274).

Page 11: Filosofia Da Religiao

294h) Pedro João Olivi, ou Pierre de Jean Olieu (c. 1248-1298).

294j) Alberto Magno (1196,ou 1206-1280).

295. Tomás de Aquino e os primeiros tomistas.

295i). Primeiros tomistas.

295w). Dante Alighieri (1265-1321).

296. João Duns Escoto (c.1266-1308) e o escotismo.

297. Os Escolásticos do fim da Idade Média (3-o. período).

298. Nominalistas do fim da Idade Média e a filosofia da religião.

298a). William (ou Guilherme) de Ockham.

299. Escolásticos tomistas do fim da Idade Média e a filosofia da Religião.

300. Escolásticos escotistas do fim da Idade Média e a filosofia da religião.

301. Escolásticos misticistas do fim da Idade Média.

301a). Mestre Eckhart (c.1260-1328).

301b). Johan van Ruysbroeck (ou Ruusbroec) (1293-1381).

302. Concluindo sobre filosofia da religião no contexto da Escolástica latina.

Art. 7-o. RELIGIÃO NA FILOSOFIA MODERNA. 7270y303.

I – Pensamento religioso moderno misticista. 7270y305.

306. Introdução à filosofia da religião dos modernos.

307. Cristianismo e neocristianismo.

A) – Misticismo religioso de Nicolau de Cusa. 7270y308.

309. Nicolau de Cusa (1401-1464).

310. Conservou Nicolau de Cusa elementos do neoplatonismo.

311. Conhecimento místico e conhecimento raciocinativo.

312. A reserva de Nicolau de Cusa aos procedimentos da razão.

313. Limitada capacidade de formulação dos universais.

314. Crítica ao conhecimento conceitual.

315. Filosofia a partir de cima, a saber, do Uno.

316. Nicolau de Cusa desenvolveu o exemplarismo de Platão e Plotino.

317. Em Cristo um caminho para o absoluto.

B) - A mística de Lutero. 7270y318.

319. O homem um iluminado por Deus.

Page 12: Filosofia Da Religiao

320. A salvação pela fé e não pelas boas obras.

321. A filosofia política de Lutero.

C) – Boehme, um místico e filósofo da religião. 7270y322.

323. Místico inteligente, de sapateiro a filósofo.

324. Acreditava ter chegado a uma ultra-ciência.

II – O pensamento religioso moderno naturalista: Deísmo, Maçonaria. 7270y325.

326. Tendência religiosa moderna ao naturalismo antis-sobrenaturalista.

327. Causas do naturalismo religioso moderno.

328. Cresceu o interesse pela teologia natural.

A) - O Deísmo anti-sobrenaturalista. 270y329.

330. Deísmo, primeira forma representativa do naturalismo religioso moderno.

331. Começou o Deísmo na Inglaterra.

332. Deismo na França, e na Alemanha.

333. Naturalismo religioso do hegelianismo de direita e de esquerda.

B). A Maçonaria filantrópica, liberal, deísta. 7270y334.

335. A maçonaria, na forma definitiva e como hoje se apresenta.

336. Instituições de cúpula, - Grande Loja, Grande Oriente.

337. Difusão generalizada das lojas maçônicas.

338. No Brasil a maçonaria remonta aos fins do século18.

339. Maçonaria e Igreja Católica conflitaram frequentes vezes.

III – A Cabala panteísta atravessando o tempo. 7270y340.

341. Origem da Cabala.

342. Os métodos desconcertantes da leitura cabalística.

343. Na Renascença novas formas de Cabala.

344. Paracelso, da Cabala da Renascença.

IV- Bruno, o pantéista, levado à fogueira pela Santa Inquisição. 7270y345.

346. Introdução ao monismo moderno.

347. Giordano Bruno combativo e brilhante.

348. A idéia monista da infinitude do mundo.

349. Os corpos são dotados de forças intrínsecas.

V – Religião no racionalismos teísta cartesiano. 7270y350.

Page 13: Filosofia Da Religiao

351. Renato Descartes.

352. Deus na filosofia de Descartes.

352a). Primeira prova - A idéia de Deus supõe ao mesmo Deus.

352b). Segunda prova - O imperfeito pressupõe o perfeito, Deus.

352c). Terceira prova - A idéia do ser perfeito inclui a priori sua existência.

353. A natureza de Deus, na filosofia de Descartes.

354. Voluntarismo divino, defendido por Descartes.

355. O racionalismo cartesiano teve continuadores unilineares.

VI – Espinoza, um pantéista cartesiano. 7270y356.

357. Nascido em Amsterdam, Espinoza era filho de judeus portugueses.

358. A base gnosiológica do pensamento de Espinoza.

359. A questão monista ou panteísta.

360. Natura naturans e natura naturata.

361. O problema das relações entre o corpo e a alma.

VII – Ontologismo, jansenismo, teodicéia. 7270y362.

363. Ontologismo de Nicolas Malebranche.

364. Jansenismo, como doutrina religiosa.

364a). Jansênio Cornélio.

364b). Antoine Arnauld.

365. A Teodicéia de Godofredo Guilherme Leibniz.

VIII– Religião no racionalismo kantiano. 7270y366.

367. Imanuel Kant, um novo período na filosofia moderna.

368. Deus apenas como uma idéia do entendimento puro.

369. Deus como postulado da razão prática .

IX – Religião no monismo dialético idealista. 7279y372.

373. O monismo dialético idealista , gerado por 3 grandes figuras da filosofia:

374. Deus no sistema idealista dialético de Fichte.

375. Deus no sistema de Hegel.

376. Hegel foi um kantiano, com as reformulações do idealismo dialético.

377. A religião é deslocada a um plano secundário na dialética hegeliana.

378. A Direita hegeliana conservou o panteísmo na forma idealista.

Page 14: Filosofia Da Religiao

380. Romantismo religioso de Schelling.

381. O monismo de Schelling.

X – Agnosticismo religioso empirista e positivista. 7270y383.

384. O pressuposto gnosiológico do empirismo.

385. O empirismo e o positivismo historicamente.

386. Os primeiros empiristas modernos.

387. Positivismo é apenas um novo nome para o empirismo.

388. Lei de Comte, dos 3 estados mentais: teológico, metafísico, positivo.

389. Como os 3 estados mentais evoluem.

390. Paralelismo entre a evolução da humanidade e a do indivíduo.

391. O que importa ao empirista primeiramente provar.

XI – Agnosticismo do materialismo dialético. 7270y393.

394. Esquerda hegeliana, nome de guerra do materialismo dialético.

395. Ludwig Andréas Feuerbach.

396. Metafísica materialista e religião como alienação.

397. O materialismo histórico de Feuerbach e Marx.

398. David Strauss, teólogo protestante hegeliano, liberal.

399. Como se formou o mito de Jesus, no entender de David Strauss.

400. Bruno Bauer e Fernando Cristiano Bauer, teólogos racionalistas.

401. Ernest Renan (1823-1892), filósofo moderado, exegeta liberal.

XII – Religião no existencialismo. 7270y403.

404. O existencialismo uma filosofia de tendência agnóstica.

405. A fenomenologia, método do existencialismo.

406. O pré-existencialismos de Kierkegaard e de Nietzsche.

407. Martin Heidegger (1889-1976), - o Papa do existencialismo.

408. Realismo imediato da fenomenologia de Heidegger.

409. Limites da ontologia da ontologia de Heidegger.

410. Ex-sistência, in-sistência, existenciais.

411. Descreveu Heidegger os existenciais muito complexamente.

412. Jean Paul Sartre (1905-1980), existencialista.

414. Fenomenologia da situação imediata da existência.

414a). Rejeitou Sartre a validade da inteligência raciocinativa.

Page 15: Filosofia Da Religiao

414b). Fez Sartre ontologia, analisando objetivamente o ser em si mesmo.

414c). Deus é absurdo e a criação é contraditória, diz Sartre.

414d). O conhecimento é uma intencionalidade.

414e). Uma ética foi também ensaiada por Sartre.

416. O existencialismo cristão teve também alguma voga.

417. Karl Barth (1886-1968), calvinista com aspecto kierkegaardiano.

418. Karl Jaspers (1883-1969), existencialista ameno.

419. Existencialismo cristão de Gabriel Marcel (1889-1973).

XIII – Intuicionismos espiritualistas. 7270y421.

422. Religião com apoio em experiências intuicionistas.

A). Intuicionismos espiritualistas tipo Bérgson. 7270y423.

424. Primeiros intuicionistas espiritualistas.

425. Henry Bérgson, filósofo espiritualista empírico-intuicionista.

426. Duas fontes de conhecimento, - intuição e razão.

427. A nova metafísica de Bérgson, com base na intuição.

428. Deus, para o intuicionismo de Bérgson.

429. Moral aberta e moral fechada, na distinção de Bergson.

430. Maurice Blondel – Filosofia da ação.

B). O Modernismo em teologia. 7270y432.

433. Modernismo (em teologia católica).

434. Filósofos e teólogos modernistas.

435. Alfredo Firmin Loisy, modernista.

436. Teses modernistas condenadas pela Igreja Católica.

437. Enciclica Papal sobre o Modernismo.

439. Conclusão geral sobre a evolução dos sistemas de filosofia da religião.

Cap. 4

SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS.

7270y445.

Page 16: Filosofia Da Religiao

446. Introdução às provas da existência de Deus. 447. Sobre os dois tempos na prova da existência de Deus.

Art. 1-o.PRINCÍPIOS GERAIS QUE LEVAM À EXISTÊNCIA DE DEUS. 7270y449.

450. As dificuldades começam com os princípios que embazam as provas.

451. Advertência sobre o caráter metafísico da questão sobre Deus.

I – Preliminar sobre o ser simplesmente. 7270y452.

453. A metafísica do conhecimento como pressuposto remoto da religião.

454. Realismo e idealismo em religião.

455. Racionalismo e empirismo em religião.

456. A ontologia, ou metafísica do ente.

457. Entre ente da metafisica e ente como universal metafísico (ou ente como tal).

458. A distinção acima reclamada deve apoiar-se no contexto.

459. Duas espécies de abstração, total e formal.

460. A entidade é sobretudo a existência do ente.

461. Importa decidir sobre o universal metafísico.

462. Onde começa o problema do universal metafísico.

463. A prova do universal metafísico é a noção plena do ser como fato.

464. O ser como universal metafísico em suas aplicações particularizantes.

II – Essência do ser. 7270y465.

466. O existir é a realidade básica do ser.

467. O ente, basicamente é uma noção que não tem outra anterior.

468. Que é essência?. Inclui a existência o modo de existir, chamado essência .

469. Fontes etimológicas distintas de existência e essência.

III – Modos gerais do ser. 7270y470.

471. A partir dos modos gerais do ser, os princípios decorrentes.

472. Quais são os modos gerais do ser.

473. Deus realiza os modos gerais do ser, de maneira eminente.

IV – Princípios gerais do ser. 7270y474.

475. Princípios como afirmações fundadas nos modos gerais de ser.

476. Importam à filosofia da religião os princípios gerais e derivados.

Art. 2-o. FATOS A EXPLICAR PELA EXISTÊNCIA DE DEUS. 7270y477.

478. Ordenamento das provas da existência de Deus.

Page 17: Filosofia Da Religiao

479. A inoperante prova a priori da existência de Deus

481. 1-a.Via para Deus: prova pelo movimento.

482. As contestações feitas ao argumento da 1-a via para Deus.

483. 2-a.Via para Deus: prova pela subordinação essencial das causas eficientes.

484. As dificuldades apresentáveis contra a 2-a via de acesso a Deus.

485. 3-a. Via para Deus: prova pela existência de seres contingentes.

486. Contestanto à validade da 3-a via de acesso a Deus.

487. 4-a. Via para Deus: prova pelos graus de perfeição dos seres .

488. Argumento condicionado à possibilidade da infinitude.

489. 5-a. Via para Deus: prova pela ordem do mundo.

490. Dificuldades da verificação do finalismo.

491. O acesso imediato a Deus pela via do conhecimento subjetivo.

492. Difícil mostrar que a via do acesso imediato a Deus ocorra.

Cap. 5

SOBRE A NATUREZA DO VERDADEIRO DEUS.

7072y493.

494. Advertência sobre a dificuldade do tema.

Art.1-o. LIMITAÇÕES DO CONHECIMENTO SOBRE DEUS. 7072y496.

497. A natureza de Deus se conhece a partir das provas da sua existência.

I – O conhecimento de Deus se dá por analogia. 7072y498.

II – O conhecimento de Deus se dá com impropriedade. 270y505.

Art. 2-o. A ESSÊNCIA DE DEUS. 7072y512.

513. A essência de Deus a partir das provas de sua existência.

514. A essência de Deus na existência simplesmente .

515. A essência de Deus como existência liberada ao infinito.

516. Entre essência de Deus e atributos de Deus.

517. Opiniões sobre a essência de Deus: de Platão, Aristóteles e outros.

518. Prova-se a essência divina como existência subsistente.

Page 18: Filosofia Da Religiao

519. O que Deus não é.

Art. 3-o .ATRIBUTOS DE DEUS. 7072y520.

521. Os atributos como decorrência direta da essência).

I – Natureza geral dos atributos de Deus. 7270y522.

523. Decorrência por efeito formal, imanente, distinção virtual menor.

524. A convertibilidade de umas propriedades em outras.

525. Classificam-se os atributos de Deus.

II– Atributos próprios, exclusivos de Deus. 7072y526.

527. São atributos entitativos próprios de Deus , entre outros:

- infinitude (vd 528),

- unicidade (vd 529),

- simplicidade (vd 530),

- ubiquidade (vd 531),

- imutabilidade (vd 532),

- eternidade (vd 533),

- necessidade (vd 534),

- absolutidade (vd 535).

528. A infinitude de Deus, o mais destacado atributo divino.

529. A unicidade de Deus, decorrente de sua infinitude.

530. A simplicidade, e ainda o problema da Trindade das pessoas divinas.

531. A ubiquidade de Deus adequadamente entendida.

532. Imutabilidade de Deus, decorrente da infinitude.

533. Eternidade de Deus, como entendê-la.

534. Necessidade intrínseca de Deus.

535. Deus o Absoluto, sem relações reais para fora de si mesmo.

III – Atributos não exclusivos de Deus. 7072y536.

537. Os atributos comuns a Deus e aos demais seres.

538. A distinção: imperfeições, perfeições mistas, perfeições puras.

A – As perfeições transcendentais de Deus . 7072y539.

540. Deus é uma unidade. E como entender a Trindade de pessoas?

541. Deus é verdadeiro (ontologicamente).

Page 19: Filosofia Da Religiao

542. Deus é a bondade (ontológica).

543. Deus é o belo, em sentido de perfeição em destaque.

B – As perfeições categoriais de Deus. 7072y544.

545. Conceito de categoria ou de modos especiais do ser.

546. Deus como pessoa.

547. Deus como substância espiritual, ou espírito.

548. Inteligência, vontade, potência de Deus são atributos operativos.

549. O objeto do conhecimento divino é antes de tudo o próprio Deus.

550. O objeto da vontade divina é primeiramente ele, o bom Deus.

551. A potência ad extra , de Deus, não é passiva, é apenas criativa ad extra.

553. Explicação intrínseca da criação.

II-a. PARTE

FILOSOFIA DA RELIGIÃO:

" DA RELIGIÃO COMO CULTO. "

556. Introdução geral à religião como culto.

Cap. 6

DA RELIGIÃO FORMALMENTE,

COMO EXPRESSÃO INTERNA E EXTERNA.

7270y558.

559. Estudo da religião formalmente , como expressão.

Art. 1-o EXERCÍCIO INTERIOR DA RELIGIÃO. 7072y560.

561. A essência da religião já está toda na expressão interior, exercida pela mente.

I – A religião é conscientização de si, como glória de Deus . 7072y563.

564. Não fosse o sabor da auréola da glória...

565. Definição da glória.

566. A glória verdadeira.

567. Como palavra, gloria...

Page 20: Filosofia Da Religiao

568. Equivalentes de glória, - culto, fama, homenagem, honra, religião.

568a) Culto, como palavra.

568b) Fama, como palavra.

568c) Homenagem, como palavra.

568d) Religião, como palavra.

568e) Honra, como palavra.

569. Glória objetiva e glória formal.

570. A religião como glória, acontece no ser racional quando...

II – Análise maior sobre a glória. 7072y572.

574. A glória, de que se ocupa a religião.

575. A investigação pelas 4 causas do ser.

576. A questão da finalidade externa e da finalidade interna .

577. A glória atinge o ser em sua totalidade.

578.A glória se liga intimamente com a noção de idéia exemplar .

579. Coincidência concreta da glória e da felicidade.

580. O falso rigorismo.

581. Religião como ontologia da finitude.

582. Antes do louvor em palavras, importa pensar corretamente a glória de Deus.

583. Os fins externos menores , como a utilidade e similares.

584. Culto pela declaração antecipada de intenções.

585. Fim atual, fim habitual, fim interpretativo.

III – Dever ético da prática da religião. 7072y586.

587. Pergunta-se pelo preceito ético da religião.

588. A prática da religião sem exercício exterior obrigatório.

589. O exercício do culto como um direito de todos.

IV- Complicadores do culto em religião salvacionista.7270y590.

591. Complexificação operacional em religião.

592. A difícil presença adequada das três pessoas da Trindade divina.

593. A economia cristã da salvação.

594. A graça divina e seu drama.

595. O sacrifício redentor oferecido por Jesus ao Pai Eterno.

Art. 2-o. RELIGIÃO COMO EXPRESSÃO EXTERIOR, RITUAL E LITÚRGICA. 7072y597.

Page 21: Filosofia Da Religiao

598. Nas manifestações exteriores apresenta a religião sua vasta presença.

I – Natureza da expressão exterior da religião. 7270y599.

600. A expressão religiosa como gênero de arte.

601. Os termos culto, rito, liturgia.

602. Ênfase religiosa exterior conforme ao desenvolvimento mental.

603. A justa medida da religiosidade.

604 . Eventuais vantagens da religião exteriorizada.

II – Oração vocal, sacrifício e outras formas de rezar. 7270y605.

606. A oração vocal, uma vez justificada, importa ser aperfeiçoada.

607. Motivação exterior versus aridez espiritual.

608. Há graus de atenção para se rezar com o auxílio de uma fórmula.

609. Adequacidade diferenciada dos textos de oração.

610. O sacrifício é uma expressão religiosa exterior.

611. Sentido da imolação, ou destruição, no sacrifício.

612. Missa combinada com comunhão por ingestão.

613. O sacrifício como expressão de adoração.

614. A poesia religiosa, com frequência sugere a glória.

615 . Cântico dos três mancebos , do livro do Profeta Daniel.

Cap. 7.

A ORAÇÃO NA RELIGIÃO.

7072y616.

617. A oração é um dirigir-se diretamente a Deus, como pessoa.

Art.1-o. DA ADORAÇÃO EM DETALHE. 7072y619.

620. A adoração como atitude antes de tudo mental.

621. A adoração frente às demais partes da oração.

622. Momentos no curso da adoração.

623. Adorar é filosofar.

Page 22: Filosofia Da Religiao

624. A idolatria é um erro de objeto, um máximo de imperfeição.

Art.2-o. DA REPARAÇÃO EM DETALHE. 7072y625.

626. No sentido óbvio, reparação é um fazer de novo.

I – Conceito da oração reparatória. 7270y628.

629 O campo da reparação é maior que o da adoração.

630. Reparação sob preocupação da ira divina.

631. O que importa reparar.

632. O pecado no sentido formal (intencional).

633. O perdão, mais um conceito relacionado com a reparação.

634. O castigo. O máximo que se pode admitir no castigo.

635. Reparação por reposição.

636. A penitência. Sem valor ontológico, tem algum valor subjetivo.

II – A reparação redentora cristã. 7270y638.

639. A reparação vicária, por transferência para alguém.

640. Isaías deu ao Messias a imagem de expiador dos pecados dos outros.

650. A reparação vicária, uma preocupação cristã.

651. A reparação uma constante na religião cristã.

652. O sacrifício cristão da missa, um ato satisfatório pelos pecados.

Art. 3-o. DA PRECE EM DETALHE. 7072y655.

656. A prece, em religião.

657. Encômios piedosos à prece.

658. É difícil provar a possibilidade de uma prece ser atendida.

659. Para salvar a possibilidade da prece.

660. A prece atendida ab aeterno.

661. Especulações sobre a questão de como Deus atenderia a prece.

662. Seria a prece obrigatória por lei positivo-divina?

663. Uma prova sobre a obrigação da prece importa em ser adequada.

Art. 4-o. DETALHES SOBRE A AÇÃO DE GRAÇAS. 7072y666.

667. A oração, de pessoa a pessoa, termina pela ação de graças.

668. Na ação de graças o que importa destacar .

669. A meditação ajuda a recordar os benefícios de Deus, um a um.

Page 23: Filosofia Da Religiao

670. O que Deus não concede.

671. O hino clássico de ação de graças dos cristãos: Te Deum Laudamus.

672. O hino: Deus eterno, a Vós louvor.

Cap. 8.

MÉTODOS DE ORAÇÃO

(vocal e mental).

7270y675.

676. Métodos como modos de operar. 677. Os objetivos a alcançar e o esforço de eficácia.

Art. 1-o. A ORAÇÃO VOCAL COMO MÉTODO. 7270y679.

680. A expressão exterior pode aperfeiçoar a interior.

681. Espécies de oração vocal, a espontânea e a de formulário.

682. Variedades de oração vocal, umas aprendidas de cor , outras de formulário.

Art. 2-o. A ORAÇÃO MENTAL COMO MÉTODO. 7270y684.

685. Oração sem uso de formulário: interna e silenciosa oração.

686. A ordem interna da oração mental.

687. A conveniência da oração mental.

688. A firmeza da atenção importa na oração mental.

689. O tema da atenção espiritual, no qual a atenção é menos espontânea.

Art. 3-o. A MEDITAÇÃO COMO MÉTODO DE ORAÇÃO. 7072y691.

692. A meditação é um método de oração de considerável importância.

I – O lado meramente raciocinativo da meditação. 7072y695.

696. A meditação descrita como uma atenção em progresso.

697. Preparação e conclusão, - moldura da meditação.

698. Como tornar a Deus presente na meditação?

699. Preparação imediata da meditação.

700. A meditação propriamente dita: reflexão sobre o tema escolhido.

701. Instrumentos da meditação, a operações mentais: conceito, juízo, raciocínio.

Page 24: Filosofia Da Religiao

II – O lado afetivo da meditação. 7072y703.

704. O saber agrada.

705. As causas da variação efetiva no curso da meditação.

706. As consolações espirituais são o avesso da aridez do espírito.

III – O objetivo da meditação. 7072y708.

709. Importa escolher adequadamente os temas sobre os quais meditar.

710. Varia o objeto da meditação com os estágios aperfeiçoativos alcançados.

Art. 4-o. A CONTEMPLAÇÃO COMO MÉTODO DE ORAÇÃO. 7270y714.

715. A contemplação opera com atenção adquirida e conservada.

716. Graus de atenção adquirida e conservada.

717. A glória de Deus atenção a ser adquirida e conservada.

Cap. 9

CULTO AOS SANTOS, VISÕES E CONTATO COM ESPÍRITOS.

7270y720.

721. Eis uma peculiaridade da religião popular: Santos, espíritos, visões.

Art. 1-o. O CULTO AOS SANTOS. 7270y722.

723. Santos canônicos.

724. Santos da preferência popular.

I – Do culto aos santos em geral. 7270y725.

726. Uma presença inútil de São Sebastião?

728. Conceituação sobre os santos, diversa de católicos e protestantes.

729. Funda-se o culto aos santos na tradição e em passagem bíblicas.

730. Dificuldades racionais contra o poder de intercessão dos santos.

II – Culto à Maria, a SS. Mãe de Jesus. 7270y732.

733. Os cristãos destacam o culto à Maria.

734. A doutrina da mediação universal de Maria.

Art. 2-o. Visões e contato com espíritos. 7270y737.

738. Assunto secundário em religião, todavia envolvente.

Page 25: Filosofia Da Religiao

739. Visões, talvez anomalias.

740. Equacionando o problema do contato dos vivos com os mortos.

741. Vida e espírito na doutrina dualista.

742. Vida e espírito na doutrina monista.

743. Conceituações divergentes de vida, alma, espírito.

744. A morte no contexto do monismo da natureza.

745. A comunicação dos espíritos no contexto do monismo da natureza.

747. Encerrando nossa exposição sobre filosofia da religião.

FILOSOFIA DA RELIGIÃO

APRESENTAÇÃO TÉCNICA DO TEXTO.7270y003.

4. Filosofia da religião, como se apresenta na Enciclopédia Simpozio, é um texto da subunidade geral denominada Enciclopédia de Filosofia. Pela sua forma é um texto hípermega. Como texto híper, Filosofia da religião é um tratado. Nesta condição hiper, Filosofia da religião se distingue dos artigos atômicos, estes dispostos em ordem alfabética. Mas é a ordenação sistemática, portanto em tratado, de todos os artigos relacionados com o tema. Hipermega se distingue de micro-, porquanto o texto apresenta também uma versão resumida, com que participa no texto Micro filosofia geral. De outra parte, Filosofia da religião integra um conjunto maior de tratados, Mega Filosofia Geral (Mega Metafísica), porque do ponto de vista sistêmico obedece à ciência específica a que se reduz. Aliás, são partes mais evidentes da mesma ciência metafísica: Filosofia do conhecimento (ou Teoria do Conhecimento), Filosofia do ser (Ontologia), Filosofia da Religião (Teodicéia). A numeração divisionária do texto Filosofia da religião é de 3 dígitos, contando pois com o espaço de 000 até 999. Para a citação interna bastam os números desta divisão divionária. Para a citação a partir do exterior do tratado, importa a numeração básica deste, e que é 7270, combinada com a numeração divisionária, intercalada pela letra y (equivalente de híper). Por exemplo 7270y001 leva ao índice analítico de Filosofia da Religião. Concluindo a apresentação técnica do texto, ainda anotamos que este livro, denominado Filosofia da religião, foi o primeiro que escrevemos em nossa vida. Como jovem estudante o redigimos a primeira vez no início da década de 1940. Depois o reformulamos várias vezes, sem nunca o publicar, até que em 2001, chegamos a dá-lo como concluído (vd 744) e adatado para ser parte, nesta Enciclopédia Simpozio, do conjunto Mega Filosofia Geral (ou Mega Metafísica), na posição em que outros colocam o que chamam Teodicéia.

INTRODUÇÃO GERAL À "FILOSOFIA DA RELIGIÃO".

7270y005. 6. Numa introdução à filosofia da religião importa chegar a defini-la claramente e dispor didaticamente as suas partes principais, com os respectivos capítulos a serem examinados. Quer sobre a definição da filosofia da religião, quer sobre sobre sua divisão importam algumas digressões, que podem esclarescer obscuridades e ajudar o desenvolvimento sistemático do assunto. 7. Ainda sobre a definição de filosofia da religião. Trata a filosofia de todos os temas que reclamam um esclarecimento que dependem de ponderações puramente raciocinativas. Ela não inclui as questões de ordem

Page 26: Filosofia Da Religiao

científica, ou seja das ciências positivas, as quais são decididas por verificação experimental. Não obstante, a filosofia deve respeitar os fatos e estar então alinhada com as referidas ciências. É um tema tipicamente filosófico discutir o sentido da realidade em geral, quando se ergue a questão da existência de Deus e do seu culto. Trata pois a filosofia da religião do sentido da realidade em geral, tendo por objeto específico a questão da existência de Deus e do seu culto. A filosofia oferece conceitos em função dos quais é possível julgar a religião vigente, aquela acontecida através da história. A partir deste saber, desenvolvido criticamente, a religião poderá crescer, - da dignidade que já tem, - para níveis crescentemente mais elevados. Muitos já abandonaram a forma culturalmente primarista das religiões vindas do passado, sem contudo deixarem de apreciar as questões que de maneira válida se erguem a respeito da realidade global. Geralmente os indivíduos que promovem a religião se caracterizam como pessoas bem intencionadas e diligentes, e não como filósofos perscrutadores da verdade. Por isso ocorre um descompasso entre a religião cultural efetivamente praticada e a filosofia da religião. Os que sabem menos, costumam ser os guias religiosos das grandes massas piedosas, e costumam chamar de heréticos aos que sabem mais.

8. Religião sobrenatural. Quando uma religião se funda em revelações, que os visionários e similares dizem ditadas a eles por Deus, ela já não é tema direto da filosofia, porque suas provas dependem da constatação factual. Mas, em princípio, a religião sobrenatural tem de estar coerente com os fundamentos filosóficos da mesma religião e deve provar o fato de sua revelação com rigor científico. Em outras palavras, a religião sobrenatural importa em uma argumentação epistemologicamente bem conduzida. Eis o que não parece claro na religião sobrenatural, até porque se apresenta com uma variedade verdadeiramente anárquica. Por causa da geral anarquia acontecida no campo das religiões, quer do ponto de vista filosófico, quer do ponto de vista da ciência, a religião aparenta ser algo sobretudo do atraso cultural dos simples. Entretanto, assim não é. Efetivamente, a religião é própria sobretudo do sábio, porque ela encara a realidade geral, e sobre ela procura tomar uma posição.

9. Doutrinação e proselitismo religioso. O verdadeiro mestre propõe, mas não impõe. Os discípulos ouvem as razões pró e contra, com vistas a atingirem eles mesmos uma conclusão. Nesta interação consiste a correta maneira de exercer o ensino, seja na escola e na universidade, seja inclusive nos templos. Todavia não é o que sempre acontece. Com frequência, a religião se torna tema somente de doutrinação e proselitismo. Já supõem a doutrinação e o proselitismo uma posição tomada, a qual eventualmente poderá ser verdadeira, mas também falsa. O doutrinador, que faz proselitismo, não mais se propõe a rever sua posição; convencido de uma doutrina, a propaga, com vistas a obter prosélitos. Ele interpreta a si mesmo como apóstolo de uma verdade. Quando pesquisa apenas procura novas provas para esta sua verdade. Quando discute, não mais busca a verdade, mas quer apenas refutar seus adversários. Doutrina (do latim docere = ensinar) pressupõe uma posição tomada, por parte de quem ensina. O doutrinador, porém, visa linearmente convencer aos ouvintes sobre uma doutrina feita. É apenas um veículo de algo, que nem ele mesmo pode alterar, senão renunciando à tarefa inicialmente proposta. Tal é praticamente a condição da maioria dos pregadores das religiões tradicionais: pregam uma doutrina feita, para qual não contribuem senão como veículo da mesma, e não para seu desenvolvimento interno.

O proselitismo, do grego prosélitos (= aderente), consiste em conquistar aderentes de uma doutrina feita e não em um trabalho de puro desenvolvimento dos conhecimentos sobre a religião. O proselitismo não se ocupa diretamente do desenvolvimento da pesquisa religiosa mas da propagação de doutrina feita, ou seja, de uma ideologia. A prática do proselitismo, de que falam os livros bíblicos do Novo Testamento (escritos em grego), era peculiar aos judeus, que saíam pelo mundo helênico-romano com visitas a pregar aos mesmos judeus e também aos pagãos para convertê-los ao judaísmo. Prosélitos se dizia principalmente dos pagãos conversos ao judaísmo, e depois também ao cristianismo. Imitando o habito proselitista judeu, os primeiros cristãos também se entregaram ao proselitismo, e tiveram mais sorte com o seu neojudaísmo. Os fariseus exigiam dos pagãos conversos até mesmo a circuncisão (corte do prepúcio do pênis); os cristãos não demoraram em dispensar este corte doloroso, tornando sua doutrina mais aceitável e adequada ao proselitismo. Por esta e outras razões ganharam os cristãos a corrida proselitista, deixando para trás aos fariseus. Efetivamente os pesquisadores mais sérios têm sido aqueles que recuam diante das respostas fáceis, e preferem a atitude cautelosa de diante do mistério, quando perguntam pela realidade como um todo.

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Os pesquisadores não são agnósticos no sentido comodista, mas ativos. Embora critiquem as respostas dos simplistas, não rejeitam indagar sempre. O resultado dos pesquisadores da investigação séria em religião é bastante negativo, mas não negativista. É negativo, porque afasta da mente o homem falsas convicções e todos os envolvimentos consequentes. Este é um resultado negativo crítico, um espaço puro sem falsos fantasmas. Não é um resultado negativista, porque a pesquisa continua, indagando pelo o que há de mais misterioso – o sentido do todo como um todo.

É importante esquecer o Deus da imaginação, que as fantasias colocam como um senhor feudal no meio de um vasto céu, no qual voam anjos e há santos de todas as categoriasa, alguns com coroas de reis, outros com mitras papais sobre as cabeças. Mas, este Senhor, dito todo poderoso, é todavia menor que o próprio céu... Entretano, se Deus é infinito, não criou o céu para ir morar dentro dele. O inverso poderá ser dito, que o céu está dentro de Deus. O Deus que mora no céu desde há muito morreu para filosofia, ainda que na imaginação de alguns pregadores populares, ele ainda continua assim, ligeiramente mais forte que o Diabo. Este Deus em vez de ser infinitamente mais alto que a montanha é apenas menor que uma colina. O problema do Grande Ser, da realidade intensivamente infinita, do Deus Verdadeiro, da Razão Suficiente do mundo está sempre vivo para a inteligência raciocinante. Difícil será conceituá-lo. Importa, por conseguinte, esforçar-nos em assunto tão transcendente. Mais uma vez nos colocamos nesta aventura astronômica de perguntar por Deus, sem preestabelecer preconceituosamente, - se Ele é algo independente do mundo, ou se Ele é o próprio mundo. Temos que nos situar no começo, rigorosamente antes de todas as respostas.

10. A atitude filosófica e científica em religião. Metodologicamente, tudo principia pela dúvida, em que o pensamento crítico pergunta por todas as alternativas, para depois estabelecer como tese, o que foi efetivamente provado. Neste sentido dizemos, que o estudo da religião é, em primeiro lugar, uma filosofia e uma ciência, não uma doutrinação e proselitismo com base em visões. A filosofia e a ciência tratam simplesmente de saber, de conhecer, de compreender, de descobrir, de pesquisar, de indagar, de estudar. É o que faz a escola autêntica, ou seja a boa universidade. Este estado de espectativa deverá ser a atitude mental de cada um, colocando-se metodologicamenge no começo, aguardando a verdade que por primeiro bate à porta. Algumas religiões exaltam o trabalho do apóstolo e condenam aquele que muda a crença. Mas isto importa em ser primeiramente bem equacionado. O cristianismo, por exemplo, conta com a promessa enfática de Jesus, de que aqueles, que deixam a sua família, por amor ao Reino de Deus, terão um grande galardão no céu. Isto poderá ser válido, mas somente depois que o cristianismo como um todo estiver provado e possa ser aceito para a pregação. Também são religiões proselitistas o islamismo e budismo. Não importa que o sejam, desde que proponham por primeiro discutir vastamente a validade de suas bases. O bramanismo é um caso excepcional de pouco proselitismo, razão porque se restringiu quase só à Índia. Mas, mesmo ali deverá cuidar primeiramente de seu fundamento doutrinário. Depois de provados os fundamentos da doutrina a ser pregada como proselitismo, importa ainda um prévio cuidado para com o respeito à liberdade de consciência daquele ao qual se prega. O proselitismo e o fanatismo são frequentes no homem simples, o qual pensa fazer caridade ao levar sua doutrina pessoal aos demais. Diferentemente, o homem sábio tende a uma pesquisa, com vistas a tornar seu saber mais crítico. Ele melhor compreende que ninguém é bom ou mau em função ao que for capaz de saber, mas em função à intenção moral. O fanático supõe que os de outra fé serão mesmo condenados ao fogo eterno. Nos tempos modernos diminui o fanatismo entre os próprios homens simples. É que o tecnicismo habitua as mentes a interpretarem todas as coisas como tendo causas efetivas e não causas mágicas. Nem ocorrem insuflamentos fanáticos nas proporções como ocorriam no passado, quando as religiões se viam como umas contra as outras. No futuro as religiões, através de chefias mais esclarecidas, passarão a se verem como sendo apenas diferentes, e não simplesmente como sendo contrárias, com atitudes agressivas. A escola e a universidade se orientam no sentido da pesquisa pura, sem proselitismo, quer ser trate de história, quer de política, quer de sociologia. A educação cada vez mais se conscientiza da liberdade de pensamento como um direito do aluno, induzindo-o a pensar com a própria cabeça. Proporcionalmente à população, decresce o número das instituições religiosas, que usam a escola como instrumento de indução para fazerem de seus alunos novos prosélitos. As empresas de comunicação (jornais, revistas, rádio,

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televisão), ficaram também em grande parte fora do controle dos grupos ideológicos, ainda que estes possam a eles ter acesso. Não obstante, nada obsta que escolas e meios de comunicação estejam em poder de organizações de ideologia definida, com a condição que sejam respeitadas as normas da liberdade de pensamento. Cabendo à escola e à universidade a função de educar e ensinar, devem também questionar a religião, capacitando aos alunos a que pensem criticamente com os próprios recursos. Isto já acontece em grande escala, e é responsável pela mudança da mentalidade religiosa do homem moderno. Nada predefinindo como doutrina, a universidade tem, entre outras finalidades, também o desenvolvimento do estudo global da religião. Superado o antigo proselitismo, deverá chegar uma grande época, em que todos sejam capazes de entrar no mesmo templo, sem se preocupar com o que pensa aquele que está a seu lado. Ninguém mais será chamado infiel a Deus, nem lhe será dito ser condenado, por não ter a mesma fé dos pretensos guias das almas alheias. Então até a multiplicidade de convicções passará a ser interessante para o aprofundamento da pesquisa sobre a verdade global.

11. Divisão geral da filosofia da religião. De primeiro intúito, apresenta-se claro dividir, entre o que é, e o que dali decorre. Eis, pois, a divisão da filosofia da religião em duas partes gerais:

- Da religião em seus fundamentos (da religião materialmente) (vd 7270y012); - Da religião como culto (a religião formalmente) (vd 7270y555). A). A redivisão da 1-a parte da filosofia da religião, referente aos seus fundamentos, reclama três capítulos

preliminares, logo seguidos dos dois principais. Dali resulta o seguinte elenco temático de cinco títulos propostos a serem examinados seriamente:

- pensamento lógico e pensamento pré-lógico em religião (cap. 1-o.) (vd 7270y013); - exame histórico-crítico das religiões (cap. 2-o.) (vd 7270y049); - história das diferentes filosofias da religião (cap. 3-o.) (vd 7270y196); - a questão da existência de Deus (cap. 4-o) (vd 7270y445); - a natureza do verdadeiro Deus (cap. 5-o) (vd 7270y493).

Destacam-se, entre estes capítulos, os dois, que se referem à existência e à natureza de Deus. a) Supõe a religião a existência de Deus (cap. 4-o), questão que é preciso examinar exaustivamente As provas válidas seriam cinco, na opinião de Tomás de Aquino (1225-1274), que as selecionou. Elas dependem de princípios (ou axiomas), condicionados a uma sutil ontologia, de difícil aceitação. O exame dos argumentos de existência de Deus importam primeiramente em uma ontologia do divino, que consiste em estabelecer a possibilidade mesma da ontologia e dos princípios, sendo que estes funcionam como premissas das provas da existência de Deus. b) Importa atingir ao máximo o que é a natureza de Deus, para não ficarmos com um falso Deus. Eis um capítulo dos mais difíceis. A prova da existência de Deus não incorre necessariamente em sua distinção do mundo. Importa portanto dirimir a difícil polêmica entre monismo metafísico (materialista ou panteísta) e dualismo metafísico teísta. Se se decidir em favor do dualismo teísta, estarão preenchidas as condições essenciais para uma religião como culto da criatura ao criador. Tem condição de fundamentos da religião, sem serem a própria religião, os conceitos de Divindade e de criatura. Não há religião sem este binômino porque religião (essencialmente) é culto de um para outro. Colocado estes dois termos essenciais, de variada maneira se pode conceituá-los. Deus, como causa da natureza e das suas leis naturais é muito diferente de Deus assumindo o lugar das mesmas leis naturais, como entendem os sobrenaturalistas e sobretudo os animistas ou mágicos. De outra parte, a criatura também é conceituável de muitas maneiras. Com essa variação conceitual inicial, se dá mais uma vez oportunidade à variação das religiões, conforme ao ponto de partida adotado, consciente, ou inconscientemente. Em destaque se encontra a divisão, no plano da natureza, entre os dualistas e os monistas. Como se sabe, os dualistas conceituam o corpo e a alma como duas substâncias irredutíveis e capazes de se separar. Em consequência podem traçar uma história separada para o espírito, e a religião passa a ter um encaminhamento muito variado. Os monistas interpretam o corporal e o espiritual como dois aspectos de uma só realidade fundamental, de sorte que todos os seres são vivos desde sempre, mesmo quando não parecem dar manifestações de vida. De acordo com esta interpretação, todos somos vivos, desde que o mundo existe, embora não tenhamos memória do passado. Deste

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passado somente temos a memória indireta, que resulta do saber científico, dizendo-nos que o mundo já existia há bilhões de anos. B) A redivisão da 2-a parte da filosofia da religião, penetrando já no tema essencial da filosofia da religião, apresenta ao exame sucessivo:

- da religião formalmente como expressão, interna e externa (cap. 6-o.) (vd 7270y558); - a oração: adoração, reparação, prece, ação de graças (cap. 7-o.) (vd 7270y616); - métodos de oração, vocal e mental (cap. 8-o.) (vd 7270y675); - Visões, contato com os espíritos e culto aos santos (cap. 9-o.) (vd 7270y720).

I ParteFILOSOFIA DA RELIGIÃO

" EM SEUS FUNDAMENTOS "7270y012.

12. Introdução geral. Conforme ao que já se adiantou, ao se redividir a primeira parte da filosofia da religião, ela reclama três capítulos preliminares, sem os quais não é possível tratá-la adequadamente.

Por isso há a abordar preliminarmente os títulos já anunciados:

- o pensamento lógico e o pensamento pré-lógico nas religiões (cap. 1-o.); - a religião como um fato, que reclama um exame histórico-crítico (cap. 2-o.); - história das diferentes filosofias da religião (cap. 3-o.).

É difícil tratar da filosofia da religião sem estes elementos preliminares, porque uma situação especial a envolve como fenômeno cultural. Todos os indivíduos se ocupam com religião; dali resultam variações culturais mui diversas, do que as que se dão em outras expressões humanas. Sobretudo os mais simples se dedicam à religião e de um modo peculiar ao seu subdesenvolvimento mental. São dominados geralmente pelas narrativas dos visionários. Dali nascem curiosas formações sociais, que se refletem na variação das igrejas, as quais atuam como organizações de forte pressão sobre os homens. Um conhecimento seguro de filosofia da religião implica em conhecimentos difíceis e que reclamam um saber superior. Não nos referimos a um conhecimento superior apenas das religiões tradicionais, na forma de teologia e exegese de livros sagrados, mas principalmente ao conhecimento superior de ordem totalmente geral, em filosofia e ciência. Assim, pois, antes de seguir para os temas principais que fundamentam a religião, nos retemos longamente em aspectos que os ilustram preliminarmente.

CAP. 1PENSAMENTO PRÉ-LÓGICO EM RELIGIÃO.

7270y013.

- Filosofia da Religião -

14. Introdução. O pensamento religioso importa em ser inicialmente examinado do ponto de vista meramente funcional. Deverá ser perfeitamente lógico, sendo entretanto com muita frequência defeituoso. Sujeitando o tema a uma ordem didática, na qual seguimos do todo para as partes, tem-se o sequencial, como a seguir:

- natureza do pensamento pré-lógico (vd 15); - pensamento pré-lógico animista, mágico, mítico (vd 19); - pensamento pré-lógico de coerência incompleta (vd 34).

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I – Natureza do Pensamento Pré-Lógico. 7270y015.

16. Lógica como ciência e lógica natural. Há um saber filosófico, o qual se ocupa de como as operações mentais devem funcionar; esta é a lógica como ciência, aquela que se ensina nos cursos acadêmicos . Há também um desenrolar espontâneo do pensamento, e que em uns ocorre espontaneamente de modo correto, e em outros com defeitos; esta é a lógica natural, da qual nos ocupamos agora. Dizemos, então, que uns espontaneamente pensam de maneira correta, e que este é o pensamento lógico, em oposição ao pensamento pré-lógico. Este pensamento pré-lógico prejudica notoriamente a religião, porque seu modo incorreto de conduzi-la, resulta em ingenuidades, incoerências, aberrações, superstições, interpretações mágicas. A precisão lógica falta costumeiramente nos homens religiosos, em alguns em grau maior, em outros menor. O pensamento pré-lógico é a regra geral em assuntos de religião. Ainda que somente como preliminar introdutória, há que nos ocupar deste defeito da sistemática do pensamento, do qual decorrem situações religiosas deficientes. O filósofo, dedicado a filosofar simplesmente sobre os fundamentos da religião e de sua essência, se depara com uma situação fatual. Ele já encontra a religião como um acontecimento cultural. Isto o obriga desde logo a responder perguntas de envolvimento indireto com sua filosofia. Enquanto ele filosofa logicamente, o outro está a filosofar pré-logicamente e a se situar em religiões históricas com um desenvolvimento sociológico particular. É possível conceituar uma religião a partir de pensamentos ordenados com perfeita lógica. Esta religião seria, portanto, o produto de uma filosofia sistematicamente conduzida. A lógica natural, - voltamos a esclarecer, - é distinta da lógica como saber filosófico, sendo o desenrolar vivo e espontâneo do pensamento, cujas partes se conectam em operações denominadas conceitos, juízos, raciocínios. Importa alcançar este desenrolar vivo e espontâneo do pensamento, corrigindo-o sempre com o uso da lógica oferecida pelo saber filosófico, aplicando as normas que guiam o procedimento mental. Chama-se pré-lógico (ou analógico, ou falseado), o pensamento com operações defeituosas, ora por causa de omissões, ora por confundir o analógico com o unívoco. Em contraste, é pensamento lógico, aquele que é operado dentro das normas formais, que guiam o procedimento, operando as deduções de acordo com as normas que regem a síntese dos silogismos, e as induções com as regras da análise. O pensamento humano é explosivo, não alcançando em todos os indivíduos um ordenamento suficiente no que se refere à sua lógica natural. O pensamento da criança não tem suficiente vigor para percepção segura das conexões lógicas mais elementares. Em alguns indivíduos adultos estes elementarismo infantil persiste, de sorte a manter neles um pensamento deficiente para o resto da vida. Em tal condição se desenvolve a religião de uma grande parte da humanidade, com o agravamento das acumulações por via da tradição. No curso da história as primeiras religiões conduziram-se no clima do pensamento pré-lógico, criando-se sobretudo na forma de mitos e na forma de ritos ex opere operato, ou seja, simplesmente por força das ações destes ritos. Houve um momento em que a filosofia e a ciência criaram explicações lógicas e também um novo pensamento religioso foi aparecendo, ainda que fragmentariamente e de mistura com os falsos sistemas. Tal é a condição de não poucas religiões que atravessam os tempos, não raro entrando em crise, para então se redividirem em novas tentativas. Mas, ainda que o pensamento da maioria seja um feixe de incoerências, há, não obstante em cada ser humano uma pequena dose de pensamento lógico, uma espécie de bom senso. Este pouco de pensamento lógico garante à humanidade pensar com alguma segurança em questões mais fundamentais. Por exemplo, no que concerne à existência, compreendem os indivíduos quase sempre a superioridade da vida, sobre qualquer outro valor. Distinguem os posicionamentos fundamentais da essência, atingindo sempre a distinção entre o sim e o não, bem como as sínteses elementares, por exemplo, que, um mais um, é dois. Nas questões complexas as conexões se apresentam mais difíceis e até penosas para pensar e compreender. É quando a maioria dos humanos se torna vítima fácil do pensamento pré-lógico. Por incapacidade, nas crianças. Por falta de treino, nos adultos. Somente o estudo e o hábito asseguram o pensamento lógico. Especialmente em assuntos abstratos e de universal abrangência como os da metafísica e das religiões, o pré-logismo ocorre com frequência. Mas também sucede nos formalismos sociais e na linguagem da arte. Uma consideração sobre o pensamento pré-lógico surge, pois, como de alta significação. Cabe não só defini-lo, mas também determinar as diferentes modalidades que oferece. Importa, pois, mostrar os pré-logismos, pela denúncia das desconexões, as quais não ocorrem no pensamento lógico.

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Não deixaremos, todavia, de nos referir também a alguns aspectos psicológicos, para termos diante de nós os exemplos concretos da criança e do adulto primário. E ainda à aspectos sociológicos, de interação entre os indivíduos, que se influenciam mutuamente, como ainda aproveitam os pré-logismos nos rituais sociais.

17. Do ponto de vista da idade o pensamento pré-lógico principia pelo chamado pensamento primitivo da criança de 1 a 2 anos. Nesta pouca idade, o pensamento da criança é de caráter instintivo, automático, sensório-motor, sem etapas, brusco, quase sem formulação verbal, estreitamente relacionado com os reflexos condicionados. A segunda etapa do pensamento pré-mágico é aquele típico da criança de 2 a 3 anos. Dá-se relativamente autônomo do mundo exterior. Pode-se observar o pensamento pré-mágico nos momentos que precedem o sono, ou seguem imediatamente após. Acontece também nos adultos, quando sob a ação dos tóxicos (ácido lisérgico, e outras drogas). Destaca-se como importante o pensamento mágico, aquele próprio da crianças de 3 a 6 anos. Ele é um elemento de interesse explicativo das religiões em sua fase primária, porque seus traços se conservam na vida posterior de um grande número de indivíduos, generalizando-se até na massa ignara (vd 26).

18. Classificação do pensamento pré-lógico em gêneros e espécies. As diferentes modalidades de pensamento pré-lógico permitem ser ordenadas em gêneros e espécies, com isto sendo possível sujeitar seu estudo a uma certa sistematicidade. Do ponto de vista formal, os pré-logismos infletem basicamente contra dois princípios, que são os fundamentos de todo o saber, o princípio de razão suficiente e o princípio de contradição. Dali resultam dois grandes gêneros de pré-logismo.

a) O princípio de razão suficiente se diz da existência, que, em qualquer hipótese reclama uma razão de ser, em virtude da qual existe. Não existiria o que, de algum modo, não tivesse razão de ser, por si, ou por outro. Na ordem dinâmica, o princípio de razão suficiente se diz princípio de causalidade. Em função a este, se diz, que o que surge como um efeito, possui causa. O sábio pergunta notoriamente pelas causas explicativas das coisas. E deve proceder esta investigação com perfeita colocação das relações entre causa e efeito, não confundindo as simples sucessões com as relações causais propriamente ditas. Ocorre ainda uma efetiva diferença entre causas naturais e causas inteligentes dotadas de arbítrio. Entretanto, por falta destas precisões, surgem os defeitos em que incide o chamado pensamento animista, mágico, mítico. Eis o tema de um primeiro artigo (vd 7279y019).

b) O principio de identidade, dito geralmente princípio de contradição, situa-se no plano de essência, pela qual cada coisa tem um modo irredutível de ser. O que é, é; inversamente, não pode ser ao mesmo tempo o que não é. Os pré-logismos também ocorrem aqui, porquanto as mentes pouco exercitadas confundem rapidamente o idêntico com o analógico. Ou se omitem, atendendo mais à conjuntura, que à coisa em si mesma. Desde último caso resulta o pensamento de coerência incompleta, de que um exemplo é o pensamento conjuntural, que finalmente faz surgir as idéias de respeitoso e de sagrado. Eis o tema de nosso terceiro artigo (vd 7270y034).

ART. 2 - PENSAMENTO ANIMISTA, MÁGICO, MÍTICO.7270y019.

20. A percepção entre causa e efeito importa ao pensamento preciso. A imprecisão neste particular acontece em variados níveis, gerando por conseguinte diversificações nos falseamentos com que se forma o pensamento. Neste panorama confuso, pode-se didaticamente considerar primeiramente as variadas formas de pensamento pré-lógico ocorridas na área da causa e efeito, e que são o pensamento animistas, mágico, mítico, para depois passar a alguns aspectos mais, referentes à avaliação destas formas.

I – Animismo, Magia, Mito. 7273y021.

22. A causa aparente na origem do pré-logismo. Dá-se começo à investigação do pensamento pré-lógico, advertindo para o fenômeno da causa aparente. É ali que mais comumente ocorre o engano nas apreciações.

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Pelo fato mesmo de haver sempre uma causa atrás dos fenômenos, acontece a superficialidade de se atribuir a função de causa ao que está apenas mediatamente antes. Trata-se de um falso princípio, formulado do seguinte modo:

- depois disto, logo por causa disto (em latim post hoc, ergo proter hoc).

Na verdade, o efeito vem imediatamente após a causa. Todavia, nem tudo o que está antes de um fenômeno é sua causa, e nem tudo o que vem depois é seu efeito. Outras e outras coisas estão antes, e poderão estas outras ser a efetiva causa. A superstição é gerada comumente pela falsa interpretação de acontecimentos sucessivos. Por vezes até se fazem atribuições casuais a objetos de presença simultânea, sobretudo se este objeto se apresenta como realidade. Se, por exemplo, viaja um indivíduo vestido de monge em um ônibus, cujo pneumático estourou, facilmente um supersticioso poderá interpretar a este monge como tendo sido o agourento. O supersticioso fixa a convicção de que a presença de um monge poderá trazer similares desastres. Por isso, sempre que acontece um incidente desagradável, quando um monge estiver presente, é atribuído imediatamente a este a culpa. Aves agourentas são frequentes nas superstições populares. Isto se deve ao comportamento mesmo das aves, muito sensíveis às variações atmosféricas. Relação mal definidas podem enfim identificá-las como causas mágicas, em vez de apenas detectoras de acontecimentos. A religião do homem primitivo encontra-se cheia de superstições, cuja origem poderá ter sido a falsa observação de relações de causa e efeito. Quer porque uma coisa venha depois da outra, quer simultaneamente quando um fato acontece, a relação é fixada como sendo efetiva.

23. Pensamento animista é aquele que conhece apenas a causa de arbítrio, ou seja, a causa volitiva. Sendo a vontade atribuída a uma alma, que se suporia existir dentro de cada objeto (mesmo de coisas físicas do tipo água, montanha), o referido pensamento se diz animista. Por desdobramento do pensamento animista se geram divindades, como Deus da água, Deus do mar, Deusa da vida, Deus do amor, Deusa da sabedoria, etc. A fácil incidência do pensamento animista se deve ao fato mesmo de cada qual, mesmo a criança, ter uma experiência interna de seus atos de decisão, e que causam muitos efeitos conhecidos. Por paralelismo, o homem simples, sobretudo em estágio infantil, transfere às coisa inanimadas uma verdadeira alma, que seria geradora dos fenômenos naturais. O pensamento anímico desconhece as causas naturais no sentido de causas físicas. Só no curso do tempo vai descobrindo, que os fenômenos físicos da natureza obedecem a um ritmo determinístico, diferente daquele do puro arbítrio da vontade, e que são simplesmente gerados pelas coisas como suas causas físicas. O progressivo conhecimento da técnica habitua o homem a conhecer as sequências causais da natureza. Por isso, o progresso técnico afasta progressivamente o mentalidade animista tão peculiar ao homem primitivo. A ciência e a filosofia nasceram quando no 5-o. século a.C. prosperaram as técnicas da navegação e do transporte, habituando ao homem a interpretar corretamente as causas e os efeitos.

24. O pensamento mágico tem como nuance que as forças da natureza, consideradas de maneira animista, são capazes de ser dominadas pela vontade do ser inteligente. Mas isto não é fácil de fazer, e por isso, o mágico é aquele indivíduo raro, que sabe como dominar maravilhosamente a natureza. Também a magia da vontade é entendida como capaz de fazer coisas como criar o mundo, ou como transformá-lo. O fundo é sempre o de uma vontade como causa arbitrária, que, por decisão pura e simples de sua vontade, decide e realiza, sem que para isso importa ser uma causa física. Para o pensamento lógico há uma proporção entre causa e efeito. Não basta dizer, para que tudo apareça conforme o dito. Para o pensamento mágico (como para o animista) somente há causas volitivas. As verdadeiras causas não são apreendidas por este tipo deficiente de pensar.

25. O pensamento mítico (do grego mythos = fábula) é mais uma nuance do pensamento pré-lógico referente à percepção imprecisa das causas. Supõe haver entidades iminentemente superiores, e que regem pela vontade e arbítrio a natureza. É o pensamento mítico o pensamento animista transposto para os deuses. As forças da natureza não seriam outra coisa que as decisões constantes da divindade. Na filosofia tradicionalista resta muito deste pensamento mítico, porque com frequência interpreta as leis da natureza como sendo leis divino-naturais. Todavia estas leis não podem distinguir-se da mesma natureza das coisas,

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senão por abstração. Para que sejam efetivas leis divino-naturais, deveriam tais coisas serem capazes de ficar inertes, para, em um novo ato criativo, serem dotadas com aquelas leis. Na verdade, as propriedades derivam, por efeito formal, da essência mesma das coisas. Estas não podem ser integradas em tais situações por uma decisão da vontade ulterior e exterior. Leibniz (1646-1716) imaginou ser impossível que as criaturas pudessem causar. Por isso imaginou como solução a harmonia preestabelecida, em que as coisas agiriam apenas aparentemente. Na verdade seriam impelidas por ato sempre especial do poder divino. O mito predomina no pensamento religioso primitivo. Nada acontece senão por obra exterior da vontade divina. Tanto a criação inicial teria saído da palavra mágica de Deus, em vez de sua potência como ainda tudo o mais que foi acontecendo, dela resultou. A verdade da criação é outra: ao mesmo tempo que a coisa é criada, ela passa a conter sua lei. Esta, - a lei, - é uma criação de quem criou a coisa. A lei natural surgiu, portanto, com a mesma criação da natureza.

II – Avaliação do PensamentoAnimista, Mágico, Mítico.

7270y026.

27. Deficiente interpretação das relações da causa e efeito. Quer se trate da superstição, quer do animismo, da magia, do mito, - todas estas formas de pensamento pré-lógico são nuances, como já se adiantou, do mesmo gênero (vd 18), e todas costumam acontecer em consequência da deficiente interpretação das relações da causa e efeito. Nas crianças de 3 a 6 anos a deficiência pré-lógica se apresenta sobretudo no exercício do princípio de causalidade. Elas já se ocupam de causas inteligentes e do seu arbítrio. Observam-no em seus pais e nos caprichos dos companheiros. Inclusive na maneira própria de agir conscientemente e voluntariamente. Todavia, nesta fase da primeira infância, a criança não consegue entender as causas naturais, porque mais complexas. Em decorrência atribui aos fenômenos da natureza, - como o da chuva, do crescimento da planta, dos acontecimentos físicos em geral - uma causa anímica. Aprecia a todas estas coisas como se dentro, ou por trás, houvesse um princípio vivente, dotado de inteligência e vontade livre. Projeta a si mesma empaticamente para dentro dos objetos. Estrutura um pensamento pré-lógico, animístico ou mágico. O mesmo continua a supor o indivíduo adulto, quando sem maior desenvolvimento raciocinativo. Um resto de pensamento mágico tumultua a maioria da população, inclusive parte de nível superior. "O pensamento mágico constitui a base de infinidade de crenças, lendas e tradições, impregna um sem número de textos religiosos e anima considerável número de obras artísticas" (Emílio Mira, O Pensamento). A poesia, que opera com vivências conotativas, consegue aproveitar legitimamente o pré-logismo mágico, animístico. Os grandes acontecimentos, até mesmo a formação geral do mundo, são esclarecidos mitologicamente. Sem dificuldade de aceitação, estas cosmogonias se transmitirão de geração em geração, através de milênios, como verdades definitivas, enquanto se mantiver o nível pré-lógico em que foram concebidas. Em cada pequeno progresso do logismo se dão algumas superações, mas não todas. Somente um furacão de sabedoria raciocinativa, de conexões lógicas perfeitas poderia vencer para sempre as heranças pré-lógicas que nos vêm do passado A noosfera pré-lógica dos adultos na condição atual do planeta, em que vivemos, não cessará tão cedo, apesar dos processos continuamente alcançados pelo esforço das universidades e de todas as modalidades de estímulo à ciência e à filosofia.

28. Diálogo com as causas mágicas. Um processo falseado se põe logo em curso no comportamento do indivíduo dominado pelo pensamento mágico. Ele dialoga, pede, negocia, agradece, faz promessas e também vitupera, xinga e blasfema. A suposição de que as causas mágicas são inteligentes e dotadas de arbítrio abre a oportunidade do dialogo entre ele e aquele mágico-anímico. Tem origem então as mais variadas espécies de oração. Dependem tais espécies de oração

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da diversidade de conceituação que o indivíduo estabeleceu por índole, educação ou influencia ambiental do meio religioso e social em que vive. O comportamento sexual dos indivíduos é gravemente tumultuado pelo pensamento animista mágico. Não compreendendo adequadamente o fenômeno da ereção e o forte prazer do orgasmo, os indivíduos de mentalidade simplista vão buscar explicações em causas exteriores, como no Diabo, ou mesmo em Deus. Na verdade, a ereção é apenas um reflexo incodicionado que tem origem nos receptores do nervo erótico, que conduz a ação ao centro espinal, de onde vem a resposta. O reflexo incondicionado sexual se combina também com os reflexos condicionados, que a educação deve adequadamente orientar. Tudo é complexo e o homem simples se desorienta, ficando envolvido então em interpretações falseadas, no contexto do pensamento pré-lógico. A interpretação negativa, que põe o Diabo no meio do fenômeno erótico, orienta o indivíduo para uma ascese abstenciosa. Erradamente ele passa a interpretar este comportamento de abstenção sexual como sendo uma virtude. Finalmente ele imagina sendo um monge a caminhar para a perfeição. A interpretação animista positiva inverte a direção, localizando em Deus as causas do movimentos especiais da ereção e do prazer orgásmico consequente. Exercê-lo resulta em um momento altíssimo de união com Deus. Dali o caráter sublime que passa a atribuir à prostituição sagrada, como ocorria em alguns templos antigos. Similarmente se gerou a antiga crença em deuses especiais para a eroticidade, até mesmo distintos para a eroticidade feminina e para a masculina. As interpretações animistas do sexo e da vida têm envolvido por muitos modos as religiões. Só um pensamento lógico liberta a vida sexual de tais envolvimentos. O pensamento mágico por vezes é brutal. É este o caso do o caso do indivíduo que reage às pedras, em que ele mesmo tropeça, ou às coisas que o obstaculam, dialogando com elas pela xingação, insulto e nomes feios. Este tipo de comportamento pressupõe uma comparação pré-lógica animista de quem a exerce; então ele encara as coisas como se oferecessem uma presença personificada contraposta à dele. Outras vezes o pensamento pré-lógico é formal e delicado. É este o pensar o indivíduo que reage a acontecimentos naturais e benéficos, dizendo, - graças a Deus! Apesar do seu pré–logismo, ele se exerce com nobreza de sentimentos. Seja o caso do homem que esteve em perigo, por ter resvalado para dentro de um rio caudaloso, mas subitamente conseguiu salvar-se, nadando esforçadamente e finalmente agarrando-se em uma raiz eventualmente estendida a partir da barranca. E então exclamou a mulher, que tudo vira no alta da barranca, - salvou-se, graças a Deus! Aquele agradecimento estava em termos pré-lógicos, porque a salvação efetivamente se deu graças à presença eventual do ramito da barranca e ao esforço natural daquele que fortemente nadou. Apenas num horizonte muito geral e metafísico poderíamos admitir um "graças a Deus" sem pré-logismo. Conceberíamos, então, a presença simultânea das causas naturais, que, por sua vez teriam sido criadas por um Deus sábio. A mundivisão, à luz do pré-logismo do pensamento mágico-animista, apreende o rolar dos acontecimentos de modo mui distinto da compreensão lógica perfeita. Os mesmos fenômenos são atribuídos a causas diferentes, como não se mostram iguais os mesmos objetos quando iluminados à luz mística do lampião e quando ao sol pleno da verdade.

29. Vença-se ao pensamento pré-lógico, supersticioso, animista, mágico e mítico. Liberte-se o homem deste espírito aprendendo que há leis naturais intrínsecas às mesmas coisas. Ensine-se que a natureza total é um sistema perfeito, e que não requer a parafernália do animismo, da magia, dos mitos. A libertação do homem frente ao pensamento pré-lógico se faz pelo estudo e pela ciência, porque lhe ensinam que a natureza é um vasto enredo de forças determinísticas, sem terem tais fenômenos a necessidade de possuírem atrás de si cordéis, operados por espíritos a comandarem os movimentos. O realismo da vida moderna e a divulgação científica generalizada em muito contribuíram para a racionalização do homem. As bruxas recuaram bastante em nossos tempos. O receio mágico não amedronta em tamanha escala ao homem moderno recente. Os satélites avisam a chuva e permitem entender mais rapidamente que ela não se dá em função dos homens, como se fosse distribuída conforme mérito ou demérito do comportamento humano, em razão de suas preces, procissões, ritos, despachos e outras mandingas. Quanto à criança, a solução para afastá-la do pensamento pré-lógico, é apenas aguardar pela sua natural superação, que se vai dando a partir de seis anos. De outra parte, importa tão agravar seu estado naturalmente pré-lógico com narrativas deste mesmo teor. Quando não for possível ainda explicar às crianças as causas naturais, como por exemplo a da chuva resultante da condensação do ar, deve-se preferir não explicar estes fenômenos mediante causas mágicas. Não se diga às crianças,

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que Deus (ou que os anjos, ou que São Pedro) faz descer a chuva. Seria agravar uma situação pré-lógica sem necessidade. Podem-se narrar lendas, desde que o contexto expressamente diga serem tais, isto é, puras histórias, com "personagens de brincadeirinha". As crianças não reclamam explicações maiores das que conseguem entender. Não precisam ser levadas além do que lhes é inteligível em assuntos de ciência e de religião. O excesso de informações religiosas e metafísicas, - que o proselitismo mal conduzido lhes impinge, - resulta em deformações e estimulações ao pensamento pré-lógico, mágico e animístico. Noções excessivamente abstratas não podem conduzir a bom resultado na mente infantil. Se ao que as crianças perguntam não for possível explicar satisfatoriamente, a resposta deverá contudo tentar seguir pelo caminho certo, até onde elas forem capazes de compreender algo logicamente. Tempos depois, dê-se mais um passo em direção da mesma explicação. Mas não se substitua o caminho do certo por um outro, de índole mágica, do qual se precise depois recuar. O reto caminho é aquele que não necessita de voltar atrás. Não sejam as crianças iludidas com lendas piedosas, pelo tão só desejo de conduzir o natal e a páscoa em clima poético, para que os adultos se alegrem às custas da ingenuidade infantil. A deformação do pensamento, - que desde logo deveria ter recebido rumos lógicos, - não justifica estes efeitos secundários poéticos, que acabam por tornar o Natal contraproducente à educação.

30. Avaliação das interpretações sobrenaturalistas. Reduz-se ao horizonte do pensamento mágico a interpretação sobrenaturalista dos fenômenos parapsicológicos raros. A sugestão, as visões, as línguas estranhas, as inspirações, as revelações, etc., costumam ter uma causa externa ao homem. Que tais fenômenos possam surgir naturalmente do subconsciente é uma hipótese que sequer pode ocorrer ao homem simples, muito menos a poderá compreender. Por isso os visionários, e não os sábios, dominaram as religiões tradicionais. Há os que admitem, - sobretudo entre os antigos, - que a poesia, pelo que tem de excepcional e belo, resulta de uma inspiração das Musas. Na verdade ela não passa de uma sistema de linguagem conotativa, fundamentada na lei da associação das imagens. A poesia opera em dois tempos. Posto primeiramente um objeto, este, num segundo tempo, desperta as imagens de outros e outros objetos mais, estabelecendo então o clima poético. Também o grande saber é atribuído pelos povos primários a uma inspiração, - dita também revelação, - sobretudo quando se trata de um grande saber religioso. Todos os povos antigos fundaram sua religião em uma inspiração ou revelação. Depois de certo estágio cultural, as supostas inspirações e revelações se codificaram em livros. Nesta fase de evolução os referidos povos criam seus livros sagrados. Na América os astecas mal haviam chegado a este estágio, logo interrompido pelos descobridores europeus. Em princípio, é possível que Deus faça a inspiração, ou revelação, - mas importa que seja rigorosamente provada. O homem lógico evidentemente contrapõe sua reserva, muito cautelosa, ao códigos de fé, apresentados pelas religiões. Sabe que os antigos nem sequer suspeitavam da existência do subconsciente como causa natural de tantos fenômenos, entre outros, as visões, os êxtases, os misticismos mais diversos. Personalidades extraordinárias, como Platão ou Buda, não poderiam, à vista do pensamento pré-lógico antigo, descender de outro homem, ou seja de causa natural. Seriam filhos de um Deus, que os teria gerado no ventre de alguma mulher por ele privilegiada. O "Divino Platão", - como se dizia, não teria nascido da famosa Pericciona, desposada com Áriston. Ela não teria concebido Platão por obra de Áriston (seu marido), mas pelo amor de Apolo, o mais belo dos deuses. Efetivamente informa um autor antigo: "Segundo um rumor acreditado em Atenas, reproduzido por Espeusipo, Clearco e Anaxíledes, desejando Áriston consumar sua união com Pericciona, que era muito formosa, não pode levá-la a efeito; renunciou então as tentativas e viu ao mesmo tempo Apolo nos braços de sua mulher, o qual determinou não tocá-la até depois do parto" (Diógenes Laércio, Vida dos Filósofos, 3). Buda, eis outra figura excepcional da antiguidade, pela sabedoria e virtude. Consequentemente, as narrativas, de tipo pré-lógico, o apresentam com um filho de Deus, nascido de uma virgem, fecundada por uma divindade. Esta continua sendo ainda hoje a fé de um grande número de homens simples.

31. Jesus nascido por obra do Espírito Santo. A doutrina católica, que afirma ter Jesus nascido de uma virgem por obra do Espírito Santo, não dispõe de outra prova que não a posterior afirmação pura e simples dos evangelistas, que a transmitiram, em linguagem não muito clara. Conviria que a linguagem sobre uma afirmação deste alcance, fosse mais clara, e não, ao que parece, eufemística. A segurança sobre tal doutrina tem contra si a agravante de haver

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surgido em meio ao clima cultural helênico, que ligava o nascimento de homens notáveis à fecundação por intermédio de algum Deus. Tornou-se até tradição nas camadas simples da igreja cristã, a crença de que mulheres, chamadas bruxas ou feiticeiras, coabitavam com o demônio. Dali porque não basta examinar a questão do ponto de vista meramente formal das afirmações subsistentes. Importa examiná-la também frente ao processo pré-lógico da mentalidade de época, para só então decidir.

O Evangelho de Mateus, o narrador mais antigo, assevera simplesmente: "Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposas com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvara o seu povo de seus pecados" (Mt. 1,18-21).

O Evangelista Lucas repete a narrativa da mesma crença, todavia mais a partir de Maria: "Foi enviado por Deus o Anjo Gabriel a uma cidade de Galiléia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão que se chamava José da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Entrando, pois o anjo onde ela estava, disse-lhe: Deus te salve, cheia de graça. O Senhor é contigo! Bendita és entre as mulheres. Ela quando o ouviu perturbou-se do seu falar, e discorria pensativa, que saudação seria esta. Então o anjo lhe disse: - Não temas, Maria pois achaste graça diante de Deus. Eis conceberá em teu ventre e darás a luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será Grande e será chamado o Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi: e reinará eternamente na casa de Jacó, e seu reino não terá fim. E disse Maria ao anjo: - Como se fará isso, pois eu não conheço varão? Respondendo, o anjo lhe disse: - O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo de cobrirá da sua sombra. E por isso mesmo o ente santo, que há de nascer de ti, será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, até ela concebeu um filho na sua velhice: e este é o sexto mês da que se diz estéril: Porque a Deus nada é impossível. Então disse Maria: - Eis aqui a escrava do senhor, faça-se em mim segundo tua palavra. E o anjo se apartou dela" (Lc. 1,26-38). A filosofia da religião não se define diretamente sobre a verdade das afirmações contidas nos textos ditos sagrados. Entretanto, dada a sua precedência na ordem sistemática, adverte sobre a necessidade do pensamento lógico, contra a possibilidade do pensamento pré-lógico. Efetivamente, - conforme já advertido, - as afirmações sobre nascimentos em situações extraordinários correm o risco de serem o resultado de uma situação de pensamento pré-lógico. Ao tempo antigo, no contexto cultural helênico-romano, era fácil de aceitar doutrinas como estas, de que Jesus foi gerado por obra de Espírito Santo no seio de uma virgem, porque tal maneira de pensar apresentava narrativas paralelas anteriores. Além disto, não é fácil determinar o que então se entendia por Espírito Santo.

32. A parte pelo todo. O símbolo pela realidade. Incapaz de diferenciar a aparência semelhante e calcular proporções, julga a parte pelo todo. Ao menino, basta que lhe ponham o chapéu do pai na cabeça, para que ele se sinta como se efetivamente o fosse. Produzem-se efeitos causais por semelhança aos olhos do indivíduo de pensamento pré-lógico, em virtude de sua incapacidade para perceber a adequação entre causa e efeito. Desatento ao rigor da adequacidade este indivíduo acredita que cada objeto ou força produz os seus similares. Um adulto selvagem ou primitivo, quando se veste como a pele de um leão, ou de um touro, supõe-se identificado com ele. Por isso também as crianças brincam desta maneira, assumindo elementos que as possam fazer semelhantes aos bichos. O mesmo acontece com o uso de máscaras, por exemplo, para brincar em blocos de carnaval. Tais revestimentos funcionam subtilmente nos rituais religiosos, que por isso se tornam muito do agrado dos primitivos, porque instituídos dentro de sua estrutura conjuntural. Nestes rituais primitivos, os celebrantes usam mitras sobre a cabeça, insígnias penduradas ao colo, amplos paramentos com representações. Estes símbolos não constituem apenas expressões daqueles atos. Ainda operam como agentes, em virtude da similaridade com as verdadeiras causas. Também os assistentes ao culto primitivo se vestem por vezes com tais instrumentos de operação por similaridade. Os paramentos dos sacerdotes se fundam principalmente nestes efeitos

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por similaridade; por exemplo, um paramento com uma vasta cruz nas costas, induz facilmente ao indivíduo a ver, no paramentado, o Cristo. Outros e outros atos religiosos se fundam nas causas por semelhança. Os mistérios, ou sacramentos, das religiões antigas e que restam mesmo no culto cristão, apresentam esta estrutura operacional. O batismo, pela água que purifica o corpo, também purifica a alma. O óleo, já usado pelos pitagóricos e depois também pelos cristãos, age sobre o doente, atua igualmente sobre o seu revigoramento espiritual, além de lhe perdoar as culpas, as vezes consideradas as causadoras da enfermidade. A imposição das mãos transfere forças capazes de animar, passou a ser o símbolo de transferência do poder autocrático do sacerdócio. Comer o pão, que produz energia corporal, também fortalece a vida espiritual. O sofrimento eventualmente purifica, passa a ser praticado como penitência eficaz de eliminação culpas. Em vista da transformação mental decorrente da evolução do pensamento moderno, os ritos tradicionais já perderam muito de seu poder decorrente da confusão de causas que operam por semelhança, porquanto hoje há uma percepção melhor da adequação entre causa e efeito. Mas, um esforço contínuo de recordação de sua fontes, bem como de reinterpretações meramente simbólicas, faz com que tais ritos encontrem ainda amparo e se mantenham. Todavia, o puro simbolismo, a que passaram os ritos, com que agora se sustêm, pode alterar-lhes o sentido originário, quando eram considerados eficazes e não apenas símbolo. No pensamento pré-lógico, causas similares geram efeito idêntico, ao passo que no símbolo este apenas expressa tais efeitos cuja verdadeira causa é outra. Pelo mesmo expediente dos efeitos produzidos por causas similares que o pensamento pré-lógico não distingue suficientemente, se explicam numerosas subtilidades sociais: - inaugurar uma sala pelo rompimento de uma fita funciona como real equivalente; - entregar as águas um navio, batizando-o pela quebra de um casco de cerveja, expressa novamente uma equivalência, concreta capaz da causar ao modo do semelhante que causa o seu assemelhado; - o mágico profissional, que impõe a si mesmo um turbante peculiar, produz a impressão de equivalência para a platéia que o aprecia.

33. O efeito por simples contato ou mera presença é um outro exemplo de inadequação entre causa e efeito, em que acredita o indivíduo de pensamento pré-lógico, quando na fase do pensamento mágico. O contato exerce uma espécie de contágio, intercambiando propriedades. Dali a importância do contato da pessoa com certos objetos, ou a necessidade de não permitir o contato. O uso de amuletos, medalhas, água benta. Reduz o contato o estar perto (no espaço), como quando se encontra um defunto ou aparece um animal agourento e ocorrem situações astronômicas. Por este horizonte se explicam numerosas das superstições de aceitação mais ou menos generalizada. Os conceitos do sagrado e do santificado são afins do efeito por simples contato, ou mera presença. Dependem do processo do pensamento conjuntural, mas não só (vd 36). O mais nobre não pode ter contato como o que é menos, para evitar o contágio. Dali a convicção de haver lugares sagrados, montes sagrados, lugares de peregrinação, objetos sagrados, templo sagrados, dia sagrado, ano santo. Todos este modos de ver são peculiares ao espírito mágico; podem receber outras conotações imaginárias, como de pressupor que Deus esteja mais em um lugar, que em outro. Fundamentalmente, porém, decorrem do pensamento mágico, no seu instante conjuntural e de efeito, por semelhança, contágio e simples contato. Para um indivíduo racional de carência lógica completa, nada há disto, restando senão o formalismo dos significados.

ART. 3 - O PENSAMENTODE COERÊNCIA INCOMPLETA EM RELIGIÃO,COMO O CONJUNTURAL E OUTRAS FORMAS.

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35. O gênero do pensamento pré-lógico determinado pela deficiente atenção ao princípio de causalidade (onde se situam o pensamento animista, mágico e mítico), até aqui tratado, é agravado ainda pela insuficiente atenção ao princípio de identidade e contradição. Didaticamente, também este novo gênero de pensamento pré-lógico é tratável, à; maneira do anterior:

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- pensamento conjuntural e outras formas (vd 36); - avaliação.

I – Formas de PensamentoPré-Lógico de Coerência Incompleta.

7270y036.36. O principio de identidade, dito geralmente princípio de contradição, situa-se no plano da essência, pela qual cada coisa tem um modo irredutível de ser. O que é, é; inversamente, não pode ser ao mesmo tempo o que não é. Dado que a mente pouco exercitada confunde rapidamente o idêntico com o analógico, os pré-logismos também ocorrem aqui. Se a mente se omite sobre o que a coisa é em si, atendendo mais à conjuntura em que ela se encontra, acontece o pensamento conjuntural. Este é um pensamento de coerência incompleta. Finalmente dali vão surgir as idéias de respeitoso e de sagrado. Como se disse anteriormente, para a lógica, o que é, é; o que não é, não é; o que, enquanto é, não pode ser o que não é. Dali resulta uma coerência, mediante a qual se formulam rijamente os juízos e raciocínios, expressando a realidade como ela é e pelos diferentes graus, sem imprecisões em qualquer de suas alternâncias, portanto sem incoerência. Entretanto, o indivíduo em estágio pré-lógico do pensamento mágico não somente não entende haver causas naturais, mais também não atende ao rigor do que é e do que não é, sobretudo não fixa na precisão dos graus de semelhança e da proporcionalidade que deve haver entre causa e efeito. Para o pensamento pré-lógico não há coerência plena. A lógica da identidade é substituída por uma espécie de lógica da analogia; não é bem a analogia, como analogia, mais a analogia confundida com a própria identidade. Assim procedendo, o indivíduo pré-lógico exerce uma coerência incompleta. Dentro do sistema da coerência incompleta alguns procedimentos alógicos são mais frequentes, como o pensamento conjuntural, o pensamento sacral, o pensamento analógico, o pensamento totêmico, e outros do tipo, ou afetados por ele.

37. Pensamento conjuntural é aquele em que as pessoas e coisas só têm significado dentro de uma estrutura e não têm sentido em si mesmas, porque não se atende a elas em si. No conjuntural conta o relativo e não o absoluto porque este ultimo não é suficientemente atingido. Em consequência, as pessoas e coisas acumulam significações derivadas apenas do meio em se que exercem, não se definindo em si mesmas. Ainda que o indivíduo de pensamento conjuntural atinja umas poucas noções absolutas, estas não se acumulam predominando sempre as relativas. A principal relação desenvolvida pelo pensamento conjuntural é a referência objeto-sujeito. As outras pessoas e coisas não são mas estão. Elas estão para o indivíduo que assim as pensa tão só na estrutura dele mesmo. Em outras palavras, elas, as coisas estão em uma conjuntura de eu e objeto. Não se desconectam o sujeito e o que está frente a ele. As crianças na fase do pensamento pré-lógico pleiteiam sempre o mesmo lugar, seja à mesa, seja na escola, seja dentro de sua própria casa. Reclamam o uso dos mesmos objetos, sejam os mesmos talheres, as mesmas roupas, os mesmos brinquedos. É que estão conjunturadas. Assim as crianças também se conjunturam com as mesmas pessoas, por exemplo, com os pais, com os parentes, com os e colegas. Não se trata apenas de reflexos condicionados, que tenham criado, mas da conjuntura com que a mente alcança as pessoas e as coisas dentro de relações eu-e-objeto. Tudo isto porque as coisas não são mas apenas estão. Em resumo: as pessoas e coisas do mundo exterior deste indivíduo pré-lógico têm apenas a significação de valor total da experiência vivida; faltou atingir a individualidade objetivada em si mesma, o conteúdo absoluto. Há uma desatenção ao absoluto. As coisas são definidas pelo que não lhes é principal. Ocorre, portanto, uma inadequada apreensão, que fere o princípio de identidade (vd 18). Tudo esta desatenção com as exigências do princípio de identidade exerce um efeito negativo muito grave em religião. Por causa do pensamento conjuntural o homem simples conceitua a Deus em relação à criatura, e não em primeiro lugar como sendo um ser em si mesmo. Deus é apenas o Pai, o Criador, o Senhor que governa o mundo, que faz a justiça, que recompensa e castiga, que recebe o culto das suas criaturas prostradas e os serviços dos seus servos atentos e dóceis. Entretanto, Deus deverá ser conceituado primeiramente como um ser subsistente por si. O certo é, pois pensar mais em Deus em si mesmo, do que em Deus que está para nós e para o mundo em que estamos integrados.

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Os adultos menos evoluídos conservam alguns níveis de pensamento conjuntural infantil e que si reflete em seu estilo religioso. Por isso a religião a praticam em lugar sagrado, que é um pensar conjuntural, e com sacerdotes revestidos com adequação para obter efeitos conjunturais.

38. O totem é uma conjuntura, que resulta de uma espécie de acumulação de significados, em virtude do qual um objeto define uma pessoa, uma família, um grupo, em consequência das relações tidas com ele. Os povos primitivos, quando dependentes de um certo alimento, poderão ter como totem a este alimento, que poderá ser um certa planta, ou mesmo um animal (vd 86). O brasão de armas ou o escudo de uma nação, ou mesmo sua bandeira se fundem em elementos de ordem conjuntural, e que portanto, expressam por relações e não por indicação absoluta. O pão se tornou um totem generalizado deste que passou a se exercer como o principal alimento do homem. Em decorrência é respeitado e pode servir por isso como identificação de um grupo. É o pão um totem muito vago, bem como ainda um símbolo quando se aproveita para outros fins de expressão. Nas religiões o pão passou até se exercer como matéria ritual, por causa de sua relação totêmica de fonte da vida. Enquanto para os povos primitivos a eucaristia era a carne dos animais sacrificados, a nova eucaristia passou a ser a do pão.

39. Os rituais do homem de pensamento conjuntural estão coordenados no tempo e no espaço, instante e lugar, pessoa e gesto, palavra e instrumento. Mais que os rituais religiosos em geral, os rituais da feitiçaria dos primitivos são caracterizadamente meticulosos quanto ao tempo e circunstância, objetos usados e manipulações. Nos casos muito primários, o rito importa até num momento muito certo de erguer do sol ou da lua, com gestos muito particulares. Sem isto, no entender desta lógica de coerência incompleta, tudo será em vão, porquanto outro ficará sendo o sentido total. Quando o ritual não obtém resultados, seja para o bem, para o mau, a explicação do homem pré-lógico alega haver ocorrido algum erro nesta natureza conjuntural. Passa então a uma nova tentativa, com atenção máxima ao tempo e ao espaço, instante e lugar, palavra instrumento, - conforma já advertido. Em decorrência de seu pensamento conjuntural, os rituais das religiões primitivas se caracterizam pela meticulosidade. Na medida que as religiões evoluem, se desvinculam crescentemente dos detalhes dos ritos, dos tens, dos símbolos, do pensamento conjuntural em seu todo; quando conservam alguns detalhes do anterior conjunturalismo, os conservam já sem o mesmo peso de gravidade. O ritual da missa dos cristãos católicos foi ainda peculiarmente meticuloso, até a segunda metade do século 20, e as rubricas que o determinavam eram de obrigação grave. Assim também os rituais da feitiçaria de hoje se desvincularam de muitas das meticulosidades dos primitivos de outros tempos.

40. As rubricas do conjuntural. Do sentido conjuntural e acumulativo de significações decorrem processos secundários peculiaríssimos. Entre outros se encontra o receio da alteração de conjuntura, a qual é mantida como rubrica sub grave. Se uma determinada conjuntura oferece segurança, resiste-se à outra, sobretudo quando menos conhecida. A criança se opõe à mudanças de lugar, de talheres, de roupas a cuja estrutura conjuntural se associou. Fora de sua estrutura passa a ter medo e angústia. Um profissional, médico, dentista, policial, guarda de trânsito, sacerdote, benzedor, - se sente mais seguro com seu uniforme característico; sem ele, perde segurança e chega a sentir mal estar. O mesmo acontece com o cliente, o qual confia mais espontaneamente no profissional que estiver caracterizadamente vestido. Quando mais simples for o cliente o fenômeno mais se manifesta. O adulto em fase de pensamento pré-lógico, receia a heresia da alteração dos rituais e de todo o sistema de suas crenças. O pré-lógico julga fazer caridade advertir aos que procedem diferentemente. Chega a ser apostólico e é capaz de morrer pela sua causa. Agride, como acontecia com os egípcios, aqueles que matam seus tótens. Seja aqui lembrado o romano que foi morto pela multidão, por haver matado um gato. Se o pré-lógico é um feiticeiro ou um sacerdote, pratica seus rituais com pavor de errar, tremendo ante o dever da meticulosidade.

41. Pensamento conjuntural e conservadorismo. Situadas dentro de um círculo conjuntural qualquer, as pessoas conjunturadas passam a ter medo fora dela, e por isso mesmo se tornam conservadoras.

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As pessoas em estágio de pensamento conjuntural tendem ao conservadorismo religioso. No plano religioso as sociedades conjunturadas são capazes de transpor milênios sem alterações substanciais em religião, como ocorreu com a nação egípcia, e continuou ocorrendo até certo ponto com todas as religiões tradicionais de hoje, ciosas de seu passado. O humanista Erasmo de Rotterdam, em seu famoso Elogio da Loucura (Encomium moriae, 1529) ridicularizou os detalhes, que em seu tempo, - a Renascença, - chegavam a provocar divisões nas Ordens religiosas. As Igrejas cristãs, como também as organizações de outras religiões, sobretudo no passado, têm condenado mudanças litúrgicas maiores, e exigido modos de vestir dos seus sacerdotes mesmo fora dos templos. Os chefes de tais religiões somente se apresentam oficialmente em público com paramentos muito caracterizadas, e a cabeça carregada de símbolos ostensivos. No passado a maior parte das grandes alterações religiosas somente se tem dado por pressão exterior. Tem sido o caso de quando um povo conquistou ao outro, ou quando um grupo político bem diferenciado desalojou ao outro do poder.

42. O pré-logismo moral, determinando comportamentos, atinge amplamente a mentalidade dos simples. Ele incide a partir de várias faces. Em todas as suas formas o pré–logismo moral é marcado pelo excesso de valorização dos termos em que pratica seus atos. O melhor não é apenas o melhor, mais é confundido com o obrigatório. O mais simples exclui o mais complexo e difícil. A lei natural é intocável também em casos particulares. Uma crença uma vez assumida obriga à fidelidade intelectual. O amor a uma pessoa inclui a exclusividade. O compromisso matrimonial torna as pessoas proprietárias uma da outra. A auto-estima da etnia impede a miscigenação, etc. Para a filosofia positivista, - sempre rara no passado, - não há dever moral, por julgar impossível provar que as pessoas sejam obrigadas a alguma coisa. As normas morais se estabelecem como sendo aquilo que mais facilmente funciona, melhor se ajusta ao fluxo de das atividades, sobretudo o que menos importuna e não provoca incômodos, complexidades desnecessárias. Na verdade, - independente de qualquer positivismo filosófico - as circunstâncias do que mais facilmente funciona e se ajusta, não é o suficiente para criar uma obrigação e estabelecer uma lei natural incontornável. É um pré–logismo passar do conveniente ao obrigatório. E assim também não existe lei natural em assuntos particulares das pessoas e da natureza. O estágio atual do homem e da natureza é apenas um estágio, em que dominam certas situações, as quais uma vez no domínio adequado do homem, permitem que ele altere a natureza atualmente vigente. Assim como com os mesmos tijolos é possível construir de outro modo os edifícios, as alternações da natureza admitem logicamente outras formas, desde que os ensaios se façam com os devidos cuidados. Paulatinamente foi sendo assimilado pelo saber da massa, como sendo natural, o que anteriormente não se admitia: o parto artificial (cesariana), a operação hospitalar, a concepção em tubo de ensaio, a transfusão de sangue, o transplante de órgãos.

43. Outros casos de pré–logismo moral são o casamento monogâmico, o ensino em classes distintas, o jogo de azar. O casamento monogâmico apresenta vantagens no que concerne à simplicidade com que se resolvem dificuldades resultantes de complexidades, como do divórcio, ou mesmo da poligamia e poliandria. Mas isto tudo não é argumento lógico para descartar as formas complexas e mais difíceis como anti-naturais. O ensino com classes distintas para o sexo masculino e feminino também poderá ser encarado como um método que evita certos problemas. E entretanto, dali não segue que o ensino deva necessariamente separar os sexos, como se praticou no passado. O jogo de azar provoca problemas sociais. De novo aqui não podemos concluir para o mal intrínseco do jogo. O prazer sexual é um dos mais intensos, Em geral a vida é a soma de pequenos prazeres, de que o sexual á um dos mais desejados. Por isso novamente poderá resultar em desequilíbrios, como é bem conhecido. Mas dali não decorre que ele seja imoral e sim de deverem ser os indivíduos adequadamente preparados para usufrui-lo. O pré–logismo moral é muito frequente nas religiões tradicionais. Com frequência converteu em leis naturais e divinas o que não envolve mal algum senão necessidade de tratar com mais cuidado o que é complexo, ainda que por vezes até melhor que o mais simples e descomplicado.

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II - Avaliação do pensamento conjuntural e outras formas.7270y044.

45. O pensamento lógico não é contrário à religião, mas às suas extravagâncias pré-lógicas de todo o tipo. É possível conceituar uma religião a partir de conceitos e raciocínios perfeitamente lógicos, avaliando fatos e interpretações, dentro do rigor das constatações e aplicações dos princípios de razão suficiente e não contradição. A desordenação pré-lógica do pensamento, - quer mágico, mítico, animístico, quer conjuntural e totêmico, - reterá o homem em suas deficiências mentais poluentes. Estas poluições culturais poderão alcançar por vezes alguma beleza e poesia, mas nunca a verdade e o bom caminho. Por mais alto que suba a fantasmagoria simplista de uma humanidade numerosa, ela nunca alcançará as alturas lógicas da inteligência vigorosa. Mas a diferença se torna tão grande entre esses dois modelos de religião, que o último, o vigoroso, aparenta já não ser a religião e sim uma negação de tudo que a massa ignara criou e envolveu num ritualismo complexo de práticas obscuras e penosas.

46. Ocorrem, por conseguinte, duas modalidades sociológicas ou culturais de religião, - a que é perfeitamente racional (de acordo com o pensamento lógico) e a que se exerce com as limitações do pensamento pré-lógico, dominado pelas suas deficiências. A sociologia, em sua condição de ciência positiva, não emite julgamentos de valor, porquanto estes são filosóficos. Indiferentemente examina, tanto ao pensamento alógico, quanto ao pensamento lógico. Num e noutro caso ocorre um processo cujas interações importam ser examinadas. Quando a sociologia estuda o fenômeno religioso, e toma por método iniciar pelas manifestações mais simples da religião, pode confundir o mais simples com o mais primitivo. O mais simples, entendido como o mais fundamental, é a rigor a conceituação mais essencial à religião. Esta conceituação, todavia, se desenvolve diferentemente no homem primitivo, governado pelo espírito mágico e conjuntural, e no homem desenvolvido, dotado de espírito lógico, perfeitamente sistematizado, quer no plano do princípio de razão suficiente, quer no plano do princípio de identidade. Ainda que a religião seja essencialmente a mesma em ambos os espíritos, suas formas se manifestam diferentemente. O que a sociologia tem feito inicialmente foi examinar o fenômeno religioso em suas formas primitivas mais frequentes, e como estas formas evoluiriam através do tempo. Esta seria uma sociologia histórico-religiosa. Importa ainda encarar o fenômeno religioso como ele se processa no espírito lógico. É quando a religião se apresenta sobretudo através da história da filosofia. Então a sociologia constatará, que o homem moderno, mais racional, interioriza sua religião, depois de libertá-lo de sua roupagem primitiva, caracterizado por manifestações exteriores deformadas.

47. A história das religiões é geralmente apologética, - como não deveria ser. Geralmente a história religiosa é apologética, quando se ocupa das instituições oficiais dedicadas ao culto e dos sucessos das jerarquias dirigentes. Tais histórias são redigidas com intenção promocional. Os eruditos as lêem com cuidado. Os simples podem prejudicar-se com as mesmas. A história das religiões deverá ser objetiva. Em princípio a honestidade é possível na história apologética, sobretudo quando destaca os valores maiores. As grandes biografia geralmente ingressam por este caminho. Mais difícil é a honestidade na história apologética, quando se trata de temas mais gerais, como por exemplo do estudo sobre o desdobramento histórico de uma instituição, tais como de uma religião, de uma igreja, de uma diocese, de uma ordem religiosa de uma organização missionária. A história apologética mal intencionada opera sobretudo pelo esquecimento de fatos e omissão de pessoas, como se tais fatos e tais pessoas não houvessem existido. Menos vezes a história apologética arrisca deformar, caluniando, porque nestes casos ela é mais facilmente desmascarada. Mais profundamente a história das religiões deve ir também aos fundamentos doutrinários, sejam filosóficos, sejam teológicos. Mostra a história doutrinária quais foram no passado os conceitos sobre Deus e a alma, sobre a interpretação teórica dos ritos e das instituições eclesiais. Então anotará o estágio doutrinário que os grupos religiosos alcançaram em diferentes épocas. A passagem do culto mentalizado pré-logicamente para o culto lógico é um acontecimento a ser devidamente determinado pela história das religiões.

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Também importa determinar qual o estágio de desenvolvimento mental, não somente das massas populares, mas também das atuais jerarquias dirigentes e dos que se propõem serem mentores do ensino religioso.

48. Está, visto, pois, que a filosofia da religião, - apesar de ser uma ocupação perfeitamente racional, em vista das perguntas com que se ocupa, que se referem ao ser como totalidade, - não está livre de um entulho enorme de considerações relativas ao pensamento pré-lógico, a interferir a todo momento no reto pensamento sobre temas tão difíceis. O homem se encontra situado dentro de um fato social religioso, ao qual precisa atender, antes de se colocar diante de uma pergunta inteiramente abstrata. Não acontece a mesma necessidade em outros temas científicos; por exemplo, o físico indaga diretamente pelas soluções cientificas de seus problemas sem antes indagar como pensa a massa popular sobre as hipóteses apresentados pelos cientistas. O fato social religioso é notoriamente envolvente, porque na sociedade as estruturas são determinadas por todos os cidadãos como um conjunto. Por isso as indagações da filosofia da religião se estendem ao domínio popular e não apenas aos questionamentos dos filósofos.

CAP. 2EXAME HISTÓRICO-CRÍTICO DAS RELIGIÕES.

7270y049.

- Filosofia da Religião -50. Introdução. Uma vez que as culturas interagem e atingem mesmo nesta interação as diferentes religiões, - tanto em seus fundamentos doutrinários, como em seu modo de praticar o culto, - recomenda-se um exame histórico-crítico deste fenômeno, antes de se partir para a filosofia propriamente dita da religião. Tem-se, pois, o seguinte esquema didático, de artigos:

- Religiões mesopotâmicas, de Sumer (ou Suméria) e Babilônia (vd 7270y052); - Religião do antigo Egito (vd 7270y070); - Religião judaica (vd 7270y095); - Religião dos indo-europeus (vd 7270y110).

Em se tratando de um exame histórico crítico, o que passamos a fazer não poderá ser viciado pelo pré-logismo, sobretudo não pelo pré-logismo da história apologética (vd 47).

ART. 1-o. RELIGIÃO MESOPOTÂMICAS,DE SUMÉRIA E BABILÔNIA.

7270y05253. As mais remotas raízes conhecidas da tradição cultural e religiosa remontam ao 3-o. e 2-o. milênio antes de nossa Era, e se situam na Mesopotâmia, às margens do rio Eufrates e rio Tigre (hoje Iraque e Kuwait). Por ordem, perguntamos pela tradição cultural e religiosa, dos que alia primeiramente floresceram:

- sumeros (ou sumérios) (vd 55); - babilônios e ninivitas (vd 061).

Praticamente ao mesmo tempo se desenvolveu a civilização egípcia, às margens do rio Nilo. Estes povos, - da Mesopotâmia e do Egito, - inventaram a escrita, cada qual a seu modo, havendo por seu através deixado em documentos a expressão de sua cultura e ideologia. Alguns reflexos se transmitiram, embora já tardiamente, no curso do 1-o. milênio antes de nossa Era, aos primeiros escritos bíblicos iniciais. Estes também informam retroativamente sobre os povos que mais cedo, antes dos judeus, prosperaram na região. As informações bíblicas, apesar de não serem todas de conteúdo original, servem de texto comparativo no estudo do que ainda resta de notícias sobre o segundo e terceiro milênios da antiga Era.

I – A RELIGIÃO DE SUMÉRIA.7270y055.

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56. A história principia com os sumeros. A descoberta da existência do povo sumero, ocorrida no curso do século 19, revolucionou o estudo histórico-crítico das religiões antigas. Até então se desconhecia haver existido uma outra civilização antiga, com o mesmo desenvolvimento da egípcia, e com fonte até mais antiga, de que algumas das narrativas babilônicas e bíblicas estão diretamente dependentes. Os sumeros são pré-semíticos, mas de origem ainda não bem determinada; podem ter vindo ainda de uma outra região, transformando-se na Mesopotâmia pela mistura de diversas raças. Desenvolveram-se no delta dos rios Eufrates e Tigre, cujas águas ali entravam no Golfo Pérsico. A região era uma elevação recente em consequência dos sedimentos trazidos pelos dois rios, que ali se juntavam. Dedicando-se os sumeros à drenagem da região, este controle das águas permitiu uma agricultura próspera, o aumento da população, a criação de várias cidades. Em certos períodos as cidades eram estados autônomos, em outros se uniam em torno das cidades mais fortes, finalmente ocorrendo a subordinação geral à Babilônia. A história mais que milenar dos sumeros foi restabelecida à base dos restos arqueológicos, principalmente da cerâmica e metalurgia. Também há referências documentais, pois a escrita deles surge ali pelo ano 3000 a.C. e os babilônios também mencionam aos sumeros.

57. Cronologia da história dos sumeros. Tem-se conseguido estabelecer um cronologia para os diferentes estágios de desenvolvimento do povo sumero:

a) Tudo começou com o período de al Ubaid, referência ao tell de al Ubaid (Obied) perto de Ur, onde se manifesta um primeiro grupo sumero; está a sair do neolítico, antes do ano 3000 a.C., já usando instrumentos de cobre e fabricando tijolos para construção. O destaque dos templos revela que remonta àquela época o modelo de cidade sagrada peculiar à Mesopotâmia e repetido ainda na Jerusalém dos judeus, onde tudo gira em torno da classe sacerdotal.

b) Seguiu-se o período de Uruk, também do 4-o milênio, até o ano 3000; agora se constata um novo grupo de imigrantes sumeros, vindos do norte, com diferente cultura e melhor técnica. Havendo introduzido a roda na fabricação da cerâmica, não somente aumentou sua produção e variedade, como ainda a exportou, criando um comércio externo, possibilitando a importação de matérias primas. Também melhorou a produção metalúrgica. A construção de templos maiores permite inferir o crescimento do poder teocrático. No final deste período surgiu a escrita (camada Uruk IV-B), de que os restos mais antigos se referem a contas do templo.

c) O período de Jamdet Nasr, por volta do ano 3000 com duração de um a dois séculos, foi marcado por uma nova progressão e crescente uso da escrita. O povo de Jamdet pareceu ter penetrado a região dos sumeros por simples infiltração, assumindo o poder por crescente influência, pois não há sinais de guerra, nem abandono da cultura anterior.

d) O período dinástico antigo (referência aos períodos posteriores) iniciou por volta do ano 2800 a.C., quando as cidades sumeras se independizaram do poder do povo de Jamdet, convertendo-se em prósperas cidades-estado, cada qual com seu Deus local. Destacaram-se as cidades de Eridu, Ur, Lagash, Uruk, Umma. A divisão deu lugar à guerra entre as cidades, desenvolvendo-se em consequência a figura do rei, ou seja do chefe guerreiro, que passou progressivamente a ser também um administrador poderoso. Por volta do ano 2600 o poder de Ur sobrepassou o dos demais, conseguindo unificar a Suméria. Sua dinastia se manteve no poder por cinco gerações. Depois a cidade de Lagash assumiu a liderança. Urukagina usou o título "rei de Lagash e Sumer" e foi autor do primeiro código jurídico de que se tem conhecimento. Constata-se que tentou reduzir o poder dos sacerdotes e proteger as classes menos favorecidas. De outra parte construiu também grandes templos e instalações hidráulicas.

e) Nova dinastia acontece quando, cerca do ano 2375 a.C., Lugalzaggizi rei de Umma, conquistou Lagash e depois Ur, onde se estabeleceu como rei. Unificou a Suméria, conquistou também Kish, estendendo seus domínios até o Mediterrâneo. O feito, em virtude do qual surge um primeiro grande império, fez aos historiadores denominar a este seu período de proto-imperial.

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Por volta de 2350, Sargão I, Velho, de Akkad, derrota o soberano Sumero. Trata-se agora de um poder semita. Ele perdura com a sucessão de seus filhos, por um século, denominando Akkad e a Suméria. Adotam os Akkadianos a escrita sumera, ainda que não a língua. Permanecerá o sumero sobretudo como língua sagrada, mas ainda não é o fim dos sumeros e nem de sua língua. Os gútios derrotam os Akkadianos; os novos dominadores são descritos como tribo montanhesa vinda do Oriente, sem o desenvolvimento dos sumeros. Estes conseguem manter-se com uma relativa autonomia civil. Após ainda um século ocorre a reação do rei sumero de Uruk, Utukhegal. Este perde sua liderança para o rei de Ur, Ur-Nammu, cerca do ano 2000 a. C., dando início à terceira dinastia desta cidade, e que se consolida, sendo conhecida por período imperial. A prosperidade, que se instalou, refletiu-se também na construção de grandes zigurates; são deste tempo a maioria dos que ainda subsistem. O rei passa a figurar como um Deus, entretanto, a igualdade de direitos para sumeros e semitas, resultou em que estes de pouco em pouco dominassem o comércio, o que significava uma progressiva oportunidade para os do norte.

58. O término de Sumer, pela conquista elamita e amorrita. Pelo ano 2000 a. C. os elamitas (do lado este do curso inferior do Tigre), conquistaram a Suméria, dando fim a sua terceira dinastia de Ur. Mas a história da região continuou, em especial a religião primitiva. Um século depois, transformações ainda mais profundas passaram a acontecer em todo o quadro geral da Mesopotâmia, invadida pelos semitas denominados amorritas. Estes, por volta do ano 1900, estabeleceram uma dinastia em Babilônia (ao norte da Suméria, sobre o Eufrates). O predomínio de Babilônia (vd 61) firmou-se pelo ano 1770, quando esta unificou toda a Mesopotâmia. Para a Suméria restou apenas a importância sempre reconhecida de sua língua, bem como o caráter sacral das cidades santas de Nippur e Eridu. Este reconhecimento, mesmo acima de Babilônia, se constata no prólogo do código de leis estabelecido pelo rei Hammurabi. Ainda acontecerá uma transitória distinção administrativa entre norte (Babilônia) e Sul (Suméria) depois da destruição, entre 1600 e 1580, do Império da Hammurabi, pelos hititas (indo-europeus situados na Anatólia, Ásia Menor).

59. A religião dos sumeros, teve uma linha de continuidade, que vem desde o período de al Ubaid, com grandes divindades, além da divindade de cada comunidade. As grandes divindades se constituem das forças cósmicas: Anu, rei do céu; Enlil, rei da terra, Ea, rei do oceano. Criados pelas grandes divindades, há também os deuses astrais, relacionados com as atividades humanas: Shamash, deus sol; Sin, deus lua; Ishtar, planeta Vênus; Dumuzi, deus da agricultura, dos mortos e das ressurreições de cada ano. Os templos sumeros têm a forma de torres volumosas, com aspecto de monte sagrado, com acesso externo e altar no topo. Esta forma se transmitiu aos babilônios. Tendo estes resolvido construir uma torre muito alta e havendo ocorrido uma interrupção, a Bíblia judaica se refere ao fato como tendo sido uma intervenção divina mediante a confusão das línguas (Gênesis 11, 7-11) É possível que a confusão das línguas seja uma lenda anterior, vinda dos dias mesmos em que os mesopotâmicos construíam seu templo em forma de torre (vd 62). Interpretava-se o poder político do rei como uma concessão resultante de sua identidade mágica com a divindade da respectiva cidade. Entretanto podia ser deposto. Não acontecia o mesmo com o clero, cujo poder autocrático era considerado intocável. Esta peculiaridade atravessará séculos e ainda hoje se conserva em grande números das religiões tradicionais. O conceito do sacerdote para sempre, repercute na Bíblia, que no Salmo 109 diz: "Tu serás sacerdote para sempre, segundo a ardem de Melquisedeque". O salmo se baseia num episódio que envolve reis da Mesopotâmia e da Palestina, juntamente com Abraão e o sacerdote Melequisedeque (Gênesis 14, 18-20). A idéia do sacerdócio eterno, vinda dos sumeros, também se reproduz na teologia cristã, que fez de Jesus um sacerdote eterno (Paulo, Aos hebreus, 7, 1-10).

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O mesmo conceito se conserva em algumas igrejas cristãs a respeito de seus sacerdotes, sobretudo bispos, os quais ainda se atribuem o poder autocrático de o transferir aos seus sucessores, independentemente da comunidade a que irão servir.

60. As narrativas sagradas dos sumeros e o dilúvio, - de que os textos foram traduzidos para a língua semita de Babilônia, - despertam a atenção. Estas narrativas fantasiosas poderão ter passado com novas transformações aos narradores bíblicos. Segundo tais narrativas os dez reis fundadores da Suméria teriam reinado milhares de anos. Sua história apresenta feições míticas evidentes e participações com o sobrenatural. Ora, os dez patriarcas mencionados pela Bíblia também são de alta longevidade, com mais de 900 anos, e relacionados de perto com divindade. O poema Guilgamesh, lavrado sobre doze tabuletas, narra em cerca de 200 linhas a história do dilúvio. A narrativa remonta nas versões babilônicas aos anos 1700 ou 1800 a.C., o que já significa um milênio antes da versão bíblica, que sido criada pelos anos 700 ou 800 a.C. Os fragmentos sumeros da narrativa a fazem remontar ainda para mais cedo, para os anos 2500 anos a.C.. O herói Guilgamesh está descrito como um rei de Uruk, em busca da imortalidade. Procurou a Ut-Napishtim ao qual a imortalidade houvera sido concedida. Havendo-o encontrado, este lhe contou a respeito do dilúvio, do qual se evadira pela construção de um arca, em que também colocou os animais. Não falta o episódio da pomba, que parte no sétimo dia. É, pois, Ut-Napishtim o correspondente sumero do herói bíblico Noé. Quanto ao mesmo dilúvio, as escavações revelaram que ocorrera na forma de grande inundação pela volta do terceiro milênio. Poderia, portanto, esta inundação haver dado motivo para uma história heróica. Habitando os sumeros na região alagadiça do delta dos rios Eufrates e Tigre, certamente teriam sidos afetados por inundações, das quais uma teria sido extraordinária. Para os judeus, residindo em meio de montanhas, a narrativa oral certamente haveria de acrescentar números, como enchentes por cima das mais altas elevações e que por isso necessitavam de um período maior de chuva (um ano). A lógica da fantasia do narrador não teria tido dúvida em ser coerente, aumentado os dias e até mesmo as condições da arca. Se estas interpretações valerem, estas evidentemente muito vão comprometer o caráter de livro sagrado atribuído ao Gênesis. Os sumeros já dividiam o mês em 4 semanas, de acordo portanto com as fases da lua. Quando a narrativa posterior do Gênesis (1,3-31) apresenta uma criação do mundo em 7 dias o esquema da semana já existia, a adoção da semana de 7 dias e o mês de 4 semanas decorria aliás do senso prático. O ano solar e o calendário de 30 dias será uma criação mais sofisticada da astronomia egípcia, e que Júlio César (100-44 a.C.) introduzirá no Ocidente.

II – RELIGIÃO DE BABILÔNIOS E NINIVITAS.7270y061.

62. Torre de Babel. Ainda que não a mais antiga, Babilônia veio ser a principal cidade da Mesopotâmia. Seu nome significa porta do céu, e se diz no acádico Bab-ili, no grego Babilon. Entretanto o hebraico bíblico ligou o nome da maior cidade antiga ao termo Babel, que na língua dos judeus significa confusão (Gênesis 11,9), e neste contexto criou uma narrativa curiosa: "Toda a terra tinha uma só língua, e servia-se das mesmas palavras. Alguns homens, partindo para o Oriente, encontraram na terra de Senaar uma planície, onde se estabeleceram. Disseram uns aos outros: Vamos, façamos tijolos, e cozamo-los no fogo. Serviram-se de tijolos, em vez de pedras, e de betume, em lugar de argamassa. Depois disseram: Vamos, façamos para nós uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim célebre o nosso nome, para que não sejamos dispersos pela face de toda a terra. Mas o Senhor desceu para ver a cidade e a torre, que construíam os filhos dos homens. Eis que são um só povo, disse ele, e falam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seus empreendimentos. Vamos. Desçamos para lhes confundir a linguagem, de sorte; que já não se compreendam um ao outro. Foi dali que o Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a terra, e cessaram a construção da cidade. Por isso, deram-lhe o nome de Babel, porque ali o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e dali os dispersou sobre a face de toda a terra" (Gênesis, 10, 1-9). Contudo a torre de Babel foi construída e serviu mais de 1000 anos ao culto no seu alto. Era efetivamente um Zigurat como os havia outros nas cidades mesopotâmicas, inclusive das dos sumeros (vd 59). O historiador grego

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Heródoto ( + c. 425 a.C.), que visitou Babilônica, a descreveu, como se pode ler em sua famosa História, e a respeito disse mais coisas curiosas, todavia estas sem fantasias. A fundação de Babilônia pelos amurreus, semitas vindo de Amurru (que quer dizer lado Este), que corresponde a um país situado no deserto da Síria, representa a ascensão definitiva dos semitas frente aos sumeros e também frente aos própria semitas da região. Quanto aos primeiros, os sumeros, cuja língua aglutinante convivia com as demais, já eram misturadas com as populações semitas ralas que encontraram ao virem para o delta. A esta altura de cerca do ano 2000 os semitas já haviam voltado a dominar. Penetrando entretanto os semitas amurreus, não eram os outros suficientemente fortes para impedi-los de fundar Babilônia nas proximidades de Kish. Mas não foi Babilônia desde logo um grande poder. Presume-se que foi durante os impérios anteriores, como o de Akad (criado por Sargão I) que se deram os diferentes afluxos de outros grupos semitas, a que nos referimos, entre os quais o dos amurreus fundadores de Babilônia. No curso do ano 2000 o domínio geral foi da dinastia semita de Ur, e foi desde então que as cidade semitas, inclusive Babilônia, se consolidaram. Destacaram-se dois reinos, o de Isin ao norte e o de Larsa ao sul, que polarizam a região até 1770 a.C. quando um deles, o de Larsa, conquistou ao outro, o de Isin. Entrementes, evoluíram os amurreus, cuja primeira dinastia de reis se estendeu de cerca de ano 1894 a 1595 a.C. iniciada por Samu-abum (1894-1881 a.C.) com o qual se enumeram na sucessão de 12 reis. Samu-abum estabeleceu a independência de Babilônia, sendo ainda o ponto de partida do subordinamento das demais cidades.

63. Hammurabi e o código que leva seu nome. O mais notável rei da primeira dinastia de Babilônia foi o sexto, Hummurabi (1793-1740). Governou cerca de 43 anos, mais em data não fixada igualmente pelos historiadores. Unificou a região, estendendo-se o seu império do golfo Pérsico, junto do qual estava a Suméria, até o Mediterrâneo, de cujas proximidades haviam derivado os amurreus.

Hammurabi construiu templos, palácios, e um canal em Babilônia. Converteu a cidade em algo inteiramente novo num mundo que emergia da barbárie. As leis, que já vinham sendo codificadas, ganham um novo código, muito mais expressivo que os anteriores. São conhecidos hoje pela denominação de código de Hammurabi. Conservou-se em texto cuneiforme em uma Estrela de diorito negro de 2 metros e 25 cm de altura, encontrada em Susa (capital de Elam), por ocasião das escavações promovidas por uma expedição arqueológica francesa em 1901-1902, no curso de dezembro e janeiro, seu texto, de 282 parágrafos, contendo preceitos para a vida civil, costuma ser apresentada hoje como um livrinho que quase 100 páginas. Especula-se, que os elamitas, ao invadirem Babilônia cerca do ano 1155 a.C., tenham levado a Estrela para sua capital Susa, como uma das pilhagens, e que tenham raspado então 7 colunas na parte inferior, correspondendo cerca de 40 preceitos porque, talvez não lhe fossem do interesse. Recolhida a Estrela de Hammurabi ao Museu do Louvre (Paris), foi mais uma vez vítima de pilhagem. No prólogo o rei mencionou os vários deuses aos quais ele representa e dos quais recebe o poder, e em nome dos quais legislou. Este contexto, pelo qual se sugere a mentalidade teocrática de então, encontra-se também visualizado na parte superior de Estrela, onde a escultura em baixo relevo apresenta o rei reverente em pé, com a mão direita levantada diante de uma divindade. Esta, na interpretação de alguns estudiosos, poderia Shamash (deus do sol); segundo outros, Marduk (deus da Babilônia). Sentado em seu trono, Deus entrega ao rei as insígnias do poder, portanto para estabelecer a justiça ou a lei, de que fala o texto. A formulação religiosa do cabeçalho da lei principal continua a reproduzir-se nos códigos superiores, até em muitas constituições modernas, em que os reis outorgantes, ou os deputados constituintes mencionam-se a si mesmo como representantes de Deus, ou ao menos sob a proteção dele. Também faz lembrar Moisés como legislador do povo judeu, não em nome do povo, mas como enviado de Javé, que lhe teria entregue as tábuas da lei no cimo do monte Sinai. Frente ao código de Hammurabi a lei mosaica não é original, porque repete severidades e facilidades sobre o relacionamento humano no estilo muitas vezes da lei anterior. Fosse a lei judaica um fato novo, isto é uma lei de origem efetivamente divina, tal não aconteceria nos termos como se deu. O tempo recolhe todos os produtos das terras cultivadas e administra sua redistribuição, o rei, operando desta forma, constitui-se um poder teocrático. Era, pois, o rei um representante da divindade que governa por seu através o país. Com o curso dos anos o palácio se converte ainda em um novo centro de decisões políticas e administrativas; esta progressão já vinha ocorrendo anteriormente e se encontra adiantado estado sob Hammurabi, os governadores, Por

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ele estabelecidos em outras cidades, já não são representantes do respectivo Deus e sim do poder do palácio real, de Babilônia.

64. Depois de Hammurabi continua o esplendor da cidade de Babilônia, ainda que sem o poder de grande império. Formam-se outros centros políticos, os quais, ainda que rivais, são oportunidades para relações comerciais. Templos e palácios, torres de muitos andares e ruas calçadas além dos jardins, fizeram da cidade de Babilônia a admiração de outros povos, que a imitavam. As construções posteriores do Novo Império não permitem todavia às escavações modernas colocar à luz do dia tudo o que então havia e que as informações relatam. Os tempos brilhantes do Primeiro Império estavam contados. Ao norte se independizava Assur, que será a precursora do império da Assíria, capital Nínive. Ao sul um chamado Pais do Mar, conquistara grande parte da Suméria, passando depois por conquistar tido ao Elam. Finalmente em 1595 a.C. os hititas, um povo indo-europeu, instalado nas montanhas da Anatólia (Ásia Menor) em uma invasão de mera pilhagem e por ataque de surpresa levaram todos os valores da Babilônia, inclusive as estátuas (de ouro) de seus deuses. Em decorrência os cassitas, provenientes do norte e há mais de um século estabelecidos às margens do Eufrates, puderam instalar-se em 1595 a.C. em Babilônia com uma dinastia, pelo longo espaço de 576 anos. O rei Cassita Agum II consegue 1571 reaver a imagem de Marduk que passa de novo ao seu santuário. Seguiu-se a dinastia de Isin, na qual se destacou o rei Nabucodonosor (c. 1129-1106). Uma e outra dinastia com os impérios da Assíria e do Elam, ora com atritos, ora com acordos. Assim acontecerá uma segunda idade de ouro de Babilônia com um de seus reis, Nabucodonosor II (c. 604-562), exatamente no poder os mesmos 42 anos de Hammurabi.

65. O cativeiro de Babilônia. O rei Joaquim da Judéia por se ter negado a pagar tributo a Nabucodonosor II, viu Jerusalém tomada em 596 a.C. e seu povo deportado para Babilônia. Este fato deu novo curso à história dos judeus, porquanto gerou a idéia do messianismo e posteriormente os espalhou pelo mundo, onde se tornaram sobretudo, comerciantes. Como reação judeus, já este tempo, e de futuro também os cristãos, deram à Babilônia a fama de cidade da perdição.

66. Queda de Babilônia. Ciro II, rei de um forte império que unia a Pérsia e a Média, apoderou-se em 539 a.C. de Babilônia. Depois, aos poucos, se extinguiu, tendo transitoriamente ainda servido de capital do império criado por Alexandre Magno, que ali morreu em 323 a.C., no palácio de Nabucodonosor. A cidade não teve continuidade como centro político, porque Seleuco, sucessor de Alexandre na região, preferiu constituir nova cidade sobre o rio Tigre, Selêucia. Babilônia ficou vegetando como cidade de escribas, comerciantes, banqueiros, diversões, prostitutas e centro religioso em declínio. Ao tempo da era cristã notava-se ali uma expressiva atividade dos judeus, cujos rabinos contribuem para a formação do Talmud.

67. A Assíria, um poder paralelo à Babilônio, destrói Israel. Situada no mesmo contexto mesopotâmico de Babilônia, a Assíria, dita também Assur (ou mesmo Achur, no hebraico), com capital em Nínive, teve uma prosperidade passageira, mas não sem deixar profunda marca na história, inclusive cultural e religiosa. Não somente seu desenvolvimento foi mais tardio, - ainda que por vezes subordinando Babilônia, - como também caiu mais cedo, porque logo ao seu lado se desenvolviam os medos e persas, povos indo-europeus que penetraram a região. Caldeus e medas atacaram Nínive em 612 a.C., destruindo-a completamente. A história da Assíria contém alguns episódios de alcance religioso. O rei Sargão II (721-785), que fez da Assíria o maior império do seu tempo, obrigou o rei de Judá, Ezequias, a pagar tributo. Entretanto destruiu Samaria, capital de Israel (das 10 tribos). Estas parte maior do povo eleito nunca mais se erguerá, apesar das promessas bíblicas aos descendentes de Abraão Judá, embora ficasse pagando tributo, - como se disse, - foi poupada por algum tempo, até Babilônia a conquistará, e depois juntamente com Babilônia, passará ao Império Persa. Com referência à Assíria, merece especial menção o rei Assurbanipal (c.668-626 a.C.), que como intelectual, construiu uma biblioteca, de livros escritos em tabuletas de sinais cuneiformes. Sua soberania, que então incluía Babilônia e Egito, dava-lhe oportunidade de coletar abundância de materiais. Reencontrava-se a biblioteca de Nínive quase intocada em 1875, que assim se tornou um dos mais importantes documentários do mundo Mesopotâmico antigo.

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68. Enuma-Elish, poema Babilônico, denominado pelas suas primeiras palavras, em 7 tábuas cuneiformes, foi um dos grandes achados contidos na biblioteca do rei Assurbanipal. Refere-se à origem do mundo, ao modo como o entendiam os babilônios. A redação do texto pode remontar ao século 12 a.C., ainda que Assurbanipal seja do 7-o . Talvez expresse idéias ainda mais antigas, provenientes da tradição sumera, dos quais a receberam os semitas. Nas origens existia um caos aquoso, de duas entidades, masculina e feminina (o velho Apsu, como um oceano primordial, e Tiamat, personificação do mar). Gerados por estes os demais deuses, opõem-se eles ao velho Apsu. Tiamat resistiu aos deuses, e criou onze monstros horríveis. Marduk o mais inteligente dos deuses, venceu Tiamat, e construiu o mundo com o corpo desta, separando a terra do firmamento do céu. Texto inicial de Enuma-Elish:

"Quando no alto não se nomeava o céu, e em baixo a terra não tinha nome, do oceano primordial (Apsu), seu pai; e da tumultuosa Tiamat, a mãe de todos, as águas se fundiam numa, e os campos não estavam unidos uns com os outros, nem se viam os canaviais; quando nenhum dos deuses tinha aparecido, nem eram chamados pelo seu nome, nem tinham qualquer destino fixo, foram criados os deuses no seio das águas".

Texto sobre a formação do mundo por Marduk com o corpo de Tiamat vencida:

"Divide a carne monstruosa, concebe idéias artísticas. Despedaça-se como um peixe nas suas duas partes. Instalou uma das metades, cobrindo com ela o céu. Colocou o ferrolho; pôs um porteiro, e ordenou-lhe que não deixasse sair as águas".

Segue a criação dos luzeiros do céu e a formação dos dias. Finalmente é criado o homem que resulta da terra amassada com o sangue divino. Assim se interpreta o homem como servidor dos deuses. O modelo criacionista babilônico se refletirá sobre as cosmogonias posteriores, com as adaptações e melhorias peculiares aos tempos em curso. O paralelismo com o Gênesis bíblico é evidente.

ART. 2-o. RELIGIÃO DO ANTIGO EGITO. 7270y070.

I – DO ANTIGO EGITO EM GERAL.7072y072.

73. A importância da civilização pioneira do Egito e de sua religião está em haver transmitido influências as mais diversas sobre os judeus, fenícios e gregos. Os judeus, cuja ideologia é mesopotâmica, ao ficarem séculos no Egito, sofreram fortes interferências. Depois transferiram aos cristãos de todo o mundo um elenco egípcio de prescrições morais, ritos e crenças, ainda que com muitas transformações ao meio do caminho. Salomão casou mesmo com a filha do Faraó (I Reis 3,1) Os fenícios levaram elementos da civilização egípcia para todas as bordas do mar mediterrâneo. A pedido de Salomão forneceram artífices para construção do templo de Jerusalém (Ireis 5,18). Há também uma atuação direta do Egito sobre a Grécia, desde os primórdios de Creta, até os adiantados tempos do período clássico.

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Por estas razões, importa conhecer o velho Egito, no qual se encontram raízes importantes de culturas posteriores, inclusive de religiões. Estas não constituem criações tão originais, quanto os seus crentes posteriores supunham ser, e alguns ainda supõem ser.

74. Nem tudo é claro na história egípcia, porque ela não teve historiadores em seu mesmo tempo. Não obstante restaram representações figurativas e inscrições hieroglíficas. Ainda muito próximo da extinção desta civilização alguns gregos se referem a ela. Assim foi que Heródoto (c. 484-420) descreveu muito do que pessoalmente pode ver e compreender. O não haver feito em tudo exatas interpretações; foi porque se tratava de algo já longínquo. Também a Bíblia judaica se refere ao Egito; por vezes as suas informações são apresentadas de maneira fantasiosa e do ponto de vista da epicidade. Esta epicidade, além de exageros, tende em favor da nação do narrador. Mas a interpretação histórico-crítica encontra ali elementos suficientes para identificar as dimensões da influência religiosa e moral do Egito sobre os judeus e finalmente sobre o cristianismo. Não obstante à ausência de um historiador contemporâneo da mesma civilização egípcia, poucos séculos depois o sacerdote Maneto (c. 240 a.C.) escreveu, já em grego, as Egípcias (Aigyptiaká), com a vantagem de ainda ter sabido ler hieróglifos. Estabeleceu as dinastias dos reis, o que muito facilitou toda a estruturação da história do velho país. No século 6-o. da eras cristã já ninguém sabia ler os hieróglifos, até porque os cristãos destruíam sistematicamente os monumentos das religiões contrárias. Além do já mencionado Heródoto, do século 5-o. a.C., também os gregos mais recentes informam sobre o Egito, entre eles Diódoto de Sicília e Estrabão (Geografia), ambos no 1-o a.C., o mesmo ainda fez Plutarco, especialmente sobre Isis e Osíris, no 1-o. século d.C. Além dos mencionados historiadores, também outros sábios da Grécia visitaram o Egito, de onde poderão ter colhido ensinamentos. Sólon de Atenas (c. 640 c. 548 a.C.), Tales de Mileto (século 7-o. - 6º a.C.), Pitágoras de Samos (século 6-o.), Platão de Atenas (429-249 a.C.), Eudoxo de Cnido (c. 406-342 a.C.) Mesmo quando a helenização, a partir do 4-o. século a.C., transformou profundamente o quadro mental do Egito, ele manteve algumas formas do seu antigo modo de pensar e de proceder. Restavam ainda sinais do monaquismo egípcio, o qual influenciou ao neopitagorismo e foi finalmente propiciar um monaquismo cristão. Assim também as práticas neopitagóricas prosseguem sua influência tanto sobre os ritos como sobre a filosofia neoplatônica. Esta influência se perpetuará no pensamento filosófico e religioso de judeus e cristãos. Os essênios judeus não constituem uma criação inteiramente original. Seus elementos e pitagóricos poderão ter relações com o Egito.

75. Decifração da escrita egípcia. O estudo sobre o Egito finalmente deslanchou no final do século 18, e se deve eventualmente às conquistas do colonialismo europeu no Oriente Médio. Não obstante à espoliação que se processou com o transporte para museus ocidentais dos materiais achados, se desenvolveu também uma pesquisa que pôs subitamente a descoberto largos períodos históricos aparentemente desaparecidos. A expedição conquistadora de Napoleão Bonaparte de 1789 ao Egito deu oportunidade à descoberta da Pedra de Roseta, que apresentava o mesmo texto em caracteres gregos, em egípcio hieroglífico e em egípcio demótico. A decifração foi uma questão de tempo, em que se destacou inicialmente Champolion (1790-1832). Em decorrência o estudo histórico-crítico das religiões conseguiu novos desenvolvimentos. Passamos a conhecer melhor a origem das religiões, de sorte a podermos distinguir entre o que elas dizem ser, e o que de fato são.

76. Descoberta da literatura egípcia antiga, que, pelo seu conjunto, complementa importantes informações anteriormente fragmentárias. Os textos das pirâmides (c.2500 a.C.), das cinco pirâmides de Saqarah, contêm hinos, fórmulas mágicas, rezas. Encontraram-se textos oficiais bastante antigos, com editos e narrativas de vitórias. Biografias as há muito em túmulos. São de interesse literário, poesias líricas as mais diversas. Também se encontram novelas, como a História do náufrago, e outras similares às Mil e uma noites. Lembrando o pessimismo do livro bíblico Jó, é apreciável pela sua profundidade o Diálogo entre um homem casado e sua alma (em papiro). Já no Novo Império (1700-1000 a.C.) subsiste o Livro dos Mortos (vd), cujo verdadeiro título é Livro da chegada da Luz, com 180 capítulos. Parecido com o posterior livro bíblico Provérbios de Salomão é o conteúdo de Conselhos do escriba Amon-en-Hotep a seu filho (papiro); estão literalmente traduzidos algumas das máximas de Hotep (Prov. 22.17-23.11).

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Ainda do Novo Império vêm as novelas: Viagem do sacerdote Wen-Amon na Síria e História dos dois irmãos, esta bastante trágica e cheia de paixões. Nos últimos séculos continua a literatura de estilo popular e lendária, além dos textos burocráticos. Desta sorte, pois, a egiptologia forneceu muitos materiais para o conhecimento agora mais pormenorizado do Egito, bem como de sua religião. Os egípcios já haviam alcançado uma adiantada cultura neolítica pelo ano 5000 a.C., mas continuaram vivendo em cidades politicamente autônomas. No final do neolítico, pela volta do ano 3200 a.C., se instituem as dinastias, as quais regeram unificadamente o país. Já então se utilizavam metais e a escrita para a administração. Certamente a invenção da escrita resultou de sua mesma necessidade, gerada pela complexidade da administração de uma sociedade que se tornava progressivamente mais complexa. Uma rede de funcionários e escribas se estabeleceu, burocratizando, progressivamente a sociedade e aperfeiçoando inclusive os documentos religiosos.

77. Divisão da história do velho Egito. O longo curso da história egípcia se divide em períodos chamados: Antigo Império (desde 3000 a.C.), Médio Império (desde 2100 a.C.), Novo Império (de c. 1570 ao seu final 605 a.C.)

78. O Antigo Império foi, do ponto de vista externo, o mais autenticamente egípcio, mas já então ocorrem as influências da Mesopotâmia. Introduz a construção com tijolos e pedras, substituindo a de cana e madeira. Até traves de madeira são importadas da Síria, onde elas podiam ser obtidas, para efeitos maiores, nas construções. A madeira geralmente vinha de navio, proveniente do Líbano ou através dele. A construção das pirâmides, peculiar ao Antigo Império, poderá ter sido inspirado no Zigurat mesopotâmico e de modo geral com o culto nos lugares altos, sugerindo sempre a aproximação como o céu. As primeiras apresentam degraus, as seguintes são pirâmides. No curso da V dinastia, com 9 reais, se encontra a influência do clero de Heliópolis, tendo sido mesmo o primeiro rei um sacerdote de Ra (Rê), Deus-Sol. Passa então o culto de Ra a ser oficialmente o do Estado, com o abandono do de Horus (também deus Sol). O rei é agora considerado filho de Ra (filho do Sol) e seu substituto.

79. Na transição do Antigo Império para o Médio Império desfez-se a unidade egípcia, ocorrendo no Norte ocupações de grupos asiáticos. Acontecem agora alterações sociais e religiosas. O povo conquista direitos funerários. Os textos, que até então quase somente se gravavam nas pirâmides, aparecem também nos sarcófagos. Mas finalmente foram expulsos os asiáticos e reunificadas as cidades egípcias; começa agora o Médio Império. Verifica-se a influência do Egito para fora dele mesmo. Continua entretanto a haver de tempo no Egito novas penetrações de povos do deserto. Não há clareza como pela volta de 1720 a.C. Os hicsos assumem o poder, se por conquista, ou se, como parece mais provável, por simples crescente domínio político durante algum período de enfraquecimento do poder geral. Ocuparam todo o Norte, com capital em Ávaris, a leste do Delta, sendo desinstalado somente pela volta do ano 1550 a.C., pelos egípcios de Tebas, isto é do Sul. Eram os hicsos formados de semitas (amorritas ou hurritas) e de indo-europeus (hititas), todos provenientes da Ásia Menor. A presença dos hicsos facilitou a penetração de outros nômades; entre estes outros se encontram os israelitas, como relata a Bíblia, ao se referir ao patriarca Jacó e seus 12 filhos, dos quais um é Judá. Os hicsos não somente tornam coerente a tradição bíblica da estada dos israelitas no Egito, como ainda mostram que também estes, como aqueles, podiam ter desenvolvido um ecletismo religioso. Mas os hicsos foram logo expulsos, porque representavam um poder político, enquanto os israelitas permanecerão ainda séculos, porque eram apenas plantadores de cebola e criadores de cabras. Especula-se sobre a interação cultural e religiosa então ocorrida. Adataram-se os hinos ao desenvolvimento maior dos egípcios, mas não se sem deixar traços próprios, de onde um ecletismo. Desde então aparece em representações artísticas a deusa Isthar (ou Anat), caracteristicamente apresentada nua. Introduz-se também a esfinge alada, peculiar da Síria. Data deste o uso pelo egípcio do cavalo, e do carro de combate, recebido também por influência externa dos invasores agora repelidos.

80. O Novo Império por um longo tempo é uma poderosa potência militar com expansão até a Síria.

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O Faraó Amenófis IV (1372-c. 1354), que mudou seu nome para Akhenaton (= agradável a Aton), cuja esposa foi a elegante rainha Nefertíti, tentou uma reforma religiosa e artística, e em favor do deus Aton (um deus solar) retirando o nome de deus Amon nos edifícios. Fundou a nova capital, a que hoje nos referimos por Tell el-Amarna. Mas subindo ao poder Horemheb (1343-1314), um sacerdote de Amon, restabeleceu-se o culto deste. Cresceu agora a pressão dos hititas (indo-europeus), situados para além da Síria. Não fosse a força egípcia, eles teriam dominado, e o Egito não teria alcançado o final do segundo milênio como Estado soberano. Mas era chegado o fim do século de ouro dos Tutmés e Ramsés.

81. Legado cultural. Paradoxalmente, na proporção que o velho Egito declinava politicamente, continuou a crescer continuou a crescer sua influência cultural, no curso do milênio final da antiga Era. Portanto, apesar do esplendor do Antigo Império, Médio Império e começo do Novo Império, a importância cultural do Egito para os povos vizinhos ocorreu sobretudo quando declinou e passou a se retalhar. O poder político no milênio a. C., se encontra no Delta (capital Tanis), de outra parte com uma forte teocracia sacerdotal em Tebas, no Alto Egito. Desenvolvendo-se a navegação, tal como entre os fenícios e os gregos, estabeleceu-se mais um motivo para a expansão da influência cultural externa e interna, tanto por obra dos navios egípcios, como dos navios gregos e fenícios, que aportavam. O relacionamento diplomático desenvolveu-se, porque os reis tiveram que buscar por vezes apoio no exterior para se manterem no poder. Foi quando o contato e as concessões permitiram a intercomunicação da cultura egípcia com as demais, até agora quase impossível. Em 663 a.C. Tebas foi pilhada por Assurbanipal da Assíria, pelo sábio rei que criara uma grande biblioteca em Nínive. Os faraós vassalos da Assíria não conseguiram manter-se por longo tempo. Reforçaram-se os egípcios com o relacionamento com os gregos; permitiram neste sentido, a estes, o entreposto comercial de Náucratis, no Delta. Em virtude da prosperidade adquirida, o faraó Nécao II tentou mesmo expandir-se até a Mesopotâmia. Mas foi derrotado por Nabucodonosor II da Babilônia, em Karkemish (605 a.C.).

82. Perda definitiva da independência do velho Egito. Aconteceu outra derrota política dos egípcios, e agora definitiva, quando em 525 a.C. os persas (indo-europeus) invadiram o país e puseram fim à dinastia vigente, que era a saíta. Contudo o domínio persa não interrompeu o curso do desenvolvimento cultural do Egito. Até mesmo ele se facilitou, porquanto os gregos jônios da Ásia Menor e os Egípcios estão sob o mesmo grande rei. Já é agora o tempo da Grécia clássica, cujos sábios passaram a visitar a terra das pirâmides. Heródoto a visitou cerca do ano 425 a.C., ocupando-se dela em longas descrições, o mesmo como com Babilônia.

83. Helenização pela fundação de Alexandria. Finalmente, integrou-se o Egito no mundo helênico, por obra da conquista de Alexandre Magno (356-323 a.C.). Quando este entrava no Egito em 333 a.C., depois de derrotar o rei Dário, persa, fora recebido como um libertador. A esta altura, porém, a força da civilização grega já era maior, e o Egito foi absorvido, não só politicamente, mas também culturalmente. A história da época antiga passa definitivamente ao seu novo período. Criada a cidade de Alexandria, nela se procedeu o cadinho das culturas do Egito e da Grécia. Também ali os judeus desenvolveram uma literatura helenística, traduzindo a Bíblia, além de escreverem novos livros. Alguns foram anexados pelos católicos ao elenco dos livros do velho Testamento, não o fazendo todavia os judeus e protestantes. O alfabeto egípcio, em uma variante fenícia do Sinai, que se transpôs para a região palestinense e depois para a Fenícia, foi ser finalmente a escrita grega e Ocidental.

II – A RELIGIÃO DO ANTIGO EGITO.7270y085.

86. A religião do Egito, - que, por muitas vias, diretas e indiretas, se transferiu ao nosso tempo, - foi de início relativamente totêmica (vd 38), somada com o culto às forças naturais, além de sua diversificação em deuses tribais (ou tribais). A divindade egípcia foi concebida como tendo acima um Deus universal e onipotente com entidades divinas menores, masculinas se conservou basicamente inalterável no curso do tempo, ainda que os nomes dos deuses variassem. As potências transcendentais da religião do Egito são menos enfáticas, que as divindades desenfreadas e violentas da Mesopotâmia. Enquanto a serenidade domina nos tempos dinásticos do Egito, aumenta o caráter guerreiro dos

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deuses babilônicos, ninivitas, hititas, expresso em potências infernais os monstros disformes, acrescidos depois ainda do fim do mundo catastrófico persa, depois herdado pelos cristãos. Ainda assim os deuses egípcios manifestam seu desagrado por meio de pragas e epidemias. Este aspecto vingativo através de pragas e epidemias como instrumentos das manifestações divinas se transforma no conceito judaico de administração divina, como se observa nas narrativas sobre os sucessos e insucessos de raça eleita, e é também a interpretação dos profetas para as aflições deste povo depois de alcançado por tais desgraças.

87. O panteão das divindades egípcias teve algum desenvolvimento interno. Aconteceu a evolução, que, do totemismo e animismo, progrediu para um conceito cada vez mais abstrato, e que permite ver nas figuras exteriores apenas uma representação simbólica dos deuses. O símbolo influenciou mesmo a arte, que tendeu para o formalismo, representando as formas da espécies, de preferência aos indivíduos. Algumas divindades egípcias são de origem externa à nação. Muito cedo foram adotadas as divindades estrangeiras de Osíris (Deus do Sol noturno, Senhor do mundo inferior, juiz supremo), e Ptah (cabeça de touro). Ao tempo dos hicsos se adorava Set (corresponde ao Baal Sírio) e que não desapareceu de todo após a expulsão dos que o introduziram. São tipicamente egípcias as divindades cujos símbolos foram tomados a animais africanos: Toth (cabeça de Íbis), Anúbis (cabeça de cão), Sebek (crocodilo), Udjo (cobra), Ra (cabeça de falcão), Horus (idem).

88. O conceito egípcio de divindade. Ainda que as vicissitudes políticas influenciassem a posição dos deuses na hierarquia nominal, os conceitos como já se adiantou, não mudavam a respeito da divindade em geral. A teologia se encarregava de dar explicações cosmogônicas e reordenamentos familiares. Há ciclos em torno de Ra, em torno de Horus e em torno de Osíris. Quando regiões ou cidades se unificavam os deuses locais terminavam por criar tríades e até enéadas, como se fossem antecipações simplistas do que depois se faria mais sofisticadamente com o Logos neoplatônico ou com a Trindade de pessoas dos cristãos. Portanto, não acontece apenas a multiplicidade das pessoas divinas, mas uma reordenação e que faz uma história no curso dos séculos. Sempre se destacou Osíris, Deus do Sol Noturno, Senhor do mundo inferior (inferno dos mortos). Assassinado por seu irmão Set, foi ressuscitado por Isis, de quem Osíris também era irmão e esposo. Osíris é Deus dos mortos e Juiz supremo. Isis, irmã e esposa de Osíris, com este fazia o par mais importante dos deuses egípcios. É mãe de Horus, Deus Sol. O culto a Isis se difundirá no império romano, assumindo aspectos análogos aos da futura projeção da Virgem Maria dos cristãos. Era protetora das mulheres e das crianças. Quanto a Set, já mencionado como correspondente ao Baal sírio, é o Deus das trevas, havendo assassinado seu irmão Osíris, como também já foi dito. O culto ao Sol, ou seja a Horus, estava associados aos faraós. As pirâmides, enquanto apresentam sua face ao sol, se exercem como um apoio dos raios deste. Expressam não apenas um monumento funerário, mas também constituem manifestações religiosas como de culto ao sol, ao qual ainda se associava o culto aso faraós. O trabalho de sua construção era tão só um esforço, mas uma atividade de cunho religioso em que participava a própria nação, inclusive com cerimoniais. Entre outros e outros deuses do Egito, há finalmente Javé, que veio a ser adotado como sendo o nome do deus dos judeus. Talvez se tratasse de um Deus secundário do monte Sinai, onde era adorado pelo sogro de Moisés.

89. Totemismo. Um estranho associamento entre os deuses egípcios e os animais sagrados. No primeiro instante este culto surpreendia aos gregos e romanos, porque eram adorados num sentido totêmico e simbólico, o que não que não era óbvio aos estranhos. Como totens, estes animais eram intimamente associados, pelas suas qualidades, ao homem. Dali era um passo para a simbolização dos deuses com as imagens dos animais. A deusa Hator, em figura de vaca ou novilha, e Anúbis, um cão de guarda, bem associam a vivência de um povo agrícola. E assim, por razões peculiares, se tornavam símbolos, o touro, a serpente, o leão, o escaravelho, a rã, o gato, o falcão. Nesta coesão universal das coisas, até os astros do firmamento passavam a expressar a divindade. O fetichismo, com suas práticas bizarras, encontrou nesta maneira de ver o caminho aberto. Que seria a Serpente de Moisés no deserto, senão um animal sagrado egípcio, associado a virtudes divinas? (Números 21,6-9).

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As rãs serviam de amuleto, porque expressam a ressurreição. Supunha-se antigamente que elas nasciam diretamente do limo, sem pai e sem mãe. O símbolo da rã passou aos cristãos, para indicar a ressurreição, conforme se induz das lâmpadas da necrópole de Edfu. Os judeus poderiam ter recebido as idéias da ressurreição, em dupla fonte, - primeiro no Egito, pelo visto, e depois no mundo persa, ao qual passaram a pertencer, em contato com o com o zoroastrismo.

90. A natureza humana fora concebida pelos egípcios como composta de três elementos: corpo, vida, espírito. Acontece aqui algo similar à distinção estóica entre alma e espírito, distinção que se tornará frequente também entre os cristãos, notadamente em Paulo Apóstolo. Os egípcios davam os nomes de ahk para o espírito, o qual é descrito como princípio mortal, e kha (Ka) para a vida ou alma, que é caracterizado como energia vital, força que mantém a vida. Ambos os elementos têm continuidade depois da morte do corpo. Inicialmente o princípio imortal, ou ahk, era estabelecido como existindo, ao que parece, apenas nos deuses e reis. Evoluiu depois a doutrina, atribuindo-o também aos demais seres humanos. Quanto à alma ou Kha, ela precisa para se manter depois da morte, um suporte material, que é seu mesmo corpo, a este se conserva pelos procedimentos mumificatórios e rituais, sendo o seu túmulo finalmente a casa da eternidade do Kha, e que deveria em consequência ser preparado de maneira a se conservar. A esta casa mortuária se acrescentavam o mobiliário e alimentos. De todo este afazer de após morte se ocupava o Livro dos mortos, ali também depositado, e que ainda pode ler. A denominação do ritual funerário estendido a todos os cidadãos ocorreu no final do Antigo Império, quando as agitações sociais resultaram em melhorias democráticas. A religião egípcia não trata pois ao corpo material como se fosse algo impuro ao modo como o faziam as religiões orientais, depois difundidas no Ocidente por órficos e pitagóricos. A alma não seria algo vindo de fora para dentro do corpo material, a fim de nele se sentir castigada e nele se purificar pelo sentimento. Tal outra maneira de ver, só posteriormente viria também para o Egito, conforme narra Heródoto. Ela não coincide com a velha maneira de ver egípcia, nem com a grega de Homero, em que, pelo contrário, corpo e alma são vistos como unidade natural. A morte para o homérico e ocidental não era uma libertação. Mas o conceito milenar egípcio, contudo não se consolidou, por causa do poder maior depois adquirido pelos órficos e pitagóricos.

91. A moral e os usos sociais dos egípcios eram conservadores, todavia não rígidos, embora sem a liberalidade mesopotâmica. Também a condição da mulher lhe pode ser considerada favorável. Não ocultava seu rosto com véus, nem era confinada à casa, porquanto participava da vida social. É o que refletem as representações artísticas e os cânticos de amor.

92. O julgamento dos mortos, com destino definido de acordo com o bem ou o mal praticados, é uma convicção egípcia, que permanecerá entre algumas seitas judias e o cristianismo. O Livro dos mortos, que remonta ao Novo Império (1580 a.C.) é um significativo documentário da crença do julgamento dos mortos. As representações pictóricas, encontradas nos monumentos, visualizam o seu conteúdo. Osíris, como senhor da eternidade, senta-se em seu trono, com o cetro na mão, por trás, suas irmãs Isis e Nefhys. O morto é introduzido por Maat, deusa da justiça e símbolo de ordem universal. São 42 os juízes representando as 42 províncias do Egito. Os israelitas, em função às 12 tribos, dirão que o julgamento será por 12 juízes. Os cristãos acrescentarão mais 12 que serão os 12 apóstolos com Jesus em lugar de Osíris. No julgamento se encontra em destaque uma grande balança, na qual o peso do coração é equiparado ao da pluma de avestruz (símbolo da verdade). A pesagem cabe a Horus (Deus da luz, filho de Osíris e Isis) e a Anúbis, com sua cabeça de chacal, e guardião. O resultado é anotado sobre um papiro, por Toth caracterizado pela cabeça de Íris, e Senhor da sabedoria e da escrita. Um monstro híbrido, o grande devorador, despedaçará a alma do morto se o julgamento for condenatório. O juízo final é individual. Não há na religião egípcia a escatologia de um fim do mundo com um juízo universal como acontece na religião dos persas e posteriormente também no cristianismo. Dependente inicialmente do pensamento religioso egípcio, também os judeus não apresentam aquelas outras convicções escatológicas. Só mais tarde a escatologia será integrada no judaísmo, por influência do zoroastrismo persa (vd), todavia com resistência dos conservadores.

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93. O clero detinha importantes funções na religião e vida social do egípcio. Uma parte do clero se constituía dos sacerdotes funerários com a função de servidores do Kha, porque tratavam dos ritos da mumificação e da colocação dos corpos mumificados nas respectivas sepulturas. Outros sacerdotes tratavam do culto em geral e da administração, porquanto uma parte das terras e dos produtos; pertenciam aos deuses. Os mesmos faraós eram na verdade sacerdotes, pelas funções religiosas que também exerciam. O poder não é democrático e sim autocrático, porque o faraó é o lugar tenente da divindade. O clero egípcio sempre exerceu poder considerável. Por vezes a ele resistiram os faraós, ou o próprio povo. No Novo Império o sacerdócio passava de pai para filho, tornando-se uma classe ainda mais defendida. Assim acontecerá também com os judeus cujo sacerdócio pertence à tribo de Levi – tudo talvez por uma imitação do modelo egípcio.

ART. 3-o. RELIGIÃO JUDAICA. 7270y095.

96. A religião judaica exerceu notável influência no mundo, tanto pelas suas formas consideradas especificamente judaicas, como por aquelas que se diferenciaram em formas neo-judaicas, de que o cristianismo é a principal.

Encontra-se a religião judaica intimamente ligada à história do povo que a pratica. Importa assim abordá-la primeiramente a partir desta perspectiva extrínseca, e a seguir pelo que efetivamente contém doutrinariamente.

I – O POVO ELEITO.7270y097.

98. B’rit, Diathéque, Aliança, Testamento. A promessa de Deus ao patriarca Abraão em favor de sua descendência foi dita em hebraico pela palavra b’rit, a qual sofreu variações nas traduções que se fizeram no curso dos tempos. Os primeiros tradutores gregos a fizeram equivaler à Diathéque, com o sentido contextual de aliança. Testamento (do latim testamentum), foi dada como corresponde da tradução grega Diathéque, usada pelos tradutores gregos como equivalente da hebraica b’rit. Ocorre que os cristãos consideram desfeita a Aliança de Deus com os judeus, e que uma Nova Aliança foi feita por Cristo (1Cor. 11,25; Lucas 22,20; 2Cor 3, 6-13) . Dali a linguagem cristã: Antigo Testamento (que a Vulgata traduziu ao latim por Vetus Testamenum) e Novo Testamento. Evidentemente, para a crença judaica esta mudança do b’rit não ocorreu. A diferença entre judaísmo e cristianismo depende desta querela. Ou tem razão os judeus. Ou a tem os cristãos. Ou simplesmente não a tem, nem um e nem outro. Considere-se ainda que o conceito de messianismo é diferente no judaísmo e no cristianismo. Não se trata de uma diferença linear unívoca, como se se passasse da aliança de Deus com um povo para uma aliança com todos os povos. A aliança com o povo judeu se relaciona com a proteção do povo de Javé e em vista disto, de uma restauração do reino de Israel. Diferentemente, a aliança de que falam os cristãos diz respeito a um reino espiritual, e por isso denominado Reino de Deus (a sociedade dos beatos no céu), integrando a todos os humanos.

99. A persistência da etnia dos judeus. De maneira geral a raça judaica se expressou no mundo pela sua persistente capacidade de resistir a um desaparecimento que poderia ter acontecido por efeito de uma paulatina miscigenação. Esta resistência dos judeus se deve principalmente ao fato de haverem assumido a crença em uma religião nacional, indelevelmente ligada à sua raça. Acredita o judeu que sua etnia foi eleita por Deus, em Testamento ao patriarca Abraão, conforme um texto do Gênesis, confirmado ainda pela voz dos seus profetas. Tal ideologia deu aos judeus auto-estima e os tornou os judeus fortes, ao mesmo tempo que são vítimas desta crença e desta auto-estima. Efetivamente, o racismo de uns gera o racismo de outros, estabelecendo uma dialética de contrários. Na dialética dos acontecimento, os judeus nem sempre levaram a melhor parte, porque, ora foram perseguidos, ora massacrados em massa. Assim foi ao tempo antigo, na Idade Média, e mesmo na modernidade. Por último, restaurado o Estado de Israel, em 1948, à base da etnia, ficou mais uma vez em contraste com outra etnia, a dos árabes, na mesma região. Em princípio, todavia, a diferença das etnias é possível de ser pacificamente admitida, embora não seja o caminho mais fácil e nem seja a tendência espontânea dos novos tempos.

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100. A história antiga dos judeus foi escrita com o mesmo estilo heróico da história dos povos anteriores e mais antigos da Mesopotâmia, com seus patriarcas longevos e façanhas.. A primeira figura judaica de fisionomia histórica definida é Abraão, de cerca de 1700 a. C., do tempo de rei Hammurabi. Procedente de Ur (Mesopotâmia), veio instalar-se na Palestina, então denominada Canaã. O texto bíblico, - escrito evidentemente pelos próprios judeus e tido como revelado, - declara que Deus prometeu esta terra aos seus descendentes, desde o grande rio do Egito até o Rio Eufrates, da Mesopotâmia (Gênesis 15,18). A tribo israelense, depois de vinda de Ur para Canaã, se transferiu para o Egito, onde prosperou. Ao sentir-se com firmeza de abandoná-lo, tentou rumos próprios no deserto de Sinai e depois conquistou Canaã (ou Palestina). Moisés comandou o povo e lhe deu as leis. Estes sucessos datam de cerca do ano 1270 a.C.

As doze tribos de Israel, foram governadas inicialmente por juízes. Instalou-se o reino por volta de 1020 a.C., sucessivamente sob os reis Saul, Davi, Salomão. Dividiu-se em 929 a.C. o reino do povo eleito, em dois, o de Israel (10 tribos) chamado também de Samaria (nome da Capital), e o da Judéia (tribos de Judá e de Levi). Foi o reino de Samaria conquistado pelos Ninivitas em 722 a.C. No futuro seus habitantes se miscigenaram com as demais populações da região. Mais ou menos por isso os samaritanos não eram bem vistos pelos judeus. O reino da Judéia, com capital em Jerusalém, foi tomado pelos babilônios em 587 a.C. Encerrou-se aqui a fase áurea dos judeus. Daqui para frente os guias do povo judeu passaram a ser principalmente os chefes das organizações religiosas, sobretudo do templo de Jerusalém, as sinagogas locais. Os principais textos sagrados e ritos já se haviam fixado anteriormente, mas continua a haver elaborações, ao mesmo tempo que surgimento dos que se diziam profetas e a organização das divergências doutrinárias em seitas. O messianismo também cresce, como uma esperança futura, com que acenam os profetas e as seitas mais ativistas.

101. A época das grandes mudanças internas do judaísmo principiou quando Ciro, rei dos persas, - um povo indo-europeu –, vencendo Babilônia em 538 a.C., permitiu relativa liberdade aos judeus. Bastaram 40 anos de cativeiro servil, para mudar os hábitos de toda uma geração nova de judeus. Parte deles retornou à Jerusalém, reconstruindo um modesto templo. Outra parte se difundiu todo o vasto império persa, em geral praticando o comércio e o artesanato. O povo judeu, que até o cativeiro de Babilônia fora predominantemente agrícola, passou a exercer uma nova função, que lhe facilitou a dispersão pelo mundo. Mantendo uma religião nacional, fez desta, seu princípio de identidade racial. Não obstante assimilou elementos da religião persa, ainda que umas seitas mais, - como a dos fariseus, - e outras menos, - como a dos saduceus. O Livro de Tobias, narrando uma viagem para a Pérsia, ilustra a situação do sincretismo religioso judeu-persa, sendo notável a presença do anjo Rafael, uma figura do panteão zoroástrico. Em função às inovações, dividiu-se o povo dito eleito, em:

- judeus tradicionais, que se chamarão sobretudo depois pelo nome de saduceus, restritos à Lei de Moisés sem os profetas,

- e em judeus inovadores, entre os quais se destacarão depois os da seitas dos fariseus, zelotas e essênios, que acrescentam à Lei os livros dos profetas.

Este fundo contextual se encontra na seguinte passagem do Novo Testamento:

"Pois os saduceus negam a ressurreição, bem como a existência de anjos e espíritos, ao passo que os fariseus admitem uma e outra coisa" (Lucas, em Atos dos Apóstolos 23,8).

A doutrina da ressurreição dos mortos também ingressou progressivamente na mente judia, por influência externa, vindo a tornar-se finalmente uma doutrina bem definida dos cristãos.

102. Judeus helênicos. Quando Alexandre Magno em 334 a.C. integrou o grande reino persa no seu mundo helênico, abriu mais um espaço à difusão dos judeus e às suas variações ideológicas. No ano 63 a.C., quando mais uma grande variação política ocorria, pela passagem do mundo helênico ao poder Romano, se estendia ainda para mais longe a dispersão judaica, atingindo a Espanha, pois até lá já fora o poder de Roma.

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Entrementes ocorria o episódio passageiro do Reino dos Macabeus de 164 a 63 a.C. A independência da Judéia se fizera então possível, porque à época enfraquecer o reino helênico seleucida de Antioquia da Síria, frente à política romana. Seriam depois os mesmos romanos que engoliriam, tanto a Síria, como a Judéia (63 a.C.). Um século depois, uma nova tentativa de independência da Judéia, com a revolta conduzida pelos zelotas, foi a cidade de Jerusalém destruída no ano 70. Depois disto os judeus serão uma nação errante pelo mundo, mas sempre unida e influente. O universalismo judaico se mantém ainda após a criação do moderno Estado de Israel em 1948.

II – O JUDAÍSMO DOUTRINARIAMENTE.7270y103.

104. Depois que se desfez o reino judaico e com ele a normalidade da organização sacerdotal, os livros sagrados obtiveram importante função. Ficaram mais conhecidos internacionalmente pela denominação de origem grega, - a Bíblia, que significa Livros (de bibliá, plural de bíblos = livro, papiro, casca de papiro). Os livros sagrados dos judeus são aqueles que os cristãos denominam o Velho Testamento. Ainda que os primeiros se atribuam a Moisés (século 13 a.C.), daquela época somente poderiam ter vindo tradições, leis, lendas, poemas, crônicas de reis e guerras. Os primeiros livros da Bíblia, conforme análise interna dos mesmos, datam de cerca do século 8-o a.C., e que foram sujeitos ainda a revisões posteriores. Foram escritos em hebraico primitivo. Os cristãos católicos incluíram obras escritas em grego pelos judeus de Alexandria. O cânon dos livros sagrados, admitidos como tais pelos judeus foi fixado definitivamente em Jâmnia (da Palestina), entre 90 e 100 d.C. Não obstante os demais livros servem para indicar o pensamento judaico daquele tempo. A Lei e os profetas, eis uma divisão classificatória frequente dos livros do Antigo Testamento. A Lei (ou Toráh) reúne os livros mais antigos, próximos da mentalidade mosaica. Os profetas são os livros posteriores, indicando um pensamento mais recente. Os saduceus admitiam a Lei e não os profetas, os quais eram do elenco dos fariseus, zelotas, essênios. Nesta última relação se encontram também os cristãos, todavia sem a adesão protestante. O Talmud teve origem no 2-o século, já da era cristã, e reúne tradições orais e leis, inclusive comentários. Complementa a Bíblia judaica, sem ser parte dela.

105. Judaísmo, um sistema aberto. Doutrinariamente a religião judaica não oferece um sistema dogmático fechado. Explica-se o fato pela circunstância de haver desaparecido cedo uma autoridade religiosa central, muito antes da época em que as outras religiões desenvolveram sua teologia em função de autoridades fortemente autocráticas. O judaísmo oscilou bastante e se dividiu em orientações divergentes sem que umas orientações insistissem em declarar heréticas às outras. O judaísmo une-se em torno de seus livros sagrados e da idéia da predestinação de uma nação, a dos judeus. O monoteísmo foi desde sempre até hoje uma das principais características do judaísmo, ainda que isto nem sempre apareça claro. Substituiu o elenco dos deuses secundários pela presença de entidades intermediárias, como as dos anjos. Estes cresceram de importância no judaísmo posterior, após o exílio em Babilônia, sem que se multiplicasse a divindade. De outra parte, a noção de Deus, por parte do velho judaísmo, é rudimentar e antropomórfica. Sem especulação filosófica a respeito de Deus e sem cuidado de defini-lo Deus fora vagamente concebido como um ser pessoal quase ao modo humano. Deus age e fala, têm mãos, pés, braços, olhos, lábios, se apresente em certo lugar e mora nos céus. A melhoria dos conceitos judaicos sobre a divindade se motiva nos contatos com a cultura grega, apesar de odiada. Esta influência ocorreu sobretudo em Alexandria, a grande metrópole helênica situada no delta do Egito. Na tradução da Bíblia ao grego, e que se fez conhecer por Septuaginta (do 3-o século a.C.), vários antropomorfismos foram substituídos por circunlóquio. O que revela uma melhoria de mentalidade filosófica dos judeus helênicos. Também será em Alexandria que se devolverá uma exegese alegórica, ou simbólica desenvolvida por judeus e cristãos, substituindo os episódios fantásticos por interpretações místicas. Alguns judeus como Filon de Alexandria (c. 25 a.C. – c. 50 d.C.), cultivaram a filosofia, sobre tudo a platônica. Entretanto, os judeus não se deixaram

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influenciar pela processão trinitária platônica, como aconteceu com os cristãos, cuja evolução teológica foi ao ponto de afirmar a existência de três pessoas em Deus.

106. O paraíso da antropogenia judaica, depois colhido pelo cristianismo, tem precedentes em outras imaginações dos povos antigos, os quais se referem a um lugar distante e aprazível, por exemplo, como aquele onde foi procurado Utnapichtim. Todavia, como foi apresentado, o paraíso da antropogenia judaica, ele apresenta aspectos originais. Seu relato foi apresentado junto ao da criação do mundo, o qual foi interrompido com a intercalação do episódio da perda do paraíso. A versão do texto nem sempre tem sido a mesma. "Plantou Javé um jardim em Éden, no Oriente, e ali pôs o homem que havia modelado. Javé Deus fez germinar no solo toda a espécie de árvores agradáveis á vista e apetecíveis ao paladar, a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem do mal. Um rio saía do Éden para regar o jardim, e dividia-se em seguida em quatro braços (ou quatro cabeças de rio). O primeiro chama-se Fison, e rodeia toda a terra de Evilat, onde abunda o ouro; o ouro desse país é puro, e ali se encontram o bdélio. O segundo rio chama-se Geon, e rodeia toda a região de Cusch. O terceiro rio chama-se Tigre que corre ao Oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. Javé Deus tomou o homem e pô-lo no jardim de Éden para que o cultivasse e guardasse, e deu-lhe esta indicação: podes comer de todas as árvores do jardim, mas quanto á árvore da ciência do bem e do mal, não comas dela, porque no dia em que dela comeres por certo morrerás" (Gen 2.8-17). O antropomorfismo do texto é evidente ao imaginar Deus como um plantador de jardim. Também é evidente, à vista da antropologia moderna, que não poderia ter sido assim o surgimento do ser humano.

107. O nome e o lugar do Paraíso. As traduções do texto sobre o paraíso oferecem dificuldades no referente à natureza do seu lugar, o Éden. No texto hebraico se informa que Deus plantou um gan. A versão da Septuaginta traduz por Paradeisos (= paraíso). A Vulgata, latina, faz um acréscimo explicativo, Paradisum voluptatis (= paraíso de delícia). A forma grega da Septuaginta penetrou no hebreu posterior como pardisu e pardés, inclusive nos livros sagrados (cf. Cant. IV,13; Ecl.II,5; Nth.II,8). Gan é palavra hebraica procedente do sumério. Neste significa um horto, em que se planta e pode haver árvores frutíferas. Para este fim, gan associa a idéia de lugar cercado e protegido. Parece então que o Gan dos primeiros homens fosse um lugar como um oásis, no meio da planície ou do deserto oriental. Em vista do primitivismo do ser humano à época em que foi escrito o texto sobre o Paraíso, devia este ser concebido como algo eminente e cercado. Seria algo tão extraordinário que somente os reis disporiam de tal coisa, e que por isso até poderia ser atribuído a Deus o haver feito tal arranjo para os primeiros homens. Em decorrência paraíso, no sentido de jardim, poderia ser a tradução adequada do gan, plantado por Deus, para os primeiros homens. Quanto à língua da palavra paraíso, adota no grego, ela procede do persa. Neste significa um lugar cercado e protegido em que se planta e se cultivam árvores frutíferas. No persa, que é um idioma indo-europeu tal como o grego, se diz pairidaeza. A etimologia está evidente. Na primeira parte da palavra, pairi (no persa), peri (no grego), tem o sentido de ao arredor. Na segunda parte significa cerca, ou muro; portanto, um cercado circular, como se pode imaginar um jardim no meio do campo.

Qual o lugar? A Vulgata traduzindo paradisum volutaptis (= jardim de delícias), altera o texto que deveria ser "jardim em Éden, no Oriente" É difícil determinar, onde no Oriente. Quanto aos quatro rios, os dois primeiros são identificados por alguns, como sendo o Ganges e o Nilo, os quais dariam voltas, no entender da Geografia dos antigos. De qualquer maneira esta localização é imprecisa e falha; nem há, na região, 4 rios a nascerem de fonte única. Eufrates e o Tigre, nascem em separado. Também nascem em separado o Nilo e o Ganges. A idéia das 4 nascentes obedece à falsa mentalidade antiga de um reservatório único para as águas. A partir da idéia do paraíso perdido se desenvolveu a convicção religiosa da necessidade de um Salvador. Este Salvador, ou Messias, terá as mais diversas interpretações, desde a de chefe política até a de um rei espiritual. Uma das interpretações se desenvolveu a partir do Paraíso perdido. Outra, a partir da independência perdida por Israel e Judéia, para cuja recuperação os profetas anunciam um Salvador poderoso.

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108. Revelação divina, ou simples herança cultural? Sempre que na tradição judaica, relatada no texto bíblico, ocorre uma novidade com relação aos relatos mesopotâmicos, egípcios, fenícios, importa a pergunta, - de onde viria esta novidade? Ou ela é uma revelação. Ou ela é tomada simplesmente de textos preexistentes. Os que admitem a inspiração e a revelação sobrenatural pretendem que se trate de uma informação extra-humana. Ou pelo menos de inspiração sobrenatural para selecionar, sem erro, uma entre as versões preexistes. Mas, no caso de inspiração sobrenatural para selecionar sem erro versões preexistentes, resta a pergunta, - teriam acontecido seleções com erro? A filosofia da religião, ainda que não decida sobre a questão apresentada, reclama, contudo, que a solução dada seja epistemologicamente coerente.

109. Do contato das religiões dos semitas, em especial da dos judeus, com os povos indo-europeus, resultaram novas formas religiosas. Dentre estas novas formas se destacou o cristianismo, que se tornou relativamente autônomo em relação ao judaísmo. Assim aconteceu, que o cristianismo não é mais uma seita judaica, e sim um neojudaismo, porque integrou elementos essencialmente novos ao mesmo tempo que conservou outros. Os novos elementos do judaísmo recente vieram da religião dos indo-europeus e da filosofia helênica. Finalmente, o judaísmo recente e o cristianismo se diferenciaram porque este foi muito mais alcançado pela inovação. Neste sentido importa prosseguir a investigação.

ART. 4o. - RELIGIÃO DOS INDO-EUROPEUS. 7270y110.

- Filosofia da Religião -- Cap. 2 "Exame Histórico-Crítico das Religiões" -

111. Origem caucásica dos indo-europeus. Acredita-se que os indo-europeus tenham sido inicialmente uma única nação estabelecida na Ásia centro-ocidental, região do Cáucaso, cuja língua não deixou literatura, mas que se

rastreia com a linguística comparada. Dali derivaram para a Índia central (falantes de sânscrito), para a Ásia menor (hititas, parte dos hicsos, lídios), para o planalto do Iran (persas e medos), Europa (celtas, gregos, latinos, germânicos, eslavos). Na antiguidade os indo-europeus mais expressivos, e que estivessem em direção do Ocidente, foram: - os gregos, cuja religião globalmente pode ser dita homérica (vd 112); - os persas (do Iran), cuja religião foi o zoroastrismo (vd 119).

A importância da religião homérica está em ter sido do Ocidente, e a importância da religião persa em ter influenciado posteriormente ao mundo dos crentes da homérica, e também da judaica desde a alta antiguidade. E si influenciou à religião homérica e à judaica, foi refletir-se finalmente no cristianismo. Também foi indo-europeu o bramanismo (depois dito hinduísmo) propagado na Índia pelos árias, cujos textos se encontram em sânscrito. Este grupo se conservou todavia relativamente isolado com referência às religiões ocidentais. Por isso o seu tratamento ocorrerá oportunamente (vd 182). Na antiguidade também se fizeram conhecidos como indo-europeus, entre outros, os filisteus (dali o nome Palestina), os hititas, os lídios, em parte ainda os hicsos (vd 79).

I – A RELIGIÃO HOMÉRICA.7270y112.

113. A idade de bronze, que iniciou na Grécia pelo ano 3000 a.C. se instala por efeito de penetrações vindas da Ásia menor. Mas os indo-europeus chegaram depois desta primeira prosperidade, pelo ano 2000 a.C.. Este fato representa inicialmente um retrocesso na região, que entretanto se reverte, tornando-se finalmente a Grécia mais adiantada

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civilização antiga. Note-se ainda, que a mesma nação, tinha dois nomes, - gregos e helenos, - e que se dividia em grupos distintos, reconhecíveis pelo seu dialeto: dórios, jônios e outros. Depois do predomínio grego de Creta, se deu o de o Acaia. Agora o centro está inicialmente em Micenas, finalmente em Atenas. Antes que se desse a influência persa sobre a religião grega, foi esta fixada nos poemas épicos criados por Homero, autor da Ilíada e Oséias. Por isso, aquela mentalidade é denominada homérica, como em sociedade homérica, religião homérica, cosmogonia homérica, etc.

114. Na cosmogonia homérica há primeiramente um caos (de chaos). Nisto se observa alguma semelhança com o pensar babilônico, egípcio, hebreu. O caos indica algo assim como um espaço imenso. Figurativamente significa o tempo ilimitado. Este caos eterno, dotado de poder intrínseco é Deus. Mas o caos tem desdobramento. Urano (que quer dizer céus) é o mais antigo dos deuses para os gregos. Acontece assim alguma semelhança com a idéia geral indo-européia de que Deus é a luz, porque o céu é a luz, o céu é o dia. Etimologicamente Deus e luz, Deus e dia são indicados pela mesma radical indo-européia. Por diferenciação crescentes, nascem, pela ordem, Gea (de ghe = terra) e Eros (de eros = paixão, amor). A conotação da palavra Gea é a de gerar, como efetivamente a terra é geradora. Desta sorte, Gea é uma deusa de amplo peito.

115. Neste procedimento evolutivo ou gerativo da divindade, - Caos, Gea, Eros, - podemos também encontrar uma analogia no modo como os neoplatônicos fazem aos princípios eternos derivar um do outro, sucessivamente. Essa sequência está nas pessoas da Trindade, Pai, Filho (gerado pelo pai) e Espírito Santo (procedente dos dois primeiros, na teologia, católica, ou só do segundo conforme a teologia grega ortodoxa). Historicamente, há uma fórmula anterior, que o Espírito Santo está como deusa mãe. A reação ao sexo terá produzido a mudança do Espírito Santo para a posição assexuada terceira. Quanto a Eros, ou Deus do amor, ele personifica a tendência geradora. Sua peculiaridade é de subjugar os membros como acontece nos reflexos incondicionados sexuais.

116. Continua o processo gerativo dos deuses. De Urano e Gea nasce Cronos (Saturno, para os Romanos). De Cronos e Réia (Cibele) nasce Zeus (Júpiter, para os romanos).

São filhos de Zeus: Apolo, Hefesto (Vulcano), Ares (Marte), Hermes (Mercúrio), Afrodite (Vênus), Ártemis (Diana), Atena (Minerva).

Mas, anteriormente, Cronos teve vários irmãos: Temis, Téia, Hipérion, Tétis, Oceano, Mnemosine, Climene, Jápeto, Febe, Ceos, Euríbia, Crio, Réia (Cibele).

Destes todos nasceram ainda muitos outros; mas Zeus foi o principal. A ordem da procedência familiar dos deuses deve haver resultado de especulações ulteriores, que tratou de reduzir e ordenar deuses locais e isolados, conforme também havia acontecido no Egito. Contudo a complexidade deste panteão dos deus gregos não se fazia excessivamente complexo, porque, de outra parte, a ele ainda não havia sido anexada a multidão dos anjos da religião zoroástrica. Os anjos viriam depois, com a presença persa e a expansão do orfismo e do cristianismo. Na mitologia grega a teologia e a cosmologia se associam porque no espaço imenso era possível identificar cada astro e em cada determinação importante alguma divindade.

117. Quando a religião homérica entrou em contato com o cristianismo, a cultura grega já se encontrava na fase de transformação helênico-romana e com uma adiantada filosofia.

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No plano da filosofia ocorreu sobretudo a absorção de elementos neoplatônicos e neopitagóricos. No plano prático, sobretudo administrativo e ritualístico, ocorreu um arrastão de usos e fórmulas mui variadas, com detalhes por vezes curiosos. O nome Pontífice, como em Pontífice Romano, é uma referência ao chefe da religião, cujo nome deriva remotamente de Ponte. Com a vitória política dos cristãos, sob Constantino (+ 337), o Pontífice Romano deixou de ser da religião anteriormente vigente, passando a função e o título ao Papa cristão. Por sua vez Papa é a forma latinizada do grego pappas (= pai, papá).

II – RELIGIÃO DO ORIENTE PERSA. ZOROASTRISMO.7270y119.

120. O Iran é dominantemente um planalto com média de 1200 metros de altitude, com uma bacia hidrográfica sem escoamento para o mar. No exterior, através da língua grega, o Iran se fez conhecer pelo nome de sua principal tribo antiga, a dos persas. Todavia, a região foi sempre denominada pelos seus mesmos habitantes como Iran, isto é, terra dos arianos. Primeiramente. no segundo e terceiro milênios atuaram no território iraniano os elamitas (capital Susa) e cassitas, em um contexto similar aos dos semitas mesopotâmicos, havendo agido diversas vezes sobre Babilônia. No início do primeiro milênio (a.C.) penetraram no Iran as tribos indo-européias, vindas provavelmente do Cáucaso. Dentre elas se destacaram as dos medos e dos persas. A partir deste inicio de milênio se passa a sentir a presença da religião dos persas, de modelo indo-europeu. O fenômeno histórico que os persas representam é o de haverem sido a primeira grande manifestação política, religiosa e cultural de um povo indo-europeu em direção ao Ocidente. Dominaram os persas cerca de dois séculos, ocupando os espaços dos semitas de Babilônia e Egito, e depois infletiram na direção da Grécia, conquistando-lhe parte do seu território. Com os persas passou a influência internacional dos semitas para os povos indo-europeus, influência que se consolidou com os gregos, latinos, germânicos, eslavos e que ainda perdura hoje. Dada a liderança inicial assumida pelo povo indo-europeu persa, importa considerar sua religião. Como se sabe, já a antes os indo-europeus hititas e hicsos haviam deixado algumas influências sobre os semitas na Mesopotâmia (vd 64) e Egito (79). Mas agora a ação persa é muito mais efetiva.

121. O nome de Deus é indo-europeu. A religião persa, e dos indo-europeus em geral, resultou de várias sedimentações. Um dado importante para caracterizar a influência indo-européia no plano religioso foi o de haver dado ao patrimônio universal o nome Deus (que significa Luz, Dia), suplantando todas as demais denominações anteriores. O cristianismo, apesar de se considerar o Novo Testamento em relação ao Antigo Testamento, como fora instituído junto aos judeus por Javé, esqueceu praticamente este nome pessoal de divindade. Quando o cristianismo se refere às três pessoas da Trindade não usa nomes pessoais, e diz funcionalmente – Pai, Filho e Espírito Santo. Também não conservou o nome comum El, ou Eloim (plural) com que a Bíblia hebraica se refere a Deus. O predomínio do nome indo-europeu de Deus se deveu à tradução da Bíblia hebraica ao grego (idioma indo-europeu), já antes da fundação do cristianismo, e que diz Theós, e não muito depois ao latim (outro idioma indo-europeu), que diz Deus. A raiz comum dos nomes indo-europeus para designar a divindade é dei, com a idéia fundamental de brilhar. A raiz evoluiu em várias direções, mas em todas como que faz imaginar a Deus como qualquer coisa similar à luz, ao dia luminoso, ao céu luminoso. Entretanto o nome próprio do Deus supremo dos iranianos fora Masda (ou Mazda), de onde chamar-se masdeísmo a referida religião, de cuja reforma cuidou Zoroastro.

122. O zoroastrismo vastamente difundido. Numa primeira fase a religião persa se constituía de uma tradição bastante diversificada e heterogênea, por causa da diversidade das tribos indo-européias. Ocorria também o associamento com as influência recebidas no impacto com a população anterior, esta por sinal já bastante evoluída e sob os efeitos mesopotâmicos. Ocorreu depois a reforma do profeta Zaratustra (nascido pela volta de 650, a.C.), - que no exterior se fez conhecer através da forma grega Zoroastrês, de onde Zoroastro, - com tendência à simplificação ritual e à sistematização. No período dos grandes reis aquemênidas (538-330 a.C.) o zoroastrismo esteve sob a proteção oficial e se difundiu por todo o grande império criado por Ciro (+ 529 a.C.), conquistador de Babilônia (538 a.C.), Egito e Ásia Menor,

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inclusive da Jônia grega. Consolidado o império sob Cambises (529-522 a. C.) e Dário I (521-486 a.C.), o zoroastrismo influenciou vastamente toda a região, inclusive sobre ao judaísmo recente, e através deste ao futuro cristianismo. Mas no curso destes mesmos reis aquemênidas, sobretudo após Dário I (+ 486 a.C.) derivou o zoroastrismo paulatinamente para a forma denominada masdeísmo (outros escrevem masdeísmo), que acentuou novamente o ritualismo e complexificou a escatologia. Ulteriormente ocorrerão formas conhecidas por mitraísmo, maniqueísmo, além das influências sobre o orfismo e pitagorismo, este com extensão até o sul da Itália. No ano 63 a.C. se impôs o jugo romano, em substituição ao helênico. Foi quando penetrou ainda mais adentradamente no Ocidente a influência da religião persa, especialmente de Mitra, que teve mesmo um grande e belo altar em Metz, cidade romana na fronteira germânica. O natal cristão em 25 de dezembro, passou a esta data, porque nela se festejava o nascimento de Deus Mitra, - Natalis Solis Maximus. Em 226 d.C. ocorreu de novo a independência da Pérsia com a dinastia dos Sassânidas (séc. 3-o. ao 8-o.), que restauraram o Zoroastrismo. Mas com o domínio árabe, a partir da conquista de 641, se implantará definitivamente o islamismo. Restou a anterior religião, sob a denominação de parsismo, entre os persas emigrados para Bombaim (Índia) e os guebros, que ainda permanecem no Iran.

123. O livro Zend-Avesta é o que de melhor, restou para o estudo de todo este elenco milenar de doutrinas, de difícil determinação no que se refere à conclusões precisas, em virtude da imprecisão documental. É que depois de conquistada a Pérsia à Dário III (336-330 a. C.), por Alexandre Magno (330 a.C.), foi sua religião paulatinamente se diluindo e por último radicalmente substituída pelo islamismo. Quase extinta, a religião da antiga Pérsia ainda se manteve conforme adiantamos, entre os Guebros e Parses de Bombaim, da Índia. Por isso conservaram-se os antigos livros sagrados, cujo conjunto se fez conhecer por Avesta. Mencionado este juntamente com o Zend (= comentário), que é do século 9-o. d.C., da autoria da Pahlavi Dinkard, leva a denominação conjunta de Zend-Avesta. O manuscrito mais antigo se conserva em Copenhague, datado do ano 1258. Ocupa-se o Zend-Avesta, como os livros sagrados em geral, de literatura, narrativa, da criação do mundo, preceitos morais, história heróica e escatologia. A crítica interna aplicada ao Zend-Avesta revela que, em sua situação de hoje, é fragmentário. Informam as lendas persas que o original fora escrito em duas cópias, havendo sido queimada uma e a outra caído em poder dos gregos ao tempo da conquista de Alexandre Magno. Afirma o historiador Árabe Tabari que o livro fora escrito sobre a pele de 1200 vacas. Hoje é impossível determinar o que era original e o que no curso dos séculos foi acrescido. Foi o livro sagrado do Avesta (Avistak, na denominação primitiva) redigido no reinado de Dário I (521-486 a.C.). Mas, atribui-se já a Zoroastro haver escrito 2 milhões de linhas sobre a teologia, a astrologia e a natureza. Entretanto, muito do que deste se diz, certamente é lendário. Todavia, textos seus poderão ter sido integrados no Avesta. Ainda que não sejam necessariamente de Zoroastro, conforme lhe são atribuídos, são muitos antigos, em virtude de sua linguagem arcaica, os hinos na parte chamada Gathas. Por isso importam para esclarecer as interações ocorridas entre as religiões, desde que se criou o vasto império persa e logo o helênico.

124. Divide-se o Avesta em cinco livros principais: Yasna (72 cap.), Vispered (24 caps.) Vendidad (22 cap.), Yashts, Khordah Avesta.

a) Destaca-se Yasna, pela sua principalidade como livro litúrgico dos parses. Seus 72 capítulos estão divididos em três secções: Introdução, constituída principalmente de invocações; Gathas, com discursos, exortações, texto das revelações atribuídas ao profeta Zaratustra, de linguagem notoriamente arcaica, e em verso, entre os capítulos 34 e 43; Yasna posterior (Aparo Yasno). Também dominantemente de invocações. Os textos deste principal livro do Avesta são lidos pelos sacerdotes por ocasião do cerimonial Yasna (Izesne), quando se realiza o sacrifício geral solene em honra de todos os deuses.

b) O segundo livro, o Vispered, é um apêndice litúrgico menor do Yasna.

c) No terceiro, o Vendidad, se encontra uma narrativa da criação (cap., 1). Segue uma lenda e a descrição da Idade de ouro (cap. 2).

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Completa-se este terceiro livro com preceitos práticos e morais sobre o cultivo da terra e animais úteis, com recomendação sobre a proteção da terra, o fogo e a água, porquanto são considerados elementos sagrados.

d) O quarto livro, os Yahts, se constitui de hinos aos deuses e heróis lendários. Talvez se trate da poesia religiosa dos primitivos iranianos e parece ter conotações com o Rig-Veda dos hindus (vd 183).

e) Finalmente o Khordah Avesta (ou pequeno Avesta) é uma coletânea de orações para as diversas ocorrências da vida. Informações contemporâneas de Heródoto (+ c. 425 a.C.) que remonta ao tempo quando a Ásia Menor se integrava no reino persa, aduzem elementos complementares ao estudo da religião persa. Assim também contribuem os livros bíblicos, como Tobias e Ester, com o tema situado na Pérsia, para onde se haviam dispersados muitos dos judeus e que já não mais falavam o hebraico. Tinham portanto estes como se deixar influenciar pelas doutrinas e ritos daquele mundo indo-europeu, sobretudo à época do seu esplendor, e que prossegue após a conquista de Alexandre.

125. O profeta Zoroastro teria nascido pelos meados do século 7-o. a.C.. Viveu exatamente quando as tribos medas (situadas ao Sul) começaram a se unificar sob Ciáxares e logo conquistaram Nínive (612 a.C.) e a Ásia Menor (610 a.C.) incluindo Samaria (das 10 tribos de Israel). Esta Samaria já havia sido tomada pelos assírios em a.C., havendo sido portanto integrada mais cedo no mundo dos medas e logo também os persas, que, desde 550 a.C. governam sobre o todo. A pregação de Zaratustra encontrou, por conseguinte, oportunidade de alcançar um grande espaço geográfico. De outra parte porém, carecemos de informações precisas, porque as lendas envolveram ao profeta, o que entretanto não teria acontecido caso não fosse considerável sua influência. As lendas se ocupam do seu nascimento, de sua pregação na Média, de suas obras escritas em dois milhões de linhas. O certo é que um século depois tudo se codificava no Avesta, quando no reinado de Dário I (521-486 a.C.) o zoroastrismo se tornava a religião oficial. A crítica interna se esforça por distinguir os substratos pré-zoroástricos, separando-os daqueles que são do mesmo Zoroastro (nascido cerca de 650 a.C.), e ainda daquilo que, por influências várias do mundo heterogêneo persa, se introduziu por último e depois. Além disto, se evoluirá para o masdeísmo, sem contar com as formas mais peculiares que constituem a religião de Mitra (mitraísmo) e de Manes (maniqueísmo). Dizem versões desconexas e fantasiosas, com feição de personagens heróicos e talvez míticos, que aconteceu resistência às pregações reformista de Zaratustra, por parte de sacerdotes das formas religiosas vigentes contrariadas. Apesar das renovações haverem recebido o apoio do rei Gustasp, não escapou Zaratustra de ser morto em um assalto dos adoradores dos Devas. Ocorrem influências diretas do zoroastrismo sobre o Ocidente, além da indireta através do judaísmo e cristianismo, conforme já mencionamos e voltaremos ainda a indicar. A doutrina fundamental do zoroastrismo é a de um Deus único – Ahura Masdah, o Senhor Sábio. Ele é o criador e o governador do universo. Mas em posição oposta está um princípio mau. – Angre Mainyu (ou Ahriman). A religião persa é, portanto, um dualismo metafísico, no qual o bem e o mal estão personificados e em luta eterna. O príncipe da Luz deverá vencer o príncipe das trevas, ainda que não o conseguindo destruir. Ocorre de um de outro princípio a derivação de mais personalidades, por um processo similar às emanações neoplatônicas e mesmo às procedências das pessoas divinas da Trindade cristã. Mas o número das emanações zoroástricas é de seis entidades, e que participam de parte a parte na luta entre o bem e o mal. Da entidade suprema do bem derivam os seis espíritos, chamados Imortais Sagrados (Amesas Spenta):

Espírito do Bem (Vohu-Mano). Retidão Suprema (Ása-Vanista), Governo Ideal (Khsathra Varya), Piedade Sagrada (Spenta Armaiti), Perfeição (Ahurvatat) e Imortalidade (Ameretat).

Por sua vez o espírito do Mal faz emanar os seguintes outros seis espíritos demoníacos: Mau Pensamento, Mentira, Rebelião, Mau Governo, Doença e morte. Além destas derivações o zoroastrismo derivou outros e outros entes: anjos inúmeros, o vasto mundo e os seres humanos.

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As forças do bem e do mal não somente atuam no plano geral do universo, mas também nos indivíduos e na sociedade, em que se repetem em escala menor as manifestações do bem e do mal. Ainda se manifesta o mal nas plantas daninhas e animais venenosos, nas catástrofes e doenças. Acontece nisto tudo uma concepção pré-lógica animista e mágica. A ética zoroástrica impõe aos homens o combate ao mal, participando por conseguinte na luta do princípio do bem contra o princípio do mal. Para este fim apresenta uma série de exortações e interdições, tendentes a reprimir os maus impulsos provenientes da ação do princípio do mal. De outra parte, os indivíduos são livres, podendo escolher o seu partido. Mas, depois da morte, o bem será remunerado e o mal punido. A índole do zoroastrismo não tende a estimular bebidas estimulantes e sacrifícios sangrentos, cerimoniais todavia correntes em outra modalidades religiosas do Iran, bem como do mundo semita. O destino do ser humano é a ressurreição.

127. A escatologia, - um fim do mundo encerrando o ciclo atual do tempo e tudo de maneira fabulosa, - é também parte da religião zoroástrica. Aliás foi a partir dos persas, que se difundiram as doutrinas escatológicas nas demais religiões do mundo semita e do Ocidente em geral. Entre os judeus a escatologia ganhou corpo desde os últimos profetas. As doutrinas escatológicas também fazem parte do ideário dos essênios, como se aprecia na pregação de João Batista: "Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia: Fazei penitência, porque está próximo o reino dos céus" (Mateus, 3, 1-2). A escatologia é também um dos temas da pregação de Jesus. Finalmente as figuras fantásticas do fim do mundo foram vastamente exploradas pelo Apocalipse de João.

III – VARIAÇÕES OCIDENTAIS DO ZOROASTRISMO.7270y128.

129. Orfismo é denominação da forma grega de religião desenvolvida por influência persa, a partir do 6-o. século a.C., por pregação do sacerdote tessálio de nome Orfeu. Trata-se de uma figura lendária, de poeta, de músico, de sacerdote, e que teria nascido por obra de uma Deusa. Nesta condição teria sido filho de Oedagro, rei da Trácia, e da musa Calíope. Segundo outra versão teria sido filho da musa Clio com Deus Apolo. Iniciou-se no mistério de Baco, com seu pai, vindo a ser um pontífice inspirado pelos deuses. Viajou muito, também pelo Egito, razão porque conheceu cultos diversos, sendo o introdutor na Grécia dos cultos de Baco, de Hecateu, Ctônia e Ceres. A ele se atribuem os assim chamados mistérios órficos. Os poemas órficos são hinos de iniciação aos mistérios, que datam do 6-o. século. Pelo aspecto, não são entretanto de autoria pessoal de Orfeu. O mesmo se diga de um poema sobre os argonautas e sobre um tratado das forças mágicas. Mas o espírito dos mencionados textos reproduzem o que se entende por orfismo. Atribui-se a Orfeu ter levado a nova religião até Atenas. Efetivamente, as idéias órficas estão presentes nas doutrinas dualistas de Platão (427-347 a.C.), que considera má a matéria e puro o espírito, o qual passa pelo corpo com vistas a purificar-se de algum delito Mais cedo ainda que a Platão, e por vias diversas, as doutrinas órficas haviam chegado ao conhecimento de Pitágoras de Samos (c. 570- c. 496 a. C.). Dirigindo-se depois às colônias gregas do Sul da Itália, estruturou ali a Escola que levou seu nome. Como se sabe, Platão visitou por duas vezes e longamente as sociedades pitagóricas da Itália.

130. Deus da música. Ainda segundo a lenda, Orfeu teria sido hábil músico, dizendo-se que a sua cítara um presente de Apolo, ou de Mercúrio. Teria sido Orfeu taumaturgo maravilhoso e poético, fazendo lembrar episódios, como os que de futuro se atribuirão ao cristão Santo Antônio de Pádua. Diz a respeito a versão, que ao poder encantador da música de Orfeu, as feras se tornavam mansas, as aves silenciosas, os rios paravam e as árvores dançavam. Assevera-se que foi com a música, que Orfeu transformou os hábitos selvagens dos trácios. Tomou parte da expedição dos argonautas, chefiada pelo herói grego Jasão, e que fora em busca do Velocino de ouro (pele áurea de um carneiro).

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Sua noiva Eurídice morreu no dia da lua-de-mel, o que o fez descer ao Inferno, onde a reencontrou. Mas, devendo voltar sem olhá-la, não cumpriu a condição até o último momento. Em consequência Eurídice rolou de retorno, pela escarpa abaixo, ao abismo. Havendo rejeitado o amor das trácias, foi Orfeu por elas esquartejado. Os gregos erigiram um templo a Orfeu. Nele foi vedada a entrada das mulheres.

131. Os pitagóricos e neopitagóricos cultivam o dualismo contrastante de corpo e espírito, e ainda os mistérios órficos de purificação. Diz Heródoto (+ c. 425 a.C.), que as práticas pitagóricas não eram novas, porque também as encontrara no Egito. De futuro, os neopitagóricos e neoplatônicos continuaram o exercício das práticas órficas, como os ritos de purificação e a unção aos doentes. Como se sabe, nesta linha se encontram os essênios (vd 151), em cujo contexto se integravam Jesus e os seus primeiros discípulos. Os Cristãos são afetados, logo de início através dos neopitagóricos (vd 251) e neoplatônicos (vd 263), pelos mistérios órficos, sem contar as influências mais antigas através do contato judaico com os persas.

132. A cosmogonia órfica, - que é o dualismo persa, que assumiu formas peculiares no Ocidente, - influenciou não somente as religiões ocidentais, como até as filosofias de Pitágoras, Sócrates e Platão. Ocorreu um retorno ao pensamento grego homérico nas filosofias de Aristóteles (384-322 a.C.), do estoicismo e do epicurismo No inicio da cosmogonia órfica estão os seres ingênitos:

o caos (vácuo abissal), a noite, o negro érebo, o profundo tártaro.

Neste instante inicial, não havia ainda as formações chamadas terra, céu, mar, ar. Ocorrem então as gerações cosmogônicas: gera a noite o Ovo cósmico, dando-se início à teogonia dos deuses. A série das gerações se dá da seguinte maneira:

1) Ovo cósmico e Eros, 2) Urano (ou céu) e Gea, 3) Oceano e tetis; 4) Cronos, Rea e irmãos; 5) Zeus, Era e irmãos; 6) Dionísios...

"Na sexta geração disse Orfeu – interrompei a ordem do vosso canto (texto citado por Platão, Filebo, 66 c). Nesta teogonia, "a Noite é a geradora universal, como dizem os teólogos, que fazem gerar tudo da Noite" (Aristóteles, Metaf, 1071b). "A teologia de Orfeu, como repete Eudemo, estabelece o começo pela noite" (Damáscio, De primis principiis, 124). Versos órficos: "Ó mãe, nutriz, suprema entre os deuses, Noite imortal, como, dize-me, como devo estabelecer o princípio magnânimo dos imortais?" (Proclo, In Tim., B., pr.; fr. 164. Kern, Orphicorum fragmenta).

133. O mitraísmo desenvolveu especialmente o culto ao Deus Mitra, interpretado como um intermediário entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao credo cristão, com o qual concorreu sobretudo no 3-o século, ao tempo do Império Romano. Forte concorrente do cristianismo, dadas as suas afinidades, o mitraísmo deixou marcas de sua influência sobre o mesmo cristianismo. Na sua primeira fase, o mitraísmo teve uma formação eclética a qual é difícil de esclarecer, em virtude da falta de documentação. Deixando, todavia, várias representações culturais e mesmo pictóricas, elas oferecem base suficiente para, mediante informações tardias, ter-se uma interpretação geral de seu sincretismo como culto a uma divindade. Esta divindade tem diferentes nomes, mas é sempre um Deus Sol, ao mesmo tempo que tem como pano de fundo elementos da religião persa de Zoroastro. Mitra é uma antiga divindade solar védica, indo-irânica, em torno da qual se gerou de pouco em pouco a religião a que se deu o nome de mitraísmo. Também houve quem identificasse Mitra com Shamash, o deus sol babilônico. Acrescentou-se novo sincretismo com o contato desta crença com o mundo helênico da Síria e Ásia Menor (região que anteriormente pertenceram aos reis da babilônia e da Pérsia), onde o Deus sol é Hélios.

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Paralelamente o deus supremo persa Aura Masda foi identificado como o deus supremo grego Zeus. Assim se observa num monumento sacral de Antíoco I (69-34 a C.), um dos primeiros documentos mais significativos sobre o mitraísmo. A integração do Iran no império romano (68 a C.) abriu o caminho do mitraísmo para todo o Ocidente. Difundiu-se especialmente por obra da movimentação das milícias que se trocavam de uma parte do Império para outra, pela circulação ainda dos comerciantes, e até dos escravos, bem como dos navegadores. Ganhou Mitra o apoio oficial de vários imperadores. Inclusive o imperador Constantino (+337) foi um adorador do Deus Sol, ainda que protegesse o cristianismo que o apoiava politicamente. Algumas semelhanças entre o mitraísmo e o cristianismo possibilitavam esta atitude do Imperador, que se deixou finalmente batizar ao morrer. Todavia o batizar era um rito praticado tanto entre mitraístas como entre cristãos. Havia no mitraísmo aspectos também para o seu caráter de salvação e ressurreição. Adverte-se ainda para o seu caráter pacífico não revolucionário, e que o tornava de fácil aceitação oficial. De outra parte, sendo um concorrente do cristianismo, e tendo tido o apoio oficial, perdeu suas chances de vencer, quando o referido apoio oficial se verteu exatamente para o seu concorrente. Em 384 foi declarado supresso o mitraísmo em Roma. Os imperadores cristãos passaram a perseguir a religião de Mitra generalizadamente, cujas estátuas passaram a ser quebradas. No museu de Metz vê-se hoje um altar de Mitra, reconstruído meticulosamente por especialistas. A exclusão das mulheres das funções principais limitou a progressão do mitraísmo. Também os cristãos discriminam as mulheres, porém não tão radicalmente. Os últimos remanescentes do mitraísmo na mesma Pérsia se liquidaram com a tomada do país, em 641, pelas milícias árabes, de religião islamita.

134. A representação de Mitra como um jovem Deus, era feita vestido de uma túnica pendente do ombro esquerdo e sobre a cabeça um gorro frígeo (barrete vermelho), armado de punhal e sangrando um touro par abluções. Apresentava-se também como um menino, a propósito de seu natal, festejado em Roma no dia 25 de dezembro. A partir dali, - por imitação, - nasceu o natal cristão, inclusive com a adoração dos pastores, também havida no natal anterior de Mitra. Ao templo de Mitra se dava o aspecto de gruta, simbolizando o céu. Posteriormente passaram a ser edifícios maiores. Faziam-se as purificações em um grande vaso. Além disto ainda havia um lugar reservado para os sacerdotes e outros, para os sacrifícios. No altar um baixo relevo representava Mitra em ato de sacrificar o touro. Os rituais incluíam um banquete sagrado de pão e água, com ligeira mistura de vinho. Os neófitos se sujeitavam a diferentes provas, além do segredo sobre os mistérios praticados. Somente no final eram admitidos ao banquete sagrado. Há neste banquete semelhanças com aquele dos cristãos. Guardavam os mitraístas também o fogo sagrado, o que competia ao grau sacerdotal denominado sumo pontífice. Os cristãos igualmente conservam a lâmpada sagrada. De novo as ligeiras analogias como as duas religiões eram paralelas e se poderiam mutuamente influir e não somente se combater. Os ofícios também se faziam nos templos de Mitra à luz de velas e toque de sinos. Não temos mais os textos integrais dos hinos, o que mais uma vez mostraria semelhanças se se tivessem conservado. Ainda que não se advertindo dos efeitos sobre o cristianismo, tais semelhanças já eram anotadas na antiguidade pelos escritores cristãos, Tertuliano e Justino, sobretudo Orígenes. Entretanto, o cristianismo não deriva de dentro do mitraísmo e sim se deixar influenciar.

136. O maniqueísmo veio da Pérsia, como seita de fundo pagão, com empréstimos tomados ao cristianismo. Por isso pôde se estender para o Ocidente, onde adquiriu feições de heresia cristã. Provou como é possível uma vasta interação entre as doutrinas. Este movimento dualista recebeu mesmo a simpatia inicial de Agostinho de Hipona. Recebeu seu nome de Manes (c. de 215-276), da Pérsia, e seu mais destacado pregador. Manes acreditou ser um iluminado, como costuma acontecer com os visionários fundadores de religião. Com vistas a renovar a religião, pregou a partir do ano 240 em diversas regiões da Pérsia Iraque, sob a proteção do rei Sapor I (241-272). Mas sob o sucessor Baharam (274-277) numa reação dos sacerdotes de Zoroastro, foi morto e esfolado, vindo a ser empalhado e assim pendurado às portas da capital. Não obstante à repressão dos imperadores cristãos, o maniqueísmo conseguiu desenvolver-se por mais de um século, influenciando as mentes. Na Idade Média refloriu na Bulgária e no Ocidente com os cátaros (isto é, os puros) e albigenses, de novo reprimidos violentamente pelas cruzadas cristãs.

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Aliás, foi a este propósito que nasceu a Inquisição, que levou à fogueira não só aos novos maniqueus, mas também a muitos outros até o princípio dos tempos modernos.

137. Ensinava o maniqueísmo a existência de dois princípios eternos, o da luz e o das trevas, em luta entre si. As emanações de ambos se mesclam no homem. Para separar as mesclas foram enviados os profetas, Jesus e Manes, em corpo de mera aparência (a matéria não a poderiam assumir, por ser má). A purificação dos indivíduos, quando já em estado superior (os eleitos) se faria pela gnosis (= saber) e abstenção do matrimônio (celibato), da carne, do vinho, bem como da abstenção dos trabalhos manuais. De maneira mais simples, a purificação dos inferiores se faria pelo cumprimento dos dez mandamentos.

138. A gnose. Formações religiosas diversas continuam a se desenvolver no Ocidente sob inspiração oriental, além das já mencionadas de Mitra e de Manes. Em destaque se encontra a do gnosticismo (vd 162), pela sua importância na informação do pensamento cristão. Distingue-se uma gnose helenística, uma gnose judaica, uma gnose cristã. Ainda que a gnose, em virtude do seu dualismo (bem e mal) seja essencialmente oriental, principalmente Zoroástrica, é melhor compreendida depois de se conhecer primeiramente a essência dos conceitos helênicos, judaicos, cristãos, com os quais formou um ecletismo que a tornou importante.

ART. 5o. - CRISTIANISMO,UMA RELIGIÃO DE REMOTA FONTE SEMITA.

7072y142.144. O cristianismo (vd A fundação do cristianismo, 4251y000) deve ser examinado com isenção de ânimo, ainda quando visto como uma das melhores religiões. Ele propõe ter sido Jesus um messias. O termo é tomado do hebraico mesiá que quer dizer ungido. Da versão para o grego resultou Kristós. No caso, messias assume o contexto, como quando de diz ritualmente ungido salvador, ou como em ungido rei. Por influência grega a nova religião em vez de se chamar messianismo, passou a ser cristianismo. Não obstante algumas diferenças semânticas, os termos se equivalem. Jesus nasceu pelo ano 4, antes de nossa era, "ao tempo do Rei Herodes" (Mateus, 2,1), a quem o Evangelista ainda atribuiu a decisão de o matar. Para lograr seu objetivo "mandou massacrar em Belém e nos seus arredores todos os meninos de dois anos para baixo" (Mateus, 2, 16). Sabe-se também que; Herodes morreu no ano 4 a.C. Se esta narrativa, redigida 50 ou 80 anos depois, for verdadeira, deve-se admitir coerentemente que Jesus já era nascido pelo ano 4 antes da era atual. No inicio da Idade Média o monge Dionísio o pequeno (ou o Exíguo) criou a cronologia cristã, tendo errado por ao menos 4 anos a data do nascimento de Jesus. Não há escritos contemporâneos de Jesus que mencionavam sua existência e doutrina. Esta fato oferece muitas dificuldades. O que se escreveu depois, e ainda em outra língua, em grego, cujos conceitos mentais são mais evoluídos e poderão ter alterados nuances de conteúdo. Pelos anos 60 ou após redigiram-se os 4 evangelhos, escritos respectivamente por Mateus e Marcos, Lucas e João. O novo Testemunho compõe-se destes escritos, e mais os Atos dos Apóstolos (de Lucas), Epistola (de vários Apóstolos e Apocalipse de João).

145. Como foi que surgiu o cristianismo? Na interpretação histórico-crítica o processo de surgimento do cristianismo se desenvolveu num espaço relativamente curto. No inicio do ano 28 passou Jesus a pregar, sendo levado à morte no ano 30. Morto Jesus, processou-se uma institucionalização do grupo, com influências novas vindas do helenismo, fato este que provocou uma separação mais profunda ao qual entretanto ficou ligado umbilicalmente. Dali resulta a necessidade de examinar o cristianismo inicial sob duas perspectivas. Numa primeira importa examina-lo frente às seitas judias. Numa segunda perspectiva, quais foram suas fases de desenvolvimento, pelo qual se foi diferenciando, até tomar feição mais ou menos própria.

I – O CRISTIANISMO E A COOPARTICIPAÇÃO DAS SEITAS JUDAICAS. 7270y146

147. Ao tempo da formação do cristianismo as seitas judaicas eram pelo menos quatro: saduceus (conservadores), zelotas (ativistas anti-romanos), essênios (influenciados pelo neopitagorismo). Nasceu o cristianismo com

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participação de todas as seitas judaicas, sobretudo da dos essênios, que por último sendo absorvido por ele, ou simplesmente desapareceu. O cristianismo diferenciou-se do antigo judaísmo, e portanto se tornou uma heresia judaica, razão porque Jesus foi oficialmente condenado pelo Sinédrio. Dito melhor, o cristianismo é um neojudaismo, porque conservou algo que lhe é essencial, mudando entretanto algo de sua essência. Frisou, entre outros elementos doutrinários, que a Aliança fora mudada (vd 99), o que será destacado sobretudo por Paulo Apóstolo. A linguagem de Jesus parece apenas acentuar o aperfeiçoamento da Lei: "Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição" (Mateus, 5,17). A contribuição judaica na formação do cristianismo através das seitas, que atuavam ao tempo de Jesus e seus primeiros seguidores, deve pois ser examinado com algum detalhe.

148. Os saduceus limitavam-se à Lei de Moisés, contidas nos livros do Pentateuco, e não admitiam doutrinas posteriores, como as dos anjos e da ressurreição, peculiares ao zoroastrismo. Por este lado, Jesus e os cristãos mantinham reservas aos saduceus. De outra parte, porém, os saduceus eram abertos para a cultura helênica. Esta favoreceu posteriormente aos cristãos, os quais, ao mesmo tempo que se adataram, conseguiram projetar para o mundo uma ideologia judaica.

149. Os fariseus, adotavam, ao lado da lei de Moisés, os livros dos profetas. E assim, seus princípios doutrinários conferem com as convicções que se firmaram no judaísmo após a conquista de Jerusalém, em 587 a C., pelos babilônios, e sobretudo após a libertação por Ciro, em 539 a C.. Ao criador este o vasto império persa, deu oportunidade aos judeus a oportunidade de se comunicar com a sabedoria de muitos povos. A religião oficial dos persas, - o zoroastrismo (vd), - passou a; ser a sugestão das inovações. Anjos e demônios, escatologia, vida futura definida como recompensa do bem e do mal, - eis algumas importantes novidades de que depois também participarão os cristãos. Cuidavam os fariseus de converter aos gentios. Neste particular também abriram um precedente, que passou aos cristãos, ainda que os fariseus de modo geral, resistissem à helenização. A idéia do Messias, mais definida nos fariseus que nos saduceus, eis aspecto importante, que mais uma vez aproximava os fariseus, bem como de zelotas e essênios, dos cristãos. Se de futuro os fariseus serão mais combatidos pelos cristãos, esta situação se deve à importância que mantiveram após a guerra judaica, quando os demais seitas praticantes perderam importância. A origem remota das seitas judaicas, dos saduceus e fariseus, remonta ao tempo dos Macabeus, ou seja da independência da Judéia, reconquistada em 164 a.C., à sombra do declínio do reino Seleucida de Antioquia da Síria. Da luta nacionalista resultou a clara divisão dos judeus em Saduceus, propensos à cultura helênica, e em fariseus, a ela resistentes. Quando à Judéia passou ao domínio dos romanos em 63 a.C. O governo títere de Jerusalém entrou a ser exercido pelos saduceus. Esta circunstância punha os fariseus (e futuramente os cristãos) numa posição de reserva às autoridades do Templo, pois não eram as mesmas, as diretrizes das respectivas seitas.

150. Os Zelotas eram ativistas, quase guerrilheiros, propugnadores de uma restauração imediata do reino de Judá. Acreditavam na nação messiânica. Como ala esquerda do espírito farisaico, participam das idéias recentes do judaísmo, distanciando-se ao máximo do helenismo saduceu. O movimento zelota nasceu pela volta do ano 6 d.C., quando a Judéia foi posta sob a administração dos procuradores romanos. Com isso os judeus foram subordinados progressivamente mais e mais ao sistema de vida romano, inclusive do recenseamento e da moeda. Os contínuos levantes e guerrilhas eram promovidos pelos zelotas, que se acolhiam depois ao seu anonimato nos esconderijos fora das cidades. Finalmente no ano 66 conseguiram os zelotas despertar o ânimo do povo para uma guerra geral. O resultado catastrófico foi a destruição de Jerusalém, no ano 70 (Cf. Josefo Flavo, Guerra judaica), e com isso também do templo, de sua pomposa liturgia e sua organização sacerdotal. Os cristãos, já em adiantada assimilação de elementos gentios, não haviam aderido ao movimento de luta pela independência judaica. Seu conceito de Messias, cada vez mais espiritual, já não conferia com a idéia messiânica corrente entre os judeus. O fracasso final dos zelotas à época antiga certamente contribuiu para o desenvolvimento da idéia do messias como figura de restauração espiritual. Esta imagem do messias como renovador do culto já existia entre os essênios.

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Ganhou corpo entre os cristãos, cujo Messias Jesus, por ter sido morto, só poderia ser interpretado num sentido espiritual. Globalmente o merecimento dos zelotas foi o da excitação da idéia do messias, ainda que não permanecesse a forma da imagem em que o concebiam. O fracasso das tentativas de restauração imediata do Estado de Israel contribuiu para o desaparecimento praticamente definitivo de tal conceito. Contudo, o atual sionismo, organizado a partir da segunda metade do século 19, desenvolveu de novo uma ideologia de esperança nos destinos eternos da nação judaica, e que conseguiu alguns resultados com a criação do Estado de Israel em 1948.

151. Os essênios, surgidos na obscuridade pelo ano 150 a.C., apresentam material muito curioso para o estudo histórico-crítico das origens do cristianismo (Cf. Josefo Flavo, Guerra judaica, Escritos do Mar Morto, estes descobertos a começar de 1947). O nome dos essênios significa piedosos, e deriva do sírio, por transformações diversas. Já aqui, oferecem uma primeira semelhança com os cristãos, que também se denominavam a si mesmo "santos". Desenvolveram-se os essênios na área rural. Muitos se organizaram em grupos acolhidos ao deserto com as comunidades, a que pertenceram os escritos do Mar Morto. Os primeiros cristãos tiveram em parte procedência da zona rural e dos meios de pesca. Apenas mais tarde se tornaram nitidamente urbanos, com a adesão dos judeus helenistas, ou seja dos que viviam no exterior, alguns de retorno a Jerusalém. É significativo observar que os livros do Novo Testamento cristão se omitiram sobre os essênios, enfatizando em vez a luta com os fariseus. Isto reflete o espírito de após a destruição de Jerusalém (ano 70 d.C.) quando virtualmente estavam desaparecidos os essênios, restando os fariseus como a seita judia capaz de se opor ao cristianismo. O estudo histórico-crítico do cristianismo reclama outra vez a presença do essenismo no seu processo formativo, retroagindo para a realidade dos primeiros anos, bem anteriores à destruição de Jerusalém. Tudo isto parece dizer que entre os essênios e cristãos o confeito não existia, ao mesmo tempo que os dois grupos se assimilaram mutuamente. Os essênios contêm aspectos neopitagóricos (vd 251).

II – FASES INICIAIS DE DESENVOLVIMENTODO CRISTIANISMO NASCENTE.

7270y152.153. A questão das fases de formação do cristianismo. A interpretação histórico-crítica parece descobrir como o cristianismo, depois de nascido, teve fases próprias de desenvolvimento, em que a primeira é especificamente judaica, e a seguinte é helênico romana, quer por assimilação direta de elementos da referida cultura helênico-romano, quer através das seitas judaicas igualmente influenciadas, sobretudo através do essenismo. Esta interpretação, - que faz o cristianismo formar-se aos poucos, em vez de haver sido constituído por um estatuto inicial completo, - provoca uma polêmica: - Que pensar sobre o aspecto sobrenatural, que se atribui à Igreja, se ela se veio formando com alterações sucessivas?. Uns querem que a Igreja primitiva, como um todo, seja sobrenatural. Outros a interpretam como formação meramente cultural, e portanto natural. Do ponto de vista da ortodoxia, quer, por exemplo a teologia católica, que tal evolução é aceitável como sobrenatural, até a morte do último apóstolo. Todavia esta alegação é muito vaga, porque não se sabe claramente quando este último tenha morrido e nem há clareza na distinção entre o que Jesus propôs e o que foi acrescido até a morte do último apóstolo. Resta ainda apelar ao valor da tradição. Também esta importa em ser adequadamente provada. como existente em todo o lugar, isto é que seja universal, e em todo o tempo. E assim continuam os outros a não crer mais na formação sobrenatural do cristianismo, o qual teria surgido, segundo eles, como formação espontânea de uma cultura de época.

A) Fase judaica do cristianismo nascente. 7270y154. 155. Em sua fase judaica, distinguia-se o cristianismo aparentemente só como mais uma seita. O cristão era tão cruelmente circuncidado como qualquer outro judeu. Na fase de diferenciação dentro do judaísmo o processo se deu em dois tempos.

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156. Num primeiro tempo da fase judaica do cristianismo ocorreu só uma pequena mudança, que se deve ao mesmo Jesus. Os Evangelhos são nítidos ao mostrarem, que a família de Jesus cumpria a lei judaica, havendo sido mesmo subordinado ao corte da circuncisão do prepúcio. O mesmo Jesus comparecia às festas e rituais dos judeus em Jerusalém. Praticava usos essênios como o do jejum no deserto e o batismo ao qual se submeteu quando se apresentou a João Batista, cujo aspecto é de um essênio. A partir deste batismo começou uma pequena transformação. Dentre as renovações de Jesus se destaca a amenização das práticas anteriores. A rigidez dos essênios e dos zelotas, inclusive dos fariseus, cede lugar a um modo mais humano e universal de ver. Esta versatilidade mental e afetiva deu oportunidades futuras de adaptação à situações mui diferentes, que fizeram do cristianismo um sistema polimorfo de vida, com aspecto positivo e otimista. Os discípulos de João Batista, jejuam, ao passo que os de Jesus comem e bebem (Mateus, 9, 14). O repouso sabático não requer a rigidez anteriormente pregada pelos fariseus. A libertação se estende para a eliminação da distinção entre o puro e o impuro. Come Jesus com os pecadores. Também conversou com a samaritana prostituta. Admitiu que se pagasse imposto a César. Em vez das práticas exteriores, Jesus frisou a oração em espírito e de coração contrito. Apesar de ser ainda um judeu do tipo que frequenta as solenidades do templo de Jerusalém e manter ainda muito do figurino essênio, Jesus contém algo novo. Há mesmo uma evolução no decorrer da vida de Jesus. Não obstante às liberações, não chegou Jesus a adotar o casamento. Permaneceu como um essênio, servido por santas mulheres. Como um essênio, também não as promoveu. Ainda como um essênio, prestigiou aqueles que deixassem o matrimônio, com vistas a pregar o reino de Deus, ao qual dizia estar próximo, ainda que sem se saber quando aconteceria. Nem atendeu Jesus aos seus parentes, quando solicitado, aproveitando a oportunidade para destacar que todos são seus irmãos. No início exerceu as práticas mais rijas do jejum e oração no deserto. Depois tal não se repete. Deixando-se anteriormente batizar, não praticou ele mesmo este cerimonial de maneira tão contundente durante o tempo de sua pregação. O batismo essênio foi contudo por ele mantido como cerimônia de integração dos compostos do reino de Deus. Como os essênios, determinou Jesus o ritual do batismo. E o impôs de maneira muito radical, como necessário à salvação: "Quem crê e for batizado, será salvo. Mas quem não crer será condenado" (Marcos, 16, 16). De outra parte, não se definiu sobre a circuncisão do prepúcio.

157. O segundo tempo da fase judaica do cristianismo nascente, ocorreu a partir da morte, e por causa da morte, de Jesus. Este fato criou subitamente uma situação embaraçosa para seus discípulos, os quais contudo partiram apenas para alterações de acomodação. Mantendo o espírito essênio, com as pequenas inovações de Jesus, acreditam na messianidade deste. Se valerem as narrativas, - alguns tiveram aparições dele redivivo. Acreditando na objetividade destas visões, e crendo que voltará para a instauração do reino messiânico, mantém-se nesta expectativa e a apregoam. A idéia da ressurreição era fácil receptividade, porque ela já pertencia à mentalidade dos essênios e o mesmo Jesus dela havia falado. Mas, é preciso acautelar-se com estas informações sobre a ressurreição, porque foram escritas muitas décadas depois. Também se dizia que Lázaro fora ressuscitado. E mais, que até defuntos de Jerusalém haviam saído do sepulcro à hora que Jesus expirara na cruz e que depois da ressurreição deste, também deram em aparecer aos vivos: "Os sepulcros se abriram e os corpos de muitos justos ressuscitaram. E saindo de suas sepulturas, entraram na cidade santa depois da ressurreição de Jesus e apareceram a muitas pessoas" (Mateus, 27, 52-53). Qual seja a verdade, a crença de que Jesus ressuscitara é uma situação nova, pelo menos como crença. Esta crença passou a definir claramente o grupo. Fê-lo uma seita distinta das demais denominações judaicas. Os discípulos de Jesus não são mais como os demais essênios, e passaram a ser denominados Nazarenos, em mais tarde cristãos, na cidade grega de Antioquia. Distintos dos essênios, crescem os cristãos, mantendo características do grupo de origem, mas se institucionalizando autonomamente.

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Conservaram o tipo essênio da comunidade de bens e a chefia dos Doze. Como os essênios, continuaram também praticar um culto separado do templo, e que se vai diversificando cada vez mais. Atritos com as autoridades do templo resultam finalmente em um rompimento maior. A ceia sagrada, costume recebido dos essênios, se converte no principal elemento de culto. Mas não é a referida ceia uma renovação por inteiro; ela é a ceia pascal dos judeus com algumas transformações, principalmente operada pelos essênios e depois pelos próprios cristãos. A instituição dos sete diáconos (palavra que em grego significa criados de serviço) é a imagem ilustrativa dos primeiros momentos do novo tempo judaico do grupo dos seguidores de Jesus, com vida comunitária peculiarmente essência e em novos desenvolvimentos ao ponto de instituir estes serviços (Lucas, Atos, 6,5). Se mais tarde, em alguns períodos da Igreja, desapareceu a importância do diácono, talvez fosse precisamente por se tratar de um resto da fisionomia essência comunitária inicial. Havendo diáconos helênicos, foi esta circunstância o caminho rápido para mais uma transformação, desta vez mais profunda e capaz de superar o judaísmo em geral. É que ocorrendo a demora da segunda vinda de Cristo para estabelecer o esperado Reino de Deus, tudo se foi encaminhando para uma institucionalização orgânica, que veio depois a ser conhecida pelo termo grego Ekklésia (= Igreja), com o sentido de Assembléia.. Eis mais um nome grego para designar a instituição cristã em transformação. O grego ekklesía, conota a idéia de convocação para uma reunião, porque o termo deriva do verbo ekkalein (chamar para fora, isto é, para o local da reunião, por exemplo, para o agorá, ou seja para a praça).

B) O cristianismo de formação helênico-romana. 7270y158. 159. Finalmente o cristianismo entrou a ter desenvolvimento helênico-romano, criando com isso condições para se universalizar. E assim, mesmo que só em parte, o cristianismo é um produto cultural do grande cadinho helênico-romano. Como outras tantas doutrinas religiosas de feições regionais, recebeu o cristianismo, não obstante seu fundo judaico messianista, o impacto do grande mundo externo. A assimilação pelo cristianismo de elementos da cultura helênico-romana está patente na afinidade entre os sacramentos cristãos e os mistérios pagãos. Está também nas semelhanças entre o cristianismo e o orfismo, no que concerne à doutrina da almas, da vida futura em função ao bem ou mal praticado. Também se observa nos ideais estóicos e platônicos, sobretudo no pensamento social, nas restrições aos ricos e na defesa dos pobres, que também se encontram no cristianismo. Ao mesmo tempo que assimilando elementos de uns e se diferenciando em outros, o cristianismo veio a ser o que ficou sendo depois. O desenvolvimento interativo de ambos os processos, em nível judaico e em nível helênico-romano, explicam o cristianismo. Explica-se, pois, o cristianismo como um desenvolvimento de conteúdos tomados às seitas do judaísmo e ao pensamento helênico-romano. Aos judeus helenistas era mais fácil aderir às novidades. Foi o que aconteceu no primeiro dia do Pentecostes cristão, conforme se infere da narrativa como a fez Lucas, por sinal um autor de língua grega: "Ora, havia em Jerusalém judeus residentes (no texto grego, de Lucas, Katoikountes = residentes), varões religiosos de todas as nações, que havia debaixo do céu" (Atos 2,5). Efetivamente os tais judeus helenistas, agora residentes em Jerusalém, todavia nascidos em algum outro país, dele conservavam usos e aspectos culturais, razão porque também criavam sinagogas separadas. Narra o mesmo Lucas. " E levantaram-se alguns que eram da sinagoga chamada dos libertos e dos cirenenses e dos alexandrinos, e dos que eram da Cilícia e da Ásia, levantaram-se para disputar com Estevão" (Atos 6,9). Este passo prova que o assunto dos cristãos dividia especialmente aos judeus helenistas. Ao serem instituídos os sete diáconos, outra vez a questão surge da banda dos cristãos helenistas, e os mesmos diáconos eram helenistas, pelo menos aqueles dos quais se sabe algo. O sétimo, por exemplo, era "Nicolau de Antioquia". Mais fácil fora aos helenistas dar ordenação ao grupo informe dos primeiros cristãos. Sendo viajados, melhor noção poderiam ter das relações humanas. A presença dos helenistas mudou subitamente a fisionomia da igreja nascente. O helenista Paulo de Tarso (judeu de Tarso, da Síria), era ainda cidadão romano e doutor da lei. Ora, em sua expansão para o exterior mais deve o cristianismo a ele, que a todos os outros apóstolos reunidos. A virada do cristianismo na direção da população urbana, contribuiu também para a diferenciação com o grupo essênio. Esta virada se deveu aos judeus helenistas.

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160. O contato direto com o gentio. O processo de transformação do cristianismo nascente se concluirá ao romper para mais além do círculo helenístico judeu, indo diretamente para o contato com o gentio do mundo pagão helênico-romano. Passaram os cristãos a práticas desconhecidas do judaísmo antigo, e que em alguns casos já vinham afetando os judeus contemporâneos. Aconteceu o abandono da circuncisão (Lucas, Atos, 15). Esta prática dolorosa foi eliminada para os gentios, depois de várias discussões, de cuja supressão parece que Jesus não houvera tratado diretamente. Os ideais estóicos da felicidade, conquistada através da virtude e rigidez dos hábitos também acertou o compasso com os cristãos, o que se mostra claramente nas tendências estóicas de Paulo Apóstolo. Neste plano concorda também o pensamento social dos estóicos, fazendo uns e outros do desprendimento da riqueza um ideal, com o elogio da pobreza e promessa de uma recompensa futura. O pensamento político, com base no direito natural de igualdade, típico do estoicismo e do epicurismo, prosperou também no cristianismo, embora com a presença do ideal messiânico e presença da igreja como um poder autônomo. Foi o pensamento social, que existia em desenvolvimento no mundo helênico-romano, o móvel forte que deu asas ao cristianismo. Embora Jesus não houvesse condenado expressamente a servidão, referiu-se preferencialmente à caridade e aos humildes. E assim o cristianismo teve a adesão fácil dos humildes e dos escravos, sobretudo das populações não beneficiadas pela cidadania romana, especialmente da Ásia menor. A condenação enfática da riqueza e dos prazeres sempre supérfluos continuará a ter eco até tempos adiantados do império romano cristão. Suavizou-se todavia quando da conquista das privilégios feudais em favor da própria igreja, principalmente dos seus dignatários.

161. Acentuou-se, por parte dos cristãos, a prática dos mistérios, que já vinha dos essênios, que por usa vez já estavam influenciados pelo mundo exterior, sobretudo neopitagórico, como o batismo, a ceia, a cura dos doentes, completando ritos carismáticos. A doutrina órfica e platônica da purificação da alma não gerou conflitos com os cristãos. Com referência aos à prática dos "mistérios," encontra-se mesmo a sua linguagem nos livros sagrados. Diz, por exemplo, Paulo: "Mas revesti-vos de vosso Senhor Jesus Cristo" (Aos Romanos, 13,14). "Porque todos vós que haveis sido batizados em cristo, de Cristo estais revestidos" (Aos Gálatas, 3,27). Em Sêneca, estóico, paralelamente se encontra: "Revesti-vos com o espírito de um grande homem". Isto faz lembrar também o culto do Mitra, cujos "sacramentos" consistiam em uma comida sagrada, na qual o pão e a água serviam como símbolo místico como distribuição da vida entre os crentes. Na celebração os crentes compareciam com máscaras de animais, com o intuito de representar atributos de Deus Mitra, de sorte que os celebrantes do culto se "vestiam" como seu Deus, tendo comunidade de vida com ele. As palavras ao versarem sobre a "comunhão" de sangue e de corpo de cristo (I aos Coríntios, 10,16) dos batizados (aos Gálatas, 3,27) soam neste contexto imaginativo (Cf n.17).

162. O gnosticismo também participou na formação do cristianismo, ainda que secundariamente. Ele já desapareceu, mas importa o seu estudo, por se alistar na categoria dos muitos fatores que atuaram, pelas suas influências exteriores, na formação final do cristianismo como produto helênico-romano. O nome gnosticismo é grego e quer dizer conhecimento. Gnostikós, capaz de conhecer, no sentido de indivíduo capacitado de conhecer deriva do verbo gignóskein (conhecer). Modernamente se estabelecerá o termo de sentido inverso, - agnosticismo (vd 383). A origem histórica do gnosticismo como doutrina é oriental, não é muito clara. Teve o gnosticismo um desenvolvimento anterior à gnose cristã, e suas primeiras formas denominam gnose helenística e gnose judaica. As fontes em que se coletam informações sobre o gnosticismo se apresentam difusas, porque este tipo de pensamento não teve expositor sistemático expressivo. Acresce ainda a agravante, que os cristãos posteriores destruíram tais escritos. Mas restaram citações fragmentárias nos escritos polêmicos principalmente de Santo Irineu (Contra os hereges), Hipólito (Philosophoumena), Clemente de Alexandria e outros Padres da igreja, bem como de Tertuliano. Também contribuem para o esclarecimento os escritos dos judeus e dos cristãos Paulo Apóstolo e João Evangelista, estes dois porque são cristãos influenciados pelo gnosticismo.

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163. Na definição do gnosticismo se destacam dois conceitos: a importância do conhecimento e o dualismo. Com referência do conhecimento trata-se da iniciação em coisas divinas, que se daria de um modo místico, ou seja, especial. Além disto, este conhecimento seria decisivo para a salvação do homem, que soa de maneira estranha, mas de acordo com o gnosticismo. A fé na revelação se torna por conseguinte uma condição de salvação. Aliás, a expressão de Jesus é sintomática, - "quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado" (Marcos, 16,16). Acontecem diferentes níveis no gnosticismo. O mais simples é o da revelação. Que se comunica através dos profetas receptadores; no caso cristão seria Jesus o principal comunicador das coisas divinas. O nível elevado do gnosticismo, - ou seja, daquele que se fez conhecer por este nome, - consiste na participação direta de cada qual neste místico conhecimento das coisas divinas s dos segredos de deus sobre o universo, cujos destinos ele determinou. Por causa deste destino do universo, o gnosticismo é uma teologia da história. O dualismo, está quase sempre presente nos seus seguidores dogmasticismo. A matéria é conceituada como um princípio mau, sendo necessário desprender-se dela e tomar o rumo do princípio bom. Este modo de pensar é fácil de ocorrer em pensadores pré-lógicos. Mas é típico do pensamento persa, a partir de onde o dualismo atuou mais drasticamente a mentalidade do Ocidente. Há a distinguir entre o que expressamente se define como gnosticismo e tudo o que podia assimilar em seu peculiar ecletismo. Não há como estabelecer fronteiras precisas, senão cronológicas. Muitas vezes resta apenas a distinção cronológica entre o que vem do passado e o que continua. A idéia da perda do homem e de sua salvação já vem do passado, adquirindo agora um significado destacado. A gnose helenística se pode fazer remontar a Pitágoras (séc. 6o a.C.) porquanto insiste no valor do conhecimento, como instrumento, de purificação. O mesmo acontece com Platão a distinguir entre a origem superior do conhecimento universal e sua distinção frente ao empírico. A gnose judaica, desenvolvida especialmente em Alexandria, exalta a sabedoria. Mas, de outra parte, conserva a importância do ético. Tem continuidade na cabala.

164. O gnosticismo cristão é aquele que integra a pessoa de Jesus no esquema peculiar a esta mentalidade. O cristianismo como um todo é semi-gnóstico. Reagiu contra suas formas acentuadas, como as que se radicalizaram no século 2-o. d.C., defendidas por Bardesanes (teólogo cristão sírio), Basílides (teólogo talvez também sírio, com magistério em Alexandria), Valentino (teólogo de Alexandria, com trânsito em Roma) Marcião (sírio vindo para Roma e discípulo de Valentino), etc. Especula-se a respeito dos contatos de Paulo Apóstolo com a mentalidade gnóstica, e que isso mesmo era considerado pelos gnósticos como o maior dentre os apóstolos de Jesus. Ao ser conformado que a igreja de Colossos (na Ásia Menor) havia sido atingida por doutrinas nova, que poderiam ter sido gnósticas, Paulo reagiu, mantendo-se porém dentro do mesmo clima: "Da qual (igreja) eu estou feito ministro segundo a dispensação de Deus, que me foi concedida para convosco, para cumprir a palavra de Deus; o ministro que esteve oculto desde todos os séculos, e em todas as gerações, e que agora foi manifesto aos seus santos; aos quais Seus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é o Cristo em vós, esperança da glória" (Col., 1, 25-27). As expressões de Paulo "conhecimento (gnósis) e pleno conhecimento (epígnosis) São peculiares aos gnósticos." O mesmo se deverá dizer da oposição entre carne e espírito, assunto frequente em Paulo. Ela se explica em função ao gnosticismo. O fundo estóico do moralismo de Paulo Apóstolo se radicaliza nesta oposição gnóstica entre o bem e o mal, em que o bem é do espírito, o mal da carne (Rom. 7,22-25; 1 Cor. 15,50). Enfim, Paulo ameaçou toda a espécie de erotismo com a condenação eterna. Na mesma linha gnóstica situam as imagens de Paulo Apóstolo ao se referir a um Cristo dominador de um mundo tenebroso e vencedor de principados e potestades: "Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo. Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais" (Efésios 11,12). O mesmo pensamento gnostizante se repete na epístola aos Colossenses (1,12-15).

III – SITUAMENTO DO ISLAMISMO.7270y165.

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166. Uma reformulação de um longo passado. O islamismo, fundado pelo árabe Maomé (c. 570-632), de quem se conta ter tido visões, é uma religião a primeira vista recente, comparada com as grandes tradições religiosas do Oriente Médio e do Ocidente. Ainda que resultante desta reformulação recente, operada por Maomé, as raízes do islamismo são tão antigas quanto as de outras religiões. Em parte o islamismo foi uma continuação reformulada do velho paganismo, e que conseguiu resistir ao impacto absorvedor do cristianismo. Enquanto as cidades, principalmente as maiores, se haviam tornado cristãs, a zona rural persistiu em suas anteriores tradições. Dali a mudança do sentido do termo latino paganus (= pagão), morador do pagus (= pago, aldeia, campo), para significar simplesmente o não cristão. O caráter urbano do cristianismo fora também resultante do processo como ele se instalou, porque o proselitismo cristão alcançara primeiramente as cidades, até porque inicialmente fora propagado por judeus conversos e que iniciavam sua ação pelas sinagogas. O mundo árabe, por haver estado eventualmente longe das cidades romanas e bizantinas, teve, pois, condições próprias para conservar conceitos anteriores, quer pagãos, quer mesmo do velho judaísmo. Quando o povo árabe desabrochou para a história, estes conceitos anteriores vieram a tona e se impuseram, em parte pela forma antiga, em parte pela reformulação impressa por Maomé. Assim foi que o islamismo não incorporou a crença na Trindade das pessoas divinas e nem incluiu o alto número de práticas sacramentais, ou mistérios. Não obstante haverem ocorrido algumas influências destas práticas, forma elas de menor proporção. O combate islamita às imagens, a pretexto de estimularem a idolatria, é um elemento típico do velho judaísmo. Como se sabe, foi exatamente quando os atravessavam o deserto árabe em busca da terra prometida, que os israelitas, sob anterior influência egípcia, haviam adorado ídolos. Mas foi perdoada aquela idolatria no deserto, graças a intercessão de Moisés junto a Deus; forma entretanto excluídos da terra prometida, entregue apenas depois de várias décadas aos descendentes, os quais finalmente conseguiram conquistar a prometida Canaã. A expansão árabe varreu o cristianismo do mapa em uma vasta extensão do antigo Império Bizantino e mesmo de parte do Ocidente, ou seja da então África latina. Pôs mesmo em perigo a igreja cristã da Europa. A conquista árabe imediata da Síria, fez de Damasco, já em 636, até 750, a residência da dinastia islâmica dos Omeyas. Em 641 o Islam conquistava também ao Egito. Em consequência perdiam os cristãos os tradicionais importantes centros intelectuais de Antioquia e Alexandria. Estendendo-se ao longo de todo o norte de África os islamitas tiraram também esta região do mapa cristão. Por longo tempo dominaram também a Espanha e Portugal. Por último, em 1453, foi conquistada ainda Constantinopla pelos turcos (também islamitas) dando fim ao milenar império bizantino. Santa Sofia, que fora o principal templo cristão da Idade Média, passou a ser mesquita de Alah. Fora então preciso construir a basílica de São Pedro em Roma com a pregação das indulgências, inclusive na Alemanha.

167. Doutrinariamente, o islamismo admite um Deus único, sem a formulação trinitária dos cristãos, - conforme já se admitiu. A idéia trinitária apesar desta ter afinidade com a filosofia neoplatônica, não vingou entre os filósofos árabes. Estes admitiram a transcendência divina, colocando entre Deus e o mundo a inteligência intermediária, sem todavia eleva-la à categoria de pessoa divina como fizeram os cristãos ao admitirem o Logos neoplatônico e o identificando com o filho de Deus encarnado em Jesus. O islamismo também não introduziu em seu corpo de doutrinas a idéia da perda da eleição divina. Não há uma salvação a ser readquirida pelo batismo. Diferentemente, os cristãos extinguem com o batismo os efeitos de um suposto pecado original. É pois a islamismo o herdeiro do conceito homérico otimista de ser humano, ainda que com reformulações e radicalismos. Trata-se de um novo paganismo, por ser monoteísta. É ocidental por não ter sido afetado pelas doutrinas salvacionista do tipo zoroástrico. Alá é Deus único e Maomé seu profeta principal. Elementos cristãos secundários foram introduzidos: em destaque a aceitação de Jesus como profeta (não como Deus). Elementos orientais zoroástricos, como a doutrina zoroástrica dos anjos, com destaque o anjo Gabriel, não o descaracterizam essencialmente. São essenciais ao islamismo: a eliminação do politeísmo, ausência da trindade das pessoas divinas, inexistência do conceito de pecado original. É possível que no futuro o islamismo se desvista de seu barroquismo cultural, cujos detalhes infindos contribuem para que aos olhos dos superficiais não se revele a sua essência.

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IV – EPISÓDIO QUE DIVIDIRAM OS CRISTÃOS:CATÓLICOS, ORTODOXOS, PROTESTANTES.

7270y168.169. A Igreja Ortodoxa, definida separada, desde 1054, da chefia suprema do bispo de Roma, ou Papa, deu curso diferente ao contexto geral do cristianismo, agora dividido em dois blocos. Esta divisão dos cristãos se agravaria mais tarde, a partir de 1517, quando no Ocidente ocorria ainda a separação de católicos e protestantes (vd 170). Por ocasião do rompimento tempestuoso entre ocidentais e orientais aconteceu a troca mútua de excomunhões entre o Papa Leão IX e o Patriarca Miguel Cerulário. Num gesto de convivência amistosa, quase mil anos depois, em 1967, as excomunhões foram mutuamente retiradas pelo Papa Paulo VI e o Patriarca Athenágoras. As discordâncias entre as duas Igrejas tiveram uma significativa implosão, ao tempo de Fócio (c. 820-c. 891), uma extraordinária inteligência, mas que era ainda leigo, quando foi encaminhado para ser o patriarca de Constantinopla. Este e outros episódios, nos quais o Papa latino procurou interferir, geraram situações, que finalmente resultaram em rompimento. No curso dos acontecimentos se foram revelando também diferenças doutrinárias, - sobre o Símbolo de Nicéia e sobre o comando administrativo da Igreja, - que fizeram que as duas cristandades não mais coincidissem. Originariamente os concílios ecumênicos eram realizados no Oriente. Agora passaram a ocorrer no Ocidente, pelo menos quando comandados por Roma. Uma vez dividida a cristandade, resta a pergunta, o que verdadeiramente é um concílio ecumênico.

170. O episódio que dividiu os cristãos em católicos e protestantes. A religião cristã nos tempos modernos tem como acontecimento mais importante aquele que dividiu a cristandade em catolicismo e protestantismo, envolvendo questões dogmáticas, ao mesmo tempo que influenciando mais fundamentalmente a filosofia da religião. Em termos genéricos, o catolicismo predominou em nações latinas e o protestantismo em nações germânicas. O catolicismo foi inicialmente mais amplamente favorecido pelas formas de governo dos países onde se conservou. O protestantismo foi mais favorecido pelas regiões melhor alfabetizadas, fator que se prende ao fato de haver insistido na leitura da Bíblia. Nenhum dos fatores opera com exclusividade, e têm mesmo sofrido alterações. Por isso o fenômeno da divisão da cristandade em catolicismo e protestantismo foi assumindo outras características, sobretudo a partir do século 20, quando o protestantismo passou a crescer nos países latino-americanos.

171. A liberdade de consciência é um destaque do movimento protestante, frente à autoridade exterior da organização eclesial, que o outro lado, o católico, fez questão de manter. Similarmente a maçonaria pugnou pela tolerância religiosa e o fim dos governos absolutistas. Em decorrência as divergências doutrinárias modernas foram acontecendo, em nome da liberdade consciência. Advertiu-se com mais frequência que a repressão doutrinária não é legítima, sobretudo não como a igreja romana vinha inquisitorialmente fazendo. Os católicos insistem em duas fontes de fé, a tradição (que deve ser universal e constante) e a Bíblia (a qual inclui também os que se dizem dêutero-canônicos). A isto acrescem ainda a interpretação oficial, com inclusão da infalibilidade do Papa em assuntos de fé. Diferentemente, os protestantes reduzem as fontes da fé à Bíblia, sem os livros dêutero-canônicos (vd) e sem a interpretação oficial infalível da Igreja. É mais frequente a admissão, por parte dos protestantes, do misticismo subjetivo da fé.

172. Reação de Martinho Lutero (1483-1546). Um monge agostiniano, alemão saxônico, de costumes rijos, foi, em virtude de sua intempestividade, o homem historicamente adequado para enfrentar a bem estruturada repressão oficial de sua época. Neste tempo os papas de uma Roma empobrecida se apoiavam economicamente no turismo dos peregrinos induzidos a visitarem a sede do cristianismo. Nesta atração induzida, teve destaque a concessão de indulgências, condicionadas a esta visita. Também se deu destaque a visita à relíquias, como a Santa Escada (esta provavelmente uma falsificação). O movimento das indulgências se avolumou, quando se tratou de recolher recursos para a construção da basílica de São Pedro. O descontentamento então provocado sobretudo na Alemanha facilitou a ação reformista. Em 1517 Martinho Lutero teve a oportunidade de observar a recepção pomposa do Legado Papal, o monge dominicano Johann Tetzel. Fora precedido na entrada da cidade por procissão análoga à dos solenes ingressos dos bispos. O Legado exibia bula de concessão de indulgências, em um manto de escarlate e ouro.

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Em 31 de outubro, véspera das solenidades da festa de todos os santos e concorrido aniversário da capela de do castelo de Wittenberg, afixou Lutero suas 95 teses sobre o assunto. Dizia, entre outras coisas: "Quanto às influências impostas pela igreja, elas não podem ter influência sobre as decisões de Deus, nem sobre a sorte reservada às almas dos mortos. As indulgências são portanto inúteis... Se, a fim de construir uma igreja, o papa pode libertar um grande número de almas do purgatório, porque, em sua santíssima caridade, não esvazia de uma vez, o purgatório de todas as almas que aí sofrem e não termina com seus próprios recursos a basílica de São Pedro?". Enviou Lutero uma copia ao arcebispo e príncipe de Mogúncia. O efeito foi tão considerável, que Tetzel suspendeu a pregação das indulgências. Lutero explorava ainda sutilmente o aspecto germânico: "Estava-se cansado de ver tosquiar, por todo o país, os bons carneiros alemães...". Ainda que não houvesse rompimento no sentido de uma nova igreja, a data do episódio contundente de 31 de outubro de 1517 passou a ser considerada como sendo a da fundação do movimento da Reforma Protestante.

173. Decisões da Dieta de Augsburgo. Depois de várias disputas nas Universidades, em público, bem como após a insistências pela calma, por parte do então Papa Leão X, veio finalmente Roma a considerar o assunto como de alta seriedade. Iniciou-se, então, o mecanismo de compressão. A 7 de abril, de 1518 uma citação pontifícia chegava Wittenberg, determinando que Lutero fosse a Roma justificar-se de crime de heresia. Temeu-se que Lutero fosse preso e levado à fogueira. Procurou ele assegurar-se nos direitos de um salvo-conduto, que lhe foi todavia negado pelo Príncipe Eleitor Frederico. O Provincial agostiniano conseguiu, que, em vez de seguir Lutero para Roma, se apresentasse na Dieta, que haveria em Augsburgo, porquanto nela estaria presente o Legado Pontifício, Tomás de Vio (conhecido como Cardeal Cajetano). Em outubro, efetivamente, lá se apresentou Lutero. Deveu prostrar-se com o rosto em terra, diante do Legado Papal. Este não pretendia aceitar justificações, mas exigira apenas a retratação. Concordando, enfim, o Legado na justificação, ela se fez em 14 de outubro de 1518, mas não sem gritaria e injúrias de ambas as partes bruscamente. Cajetano, contudo, adiou a excomunhão. Insistiu Roma que o frade lhe fosse entregue. O Príncipe Eleitor Frederico não consentiu, advertindo ao Imperador, que o negócio se deveria resolver na Alemanha.

174. Proteção à vida de Lutero. Neste tempo, com o apoio de Frederico, elegeu-se Carlos V para o posto de Imperador da Alemanha, em julho de 1519. Leão X temera que fosse eleito o mesmo Frederico. Mas este, não obstante, continuou eficiente protetor de Lutero. Das 95 proposições de Lutero foram condenadas 45 pela Bula Papal de 2 de julho de 1520. Não obstante Lutero continuou receptivo na Alemanha, com apoio crescente da opinião pública. Os estudantes de Erfurt rasgaram os exemplares impressos com as proposições condenadas. O reformismo de Lutero se estendeu a novos setores da Igreja. No Sermão sobre a missa, - como este documento passou a ser chamado, - propôs espetacularmente que a missa volte a constituir-se em uma ceia singela, como Jesus a celebrou, em voz alta e em língua vernácula (na Alemanha, em alemão). O que os protestantes passaram logo a fazer, a Igreja Católica levou quatro séculos para também praticá-lo. Ainda na primeira metade de 1520 deu Lutero à público o famoso libelo Apelo à nobreza alemã, dirigido ao Imperador e aos Príncipes, e que moveu toda a Germânia. Em outubro, também de 1918, publicou o contundente Do Cativeiro babilônico da Igreja. Representava um dos mais fortes ataques que a Igreja vigente da época conheceu contra o Papa, que então era Leão X. Como se sabe, este Papa procedera da família Médici, de Florença, e que fora Cardeal já como menino, aos 13 anos. "Queremos combater os turcos, - dizia Lutero, no Apelo aos príncipes alemães, - comecemos por aqueles de nossos inimigos que nos são mais nocivos, Com razão enforcamos os ladrões e cortamos a cabeça dos bandidos; por que deixar em liberdade o maior dos ladrões que já apareceu na terra e não aparecerá nunca mais?." No ano, seguinte, aliás morrera Leão X, e desde então a Igreja passará a ter Pontífices mais sóbrios. A bula de excomunhão de Lutero fora ainda exarada por Leão X, em 11 de outubro de 1520, depois de decorrido o prazo dado para a retratação. A firmeza de Lutero foi comemorada em Wittenberg. Carlos V convocara uma Dieta para Worms, em 13 de fevereiro de 1521. Lutero ainda foi convocado contra a vontade do Núncio, para explicar-se. Dividindo-se as opiniões, ao sair, foi aplaudido pelos alemães, e vaiado pelos espanhóis. Finalmente proscrito, em vista da excomunhão, poderia Lutero ainda retornar à Wittenberg, protegido pelo salvo-conduto, que o fizera vir. A viagem de retorno se fez com triunfo. O que nisto tudo há a anotar é a proscrição oficial, em virtude da qual o Sacro Império devia impor a fé, eliminando aquele que fosse declarado herege por Roma.

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Caso não se evadisse o herege, seria preso e possivelmente levado à fogueira. O dramático se estabeleceu, porque Roma continuou insistindo, apesar da oposição do mais prestigioso príncipe alemão, Frederico da Saxônia, o qual agia com astúcia. De outra parte, porém, o Imperador Carlos V, em 21 de abril 1521, emitiu o ato pelo qual decidiu manter pela força, a "integridade da fé ancestral". Também determinou que, ao terminar o efeito do salvo-conduto, se agiria contra Lutero como se procedia com os hereges. Com precisão, deu-lhe 21 dias para tratar de conciliação, findos os quais, se não a fizesse, poderia determinar onde se entregar. Ao chegar em território saxônico, foi assaltado por cavaleiros, que o conduziram a uma floresta e de onde para um castelo de Wartburgo. Era um aparato, criado pela mão oculta do Príncipe Eleitor Frederico. Salvara desta maneira a vida do mentor de uma nova mentalidade, que já então dominava a Alemanha. Em Roma, Lutero foi representado por uma figura de madeira, diante da qual se queimou uma coleção de seus livros.

175. Enquanto traduzia a Bíblia. Difundiu-se de que Lutero fora assassinado por emissários do Papa, de sorte a se exaltarem ainda mais os ânimos. Por isso outros pregadores conseguiram levar avante o movimento, não obstante o poderio das proibições imperiais. Em Wittenberg um monge agostiniano introduziu a missa simples, segundo fora pregada por Lutero. O teólogo Felipe Melanchton (1497-1560) e outros ilustres mestres continuaram a pregar a reforma. Estudantes expulsam padres reacionários da igreja paroquial. Apedrejaram as janelas de um convento franciscano. Em Zwickau surgiram profetas pregando a propriedade coletiva ao modo dos primeiros cristãos, visando principalmente a distribuição da terra, a qual, no direito feudal, era em grande parte, considerada um direito dos príncipes, quando não também dos conventos e dos bispados. Entretanto Lutero traduzia a Bíblia para o alemão saxônico, e que ultimaria depois de muitos anos. Todavia, quer porque fosse corajoso, quer porque o ambiente popular se lhe tornara favorável, abandonou o esconderijo e foi reassumir a pregação na igreja de Wittenberg, onde chegou em março de 1522, com surpresa do Príncipe Eleitor. Em carta de 5 de março Lutero lhe comunicou: "Escrevo estas palavras para vos fazer ver que vou a Wittenberg sob uma proteção mais alta do que a com que Vossa Graça me poderia cobrir; também não tenho a intenção de recorrer a esta última. Creio mesmo que protegerei Vossa Graça mais eficazmente e que serei protegido por Ela." Nada aconteceu ao proscrito. A Alemanha já era outra. O que preocupara Lutero, e fora também motivo de sua volta à pregação era o desenvolvimento da reforma com variadas diretrizes, porquanto, em sua ausência, surgiram pregadores reformistas por toda a parte, ao modo de um movimento espontâneo. Em 1526 lastimaria: "São quase tantas as seitas e as crença, quantas as cabeças."

177. Consolida-se a divisão catolicismo e protestantismo. Depois de seu livrinho Contra o celibato dos padres, de 1522, passam os clérigos a casar, mantendo-se como pastores das igrejas locais. O mesmo Lutero casou apenas em 15 de junho de 1525, continuando em seus costumes rijos. Sua mulher, Catarina Bora, evadira-se de um convento com outras 8 adolescentes em 18 de abril de 1522; ficara na residência do Secretário Comunal de Wittenberg, com receio de retornar a casa de seu pai, fervoroso católico. Em 1523 iniciou Lutero polêmica com um famoso ex-clérigo, Erasmo de Rotterdam (1466-1536), um dos mais ilustres representantes do humanismo. E aberto às idéias do Renascimento. Não obstante ser tolerante para com as idéias de Lutero, escreveu em 1524 um livro Diatriba de libero arbítrio. Reagiu Lutero com De servo arbítrio (1525). Erasmo volta com uma erudita réplica: Hyperastés, ou seja, O preceptor (1526). A polêmica ficou um tanto no vazio, porquanto os autores se firmavam em princípios distintos. O protestantismo já não era apenas um episódio mas, uma forma cristã distinta da igreja católica romana, caracterizada esta pelo poder autocrático de Papas e bispos, bem como nela multiplicidade dos rituais, ditos sete sacramentos. Pela Confissão de Augsburgo, redigida em 1530 por Felipe Melanchton, e reconhecida pelo Império, na Paz de Augsburgo, em 1555, ganhou o protestantismo, chamado Reforma, um documento oficial, que até hoje representa o seu fundamento doutrinário. Por sua vez a Igreja Católica definiu sua posição mais detalhadamente, no Concílio de Trento, no curso dos anos de 1545 a 1563, acontecido em 3 períodos: 1545-1549; 1551-1552;1561-1563. Os temas sobre os quais ocorreram

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decisões diziam respeito às fontes da revelação, pecado original, justificação, sacramentos e sacrifício da missa, culto aos santos e às relíquias, purgatório e indulgências. O questionamento meramente filosófico do episódio que divide entre catolicismo e, protestantismo se limita apenas a postular, que ambas as posições, enquanto cuidam de examinar seus fundamentos teológicos (- ou uma, - ou outra das posições é verdadeira, - ou nenhuma), devem estar coerentes com as teses mais fundamentais da filosofia da religião. Finalmente, qualquer seja a solução alcançada pelos teólogos, nenhuma pode desrespeitar o direito individual da liberdade de pensamento. Sob esta base, diferentes confissões religiosas têm deflagrado o movimento denominado ecumenismo.

ART. 6o. - RELIGIÕES ORIENTAIS:INDUS, CHINESAS E OUTRAS.

7072y179.180. A começar do século 20 as religiões orientais também se expandem no Ocidente, tanto em suas formas antigas como nas reformuladas. A sensibilidade maior pela liberdade de consciência. Bem como a facilidade das comunicações, permite hoje a presença de todos os cultos nos países suficientemente civilizados. Em 1985, diante da catedral de Avignon (sede temporária dos papas na França), eu já pude apreciar diante dela, festivais da juventude moderna e cultos orientais, como por exemplo o de Krishna, sem que seus promotores fossem encarcerados e destinados pela Santa inquisição para a fogueira. As religiões orientais interessam à filosofia da religião, e inversamente a filosofia da religião deve interessar à estas outras religiões.

I – BRAMANISMO, HINDUÍSMO E BUDISMO.72270y182.

183. O bramanismo, - cuja forma atual é o hinduísmo, e de que o budismo (vd 187) é uma variante neobramanista, - é parte do grande contexto das religiões indo-européias (vd 110), e que tiveram mais a Ocidente a expressividade das religiões homérica (vd 112) e zoroástrica (vd 119). Tomou o bramanismo seu nome da primeira pessoa da Trindade divina Brama (= ser grande, forte, causador). Remonta aos meados de 2-o. milênio a.C., perdurando até os inícios de nossa era. Também é o bramanismo, mencionado como religião védica, em função ao mais antigo texto-veda (conhecimento), ou Sruti (= Revelação). Foi o bramanismo levado à Índia pelos arianos (indo-europeus), quando estes desceram do Norte e invadiram a bacia do Indo entre 2000 e 1500 a.C. Fizeram então desaparecer as culturas anteriores, ainda que em parte as assimilando. Sua língua é o sânscrito, ainda hoje conservado na forma antiga nos textos sagrados. Samhita é o texto sagrado mais antigo, e está dividido em quatro coleções de hinos ou quatro vedas, os quais remontam 1000 anos a.C.:

- Rig Veda (veda das estrofes, ou hinos), - Yajur Veda (Veda das fórmulas, ou liturgia), - Sama Veda (Veda das melodias, ou cantos); - Atharva Veda (Veda da magia).

Surgiram não muito depois outros e outros livros, como Bramana, Sutra, Aranyaka, Upanishad, de caráter hermenêutico e especulativo.

185. O princípio fundamental do universo é Brama, concebido à maneira panteísta emanatista. Dele derivam, por distinções, as individuações. Não obstante, o eu profundo de cada qual (= atma) não se distingue totalmente e é sofrimento (dor universal). A purificação, através das transmigrações, leva finalmente à unidade com Brama e à felicidade. De outra parte, formas antropomórficas, personalizam Brama, como um Deus pessoal. Dissociam-se então três figuras:

- Brama, como criador, - Vishnu, como conservador, - Civa, como destruidor do mundo.

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A multiplicidade de cabeças e braços são caracterizações antropomórficas atribuídas pelos orientais aos deuses. A filosofia, desprendendo-se dos antropomorfismos, acentua o lado monístico da realidade, como alma impessoal e universal, que está em tudo. E assim, o sobrenatural estaria dentro da própria natureza. Compara-se o unicismo bramânico com o unicismo dos pré-socráticos (vd 200), quer materialistas, como os jônicos, quer metafísicos, como os eleatas, enquanto estes estabelecem a unidade do ser, reduzido, a diversidade das coisas e o movimento e uma representação subjetiva dos sentidos.

186. Hinduísmo é a forma atual do bramanismo, como religião, mantendo predomínio na Índia, com cerca de 300 milhões de seguidores. Supressa a lei das castas em 1974, decresceu a importância social dos sacerdotes budistas, dedicados à magia das formas ritualísticas de contato íntimo com o sobrenatural impessoal situado da natureza. Crescem modalidade de pensamento brâmane mais racionais, nas classes adiantadas.

187. O budismo, como variante do bramanismo, teve origem no Nepal, a norte da Índia, pela volta do ano 500 a.C. Seu fundador foi Siddharta Gautama, dito Buda, equivalente a Iluminado (c. 566-c. 486 a.C.). Ele e seguidores enveredaram por novos rumos, o que resultou em conflito com o bramanismo ortodoxo. Sendo mais proselitista, o movimento budista, ao contrário do bramanismo, logrou expandir-se no exterior, inclusive na China e Japão, e por todo Sul asiático. Na mesma Índia sofreu restrições, e foi prejudicado pela ulterior penetração do islamismo, que se deu sobretudo no Turquestão e na Indonésia. Finalmente, a partir do século vinte, o budismo encontrou simpatizantes no mundo inteiro. De Buda, se diz haver sido concebido por uma Virgem. Considerou a si mesmo como tendo sido iluminado. Eis o fenômeno comum aos fundadores de religiões. Desenvolveu-se o culto a Buda, em flores e oferendas. Acredita-se também que Buda reencarna em cada chefe supremo do budismo

188. Doutrinariamente, o budismo tende à profundidade, havendo moderado o formalismo ritualista do bramanismo, do qual todavia desenvolveu a tendência ao monismo. Prega o budismo um monismo transparente, similar ao de Heráclito. O princípio geral é o Nirvana, uma espécie de indefinido nada universal, do qual tudo devém e ao qual tudo deve retornar no final das reencarnações. A dor é inseparável da existência. A alma está sujeita a uma transmigração sem fim. A salvação é o desejo do nada, extinguindo o desejo do renascimento. A moral rijamente conduzida, apressa o retorno ao nirvana. O moralismo budista apresenta algumas semelhanças com o eticismo cristão, sem o otimismo deste, o qual prega o reino de Deus. Variantes ocorrem em grande número. Destacam-se, todavia, duas formas regionais. O budismo meridional (Ceilão, Birmânia, Indonésia) é praticamente ateu e Buda um mestre; pratica mais o ascetismo e se acredita estar mais fiel ao budismo inicial. O budismo setentrional (Mongólia, Tibet, China, Japão) é monoteísta, em que Buda está mais próximo de ser visto como um Deus. É mais tolerante com as crendices populares. Os dois budismo são chamados respectivamente:

- pequeno veículo, - Hinayana; - grande veículo, - Mahayana.

II – REFERÊNCIA ÀS RELIGIÕES E FILOSOFIAS DA CHINA E JAPÃO.7270y189.

190. Desde seu remoto passado, a China segue três modalidades religiosas e morais:

- confucionismo (vd 191), - taoísmo (192), - budismo, este recebido do exterior (187).

É inegável que a China soube conduzir-se com sabedoria ao longo de todo um longo passado, o que lhe deu sua estabilidade. Com referência ao Japão, anotam-se as religiões:

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- Xintoísmo (vd 193); - Budismo (vd 194), - outras denominações (vd 195).

191. O confucionismo remonta sábio chinês que lhe deu o nome: Confúcio (551-478 a.C.). Este coletou e documentou as tradições chinesas, de sorte que o próprio Confúcio independe de certas convicções pessoais dele mesmo. Distingue-se entre o livro Y-Ching (Livro das mutações) em que Confúcio colige a literatura sagrada da China, e suas obras exclusivas, Ta-hioe e Tchoung-young, em que apresenta preceitos e máximas de ordem prática. O confucionismo não foi uma criação, que rompia com uma doutrina preexistente. Foi uma reestruturação e fixação de tradições vigentes. Rejeitou as superstições. Deus e o céu constituem um só ser espiritual supremo. Confúcio não foi um metafísico especulativo como Lao-tse. Não valorizou, como este outro mestre, a especulação pura, mas antes cuidou da moral, da virtude, do social. Foi primeiro que tudo um homem público honesto, um moralista e educador do povo chinês. Apresentou todavia alguns princípios metafísicos claros e de grande valia pelo seu equilíbrio. Declarou Confúcio:

"O perfeito é o começo e o fim de todas as coisas; sem ele não existiriam os seres. O perfeito é por si mesmo absoluto. A potência que produziu o céu e a terra pode exprimir-se simplesmente como sendo a perfeição".

Não foi Confúcio chefe religioso, mas teve uma filosofia que alcançava a religião. Racionalista, não se apegou a mitos, o que foi uma de suas melhores contribuições ao pensamento chinês. Acreditava numa lei universal, cujo conhecimento devia ser buscado. Neste sentido foi mais um filósofo, que um teólogo. Mas, de outra parte, o pensamento religioso popular, que não alcançava o nível filosófico, destacou o lado religioso de Confúcio. Este confucionismo passou a ser em uma religião e que veio a ser naus ou menos oficial na China, conservando-se assim até a queda do último imperador (1912). Moderado, Confúcio ainda esclarecia que, se não sabemos o que é a vida, não podemos saber o que é a morte. Neste contexto, o culto aos mortos é admissível e tende para o formalismo. As idéias morais de Confúcio são conservadoras, e, até certo ponto, a elas se atribui o haverem feito a China parar dois milênios. Recomendou a perfeição pessoal e o domínio das paixões. Classificou em cinco as virtudes:

ien o amor pelos outros; yi, a justiça moderada pelo amor; li, conduta regrada de polidez e de cerimonial, como culto ao Estado e aos mortos; chih, autoconsciência da vontade celeste, sabedoria; ch'i , sinceridade desinteressada.

Contrariando a nobreza, Confúcio desconsiderou a ancestralidade como título para ocupar cargos públicos; importa a capacidade. A autoridade tem origem num mandato divino. O imperador é governante e sacerdote. A lealdade ao céu e ao imperador é necessária para conter a desordem social. A influência de Confúcio se consolidou sobretudo a partir da dinastia Han (202 a.C. - 221 d.C.).

192. O taoísmo, hoje difundido por todo o mundo, é o nome de uma tradição de caráter místico e religioso, que atravessou os tempos, em paralelismo com o confucionismo, mas na China sempre com menor número de aderentes Como sistema o taoísmo foi atribuído a um sábio do 6-o séc. a.C., dito Lao-Zu, ou Lao-Zi, ou ainda Lao-tse, cujo nome se traduz por Velho Mestre, e que teria sido contemporâneo de Confúcio (vd 191). Pelo ano 300 a.C., os discípulos de Lao-tse sintetizaram os ensinamentos do Velho Mestre em um livrinho denominado Tao-te-king (= Razão suprema, ou Caminho real). Embora atribuído ao próprio Velho Mestre, a análise interna do texto revela que foi escrito posteriormente, citando-se entre os verdadeiros autores possivelmente Chuang-Chou e Lieh Zu. Em vista de apresentar as linhas doutrinárias mestras do sistema, o nome Tao (ou Taoismo) veio a denominá-lo. As mais antigas versões dizem que Lao-tse fora um funcionário do governo, ao tempo da dinastia Djou e que, em determinado momento tudo deixou, dirigindo-se em direção do Ocidente, montado em um boi, conforme gravura

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antiga deixada sobre uma pedra. Ao querer atravessar um monte, o guarda pediu dele que antes escrevesse um livro sobre seu saber, e que teria sido o Tao-te-king. Ao tê-lo escrito, lhe foi permitido seguir em frente, não mais se tendo notícia dele. Na base gnosiológica, o taoísmo se apóia em um conhecimento de caráter místico-religioso, anterior ao modo raciocinativo de outras filosofias, como por exemplo o confucionismo. Ocorre, pois, uma aproximação entre o taoísmo e o falar sem palavras de Buda. Neste sentido é típico o modo de apresentar da doutrina do taoísmo em forma geralmente de aforismos, soando como paradoxos ambíguos, por vezes poéticos. Por isso mesmo, as traduções do velho textos costumam variar bastante entre si. A metafísica de Lao-tse é monista, todavia estabelecendo uma realidade geral constituída de dois princípios opostos, um determinado, outro indeterminado, e que constituem todas as coisas e sua história de mudanças cíclicas. Tem, pois, o taoísmo uma imagem dinâmica do universo, ao qual interpreta como constituído, como se disse, de dois princípios opostos e em alternância, - ying e yang. Em tudo acontece a perpétua alternância, em todas as posições se justificam. Não há pois aquela sociedade boa somente para um lado da alternância, aprovada pela ética aristocrática do confucionismo. Dali porque, no plano ético e social, o taoísmo é socialmente menos rijo que o confucionismo no que se refere às suas concepções e regras. Recomenda-se ao homem naturalidade e a espontaneidade O taoísmo influenciou o budismo Zen, do Japão, com visão sobre a vida. O livrinho Tao Te King marca o início da reflexão metafísica chinesa, mais além da superfície dos fenômenos políticos e morais do cotidiano. Por menor que fosse, este livrinho manteve o taoísmo dentro de uma certa estabilidade através dos séculos, ainda que influenciado pelos escritos de outros discípulos do mestre inicial. Em relação ao texto do mestre, algumas doutrinas do taoísmo decaem, ou se complementam, com a magia, astrologia e credulidades várias.

193. O Xintoísmo (de xinto = caminho dos deuses) é a mais antiga religião do Japão, com origem chinesa, anterior ao budismo, também presente no país. Seus documentos escritos datam do início do século 8-o. da nossa era, com narrativas míticas. Um caos inicial deu origem aos deuses. O Sol e a Tempestade personificam os elementos da natureza. O xintoísmo venera as forças da natureza. O templo do Sol em Ise é muito visitado. O ser humano descende dos deuses (no sentido acima). Venera o xintoísmo também aos ancestrais. Os mortos são espíritos capazes de trazer alegrias e infelicidade aos vivos.

194. O budismo alcançou o Japão no século 6-o d.C., através da Coréia. Dos sincretismos resultantes, derivaram as divisões em variadas seitas. Nota-se até a presença de filósofos, com lastro budista. A começar do século 17 se desenvolveu um movimento no sentido de um retorno ao xintoísmo, liberado das influências budistas. Dali também resultou o culto de adoração ao Imperador. Perdida a guerra em 1945, a nova constituição (1946) lhe retirou o poder absoluto. Dentre as variações budistas se destaca a de nome budismo Zen, que assimilou elementos taoístas.

195. Mencionam-se também cultos surgidos mais recentemente no Japão, e que tiveram difusão pelo mundo. Os cristãos representam minoria insignificante, todavia fortemente apoiados, desde longa data, por missionários, subsidiados por organizações externas, sobretudo da Europa e América. A evolução mental do povo japonês o conduz na direção do naturalismo, com a depuração filosófica dos velhos conceitos religiosos, tanto das velhas religiões do seu mesmo país como das que procedem do Ocidente.

CAP. 3DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO.

7270y196.

- Filosofia da Religião -197. A filosofia da religião principiou com a mesma filosofia. Houve um momento em que os filósofos passaram a examinar sistematicamente as questões da natureza, incluindo as da religião. O que as religiões históricas apresentam acriticamente, passou a ser criticamente estabelecido, ou como verdade, ou como falsidade.

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Não se trata de luta proselitista entre as religiões, que sempre procuraram eliminar umas às outras; mas de um exame objetivo, em que vale a conceituação lógica, partindo do mais conhecido para o menos conhecido, pelo caminho da dúvida metódica. A filosofia da religião teve um desenvolvimento, cuja história principiou com a mesma filosofia, - como se adiantou, - e cresceu ao longo dos tempos. Esta racionalização do estudo da religião apresenta, por conseguinte, fases de desenvolvimento, às quais convém atender ainda antes de instalar a filosofia da religião simplesmente. A história da filosofia da religião está marcada pela diversidade de opiniões, ora mais otimistas, porque em favor das religiões tradicionais, ora mais negativas, porque contra muitos aspectos anteriormente admitidos. Dali resultam vários títulos de artigos, sob quais examinaremos o assunto, destacando sobretudo os da antiguidade, porquanto são a fonte do que veio depois:

O Deus dos pré-socráticos (vd 198); O Deus de Sócrates, Platão e Aristóteles (vd 204); Monismo materialista e espiritualista dos estóicos (vd 232); Neopitagorismo e neoplatonismo místico religioso (vd 251); Pensamento político-social helênico-romano e religião (vd 280); O pensamento religioso medieval (vd 290); Religião nas filosofias modernas... (vd 353).

Didaticamente podemos dar desenvolvimento maior à história da filosofia da religião, complementando-a com um texto menor sistemático. Ou inverter, atribuindo um texto menor ao histórico e outro maior ao sistemático. Ou ainda eleger um terceiro caminho, que é o de dar espaço a um e a outro dos procedimentos. Ficamos com este terceiro modo. Qualquer seja o modo do método, o que importa como objetivo principal é o desenvolvimento sistemático do tema, com vista portanto a conclusões sobre a filosofia da religião em si mesma.

ART. 1-o. O DEUS DOS PRÉ-SOCRÁTICOS.7270y198.

199. A filosofia da religião começou vagamente já com os primeiros filósofos, os pré-socráticos, distribuídos em Escola Jônica, Escola Eleática, Escola Pitagórica (vd 0335y000, Como pensavam os primeiros filósofos). Hoje não restam senão fragmentos dos livros dos filósofos pré-socráticos, que vão desde o primeiro, Tales de Mileto, (c. 624-548 a.C.) até os tempos adentrados de Sócrates (469-399 a.C.). Mas estes fragmentos e referências sobre os primeiros filósofos, encontrados nos textos dos filósofos seguintes, como em Platão, Aristóteles e outros grandes autores antigos, são o bastante para aferir a elevação de conceitos filosóficos a que chegaram os pré-socráticos, ao rejeitarem a mitologia da época. Ao haverem passado a tratar das coisas objetivamente, destacaram que as causas são efetivas e não mágicas. Uma intercausação ocorre por toda a parte e que é possível determinar pela observação e pela especulação. A evolução da ciência e filosofia ganhou espaço ao se desenvolver a tecnologia da navegação e o consequente contato dos gregos com o Egito e logo também com os fenícios. Depois que os persas tomavam Babilônia e ao Egito, bem como aos gregos, em 548 a.C., a Jônia, possibilitou-se o geral deslocamento dos viajantes, inclusive dos sábios gregos por todo o Oriente Médio, com a consequente prosperidade do saber. Já em 585 a. C. Tales de Mileto predissera um eclipse do Sol. As circunstâncias de um novo mundo a se formar, haveriam também de influencia o desenvolvimento do lado filosófico da religião.

a). Os primeiros pré-socráticos foram os da Escola Jônica, redividida em Escola Jônica Antiga (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles, Anaxágoras). Os antigos jônios se ocuparam apenas do elemento primordial da constituição de todas as coisas, sem muito se preocuparem com as causas das transformações:

- para Tales o elemento primitivo era a água, que disse ser divina, - para Anaximandro era o indefinido, - para Anaxímenes era o ar.

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Os da Escola Jônica Nova desenvolveram o problema das causas que operam as transformações no elemento primitivo; estas causas já não seriam de índole teológica, à maneira como o mundo era explicado pelos mitos. Heráclito de Éfeso, - diante da mobilidade de todas as coisas, - denominou fogo ao elemento primitivo, e este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou ao Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele antropomorficamente guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias o transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. Afirmando enfaticamente que tudo flui e nada permanece, antecipou um dado importante da ciência e da filosofia dos modernos. A preocupação com a causa da mudança é também um elemento novo, pelo qual a escola jônica nova se distingue da anterior escola jônica antiga (Tales, Anaximandro, Anaxímenes), que cuidaram quase só dos elementos estruturais. O mobilismo de Heráclito terá também na sua oposição o imobilismo da escola eleática e a imutabilidade dos átomos da escola atomista, bem como dos números arquétipos dos pitagóricos. O fogo, e o logos que o dinamiza e ordena, oferece uma visão monista e hilozoísta do mundo. Tudo é vivo e se move com inteligência, de onde a ordem do universo. "Bem dizia Heráclito:

Homens são deuses e deuses são homens, porque o Lógos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6).

Diferentemente, Empédocles de Agrigento, que admitia 4 elementos (fogo, ar, água e terra), denominava as duas forças internas e contrárias de amor e ódio. Finalmente Anaxágoras de Colófon, o último dos grandes jônios e que foi para Atenas, onde foi o filósofo do século de Péricles, renunciou ao dualismo dos contrários, e estabeleceu uma multiplicidade de partículas semelhantes (as homeomerias), as quais seriam movimentadas e ordenadas por uma delas, considerada inteligente, por isso denominada Nous, ou Logos. A partir deste ser, desenvolveu a idéia de um Deus exterior ao mundo. Não restou clareza sobre como Anaxágoras entendia o Nous. Ele é uma coisa entre as outras coisas e não exatamente um Deus. De qualquer maneira é uma preocupação com a causa, cuja índole seria atuante e, de certo modo, inteligente. Dali se encaminhava o assunto para a discussão da existência de um Deus, concebido ao modo filosófico. Repudiou Anaxágoras a mitologia, mas de outra parte abriu a discussão metafísica da divindade, concebida a partir do conceito de causa. Aristóteles, que admitirá um Deus como causa externa e inteligente do mundo, elogiará por isso a Anaxágoras.

b) Mais racionalistas foram as escolas pré-socráticas do Ocidente. O racionalismo dos eleatas foi monista. O racionalismo dos pitagóricos foi claramente dualista, quer no plano metafísico, quer no plano da natureza distinguindo radicalmente entre matéria e espírito. Neste particular estiveram sob a influência externa do zoroastrismo (vd 122) e do orfismo (vd 129). Tiveram prosperidade, com grande influência, sobretudo sob a forma de neopitagorismo (vd 251).

200. A filosofia da religião nasceu monista. Foi o monismo a tendência dos primeiros filósofos pré-socráticos, notadamente dos jônios e dos eleatas, com exceção dos pitagóricos, que eram dualistas. Os pré-socráticos monistas fizeram da matéria a totalidade do ser, dotada, todavia, de vida e inteligência. Outros foram mais metafísicos, como os monistas da Escola Eleática (Parmênides). Todos são concordes na eliminação da fantasia mitológica, a qual agora empresta apenas imagens ao pensamento. Na verdade, se todas as coisas derivam de transformação de um, ou de poucos elementos básicos, o caminho para a unidade absoluta se encontra aberto. Uns ingressaram apenas nele, outros seguiram mais longe. Tales considerou a água, como sendo o possível elemento inicial. Nesta condição para ele a água, como chamou ao primeiro elemento, é divina; eis onde encaminhou vagamente uma primeira filosofia da religião. Substituiu portanto Tales o caos mítico por um elemento mais objetivo e capaz mesmo de constatação. A partir deste elemento tudo se gera, mas segundo causas físicas e não mágicas. Anaximandro de Mileto pôs como elemento básico o indefinido, ou infinito (no grego ápeiron), capaz de receber formas. Do ápeiron, acrescido das determinações variadas, resultam as águas, as pedras, o ar, as nuvens, etc. Ao indefinido tudo pode retornar. Não descreveu o ápeiron como um caos desordenado e sim como uma parte do todo.

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Anaxímenes de Mileto, - encerrando a Escola Jônica Antiga, - propôs quatro elementos primigênios: água, ar, terra e fogo. Segue a Escola Jônica Nova, com Heráclito de Éfeso, que propôs o fogo como elemento primordial, a partir dele tudo explicando, inclusive o Logos. Anaxágoras de Colófon, da mesma Escola ainda, ergueu a noção das homeomerias em número infinito, dentre as quais uma era a inteligência, com as características divinas, porque tudo ordena. Os monistas da escola de Eléia, - Xenófanes, Parmênides, Zenão, - consideraram que só há um único ser, eterno e imutável, percebido pela inteligência. As variações resultam de uma visão defeituosa dos sentidos. Dentro da conceituação monista dos pré-socráticos não encontrou obstáculo a idéia do surgimento da vida. Todo o ente já é vivo, como qualidade geral do elemento fundamental. Ergueram os pré-socráticos também a idéia da evolução animal do homem. Pelo visto, a mundivisão dos pré-socráticos é uma revolução no pensamento humano. Nascia a filosofia da religião em conflito com as religiões tradicionais. O monismo pré-socrático, negador dos deuses mitológicos, - não obstante representa uma considerável melhoria conceitual, - trouxe dificuldades aos filósofos, porque agredidos pelas velhas maneiras de ver dos religiosos. Anaxágoras de Colófon sofreu perseguições. A seguir acontecerá o mesmo com Sócrates. Finalmente declinava o prestígio das religiões tradicionais e os filósofos entrarão a expor suas doutrinas com menos dificuldade, ainda que não generalizadamente aceitos.

201. Quando nasceu o conceito de um Deus como causa externa? Apesar do monismo pré-socrático, geralmente materialista, será a partir dele, que surgirá paulatinamente o conceito de um Deus, como causa externa do mundo. A idéia filosófica sobre Deus, - como ente ao lado ou acima do mundo, mas sem se confundir com os deuses mitológicos surgidos do caos, - principiou com as razões filosóficas que apelam à causa eficiente do mundo (sobretudo para operar o movimento e estabelecer a ordem das coisas). Os pré-socráticos conceberam as causas como intrínsecas ao mundo, e por isso não reclamavam um ser exterior para estabelecer a ordem e o movimento. E por isso eram monistas, e somente neste plano falavam do divino. A crescente preocupação com as causas gerou finalmente a filosofia da divindade, ainda que em termos de monismo. Embora os pré-socráticos não chegassem a idéia de um Deus transcendente, pertence já a eles a ocupação com o divino nas causas. Os primeiros pré-socráticos, como já se adiantou, foram os da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica Antiga (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles, Anaxágoras). Os antigos jônios se ocuparam apenas do elemento primordial da constituição de todas as coisas, sem muito se preocuparem com as causas das transformações:

- para Tales o elemento primitivo era a água, que disse ser divina, - para Anaximandro era o indefinido, - para Anaxímenes era o ar.

Os da Escola Jônica Nova desenvolveram o problema das causas que operam as transformações no elemento primitivo; estas causas já não seriam de índole teológica, à maneira como o mundo era explicado pelos mitos. Heráclito admitia dois princípios contrários a operar e que ele denominava antropomorficamente de guerra e paz. Supondo que o elemento primordial fosse o fogo, estas duas forças contrárias o transformavam, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Diferentemente, Empédocles, que admitia 4 elementos (fogo, ar, água e terra), denominava as duas forças contrária de amor e ódio. Finalmente Anaxágoras de Colófon, o último dos grandes jônios e que foi para Atenas, onde foi o filósofo do século de Péricles, renunciou ao dualismo dos contrários, e estabeleceu uma multiplicidade de partículas semelhantes (as homeomerias), as quais seriam movimentadas e ordenadas por uma delas, considerada inteligente, por isso denominada Nous, ou Logos. A partir deste ser, desenvolveu a idéia de um Deus exterior ao mundo. Não restou clareza sobre como Anaxágoras entendia o Nous. Ele é uma coisa entre as outras coisas e não exatamente um Deus. De qualquer maneira é uma preocupação com a causa, cuja índole seria atuante e, de certo modo, inteligente. Dali se encaminhava o assunto para a discussão da existência de um Deus, concebido ao modo filosófico. Repudiou Anaxágoras a mitologia, mas de outra parte abriu a discussão metafísica da divindade, concebida a partir do conceito de causa.

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Aristóteles, que admitirá um Deus como causa externa e inteligente do mundo, elogiará por isso a Anaxágoras. Mais racionalistas foram as escolas pré-socráticas do Ocidente. O racionalismo dos eleatas foi monista e o dos pitagóricos foi claramente dualista. Estes, os pitagóricos, distinguiram radicalmente entre matéria e espírito. Neste particular estiveram sob a influência externa do zoroastrismo (vd 122) e do orfismo (vd 129). Tiveram prosperidade, com grande influência, sobretudo sob a forma de neopitagorismo (vd 251).

202. A propósito ainda do divino na filosofia monista de Tales. Como já se adiantou, o questionamento que dominou a filosofia pré-socrática foi, - qual seria o primeiro elemento, a partir do qual se comporiam e decomporiam as demais coisas. Havendo Tales de Mileto proposto, que este princípio seria a água, - deu abertura a um questionamento de difícil solução, dada a precariedade dos recursos de observação do seu tempo, e que ainda hoje não são suficientes. Dali porque logo houve contrapropostas, que estimularam o debate filosófico e científico. "Sobre o número e a forma desses princípios nem todos têm a mesma opinião. Tales, que deu início a semelhante filosofar, afirma que o princípio é a água..." (Aristóteles, Metaf., I, 3. 983b 19). Repete-se, ao longo de toda a história da filosofia grega, a informação inicial sobre a escolha da água, feita por Tales, em muitos outros autores. Inclusive o cristão Hipólito de Roma (c. 170-235), ao se propor refutar os hereges, e havendo começado pelos filósofos, advertiu sobre água proposta por Tales: "Diz-se que Tales de Mileto, um dos 7 sábios , foi o primeiro, que estudou a natureza. Ele disse, que a água é o começo e o fim de tudo. Dela, por composição, fazem-se todos os seres, e inversamente quando eles se desfazem, todos voltam a ela" (Hipólito, Refutações, I 1,1). As razões que levaram a Tales a estabelecer a água como princípio de todas as coisas podem ser examinadas sob vários enfoques, desde o apoio dos mitos, passando pelas preocupações científicas nascentes da época, até as tentativas de provas objetivamente examinadas. Daqui para a frente, para a investigação da história da filosofia, o que importa nas informações doxográficas, não é mais o informe sobre a água, e sim sobre as razões que conduziram este questionamento.

a) A sugestão dos mitos. No sentido de eleger a água como elemento primordial, contribuiu certamente a literatura mítica, a qual não deixou de ser citada pelos comentaristas posteriores. Ainda que não por argumentos racionais, a água exerce significativa função nas cosmogonias míticas. Por isso, a hipótese de Tales teve facilidade de aceitação, ainda que a tenha levando com base em observações objetivas.

Homero disse: "Pois nós somos apenas água e terra" (Ilíada VII 99).

Platão repetiu a informação sobre a hipótese da água primitiva: "Homero fala de Oceano, origem dos Deus e de sua mãe Tétis. Hesíodo também, assim o creio. E assim também falou Orfeu: Oceano das belas ondas foi o primeiro a contratar núpcias, e desposou Tétis, sua irmã, nascida da mesma mãe" (Crátilo, 402 b-c).

O texto citado por Platão se encontra em Ilíada, XIV, 201; de Hesíodo em Teogonia 337; de Orfeu, no Fragmento 2 (H. Diels). Principalmente as cosmogonias órficas, ou por elas influenciadas, mencionam a água, presentes nas imagens de Oceano e Tétis.

Advertiu Aristóteles sobre o apoio dos mitos à hipótese de Tales sobre a água como elemento primordial, mencionando as cosmogonias míticas: "Segundo alguns, também os antigos, aqueles que muito antes de nós viveram e que primeiro discorreram a cerca dos deuses, da mesma maneira consideravam a natureza, pois fizeram do Oceano e de Tétis os autores de toda a geração, e da água a testemunha do juramento dos próprios deuses, aquela água que os poetas denominaram Estige. Com efeito, o mais venerando é o mais antigo, e aquilo por que se jura, o mais venerando. Discutível será que tal seja efetivamente a mais antiga crença a cerca da natureza; porém, ao que se diz, essa foi a doutrina de Tales sobre a primeira causa" (Arist., Metaf., I 3. 983b 27 - 984a 2).

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Ainda que os gregos fossem indo-europeus, a primitiva importância da água na formação geral das coisas parece assimilada remotamente dos mitos mesopotâmicos e egípcios (vd 177).

b) A água na ciência da antiguidade. Mas é preciso nos advertir que a ciência do tempo de Tales se preocupava por diversas razões com a água. Os exemplos sobre o caráter aquoso de tudo poderá ter sido um saber vindo da medicina, que nos prístinos tempos da Grécia principia a dar seus primeiros passos. Mas não surpreende que Tales também se apóie em exemplos tomados à meteorologia e aos fenômenos da natureza em geral, como aqueles das inundações do rio Nilo. Por causa de seu geral interesse pela natureza, Tales, - conforme já advertido, - estudou no Egito, não somente matemática, mas também a causa das inundações do Rio Nilo. A água, de que falou Tales, deve ser compreendida como elemento comum de que tudo se faz. Não se pode compreender a afirmativa de Tales apenas no moderno sentido de água como um elemento composto de oxigênio e hidrogênio. Na hipótese de Tales, o que importava em primeiro plano era dizer, que devia haver um elemento de base, a partir do qual tudo se faria. Neste sentido geral de sua hipótese, nada mudaria essencialmente se outro, que não a água, fosse este primeiro elemento. Os seres não seriam cada um novo elemento específico. As transformações não se fariam pelo aparecimento de uns seres e desaparecimento de outros. Tudo é fundamentalmente constante. Nada se faz em termos absolutos, nem desaparece em absoluto. Nada se cria, e nada morre, tudo se transforma, como que em ciclos. Eis uma mundivisão totalmente distinta da explicações míticas. De acordo com esta concepção o homem, os animais, os montes, os mares, os astros não resultaram de uma vontade divina presente em cada fenômeno, mas da interna transformação das condições da matéria. Tales também quer, como depois se darão os detalhes, que um só é o elemento básico de tudo, inclusive do mundo psíquico e divino (vd 209). Eis o monismo filosófico, que vê a unidade de todo o ente. Errado ou certo, raciocinou Tales com método, com análises e sínteses. Ele já não é como o simplista, incapaz de raciocinar sistematicamente. O que pode acontecer, é que venham outros filósofos e aperfeiçoem o seu pensamento. Aristóteles, dois séculos depois, e Simplício, já um milênio após, comentam sobre o elemento água proposto por Tales Quando Aristóteles tratou introdutoriamente o ser, do ponto de vista das 4 causas, - material e formal, eficiente e final, - fez primeiramente a história da questão, e foi quando se referiu à Tales de Mileto. O texto de Aristóteles, como depois o de Simplício, já contém tudo o que resta conhecidos sobre a cosmologia de Tales. A tradição, resultante das informações vindas através de Teofrasto, já vinham de um pouco mais longe. Já eram do conhecimento de Aristóteles (384-322 a.C.), que foi mestre de Teofrasto (372-285 a.C.). Temos portanto só a interpretação de Aristóteles sobre o efetivo significado, que a água tem na teoria de Tales. No entendimento de Aristóteles, a referida água permanece sempre água em todos os momentos das transformações dadas. Não acontece uma transformação do elemento em si mesmo. Dá-se apenas uma nova maneira de mistura. Possivelmente pela maior e menor densidade. Não é isto que entendem os velhos mitos, de acordo com os quais a antiga água se transforma em novos seres. Entretanto, Aristóteles, como pouco antes dele Anaximandro (vd 231) ensaiou uma teoria intermediária. Segunda esta teoria, algo se conserva, - chamada matéria, - e algo se transforma, chamada forma. Agora a matéria é definida como realidade sem forma, e que sempre requer uma forma para subsistir. Também Simplício (6-o. séc.) acreditou, que Tales compreendeu a água como elemento em tudo subsistente. Comentou que a água de Tales tudo gera, como o ar para Anaxímenes, por adensamento (Simplício, Física, 458, 23). Mas este modo de pensar de Simplício não é nada mais que uma interpretação do que Aristóteles já houvera dito. Não temos uma informação clara. Normalmente, contudo, temos de aceitar a interpretação dada por Aristóteles e Simplício, mas conscientemente e prudentemente. O texto de Aristóteles é longo, e pode ser citado por partes, com vistas aos diferentes pontos que sucessivamente são considerados. "Dos primeiros filósofos, a maioria considerava como únicos princípios de todas as coisas somente princípios de natureza material. Pois do que todos os entes perecem, nascem e no que todos eles perecem, persistindo a substância sob as várias determinações (acidentais) esse é o elemento e princípio primordial (arqué). Daí o acreditarem que nada se gera e nada se corrompe e que a mesma substância permanece. Assim, não se diz que Sócrates é gerado em sentido absoluto, quando ele se torna belo ou um músico. Nem que ele pereceu, quando ele deixou tais formas, porquanto o substrato permanece, isto é, Sócrates mesmo. É deste modo, que os filósofos, dos quais tratamos, asseveram que nenhuma das outras coisas, nem nasce, e nem morre, porque

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deve haver ali uma qualquer realidade, seja uma, ou seja múltipla, a partir do que todo o resto é engendrado, mas que ela mesma é conservada" (Metaf., I,3. 983b 6-18).

c). Detalhes sobre a prova de Tales em favor da água, como elemento básico de tudo, é o de sua maior presença. Não tinham todavia os antigos recursos técnicos para constatação mais exaustiva de suas hipóteses, como se passou a ter no futuro. Podiam estar entretanto no caminho certo. O que Tales entendia exatamente pela água, a qual pensou ser divina? E como é que ela se transformava? Parece que a advertência era para o caráter líquido da água, o que parecia provocar sua onipresença. E por isso, as informações doxográficas antigas usam, ora o termo água (à*TD), ora úmido (ß(D`<). Quanto ao modo de se transformar a água não chegaram detalhes até nós, se, por exemplo, pelo processo alternativo de condensação e dilatação. Sobre estes modos de transformação tratam mais vastamente os filósofos seguintes; ao menos se sabe mais sobre o que disseram. Mas teve Tales como firme, que a água se move por movimento próprio e contínuo, sem que algo de diferente a ela a movesse, ao modo por exemplo de um Demiurgo, ou outro qualquer ser mítico.

Comentou Aristóteles, em texto parte já citado: "Sobre o número e a forma desses princípios nem todos têm a mesma opinião. Tales, que deu início a semelhante filosofar, afirma que o princípio é a água (assim declarava ele que a terra flutua na água), crença a que teria sido levado pela observação de que tudo se nutre do (elemento) úmido e que o próprio calor dele provém e nele vive (ora aquilo de que tudo provém, é o princípio de tudo). Eis o fundamento de tal opinião. E depois, também porque a água é o princípio natural de tudo quanto é úmido. Tal é a observação, em virtude da qual adotaram esta maneira de ver; e também este outro fato, o de que as sementes de todas as coisas têm uma natureza úmida, e que a água é a origem da natureza das coisas úmidas " (Metaf., I, 3. 983b 19-26). Um século depois, Hipon de Samos (vd) retomou à hipótese de Tales sobre a água. Mas o epígono de Tales, talvez um médico, não era um filósofo vigoroso, como já o advertiu Aristóteles: "Com referência à Hipon, ninguém parece situá-lo entre os filósofos, por causa do pouco valor do seu pensamento" (Metaf., I, 3. 984a 4). "Entre os filósofos de pensamento superficial, alguns asseveraram, que a alma é água, por exemplo Hípon. Esta convicção se apóia talvez sobre o fato, que os espermas de todos os animais são molhados, úmidos. Hipon contesta aqueles, que dizem [como Empédocles], que a alma é sangue, porque o esperma não é sangue, e que ele é a alma primitiva" (Aristóteles, Da alma, I 2. 405b 2). (Vd Alexandre de Afrodisio 27, 2; Asclépio 25, 16). Comentário de Simplício: "Entre os que afirmam, que existe só um princípio e em movimento, ele [Aristóteles] os denomina acertadamente físicos [naturalistas]. Um o considera finito, como Tales de Mileto, filho de Exâmio, e Hípon. Induzidos pelas aparências sensíveis, asseveram que a água é o princípio. Pois o quente vive da umidade, as coisas mortas secam. Todos os germes são úmidos e os alimentos estão repletos de suco; e é natural que todas as coisas se alimentem do mesmo [elemento] de que provêm. Mas a água é o princípio da umidade e o sustento de tudo. Por isso concluíram que a água é o princípio e declararam que a terra assenta na água" (Simplício, Física, 23, 21-29). "Tales advertiu sobre o aspecto generativo, nutritivo, congregante, vivificante da água" (Simplício, Física, 36, 10-11).

d). Depois de Tales a hipótese da água como elemento de base não ficou de todo esquecida e inspirou novas filosofias de igual fundo monístico. Empédocles, ao conceber um sistema de 4 elementos fundamentais, a arrolou entre os mesmos, - ar, fogo, terra e água. E este sistema de Empédocles foi aceito por Aristóteles, advertindo contudo que a filosofia também devia dedicar-se às demais espécies de causa, pois eram ao todo quatro: material e formal, eficiente e final. Assim, no entender de Aristóteles, os elementos, ainda que básicos, são compostos de dois princípios intrínsecos, - matéria e forma, - teoria que veio a ser conhecida como hilemorfismo. Além disto, citado por Aristóteles, Hípon (vd) opinara que a alma é água. Não fora, portanto esquecida de todo a hipótese de Tales, de que este elemento se encontra na base de tudo. Por causa deste não esquecimento da água como elemento primordial, o mesmo Tales não foi esquecido. Por não haver restado texto escrito algum, as versões sobre a hipótese da água como elemento primordial se transmitiram através dos seus sucessores imediatos, eternizando-se nas referências dos primeiros que passaram a escrever. Em Heráclito o Homérico (1-o. séc.), que interpreta alegoricamente os mitos, com evidente influência estóica, se lê:

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"As substâncias úmidas da natureza, ainda que facilmente formadas de qualquer coisa, se transformam com frequência : aquela parte, que evapora, fica ar, e a parte mais pura se faz éter; a água é comprimida e transformada em limo, até que se faça terra. Assim Tales asseverou, que a água é o mais antigo elemento entre os quatro, como se fosse causa" (Heráclito o Homérico, Problemas homéricos, 22).

e). Materialismo monístico de Tales. A matéria é, segundo Tales, a única realidade de que tudo consiste. Evidentemente, a tese supõe que a matéria tudo contém e que não é o pouco que dela se sabe. A tendência da filosofia pré-socrática foi o monismo metafísico, desde seu início, e este monismo, sobretudo para os filósofos jônicos, é materialista. Aristóteles, ainda que não defendesse um dualismo radical como o de Platão e do orfismo em geral, se manifestou contra este monismo. Elogiou por isso Aristóteles a Anaxágoras de Clasomene, da escola jônica nova, por haver introduzido este, entre as homeomerias uma Inteligência (; @ Ø H ), ordenadora de tudo. Mas, como já se advertiu, para os filósofos pré-socráticos, a matéria não está dotada apenas de forças mecânicas (conforme o materialismo mecanicista), mas também de funções psíquicas, e mesmo divinas. O problema estava, como definir a matéria, problema este que ainda hoje resta uma incógnita. A matéria não consiste apenas de partículas, como quer o atomismo de visão superficial, porquanto também se revela como um campo de forças. Além do monismo ou dualismo no plano metafísico, ocorre a mesma questão no plano da natureza, - a de se saber se o corpo e o espírito são duas substâncias irredutíveis (dualismo), ou se são manifestações de uma só (monismo, ou reducionismo, ou materialismo espiritualista). Para os filósofos pré-socráticos das escolas jônicas (antiga e nova) corpo e espírito não são irredutíveis. Tales concebeu toda a matéria como tendo a função da vida. Este hilozoísmo e pansiquismo não resulta da convivência dualista de vida e espírito com a matéria, e sim na universalidade da presença da vida e do espírito como elemento intrínseco à mesma matéria. Não se consegue determinar qual foi a exata opinião deste ou daquele filósofo antigo, por falta de informações doxográficas. E então importa apelar ao contexto genérico da escola a que pertenceu o filósofo. Eis quando a advertência ajuda a firmar um conceito mais preciso do sistema de um filósofo. Então o que importa atender, é que a filosofia das escolas jônicas tendia para o monismo, quer no plano metafísico, quer no plano da natureza.

Sobre o materialismo monista de Tales informou Diógenes Laércio: "Aristóteles e Hípias asseveram, que Tales atribui alma aos seres não animados, por causa das observações no magnete e no âmbar" (D. L., I, 24). "Ele assevera mais, que o mundo é vivo e cheio de Deuses" (D. L., I, 27). "Alguns [filósofos] asseveram, que a alma está misturada em todo o universo; possivelmente por isso Tales tenha pensado que tudo está cheio de deuses (BV<J" 1,ä< ,É<"4)" (Aristóteles, Da alma I, 5. 411a 8). Aqui Deus está entendido evidentemente como alma, e esta por sua vez como elemento intrínseco da natureza e não apenas como um piloto no navio, ao modo do dualismo. Platão também menciona a frase "tudo cheio de Deuses" (Leis, X, 899 b), sem indicar o nome de Tales, o qual contudo parece ser o autor citado, de acordo com o contexto. Esta menção de Platão prova ao menos, que a informação de Aristóteles é sobre tema conhecido, e que a frase não resultou de uma interpretação errada. Ante o conteúdo dos textos, não se pode decidir taxativamente, - se toda a matéria é por si mesma animada, ainda que este seja o contexto mais óbvio no contexto da filosofia da escola jônica, - ou se apenas algumas matérias têm alma e movem as demais matérias. Em ambas as hipóteses se admite dizer pelo menos o seguinte:

1. o mundo, num sentido monista, é vivo (pleno de deuses); 2. que as almas, ou demônios, são força de coordenação; 3. que a vida é movimento por si mesmo.

f). Sobre as aproximações do monismo de Tales com o do estoicismo (vd 232). O monismo de Tales não é exatamente aquele do estoicismo. Mas os estóicos, ao apresentarem a Tales com a linguagem estoicista, deram esta impressão, principalmente no que se refere ao principio ordenador de tudo.

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Fundamentalmente o estoicismo é monista, mas entendendo a realidade ao modo aristotélico, como matéria e forma, e em que a forma é inteligente e portanto ordenadora do todo. Importa acautelar-nos, portanto, contra o fato, de algumas informações sobre Tales, quando feitas por Aécio, Cícero, Simplício, e outros. Elas podem estar sob a influência do Deus monista dos estóicos. Estes concebiam a Deus como inteligente forma da matéria, e por conseguinte como ordenador. Certamente há uma analogia entre a conceituação monista do estoicismo e o monismo de Tales, quando este incluiu a vida em toda a matéria. Mas não se exagere a aproximação, transpondo a linguagem do contexto de um sistema para o contexto do de outro. As vezes Simplício destaca a infinitude da água de Tales: "Alguns, na suposição de que o elemento seja apenas um, disseram que ele é infinito em grandeza, como é a água para Tales" (Simplício, Física, 458, 23-25). O mesmo Simplício informa o contrário sobre a infinitude da água de Tales em outro lugar (Física, 23, 23): "Tales disse, que Deus é a mente do mundo, e que o todo contém alma e é pleno de seres divinos (* " \ 4 : @ < \ T < B 8 Z D 0 ); que através do elemento úmido passa a potência divina, que a move" (Aécio I 7, 11). "Tales de Mileto, que pela primeira vez formulou perguntas sobre tais temas, disse, que a água é o começo dos seres e que Deus é esta mente que fez da água tudo" (Cícero, Sobre a natureza dos deuses I 10, 25). O mesmo repete Plínio (História da natureza, II 53) e Sêneca (Temas naturais, III 14). "Atribuem-se a ele [Tales] as seguintes máximas:

Deus é o mais antigo dos entes, porque ele é por si mesmo. O mundo é isto, que de mais belo existe, porque ele é a obra de Deus. O espaço é aquilo, que de maior existe, porque ele contém tudo. A mente é isto, que de mais rápido existe, porque ela corre através de tudo. A necessidade é o que há de mais forte, porque ela tudo rege. O mais sábio é o tempo, porque ele descobre tudo" (D., L., I, 35).

As dúvidas sobre o efetivo materialismo de Tales se devem resolver atendendo ao contexto geral dos materialismos dos filósofos jônicos em geral:

- A matéria é substância, da qual tudo consiste, e à qual todas coisas complexas se reduzem, e ela não é criada e nem é destrutível. - A geração das coisas e sua degeneração obedece à necessidade, isto é, às leis físicas, e não se dá a partir de um destino determinado a partir de fora, como, quer o mito. - A matéria está em movimento constante e em mudança. - A percepção sensível é a origem de todo o outro conhecimento. - A alma é uma força interna da matéria e suas leis são as mesmas da matéria.

Eis como hipoteticamente se pode compreender o materialismo de Tales, quando os informes sobre ele não se oferecem claros. Esta falta de clareza se deve ao fato de se encontrar no começo da tradição materialista monista.

g). A capacidade da alma de mover-se por si mesma, como elemento de sua mesma essência, é a noção que desde sempre se teve da mesma, e que também se encontra em Tales. Aristóteles resume as opiniões de todos os filósofos, sobre esta capacidade de mover atribuída à alma: "Ela é aquilo, que se move e move aos outros" (Sobre a alma, I, 2. 405a 5). Especificamente sobre Tales: "Parece também que Tales, segundo o que se comenta, opinou, que a alma é uma força movente, se é verdade, que ele asseverou que o magnete tem alma, porque ela atrai o ferro" (Arist, Sobre a alma, I 2. 405a 20). O mesmo informará depois Aécio: "Tales foi o primeiro que disse, que a alma é uma natureza sempre em movimento, ou que se move por si mesma" (Aécio, IV, 2, 1). A doutrina, formulando a alma, como auto-movimento, prosperou sobretudo na filosofia pitagórica e platônica. Disse o seguinte o mestre da Academia: "Toda alma é imortal; tudo o que se move por si mesmo é imortal; o que move a outro, e é movido por si mesmo, deixa de existir, quando cessa o movimento" (Platão, Fedro 245 c). Aristóteles indica claramente, que Tales reuniu no mesmo elemento a capacidade de pensar e o poder de se mover. Imediatamente antes ele fizera a exposição sobre Anaxágoras, que admitiu também um elemento inteligente, que ao mesmo tempo move o universo.

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"Ele [Anaxágoras] atribui ao mesmo princípio as duas capacidades, que são o conhecimento e a mobilidade, quando ele diz, que, que isto é a inteligência que move o universo. Parece também, que Tales, de acordo com o que se diz, pensou, que a alma fora movente, se for verdade que ele asseverou, que o magnete tem alma, porque ela atrai o ferro" (Sobre a alma I, 2. 405a 17-19). "Diz-se também, que ele foi o primeiro, que asseverou a imortalidade da alma" (D. L., I, 24). Pelo visto, ao afirmar Tales que há um princípio único a servir de base de tudo, - qualquer seja seu nome, - ele está dotado de todas as propriedades que o tornam suficiente a si mesmo. Com tais doutrinas se encontra na formulação inicial de uma filosofia monista relacionada com a religião, ainda que não seja a religião do dualismo, e nem a religião simplista do vulgo.

ART. 2-o. O DEUS DE SÓCRATES, DE PLATÃO E DE ARISTÓTELES.

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205. Três nomes sempre lembrados em filosofia da religião. O máximo da conceituação religioso-filosófica da antiguidade foi amplamente desenvolvida pelos socráticos, que viveram ao tempo que Atenas esteve no seu esplendor. Em filosofia, seus nomes maiores foram:

Sócrates (469-399 a.C.) (vd 206), Platão (427-347 a.C.) (vd 214), Aristóteles (384-322 a.C.) (vd 221).

Deles se embeberá toda a filosofia da religião no futuro. Ocorreu uma interação entre as filosofias dos três filósofos da Atenas clássica, de sorte a não haver sempre divisor claro entre o que vem de um, e o que outro. Considere-se sobretudo que Sócrates nada escreveu, mas que sua filosofia perdurou nos diálogos de Platão, em que foi mencionado como um dos dialogantes. Por isso, não sabemos exatamente distinguir certas nuances, se elas são do mesmo Sócrates, ou se são efetivamente da pena versátil do discípulo. Seguramente é de Platão o que se refere à doutrina das idéias arquétipas, que por sua vez ele tomou dos números pitagóricos. Mas, o que diz respeito a Deus como causa do universo pertence certamente ao mestre Sócrates (vd 8310y000 A sabedoria no tempo de Sócrates e dos sofistas), até mesmo porque assim já então era atribuído a ele por Xenofonte (autor de Ditos memoráveis de Sócrates).

I – A TEOLOGIA DE SÓCRATES.7072y206.

207. Estabeleceu Sócrates resolutamente a existência de Deus, cuidou ainda de determinar alguns aspectos de sua natureza, mas não sem alguma reserva, pois olhava este assunto com certa indiferença como qualquer outro referente ao mundo, pois nem Deus e nem o mundo diziam respeito à pessoa humana. Não achava possível poder conhecer nem mesmo suficiente a si mesmo. A teologia o interessou apenas enquanto dizia respeito à pessoa humana. Esta indiferença tornou-se explícita com referência à mitologia. É o que se infere diálogo seguinte:

"Fedro – Dize-me uma coisa, caro Sócrates: não afirma o povo eu um destes lugares, á margem do Ilissa, Bóreas raptou Orítia? Ou foi na colina de Ares e não aqui que Orítia foi raptada." Sócrates: - Não foi aqui, mas certa de três ou quatro estádios mais abaixo, onde atravessamos o regato em direção ao templo de Agra. Há naquele lugar um altar a Bóreas. Fedro: Não prestei muita atenção. Mas por Zeus caro Sócrates, dize-me uma coisa: acredita que esse mito corresponde à verdade? Sócrates: se eu fosse, como os homens doutos, um incrédulos, não seria um homem extravagante, um desses sujeitos que procuram os atalhos ainda não batidos. Se fosse da opinião deles diria, fazendo deduções muito doutas, o

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seguinte:

O sopro de Bóreas arremessou-a das rochas que existem perto daqui, quando ela brincava com Farmacéia; em conseqüência disso Orítia morreu, e o contou que ela fora raptada por Bóreas. Ou talvez isso se tenha passado no Areópago, pois também se diz que ela ali foi raptada, e não daqui. Eu, caro Fedro, acho tudo isso muito bonito, mas é trabalho para um homem de grande inteligência, a quem o esforço não intimida, e aí encontramos a felicidade. Além disso, será necessário interpretar a seguir a figura dos Hipocentauros, a Quimera, e finalmente uma multidão de Górgonas e de Pégasos, um número pasmoso de outra criaturas inexplicáveis e lendárias. Se, por incredulidade, se procura dar verossimilhança e esses seres, usando para isso de uma curiosa e grosseira sabedoria, perde-se nisso o tempo e não podemos apreciar a vida como convém. O meu lazer não o destino e essas explicações e eis a razão da minha atitude: ainda não cheguei a ser capaz como recomenda a inscrição délfica de conhecer a mim próprio. Parece-me ridículo, pois não possuindo eu ainda esse conhecimento, que me ponha a examinar coisas que não me dizem respeito. Não me interessam essas fábulas e conformo-me, sentido, com a tradição. Não são as fábulas que investigo; - é a mim mesmo. Talvez eu seja um animal muito extravagante e cheio de orgulho que Tífon (que vomita fogo), ou, porventura, um animal mais pacífico, cuja natureza talvez participa de um misterioso e divino destino, mas que não se enche com os fomos do orgulho" (Fedro 229 e 230 c.) Não é, pois, sem reservas que Sócrates abordou as questões da divindade. Mas podemos encontrar considerações desenvolvidas em separado em torno da existência de Deus e de sua natureza.

208. Provas de Sócrates para chegar a Deus. Não se observa ainda em Sócrates um exame de todos os caminhos que, através dos tempos, se tentariam para chegar a Deus. Assim, não adotou a prova a priori (como Santo Anselmo, na Idade Média, e Descartes, depois). Aliás Tomás de Aquino e Kant investiam diretamente contra uma tal prova. Dentre as provas a posteriori, costuma-se dar atenção a ordem em cinco vias (a primeira pelo movimento, a segunda pela causa eficiente, a terceira pela contingência, a quarta pelos graus de perfeição, a quinta pelo governo das coisas). Desenvolveu Sócrates particularmente a mencionada quinta via, (ou seja, o argumento teleológico), e muito rudimentarmente a segunda via (ou seja, a prova pela causa eficiente) sugerindo a existência de Deus como autor da inteligência humana e da lei natural. Verifica a história como surgem cá e lá as provas filosóficas da existência de Deus, dos quais os primeiros começam com Sócrates.

209. O argumento teológico de Sócrates vem exposto principalmente nas referências deixadas por Xenofonte (Ditos memoráveis de Sócrates, I, n. 36; IV 8) e também no Fedon (97). Formulou-se em resumo, assim: Há ordem admirável no homem e no universo, onde nada se movimenta ao azar; Ora, somente uma inteligência soberana pode explicar esta ordem; Logo, todo o cosmos exige uma inteligência soberana, um Demiurgo que o demiurgo que disponha nesta ordem admirável. Não penetra ainda Sócrates com toda a profundidade metafísica a questão da finalidade, nem suas implicâncias e limitações. Mas já percebe suficientemente que as forças mecânicas por si não explicam o finalismo imanente que, segundo ele, ocorre no mundo adverte que o mundo é bem ordenado estando pois a exigir uma explicação externa. Este argumento encontra-se não só na dependência do princípio da finalidade, que é o universal em que se baseia a dedução, mas também a existência de um fato, em que a finalidade segundo ele, se verifica. Do princípio universal e mais o fato, constitui-se as duas premissas, cuja conclusão é a existência de uma causa externa, Deus.

210. O argumento da existência de Deus baseado na causa eficiente se esboça na explicação dada à origem da inteligência humana. Considera Sócrates sem dificuldade o fato pelo qual o corpo humano se forme do grande corpo do universo; ambos se apresentam matérias, estão sujeitos ao mesmo mecanismo.

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Entretanto, não se parece explicável que a inteligência possa brotar de um ser sem inteligência. Não poderia este cosmos sem inteligência ser o Demiurgo daquela parte da realidade superior ao próprio cosmos material. E assim, a inteligência humana seria criada, ou pelo menos emanaria, de uma outra inteligência superior; ou então, - a nossa participa da alma do universo. Aqui o pensamento de Sócrates não é de todos claro, e tende mesmo a tornar a alma imanente ao mundo, com certa afinidade ao pensamento de Anaxágoras. Mas no fundo não deixa de representar um primeiro esboço do argumento baseado na causa eficiente (2a via de Tomás de Aquino).

211. Sócrates e a natureza de Deus. Na filosofia de Sócrates, a natureza de Deus é, antes de tudo, especial, isto é, não inclui matéria. É espiritual por causa de sua condição superior. Todavia esta conceituação supõe uma definição previa sobre a matéria, a qual ninguém conhece suficientemente. A falta de clareza sobre Deus como ser superior à matéria também ocorrerá nos filósofos posteriores.

212. Sócrates e os atributos de Deus. Ao tratar da natureza de Deus, Sócrates o declarou único. Apesar disto usou alegoricamente os nomes das divindades múltiplas dos gregos. Este atributo divino o deduziu da unidade do universo. Provado que esta unidade exige um Deus, e ocorrendo que, com um só Deus, tudo estaria explicado, não passou Sócrates a demonstrar a existência de outros deuses mais. Entretanto, sem deixar de conceber o senhor do mundo em termos absolutos, não deixou de criar uma formulação elevada para o politeísmo antigo. Embora fugisse de tratar o assunto, como refere Platão (Fedro 229) reconhecia, uma multidão de outros deuses, concebidos como entidades secundárias e seguidoras do Deus único. Admitia ainda a possibilidade dos mesmos estarem em contato com os homens. Justificava, pois, os dizeres dos oráculos. Afirmou mesmo que pessoalmente era influenciado por um espírito estranho, que denominava "demônio", cuja ação lhe era benéfica, inspirando-o praticar o bem e particularmente inspirando-o nos ensinamentos. Eis a passagem platônica que refere o fenômeno: "Sócrates: Oh! Tu és divino, com os teus discursos, caro Fedro! És verdadeiramente admirável!... Parece-me que agora me provocaste a fazer um segundo discurso. Fedro: O que dizes está longe de me incomodar. Mas como sucedeu isto? Sócrates: caro amigo! Quando quis atravessar o regato, despertou em mim o "Demônio". E manifestou-se o sinal costumeiro. Ele sempre me impede de fazer o que desejo. Pareceu-me ouvir uma voz que vinha cá de dentro e não me permitia ir embora antes de oferecer aos deuses uma expiação, como se houvesse cometido alguma impiedade. Sou adivinho, mas não muito hábil; sou como os que não sabem bem ler e escrever: só faço adivinhações para mim mesmo. Agora vejo com clareza o meu pecado. Meu amigo, a alma tem o dom de profetizar. Já enquanto fazia o discurso senti uma certa perturbação. Para me exprimir como Ibico: tive medo de ganhar honra aos olhos dos homens cometendo um pecado contra os deuses. Mas agora percebo qual é a minha culpa "(Fedro 242 b). Mas Sócrates não crê na divindade de coisas que obviamente se apresentam como simples objetos da mente; Não crê que o Sol e a Lua sejam deuses. Assim o afirma na defesa contra as acusações de piedade que o fizeram ser levado à morte (Apologia 26 d.). Entretanto, muito singularmente se diz de Sócrates, que fez uma prece a Hélio (Deus Sol) ao tempo que participara da expedição contra Potidea (Banquete 220 d.). Ainda outros atributos de Deus são determinados por Sócrates. Dotado de inteligência, Deus é invisível aos sentimentos humanos. Tem a sua vida própria num plano todo diverso e impenetrável. Deus ainda é imenso. "Ele está em toda a parte e estende seus cuidados a todas as partes do universo" (Xenofonte, Ditos memoráveis I,8). No argumento da existência de Deus através do finalismo, embutiu também o atributo de Deus como providente no sentido de compor bem todas as coisas, de modo a nada faltar às necessidades do conjunto, e todas serem feitas do modo mais apto e adequado. Pergunta Sócrates a Aristodemo: "Não lhe parece que aquele que fez os homens desde o início lhes deu órgãos, a fim de que lhe sejam úteis: os olhos para ver os objetos visíveis; as orelhas para ouvir os sons? Para que nos serviriam os odores se não tivéssemos narinas? Que idéia teríamos do que é doce, do que é amargo, do que satisfaz agradavelmente ao paladar, se a língua não tivesse ali para decidir? Não é acaso uma maravilha da providência, que nossos olhos, órgãos delicados, estejam munidos de pálpebras, que se abrem como portas quando deles precisamos, e se fecham durante o sono?

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Que estas pálpebras estejam munidas de cílios, que, à maneira de crivos, os defendem contra o furor dos ventos? Que os sobrecílios se colocam à maneira de telhado por sobre os olhos para impedir que o suor a escorrer de fronte e o estorve? Que os ouvidos recebem todos os sons, sem se encher jamais? Que os dentes dianteiros de todos os animais sejam cortantes e os molares próprios para triturar os alimentos recebidos dos incisivos? Que direi da boca, que, destinada a receber o que excita o apetite do animal, é colocada junto dos lhos e das narinas? E como as dejeções excitam a aversão, não têm elas afastados os seus canais, de maneira a se encontrar distantes dos órgãos mais delicados? Duvidais ainda que estas obras feitas com tanta ordem, sejam produzidas ao asar,(?) ou por uma inteligência? – Percebo bem (concorda Aristodemo) que, as considerações sob este ponto de vista, são reconhecidamente obra dum sábio artista, animado por um terno amor por suas criaturas" (Xenofonte, Ditos memoráveis I,37).

213. Sócrates por fim declara a Deus venerável, e portanto merecedor do reconhecimento de todos os homens. Eis a religião, formalmente considerada. Diz Sócrates belamente: "Reconheci qual é a grandeza do ser supremo, que vê tudo num só olhar, que ouve tudo, que está em toda parte, que leva num só tempo seus cuidados a toda as partes do universo" (Xenofonte, Ditos memoráveis I,38). É de Sócrates, a seguinte oração: "Divino Pan, - e vós outros deuses destas paragens! Dai-me a beleza da alma, a beleza interior, e fazei com que o meu exterior se harmonize com esta beleza espiritual. Que o sábio me pareça sempre rico. Que eu tenha tanta riqueza, quanta um homem sensato possa suportar e empregar" (Fedro 279 b). Não chegou Sócrates a conceber a idéia de um Deus criador; o seu Deus era apenas um Demiurgo, um organizador providente do mundo. Temos, pois, aqui fixado a tendência do monismo grego, peculiar de toda a filosofia pré-socrática.

II – A TEOLOGIA TRINITÁRIA DE PLATÃO:IDÉIAS REAIS, DEMIURGO, MATÉRIA ETERNA.

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215. Uma teologia confusamente trinitária. A natureza de Deus é obscura em Platão e se apresenta na forma de uma trindade de realidades: Idéias reais eternas, Demiurgo ordenador, Matéria eterna. Nesta concepção trina da realidade total, deu Platão à teologia natural novos conceitos, mas sem ainda superar as obscuridades do pensamento antigo neste particular. Dali nascem duas tendências futuras, - a unidade da natureza divina e a trindade das pessoas que a possuem, as quais seriam de algum modo distintas desta natureza, sem todavia multiplicar a esta. A unidade é defendida, ou simplesmente sem a multiplicidade das pessoas, ou com a multiplicidade das pessoas. Mas, a multiplicidade das pessoas se daria sem a multiplicação da natureza, e sim pela maneira de ser possuída, numa processão de posse, em que a primeira pessoa a possui simplesmente, a segunda como recebida da primeira, a terceira como recebida finalmente de ambas. Neste contexto se desenvolverá depois a trindade do neoplatonismo de Plotino (vd 262), como também o da trindade cristã, que Agostinho de Hipona abordará amplamente (vd 276).

216. A natureza divina no sistema filosófico de Platão. É notório que Platão multiplicou as entidades supremas, sem deixar claro como isto afeta a natureza divina. Houve os que viram nesta multiplicação uma fraqueza de síntese a respeito desta natureza. Poderia estar nas próprias idéias eternas, não somente a função de causas exemplares, mas também o poder de se aplicarem à ordem na matéria. Então estaria dispensado o Demiurgo, o qual se identificaria, pois com as próprias idéias eternas. Deus seria, pois, o Demiurgo, tendo dentro si as idéias eternas. Mais ou menos assim conceber dirá Tomas de Aquino (1225-1274), ao insistir no exemplarismo divino como sendo nada mais do Deus enquanto imitável.

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Poderia, portanto Platão, ter reunido as idéias num só ato puro, entendido a este como pensamento puro. Aristóteles, muito mais sintético, passará a entender a Deus como inteligência pura, instalado como ato puro, como motor que move, sem se móvel (vd). Alguns historiadores, como Zeller, tentaram identificar o Demiurgo com a idéia do bem, a mais alta, deixando o resto correr por conta da linguagem antropomórfica de Platão. O demiurgo ficaria reduzido a uma alegoria. Outros identificam ao Demiurgo da trilogia de Platão com a idéia de pensamento (Logos), como seria próprio de Demiurgo. E outros ainda com o conjunto de todas as idéias do mundo inteligível, visto que por vezes o chama de divino. Não resta dúvida que seria este o caminho natural do platonismo. Mas, não podemos perder de vista que o Demiurgo de Platão é efetivamente bem distinguido pelo autor. Por isso o que se imagina melhorar em Platão, já não é um platonismo, e sem um neoplatonismo, ou mesmo um aristotelismo, ou ainda mais, um tomismo. O verdadeiro Platão claramente descreveu a natureza do Demiurgo, como não identificado, nem com a obra (o mundo), nem com o modelo (as idéias eternas). Além disto, o Demiurgo é dado ainda como entidade psicológica isto é, como alma que se move por si mesma.

217. Não há, todavia, nesta trindade platônica, uma processão sucessiva do primeiro para o segundo, e do segundo para o terceiro de um desses princípios na direção do outro, como acontecerá na trindade neoplatônica e na cristã. Neste contexto se manifestam dois argumentos da existência de Deus, - o de causa eficiente (na qualidade de primeiro motor) e o de organizador (como princípio da ordem). Com referência ao argumento do primeiro motor foi tratado a primeira vez em termos específicos, por Platão. Mas importa lembrar que os pré-socráticos já trataram dos princípios dinâmicos (a concórdia e discórdia por Heráclito, o amor e o ódio, por Empédocles, o Nous, por Anaxágoras) e que depois Aristóteles será o principal formulador da doutrina de Deus como Primeiro Motor Imóvel. Com referência ao segundo argumento, o da ordem do mundo (ou finalismo), quer Platão que o ordenamento da matéria, operada pelo Demiurgo, leva em conta as idéias eternas, como arquétipas. Resulta, então, que o finalismo tem então sua fonte em Deus (nas idéias reais e eternas). "Alma real, dirigida por uma inteligência real, que organizou tudo e governa todas as coisas" – eis como se exprimiu Platão, no Timeu. Quanto a este argumento baseado na ordem do mundo e no finalismo (já alegado por Sócrates), Platão o retomou simplesmente, Aristóteles quase não o tratou. Tomás de Aquino o pôs como 5-a. via a conduzir a Deus. Posto por este em último lugar, como que destacou sua fragilidade, apesar de ser o mais brilhante e mais capaz de convencer o homem simples.

218. A idéia arquétipa é um elemento notável na filosofia de Platão. Ela ocorre já no ordenamento do mundo, por obra do Demiurgo tendo para isso um modelo, as idéias reais eternas. Teve Platão como precursora filosofia dos pitagóricos, cujo exemplarismo é o dos números também reais e transcendentes. Mas o pitagorismo ainda não concebe a existência de um Demiurgo utilizado as idéias exemplares. Também Anaxágoras, com seu Nous organizador, é um precursor do exemplarismo platônico. Desenvolveu, pois, aqui Platão a tese da causa exemplar em tudo, desde o fundamento. Neste particular Aristóteles não seguiu ao mestre (vd 222). Mas, retomado o exemplarismo pelos platônicos posteriores, ganhou corpo com o criacionismo de Agostinho, e foi fundido no próprio aristotelismo por Tomás de Aquino. A inteligência das coisas do mundo deriva da inteligibilidade das idéias eternas. Finalmente, Deus é a causa exemplar de tudo, e todas as coisas ficam sendo assim interpretadas como interpretativas de Deus, do qual são pois a manifestação e a glória. O mundo cósmico, como reflexo do mundo divino, é por isso mesmo uma sombra daquele. Como sombra conduz para quem provoca a sombra, o mundo de cá, conduz ao mundo de além.

219. Deus move o mundo. Esclarece Platão que a alma é móvel por si mesma e por isso pode move o corpo. E assim Deus se move por si mesmo e por isso move o mundo. Aristóteles diz com mais exigência que Deus tem a capacidade de móvel, mas ele mesmo é motor em si mesmo imóvel. Não se ocupou Aristóteles em explicar como o motor imóvel podia mover. Nem explicara Platão porque a alma é por si movente, e nem como Deus o seria. Também não se preocupou Aristóteles em explicar a inteligibilidade do ser do sensível; Platão, sim, tentou explicá-lo, alegando que era participação das idéias do além.

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Como explicar a origem do movimento, no sistema de idéias arquétipas de Platão? Não parece que a teoria das idéias reais de Platão venha solucionar o problema do movimento. Pareceria exigir uma idéia do movimento como tal. Encontra-se Platão na mesma trilha pela qual depois seguiria Aristóteles. Procede o movimento da parte da forma e não da potência; ora, as idéias de Platão se afiguram como formas. E não só, elas constituem formas absolutas, eternas, perfeitas na ordem da atualidade. A dependência causal dos seres limitados é discutida por Platão no Timeu (28 a). "Tudo o que está em mutação, o está por ação daquele que o causa... Nada pode, separado daquele que o causa, assumir o devir". Entende Platão que deve haver um primeiro motor que move; mas não cogitou ainda que a natureza deste primeiro motor deva ser a de motor imóvel.

III – PARA ARISTÓTELES:DEUS MOTOR IMÓVEL E ATO PURO.

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222. A noção de Deus na filosofia de Aristóteles (384-322 a. C.) surge como causa suficiente do mundo. Encontra-se consequentemente na dependência de noções metafísicas fundamentais. Muito especialmente lhe ocorreu falar de Deus como causa eficiente e última do movimento. Ocupou-se menos da perspectiva oferecida pelas causas final e formal. Diferentemente, para Platão a perspectiva destacada fora a ligação para Deus através da causa final, que, de certo modo se identifica com a formal. Platão, neste particular mais metafísico que Aristóteles, embora menos preciso, se preocupou antes com a forma, ou seja de Deus como causa exemplar do mundo (vd 218). Aristóteles, mais realista que Platão, explorou particularmente a questão do princípio eficiente do movimento. Não ficou, entretanto, de todo alheio aos outros aspectos. O argumento pela contingência se desenvolverá mais exaustivamente no futuro, com Avicena (980-1037) e os escolásticos medievais, em especial com Tomás de Aquino, coordenador das cinco vias. Importa advertir que o argumento pela via da contingência (vd 485) se alinha no mesmo nível do princípio de causa eficiente. Aristóteles explorou a causa eficiente ao ocupar-se da série das causas, em que a primeira causa seria uma causa incausada (ou um motor imóvel que move). Platão que, também tratou deste motor, se ocupou todavia, como já se disse, mais com as causas formal (exemplar) e final (ordem do mundo).

223. Uma explicação ampla do movimento foi tentada por Aristóteles. Além da causa material e formal apelou ainda para a ocorrência de um princípio eficiente, por ele chamado "princípio do movimento", e que somente os pósteros chamariam causa eficiente. Exprimiu-se assim, o Mestre do Liceu: "Causa é ainda o princípio primeiro do movimento ou do repouso: o autor de uma decisão é causa de ação, e o pai é a causa da criança, e, em geral, o agente é causa daquilo que é feito, e o que faz mudar é a causa daquilo que sofre a mudança" (Metaf., V, 2. 1013a 20). Parecia que Platão não examinara suficientemente o problema da causa eficiente do movimento. A idéia real platônica apresentava feições estáticas e lógicas, que não poderiam ser a origem mesma do movimento. "Nada resolve, disse Aristóteles contra o Mestre da Academia, que admitamos essências eternas, como as idéias, se não colocarmos também nelas uma força imanente, de que parta o movimento e a mudança" (Metaf., XII, 6. 1071b 14). As considerações sobre o movimento, que Platão tece no Sofista à base das idéias, não satisfizeram a Aristóteles, que rejeitou a tese do auto-movimento proposta por seu antigo mestre. Se se pudesse partir do auto-movimento, afastar-se-iam muitos problemas. Mas, insiste Aristóteles que o movimento não pode brotar da potencialidade do ser, - nem da determinação anterior abandonada pelo ser em movimento, nem da nova forma por ele depois alcançada.

224. O movimento nos seres naturais se reveste de características especiais, além das de ordem metafísica. Explicou-o Aristóteles como uma sucessiva substituição de formas na mesma matéria.

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O movimento local implica somente na substituição de formas acidentais indicativas de localidade. A distensão e contorção indicam maior alteração. A principal é a da mesma mudança substancial, que representa pois uma alteração mais profunda, se for alcançada. Todo movimento supõe, pois a matéria, ou potência, como sujeito que se move. Supõe também que haja uma forma inicial, a ser removida, e uma forma a ser adquirida, como fim, ou meta. Portanto, o movimento resulta da forma a alcançar e da matéria capacitada para receber esta forma, pela desistência da anterior, estado este chamado potência. Supõe ainda o movimento que a potência seja indiferente à sua forma anterior como à posterior; é a contingência. Tem, então o ser em movimento a possibilidade de rolar por qualquer das muitas formas. Por isso mesmo, o movimento processado pela troca constante de formas não tem sua origem na potência, mas em um ser não potencial, isto é, em um ser em ato. O movimento não poderá derivar da forma que se desfaz, porque já não existe ao ser substituída pela nova. Entende-se, pois, que as formas substanciais somente podem produzir em si alterações acidentais, ou menores, que não afetam a forma causadora situada mais no fundamento. Com a posse destas noções sobre o movimento, pode-se a seguir passar ao julgamento sobre o fundamento do movimento do universo como um todo. É assim que a questão comparece na assim chamada prova da existência de Deus pelo movimento, a qual Tomás de Aquino arrolou como Primeira via (vd 484).

225. Deus é um Motor Imóvel, que move sem que ele mesmo se mova. Esta é a conclusão a que chegou Aristóteles ao indagar uma explicação para o movimento desde o fundamento. 484. 1ª Via: prova pelo movimento. Do movimento, como um fato não explicável, por si mesmo, infere Aristóteles a existência de Deus, na condição de motor imóvel. Já Platão reclamava um Demiurgo como causa do movimento do mundo. Mas apenas em Aristóteles o argumento ficou claro (Física 266 a 5; Metafísica, L. XII. 1072 a 25). A noção de Deus estudou-a particularmente no livro XII da Metafísica. Não admite conhecimento direto de Deus, nem pela sua substância, nem pelas suas propriedades. Diante disto, não há possibilidades de se criar uma ciência filosófica autônoma a respeito da divindade. Uma ciência autônoma importa em objeto desde o início. Pressuporia que Deus já fosse preliminarmente conhecido como um concreto existente, ao qual se aplicaria o estudo. Se chegamos, contudo até Deus, esta chegada é o final de um caminhar argumentativo, resultante já de uma conclusão, produzida por uma ciência anterior, - a metafísica. Efetivamente, não há ciência que dependa de outra ciência em seu mesmo objeto. Aliás Aristóteles tratou de Deus como parte da metafísica, e chegou até a identificar esta ciência com a mesma teologia, visto que Deus se encontra na base de todo o ser e na explicação total da realidade (Metaf., 983a 10). A filosofia sobre Deus, - denominada por Leibniz, Teodicea, - é uma continuação da metafísica, e não uma ciência ao lado dela. Importa por conseguinte que a metafísica decida, se há, ou não há Deus. A prova da existência de Deus através do movimento é apresentada por Aristóteles como tendo o primeiro lugar na sequência das provas, e é também tratada mais amplamente por ele. O mesmo acontecerá depois nas cinco vias de Tomás de Aquino, o qual também começa por ela, ainda que não lhe dando tamanha importância. Mas realçamos que não era do espírito platônico atender a este lado real das coisas; Platão viu nas idéias a razão metafísica das coisas, antes que sua origem na ordem da existência atual. Foi por haver conduzido a investigação da natureza do movimento até os seus confins, que Aristóteles chegou ao conhecimento de Deus. Em síntese procede assim o argumento de Aristóteles: Todo movimento, o é por outro; ora, não se pode proceder ao infinito; logo, dado o fato que existe o movimento, deve haver um primeiro motor que move, mas não é móvel ele mesmo. Encontra-se este argumento no livro da Física (8,1) mais antigo, e nos livros da Metafísica (IX, 5-6 e XII, 6). Por que no sistema aristotélico todo o movido o é por outro? O movimento é o abandono de uma forma e o recebimento de outra. Não pode, - como já se ponderou (vd 224), - a nova forma vir da potência, ou matéria; esta para receber, ora uma, ora outra, tem de ser indiferente à qualquer das outras que se sucedem, sendo pois contingente. Nem pode a nova forma vir da forma precedente, visto que a precedente já não existe ao dar lugar à que lhe sucede; nem procederá o movimento da forma nova, visto que esta ainda não existe e vai ser o termo final do movimento. Consequentemente, todo o movido o é por outro. A questão do movimento por outro pode conduzir a uma série de causas, todavia série limitada. Uma série infinita de causas nada explica, porque numa tal hipótese não se dará uma primeira causa; ora, se não existe uma primeira, nem existirá a segunda que dela depende, e assim por diante, até alcançar o suposto movimento atual; este, por não existir a primeira causa, não pode também produzir-se (Cf. Física 266a 5).

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Deve, pois, ocorrer uma primeira causa, como razão última do movimento, o que não ocorre, entretanto, numa série infinita, razão porque tal hipótese se afasta por si mesma. Há portanto, um primeiro motor ( Metaf., 1012b 31). O primeiro motor move, mas é imóvel ele mesmo. Somente assim é possível pôr um começo na série das causas. "Deve-se supor um extremo que seja motor sem ser móvel, ser eterno, substância e ato puro " (Metaf., 1072a 25). Deus se apresenta, pois, como um ser necessário, decorrente das premissas que alegam a ocorrência do movimento inexplicável em si mesmo. "O primeiro motor é um ser necessário, seu ser é o Bem, e é deste modo que ele é princípio. O necessário efetivamente apresenta as seguintes acepções: há a necessidade que resulta do constrangimento, no sentido de que ela força a nossa inclinação natural, tornando o bem impossível; e há a necessidade do fato, de não ser algo possível senão de uma só maneira" (Metaf., 1072a 10).

226. O problema da criação parece não ter sido diretamente abordado por Aristóteles. Ainda que dissesse que o Primeiro motor devesse ser um Motor em si mesmo imóvel, não explicou da possibilidade de uma ação puramente criativa. No caso não explicou o processo mesmo pelo qual o primeiro motor atuaria sobre o mundo, criando o movimento. Antes de Aristóteles já os eleatas, sobretudo Parmênides (vd 200), recuaram diante da possibilidade da criação. Alegavam eles que, o que já é, apenas é o que é; e o que não é, nada é. Por isso nada ocorre novo, não sendo portanto possível a criação. E se algo parece criar-se, é apenas ilusão dos sentidos. Ainda que a ponderação eleática seja em parte verdadeira, ela não se advertiu de todas as alternativas. A criação poderá ser apenas um novo modo de existir, do que já, desde sempre existiu. Por esta fresta se vai encontrar finalmente uma explicação intrínseca da criação (vd 553). Aliás, foi também por esta via, que se tentou explicar a Trindade das pessoas divinas, que não existem como várias naturezas, mas como modos de existir da única natureza infinita, esta definida como a mesma subsistência da existência. A diferença entre a criatura e as pessoas divinas estaria, em que a criatura é uma participação da divindade, como modo limitado de possuir a existência de Deus, ao passo que as pessoas divinas participam da divindade como modos ilimitados desta existência. Entenda-se sempre, que em Deus, existência é o mesmo que existência, e que dela tudo participa, diferenciando-se pela possibilidade múltipla de participar da mesma. Embora tenha Aristóteles introduzido, no âmbito do ser limitado, a noção de potência real, a qual conteria a possibilidade efetiva de produzir algo não existente antes, - esta noção de potência real aparenta uma afirmação apenas. Ela contudo parece dizer que o fato é a sua prova; então ficaria o fato uma validade, ainda que não seja algo que se compreenda. Entrar por este caminho é perigoso, porque então tudo o que não compreendemos poderia contudo ser defendido como possibilidade de fato. Introduzirão alguns neoplatônicos e sobretudo os cristãos a noção de criação Segundo estes, o mundo é simplesmente criado: Deus cria o mundo, Deus cria o movimento, Deus cria todas as determinações, Deus cria a lei pela qual se processarão novas determinações. Esta afirmativa busca apoiar-se na metafísica do ser, segundo a qual Deus é interpretado como sendo o mesmo ser (a mesma existência). Supõe-se, então, que a criação seja possível. Todavia, não desenvolveram os neoplatônicos os detalhes desta possibilidade Estas ponderações já não ocorriam em Aristóteles, embora seus princípios fundamentais tenham dado lugar a que seu sistema derivasse na direção de Deus como o mesmo ser e capaz de criar do nada. Contudo, dizer que a criação deriva simplesmente do nada, não é explicável, senão através da indicação, de que ela é apenas a existência divina enquanto imitável. Mas, que significa esta imitação? Importam outras palavras, e que a esclareçam. Na imitação ocorre apenas uma participação na existência sempre existente, pelo exercício de um novo modo de existir. Então a criação está no novo modo de existir, e não na criação de novas existências simplesmente. Esta existência simplesmente como existência é infinita, e por isso indivisível, do mesmo modo como na Trindade de pessoas divinas, não há novas naturezas, mas apenas novas maneiras de as possuir.

227. Um mover como atração. Nesta questão de explicar como o imóvel move ao outro, Aristóteles tentou algumas comparações. Mas suas afirmações restam titubeantes.

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Ponderava o mesmo Aristóteles, que o Primeiro Motor Imóvel não pode produzir o movimento por comunicação de seu próprio movimento, pois ele mesmo é imóvel. Aliás, entendido o Primeiro Motor como um ser imaterial não poderia nestas condições ter movimento real para comunicar. Refere Aristóteles: "Este princípio (primeiro motor) é uma vida" (Metaf., 1072b 15). A indicação é importante para compreensão da natureza divina e é reveladora de sua atividade imanente, Todavia nada diz, que explique uma atividade para o exterior, como seja a de produzir o movimento. Declarou também Aristóteles, que Deus é a mesma inteligência: "Seu pensamento é pensamento de pensamento" (Metaf., 1074b 35). Mas ainda isso não vem explicar qualquer domínio sobre o ser mesmo, de sorte a poder operar sobre o ser, quer para criar novos seres, quer para lhes dar movimento. Contudo Deus é motor que move, - o que Aristóteles tenta explicar com algumas comparações com o poder da vontade. A ação de Deus sobre o mundo se processa como se ele produzisse seus efeitos por atração, como objeto de amor e de desejo (Metaf., 1072a 26). Move, pois, como se o movido se fizesse um objeto de desejo. Por este processo possibilita ao primeiro motor mover, sem precisar mover-se, à semelhança do objeto inteligível e desejável; este posto diante dos olhos da inteligência, move sem se mover, à semelhança das coisas desejáveis, que nos movem a elas, sem que elas necessitem de se mover. "Deve-se supor um extremo, que seja motor sem ser móvel, ser eterno, substância e ato puro. Ora, é deste modo que movem o desejável e o inteligível: eles movem sem serem movidos" (Metaf., 1072a 26). Tem-se ali a consagração do finalismo, predomínio do teleológico. "A causa final move como o objeto do amor, e todas as outras coisas movem, pelo fato de serem elas mesmas movidas" (Metaf., 1072b 4). Mas, se de uma parte é possível a ocorrência de um objeto de desejo e um objeto inteligível, pergunta-se de outra parte se a matéria é capaz de conter em si a tendência ou seja o desejo que a faça efetivamente inclinar-se a um fim? Hans Meyer atribui este anelo da matéria, de que fala Aristóteles, à influência que Platão ainda exerce sobre ele (Der Entwicklungsgedanke bei Arist. Cit. Por Widelband). Efetivamente, parece que tal atribuição à matéria não concorda com a descrição de princípio totalmente indeterminado que Aristóteles lhe deu; o platonismo via na matéria ainda alguma determinação, e é o que Aristóteles não pôs totalmente de lado ao abandonar o mestre. Tomás de Aquino, ao desenvolver o conceito, - de que Deus é a sua essência, e que sua essência divina é a sua existência, - quer encontrar aqui o caminho para explicar a possibilidade da criação. Sendo Deus o mesmo ser, - quer na existência, quer na essência, - todo outro ser mundano somente poderá ser um ser enquanto sai do Ser Absoluto, do qual procede por criação. Também o movimento é criação, e seria, nesta mesma condição, criado pelo Ser Absoluto simplesmente. Nesta concepção de Deus como pura substância, nele mesmo não ocorre o movimento atualmente, mas o contém virtualmente. Por isso, embora seja um motor imóvel o é imóvel formalmente, mas virtualmente também é móvel, isto é, enquanto capaz de produzir o movimento em outro.

228. A questão da eternidade do mundo em Aristóteles. Embora o estudo da natureza do mundo se configure como tema da cosmologia, a questão da eternidade do mundo e do movimento se prende à metafísica. Ela se resolve não somente pelo que significa o movimento, mas principalmente pelo modo como se concebe a natureza de uma causa divina. Tomás de Aquino, um escolástico aristotelista, considerou mais exaustivamente a natureza da causa infinita, e por isso teria abordado mais satisfatoriamente a questão (In Phys., L. VIII, 2 nr. 2000). Aristóteles, que levantou a aporia, em torno dela teceu considerações de valor, mas que não pareceram definitivas aos seus discípulos medievais. Preso ao estado limitado das noções a que chegou, estabeleceu o estagirista a eternidade do mundo. Tomás de Aquino não negou a possibilidade filosófica de um movimento e tempo eternos; mas abre também a mesma possibilidade para o movimento e tempo iniciados a certa altura da eternidade. Desta sorte, a filosofia tomista defende ambas as possibilidades. O que de fato ocorreu não o pode, portanto, a filosofia determinar, mas só uma revelação. Esta teria efetivamente ocorrido segundo judeus e cristãos, dizendo que o mundo criado no tempo. Baseou-se a tese de Aristóteles sobre a eternidade do mundo, na impossibilidade de se conceder um começo para o movimento, e ainda na razão indireta da necessidade de se conceber o tempo como eterno.

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Como já se disse, - não se pode conceber que o movimento pudesse ter tido um começo, de modo absoluto, sem recair num absurdo. Ora, todo movimento se encontra num móvel. Este móvel, no qual o primeiro movimento se encontra, ou começou ele também a existir, ou existiu já eternamente, mas sem repouso, até receber o dito primeiro movimento. Num e noutro caso o primeiro movimento exige um outro primeiro movimento, e assim indefinidamente, o que é absurdo. No primeiro caso, em que o móvel também principiou a existir, este seu principiar a existir é também um movimento. Tem-se assim, um movimento anterior ao pretendido primeiro movimento. De futuro Tomás de Aquino tentará mostrar haver um equívoco em Aristóteles. A operação do ser absoluto não pressupõe a matéria, ocorrendo assim uma criação, do todo, ao contrário do que acontece com a operação das potências ativas particularmente (In Phys. VIII 2 nr. 2000). Na hipótese da criação do móvel segundo todo o seu ser, sem matéria prejacente, não ocorre uma mudança de sentido próprio, visto que não há ponto de partida (terminus a quo). Só há novidade do lado do efeito. Não se dá um movimento propriamente dito; a relação com estado anterior, o nada, não é senão de razão. Entretanto, Aristóteles, conforme já se advertiu, não chegou a considerar todos os termos da criação, e por isso passou a perguntar pela outra alternativa, que também achou impossível, a de que o móvel existisse eternamente, com um estágio imóvel inicial, para em dado momento receber o movimento. Mas isto não é possível, continuou ponderando Aristóteles. A passagem de repouso ao movimento não se poderia efetuar por si mesma, porque ficaria sem razão suficiente. Exige-se, pois, a ação de uma outra causa, onde encontraríamos um movimento anterior. E então o pretendido primeiro movimento a ser recebido pelo imóvel eterno já não seria o primeiro. A ponderação de Aristóteles neste segundo caso se dissolveria mais uma vez , se for válido o esclarecimento de Tomás de Aquino, seu comentador medieval, que tenta explicar a natureza exata da operação do agente universal. Na criação, o efeito não sofreria de verdadeiro movimento; assim também a segunda alternativa perderia o seu sentido.

229. O tempo como determinação da coisa, segundo Aristóteles. A razão indireta pela qual Aristóteles se definiu por um movimento eterno se prende à noção que estabeleceu do tempo como simples determinação da coisa temporalizada. Preliminarmente importa advertir que, para Aristóteles, o tempo é intrínseco à mesma coisa, como sua determinação, sem que dela se aparte, como se fosse um túnel exterior. Não há, pois, um túnel do tempo, senão na imaginação, a qual se imagina separadas concretamente duas coisas, das quais uma não é mais que uma determinação da outra. O mesmo diz do espaço, que é determinação da mesma coisa; não existe um espaço concretamente independente e vazio em que a coisa possa ser mergulhada. Para Aristóteles, o tempo é eterno; ora, o movimento, que o tempo mede, há de ser por isso mesmo eterno. Segundo a estagirita toda a realidade do tempo é constituída pelo instante presente. Ora o instante presente se encontra no meio, de modo a constituir-se o termo do passado e o princípio do futuro. Por mais que se recue no passado, cada "instante presente" é o eterno de um passado, e assim indefinidamente. Não pode, pois, o tempo começar, de sorte que é eterno. Supondo um instante em que não há relação de precedente, é destruir o tempo. Nisto Aristóteles foi de novo contestado pelos criacionistas. Suposto o caso da criação, o tempo se converte numa efetiva possibilidade de início. O tempo que precede o instante presente se apresenta simplesmente como negativo, como um tempo imaginário. Este passado negativo corresponde à eternidade de Deus, que, excluindo todo o movimento, não realiza o tempo; efetivamente, este passado negativo coincide com o instante presente do objeto criado. Assim, se torna possível apreender a criação de um tempo, antes do qual nada existe de ordem temporal, senão negativa e imaginariamente (S. Theol. P. I. q. 46 a.1 e 2; S.C. Gentiles, P. II 36 e 37).

230. Estabilidade do mundo presente. Firmado em suas convicções sobre a eternidade do mundo, do movimento e do tempo, derivou dali o mestre do Liceu uma série de considerações para explicar a situação atual do universo, o qual entretanto é muito mais dinâmico do que podia imaginar, ainda que estabilizado pelo controle de leis internas altamente complexas. O mundo é antes de tudo eterno no que se refere à matéria, - o que já era persuasão pré-socrática. Mas, o mundo é também eterno nas formas atuais essenciais. Assim as espécies são eternas, embora ocorra o nascer e o morrer nos seres particulares; sempre têm havido animais e homens, porque o Eidos animal e o homem são eternos. Hoje melhor se sabe de como estes modelos se realizam ciclicamente e em termos evolutivos, obedecidas todavia sempre às mesmas leis.

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Mas é nas estrelas que a eternidade da forma se manifesta melhor. Nelas, a forma dominou inteiramente a matéria, de modo a excluir toda a mudança substancial ou qualitativa; cabe-lhes apenas o movimento local, que não afeta sua eminente natureza. Esta já não seria a mesma dos quatros elementos (água, ar, terra e fogo), mas de uma quinta natureza chamada éter. Também aqui o saber de hoje melhor define as diferentes oportunidades para os mesmos elementos. Como o movimento circular se apresenta o mais perfeito, - conforme convicção que já recebeu de seus precedentes cujas razões a priori retomou, - estabeleceu Aristóteles, que aos astros convêm o movimento circular. Não obstante os limites das especulações de Aristóteles sobre a estabilidade do mundo presente, elas estão longe de admitir o mundo catastrófico das escatologias orientais.

231. Deus de Aristóteles como forma pura na ordem da essência e ato puro na ordem do ser. Duas coisas distintas se podem considerar no ser puro de Deus:

a) Na ordem da essência Deus é forma pura, com todas as determinações aperfeiçoativas imagináveis, portanto forma pura, sem qualquer potencialidade. Neste sentido Deus não teria matéria, como quando entendemos a esta como potencialidade capaz de receber formas. Somando tudo na ordem da essência, Deus é forma pura, enteléquia, sem as potencialidades da matéria. Foi o que Aristóteles definitivamente defendeu em sua Metafísica (1074a 35). Deus é, portanto, um ser espiritual.

b) Na ordem da existência, ou seja na ordem do ente simplesmente, a essência de Deus é ser constituído pelo seu mesmo ato de existência. Portanto, na ordem do ente em absoluto, é ato puro de existir. Em princípio, a essência é apenas o modo de existir, e como Deus não está limitado por nenhum modo, seu modo essencial é não ter nenhum modo determinador, senão a existência liberada de qualquer modo determinador. Não há dúvida que Aristóteles estabeleceu a espiritualidade ou imaterialidade de Deus, pois diz textualmente: "A primeira entidade não tem matéria, pois é enteléquia" (Metaf., 1074a 35). Em fazendo sua investigação sobre a inteligência divina, Aristóteles desenvolveu a questão dentro do pressuposto da espiritualidade ou imaterialidade de Deus (Metaf., L. XII, 9 notadamente 1075a 5). Portanto, no sistema aristotélico, Deus é forma pura, ser espiritual, sem composição na ordem da essência. Mas, na ordem do ser simplesmente é também constante a advertência de Aristóteles sobre o caráter de Deus como ato puro.

232. Deus como pensamento de pensamento, dito por Aristóteles. Na ordem do ser simplesmente, - enquanto essência e existência, - parece que Aristóteles, ainda que entendendo a Deus como ato puro, inclusive seu pensamento como ato puro de pensar, não levou plenamente esta peculiaridade de Deus ao plano do conhecimento, no que se refere a dualidade cognitiva de sujeito e objeto. A retenção, de uma diferença de um momento para o outro, teria implicado em potencialidade em Deus. Plotino tratou da questão mais advertidamente, havendo sido mesmo radical. Reprovou a Aristóteles o ter mantido a dualidade em Deus, por ter dotado o uno de pensamento (Enn V. I 8). Entendera Plotino que todo pensamento fosse essencialmente dual, por implicar sujeito e objeto. Contestarão os escolásticos a radicalidade de Plotino, mostrando que a dualidade intencionalística de sujeito e objeto em Deus pode coincidir fisicamente, de tal sorte que a essência subsistente é também essência pensante coincidente. Os termos de Aristóteles são susceptíveis de serem elevados à coincidência do pensar com a mesma subsistência divina; mas, não parece que ele houvesse explicitamente chegado até lá: "É evidente que ela (a inteligência divina) pense o que há de mais divino e de mais digno, e que ela não mude o objeto, porque isto seria uma mudança para o pior, e uma tal coisa já seria um movimento. Em primeiro lugar, pois, se a inteligência divina não fosse o ato de pensar, mas simples potência, seria lógico supor que a continuidade do pensamento seria para ela uma carga penosa. Em seguida, seria claro que haveria qualquer outra coisa mais nobre que a inteligência, a saber, o objeto mesmo do pensamento. Com efeito, o pensar, o ato de pensar pertencerá também àquele que pensa o pior, de sorte que se deveria evitar (pois há coisas que é melhor não ver que ver), o ato de pensar não seria o que há de melhor. A inteligência suprema se pensa, pois, ela mesma, pois ela é o que há de mais excelente, e seu pensamento é pensamento de pensamento" (Metaf., 1074b 25-34). Pouco adiante, continuou Aristóteles, sobre o mesmo tema: "Não há identidade entre ser um ato de pensamento e ser o que o é pensado. Mas, respondemos:

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Em certos casos a ciência é ela seu objeto mesmo... Como não há diferença entre o que pensado e o pensamento no caso dos objetos imateriais, o pensamento divino e seu objeto serão idênticos e o pensamento será um com o objeto do pensamento" (Metaf., 1074b 38 - 1075a 4). Está patente que Aristóteles pretendeu dizer, que a inteligência está em ato contínuo, e não ora em potência, ora em ato, como a humana. Quando pois diz que, se ela fosse potencial, teria uma carga penosa, parece referir-se às faculdades orgânicas, que sofrem a ação quando excessivamente forte, ao contrário das faculdades anorgânicas que, quanto mais se manifesta a clareza do objeto, melhor funcionam. "A natureza do pensamento divino suscita certos problemas. Com efeito, o pensamento parece ser a mais divina das coisas que conhecemos; mas para sê-lo efetivamente, como deve ele exercer-se? Isto apresenta dificuldades. Se não pensa em nada, onde está a sua dignidade? Seria como um homem que dormisse. E se pensa, mas se nisso depende de outra coisa, não pode ser a melhor substância, uma vez que essa substância não seria então o próprio pensamento, mas uma simples faculdade de pensar; pois é o ato de pensar que lhe confere o seu valor. Além disso, quer seja faculdade, quer ato, que pensa ele? Porque, ou pensa em si mesmo, ou algum outro objeto. E, se pensa outro objeto, ou este é sempre o mesmo, ou varia. Mas tem ou não importância que o objeto do pensamento seja ele próprio ou uma coisa qualquer? Não seria absurdo que pensasse em certas coisas? É evidente, pois, que pensa no que há de mais divino e excelente, e que nunca muda, porquanto mudar seria passar do melhor ao pior, e seria já um movimento. Donde se conclui que o pensamento não é o ato de pensar, mas uma potência, é provável que o exercício constante dessa faculdade fosse para ele uma fadiga; e haveria evidentemente, algo mais valioso do que ele, o objeto pensado. Pois, tanto o pensamento, como o ato de pensar pertencerão inclusive ao que pensa a coisa mais desprezível do mundo, de forma que, se isso se deva evitar (e deve), (pois existem até certas coisas que preferível não ver que vê-las), o ato de pensar não pode ser o que há de mais excelente. Logo, é a si mesmo que o pensamento divino pensa (já que é de ele a mais excelente das coisas), e o seu pensar é um pensamento de pensamento" (Metaf., 1074b 15-35). Diz Aristóteles, com profundidade, a respeito de Deus: "Sua felicidade é o seu próprio ato. E qual é o seu ato e sua felicidade? É o pensamento em si. Ora o pensamento em si é o pensamento do melhor em si, é o pensamento por excelência. E esta felicidade é a sua vida; o inteligível em ato é a vida; ora, ele é todo o ato; por isso, o ato em si é a vida eterna e soberana. Chamamos Deus a um ser vivo, eterno e perfeito, porque possui a vida contínua e eterna, ou antes, esta mesma vida é Deus. Que existe uma substância eterna, imóvel e distinta das coisas visíveis é evidente de quanto acabamos de dizer" (Metaf., XII, 7. 1072b 23-30). Pelo visto, Aristóteles introduziu questões importantes sobre a natureza de Deus, ainda que se possa fazer a ele algumas ressalvas. Até seu tempo, ninguém melhor falou sobre Deus que Aristóteles.

ART. 3-o. MATERIALISMO ESPIRITUALISTA ESTÓICO.7270y233.

233. O estoicismo como escola estruturou-se pelo ano 300 a.C. na cidade de Atenas, junto ao Pórtico, ou Stoá (de onde o nome estoicismo), com aspecto de sucessora da escola socrática menor dos cínicos, e teve duração até os últimos dias do mundo antigo. O estoicismo sempre foi expressivo em todo o curso da filosofia helênico-romana, competindo pois com os representantes da Academia e do Liceu. Cronologicamente se distingue entre: - Pórtico antigo, ao qual pertenceram:

Zenão de Citium (336-264 a.C.), fundador, e viera de Chipre; Cleantes, (331-233 a.C.), primeiro sucessor, procedente de Assos; Crísipo (280-205 a.C.), terceiro escolarca e a quem o sucessor do estoicismo deve quase tudo, tendo vindo de Soles (Cilícia).

Ao pórtico antigo ainda pertenceram Zenão de Tarso (Síria), Diógenes o Babilônio (Seleucia), Antípatro de Tarso, Arquedemo e outros das mais diversas cidades, que Diógenes Laércio cita (L. VII), Hérilo de Cartago (3-o séc. a. Cr.), - Pórtico médio (do 2-o. e 1-o. séc. a. Cr.), considerado eclético, encabeçado por:

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Panécio de Rodes (c. 180-110 a.C.), vindo para Roma Possidônio de Apamea (Síria) (c. 135-51 a. C.).

- Pórtico moderno, caracterizado por figuras do Império Romano: Sêneca (3-65 d.C.), Epícteto (50-130 d.C.), Imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.).

234. No plano religioso o estoicismo foi moderador, no que se refere aos seus conceitos sobre o transcendente, bem como ainda no que diz respeito ao seu moralismo racionalizado. Há pois que anotar o naturalismo espiritualista da Escola Estóica ao se fazer um histórico da filosofia da religião. Internamente coerente e moderado, o estoicismo compareceu como um dos mais representativos sistemas filosóficos da primeira fase do período pós-socrático, e ainda se manteve como um dos significativos do segundo. Influirá ainda o estoicismo sobre as demais escolas, como sejam as dos neo-acadêmicos, neopitagóricos e neoplatônicos. Todavia se encontra mais próxima de Aristóteles, de quem muito recebeu, que de Platão, um dualista radicalizado. As referidas influências ocorreram no sentido de frear o radicalismo platônico, o qual exatamente se encontrava nas escolas influenciadas, e que citamos como sendo as dos neo-acadêmicos, neopitagóricos e neoplatônicos. A ética estóica se refletirá também sobre o rigorismo da moral cristã, conforme se observa na rigidez das normas de Paulo Apóstolo. A imagem estóica de um mundo racional, com a presença da lei divina natural, facilitou aos cristãos o conceito da lei natural, ao mesmo tempo que estabelecida por Deus. Também aqui Paulo Apóstolo, com sua doutrina sobre a lei natural, é nitidamente um pensador estóico. Dado seu caráter moderado e internamente coerente, - como se adiantou, - o estoicismo não serviu de fonte ao desenvolvimento extravagante das religiões tradicionais, como aconteceria com o exacerbado neoplatonismo e o neopitagorismo. O caráter moderado e internamente coerente, vindo da escola jônica e da escola socrática menor dos cínicos, e ainda do aristotelismo, fez do estoicismo um catalisador, que, em última instância favoreceu, em termos absolutos, a verdadeira filosofia da religião. Esta, sofrendo em toda a antiguidade as dificuldades oferecidas pelos entulhos do pensamento pré-lógico, foi ganhando, de pouco em pouco, algum desenvolvimento lógico, graças aos esforços da filosofia.

235. Criaram os estóicos uma física e metafísica. A parafernália dos mitos e mesmo de alguns sistemas filosóficos haviam criado um ligeiro ceticismo em Sócrates e na Escola Socrática Menor dos Cínicos, os quais todos passaram a destacar apenas o conhecimento de si mesmo e da moral. Este a-cientintificismo socrático e cínico foi superado pela Escola Estóica, ainda que se mantendo na moderação de um monismo espiritualista monista. Não obstante os primeiros estóicos ficaram ainda bastante subordinados ao predomínio da preocupação ética. Não obstante, a inferiorização hierárquica antes dada à física, perdeu substância já com os primeiros estóicos. Rapidamente adquiriu também entre eles força o enciclopedismo dos peripatéticos, no qual a cada ciência se dava seu lugar. O estóico Hérilo de Cartago (3-o séc. a. Cr.), ao converter a ciência em télos (= finalidade), já se colocou quase inteiramente fora do esquema eticista estóico antigo. O mesmo parece ter feito Cleantes de Assos (3-o séc. a.C.), sucessor de Zenão na direção da Escola Estóica, na sua distribuição das ciências (D. Laércio. VII, 41).

236. A física e metafísica dos estóicos é materialista, todavia sem excluir uma face espiritual. Estabeleceu-se, portanto, dentro de um esquema do ordem metafísica semelhante ao dos pré-socráticos, particularmente dos jônios, designadamente Heráclito, todavia já desde Tales (vd 200e). Mais uma vez se observa que o estoicismo é uma linha de continuidade da Escola Pré-socrática Menor do Cinismo, visto que já este era materialista e derivava dos jônios; enviavam portanto estes para frente o seu materialismo e monismo.

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Deu-se agora apenas um novo feitio, mais lavrado e orgânico, em que a ética se colocou no alto como o degrau mais elevado de uma escadaria de ciências, todas elas destinadas a prestar o acesso para a principal. O materialismo jônico se reestruturou, quer com desenvolvimento interno de sua física, quer com seu ajustamento com a ética. O materialismo estóico se apresenta como decorrência epistemológica do seu sensismo. A realidade atingível é apenas a sensível; dali resulta que só se conhece o corpóreo, o extenso, o ser material. Em outros termos: o ser é a matéria;

a realidade é a corporeidade; a extensão é a essência do ser; a matéria é a substância.

E se ao lado da matéria põe a força, que atua como sob as mais variadas formas, como fogo, lei natural, razão, alma de Deus, ainda esta força tem estrutura de ordem material, extensiva, mecânica, e nunca inteiramente espiritual. Matéria e espirito são duas faces da mesma coisa, e ambas são materiais. O materialismo estóico vai ao ponto de apresentar como materiais não só as substâncias e acidentes de extensão, mas também as propriedades, estados, atividades, afecções, etc. Assim, o passear, como atividade de homem real, é algo corpóreo. Mas são incorpóreas coisas, como espaço, vazio e tempo, e também o passear como simples predicado lógico.

237. Monismo estóico. Não importa a linguagem a qual, indica a Deus como se fosse pessoa individual; a inspiração com que os estóicos utilizam estes nomes é monista, panteísta. É o mesmo fogo racional que superava por de todas as categorias de ser; não se prende à dicotomia em nenhuma delas, porque a todas cria como suas determinações. Por sua espécie de esforço e tensão, realiza-se num devir que promove o mundo num processo comparável ao elan vital do moderno filósofo intuicionista francês de nome Bergson em sua "evolução criadora". A interpretação hilemorfística-panteística do mundo ocorria também na Idade Média, quando certo filósofo quis ver na forma, que determina a matéria prima, o próprio Deus a estender-se assim pelo mundo. "A inteligência penetra todo o mundo como a alma enche o corpo, todavia há partes nas quais, ora mais, ora menos presente; em algumas reside só a simples propriedade como nos ossos e nervos; em outros a título de inteligência, na parte superior" (D. Laércio VII). O fogo racional tem em si mesmo e por si mesmo o princípio do movimento e de todas as suas variações. Apresenta-se pois, como Deus. Sendo um só fogo, apesar da diversidade das manifestações, e sendo ele suficiente em si mesmo, só restava declará-lo divino. "As palavras Deus, Inteligência, Destino, Júpiter e muitas outras analogias não designam senão a um só e mesmo ser. Deus existe por si mesmo como existência absoluta. No princípio mudou em água toda a substância que enchia os ares, e assim como a geração dos germes dos seres que estão latentes, também Deus, razão seminal do mundo, permaneceu oculto na substância úmida, suavizando a matéria da qual tiraria mais tarde os seus seres. Com esta finalidade produziu a princípio os quatros elementos: água, fogo, ar e terra" (D.Laércio VII, 136). Insistem os estóicos na auto-suficiência do princípio racional que informa a matéria, retendo-se pois, conscientemente no panteísmo, rejeitando claramente a transcendência: "Rematada loucura é pretender transportar-se para fora do cosmos para estudá-lo de fora, como se todo o interior dele já estivesse bastante conhecido" (Plínio, História natural II, 1).

238. Fogo racional e fogo empírico. É importante a distinção estóica do ser em dois princípios, um passivo e outro ativo, sem contudo prejudicar a idéia geral do seu monismo. O princípio ativo é também chamado fogo racional. Ocorre ali uma autêntica semelhança com a teoria da dualidade intrínseca do ser estabelecida por Aristóteles, quando distingue entre matéria e forma. Conservaram algo daqueles pré-socráticos precursores do hilemorfismo aristotélico. Efetivamente o dualismo intrínseco do ser corpóreo fora prenunciado no ápeiron de Anaximandro, e no devir de Heráclito, que viam no universo um elemento informe e outro que lhe imprimia a forma. Associaram estes princípios às propriedades dinâmicas do Logos de Heráclito e do Nous de Anaxágoras. Põem entretanto os estóicos o fogo do lado do princípio dinâmico, ao passo que em Heráclito o fogo era apenas o elemento informe (o devir), que recebia as formas sucessivas Mas distinguem os estóicos entre o fogo comum (ou empírico), que somente consome, e o fogo racional (ou artístico), que coincide com a divindade ou com a forma em geral.

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"Admitem dois princípios do universo: ativo e passivo. O último é a substância indeterminada, a matéria. O primeiro é a razão espalhada na matéria, a saber o mesmo Deus, ser presente em todo o lugar em meio da matéria e organizador de todas as coisas" (D. Laércio VII, 134).

239. Diferentes formas do fogo racional. A onipresença do fogo racional coincide com a diversidade das formas da natureza. Em tudo está, pois, o divino. Nos astros o fogo racional se conserva em estado puro; por isso os astros têm inteligência. Esta interpretação vem de encontro à versão popular, de que astros são deuses e de que em cima está o céu dos beatos. A forma, ou seja o fogo racional, se impõe à matéria informe de quatro maneiras fundamentais. Dali resultam os quatro elementos: água, fogo, ar e terra. Ocorre aqui uma retomada dos 4 elementos de Empédocles de Agrigento (vd 200) (da escola jônica nova), como também o havia feito Aristóteles. No caso de um dos quatro elementos, o fogo se entende como fogo ordinário, portanto composto de matéria e forma, distinto do fogo racional puro e sem matéria. Em seu conjunto, nas coisas inorgânicas, - seja na água ou no fogo ordinário, no ar e na terra, ou em qualquer outra coisa, - a imposição da forma se apresenta como consistência, ou sopro natural. Nas plantas o fogo racional, como forma, se aplica como natureza, entendida esta palavra no seu sentido estrito. Nos viventes em geral o fogo racional apresenta-se como alma. "A alma é uma substância sensível... a alma é um corpo... é mortal... A alma universal, da qual são partículas as dos animais, é imortal" (D. Laércio VII, 157). Em todas as variantes, a forma apresenta sempre caráter de determinação, fogo racional, respiração, tensão, força, um quê de vida. Plotino (c. 205-270), neoplatônico monista e emanatista, retomará a noção de fogo racional em sua concepção de Alma do mundo (a terceira processão de sua Trindade), a qual atua sobre todos os seres particulares, homens, animais, plantas, minerais, dando-lhes as formas que têm, portanto, dando à matéria determinações. Como se viu, não se restringe o estoicismo apenas à matéria, porque lhe sobrepõe a forma racional. Esta é entendida como um princípio imanente universal, que atua de maneira eficiente e racional, comparável pelas suas virtudes ao fogo, mas de ordem racional. E por este motivo foi chamado fogo racional. Designações equivalentes são força ou sopro, lei natural, providência, razão, razões seminais. Em Filon de Alexandria (c. 25 a.C.- 50 d.C.), neoplatônico judeu, reaparecerão estes conceitos, porém acima dele o Deus transcendente. Aliás, todo o neoplatonismo se aproxima do Logos estóico, por causa dos intermediários que põe entre a matéria e Deus, cabendo aos intermediários atuar sobre a matéria, organizando-a.

240. Estrutura lógica do mundo. É de uma peculiar originalidade a atribuição que os estóicos fazem ao fogo, ao declará-lo racional. Ainda que possa haver um equívoco na identificação do fogo com a realidade, a concepção apresenta alguma profundidade. Ela se apresenta particularmente importante, desde que se considere que os estóicos não admitem outra realidade, senão esta, de natureza monista, constituída de dois princípios, uma passivo e outro ativo. O ser não é apenas o fogo racional, - um princípio ativo, - mas também a matéria, - um princípio passivo. Ambos os princípios constituem-se em duas faces da mesma coisa real. O mundo se apresenta pois dotado de uma estrutura lógica, porque é dotado de razão. É comandado por uma lei natural inteligente, que atua como uma providência: "O mundo é governado por uma inteligência e providência, como dizem Crísipo e Possidônio" (D. Laércio VII, 138). "O mundo considerado em seu conjunto é um animal, um ser animado e racional" (D.Laércio VII, 138). "Eles (Crísipo, Apolodoro, Possidônio) entendem por animal uma substância dotada de uma alma que possui a faculdade de sentir. O animal é superior ao inanimado; nada há superior ao mundo; portanto, o mundo é um animal" (D. Laércio VII, 143). "Deus é um animal imortal, racional, perfeito, isto é, infinitamente inteligente e soberanamente ditoso, inacessível ao mal, governando do mundo e de tudo o que contém, por meio de sua providência" (D. Laércio VII).

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"O destino determina todas as coisas... O destino é o encadeamento das causas de todos os seres, ou a razão que governa o mundo. Dizem que a adivinhação tem fundamento real, porque tem um plano providencial; exceto Panécio, que nega todo fundamento razoável à adivinhação, declaram-se a seu favor, Zenão, Crísipo, Atenodoro, Possidônio" (D. Laércio VII, 149).

241. A idéia de uma religião natural junta-se ao monismo estóico. Atribuindo à natureza um caráter divino, inspiravam-se por isso os estóicos de modo a suscitarem-se um respeito pela lei universal e veneração pela divindade onipotente. Interpretando alegoricamente as personagens do teogonia grega, assimilaram a teologia politeísta em voga. Cleantes é autor de um Hino a Zeus, que obedece à inspiração doutrinária estóica, em que o contexto certamente é alegórico.

242. Moral natural e lei natural. Finalmente, dada a logicidade geral do sistema estóico, dele decorre uma ordem para a moral e para a lei. Há pois uma moral natural e uma lei natural. O estoicismo estimulou o desenvolvimento político e social do mundo Helênico-Romano (vd 280). Através do estoicismo de Paulo Apóstolo integrou-se também no cristianismo a idéia do direito natural. Finalmente se formulou o Código de Direito Romano (vd 282), publicado em 529 d.C., sob o Imperador Justiniano.

ART. 4-o. MISTICISMO-RELIGIOSO NEOPITAGÓRICO E NEOPLATÔNICO. 7270y244.

- Filosofia da Religião -- CAP. 3 - DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO -

245. Um forte movimento místico-religioso a partir do neopitagorismo e do neoplatonismo. O moderado naturalismo helênico-romano foi contornado nos círculos religiosos, por um movimento, que caracterizou os primeiros séculos do início do milênio cristão. A sede principal do movimento estava em Alexandria, próspera desde que Alexandre Magno a fundara em 332 a.C., estava agora uma cidade ainda mais internacional, desde o ano 30 a.C., quando passou a integrar o Império Romano. O movimento místico religioso a que nos referimos, já vinha despontando no final do 1-o. século a.C., liderado pelos neopitagóricos, e logo também foi um poderoso movimento neoplatônico. Um e outro influenciaram as religiões da época, inclusive a judaica e a cristã. Como se sabe, o pitagorismo e o platonismo, desde sua forma primeira na antiguidade grega se desenvolveram com mútua influência. Agora, neopitagorismo e neoplatonismo conservam afinidade, sobretudo no que concerne ao seu dualismo radical, opondo espírito e matéria, buscando salvar o espírito frente à matéria menosprezada pelos efeitos maléficos que lhe atribuem. O que mais remotamente unia a todos estes pensadores de fundo religioso pitagórico e platônico, depois neopitagórico e neoplatônico, foi sua afinidade com o orfismo de origem oriental. A afirmação expressa de Platão sobre a superioridade da alma, com vida autônoma, nobre, elevada, aspiração à perfeição, purificação da matéria, separação em direção a um outro mundo, o fizeram preferido nos círculos mais populares, onde atuavam os religiosos ou místicos mais intelectualizados, em detrimento de Aristóteles e do naturalismo em geral. Não chegou Aristóteles, mais cuidadoso e reservado, a declarações dualistas tão radicais, embora sua filosofia pareça melhor fundada. A argumentação das filosofias neoplatônicas deste novo período não parece convincente. Tais filosofias alegam vagamente que a alma é, ao mesmo tempo, algo de elevado e de afundado na matéria. Este afundamento na matéria ocorre todavia como em uma situação anormal. Deve, pois, a alma humana ser resgatada mediante práticas de salvação. Este quadro de perdição é o fundo da maioria das religiões, e que encontram agora nas filosofias neopitagórica e platônica o seu ideário teórico. As doutrinas religiosas, como o zoroastrismo, e que já eram conhecidas no Ocidente pelo velho pitagorismo e pelo orfismo já presente em Platão, ganharam corpo, nesta fase do pensamento helênico-romano. Ainda que peculiares a todas as religiões primitivistas, os mistérios e purificações, visando uma salvação para o seu espírito, lograram nova força.

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Sobretudo o neoplatonismo se tornou, por isso, por excelência, a filosofia das religiões de caráter salvacionista, as quais passaram a proliferar. Pela volta do século 1-o. a.C. as idéias trinitárias penetram na filosofia da religião, através do neopitagorismo e de diferentes formas de platonismo, de que o neoplatonismo de Plotino será um dos mais representativos. O ser é apresentado como polivalente, e emanando um do outro. No alto se encontra o Uno, a seguir o Logos (a inteligência, ou o verbo), em terceiro lugar a Alma do mundo. Finalmente derivavam as almas individuais e a matéria. Por uma espécie de retorno mental, ou místico, se faz a marcha inversa, pela qual a alma humana finalmente se extasia em união com o Uno. Criou-se uma filosofia, sobretudo através do neoplatonismo, de embasamento para as teologias trinitárias. Por isso mesmo adquiriu importância histórica o neopitagorismo, o neoplatonismo. Didaticamente decorrem dali dois títulos representativos:

- Neopitagorismo e religião (vd 246); - Neoplatonismo e religião (vd 251).

I - NEOPITAGORISMO E RELIGIÃO.7270y246.

247. Os primeiros neopitagóricos. Não há uma data precisa do início do neopitagorismo. Ele tem atrás de si uma tradição que remonta às ligas pitagóricas da velha Itália, do século 5-o. a.C., quando viveu Pitágoras (c. 570-496 a.C.). Sabe-se que os pitagóricos exploraram a doutrina dos números e que já praticavam os rituais de purificação. O neopitagorismo aliou-se às transformações platônicas dadas à doutrina dos números e se concentrou sobretudo nas práticas de purificação, influenciando notoriamente às práticas religiosas de seu novo tempo. É nos conhecido como precursor do neopitagorismo, ou mesmo como primeiro neopitagórico, Nigídio Fígulo (+ 45 a.C.), amigo de Cícero e autor de uma obra sobre os deuses. Seguem-se, entre outros, Apolônio de Tiana (4-97 d.C.), escritor e pregador de uma nova religião, ao tempo do imperador Nero. De futuro serão os neopitagóricos aguerridos adversários dos cristãos. Celso, em 179, escreverá contra os cristãos um Discurso verdadeiro, ao qual responderá Orígenes, com um Contra Celso. Destruída pelos cristãos, a obra de Celso se conservou, embora fragmentariamente, nas citações e informações dos seus contestadores. Entretanto havia uma grande proximidade entre o neopitagorismo e o cristianismo. Numênio de Apaméia, também do fim do 2-o. século, foi de grande destaque no quadro dos pregadores do neopitagorismo. A ele e a Pitágoras teriam sido feitas revelações. Já sob a influência do neoplatônico judeu Filon de Alexandria (c. 25 a.C. – c.50 d. C.) , apresentou uma doutrina de três deuses: o Supremo supra-sensível, o Demiurgo que põe forma na matéria, o Universo que ele formou. Plutarco de Cheronéia (45-125 d.C.), com atuação em Roma e Atenas, foi um pitagórico eclético com elementos platônicos e estóicos. Autor de várias obras, entre outras, Vida de homens ilustres da Grécia de Roma e Obras morais. Influenciou notavelmente ao mundo pagão e indiretamente ao cristão. Defendeu o dualismo do bem e do mal, com uma série considerável de intermediários. Estes intermediários lhe possibilitaram dar lugar às divindades ocidentais e orientais, racionalizando a mitologia.

248. Versos de ouro. Há ainda uma série se escritos pseudos, atribuídos ao remoto Pitágoras. Entretanto, outra coisa não são que a tradição pitagórica codificada tardiamente, na fase neopitagórica dos primeiros séculos cristãos. Neste contexto surgiu a apreciável coletânea denominada Versos de ouro, um repertório de moral sentenciosa. Acredita-se na afinidade entre os neopitagóricos e a seita dos judeus essênios, a cujo contexto esteve ligado Jesus de Nazaré. E assim desde o início houve um canal de influências do neopitagorismo sobre o cristianismo. Ocorreu também uma influência dos escritos neopitagóricos sobre os primeiros cristãos, por exemplo Eusébio de Cesaréia (séc. 4-o. ) autor de Preparação evangélica. Esta influência se deu mesmo por causa da conversão de neopitagóricos ao cristianismo.

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249. A crença dos neopitagóricos na revelação foi um dos lados por onde o neopitagorismo estava próximo do judaísmo e do cristianismo. Acreditavam os neopitagóricos numa intuição direta do inteligível (noetón), algo como uma revelação. A religião seria mais do que o conhecimento discursivo do entendimento e sensação, mas também um exercício sobrenaturalista. Entretanto, a doutrina pura é própria apenas dos indivíduos mais santos, que são tocados por ela como por uma graça. Isto se afirmava de Pitágoras e de Numênio, aos quais a divindade ter-se-ia revelado. O misticismo pitagórico admite, pois, a revelação como um fenômeno ordinário e que é recebida sobretudo pelos espíritos mais adiantados. Deus contém as idéias (ou números). É interioridade consciente, que não pode conter imperfeição ou qualquer mal. Não exerce qualquer contato direto com o mundo material. Fá-lo por seres intermediários, como já ocorria com o Demiurgo de Platão, colocado entre as idéias reais e o mundo material. Surge, pois, o Logos, (inteligência, ou verbo). Abaixo deles há outros e outros espíritos que servem de intermediação.

250. A subida da alma ao céu astronômico. O neopitagorismo, desde o velho pitagorismo, está sob influência oriental. Continuou a assimilar elementos da religião de Mitra (vd 250), e, de um modo geral, da religião de Zoroastro (vd 125), ao mesmo tempo que fazendo reelaborações. Para o neopitagorismo, a alma, depois da morte do indivíduo, é julgada. Se o julgamento lhe for favorável, ela sobe ao céu astronômico. Ainda que a religião dos egípcios já acreditasse neste julgamento, a alma ficava junto ao corpo, e dali porque este era conservado o melhor possível pela mumificação. Com os neopitagóricos acentua-se a imagem de que o céu das almas se encontra no alto e não mais em um lugar especial embaixo da terra. As concepções mais antigas das religiões se imaginavam o lugar dos justos embaixo da terra, ainda que pudessem imaginar que Deus também circulava pelo cosmos. Há um momento na história das religiões, em que o céu passa a ser considerado como estando no alto. Divide-se o céu neopitagórico em sete esferas, que correspondem aos sete planetas. Cada céu é penetrado através de uma porta, cujo anjo a abre aos iniciados, anteriormente instruídos com fórmulas especiais. Ante cada passagem despe-se a alma, como que de vestes sucessivas das funções tipicamente humanas e materiais. Nos cerimoniais litúrgicos de preparação, por meio de vestes simbólicas, por vestes simbólicas, que os indivíduos vão trocando, estes são iniciados para aquele percurso de ascensão ao último céu. Chegada a alma ao sétimo e definitivo céu, agora já sem impurezas, passa a viver ali a felicidade beatifica sem fim. Próximos entre si, o neopitagorismo (com suas purificações em céus intermediários e espíritos intercessores) e o cristianismo (com o seu purgatório preparador e a meditação de Jesus, dos anjos e santos) hostilizavam-se facilmente, ao mesmo tempo que se influenciavam mutuamente, sem que disto se apercebessem.

II – NEOPLATONISMO E RELIGIÃO.7270y251.

252. A importância do neoplatonismo em filosofia da religião é inconteste. É que ele ocorreu num período de grande exacerbação religiosa. Como um movimento mais definido, o neoplatonismo se manifestou sobretudo no século 2-o d.C., tendo a Plotino (vd 262) como seu principal sistematizador. Tudo, entretanto, já principiara no final do milênio anterior, quando em Alexandria helênica, num importante núcleo de ideologias religiosas do Oriente e do Ocidente, repercutiu a filosofia dos gregos, sobretudo a de Platão (427-347 a.C.), a qual sempre tivera vasta influência. O neoplatonismo, tanto em suas manifestações primeiras, como em suas formas tardias do segundo século d.C., teve, - como se disse, - forte repercussão na mentalidade religiosa que agora passava a ter voga. Gerou o neoplatonismo uma linguagem filosófica adequada para o tratamento racional das doutrinas religiosas. Cedo criaram os judeus uma nova linguagem para o judaísmo. O mesmo acontecia com outras crenças as quais estabeleceram também as suas teologias. Tudo isto foi finalmente influenciar o cristianismo oficial, como depois se instalou, sobretudo a partir do Concílio de Nicéia, em 325. Nunca antes houvera tal zelo da Igreja Cristã pelas particularidades doutrinárias. Esta preocupação chegou ao ponto de se convocar concílios, para neles se decidir questões de doutrina, por votação numérica. Os dogmas estabelecidos

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no calor do voto, passaram a ter efeito excomunicatório, sendo eliminados os grupos discordantes, dados como hereges. A igreja cristã, - que herdou dessa fase neoplatônico-religiosa a tendência para as definições teológicas, - fará, desse dogmatismo com base no voto, uma de suas características mais odiosas, que perdurará até adentrados tempos da época moderna.

253. O ordenamento sistemático da história do neoplatonismo sofre dificuldades, e por vezes não passa de um ordenamento para fins didáticos. Os antecedentes imediatos do neoplatonismo se encontram no neopitagorismo (Nigidio Fígulo, Sócion, Moderado de Gades, Apolônio de Tiana, Nicômaco de Gerasa, Numênio de Apaméia) (vd 247) e, limitadamente, na escola judaico-platônica de Alexandria (Aristóbulo, Fílon) (vd 254). Dentro do neoplatonismo se desenvolveu praticamente todo o pensamento dos Padres da Igreja, por isso denominados patrísticos. Embora seja difícil enquadrar a evolução do neoplatonismo dentro de um esquema cronológico definido, é possível observar grupos e mesmo escolas denominadas pelos seus principais núcleos:

- Escola neoplatônica judaica, com os nomes de Aristóbulo e, mais destaque, de Filon de Alexandria; - Escola neoplatônica Alexandrina, com nomes importantes na fase tardia: Amônio Saccas (c. 175-242), Plotino (205-270), Amélio e Porfírio, com preocupação metafísica e ética; - Escola neoplatônica Siríaca, orientada por Jâmblico, com interesse na teologia politeísta; - Escola neoplatônica Ateniense, sistemática, de que Proclo, Simplício, Damácio são os principais representantes.

Ainda é possível falar em:

- escola neoplatônica de Pérgamo, a que pertenceram os mestres de Juliano Apóstata; - escola neoplatônica de Alexandria, de Sinésio de Cirene, João Filopono, Asclépio, Olimpiodoro, Davi o Armênio; - neoplatônicos do Ocidente Latino, Macróbio, Calcídio, Mário Victorino, Boécio.

O historiador contemporâneo Diógenes Laércio mal alcançou este tempo. Mas chegou a dizer que Potamon fundou "nos últimos tempos" uma escola em Alexandria. A omissão se deve em parte ao fato de se ter restringido aos filósofos que passaram pela Grécia. A lacuna foi preenchida, entretanto, por Porfírio, cuja Vida de Plotino, biografa o principal representante da escola e menciona muitos outros nomes, tudo isto completado, em alguns casos, pelas obras que restaram.

A) NEOPLATONISMO JUDAICO E RELIGIÃO. 7270y254.

255. O pensamento judaico e cristão se formou com base sobretudo nos movimentos filosóficos de Alexandria. O neoplatonismo judaico resultou da fusão do platonismo e do judaísmo, formulada em Alexandria, onde os intelectuais judeus tinham contato com a cultura helênica. Alexandria foi a porta principal de contato dos judeus. O monoteísmo e espiritualismo da religião mosaica se encaminharam muito naturalmente para a assimilação das doutrinas pitagóricas e neopitagóricas, platônicas e neoplatônicas. O contato com a sabedoria filosófica foi uma excelente oportunidade para despojar os antropomorfismos grosseiros do monoteísmo judaico mediante uma conceituação filosófica mais apurada a que haviam chegado os gregos. Refletem-se então nos ensaios de exegese bíblica a filtração de conceitos platônicos, aristotélicos e estóicos. São de Alexandria alguns livros do Velho Testamento, chamados dêutero-canônicos, que os católicos incluíram no Cânon dos livros sagrados. Escritos em grego, revelam visível melhoria de conceitos, ao mesmo tempo que influências neopitagóricas e neoplatônicas.

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O livro da Sabedoria, que fora atribuído falsamente ao rei Salomão (972-929 a.C.) é influenciado pela filosofia grega recente. Nele ocorre o conceito de apórroia (= emanação, sopro, sopro inteligente) que atravessa todas as coisas. O IV Livro dos Macabeus trata da superação das paixões, em termos que são estóicos. Este livro "não é outra coisa que uma diatriba filosófica da teologia judaica" (Windelband).

256. Aristóbulo é o mais antigo judeu filósofo. Uns o puseram a nascer pelo ano 200 a.C., e outros pelo ano 100 a.C. Ficou conhecido apenas através de alguns seus fragmentos, conservados em citações feitas por Clemente de Alexandria e Eusébio de Cesaréia (este também nascido em Alexandria), além das informações anexas. Diz-se que foi "peripatético". Ensinou, de acordo com o platonismo, a transcendência da divindade. Deus exerce a força, à maneira da imanência estóica. Admite a ocorrência de seres intermediários entre Deus e o mundo, o que o relaciona com os neopitagóricos, ao mesmo tempo com características do judaísmo. Aceitou, como os pitagóricos e neopitagóricos, a revelação à personalidades mais purificadas e santas. Defendeu ainda a tese original, pela qual a filosofia dos gentios, depende da revelação judaica. O mesmo dirá Filon e será repetido pelos patrísticos cristãos alexandrinos, tais como São Justino e Clemente de Alexandria.

257. Filon de Alexandria (c. 20 a.C.) foi o maior representante da filosofia neoplatônica judaica. Viveu exatamente ao tempo em que atuava Jesus. Não demorará o contato dos cristãos, com este filósofo, ao qual apreciam, podendo haver, por isso mesmo, assimilado algumas de suas idéias para desenvolvimento de uma nova teologia. O cristão Eusébio de Cesaréia (263-339) informou: "Nos tempos deste imperador (Tibério) floresceu Filon, varão dito em máxima estima, não somente por muitos dos nossos, senão também dos gentios. Refere-se que tendo cultivado principalmente as filosofias platônica e pitagórica, superou a todos do seu tempo" (Eusébio, Histórica eclesiástica, II,5). Conservam-se de Filon de Alexandria vários dos seus escritos. Aplicou aos episódios bíblicos uma interpretação alegórica, como já o haviam feito os estóicos com os mitos gregos. Nisto foi seguido pela exegese da escola cristã de Alexandria, especialmente de Orígenes e Eusébio de Cesaréia. A mundivisão de Filon se processa com os conceitos de transcendência e emanação de Logos, por conseguinte com elementos tomados ao pitagorismo, platonismo e estoicismo. Deus é o inefável, inexprimível, o absolutamente transcendente, só conceituável pelo método da negação das qualidades dos seres particulares e empíricos. Mais uma vez como pitagorismo, para Filon Deus não pode tomar contato com a matéria, que é eterna. A criação bíblica não é senão a organização da matéria, pela conversão do caos em um cosmos. A atuação de Deus, não podendo ser direta, se faz através de um Logos (inteligência, ou verbo), que é o termo com que Filon denomina as forças (Dynamis) intermediárias entre Deus e a matéria. Estas forças se afiguram, ora como propriedades de Deus, como idéias e pensamentos, ora como mensageiros e demônios (anjos) executores das ordens de Deus. Este Logos é concebido como algo um tanto separado dele, quase como um segundo Deus. Filon comparou o Logos à palavra (ou verbo). Tem a palavra, num só tempo, a fisionomia sensível e significação inteligível, de onde ter contato simultâneo com Deus e com a matéria.

258. Ocorre assim que, ao mesmo tempo que nascia na Judéia o cristianismo, como um movimento de crenças singelas, já se formava em Alexandria o embasamento racional de sua teologia. De ecletismo em ecletismo, esta teologia haveria de encontrar três séculos depois uma formulação mais ou menos coerente, em que o item tipicamente neoplatônico é a Trindade das pessoas divinas. Do ponto de vista do pensamento em geral, desenvolveu-se no mundo cristão em geral o que veio a ser depois denominado Patrística (vd 266) .

B) NEOPLATONISMO DE SACCAS, PLOTINO E DISCÍPULOS. 7270y259.

260. Amônio Saccas (c.175-242 d.C.) teria dado origem à doutrina neoplatônica, segundo antiga tradição. Mas, quase nada se conhece dele, nem de suas doutrinas, para se fazer um juízo novo e crítico.

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Fora mestre apreciado em Alexandria, como se depreende do entusiasmo de Plotino seu discípulo, que, após decepcionar-se com outros mestres, diz a propósito do novo: "Eis aqui o que eu procurava" (Porf., Vida de Plotino III). Ficou Plotino com ele 11 anos, e depois seguiu para Roma. Não se pode inferir as doutrinas de Amônio Saccas linearmente pelas dos seus discípulos, porquanto estes diferem muito entre si. Mas estas doutrinas talvez contivessem algo de oriental, porque Plotino pretendeu a seguir estudar os persas (de onde veio para o Ocidente a influência do zoroastrismo sobre o orfismo, pitagorismo, platonismo). Igualmente quis estudar aos hindus. Além disto os neoplatônicos conservavam doutrinas em segredo; apenas os discípulos eram iniciados nas mesmas. Erênio, Orígenes e Plotino se comprometeram a não divulgar as doutrinas secretas que Amônio Saccas lhes havia descoberto em suas conversações. Plotino permaneceu fiel à sua promessa; ele admitia, na verdade, alguns amigos em suas conversações, porém guardava religiosamente o segredo prometido às doutrinas de Amônio. Foi Erênio o primeiro a violar o pacto, e Orígenes o segundo. Este último não escreveu senão o tratado A cerca dos Demônios e, no reinado de Galiano, um livro intitulado Que só rei é criador (Poeta Plotino durante muito tempo não escreveu absolutamente nada; contentava-se em tomar das doutrinas de Amônio o fundo de suas lições (Porf. Vida de Plotino III). Por último, - como se dirá depois, - Porfírio lhe organizou os escritos. Sabe-se que todavia Amônio afirmava que Platão e Aristóteles coincidiam no essencial.

261. Plotino (c.205-270) foi o último filósofo antigo a criar um grande sistema, denominado neoplatonismo. Sua importância está em haver dado embasamento intelectual às religiões orientais e finalmente ao próprio cristianismo, sobretudo a Agostinho de Hipona (354-430). Nasceu Plotino em Nicópolis, do Egito, e estudou em Alexandria, então o maior centro cultural, entre o Oriente e o Ocidente. Por ocasião da expedição do imperador Gordiano contra os persas, o acompanhou, quando a oportunidade de tomar contato com os sábios daquela remota região. Em 244 abriu escola em Roma. Ali viveu como asceta e celibatário. Os escritos de Plotino foram ordenados por Porfírio o Fenício (c.232-304), o mais fiel dos seus discípulos. Passaram a chamar-se Enéadas (derivada de ennéa = nove), porque os textos foram ordenados em 6 partes, cada uma com 9 pequenos tratados. Traduzida a obra de Plotino já na antiguidade romana do grego para o latim, por Mário Victorino, ela influenciou imediatamente o Ocidente, sobretudo aos cristãos.

262. O monismo panteísta de Plotino é o que tem de mais peculiar o seu sistema. Este monismo panteísta opera, por sua vez, por emanação, isto é, por derivações, cujo resultado permanece imanente, sem se separar efetivamente. Desdobra o ser emanativamente em uma Trindade divina: - o Uno, - o Logos- a Alma do mundo. Finalmente, a Alma do mundo faz emanar as almas humanas individuais e a matéria. A conceituação de Plotino já tem analogia nos mitos caóticos das religiões. Estes mitos passam agora a ter uma sustentação filosófica, ainda que discutível, cujo resultado é uma progressiva racionalização. Conforme se adiantou, o trinitarismo não é nada mais que a introdução da processão trinitária nas unidades principais do sistema de Platão, - Idéias eternas, Demiurgo, Matéria eterna (mundo). Em Platão todas as três são eternas, sem serem inter-relacionadas. Agora uma procede da outra. No monismo panteísta de Plotino a processão se faz emanação. Ponderou que o pleno pode emanar por extravasão do superabundante, sem perder sua plenitude. Os graus menores de perfeição, que se encontram ao nosso alcance, nos permitem, pelo retorno, ir ao conhecimento do pleno. Esta maneira de ver, pelo retorno à Idéia inicial, foi sempre peculiar ao platonismo e comanda seu argumento preferido da existência de Deus. O argumento foi colhido por Tomás de Aquino, que o arrolou como quarta via, a dos graus de perfeição. Estes se exigem sucessivamente até o grau máximo, chamado Deus. Na mundivisão de Plotino, ocorre uma emanação do pleno, como algo que se derrama, pela sua superabundância. E, à medida que se expande esta emanação, se constituem como decréscimo de ente, os sucessivos graus. O Ser é Uno, mas se desdobra em emanações decrescentes. O processo inicial das emanações se dá na forma de Trindade divina:

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Tò Hén (= O Uno); Logos (= A inteligência, ou O Verbo); A alma do mundo.

Depois seguem as emanações das almas individuais e finalmente a emanação da matéria. A Trindade inicial, que já aparece em outros neopitagóricos, apresenta analogia com a Trindade de Platão (vd 215) e com a Trindade cristã. Ocorrem variações nas diversas conceituações, seja entre neopitagorismo e neoplatonismo; seja entre estas doutrinas globalmente e a Trindade cristã. A analogia entre todos estas trindades é evidente, como também a mentalidade raciocinante que inspirava a todas na época antiga.

263. Passou Plotino a analisar o conceito de cada uma destas formas de ser do esquema trinitário. Acima de tudo está o Uno, sem qualquer particularização e portanto dotado de transcendência total. Não é isso e nem aquilo, mas é simplesmente. Não pode sequer ser inteligência, porque esta já é um tipo determinado de ser. "O Uno supremo está do lado de lá do ser" (Enéada, VI,6,5, 37). "Ele é a realidade primeira, mas que não é inteligência por ser anterior à inteligência; pois a inteligência se conta entre as coisas existentes; ora, ele não é algo existente, pois é anterior a tudo; nem é nenhum ser, porque o ser não é algo existente, pois é anterior a tudo; nem é nenhum ser, porque o ser tem como forma a forma do ser; ora, Deus é despido de qualquer forma. Como principalmente a essência da unidade é a produtora de todas as coisas, não é Deus nenhuma destas. Portanto nem é uma realidade determinada, nem nada de qualificativo ou quantitativo, nem espírito, nem alma. Nem é móvel, nem está em repouso, não está no espaço, nem no tempo, mas é uniforme como tal, ou antes, é sem forma, porque é anterior à toda forma, anterior ao movimento e ao repouso, que se atêm ao ser e o multiplicam" (Enéada VI 9, 3). Esta doutrina da transcendência de Plotino cabe tanto na filosofia de Platão, como na de Aristóteles. O conflito verdadeiramente ocorre nas emanações sucessivas, por graus decrescentes. Isto importa em negar ao ser supremo a capacidade de causar diretamente todas as escalas do ser. As doutrinas primitivas, quando apoiadas nas emanações sucessivas, parecem não ter consistência metafísica. Esta sucessividade compromete a própria transcendência. Dar sucessão implica em atribuir ao primeiro, o Uno, a anterioridade, sem a simultaneidade.

264. A inteligência (Logos) emana por causa da necessidade de conhecer. Ora, o conhecer supõe a composição de sujeito e objeto. Logo, a inteligência se distinguiu de Deus. Poder-se-ia contestar a Plotino, que Deus poderia coincidir com o mesmo pensar. Ainda que em abstrato se conceba a divisão em Deus, concretamente ela não está impedida de simultaneidade. De maneira geral, o Logos é a imagem do Uno e é menor do que ele. O Logos é a imagem do Uno Mas se diversifica em muitas idéias, por não poder apreender de uma só vez o Uno. Tais idéias equivalem às idéias arquétipas de que fala Platão; em Plotino, ela são efetivamente idéias, ao passo que em Platão elas são idéias reais. Na prática, não há grande diferença entre idéias reais de Platão e o Logos de Plotino, se se considerar apenas uma e a outra entidade; a diferença maior quando Plotino diz que do Uno deriva o Logos, por sua vez do Logos a Alma do mundo. O Logos exerce ainda a função de Demiurgo, aproveitando-se das idéias para realizar os novos seres, tendo-as como modelos. O Lógos, portanto é o Senhor, à semelhança como dele se diz na doutrina cristã.

265. A Alma do mundo emana do Logos. Ela é a forma geral de todas as coisas. Corresponde ao Lógos imanente às coisas de acordo com a concepção dos estóicos. Estes o diziam também fogo racional (pyr noerón). Em Plotino a Alma do mundo é conceituada como forças plásticas, ou como razões seminais (Lógoi spermatikoí). Corresponde a uma visão conjuntas das formas substanciais, ao modo como Aristóteles entendia a forma que determina a matéria.

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266. As almas individuais não se distinguem propriamente das razões seminais, as quais se encontram multiplicadas na Alma do mundo, como as idéias são muitas dentro de uma só inteligência. Todo o corpo é animado, porque contém as referidas razões seminais. Não o que seria apenas corpo sem alma, porquanto a Alma do Mundo a tudo se estende. Não ocorre fragmentação da alma, participando ela de todo o mundo. "A Alma do mundo se dá a ele em toda a extensão, tão grande quanto seja; todos os intervalos, grandes e pequenos, são animados. Muitos corpos podem estar no mesmo lugar; um está aqui outro lá, e estão separados um do outro. A alma não é assim; ela não se fragmenta para animar com cada uma de suas partes cada parte do corpo; mas todas as partes vivem pela alma toda inteira, ela está toda presente por toda a parte, semelhante, pela sua unidade e sua onipresença com o Pai (a inteligência) que a engendrou" (Enéada V,1,2, 25-33). A teoria das razões seminais, em vista da onipresença da vida, favorece as hipóteses da evolução da vida. É retomada por Agostinho, embora abandonada pela Escolástica. A onipresença da alma, em um corpo humano individual, é todavia entendida pelos escolásticos ao modo de Plotino; a mesma alma estaria onipresente, toda inteira em cada lugar do corpo humano. Diferente disto tudo é a teoria de que o corpo humano seria uma coleção de vidas coordenadas, com vida autônoma para cada célula

267. A matéria é o último estágio da emanação, segundo Plotino. É o último, por se tratar da maior indeterminação possível antes do nada. Em vista das derivações sucessivas, a alma exerce a função de produzir a matéria. Engendra, por conseguinte, o corpo e o organiza por meio de potências como as faculdades vegetativas e sensitivas. Que seria em Plotino a matéria em si mesma?. Sua concepção é similar de Aristóteles. Este a estabelece como realidade, porém indeterminada, recebendo determinações por parte da forma. A geração da matéria por obra do espírito inspirará no futuro algumas formas mais filosóficas de "espiritismo".

268. A ética de Plotino decorre de uma teoria emanatista de graus. Uma vez que a descida é uma diminuição de realidade, importa retornar mentalmente à realidade superior. A religião passa a ser uma contemplação, cujo estágio mais elevado é o êxtase. Ocorre, portanto, uma lei de retorno, do filho para o pai, da criatura para o criador. Esta excitante vontade de retorno, até repousar no ser supremo inspirará as filosofias de Agostinho e Duns Escoto. Através destes, ao misticismo cristão em geral.

C) NEOPLATONISMO DA PATRÍSTICA CRISTÃ. 7270y270.

271. O sucesso político do cristianismo deveu-se ao Imperador Constantino, no poder de 306 a 337. Sem ser cristão, - pelo menos não inicialmente, - contou com o apoio dos cristãos. Com o Edito de Milão (313) introduziu a liberdade de culto, integrado desta forma os cristãos ao mesmo nível das religiões tradicionais, o que, em últimas instância os favoreceu. Este estágio de desenvolvimento da liberdade de consciência foi uma conquista social. A liberdade religiosa foi logo rompida pela oficialização do cristianismo como religião do Império. Constantino tratou da religião como se fosse chefe da igreja e grande pontífice de todos os demais religiões. Havendo convocado o Concílio Ecumênico de Nicéia, 325, deu Constantino à igreja cristã a estrutura hierárquica que hoje ainda conserva, a de bispos e arcebispos, estes coordenando a aqueles em cada região, ou Província. Consequentemente cresceu a posição dos bispos dentro da Igreja. Por esta e outras inovações surgiu o que veio a ser denominado, por vezes, por Igreja constantiniana. Adepto de uma religião solar monoteísta (de Mitra), o Imperador Constantino deixou-se batizar apenas no final de sua vida.

272. Patrística é a denominação que os historiadores da filosofia e da teologia deram ao pensamento cristão, filosófico e teológico, dos primeiros séculos cristãos. Seus autores se dizem Padres da Igreja.

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O quadro geral dos pensadores patrísticos, se redistribui em:

a) Período de formação da patrística (2-o. e 3-o séc., até o Concílio de Nicéia, ano 325), com os nomes gregos:

Aristides, autor de uma Apologia;

São Justino, autor de duas Apologias;

Taciano, que depois se tornou gnóstico;

Atenágoras;

Teófilo de Antioquia;

Santo Irineu, autor de Contra os hereges;

Hipólito, autor de Philosophoumena;

com nomes da África latina:

Minúcio Felix;

Tertuliano, de grande produção, depois montanista;

Arnóbio, apologista;

Lactâncio, um clássico latino, com ação no Oriente e em Tréveris;

com nomes da Escola cristã de Alexandria:

Panteno, fundador da Escola Cristã;

Clemente Alexandrino;

Orígenes de Alexandria, de grande erudição.

b) Século da grande patrística (325-430), com nomes gregos:

Santo Atanásio;

São Gregório de Nazianzo;

São Basílio Magno;

São Gregório de Nissa;

Com nomes latinos:

Santo Hilário de Poitiers;

Santo Ambrósio;

Santo Agostinho de Hipona.

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c) Patrística de transição para a Escolástica (430-c. 800): com nomes do Oriente:

Pseudo-Dionísio, entre séc. 5-o. e 6-o.;

São João Damasceno (+749);

Com nomes do Ocidente:

Severino Boécio (470-526);

Cassiodoro (468-575).

Considere-se que o fim do Império Romano do Ocidente ocorreu em 476, quando se marca também o fim cronológico da antiguidade, e se fez começar a Idade Média. Entretanto, subsiste a cultura anterior, até que efetivamente assume novo rumo com a Escolástica surgida com as escolas criadas no Império de Carlos Magno, rei dos francos de 768 a 1814, com capital em Achen (Alemanha).

273. Agostinho de Hipona (354-430) foi o primeiro grande patrístico, com pensamento próprio, com uma filosofia da religião bastante desenvolvida. Nasceu em Tagaste, próximo de Hipona, na então província romana de Numídia, hoje parte da Argélia. Fez estudos superiores de retórica em Cartago, de 371 a 374, quando também aderiu ao maniqueísmo, caracterizadamente rigorista e proselitista. Retornando a Tagaste, lecionou retórica por um ano. Mais uma vez em Cartago, continuou no mesmo magistério, por 8 anos.

Passou um ano em Roma e três em Milão, naquele momento eventual sede do Império do Ocidente. Até aqui o pensamento de Agostinho fora maniqueu. Influenciado pela pregação de Ambrósio (vd 363), tornou-se cristão em 387, retirou-se do magistério, dedicando-se mais intensamente à filosofia neoplatônica.

Retornando finalmente à África, criou um mosteiro nos bens que então herdava, e que foi a origem da ordem agostiniana, reflexo inconsciente de sua anterior condição maniqueísta. Visitando frequentes vezes a comunidade de Hipona, veio a ser convidado em 391 para ser sacerdote e auxiliar do velho bispo, e em 395 passou mesmo substituí-lo. Por causa de sua atividade como bispo de Hipona, esta cidade se ligou ao seu mesmo nome. Obras de Agostinho: Escreveu Agostinho cerca de 100 títulos. Em suas Retratações (Retractationes, 2 vols.), redigido entre 426 e 427, cita 92 destes títulos, num total de 232 livros, dos quais fez uma revisão com novos esclarecimentos. Dentre os autores cristãos da antiguidade romana, foi um dos mais volumosos, e suas obras passaram a ser reeditadas até hoje. Escritos dos 10 anos anteriores ao episcopado e que se situam entre 386 a 396, de características mais filosóficas: Contra os acadêmicos (Contra academicos), sobre a certeza; Da vida feliz (De beata vita); Sobre a ordem (De ordine), sobre a providência divina e a educação;< Solilóquios (Soliloquiorum), sobre Deus e a alma que fala a Deus; Sobre a imortalidade da alma (De immortalitate animae); Sobre a grandeza da alma (De quantitate animae), sobre a capacidade da alma para a virtude a contemplação de Deus; Sobre o mestre (De magistro), sobre a língua e a instrução; Sobre o livre arbítrio (De libero arbitrio), contra o determinismo maniqueísta e Deus como princípio do bem; Sobre a música (De musica), sobre o ritmo e a elevação a Deus; Sobre os costumes da igreja e sobre os costumes dos maniqueus (De moribus ecclesiae et de moribus manichaeorum); Sobre o Gênesis contra os maniqueus (De Genesi contra manichaeos); Sobre a utilidade de crer (De utilitate credendi);

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Contra Adimanto, discípulo de Maniqueo (Contra Adimantum, Manichaei discipulum). Os escritos do curso do episcopado de Agostinho perseveram na questão com os maniqueus. Mas aos poucos passou a se concentrar na polêmica contra os pelagianos, estes dados à defesa da boa natureza da vontade humana; e ainda contra os donatistas, estes, pelo inversa, rigoristas na administração dos sacramentos. Do início do episcopado são também as três obras mais apreciadas de Agostinho: Confissões (Confessiones), autobiografia e espiritualidade, com elementos filosóficos sobre a criação e Deus; Da Trindade (De Trinitate), esclarecimento sobre as pessoas divinas, à luz de elementos neoplatônicos; Da cidade de Deus (De civitate Dei), obra mais tardia e escrita num curso mais longo de tempo, de 413 a 426, sendo uma apologia do cristianismo e uma visão do Reino de Deus, em termos de teologia da história.

Outras obras ainda, e do tempo do episcopado: Contra a carta de Maniqueu chamada Fundamento (Contra epistolam Manichaei quam vocant Fundamenti); Contra Fausto maniqueísta 33 livros (Contra Faustum manichaeum libri XXXIII); Contra Secundino maniqueísta (Contra Secundinum manichaeum); Dos atos com Felix maniqueu (De actis Felice manichaeo); Livro sobre a natureza do bem contra os maniqueus (Liber de natura boni contra manichaei), um dos bons livros de Agostinho, esclarecendo o mal como ausência do bem devido, contra a metafísica dualista. Escreveu ainda outros livros sobre a polêmica com donatistas e pelagianos. Obras sobre a gratuidade da graça e predestinação divina, escritos nos últimos anos: Sobre a graça e o livre arbítrio (De gratia et libero arbitrio); Sobre a correção e a graça (De correptione et gratia); Sobre a predestinação dos santos (De predestinatione sanctorum); Sobre o dom da perseverança (De dono perseverantiae). Além de sermões, cartas, comentários bíblicos.

274. O pensamento de Agostinho. Ainda que atingisse a posição de o mais expressivo teólogo e filósofo cristão do primeiro milênio, não chegou Agostinho a explicitar um sistema filosófico perfeitamente acabado. Mas sempre que se referiu a temas filosóficos, os apresentou coerentemente com um sistema, o qual era neoplatônico, ainda que com algumas inovações. Fez principalmente uma filosofia aplicada aos temas particulares que se lhe antepunham, que eram gnosiológicos, religiosos e morais, políticos e históricos. No todo, Agostinho foi coerente, de sorte a ser possível apontar para um sistema interno de sustentação do referido todo. Inteligente, a obra de Agostinho se ressentiu contudo pela falta de preparo em língua grega, a qual lia apenas em traduções. Estudou ao neoplatônico Plotino, através da tradução latina de Mário Victorino. Encontrou em Plotino embasamento para desenvolver a doutrina cristã a um tempo monoteísta e trinitária. Dele tomou a noção da transcendência de Deus e suas relações com a criação. Subtilmente se libertou das emanações plotinianas, expondo uma conceituação filosófica da Trindade, que multiplicou as pessoas divinas e não a natureza.

275. Iluminismo agostiniano. Em filosofia desenvolveu Agostinho uma gnosiologia, na qual as idéias universais resultam de uma iluminação divino-natural, não tendo pois origem na experiência sensível. Em última instância se trata apenas de uma reformulação da teoria das idéia inatas, de Platão e dos neoplatônicos, mas uma formulação de efeito considerável na filosofia cristã. Há, pois, a dar destaque à gnosiologia agostiniana, a partir da qual se desenvolveu o agostinianismo, sobretudo na escolástica medieval (vd), contra o racionalismo moderado dos aristotélicos. Estes tiveram em sua liderança a Tomás de Aquino. Aconteceu assim a oposição entre agostinianismo (de caráter platônico) e o tomismo (de caráter aristotélico). O agostinianismo, sobretudo em gnosiologia, dominou a filosofia cristã ocidental da primeira parte da Idade Média. Diferentemente, para Aristóteles as idéias universais derivam, por obra de abstração mental, da experiência sensível, no que será seguido, na Idade Média, por Tomás de Aquino (1225-1274) e Duns Escoto (1266-1308), com as respectivas escolas tomista e escotista. Em teoria do conhecimento, Agostinho situou-se, pois, na linha racionalista radical, desligada da experiência, que já vinha de Platão, e atravessava por Plotino. Finalmente, o platonismo agostiniano vai atingir a Descartes e Leibniz, bem como ao racionalismo moderno em geral.

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A minuciosa ocupação de Agostinho com o problema da certeza se dera já quando ainda se encontrava em Milão. Era tema então peculiar da discussão dos neo-acadêmicos, divididos entre o ceticismo probabilista e o dogmatismo.

Para Agostinho a certeza se funda no fato mesmo do conhecimento, em que ele destacou o eu como imediatamente reconhecido como certo. Mas o conhecimento deste eu não se apóia na experiência sensível, e sim na percepção da mente, de onde poder gerar um sistema de conhecimentos meramente racional. O racionalismo agostiniano destaca aos conceitos universais como aparecidos na mente como uma iluminação divino-natural. Não têm, pois, uma origem sensível, nem mesmo por abstração como queria Aristóteles, contra os pitagóricos, contra Platão e os neoplatônicos. O inatismo de Agostinho difere, entretanto, ligeiramente do antigo. Como se sabe, Platão fazia dos universais conceitos adquiridos em uma vida anterior. O iluminismo divino-natural do agostinianismo caracterizará a escolástica latina até o século treze, quando sofrerá o forte impacto da renovação do aristotelismo.

276. Investigou Agostinho especialmente a Trindade Divina. No final de sua vida as preocupações de Agostinho se concentraram na teologia, buscando aprimorar os conceitos neoplatônicos, os quais aliás deram sustentação teológica à polêmica doutrina sobre a atribuição da divindade às três pessoas, - a um Pai, a um Filho, a um Espírito Santo (vd E. Mil jaroj de kristana filozofio, Pri la naturo de Dio, n.135-148).

Tomou posição também sobre a questão da liberdade humana frente à graça divina dada em auxílio ao homem quando opera. Aderiu a uma solução próxima a da predestinação incontornável. Por isso mesmo o futuro jansenismo (vd 406) e mesmo o protestantismo apelarão à Agostinho. Sabe-se aliás, que também o islamismo, nascido não muito depois, e que tomará de assalto a África latina, defenderá o determinismo geral e a conformidade com a vontade divina. Tratou Agostinho também da questão política, e defendeu, como Ambrósio, a intervenção do Estado em favor da Igreja. Aliás a idéia do Sacro Império Cristão, desenvolvida primeiramente em Constantinopla, e depois pela comunidade cristã do Ocidente, nada mais era do que um modo de pensar antigo, herdado quer do paganismo romano, quer da visão judaica.

Agostinho criou ainda uma teologia da história, como se em seu apreciado livro Da cidade de Deus (De civitate Dei); este contém elementos também de uma filosofia da história. Com a expressão Cidade de Deus, referiu-se ao Reino de Deus. Fundamentalmente, todavia, a teologia e a filosofia da história apresentada por Agostinho é a antiga escatologia, fundada no conceito de um encerramento do curso do tempo. Esta imagem da história procede da escatologia dos zoroastrismo, que penetrou o judaísmo dos profetas recentes e assim alcançou o cristianismo e depois também o islamismo. Um novo tempo virá, em que os do passado viverão integrados num reino, que será eterno. Ponderou Agostinho, - um tanto anti-humanisticamente, - que, se todos se abstivessem do matrimônio, mais cedo viria o fim dos tempos e o respectivo Reino de Deus (Carta 211).

277. Dionísio o Areopagita (entre 485 e 535), dito também Pseudo-Dionísio ter assumido o nome daquele Dionísio Areopagita, ao qual o Apóstolo Paulo converteu ao cristianismo pelos anos 50 de nossa era, por efeito de seu discurso no Areópago de Atenas (Atos 17,34). Teólogo e filósofo, de expressão grega, Pseudo-Dionísio gozou de grande autoridade no decorrer de toda a Idade Média, porque se supunha contemporâneo dos primeiros cristãos. Mais precisamente, o autor poderá ter vivido na Síria, talvez um bispo por causa da maneira respeitos de se referir às autoridades da Igreja.

As obras de Pseudo-Dionísio ofereceram importante contribuição ao estudo da filosofia da religião, também no Ocidente, onde circularam em versão latina. Destacaram-se até pelos títulos: Sobre os nomes divinos (De divinis nominibus, na tradução latina), importante; Sobre a teologia mística (De mystica theologia, na versão latina); Sobre a hierarquia celeste (De coelesti hierarquia, na titulação latina); Sobre a hierarquia eclesiástica (De ecclesiastica hierarquia).

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Atingiu Pseudo-Dionísio um nível de pensamento não comum entre os cristãos. Sua orientação é neoplatônica e reproduz textos de Proclo (480-485), sem todavia mencioná-lo pelo nome. Deus é transcendente. Suas propriedades e as das criaturas somente se aproximam por analogia. Estabeleceu a plena espiritualidade dos anjos, contrariando ao agostinianismo e aos platônicos cristãos em geral, os quais supunham haver uma matéria sutil em todas as criaturas.

278. Boécio (Anitius Manlius Torquatus Severinus Boethius) (c. 470-524), filósofo de expressão latina, foi o último dos patrísticos romanos e o primeiro dos escolásticos, com notável influência na formação do pensamento teológico e filosófico do Ocidente. Nascido em Roma, na família nobre dos Anícios, estudou no Oriente grego, não se sabendo se em Atenas ou em Alexandria. Foi aproveitado pelo Imperador Ostrogodo Teodorico o Grande como cônsul em Roma (ano 510). Posteriormente foi para Ravena, como ministro da corte (magister palatii) do mesmo Imperador. Acusado de favorecer os interesses do novo Imperador de Constantinopla sobre o Ocidente, foi preso, aprisionado em Pavia, e finalmente decapitado.

As obras de Boécio, alguma maiores, outra apenas opúsculos, são praticamente todas representativas: Da consolação de Filosofia (De consolatione Philosophiae), obra principal, escrita na prisão de Pavia, como diálogo estabelecido entre o autor e a Filosofia, esta se apresentando como mulher dotada de sabedoria; tradução do grego ao latim da Eisagogé de Porfírio; tradução igualmente das Categorias de Aristóteles, com comentário. Opúsculos filosóficas de Boécio: Introdução aos silogismos categóricos (Introductio ad categoricos syllogismos); Do silogismo categórico (De syllogismo categorico); Do silogismo hipotético (De syllogismo hypothetico); Da divisão (De divisione); Sobre a definição (De definitione); Sobre as diferenças dos tópicos (De differentiis topicis). Opúsculos teológicos: Como a Trindade é um Deus e não três (Quommodo Trinitas unus Deus ac non tres); Se o Pai e o Filho e o Espírito Santo se predicam da divindade); Como as substâncias, enquanto são, são boas (Quommodo substantiae in eo quod sint, bonae sint), conhecido também como Livro das semanas (Liber de hebdomadibus), opúsculo mais filosófico que teológico; Sobre a fé católica (De fide catholica); Livro sobre a pessoa e sobre as duas naturezas contra Eutico e Nestório (Liber de persona et duabis naturis contra Euthychen et Nestorium), o mais significativo dos opúsculos mencionados. Escreveu ainda sobre as ciências: Sobre a música (De musica); Sobre a aritmética (De arithmetica); Sobre a geometria (De geometria), de autoria apenas provável. Foi Boécio mais platônico, de acordo com as tendências da época, do que Aristotélico, tudo combinado com alguns elementos estoicistas, como a da doutrina da providência divina. Com ele se consolidou a orientação platônica e agostiniana do primeiro período da filosofia medieval, que tem início em Boécio. Influenciou os conceitos medievais sobre Deus e a Trindade cristã, sobre a pessoa e a felicidade, e ainda sobre toda a lógica através da tradução do grego ao latim de livros lógicos, sobre os quais fez ainda comentários. Os conceitos podem originar-se nos sentidos. Não se referiu ao intelecto agente, como capacidade de abstração, conforme Aristóteles. Dualista, defendeu a preexistência das almas, doutrina frequente entre neoplatônicos, mesmo quando cristãos.

279. Concluindo, - o neopitagorismo e neoplatonismo, pela sua índole, forneceram o embasamento para a formação da teologia filosófica (ou filosofia da religião) e para a teologia sobrenatural cristã. Em seu tempo o neoplatonismo fora mais representativo que o pensamento cristão dos primeiros patrísticos. Prevaleceu o neoplatonismo como filosofia e o cristianismo como religião. Por isso, embora a importância intrínseca do neoplatonismo tenha sido considerável, a significação histórica maior do neoplatonismo está em haver atuado sobre o cristianismo emprestando-lhe os fundamentos filosóficos. Em fazendo o empréstimo, neste em parte permaneceu.

ART. 5-o. PENSAMENTO POLÍTICO SOCIALHELÊNICO-ROMANO E RELIGIÃO.

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281. O Direito Romano representou uma conquista notável dos tempos antigos, no curso dos grandes impérios. Desde Alexandre (+323 a.C.) até o final do império romano, o direito progrediu paulatinamente e sempre o espírito da lei natural, ou seja, dos direitos da pessoa humana. Veio finalmente tudo configurar-se no Código de Direito Romano, publicado em 529 d.C., sob o Imperador Justiniano. Filósofos e juristas foram os formuladores de seus princípios, mas também muitos dos seus lances foram representados por sangrentas lutas reinvindicatórias e habilidades dos políticos. Também as filosofias e as religiões, em particular o cristianismo, influenciaram a formulação final do Código de Direito Romano. Fenômenos em menor escala ocorridos na remota antiguidade também resultaram em formulação de códigos. Na Mesopotâmia, o mais notável foi o do código de Hamurabi.

282. Os fatores do desenvolvimento político e social do mundo helênico-romano foram os mais diversos, nenhum atuando por si só. O fator mais geral foi a existência do Império (hoje é o poder federativo), com o consequente diminuição do poder do Estado-cidade (hoje município). Com o desaparecimento do Estado-Cidade, decresceu a vinculação muito estrita com seu grupo. Desde então este homem desvinculado se sentiu mais um indivíduo de sua cidade, do que um responsável por ela. Passou a conviver de maneira mais impessoal e ampla, com todos os homens do vasto Império. Agora é o cidadão da humanidade, com direito a circular por toda a parte. Importa considerar que as religiões antigas estavam muito vinculadas ao poder civil. Este ao ser destruído pela conquista externa de um grande Império, não servia mais de apoio, nem à etnia regional, nem à respectiva religião nacional. Cresceu então o poder das chefias religiosas das etnias. Os judeus, por exemplo, depois de integrados num grande Império, passaram a se unir através de sua religião agora comandada apenas pelos respectivos sacerdotes. Mais tarde, os gregos, submetidos pelos árabes e depois pelos turcos, tiveram nas chefias religiosas a sua unidade nacional. O desenvolvimento das religiões orientais expandidas para o Ocidente não se compreende plenamente, sem que se ponha atenção na transformação do pensamento político e social ocorrido no mundo helênico-romano. Os processos são solidários entre si. Anteriormente, a filosofia grega levava os espíritos mais adiantados a atitudes novas frente à religião. Agora há um desenvolvimento especializado das idéias políticas, jurídicas, sociais e que inflete sobre os comportamentos geral. Uma visão superficial poderá atribuir às religiões orientais, sobretudo à cristã, a transformação social havida no mundo helênico-romano. Em parte as religiões orientais poderão ter sido os fatores desta transformação, porque em tudo ocorre uma interação. Em parte, e por primeiro, também vinha ocorrendo o inverso, - as transformações sociais possibilitaram que ditas religiões orientais, ao penetrarem o Ocidente, e aqui elas mesmas se transformaram e evoluíram. Efetivamente, foi a transformação política e social que estabeleceu as condições para o desenvolvimento das novas religiões. Mas, - como já advertimos, - no social tudo se processa por interação, as religiões, ora surgem como efeito, ora atuam como causa. Para compreensão do fenômeno, temos, pois, de atender às filosofias pós-socráticas, sobretudo no atinente ao pensamento político e social desenvolvido por tais filosofias e pelos juristas e políticos.

283. As organizações particulares e religiosas adquiriram especial importância, as quais substituíram a preocupação anterior com o Estado-Cidade. Cresceu assim a preocupação ética e religiosa. Inquiria-se, - que fazer para ser feliz? A resposta veio da filosofia, agora predominantemente ética. E como tratar os seres transcendentes? Assumiram neste plano importância as religiões orientais. Prometiam algo para o futuro, seja em forma de fatalidade e fortuna, seja na modalidade de vitória sobre o mal, como na religião de Mitra, ou de ressurreição, como na igreja cristã.

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Os deuses gregos e romanos (Zeus e Júpiter e outros) perdem simpatia sobre as massas, porque não tinham mensagem para as novas situações criadas pelos tempos; eram antes Deuses com interesse sobre os homens, do que soluções para os seus problemas.

284. As escolas socráticas menores, - das quais as pós-socráticas dos epicuristas e estóicos são as continuadoras, - deram o sinal de abertura para os novos tempos. Já Diógenes, o Cínico, ou de Sínope (c. 413-322 a.C.), perguntado de onde era, respondeu, - Sou cidadão do mundo! Os cínicos, chefiados por Antistenes (444-370), foram os primeiros anarquistas da antiguidade. Já condenavam a distinção baseada no nascimento, no sexo, nas classes. Epicuro (341-271 a.C.), que deu nome ao epicurismo, com sua ética associada à natureza, cultivou o individualismo e a descrença nas formas sociais, sobretudo daquelas cultivadas anteriormente pele sociedade do Estado-Cidade. Mas foi sobretudo no estoicismo, herdeiro do cinismo, que se formaram os filósofos e juristas que plasmaram a filosofia social do mundo helênico e do Direito Romano. Zenão de Citium (c. 336-264), fundador desta filosofia, viera da Fenícia, para atuar junto à Stoá de Atenas. Só o fato de não ser ele de Atenas, bastava para que sua filosofia não adotasse a diferença entre nações, como entre gregos e bárbaros. A atenuação do cinismo se deu só ao tempo dos estóicos, do segundo pórtico, que admitiram as honras da prática e a glória; esta peculiaridade era uma concessão ao espírito romano.

285. Arrolamento das conquistas sociais dos romanos. As lutas políticas deram ocasião ao paulatino desenrolar das melhorias sociais. No que se refere aos diferentes níveis de direito do Estado político, não foi possível de início mais que destinguir entre o direito local e o direito da cidade universal. Difícil, na antiguidade, era estabelecer uma República, em um grande espaço, e que fosse resultante de um Estado jurídico. Roma estabeleceu a República em 509 a.C. Ela, entretanto, entrou em crise, no 1-o século a.C., quando os romanos já dominavam do Ocidente ao Oriente. O monarca teria que ser, pois uma figura de poder absoluto, imposta pela circunstância, em vista da dificuldade de coordenar de outro modo populações tão distintas. Assim foi que passou ao Império, sob o comando dos Césares. Foram conquistas sociais dos romanos: Lei das doze Tábuas (450 a.C.), que eram tábuas de bronze, com o código escrito de Roma. Ainda que primitiva e rude, a Lei das doze Tábuas representa a primeira fonte de Direito Romano. Continha o texto: "Aquilo que o povo mandar por último será a lei". Lex Canuleia (do tribuno do povo romano Caio Canuleio), de 445 a.C., que optou pela validade dos casamentos entre patrícios e plebeus, as duas classes que dividiam a cidade. Foi a lei da igualdade civil. Lei agrária (487 a.C.), de proteção aos trabalhadores agrícolas. Leis licínias, que estabeleciam a igualdade de patrícios e plebeus no plano militar (366 a.C.) e no plano religioso, para exercer o sacerdócio (302 a.C.), este antes privilégio dos patrícios. Lei semprônia (133 a.C.), dos gracos Tibérios e Caio: "Ninguém poderá possuir mais de quinhentos geiras de fazenda. Quem tiver filhos poderá conservar 500 para si, e 250 para cada um dos filhos; o que sobrar será devolvido à República". Ainda do tempo da era pré-cristã se conhecem as lutas dos escravos sobre a chefia de Espártaco (+71 a.C.) e as reformas de César favorecendo a plebe.

286. Seguiu-se o tempo, dito feliz, de César Augusto (30 a.C. a 14 d.C.). Não obstante o cristianismo primitivo não combateu a escravidão, ainda que induzisse aos cristão a tratar a todos com caridade. Os estóicos entretanto já veiculavam a idéia da eliminação do regime escravocrata. O Imperador Caracala (211-217) estendeu o direito de cidadania a todos os habitantes das províncias. Dali também resultou a melhoria para o tesouro. Desenvolveu-se o estudo do direito, paulatinamente por obra dos juristas Gaio, Paulo, Papiniano, Ulpiano, Modestino, Tribuniano. Foi este último encarregado a consolidação final do Direito Romano. Influências posteriores deram à igreja cristã vários privilégios. Finalmente se derivou para o direito feudal, sempre favorável aos nobres e aos altos mandatários eclesiásticos.

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Paralelamente, já ao tempo romano, se desenvolveram os direitos da mulher, ainda que sempre em escala diminuta. No plano religioso as mulheres ficaram excluídas do sacerdócio cristão e dos cargos eclesiásticos.

ART. 6-o. PENSAMENTO RELIGIOSO MEDIEVAL. 7270y287.

- Filosofia da Religião -- CAP. 3 - DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO -

288. A Idade Média viveu mundos distintos:

- o mundo ocidental e cristão, com novas nações; - o mundo bizantino, também cristão, mas em declínio; - o mundo árabe, emergente; - o remoto oriente, com um mínimo de contato.

A índole religiosa medieval era altamente proselitista. Era também fanática, ao ponto de criar guerras religiosas e sacros impérios, além da pena de morte por heresia. O poder político era considerado como vindo do alto, de sorte a haver uma conceituação teocrática da vida civil. A unidade religiosa era considerada de importância para a segurança do Estado, além de se colocar o Estado à serviço da entidade religiosa instalada. Dentro deste horizonte viveram-se 1000 anos, que finalmente foram superados.

I – A IGREJA POLÍTICA DA IDADE MÉDIA.7270y289.

290. Algumas características da Igreja Medieval. O relacionamento do poder civil e religioso na Idade Média ocorreu com a marca do Estado colocado à serviço dos organismos da religião. Por sua vez a religião estava entendida no como representada pela Igreja cristã, no Ocidente europeu. Já no Oriente, a religião era a cristã, no Império bizantino. Restava ainda o mundo do islamismo, na parte que os árabes foram paulatinamente conquistando, sobretudo na Ásia e Norte da África. Dali resultaram algumas das características da Igreja Medieval.

a) O Sacro Império do Ocidente foi estabelecido, a primeira vez sob em Carlos Magno, rei dos francos, coroado Imperador no ano 800 pelo Papa. Dividido o mundo franco entre os descendentes de Carlos Magno (+ 814), foi mais adiante restabelecido o Sacro Império, em benefício do Imperador da Alemanha. Finalmente a capital do Sacro Império emigrou para Viena, da Áustria.

b) A Santa Inquisição foi também criada com base no princípio do poder civil à serviço direto da religião. Pela via deste odiento tribunal, a Igreja Romana atentou sistematicamente contra a liberdade de consciência e contra o direito fundamental à vida, que cometendo apenas equívocos ou erros, mas verdadeiros crimes. Os condenados eram presos, ou desterrados, ou mortos (na fogueira) por obra do Estado, ao qual ao qual competia executar os julgamentos da Inquisição. Na região de Roma, o Estado era o Pontifício.

c) A investidura dos governantes foi atribuída na Idade Média ao Papa, nos Estados cristãos, e inversamente também o poder de destituí-los. Tomás de Aquino, apesar de o mais esclarecido filósofo escolástico, reafirmou a atribuição temporal e política do Papa, sobretudo para destituir os príncipes das nações cristãs, desde que eles tenham abandonado a fé.

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d) Estados Pontifícios. Consolidou-se a atribuição temporal e política do Papa, durante a Idade Média, ao ser grande parte da Itália central convertida em Estado Pontifício, em 754. Desta então fazia doação Pepino o Breve (rei dos francos desde 751), e era território então conquistado aos italianos. Pela reversa, o Papa, protegido pelos reis francos contra o avanço dos lombardos, restabeleceu o Sacro Império Romano Cristão do Ocidente, em 800. Neste sentido coroou ao rei Franco Carlos Magno (c. 742-814), como seu Sacro Imperador. Em decorrência do movimento de reunificação da Itália, em 1870, o território dos Estado Pontifício voltou à situação antiga, o que foi também confirmado em plebiscito. Um rearranjo diplomático estabeleceu, em seu lugar, em 1929, a extra-territorialidade do Vaticano, entregue à soberania do Papa

e) Criação do Colégio Cardinalício. Desde o início sem sistema definido de eleição, a Igreja elegia seu por Papa, por iniciativa do clero e do povo romano. Havendo crescido a influência do Imperador do Sacro Império na eleição do Papa, ocorreram também as resistências em Roma, até que finalmente um dos Papas reagiu, criando um Colégio de Cardeais, então de 70 membros. Até então se denominavam cardeais figuras da Igreja de Roma, cuja influência também havia crescido, passando agora a assumir mais uma função. De outra parte a criação do Colégio Cardinalício eletizou o sistema dirigente da Igreja, o que não aconteceria se o povo cristão elegesse o Papa, direta ou indiretamente. Pelo sistema criado na Idade Média, o Papa se tornou o representante de um circulo de poder eminentemente autocrático e fechado sobre si mesmo, - em que o Papa anterior nomeia aos cardeais, e os cardeais nomeiam ao Papa. Qualquer seja a teorização que se faça, admite-se que o Papa eleito se legitima, porque acaba sendo aceito pela cristandade.

f). Heresias medievais. Foi a Idade Média marcada por numerosas divergências doutrinárias declaradas heréticas e oficialmente reprimidas. Algumas foram rijamente castigadas, pelo poder civil, com a instigação superior da Igreja. Entre elas figuram as dos cátaros, albigenses, valdenses. E assim também se pregaram as cruzadas cristãs para tomar aos árabes islamitas o poder sobre Jerusalém. Ainda no plano especificamente teológico também se anota que, no curso da Idade Média, se exacerbou a crença no Espírito Santo. Dele se dizia haver chegado o tempo do seu reino, em substituição ao de Cristo. Um nome de referência neste sentido foi Joaquim de Flora (+ 1202), um monge cisterciense, da Calábria italiana. Outro nome destacado do movimento foi o franciscano francês Pedro João Olivi, ou Pierre de Jean Olieu (c. 1248-1298) (vd 294g), filósofo e teólogo escolástico misticista, professor em Paris, e depois em Poitiers. Foi também mestre dos "espirituais" em Provence. Acreditava no estabelecimento do reino do Espírito Santo. Os espirituais, da estrita observância franciscana, obedeciam a teorias diversas, das quais uma é a de Pedro Olieu, pregador rigorista da extrema pobreza.

g) A Igreja Ortodoxa (vd 169), definida separada, desde 1054, da chefia do bispo de Roma, ou do Papa, deu curso diferente ao contexto geral do cristianismo, agora dividido mais claramente em dois blocos. Mais tarde, a partir de 1517, ocorreria no Ocidente ainda a divisão de católicos e protestantes (vd 170).

II – A ESCOLÁSTICA LATINA.7270y291.

292. A Escolástica latina dita também simplesmente Escolástica, é a denominação com que se fez conhecer na Idade Média a filosofia e a teologia ensinada nas escolas da Idade Média cristã ocidental. Derivou o nome Escolástica das escolas que desde do início da Idade Média se desenvolveram em torno dos conventos, das catedrais e dos palácios da nobreza. Do seu desenvolvimento final resultou a universidade, criada no século 13. É a escolástica é uma doutrina mais ou menos coletiva em que trabalhou toda a Idade Média sob a influência da filosofia grega e da Bíblia, tudo sob o controle da Igreja. Esta escolástica, a serviço da teologia, enfatizou uma mundivisão Sacral refletida na própria organização do poder político. Dali resultou que os estudos sobre filosofia da religião tiveram muito destaque, e, em alguns filósofos desenvolvimento apreciável, ou pelo menos detalhes a serem anotados. Inicialmente a Escolástica latina foi determinada pela herança direta do platonismo e neoplatonismo da patrística. Assim foi que seus mestres patrísticos maiores no primeiro período foram os patrísticos Agostinho (vd), Boécio (vd), Pseudo-Dionísio (vd).

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O agostinianismo, sobretudo em gnosiologia por causa da iluminação divino-natural, dominou a filosofia cristã ocidental da primeira parte da Idade Média. Depois, que sob influência árabe, quer por traduções diretas do grego, passou a haver também a inspiração de Aristóteles. Este foi sobretudo reinterpretado por Tomás de Aquino, o qual desenvolveu particularmente o que importava à filosofia da religião. Ainda que, com alguma concessão ao agostinianismo, Duns Escoto também foi um aristotélico em gnosiologia. Diferentemente, para Aristóteles as idéias universais derivam, por obra de abstração mental, da experiência sensível, no que será seguido, na Idade Média, por Tomás de Aquino (1225-1274) e Duns Escoto (1266-1308), com as respectivas escolas tomista e escotista. Entretanto, se deve lamentar que os medievais tenham ficado muito aquém de tudo o que se postula sobre os fundamentos imediatos da teologia dogmática. Deixaram praticamente sem exame o que diz respeito à validade do texto bíblico. Ainda que tenham analisado muito o que o texto diz diretamente, não cuidaram da validade da revelação sobrenatural, que os seus autores atribuíram ao que haviam escrito e transmitido aos leitores. Os escolásticos também não trataram da psiquiatria e do aspecto psiquiátrico dos visionários, pois assim geralmente se apresentam os criadores de religiões. Obrigadas a ser subservientes, as instituições de ensino eram, no decurso da Idade Média, controladas pela autoridade eclesiástica, ao ponto do cerceamento do direito à liberdade de pensamento. Nas universidades a figura controladora era denominada Chanceler. Em 1215, na Universidade de Paris, foi proibida, pelo Legado do Papa, a leitura da Metafísica e da Física, obras significativas da lavra de Aristóteles. Pouco depois o papa Gregório IX rompeu mesmo a integridade dos textos, mandando extrair edições expurgadas de afirmações contrárias aos dogmas. A Inquisição, ao mesmo tempo civil e religiosa, se tornou cada vez mais rija, levando os hereges à fogueira, com morte mais cruel que a infligida a Jesus crucificado. O servilismo prejudicou a filosofia medieval. Supunha-se mais ou menos que a inteligência grega já houvera alcançado tudo o que fora possível pela luz da razão. Dali a tendência para o simples e meticuloso dos textos do passado, ainda que com úteis e valiosas especulações. Tratou quase apenas de desenvolver o dogma com o auxílio da luz da razão. Estacionaram na Idade Média ocidental os estudos linguísticos, antropológicos, biológicos e experimentais em geral. A medicina encontrou obstáculos por ser combatida a dissecação dos corpos, ao ponto de excomunhão. Assim aconteceu que, em última instância, nem o saber religioso conseguiu evolução adequada. Divide-se a filosofia escolástica medieval em três períodos:

I - Período de formação, do século 8 ao 12, ou tempo das escolas (vd 295); II - Período de apogeu, do século 13, ou do início das universidades, redistribuídos em Agostinianos ecléticos (vd 296); Tomás de Aquino e primeiros tomistas (vd 297); Duns Escoto e primeiros escotistas (298); III - Período de declínio, do século 14 ao 15, até a Renascença (vd 299).

293. Filósofos escolásticos medievais do período de formação. Neste período de formação da escolástica latina destacam-se alguns nomes representativos, os quais são referenciais de algumas idéias novas, que seus sucessores tratarão talvez melhor, todavia depois.

a) Alcuíno de York (c. 735-804). Filósofo e teólogo inglês, considerado fundador da escolástica medieval, em função ao trabalho de organização desenvolvido nas escolas do reino dos francos, e que até Carlos Magno (+ 814) reunia França e Alemanha.

b) João Escoto Erígena (c. 800-870). Teólogo e filósofo mais notável do período da Renascença carolíngea, de origem escocesa, nascido, ao que presume, na Irlanda. Entretanto, pouco se sabe de sua vida, senão a de que foi um dos mais penetrantes inteligências do seu tempo. Em Paris foi mestre da escola palatina de Carlos o Calvo, rei a partir de 843. A influência de João Escoto Erígena acontecerá sobretudo no século 13 quando nele se apóiam as doutrinas de tendência panteísta, sendo então condenadas estas suas doutrinas em Paris, 1210 e em Roma, 1225, pelo papa Honório III. Ainda que desenvolvido com originalidade, o sistema ideológico de Escoto Erígena obedece às linhas gerais do neoplatonismo. Estabelece a revelação como fato. Deus é transcendente ao máximo, de sorte a restar a seu respeito

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uma certa falta de conhecimento, por causa da inacessibilidade. De outra parte ocorre todavia uma certa identidade de tudo, resultando dali a aproximação ao panteísmo. Obras: Divisão da natureza (De divisione naturae), em cujos cinco livros está representada a sequência de sua doutrina; Sobre a predestinação (De predestinatione), contra as doutrinas predestinacionistas então veiculadas por Gottschalk; e outros escritos, inclusive traduções do grego ao latim, de obras do Pseudo Dionísio Areopagita e de Gregório de Nissa.

c) Amaury de Benes ( -1207), Filósofo francês, foi escolástico panteísta. Depois de falecido, foram seus escritos condenados pelo Concílio reunido em Paris, em 1510, ao mesmo tempo que os escritos de David de Dinand. Num contexto que lhe vinha da escola realista platônica e agostiniana, defendeu um panteísmo substancialista, no qual Deus é concebido como imanente ao mundo. A matéria prima universal, completada pela forma, identifica-se com Deus; eis um panteísmo panenteísta. Em torno de sua doutrina se organizou a seita dos amauricianos, que se relacionou com a espiritualidade do reino do Espírito Santo, de Joaquim de Flora. No contexto da escatologia do Espírito Santo, então vigente, seu reino substituiria o de Jesus Cristo, como este houvera substituído o de Deus Pai.

d) David de Dinant (entre século 12 e 13), filósofo belga, o qual defendeu, a partir de Aristóteles, um panteísmo materialista. A realidade é uma e imutável, sendo pura aparência a multiplicidade e mutabilidade dos indivíduos. A inteligência é o fundo comum dos pensamentos, e não há porque distingui-la de Deus e da matéria. David de Dinant, como tantos outros de tendência monista, continuou a ter simpatizantes através dos tempos, até hoje. Obra: De tomis sive de divisionibus. Seus escritos, juntamente com os de Almarico de Bène, foram condenados à fogueira, em 1510, porque considerados heréticos, por concílio reunido em Paris, e constituído, entre outros pelos bispos Pierre de Corbeil e Pierre Nemours. Seus livros foram proibidos em 1215, juntamente com os de João Escoto Erígena.

e) Santo Anselmo de Canterbury (1033-1109). Filósofo e teólogo escolástico, nascido em Aosta, Turim (Itália), todavia com ação na França e Inglaterra, como arcebispo de Canterbury. Com ele cresceu a racionalização da teologia. A respeito do problema dos universais, contestou a solução nominalista de Roscelino, que reduzia tais conceitos a meras palavras. Também não acordava com os realistas, que faziam dos universais verdadeiras coisas, ao modo dos arquétipos de Platão, doutrina que se consolidaria na Escola de Chartres. Posicionou-se numa teoria da abstração similar a de Aristóteles, e que no contexto da escolástica se desenvolveria com Pedro Abelardo e Tomás de Aquino. Tratou preferencialmente o tema de Deus. Introduziu a prova a priori (vd) de sua existência e que mais tarde Kant denominaria prova ontológica; mas, como Anselmo a apresentasse por primeiro, é denominada também pelo seu nome prova anselmiana. Consiste numa dialética em torno da perfeição. Deus, por definição, é um ser perfeito, acima do qual não pode haver outro ser mais perfeito. O ser, acima do qual não se pode conceber outro mais perfeito, não existe apenas na minha concepção; um ser realmente existente seria mais perfeito; portanto, o mais perfeito real, seria mais perfeito que o mais perfeito de minha concepção. Resulta que Deus existe necessariamente como um mais perfeito real. Tomás de Aquino rejeitou este argumento, alegando constituir-se em uma passagem indevida do lógico para o real. De novo aceito por Descartes, voltou a ser rejeitado por Kant. Obras: Do gramático (De grammatico), incluindo lógica e dialética; Da verdade (De veritate); Do livre arbítrio (De libero arbitrio); Monológio (Monologion); Proslógio (Proslogion), contendo o argumento apriorístico da existência de Deus; Da concórdia (De concordia), sobre a graça divina e a liberdade humana; Da fé da Trindade (De fide Trinitatis); Sobre a processão do Espírito Santo (De processione Spiritus Sancti). Ainda escreveu opúsculos morais e de espiritualidade, além de sermões, cartas, respostas polêmicas e comentários as Escrituras Sagradas.

f) Pedro Abelardo (1079-1142), filósofo e teólogo escolástico francês, foi um caso raro na Idade Média, pois era um leigo a se destacar na filosofia e teologia, geralmente dominada por eclesiásticos, sobretudo por religiosos professos. Passou a ser a figura mais brilhante do primeiro período da escolástica. Teve Abelardo grande aceitação por dos alunos, mas também o combate dos mestres de posição contrária. A esta contrariedade se juntou à do seu amor contrariado. Teve amores e casamento secreto com Heloísa, que fora sua aluna, e de quem teve um filho. Mas Heloísa era também a sobrinha do cônego Fulbert; os comandados deste castraram ao grande mestre, que, naquele ano de 1118, se retirou humilhado e se acolheu ao convento de Saint Denis. Mas os alunos o fizeram retornar aos seus cursos, ainda que em outro local, em Nogent-sur-Seine. Induzida Heloísa a que fizesse votos de religiosa num convento, ela contudo manteve correspondência afetuosa com o festejado preceptor.

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Abelardo, em vista de sua doutrinas racionalistas e contrárias a Trindade, foi em 1221 condenado pelo Concílio de Soissons. Desamparado, passou a uma vida perambulante, de que resulta finalmente seu livro História de minhas calamidades (c. 1136). Contribuiu para o estudo em separado da filosofia e teologia, bem como para a racionalização desta. Na doutrina de Abelardo, à razão tudo cabe demonstrar. A teologia não seria mais que um prolongamento natural da filosofia.

g). Allain de Lille (c.1120-1202). Filósofo e teólogo escolástico, francês, professor em Paris, depois em Montpellier, por último se fez monge cisterciense. Opinou que a maior parte dos problemas da teologia e da ciência se resolvem pelo raciocínio dedutivo. As verdades da fé se apóiam não somente em razões divinas, mas também sobre razões humanas. A inspiração de seu pensamento é platônico-agostiniana. Foi um grande sistematizador.

h) João de Salisbury (c. 1120-1180). Teólogo e filósofo escolástico inglês, nascido em Old Sarum, ou Salisbury. Veio em 1136 para a França, onde estudou e permaneceu quase todo o tempo, como um dos representantes mais significativos da Escola de Chartres. Espírito aberto à inovação, examinou a filosofia e a teologia do seu tempo. Foi o primeiro historiador da filosofia na Idade Média. Aproximou-se do aristotelismo em penetração e deu ao problema dos universais uma solução moderada, como seu mestre Abelardo. Advogou a melhoria dos estudos. Envolvido nas questões políticas do seu tempo, advertiu que o príncipe deve respeitar as leis, sendo não só permitido resistir-lhe, como ainda é ação louvável matá-lo.

i). Pedro Lombardo (c.1100-1160). Escolástico italiano, n. em Lumello, Novara, Lombardia, de onde o seu último nome. Estudou em Bolonha, com complementos na França, em Reims e em Paris, onde esteve sob a proteção de São Bernardo, que o havia recomendado aos victorinos. Obtendo em Paris uma cátedra de teologia, destacou-se na mesma pelos seus recursos didáticos. Participou do Concílio de Reims, que condenou doutrinas de Gilbert de la Porrée. Bispo de Paris em 1159, faleceu já no ano seguinte. Tradicional e ortodoxo, eclético e moderado frente às opiniões de seu tempo, Pedro Lombardo teve o conjunto de suas teses aprovadas pelo Concílio de Latrão em 1215. Tornou a teologia notoriamente especulativa, facultando à escolástica um desenvolvimento racional. Por isso encontrou resistências por parte de alguns místicos, como de Gauthier de Saint Victor. Não obstante haver valorizado a teologia especulativa, fundada na razão, deu contudo mais importância ao argumento de autoridade, sobretudo de Santo Agostinho. Doutrinariamente, Pedro Lombardo situou-se dentro de posições já estabelecidas, e que são de fundo neoplatônico e agostiniano. Seu mérito esteve na capacidade de compilador didático, havendo conseguido uma seleção adequada de textos, sobretudo patrísticos, combinada com uma boa definição das várias opiniões. As vezes simplesmente copiou textos mais antigos, por exemplo de De fide ortodoxa, da autoria de João Damasceno, de Decretum Gratiani, cujos textos patrísticos foram reunidos por Graciano, de Summa sententiarum, atribuída a Hugo de São Victor. Obras: Reduzem-se a 4 títulos gerais: Comentário aos Salmos davídicos (Commentarius en psalmos davidicos), longos, verso por verso; Coletânea sobre todas as Epístolas do apóstolo Paulo (Collectanea in omnes Pauli apostoli epistolas, escrito entre 1442 e 1443); Sermões (Sermones), também de inspiração bíblica; Quatro livros das sentenças (IV Libri Sententiarum), obra principal, concluído pela volta do ano 1150, que lhe conquistou o título de Magister Setentiarum (= Mestre das Sentenças). Importante anotar que o Livro das sentenças, o escreveu Pedro Lombardo depois de conhecer a obra de João Damasceno, do qual tomou o modelo quadripartido, de caráter teológico e neoplatônico: Deus, criação, encarnação, sacramentos e fins (tudo começando em Deus e a ele retornando). Neste modelo passou a servir de texto e comentário nas escolas medievais, até o século 16, quando a Suma Teológica de Tomás de Aquino lhe foi tirando o lugar. O modelo também o poderia ter encontrado no neoplatônico Santo Agostinho (De doctrina christiana, L. I, c. 2). Também se modela metodologicamente sobre o Sic et non de Pedro Abelardo. O livro I divide o tema da unidade e trindade de Deus em 48 distinções. O livro II, em 44 distinções, sobre a criação, a graça e o pecado. O livro III, em 40 distinções, sobre a encarnação e redenção, virtudes e mandamentos. O livro IV, em 50 distinções, sobre os sacramentos e os novíssimos. O Livro das sentenças de Pedro Lombardo tem a forma de suma teológica, isto é, de um resumo sistemático. Tradicional e ortodoxo, eclético e moderado frente às opiniões de seu tempo, Pedro Lombardo teve o conjunto de suas teses aprovadas pelo Concílio de Latrão, em 1215. Tornou a teologia notoriamente especulativa, facultando à escolástica um desenvolvimento racional. Por isso encontrou resistências por parte de alguns místico, como de Gauthier de Saint Victor.

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j). Pedro Damião (1007-1072), cardeal e depois declarado Doutor da Igreja, assumiu posição fideísta, foi um intransigente, hostil aos procedimentos racionais da filosofia. Contestou o aproveitamento da filosofia na teologia. A não ser a filosofia da fé, toda a outra é "terrestre, animal, diabólica", diz em seu De sancta simplicitate. Ainda em Dominus vobiscum: "Platão perscruta os segredos da misteriosa natureza, fixa as órbitas dos planetas e calcula o curso dos astros; rejeito-o com desdém. Pitágoras divide em latitudes a esfera terrestre; faço pouco caso disto... Euclides se inclina sobre os problemas embrulhados de suas figuras geométricas; deixo-o igualmente. Quanto a todos os retóricos com seus silogismos e cavilações sofísticas, eu os desqualifico como indignos de tratar esta questão".

l). Bernardo de Clairvaux (Bernardo de Claraval ou simplesmente São Bernardo) (c. 1190-1153), teólogo escolástico, místico, francês, teve importância pela sua influência administrativa na Igreja, como uma espécie de eminência parda. Ingressou no mosteiro de Citeaux (ou Cister), dos beneditinos da observância estrita (chamados também cistercienses). Mais tarde fundou a abadia de Clervaux, por cujo nome é hoje chamado. Em 1953 foi declarado Doutor da Igreja. Fez parte dos teólogos intransigentes, como antes dele foi o cardeal Pedro Damião, contrários ao uso da dialética e da filosofia no estudo da teologia, conforme vinham então fazendo Santo Anselmo e sobretudo Pedro Abelardo. De outra parte, desenvolveu a mística da espiritualidade cristã. Destacou o homem como imagem e semelhança de Deus. Em função a este aspecto inicial do plano da criação, tratou da perda desta imagem, que deverá ser recuperada, reencaminhando-se o homem para o amor a Deus.

m). Hugo de Saint Victor (c. 1096-1141), vindo da nobreza alemã, foi místico, teólogo e filósofo escolástico. Estudou primeiramente com os cônegos de Hamersleben, de Saxe; seguiu para o convento de Saint Victor de Marselha e logo para o de Saint Victor de Paris, onde Guilherme de Champeaux, agostiniano, houvera fundado uma escola. Mestre em 1125, diretor em 1133. Ainda que morresse precocemente, deixou uma obra considerável, na qual buscou a sistematização orgânica dos diferentes setores do conhecimento. Classificou as ciências em 4 classes: teóricas, práticas, mecânicas, lógicas. A certeza de nossa existência forma a base da evidência racional, eis onde se mostrou agostiniano e prenunciou Descartes. Foi também um místico, havendo influenciado aos demais místicos medievais, especialmente Boaventura. Obras: Sobre os sacramentos da fé cristã (De sacramentis christianae fidei), espécie de suma teológica, cuja primeira parte se ocupa da criação e Deus, do homem e de sua queda; Instrução escolar (Eruditio didascalica), introdução geral as ciências e as sagradas escrituras; além de opúsculos sobre espiritualidade, virtudes e vícios. Descoberta a imprensa, foram seus livros logo editados e reeditados.

294. Escolásticos do período de apogeu, agostinianos ecléticos (do século 13 e início do 14). Encerrava-se o período de formação da Escolástica, com um florescimento súbito maior, porque novas causas passaram a atuar. Aristóteles, já conhecido em parte através de Boécio (vd), é agora complementado pelos contatos com os eruditos árabes. Fundam-se as universidades, com base nas escolas preexistentes. Criaram-se novas Ordens religiosas, - com destaque da dos Dominicanos e dos Franciscanos, além do destaque de algumas das precedentes, como dos Beneditinos e Agostinianos. Os seculares, como se dizia para os clérigos não religiosos, por vezes em concorrência com as ordens religiosas, são representativos no decorrer do século 13 e se dispersaram por diferentes diretrizes, ao contrário dos mestres religiosos, estes geralmente alinhados com um pensamento de grupo. Entre outros, foram seculares: Felipe o Chanceler (c. 1170-1236); Guilherme de Auvergne (+1249), bispo de Paris, desde 1228; Siger de Brabante (1235-1281), averroista. Não termina o fenômeno histórico do século 13 exatamente no fim daquela centúria; entra no primeiro quatro de século seguinte, até onde vivem alguns filósofos representativos do anterior. Duns Escoto atinge o ano 1308; Raimundo Lulo 1316 . Também os filósofos árabes se haviam tornado competentes comentaristas de Aristóteles. Avicena e Averróis são muito apreciados. E assim também são lidos autores judeus, e que usavam escrever em hebreu e em árabe.

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a) Roberto Grosseteste (c.1168-1253), teólogo escolástico, franciscano inglês, foi ideologicamente um agostiniano, havendo dado destaque às ciências naturais. Traduziu a Ética a Nicômaco de Aristóteles e as obras de Dionísio o Areopagita.

b). Alexandre de Hales (c.1180-1245). Notável filósofo escolástico, franciscano inglês, com atuação na Universidade de Paris, pela volta de 1210. Passou a lecionar a lecionar na mesma universidade. Foi um agostiniano, mas já com elementos aristotélicos, que permitem chamá-lo as vezes de eclético. Foi o primeira escolástico medieval a fazer uso total de Aristóteles, ainda que permanecendo com o platonismo agostiniano nas questões mais polêmicas. Conservou a tradicional doutrina da composição hilemórfica das criaturas espirituais (anjos e alma humana); mas esta matéria das criaturas espirituais não contém os defeitos da corrupção e do movimento local. Continua agostiniano quando admite a iluminação para conhecer os espíritos, sobretudo Deus; entretanto, para o conhecimento das coisas corpóreas, basta a abstração, segundo Aristóteles. Deus é conhecido por argumentos e também é uma noção inata.

c). Robertus Kilwardby (c. 1200-1279), teólogo e filósofo inglês, da Ordem dos Dominicanos, lecionou em Paris e Oxford, por último Arcebispo de Canterbury. Opôs às inovações de Tomás de Aquino, aliás 25 anos mais jovem do que ele. Foi o mais representativo agostiniano de sua ordem, em seu tempo. A condenação de 30 teses (entre elas tomistas), em 1877, se deveu em parte em virtude de sua influência. Todavia, já no ano seguinte, os tomistas ganhavam a questão dentro de sua ordem dominicana.

d). Rogério Bacon (c.1214-1294), filósofo escolástico inglês, se destacou pela sua inclinação à ciência experimental. Com atuação em Paris de 1236 até 1247, retornou à Inglaterra, onde se fez franciscano. Contestou o caráter meramente especulativo de professores e alunos. Lecionou em Oxford, até ser impedido em 1257. Segunda vez em Paris, repetiram-se as resistências por parte dos seus superiores, que acabaram por afastá-lo do magistério. Reabilitado por algum tempo pelo papa e amigo Clemente IV (1265-1269), mais uma vez esteve sujeito a sérios impedimentos e condenações. Em 1268 está de volta a Inglaterra, praticamente prisioneiro. Rogério Bacon advertiu contra o erro da autoridade, e não contra ela em si mesma. Foi um reformador e não um revolucionário. Foi mesmo um tradicionalista em teoria do conhecimento, combinando a iluminação agostiniana com o intelecto agente universal de Avicena. Advertiu que muito ainda falta por saber. Criticou os métodos da teologia de seu tempo. Ponderou que aos antigos é necessário estudar diretamente nos idiomas nos quais escreveram; por isso reclamou o estudo do latim, grego, hebraico.

Fazendo filosofia das ciências, destacou a importância das ciências profanas, sobretudo das experimentais; não se deve confundir esta advertência em favor da ciência experimental, como uma diretriz científica de sua filosofia, a qual era, como se disse, agostiniana. Defendeu como base destas a matemática, cujo primado defendeu. Lamentou que a universidade de Paris e Alberto Magno sequer se conscientizaram de a estarem ignorando. Dada a importância que em Oxford Grosseteste dava aos efeitos da luz, Rogério Bacon insistiu também no estudo da ótica, imediatamente após a matemática. Na sequência também reclamou as demais ciências experimentais, completando-se finalmente com as ciências da razão, com a teologia no topo. Usou a primeira vez a expressão "ciência experimental". Incompreendido, foi acusado de mágico e herético. Obras: Obra maior (Opus major, 1268), em 7 partes, sobre a causa da ignorância, relação entre filosofia e teologia, importância das línguas, da matemática, da ótica, da ciência experimental, da filosofia moral; Obra menor (Opus minus, 1267), resumo da anterior, mas de que sobra apenas um fragmento; Obra terceira (Opus tertium, 1267-1268), sinopse detalhada da obra principal, oferecida ao Papa que o protegia; Compêndio de estudo da teologia (Compendium studii theologiae).

e). Henrique de Gand (c. 1217-1293), filósofo escolástico nascido na Bélgica flamenga, ingressou no clero secular, lecionou em Paris, de 1276 a 1292. Destacou-se como um dos teólogos seculares mais notáveis. Exerceu também funções na Universidade. Pertenceu à comissão que arrolou as questões condenadas em 1277, pelo arcebispo e Chanceler E. Tempier.

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Num tempo em que estava acesa a questão entre aristotélicos (tomistas) e platônicos (agostinianos), se comportou com moderação, situando-se como um eclético, todavia mais para o lado agostiniano; inversamente, Godofredo de Fontaines, também citado como um eclético, fora todavia mais aristotélico-tomista. Quando se diz que fora contra o aristotelismo, pode-se inverter a situação, fazendo-o um aristotélico eclético. Admitiu a doutrina da iluminação, que é agostiniana. Negou a distinção real de essência e existência, em que foi, portanto, contrário a Tomás de Aquino; com isso introduziu a distinção formal e pressagiou a Duns Scotus. Também contra Tomás de Aquino estabeleceu a impossibilidade da criação desde toda a eternidade; contra ele também defendeu o voluntarismo divino (superioridade absoluta da vontade sobre a inteligência e sobre as essências eternas), nisto mais uma vez se antecipando a Duns Scotus. O exemplarismo platônico é destacado, mas aqui também Tomás de Aquino aderira a Platão. Admitiu a unidade das formas, proposição tomista, contra os agostinianos. Enfim, foi Henrique de Gand influenciado por Avicena, que é um aristotélico com elementos neoplatônicos.

f). São Boaventura (1221-1274), teólogo e filósofo escolástico italiano, nascido em Bagnorea, perto de Viterbo, Toscana, e ingresso na Ordem Franciscana cerca do ano 1243, estudou em Paris, sob Alexandre Hales, de orientação platônica e agostiniana. Conservando esta mesma orientação, Boaventura lecionou, comentando as Escrituras sagradas e as Sentenças de Pedro Lombardo. Cardeal da igreja em 1274, morreu já no ano seguinte durante o Concílio de Lyon. Conservador moderado, foi um platônico agostiniano, receptivo todavia à tese aristotélica de ato e potência. Menos raciocinativo que Tomás de Aquino, foi mais afetivo, à semelhança de Agostinho de Hipona. Ensinou que Deus é atingido por três vias. A primeira, com caráter de misticismo, é a da constatação imediata, qual seja o fato da aspiração natural à sabedoria e à felicidade, que pressupõe o conhecimento de Deus. A segunda via é a da causalidade, pela qual este mundo é interpretado como efeito da causa divina. A terceira via é a da idéia de um ser perfeito, que, conforme a prova alegada por Santo Anselmo, supõe que Deus existe, como sendo o referido ser perfeito.

O misticismo de Boaventura não é a rigor intuicionista (como o dos intuicionistas modernos, que equivocadamente o invocaram como do seu lado), porque Deus é alcançado racionalmente, pelas três vias, e por este caminho é contemplado e vivenciado: "cognoscere Deum per creaturas hoc est proprium viatorum" (In Sent. Dist. III, P. I, Q. 3). Destacou Boaventura a doutrina exemplarista de Platão: todas as coisas são inteligíveis, porque feitas segundo as idéias exemplares de Deus.

Conservou a doutrina agostiniana de que todas as criaturas, mesmo espirituais, se compõem de matéria e forma, ainda que a matéria dos espíritos seja de outra ordem que a dos corpos. Também conforme ao agostinianismo, os conhecimentos gerais e princípios da moral surgem por iluminação divino-natural, independendo pois de um conhecimento a partir de uma abstração tomada ao ser sensível. Obras: Comentários as Sentenças de Pedro Lombardo, obra principal; Questões disputadas (Quaestiones disputatae); Itinerário da mente a Deus (Itinerarium mentis ad Deum); Sobre a redução das artes a teologia (De reductione artium ad theologiae).

g) John Peckham (ou Pecham) (c. 1240 - 1292), filósofo e teólogo inglês, franciscano, foi Mestre em Oxford e em Paris, finalmente Arcebispo de Canterbury, como sucessor de Roberto Kilwarby. Como este em 1277, passou John Peckham a novas condenações em 1286, valendo-se de seu cargo. Seguiu a diretriz agostiniana, como já acontecia com Boaventura, e em consequência se opôs claramente ao aristotelismo, então difundido por Tomás de Aquino. Destacou-se como fomentador do movimento antitomista da escola de Oxford. A matéria poderia subsistir, sem a forma, com o detalhe de que Deus poderia tê-la criado sem a forma. No que se refere às verdades supremas, importa o auxílio de Deus para serem atingidas.

h) Pedro João Olivi, ou Pierre de Jean Olieu (c. 1248-1298), filósofo e teólogo escolástico misticista, francês, franciscano, estudou em Paris, onde também lecionou, e depois em Poitiers. Foi também mestre dos "espirituais" em Provence. Morreu em Narbona.

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Um dos principais representantes do movimento dos "espirituais", ocorrido entre os franciscanos, e que acreditava no estabelecimento do reino do Espírito Santo. Rigorista, pregou a extrema pobreza. Os espirituais, da estrita observância franciscana, obedeciam a teorias diversas, das quais uma é a de Pedro Olieu. Finalmente, o grupo como um todo, estava próximo, ao mesmo tempo que se distinguia, de movimentos similares, como o dos amauricianos, Joaquinitas, irmãos apostólicos, fraticelos. Todas estas escolas de espiritualidade da Idade Média foram em algum momento atingidas pelas condenações da Igreja Romana. A doutrina de Pedro Olieu foi em 1311 declarada herética pelo Concílio de Viena, Delfinado. Defendendo um misticismo radical, foi adversário do estudo profano. O papa João XXII também o condena em 1317. Combateu, sem o mencionar, a Tomás de Aquino. Encontra-se na tradição agostiniana, peculiar à ordem franciscana; todavia diverge em vários pontos essenciais ao agostinianismo. Partindo da doutrina (não aristotélica e não tomista) da pluralidade das formas, estabeleceu que a alma inteletiva não é forma imediata do corpo humano, mas o informa através da parte sensível. Se esta informação se desse diretamente, a parte inteletiva tornaria o corpo imortal. De outra parte reconheceu que a doutrina da iluminação divino-natural, de Agostinho, oferecia dificuldades.

i). Guilhaume d'Auvergne (ou Guilherme de Alvérnia) (c. 1190-1249). Filósofo e teólogo escolástico francês, do clero secular, nascido em Aurillac. Foi o primeiro grande aristotélico da Universidade de Paris, como o franciscano Grosseteste em Oxford. Guilherme de Auvergne foi também bispo de Paris, de 1228 a 1249, razão porque também é mencionado como Guilherme de Paris. Dentre suas teses tipicamente aristotélicas está a afirmação de que nas criaturas espirituais ocorre apenas forma; já os agostinianos faziam a toda criatura ter esta composição, ainda que no caso da alma e dos anjos a matéria deve ser de ordem diferente da matéria corpórea. Guilherme de Alvérnia manteve ainda do agostinianismo a iluminação divino-natural para o surgimento dos universais. Continuou a escrever suas obras mesmo depois de nomeado bispo, sendo cerca de 30 monografias: Mestre divino (Magistrum divinale), título que se deu de uma edição em dois volumes, em 1674, reunindo monografias e que dispersivamente tratam de Deus, da alma, do mundo.

j) Alberto Magno (1196, ou 1206-1280), Doctor universalis. Um dos mais notáveis escolásticos medievais, teólogo e filósofo, naturalista e místico, alemão, da família senhorial Bollstaedt. Em decorrência de sua origem privilegiada, pôde ir estudar na Itália, 1222, frequentando os cursos de Bolonha e Pádua, onde então nasciam as primeiras universidades. Mas, ingressando em 1223 na Ordem dos dominicanos, retornou pouco depois à Alemanha, continuando os estudos em Colônia. Em 1240 foi cursar teologia em Paris, exercendo-se ali também como mestre regente, de 1242 a 1248. Ali teve como discípulo a Tomás de Aquino. Com este voltou para Colônia, com a incumbência de estabelecer um Estudo Geral Studium Generale, da Ordem Dominicana. Em 1254 foi eleito superior geral de sua Ordem. Bispo de Regensburg em 1261, renunciou todavia já no ano seguinte. Lecionou em várias casas da ordem. Bispo que era, participou no Concílio de Lyon, 1274, para o qual também vinha, procedente da Itália, Tomás de Aquino, que, entretanto, morreu no curso da viagem. Alberto, sem deixar todas as doutrinas platônicas e agostinianas, nem suas tendências místicas, aderiu contudo a importantes doutrinas da filosofia de Aristóteles, a ponto de ser considerado um aristotélico, havendo efetivamente contribuído para a sua divulgação. Aceitou de Aristóteles que a alma é forma pura (apenas forma); a alma é simples, sem ser composição de forma e matéria subtil, neste particular opondo-se pois a posição platônico-agostiniana, para a qual somente Deus não contém matéria. De outra parte, contra Aristóteles e contra Tomás de Aquino, asseverou Alberto que a alma não é substância incompleta a se completar com o corpo; a alma seria forma do corpo, mas não apenas forma do corpo. Afrontou também o aristotelismo averroista, referente à unidade do intelecto humano, cumprindo solicitação do papa Alexandre IV, em 1256.

Foi também um místico, fazendo parte de uma sequência de misticistas, que atravessará toda a Idade Média, desembocando no fenômeno dos místicos modernos. Escreveu muito, atingindo suas modernas edições completas mais de 30 volumes. Grande parte de sua obra consiste em comentários ampliadores de outras obras, principalmente de Aristóteles, Porfírio, Euclides, Pseudo-Dionísio.

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295. Tomás de Aquino e os primeiros tomistas. [cont. do apogeu da escolástica]. A). Tomás de Aquino (1225-1274) foi o filósofo medieval mais desenvolto no tratamento da filosofia da religião, ao mesmo tempo que reorientou o questionamento, até então dominantemente platônico-agostiniano, para um tratamento cristalinamente aristotélico. Legítimo europeu, de origem alemã pelo lado paterno, normando pelo lado materno, nascido italiano, no Castelo de Rocca Secca, dos Condes de Aquino, uma pequena localidade perto de Nápoles. Feitos estudos de filosofia na universidade de Nápoles, seguiu em 1245 para Paris, agora como ingresso na Ordem dos Dominicanos, contrariando a vontade de seus progenitores. Teve uma atuação expressiva em diversos estabelecimentos de ensino, ao mesmo tempo que uma produção abundante, em um curto espaço de vida, de apenas 49 anos. Em 1248 deixou Paris, com seu mestre, o seu companheiro de Ordem, Alberto Magno, para fundarem os Estudos Gerais (Studium Generale), de Colônia, na Alemanha Retornou em 1252 a Paris. Obteve o grau de mestre em 1257, o que lhe facultava ensinar agora publicamente. Entretanto já vinha lecionando desde antes no âmbito de sua Ordem, e já produzira alguns textos. Em Paris, seu principal magistério foi de 1256 a 1259. Seguiu para a corte pontifícia, lecionando na Itália de 1260 a 1268. De novo atuou em Paris, de janeiro de 1269 a 1272, desta vez em forte conflito com o averroismo. Por último, passou 2 anos na Itália, - Anagni, Orvieto, Roma, Nápoles,- aqui até o começo de 1274, lecionando nos Estudos Gerais (Studium Generale), que ali estavam sendo instalados. Seguindo em março daquele ano de 1274 para o Concílio de Lyon, morreu no curso da viagem, prematuramente. Obras de Tomás de Aquino: Algumas são apresentas pela denominação de conjuntos. São chamados Opúsculos filosóficos: Do ente e da essência (De ente et essentia), primeiro texto importante, escrito entre 1254 e 1256; Das operações ocultas da natureza (De occultis operationibus naturae); Dos princípios da natureza (De principiis naturae); Da mistura dos elementos (De mixione elementorum); Do movimento do coração (De motu cordis); Da eternidade do mundo contra os descontentes (De eternitate mundi contra murmurantes), c. 270); Das substâncias separadas), depois de 1268; Da unidade do intelecto contra os averroístas (De unitate intellectus contra averroístas), 1270); Dos quatro opostos (De quatuor oppositis); Das proposições modais (De propositionibus modalibus); Da demonstração (De demonstratione); Das falácias (De falaciis); Da natureza do acidente (De natura accidentis); Da natureza do gênero (De natura generis); Da natureza da palavra do intelecto (De natura verbi intelectus); Da diferença da palavra divina e humana (De differentia verbi divini et humani); Da natureza da matéria (De natura materiae); Dos instantes (De instantibus); Do princípio de individuação (De principio individationis).

Destacam-se como obras principais as duas Sumas, a saber:

Suma teológica (Summa theologica), de que as duas primeiras partes datam de 1266-1272; a terceira, de 1272 a 1274, completada pelo Suplemento (Suplementum), de Reginaldo de Piperno; Suma contra os gentios (Summa contra gentiles), subentendendo-se Contra os árabes filósofos. São importantes as obras didáticas, Questões (Quaestiones), de dois gêneros: Questões disputadas (Quaestiones disputatae), algumas de suas partes com importantes subtítulos; Questões quodlibetais (Quodlibeta).

Comentários:

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destaque inicial foi o Comentário aos quatro livros das Sentenças de Pedro Lombardo ( In quattuor libros sententiarum), datando de 1254 a 1256. Inovou nos comentários a Aristóteles, por sobre textos diretamente traduzidos do grego ao latim por Guilherme de Moerbeke: À Metafísica (In Methaphysicam); À Física (In Physicam); Sobre a alma (In De Anima), de 1268 a 1272), À ética a Nicômaco; À Política.

Ainda: comentário sobre o Livro das causas (Liber de causis); comentário ao livro de Pseudo-Dionísio Dos nomes divinos (De divinis nominibus); comentário a livro de Boécio. Comentários exegéticos a livros bíblicos, do Antigo e Novo Testamento.

Escritos político-sociais: Do regime dos príncipes (De Regimine Principum), os dois primeiros livros, os restantes de Tolomeo Lucca; Do Regime dos Judeus (De Regimine judaeorum, 1262; Da compra e venda (De emptione et venditione, c. 1262). Além de opúsculos teológicos e escritos de espiritualidade.

B). A Filosofia Tomista, conforme se fez conhecer o sistema de Tomás de Aquino, é a filosofia de Aristóteles como foi criada em seus fundamentos, enucleada em suas virtualidades, sobretudo de seu fundamento gnosiológico e de sua ontologia, dali seguindo para uma teologia natural coerente.

a) Já na gnosiologia começa a diferença do aristotelismo tomista com o platonismo e seu derivado agostiniano. Saem juntos bem no início, porque de um e de outro lado se admite o realismo imediato. Não ocorre neles o realismo mediato, como acontecerá depois com Descartes. Ambos os lados ainda são racionalistas, todavia o platonismo e o agostinianismo são racionalistas radicais, enquanto Aristóteles e Tomás de Aquino são racionalistas moderados. Tomás se estabeleceu num racionalismo moderado, como o de Aristóteles e Pedro Abelardo, com o ponto de partida no ser captado pela inteligência no âmbito do conhecimento sensível. Posto o ser sensível, dele a inteligência abstrai o ser inteligível, para a seguir caminhar para os novos resultados da especulação sem nunca ultrapassar o âmbito limitado daquele primeiro ser, que serviu de ponto de partida. Portanto, todos os cumes alcançados pela metafísica do ser são atingidos senão por analogia com o ser intuído pela inteligência no ser sensível. Rejeitou, assim Tomás de Aquino, como já o fizera Aristóteles, o ponto de partida platônico e agostiniano, cujos princípios universais se desenvolviam independentemente do ser do sensível. A diferença de resultados, decorrente da diferença de gnosiologia, vai evidenciar-se na ontologia e na filosofia da religião, que já não serão iguais em um e outro sistema.

b) Em ontologia, em cuja continuidade está a filosofia da religião, o ser geral é alcançado apenas por analogia, porquanto o ponto de partida fora um ser particular. E assim também Deus, uma vez concebido como ser absoluto, sem qualquer limite, não é alcançado adequadamente pela inteligência humana, senão pela via analógica com o ser do sensível modestamente apreendido pela inteligência. Divide Tomás, de acordo com Aristóteles, o ente em ato e potência, divisão que é real nas criaturas, e não pode ser real em Deus, no qual ato e potência são a mesma coisa. O ser de Deus tem como essência ser a existência, porque também essência e existência não podem ser distintas em Deus.

c) Deus é atingido como princípio explicativo de fatos que, sem Ele, não se explicariam. Tais provas, supondo fatos a explicar, são portanto a posteriori.

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O argumento a priori, exposto por Santo Anselmo (1033-1109), é reduzido por Tomás de Aquino à uma passagem inconsequente da logicidade da idéia para a realidade. Somente conduzem a Deus argumentos a posteriori, ou seja, a partir de fatos a explicar, e que somente se explicam por Ele. Cinco são as vias que conduzem argumentativamente a Deus; são tantas as provas, quantas forem as espécies de fatos a explicar mediante os princípios gerais metidos em sua base. Num primeiro tempo das provas da existência de Deus se alegam os princípios, e num segundo tempo os fatos a serem explicados através deles. A primeira via (vd 484) argumenta com o fato do movimento, o qual reclama um primeiro motor, que mova sem ser movido, conforme já advertia Aristóteles. A segunda via (vd 485) toma partida do fato das causas em sequência, em cuja série tem de haver uma primeira causa incausada. A terceira prova (vd 486) considera o fato de que as coisas que se apresentam no mundo são contingentes e que, nesta condição, não existiriam, se não houvesse um ser não contingente; nesta via pode-se alegar a influência de Avicena. O quarto argumento (vd 487), tipicamente platônico, alega os graus de perfeição constatados nos seres que conhecemos, e que postulam um grau máximo de perfeição. A quinta via (vd 488), bem colocada como última por ser a mais contestável, toma como ponto de partida a ordem do mundo, dada como um fim intencional; de outra parte, como as coisas sem conhecimento não têm capacidade de querer um fim, deve-se admitir que a ordem do mundo prova a existência de um ordenador exterior a ele, - Deus. O mundo foi criado, conforme a Bíblia, mas Deus o poderia ter criado desde toda a eternidade; aqui contrariava Tomás a doutrina dos agostinianos.

d). A filosofia da natureza, ou seja do ser criado, seja do espírito, seja dos corpos, de acordo com o tomismo, segue um moderno dualista moderado, que contraria o dualismo radical de Platão. Enquanto que para o platonismo a alma simplesmente habita no corpo material, para Aristóteles e Tomás de Aquino ela pode ser forma incompleta, a qual se completa compondo-se com a matéria, completando-se a si mesma e ainda completando à referida matéria. Ainda contra o platonismo e o agostinianismo, Tomás de Aquino estabeleceu a distinção em matéria e forma como peculiar apenas à essência dos corpos. A referida matéria é inteiramente potencial; não contém alguns elementos determinados, como querem platônicos e agostinianos; não pode consequentemente diferenciar-se em várias espécies de matéria, como se uma fosse a matéria dos corpos e outra a matéria dos espíritos. A multiplicação dos indivíduos dentro de sua espécie, se dá a partir da matéria, que fica sendo portanto o princípio de individuação; por isso, a mesma forma se multiplica em muitos indivíduos materiais. Nos seres inteiramente espirituais não há matéria, como quer o agostinianismo. Consequentemente, os espíritos não se multiplicam na mesma espécie; cada anjo é de uma outra espécie. As almas humanas, por não terem matéria, somente se individualizam, porque, sendo substâncias incompletas, se completam como forma de seus respectivos corpos. Mesmo depois de separadas, por efeito da morte, continuam substâncias incompletas, e por isso diferenciadas umas das outras, e sempre referenciadas a um corpo. Esta maneira de ver, peculiar ao dualismo moderado, vem explicar também como seria o processo da ressurreição.

e) A psicologia filosófica de Tomás de Aquino se desenvolveu atenta aos procedimentos da teoria geral de matéria e forma, ato e potência. Assim foi que ofereceu notável desenvolvimento, no que se refere à explicação do processo cognoscitivo, dos impulsos volitivos e estados afetivos. Coerentemente, os processos de conhecimento e vontade, em Deus, são distintos, ao mesmo tempo que analógicos aos humanos.

f). A moral se estabelece em função ao princípio geral de que o bem deve ser feito e do fato de termos um determinada natureza, com um fim específico, que portanto lhe é natural. Novamente, a bondade em Deus não é a mesma dos humanos, todavia análoga.

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g) Com referência à política, Tomás retomou a Aristóteles, com novas ponderações. A sociedade é natural, e trata do bem comum. O poder político pode organizar-se em várias formas: ou monárquico, ou aristocrático, ou democrático. Em si mesmo, em absoluto, o monárquico é mais perfeito, dada a sua unidade. Eventualmente, as outras formas poderão funcionar melhor. No caso de um mau governo, o papa pode desligar aos súbditos cristãos do dever de obediência; eis uma tese tomada de Gregório Magno. Não considerou Tomás a origem contratual da sociedade política, a partir de onde o desligamento de obediência se dá por si mesmo no caso de abuso de poder.

h). Em religião Tomás de Aquino se manifestou um homem profundamente religioso, no verdadeiro sentido metafísico, invocando a um Deus sem defeitos. Com base na coerência, advertiu para a harmonia entre filosofia e teologia, no sentido de que Deus é autor da ordem racional e também da revelação. Suposto que uma revelação seja verdadeira, não pode, em princípio, colidir com a verdadeira filosofia. Inversamente, suposta uma verdadeira filosofia, não pode ela contradizer uma verdadeira teologia. Na interpretação dada por Averróis, as duas verdades seriam possíveis Tomás de Aquino imprimiu uma generalizada aplicação das doutrinas de Aristóteles aos temas que interessavam ao teólogos medievais, criando por isso escola, não obstante fortes resistências dos agostinianos. Estes se reencaminharam sob a reformulação dada por Duns Escoto, cuja doutrina, apesar de não ser ainda aristotélica, é uma virada mais para o centro. Desde então tomismo e escotismo dividirão dominantemente a escolástica, ainda que não tão distintos quanto tomismo e agostinianismo.

i). Primeiros tomistas são aqueles que, de primeiro momento, no século 13 e no início do século 14 assimilaram o sistema aristotélico-tomista, num momento difícil quando as autoridades oficiais tenderam a se fixar nos radicalismos do agostinianismo.

j). Guilherme de Moerbecke (c.1215-c.1286), filósofo e teólogo escolástico, nascido em Moerbecke, Flandres, importa ser citado como dos primeiros tomistas, dado haver-se destacado também como primeiro grande tradutor direto do grego ao latim de parte considerável da obra de Aristóteles. Contribuiu, como já o fizera em parte Grosseteste, para a melhoria dos estudos eclesiásticos. Havendo ingressado na Ordem dos Dominicanos, cedo estudou o grego e o árabe, capacitando-se para ir missionar no Oriente. Mas, encontrando em Viterbo, próximo de Roma, a Tomás de Aquino, este o induziu a traduzir Aristóteles. Dedicou-se a este trabalho de 1260 a 1285. Designado em 1281 arcebispo de Corinto, Grécia, morreu não muito depois, em data não conhecida, tal como também não se sabe de sua data precisa de nascimento.

Obras: tradução do grego ao latim dos livros de Aristóteles Política, Retórica, Meteoros I e II, Metafísica L. ll; tradução de comentários gregos a Aristóteles da autoria de Alexandre Afrodísias, de Simplício, de Filopono, de Amônio, de Temístio; de textos de Proclus, cujos originais gregos desapareceram depois.

k). Reinaldo de Piperno, dominicano discípulo de Tomás de Aquino, que lhe terminou a Suma Teológica.

l). Ramon Marti (1220-1224). Filósofo e teólogo escolástico espanhol. Da ordem dos dominicanos. Difundiu o tomismo na Espanha. Autor de Espada da fé contra os mouros e judeus (Pugio fidei adversus mauros et judaeos), com referências ao Contra gentiles de Tomás de Aquino.

m). Pedro Tarantaise (1225-1276). Escolástico italiano, religioso dominicano. Mestre em Paris, de 1259 a 1265. Provincial de sua Ordem. Arcebispo de Lyon em 1274. Pouco depois arcebispo de Óstia, Itália. Cardeal e eleito Papa em 1276, sob o nome de Inocêncio V, todavia morrendo ainda naquele mesmo ano. Pertencente embora à antiga escola dominicana, de formação anterior ao tomismo, já se encontra em sua ambiência, como contemporâneo do próprio Tomás de Aquino. Obras: Comentário das Sentenças; Da unidade das formas (De unitate formae); Da matéria do céu (De matéria coeli); Da eternidade do mundo (De aeternitate mundi); Do intelecto e vontade (De intellectu et voluntate) escreveu sobre filosofia, teologia e temas bíblicos.

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n). Ricardo de Clapwel (sec. 13). Mestre em Oxford (c. de 1284-1286), a quem se deve a difusão do tomismo na Inglaterra.

o). Godofredo de la Fontaine ( - falecido após 1303), Doctor Venerabilis. Escolástico secular, nascido no principado de Liege, Bélgica. Foi discípulo de Tomás de Aquino, ao qual defendeu dentro dos limites permitidos pelas condenações eclesiásticas de 1277, por causa do "perigo de excomunhão", como diz em 1296. Combateu o anti-aristotélico Henrique de Gand. Recuperou em Paris, onde lecionou, a projeção dos mestres seculares, os quais haviam sido bastante deslocados pelo prestígio dos mestres religiosos. Será chamado Doutor Venerável (Doctor Venerabilis). Duns Escoto o citará muitas vezes. Ainda que tomista, Godofredo divergiu em teses importantes: rejeitou a distinção real entre essência e existência; transferiu o princípio de individuação da matéria para a forma; admitiu o pluralismo das formas no ser humano. Por isso, as vezes é classificado como eclético, tal como Henrique de Gand, com a diferença que este está muito mais para o lado agostiniano. Obra: Questões (Quodlibeta), 15 volumosas questões.

p). Pedro d'Auvergne, ou de Alvérnia ( - + 1304). Escolástico francês. Clérigo secular. Cônego de Paris, onde também foi reitor da Universidade em 1275. Arcebispo de Clermont (nesta condição citado como Pierre du Cros), de 1302 a 1304, quando faleceu. Tomista declarado. Obras: deixou tratados explicativos sobre Aristóteles, dos quais se fez mais conhecido o sobre a Política, porque não havendo Tomás de Aquino comentado aquele livro, foi em seu lugar posto o de Pedro d'Auvergne

q). Gilles de Lessines (c.1230-1304). Teólogo escolástico francês. Frade da ordem dos dominicanos. Foi aluno e amigo de Alberto Magno, com o qual se saber haver trocado correspondência em 1270 e 1277. Tomista, se fez conhecido como um dos primeiros defensores das doutrinas de Tomás de Aquino, quando estas foram atingidas pelos decretos condenatórios de Kilwardby em 1277. Obras, a saber opúsculos sobre questões tomistas: Sobre a unidade da forma (De unitate formae, 1278), sobre os decretos condenatórios mencionados; Da imediata visão de Deus (De immediata visione Dei); Da diferença entre ser e essência (De diferentia esse et essentiae); Da eternidade do mundo (De aeternitate mundi); Do intelecto e vontade (De intellectu et voluntate); Da usura (De usuris); Dos crepúsculos (De crepusculis); Sobre os tempos (De temporibus).

r). Ptolomeu de Lucques (ou Lucca) (1238-1326), na Itália, deu desenvolvimento ao tomismo, e prosseguiu o texto inacabado de Tomás de Aquino Do regime dos príncipes (Do regime dos príncipes).

s). Gilles de Roma, ou Egídio Romano (1247-1316), Doctor fundatíssimus. Da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho (fundada em 1260), na qual introduziu o tomismo. Aluno de Tomás de Aquino, em Paris, quando este ali lecionava de 1269-1272. Para obter a Licentia docendi, isto é a licenciatura, ali por 1285, teve de se retratar de sua anterior opinião pela unidade da forma, retomando-a depois; acentuou também a distinção real entre essência e existência.

t). João de Paris, ou Quidort (= que dorme, dormiens) (c. 1269-1306). Filósofo e teólogo francês. Dominicano. Sabe-se que cerca de 1284 comentou as Sentenças de Pedro Lombardo. Mestre de Teologia em Paris, de 1204 a 1205, quando foi destituído, tendo todavia apelado ao Papa Clemente V. Tratou dos temas gerais da filosofia e teologia, na maior parte no contexto tomista. Apôs correções ao Correctorium criado pelo franciscano inglês Guilherme de la Mare sobre as doutrinas de Tomás de Aquino. Acentuou, contra os agostinianos, as doutrinas tomistas: a matéria não pode existir sem a forma; as almas não têm composição hilemórfica; nem tão pouco os anjos têm componente material; há distinção entre essência e existência nos seres criados; não acontece pluralidade de formas no mesmo indivíduo. Obras: Da transubstanciação do pão e do vinho no sacramento do altar (De transubstantione panis et vini in sacramento altaris); Do poder régio e papal (De potestate regia et papali); um Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, e ainda um tratado sobre as formas, bem como as correções ao Correctorium de Guilherme de la Mare.

u). João e Geraldo de Sterngassen representam a continuidade do tomismo em colônia, Alemanha, onde há pouco atuara Alberto Magno, falecido em 1289.

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v). Bernardo de Alvérnia, ou de Clermont, para onde fora nomeado bispo sem todavia tomar posse (+ 1307). Dominicano. Tomista ao pé da letra. Redigiu Improbationes et impugnationes, contestando o ecletismo de Henrique de Gand, um agostiniano, com alguns elementos aristotélicos. Também reagiu às concessões feitas por alguns tomistas, por exemplo Gilles de Roma, Godofredo de Fontaines, um belga mestre em Paris.

w). Dante Alighieri (1265-1321) Poeta e político italiano, nascido em Florença. Estudou em Bolonha, frequentou uma escola de retórica, contatando aos clássicos da literatura e da filosofia. Sua participação política em Florença, iniciada em 1295, se encerrou em 1300, quando seu partido foi derrotado. No exílio esperou em vão a recuperação. Desenvolveu sua obra literária no contexto da filosofia tomista e da mitologia pagã combinada com a crença cristã. Menos pela profundidade, mais pela influência de sua linguagem, quer italiana, quer latina, Dante exerceu um papel importante no pensamento da Península e do Ocidente em geral. Projetou a sociedade no estilo escolástico e ideológico medieval, em que o autor preconizou a dominação do mundo (a pequena Europa!), no domínio temporal pelo Imperador do Sacro Império Romano Cristão e no espiritual pelo Papa que ungiria o referido Imperador. Obras, em italiano: A vida nova (La vita nuova, entre 1283 e 1292), com poesias e textos inspirados pelo amor de Beatriz Portinari; O banquete (Il convivio, entre 1306 e 1309), canções com fundo filosófico; Divina comédia (Divina commedia, entre 1307-1313), em que o adjetivo "divina" foi acrescido pelos editores. A referida comédia é uma viagem do poeta aos 3 reinos da imaginação cristã, - Inferno, Purgatório, Paraíso celeste, - expressando epicamente o humanismo cristão, antigo e medieval. Em latim: Sobre a língua vulgar (De vulgari eloquentia, entre 1305 e 1306), em que recomenda o uso da língua falada pelo povo, no caso o italiano, para a poesia, conforme ele o fez; Da monarquia (De monarchia, cerca do ano 1310), tratado de filosofia política.

296. João Duns Escoto (c.1266-1308) e o escotismo . Graças a uma inteligência sutil e eminentemente crítica, de João Duns Escoto, a escolástica agostiniana, afetada pelo impacto aristotélico-tomista, tomou rumo novo, e que veio a se fazer conhecer como escotismo, praticado particularmente pelos teólogos franciscanos. O escotismo teve a adesão mesmo de companheiros mais idosos. Teólogo e filósofo escolástico medieval e inglês, João Duns Escoto nasceu, ao que se supõe, em Northampton. Ingressou na Ordem Franciscana, e foi ordenado sacerdote em Northampton, na data bem conhecida de 1291, onde também estudou. Completou estudos em Paris de 1291 a l297. Lecionou em Oxford em 1300, comentando as Sentenças de Pedro Lombardo. O mesmo fez em Paris de 1302 a 1303. Não havendo apoiado ao rei Felipe o Belo no conflito com o papa Bonifácio VIII, foi intimado a retirar-se. Entretanto, encerrando-se a questão no ano seguinte, com o falecimento do papa, retornou Escoto a lecionar em Paris. Conquistou o doutorado em 1295. Enviado em l307 para Colônia, Alemanha, ali morreu em novembro do ano seguinte, prematuramente, aos 42 anos.

Obras de Duns Escoto: Opus oxoniense, conhecida também por Ordinatio , representando o ensino em Oxford, ou seja o comentário às Sentenças de Pedro Lombardo; Reportata parisientia, referente ao ensino em Paris; Lições (Collationes), em Oxford e Paris; Quodlibeta, de Paris. São de caráter especificamente filosófico: Questões sobre os universais de Porfírio (Quaestiones super universalia Porphirii), sempre com vista aos livros lógicos de Aristóteles, comentados por Porfírio; Questões sobre os livros de Aristóteles sobre a Alma (Quaestiones super libros Aristotelis de Anima), de autenticidade muito provável; Questões subtilíssimas da Metafísica de Aristóteles (Quaestiones subtilissimae in metaphysicam Aristotelis); Tratado do primeiro princípio (Tractatus de primo princípio), esclarecimento de conceitos referentes a Deus. O escotismo, como veio a ser denominada a nova diretriz que Escoto imprimiu ao pensamento agostiniano dos franciscanos, é um sistema abrangente, que começa numa mudança gnosiológica. Abandonou Escoto a tese agostiniana da iluminação divino-natural (vd), que daria origem aos conceitos universais independentemente da experiência; estabeleceu a origem do pensamento universal na experiência, por um processo de abstração, admitindo portanto o racionalismo mais moderado de Aristóteles, que o houvera defendido contra Platão. Mas, de outra parte, contra Aristóteles (também contra o tomismo), estabeleceu Escoto a compreensibilidade direta da singularidade. A ciência não opera apenas com os universais, mas com o aqui e agora. Nisto ocorre uma aproximação com o futuro existencialismo.

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Consequentemente, em razão da inteligibilidade do real singular, o ser pode também ser concebido como noção unívoca. Para Aristóteles e Tomás de Aquino o ser é uma essência universal, que se realiza nas unidades por predicação analógica, e por isso acontece a seu modo em cada indivíduo. Ao contrário, no escotismo, cada indivíduo é pleno ser; é unívoco em cada indivíduo, e equívoco em relação aos demais seres individuais. Ao ser unívoco se acrescentam as distinções formais; entre estas distinções formais acrescidas consta a da isteidade ou hecceidade (haecseitas), que permitem estabelecer-se como este indivíduo. Para o formalismo de Escoto há uma distinção formal por parte da coisa (a parte rei) entre a individualidade e o ser. A coisa e a sua individualidade são formalmente (isto é, essencialmente) distintas, mas não podem subsistir realmente em separado. A concepção do ser como noção unívoca pareceu a alguns como um encaminhamento do panteísmo. Mas os escotistas acham suficiente a referida distinção formal por parte da coisa. No contraste entre existência e essência deu Escoto especial importância à existência, inclusive à vontade. Atribuiu a Deus o domínio sobre a racionalidade, de sorte que até as essências dele dependem. Finalmente, é bom, o que Deus determinou assim fosse. Eis o voluntarismo, que já ocorria em Henrique de Gand (vd 294) e será de novo a tese de Descartes (vd 354). Teve o escotismo um longo desenvolvimento, e que já se situa no final da Idade Média (vd 300), início da moderna, e de novo em períodos mais recentes.

297. Os Escolásticos do fim da Idade Média (3-o. período), ao tratarem de filosofia da religião, se situam em um contexto, progressivamente mais crítico, em que já ocorre a influência da mentalidade mais científica e a diminuição do poder de controle da Igreja sobre as universidades. O Espírito do Renascimento atua com suas primeiras manifestações até eclodir com maior plenitude ao adentrarem os tempos modernos. No fim da Idade Média perdeu o Papa em importância, ao se deslocar para Avignon, em 1309, onde permaneceu até 1376. Dividiram-se, então os seus eleitores, e dali resultou haver em algumas décadas até três papas, apoiados por diferentes partidos, na França, Alemanha, Itália. Mesmo depois continuou a haver aqueles ao quais se denominou antipapas. Multiplicaram-se também no fim da Idade Média as universidades, melhorando consequentemente o nível de preparo das elites deste período de transição para a Idade Moderna. Ainda que a multiplicação das universidades permitisse a baixa de nível em algumas, isto não pesou no todo, porque nada impedia que outras se destacassem. A multiplicação das universidades permitiu que algumas mais facilmente escapassem ao controle ideológico, tanto eclesiástico como político, o que fora mais fácil de acontecer ao tempo que tais instituições eram poucas, como acontecia no século anterior. O nível cultural do fim da Idade Média fora certamente progressivo, e preparou a vastidão crescente da civilização européia, que passará a se estender também à burguesia em formação, da qual emergirá finalmente a prosperidade industrial moderna.

O espaço cronológico do último período da Idade Média não está delimitado pelos números redondos dos dois últimos séculos. A situação peculiar do fim da Idade Média passa a acontecer no curso do primeiro quarto de século, portanto ali pelos anos 1305 a 1325. Termina, pois, o período chamado do século 13, no primeiro quartel do século 14. Principia o terceiro e último período da Idade Média já adentradamente no século 14 para estender-se até a metade do século seguinte. Este término tem por data usual o ano de 1453, quando acontecia a queda de Constantinopla, que então passou ao poder dos turcos islamizados.

A distribuição didática dos movimentos filosóficos no Ocidente europeu, no decurso do período final da Idade Média, e de interesse da filosofia da religião, adverte em primeiro lugar para a novidade gnosiológica principal, - o nominalismo, cujo inspirador foi o inglês Guilherme de Ockham (vd 298). Dali o primeiro título a examinar:

- os escolásticos nominalistas e a filosofia da religião (vd 298).

Importam também as filosofias remanescentes. Ocorrem então, com interesse para a filosofia da religião:

- os escolásticos tomistas do final da Idade Média (vd 299); - os escolásticos escotistas do final da Idade Média (vd 300);

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- os escolásticos misticistas do final da Idade Média (vd 301), que neste período contou com expressivos representantes, continuando a havê-los no início dos tempos modernos, com Nicolau de Cusa (vd 308) e Martinho Lutero (vd 318).

298. Escolásticos nominalistas do fim da Idade Média e a filosofia da religião. Tem o nominalismo, frente às outras denominações remanescentes o caráter de ser uma escolástica dissidente. Não é a escolástica dissidente daquele último período da Idade Média mais que uma corrente melhor definida de posições que há mais tempo vagamente se vinha formando. Havendo surgido nos círculo agostiniano, o nominalismo coere com as idéias universais do platonismo, bem como com o racionalismo a imaginar idéias surgindo sem a fonte da experiência. Aquelas idéias universais eram interpretadas como representando uma realidade. Agora, passam a ser apenas conceitos vazios. Já dizia anteriormente Roscelino, que tudo era senão sopro de voz. Faltava apenas criar um sistema para tudo isto, e que ao mesmo tempo cuidasse de se ajustar com o realismo da teologia cristã. Praticaram o nominalismo William Ockham (c. 1280 - c. 1349), seu principal mentor, João Buridano (c. 1300 - 1358), Guilherme de Heytesbury, Gregório de Rimini (+ 1358), João de Mirecourt (c. 1345), Nicolau de Autrecourt (c. 1300- depois de 1350), Nicolau de Oresme (1310-1388), Alberto de Saxônia (c. 1316-1390), Gabriel Biel (1430-1495), e assim outros e outros, ninguém rigorosamente igual ao primeiro mestre. Foi Ockham avaliado pelos historiadores como precursor do empirismo moderno (vd 382), ao mesmo tempo que do racionalismo kantiano. Mas, do ponto de vista da filosofia da religião importa sobretudo alegar sua doutrina fideísta, através da qual se evadiu dos efeitos arrasadores do nominalismo neste plano.

a). William, ou Guilherme de Ockham (c.1280 -c.1349), filósofo escolástico inglês, do distrito de Surrey, sul em relação a Londres, tem como primeiro detalhe cronológico seguro conhecido, a data de 1324, quando já lecionava em Oxford, e foi acusado de incurso em heresia por João Lutterell, na qualidade de chanceler da universidade. Foi então chamado à Corte Pontifícia, agora situada em Avignon, Sul da França. Já franciscano, deveria ter ingressado anteriormente na ordem, fazendo nesta condição seus estudos em Oxford, os quais conforme se conjetura, teriam acontecido de 1312 a 1318. A seguir teria passado a lecionar como bacharel (inceptor), até a ida forçada a Avignon, para ficar retido 4 anos, no convento que ali tinham os frades franciscanos. A questão dos "espirituais" também moveu o Superior Geral da Ordem Franciscana contra o Papa. Finalmente fogem o Superior e Guilherme de Ockham; burlando aos perseguidores, alcançam a Itália, onde se acolhem junto ao Imperador Luiz da Baviera. Assim permanecendo os anos de 1328 a 1330, acompanham finalmente ao mesmo Imperador à Alemanha, sempre a serviço do soberano, adversário do Papa na questão dos espirituais. Tem-se de Ockham a última notícia em 1349, ano em que a peste negra assolou a região. Doutrinariamente defendeu Ockham uma gnosiologia nominalista, chamada também terminista, por efeito de um afastamento progressivo do escotismo, no qual houvera sido iniciado. Como já Escoto, Ockham acentua a importância do singular, todavia com maior ênfase ainda. O universal, entendido pela mente, só existe nesta mente. Não existe como realidade separada (platonismo), nem como realidade nas coisas singulares, de onde seria abstraído (aristotelismo). Ele existe, mas apenas como conceito da mente, portanto como nome mental do tema que significa; eis o nominalismo, no qual consequentemente a ciência dos universais não é ciência da realidade. Os universais constituem-se apenas uma ciência de sinais e símbolos. Por consequência ainda ficam sem sentido todas as distinções atribuídas conceptualmente ao ser das coisas. Tem validade as distinções, apenas quando o que significam pelo lado das coisas são ali realmente separáveis. Com isto rejeitou todo as distinções de formas, de que fala o escotismo. Existem Pedro e Paulo, e não a humanidade. Em concreto Paulo e humanidade são a mesma coisa. Compromete o nominalismo qualquer doutrina sobre a existência de Deus e da alma. Existem pensamentos, mas estes não importam na existência da alma, senão como generalização. Existem universais nas provas da existência de Deus, mas nada provam. De outra parte, qualquer proposição destituída de base na razão, poderá estabelecer-se pela via da crença. Somente assim, pelo fideísmo, se estabelece o conhecimento da existência de Deus e da alma. Inseriu Ockham neste plano seu conceito de economia, admitindo o menos universal como mais provável. E assim, Deus, não seja capaz de ser provado pela vasta argumentação dos universais, é contudo o mais provável em tudo.

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Também as normas morais ficaram sem fundamento no sistema nominalista de Ockham. Adquirem obrigatoriedade apenas por força da vontade de Deus. Envolvido, como os de sua ordem franciscana, com a questão dos fraticelli, abordou a questão dos poderes do papa. Seu posicionamento teórico coere com a situação histórica do declínio do prestígio papal neste final de Idade Média. Com referência aos escritos de Ockham, remontam praticamente todos ao período, de sua grande atividade em Oxford, presumivelmente, pois, de 1318 a 1324, quando foi vítima da censura eclesiástica. Deverá ter continuado depois a escrever, sem que restem elementos que possibilitem determinar uma ordem cronológica bem definida. Ficaram alguns títulos na dependência dos editores. Acredita-se que haja iniciado pela Exposição aurea (Expositio aurea), título criado por um editor posterior, e em que Ockham comenta a Porfírio o Fenício, o qual por sua vez comentara as Categorias de Aristóteles; neste trabalho põe de manifesto a importância da lógica, não esquecendo inclusive de se referir a Pedro de Espanha. Outros escritos: Ordenação (Ordinatio), comentário ao 1 livro das Sentenças de Pedro Lombardo; Reportagem (Reportatio, sobre o 2-o, 3-o e 4-o do referido livro, sendo possível situar estes comentários nos anos 1319 e 1320. Também figuram entre as primeiras edições Quodlibeta (Quodlibet), em número de 7, também de Oxford; Centilóquio teológico (Centiloquium theologicum), apresentando 100 proposições de teologia positiva, considerado espúrio; Do movimento, lugar, tempo, razão, predestinação e presciência de Deus (De motu, loco, tempore, praedestinatione e praescientia Dei), que são notas; Suma lógica (Summa logica), escrita em Oxford, e concluída em Avignon; Sumulas sobre os livros da Física (Summulae in libros Physicorum), de Aristóteles; Questões sobre os livros da Física (Quaestiones super libros Physicorum), texto incompleto; Exposição sobre a Física (Expositionem in Physicam), de novo sobre o mesmo livro de Aristóteles; Diálogo (Diálogo), sobre as relações entre Igreja e Estado; Oito questões sobre o poder do papa (Quaestiones octo de potestate papae). Notável é a edição crítica por Franciscan Institute, Nova Iorque, e que reúne numa primeira sequência de títulos, reunidos em 7 vols., sob o título genérico Opera philosophica: depois outra sequência, em volumes, sob Opera theologica.

b). Nicolau d'Autrecourt (c. 1300 - depois de 1350). Filósofo francês, originário de Autrecourt, então diocese de Verdun. Lecionou em Paris, até quando suas teses foram condenadas pela Igreja. Nominalista, com poucas diferenças com Ockham, admitiu Nicolau d'Autrecourt como unicamente válido para a argumentação, o princípio de contradição. A causa e efeito apenas se observam empiricamente, não sendo um princípio válido. Com esta redução a crítica posterior viu nele uma espécie de Hume (1711-1776) medieval, de quem teria sido predecessor. A ciência não se desenvolve pela autoridade, seja de Aristóteles, seja da Igreja, mas unicamente pela observação das coisas, apreendidas pelos sentidos a experiência interna. Não se conhece a substância, senão o eu. A natureza é constituída de átomos e movimentos mecânicos; afastou o hilemorfismo de Aristóteles. Num jogo dialético afirmou que Deus é, e Deus não é, significam quase o mesmo, ainda que de outro modo, porquanto coisas entre contraditórias significam o mesmo. Há nisto certamente a influência da doutrina das duas verdades de Averróis, então influente em Paris. Seus escritos foram reunidos em obras que tratam do autor globalmente.

c). Gregório de Rimini ( -1358). Filósofo e teólogo italiano (?), com estudos em Paris, onde também lecionou. Ingressou na ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, a que pertenceu Gilles de Roma (+1316). Superior Geral desta ordem, a partir de 1357. Nominalista, continuou um exame de Ockham sobre o futuro contingente, tendo por princípio que as coisas contingentes do passado são necessárias. Deus conhece intuitivamente o futuro, não sabendo como explicar estas modalidade de conhecimento. Tratou também da semântica das proposições, onde despertou a atenção de Husserl, Frege, Wittgenstein. Seus escritos foram modernamente impressos sob o título Leitura de Gregório ariminense do primeiro e segundo livro das Sentenças (Gregorii Arimiensis lectura super primum et secundum Sententiarum, Berlim-New York, 1979-1982.

d). João Buridano (c.1300-c.1358). Filósofo escolástico francês, de língua latina. Mestre em artes. Reitor da universidade de Paris, 1328-1350. Cônego de Arras em 1342. Seguiu o nominalismo de Guilherme de Ockham. Determinista, no sentido de que a escolha se faz pelo melhor. A anedota do Asno de Buridano, que não se encontra em seus escritos, mas a ele coerentemente atribuída, apresenta o asno a morrer de fome, quando situado entre dois feixes de feno com igual atração.

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e). Nicole de Oresme (c.1310-1382). Filósofo e teólogo escolástico francês,. Estudou teologia em Paris, obtendo o título de Mestre em 1355. Preceptor do delfim (filho do rei Jean e futuro Carlos V da França), a partir de 1360. Em 1362 professor de teologia em Paris. Finalmente, em 1377 bispo de Lisieux. Ocupou-se universalmente dos mais variados temas. Precursor da geometria analítica, antecipando-se a Descartes na teoria das coordenadas. Igualmente se antecipou à Galileu na lei da queda dos corpos, ainda que não a desenvolvesse tanto quanto este. Também propôs a teoria heliocêntrica antes de Copérnico.

f). Alberto de Saxe (ou De Saxônia, ou De Helmsted, ou Albertus Parvus) (c.1316-1390). Filósofo escolástico alemão. Estudou na Universidade de Paris, Mestre também em Paris na Faculdade das Artes, 1351-1362). Ainda Reitor da universidade, 1353-1357. Primeiro Reitor da nova Universidade de Viena, criada em 1365, e que ajudara a fundar. Por último foi designado bispo de Albertstadt, 1366. Situado no contexto do nominalismo, sem ser radical, foi um pensador eminentemente original, em física, lógica, ética, e dos mais representativos do terceiro e último período da filosofia medieval.

g). Pedro de Aylly (ou Pedro de Alliaco) (1350-1420). Filósofo e teólogo escolástico francês. Mestre em Paris. Chanceler da Universidade de Paris, 1389-1395. Bispo de Puy en Velay, 1395, e logo depois de Cambray. Cardeal em 1411. Esforçou-se pela reunificação da Igreja, favorável todavia ao Papa sediado em Avignon. Teve participação assinalada no Concílio de Constanza (1414-1418). Faleceu pouco depois. Continuador do nominalismo de Ockham. Definiu o Concílio como superior ao Papa. Este não é infalível, porém a Igreja Universal. Entre seus escritos se destacou Da reforma da Igreja (De reformatione aecclesiae), obra de futuro citada em seu favor pelos protestantes.

h). Gabriel Biel (c. 1425-1495). Filósofo escolástico alemão. Vigário de Mayence (Mainz). Pregador destacado. Professor em Tuebingen. Expositor do nominalismo de Ockham, de cujo pensamento foi um continuador, todavia arrolando-se entre os discípulos moderados do franciscano inglês. Influenciou a Lutero. Atravessará o nominalismo todo o período final da Idade Média como um dos fatores mais estimulantes, quer para a mesma filosofia, mantendo aos representantes da filosofia tradicional sob constante provocação, quer animando à interpretação científica, quer ainda levando às artes a inovação pela criatividade livre.

299. Escolásticos tomistas do fim da Idade Média e a filosofia da Religião. No decurso do terceiro e último período da Idade Média, conservou-se bastante estável a Escola Tomista. Apresenta nomes consideráveis e penetra linearmente na época seguinte, a moderna, com grandes nomes. Citam-se Thomas de Sutton ( - c. 1350), Capréolo (1380-1444), o grande nome com que o tomismo finaliza a Idade Média, logo seguido por nomes igualmente grandes como Silvestre de Ferrara (vd) e Cardeal Cajetano (vd), estes dois já modernos. Dentre os místicos, geralmente tratados sob este outro título, houve também os que foram afins ao tomismo, como aconteceu com Mestre Eckhart (1260-1327) (vd 301a).

a). Thomas de Sutton (c 1250- c.1320). Filósofo escolástico inglês, nascido em Sutton, perto de Cambridge. Ingresso na Ordem dos Dominicanos. Mestre em Oxford, entre 1300-1315. Difundiu o tomismo na Inglaterra, ao mesmo tempo que o defendeu contra os reparos de Duns Escoto. Obras: Comentários aos quatro livros das Sentenças (Commentaria in quatuor libros Sententiarum, obra principal; Tratado da pobreza e uso ...... (Tractatus de paupertate et usu paupere); Questões disputadas da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Maria (De quaestiones disputatae de Immaculata Conceptione B. Mariae); Compêndio de Escritura Sagrada (Compendium de Sacrae Scripturae).

b). Durandus d'Aurillac (c. 1300-1380). Filósofo e teólogo escolástico medieval, francês. Religioso da Ordem Dominicana. Defensor do tomismo, tendo tido dentro de sua ordem a oposição de Durando de Saint-Pourçain.

c). João Capréolo (c.1380-1444). Teólogo e filósofo francês. Ingressou na ordem dos dominicanos. Atuou no magistério em Paris, 1408-1411, e em Toulouse, 1412-1426. Viveu a maior parte de sua vida no convento de Rodez, onde veio a falecer.

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Procurou restabelecer o tomismo em sua pureza, mostrando os desvios dos próprios tomistas, como ainda defendendo contra os adversários contemporâneos e do passado (Escoto, Durandus, Henrique de Gand), o que lhe valeu ser cognominado o Príncipe dos tomistas (Princeps thomistarum).

Obra: Defesas da teologia do divo Tomás de Aquino (Defensiones theologii divi Thomae). Impresso sob o título Quatro livros das defesas do doutor Tomás de Aquino (Libri quatuor Defensionum theologiae divi doctoris Thomae de Aquino), 1483, 1514, 1519, 1589; em edição mais recente, 7 volumes, anos 1899-1908.

300. Escolásticos escotistas do final da Idade Média e a filosofia da religião. Apenas nascido, com Duns Escoto (+306) (vd 296), no final do segundo período da filosofia medieval, manteve-se o escotismo sobretudo no contexto da Ordem Franciscana, que paulatinamente transitou do agostinianismo para esta nova formulação de pensamento. E assim cresceu durante o período final da Idade Média, ingressando finalmente na Idade Moderna.

a). Pedro Auriol (ou de Aurilac, Auréolo, Aureolus, Auréoli) (c. 1280 - 1322). Doctor Facundus. Filósofo e teólogo francês. Franciscano. Discípulo de Duns Escoto em Paris, onde se formou mestre em teologia. Provincial da Ordem em Aquitânia. Em 1321 arcebispo de Aix-en-Provence, vindo a falecer no ano seguinte. Escolástico contrário ao ponto de vista de Tomás de Aquino, e em alguns pontos também contrário a Duns Escoto, então já considerado mestre de sua Ordem. Inclinou-se para o nominalismo de Guilherme de Ockham (vd), também de sua ordem franciscana. O universal é uma criação conceptual da mente, sem corresponder a algo por parte dos indivíduos.

b) Pedro de Áquila ( - 1347). Filósofo escolástico franciscano. Escotista. Pela sua fidelidade ao pensamento de Duns Escoto foi apelidado Scotelus. Obra: Compêndio (Compendium).

c). Pedro de Cândia (c. 1340-1410). Escolástico nascido em Cândia, Creta (Grécia). Parece ter sido inicialmente mendigo. Estudou em Oxford e Paris, onde se tornou mestre cerca de 1381. Bispo em 1386 na Itália, primeiramente de Piacenza, depois de Vicenza. Arcebispo de Milão e cardeal. Finalmente, no Concílio de Pisa, eleito Papa em 1409, como Alexandre V, como um dos três que pleiteavam a legitimidade, sendo os outros dois respectivamente de Roma e de Avignon. No quadro geral do escotismo, integrou-se na tradição realista resistente à tendência nominalista, mas não sem alguma tolerância. Na Introdução a cada um dos livros comentados insiste que as divergências entre as escolas poderão vir tão só em função aos pontos de vista considerados e métodos adotados. Obra: Comentário aos Quatro livros das Sentenças (Comentarium in IV Libri Sententiarum, de Pedro Lombardo).

301. Escolásticos misticistas do fim da Idade Média. O misticismo no período final da Idade Média, com raízes nos períodos anteriores, ganhou especiais manifestações no final desta época de mil anos, e assumiu o seu lugar na história da filosofia da religião. A característica do misticismo é o contato com Deus por via subjetiva e imediata, sem os argumentos raciocinativos. Surgiram agora Meister Eckhart (1260-1327), João Ruysbroeck (1293-1381), João Tauler (c. 1300-1361); Henrique Suso (1300- 1365), Gerson (1364-1429) Tomás de Kempis (1379-1471). Continuam os místicos a penetrar os primeiros anos da idade moderna, Nicolau de Cusa (1401-1464) (vd 308), Dionísio Cartusiano (1402-1471). Os místicos conduzem avante as tendências panteístas do neoplatonismo e de Escoto Erígena. A tendência panteísta acontece também em Mestre Eckhart, apesar de seu fundo tomista. Acontecia agora, no período final da Idade Média, uma necessidade nova, resultante do aberto pelas limitações criadas pelo nominalismo de Ockham (vd 298). Segundo este nominalismo os argumentos clássicos não levam a Deus. Tendem, então os místicos preencher a lacuna pelo élan profundo da intuição em que acreditam. Interpretam assim também, até certo modo, a revelação. Mesmo Eckhart, que não foi nominalista, mas tomista, partiu de uma limitação, - a teologia negativa. Esta teologia negativa apenas conheceria a Deus pela negação dos defeitos das criaturas, mas não positivamente, como é em si mesmo.

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A afinidade, que a história do misticismo tem com as filosofias limitadoras da inteligência, torna difícil situar certas figuras, as quais pertencem a ambos os movimentos. Seja, por exemplo, Nicolau de Cusa (vd 308). Encontra-se ao mesmo tempo na linha ockhamista e mística; além disto, Nicolau de Cusa penetra ainda ligeiramente na cronologia moderna. Não obstante, há também místicos, cuja fonte é o tomismo, de que Eckhart, - já citado, - é um exemplo.

a). Mestre Eckhart (c. 1260-1328). Filósofo escolástico alemão, nascido em Hochheim, perto de Gotha. Ingresso na ordem dos dominicanos, 1275. Estudou em Paris, 1293 - 1294, tornando-se bacharel sentenciário. Prior do convento de Erfurt, 1294 - 1298. Mestre de sagrada teologia, em Colônia, 1302. Adquiriu grau de Doutor em Paris. Também lecionou ali, por duas ocasiões, 1302-1303; e 1511. Na Alemanha foi provincial de sua ordem em Saxe. Vigário Geral da Boêmia. Provincial das Alta Alemanha, a partir de 1314. Fez-se conhecer como místico. Precursor de algumas idéias modernas, mas que já têm origem no neoplatonismo e no agostinianismo, mas agora em contato com o pensamento aristotélico de Tomás de Aquino. Sua doutrina sobre Deus é globalmente tomista, acentuando todavia a teologia negativa, tomou este negativo como ponto de partida do acesso supraconceptual e místico da alma ao Uno primitivo, Deus. Sua concepção do ser é dinâmica, de sorte a mover-se o ser criado na direção do ser superior. No fundo da alma haveria uma centelha com a qual vemos a Deus, dispensando de imagens. O retorno a Deus, pelo afastamento das criaturas, é o fim do homem. Eckhart se exprimiu com símbolos, as vezes ousados pela liberdade panteísta. Denunciado ao arcebispo de Colônia, que o censurou em várias de suas proposições, apelou a Sé de Roma. Em 1326 o arcebispo de Colônia, um franciscano, levantou a suspeição sobre a ortodoxia de Eckhart. Mas em 1327 faleceu o suspeito. O processo todavia continuou, até 1329, quando o papa João XXII, em Avignon, confirmou 17 proposições como heréticas e 11 como suspeitas. Hoje se é menos severo com Eckhart. Foi-lhe atribuída injustamente a doutrina da eternidade do mundo. Todavia suas doutrinas são efetivamente próximas do monismo panteísta, razão porque continuam apreço dos pensadores livres de condicionamentos oficiais, e convencidos, ou da superioridade do monismo, ou mesmo apreciados do misticismo.

Escreveu Eckhart em latim e também em médio alto alemão (depois traduzido ao alemão moderno). Seus escritos foram mal conservados, até mesmo porque o autor era oficialmente combatido. De qualquer forma, os textos em alemão vieram contribuir para a fixação da língua, bem como de sua terminologia filosófica e teológica. Obras de Eckhart: Sermões (Predigten), em número de 110; Tratados (Traktate), em vários volumes. O principal tratado é Obra tripartite (Opus tripartitum, com as seguintes partes: Obra das proposições (Opus propositionum), Obra das questões (Opus quaestionum), Obra das exposições (Opus expositionum). Destaca-se ainda: Questões parisienses (Quaestiones parisienses). E ainda comentários aos livros bíblicos.

b). Johan van Ruysbroeck (ou Ruusbroec) (1293-1381). Místico belga, de expressão flamenga, n. em Ruysbroeck (de onde recebeu o nome), nas proximidades de Bruxelas. Depois de estudos em Bruxelas, ordenado sacerdote em 1317. Ali permaneceu a serviço da catedral de Saint-Gudule. Pela volta dos seus 50 anos se retirou para o convento de Groenendael, dos Cônegos de Santo Agostinho, alternando a oração com o trabalho, ao mesmo tempo que organizando a comunidade dos religiosos, da qual foi Prior, 1343. Seus escritos expõem uma espiritualidade que abandona o formalismo intelectualista da escolástica de até então, enveredando por um misticismo mais acentuado. Ruysbroeck é dos que, como Tauler e Gerson, se classifica entre os místicos ortodoxos, diferentemente dos do modelo, por exemplo de Eckhart, mais próximo do panteísmo e da tradição neoplatônica derivada através de Pseudo Dionísio e de Escoto Erígena. Contudo se mantém próximo a estes outros. Os textos de Ruysbroeck, que usa o flamengo, se destinam ao leitor simples, de sorte a não oferecerem grande profundidade, mas inspiraram outros e outros autores, tanto no mesmo flamengo, como de outras línguas para as quais se operou tradução. Caracterizam-se pelo uso de imagens sensíveis, através das quais Ruysbroeck busca mostrar uma verdade mais ao fundo. Obras de Johan van Ruysbroeck (cerca de 12): O adorno das bodas espirituais (De Chierheit der geesteleker brulocht), sobre as formas da vida ativa, interior, contemplativa; O tabernáculo (... ), imaginando sete moradas no interior da alma; O espelho da salvação eterna (De Spieghel der ewigher salicheit), em que a alma se espelha como imagem de Deus; O reino dos amantes de Deus (... ), sobre os dons do Espírito Santo; O livro da mais alta verdade (... ), explicando os dons a que se refere o anterior; O livro dos sete claustros (... ), ou sete renúncias; As doze virtudes (... ), as virtudes que servem de meios para atingir a contemplação); Quatro tentações (... ), em que, entre outros temas, é refutado o panteísmo dos "irmãos do livre espírito".

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c). João Tauler (c. 1300-1361). Místico alsaciano, nascido em Estrasburgo. Ingresso na ordem dominicana, fez estudos no Studium Generale de Colônia, sob o Mestre Eckhart. Reconhecido como grande pregador. Na mística se manteve na linha de Eckhart, mesmo depois da condenação de várias proposições deste, 1329. Obedece uma linha tomista, mas com ressonâncias do neoplatonismo de Porfírio e Proclo. Mística orientada para a Ética. De seus escritos restam 83 sermões, várias vezes reeditados durante a Renascença, e também modernamente, dado apreço que têm merecido.

d). Jean de Gerson (1363-1429), Doctor christianissimus. Religioso e teólogo francês. Estudou na Universidade de Paris, onde fora discípulo do nominalista, então Chanceler e depois cardeal, Pedro d'Ailly (1350-1420). Também Gerson chegará a ser chanceler da Universidade de Paris, a partir de 1395. Contestou a tendência tecnicista e sofisticada da teologia especulativa, passando a um estilo similar ao dos patrísticos, ainda que também ele escrevesse comentários às Sentenças. Importa mais a teologia, que a filosofia. Como místico, Gerson situou-se na linha agostiniana dos victorinos e São Boaventura, opondo-se neste campo a mística de van Ruysbroeck. Acentuou a liberdade de Deus na criação. Propôs que a teologia escolástica fosse completada pela teologia mística. Obras de Jean Gerson: 60 sermões, em francês, versando moral e mística, e ainda outros opúsculos, sobretudo comentários às Sentenças e à mística de Pseudo-Dionísio.

e). Nicolau de Cusa (Nikolaus Krebs) (1401-1464) é pensador misticista, de transição entre Idade Média e Idade Moderna (vd 308, em detalhe).

302. Concluindo sobre filosofia da religião no contexto da Escolástica latina, importa ainda lembrar que sobre todo este movimento medieval ocidental, ocorreu também algumas influências externas. a) Deste o início da Idade Média o mundo do mundo bizantino atuou sobre o Ocidente, já desde os patrísticos (vd 572), notadamente de Pseudo-Dionísio (vd 277) e João Damasceno (vd). Depois acresceu-se a ação de outros mais.

b). A influência da filosofia do mundo árabe criou formas de pensamento religioso divergente daquele tolerado nas universidades sob controle da escolástica oficial. Contudo as filosofias dos árabes sempre destacaram a transcendência de Deus. Não ofereceu dificuldades à escolástica a filosofia de Avicena (980-1036). O mesmo se pode dizer dos judeus Avicébron (1021-1070) e Maimônides (1135-1204), todos circulando com traduções ao latim. Especial foi a posição do árabe Ibn Roschd, ou Averróis (1126-1198), nascido na Espanha. De uma parte apreciado como notável intérprete de Aristóteles, algumas de suas teses, como a da inteligência universal unindo a de todos os humanos, geraram o averroismo latino, com presença sobretudo na Universidade de Paris.

c). Siger de Brabante (c. 1235-1284), originário de Brabante, Bélgica, foi teólogo e filósofo averroísta, desta sorte contrário à escolástica oficial. Cônego de São Martinho em Liège, estabeleceu-se em Paris, quando crescia a ação repressora da Igreja sobre a faculdade de artes, na qual era professor. Conflitou em 1260 com o Legado Simão de Brie. Chefe de partido, na década de 1270, quando o decreto de 10 de dezembro do arcebispo de Paris Etienne Tempier o condenou expressamente, mencionando 10 expressões inovadoras e de tendência averroísta. Repetiu-se a condenação em 7 de março de 1277, rejeitando agora o elevado número de 219 proposições, mas que desta vez incluía algumas de Tomás de Aquino. Globalmente apreciado, o averroismo latino, - de que Siger de Brabante foi o principal representante, - significava um novo avanço nos estudos aristotélicos em Paris, dada a importância dos comentários de Averróis. A física e a metafísica se desenvolveram, autonomizando-se da teologia. Em psicologia a tese característica de Averróis e do averroismo latino foi a da unidade da inteligência, monopsiquismo peculiar aos filósofos árabes, estopim principal que despertou, além da reação doutrinária, ainda a da repressão da Igreja. Para o averroismo, a alma individual é puramente sensível e sob este aspecto perecível. Somente a alma racional é imortal, ao mesmo tempo que única e universal, apenas se individualizando em suas manifestações sensíveis humanas. Dadas as obras de Siger de Brabante e de Averróis, reviverá, no curso da Renascença, o averroismo na Universidade de Pavia, da Itália.

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d). Fechou a Idade Média, no Ocidente, com os humanistas e helenizantes do Renascimento já em cena. Alguns entraram em cena, como que antes do tempo. Foi o caso de Lourenço Valla (1407-1457) e do bizantino Jorge Ghemistos, também denominado Plethon (1370-1452), este com uma estadia temporária em Florença. Desenvolveu-se a cultura em quadros mais amplos da sociedade, e com isto também a influência dos literatos. Foi a oportunidade de Petrarca (1304-1374), de Boccacio (1313-1375). Também a pintura se humanizou paulatinamente a partir de Giotto (1266-1337), cujas tintas foram apagando a fisionomia dura do ascetismo medieval.

ART. 7-o. RELIGIÃO NA FILOSOFIA MODERNA. 7270y303.

- CAP. 3 - DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO -304. Dá-se como Pai da Filosofia Moderna ao versátil francês Renato Descartes (1596-1650) (vd 354), que foi de grande em seu tempo, sobretudo por haver tratado as subtilezas do método. Neste sentido publicou em 1637 seu

Discurso do método, e que serviu para marcar também uma data divisória para a filosofia moderna. Com referência à filosofia da religião, ela se manteve em alguns dos filósofos tipicamente modernos como fundamentalmente teísta, porquanto se mantiveram no quadro do dualismo metafísico. Este foi o caso de Descartes, um devoto de N. Sra. do Loreto. Em outros progrediu a idéia do monismo, que prosperou em monistas panteístas e monistas materialistas. Dali decorre o quadro didático de termas a serem abordados:

- Pensamento religioso misticista moderno (vd 305); - Pensamento religioso naturalista moderno: deísmo, maçonaria (vd 325); - A cabala panteísta atravessando o tempo (vd 340); - Bruno, o panteísta na fogueira da Santa Inquisição (vd 346); - Religião no racionalismo teísta cartesiano (vd 350); - Espinoza um panteísta cartesiano (vd 356); - Ontologismo, Jansenismo, Teodicéia (vd 362); - Religião no racionalismo kantiano (vd 366); - Monismo dialético idealista (vd 372); - Agnosticismo empirista e positivista (vd 383); - agnosticismo materialista dialético (vd 390). - Religião no existencialismo (vd 403); - Intuicionismos espiritualistas recentes (vd 421).

I - PENSAMENTO RELIGIOSO MODERNO MISTICISTA.7270y305.

306. Introdução à filosofia da religião dos modernos. Importa advertir que a questão religiosa continua viva mais que nunca nos tempos modernos, todavia sob a forma de revisão, e esta revisão se torna cada vez filosófica e intelectualizada, embora ainda haja grandes manifestações emotivas de massa. Vista de forma abrangente, a religião é algo que diz respeito à realidade como um todo. Ora, a visão do homem moderno não poderia deixar de atender a realidade como um todo, mas sua resposta tende a ser cada vez menos ingênua. O homem moderno aguça a razão e procura argumentar com melhor filosofia. Desenvolve consequentemente uma teologia racional (ou teodicéia) e se alonga menos em uma teologia sobrenatural à base textos supostamente revelados. O antigo é respeitado como cultural, e por vezes utilizado alegoricamente. Para tratar por ordem o pensamento religioso moderno misticista podemos abordar sucessivamente algumas tendências em crescimento, a saber:

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- Misticismo de Nicolau de Cusa (vd 308); - Misticismo de Martinho Lutero (vd 318); - Misticismo de Jakob Boheme (vd 322).

Depois, iremos aos intuicionismos espiritualistas mais recentes (vd 323) e ao seu oposto, o agnosticismo religioso moderno (vd 383). As denominações nem sempre se excluem diretamente, mas se diferenciam por características certamente destacadas. O agnosticismo é relativo, quando se limita, por exemplo, a não admitir a revelação sobrenatural, embora aceito o conhecimento meramente filosófico (ou natural) de Deus.

307. Cristianismo e neocristianismo. É neocristianismo o principal fenômeno na história moderna do cristianismo. Embora sejam muitas as religiões, competindo mesmo com grandes expressões numéricas, - como é o caso do islamismo e do budismo, - deve-se reconhecer a expressividade mantida ainda pelo cristianismo, sobretudo se a ele se somarem diferentes formas de neocristianismo Ocorre o neo- quando se alteram partes essenciais, mesmo que seja somente por exclusão. Assim, por exemplo, o neoplatonismo é um neo- em relação ao platonismo, do qual excluiu algo e acresceu algo outro. Neocristianismo expressa um tanto vagamente, porque pode significar as mais variadas alterações, mas sobretudo quando as referidas alterações representam eliminações essenciais ao sistema. É, por exemplo, neocristão é aquele que batiza ao modo de expressão religiosa meramente cultural, sem todavia acreditar no efeito purificatório deste cerimonial, que deve retirar do indivíduo batizado os efeitos do pecado original. O unitarianismo nega a Trindade das pessoas divinas, e assim é um neocristianismo porque lhe retirou um elemento que ordinariamente costuma ser admitido pelo anterior cristianismo. É o unitarianismo um dos mais antigos neocristianismos. O espiritismo, como é praticado por muitos, é também um neo-cristianismo. Mais especificamente, é também possível falar em neo-catolicismo, neo-protestantismo, e similares. O deísmo pode aceitar a bíblia cristã, mas sem os milagres, sem ritos de efeito sobrenatural, sem visões e sem revelações. Neste sentido, o deísmo é um neocristianismo. Já não se reduz a nenhuma espécie de neocristianismo o agnosticismo, que suspende a opinião frente à impossibilidade de provar sobre Deus. O agnosticismo, como geralmente ocorre, é uma decorrência coerente da filosofia positivista, ou empirista. Pode também resultar de uma posição idealista, sobretudo quando reduz os princípios universais (ou axiomas) à pura conceptualidade e afasta outras vias como a intuicionista e a misticista. Quanto ao misticismo, não se pode simplesmente declará-lo um neocristianismo, porque ele foi uma característica das velhas religiões, em cujo contexto nasceu o cristianismo. E foi o misticismo um fenômeno presente em todas as épocas do cristianismo. Entretanto, pode um místico dar ao seu misticismo um rumo não ortodoxo, e então ingressar na faixa dos neo-cristãos. As diferentes formas de neocristianismo tendem progressivamente a crescer, apesar dos esforços em contrário das igrejas oficiais em favor de sua ortodoxia tradicional. A tendência do homem de hoje é pensar com a própria cabeça, e é estimulado a isto, porque, mais do que em outras épocas, tem acesso a muitas fontes de informação sobre o mesmo tema. Acontece também hoje, que os pregadores das religiões nem sempre sabem tanto quanto aqueles que eventualmente os ouvem. Por causa da prosperidade do pensamento crítico, prospera o número dos os neo- em todas as religiões.

A) – MISTICISMO RELIGIOSO DE NICOLAU DE CUSA. 7270y308.

309. Nicolau de Cusa (1401-1464), conhecido também como Nicolau de Kues (ou de Krebs), referência à cidade alemã do seu nascimento, junto ao rio Mosela, foi um grande nome para encerrar a Idade Média e iniciar os tempos modernos, no que diz respeito ao misticismo. Com estudos em Deventer, no instituto dos Irmãos da Vida Comum, uma ordem de Tomás de Kempis (1379-1471), este autor do divulgadíssimo livro Imitação de Cristo, marcado também pelo misticismo. Quando estudou em Heidelberg, conheceu ali o nominalismo do mestre franciscano inglês Guilherme de Ockham (c. 1280-1349), que negava a validade dos universais. Ora, como os universais servem nas premissas dos argumentos da

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existência de Deus, ficavam invalidados estes argumentos. Apelou então o mestre Ockham a outros caminhos para Deus, como a fé na revelação e a mística. De Heidelberg seguiu Nicolau de Cusa para a Itália, onde estudou direito e contatou o movimento renascentista, bem como ainda o misticismo clássico de Pseudo- Dionísio (entre 485 e 535). Forma-se doutor em 1425, e foi ordenar-se padre em 1430, na cidade de Colônia. Participou em 1432 do Concílio de Basiléia, em que se tratou da união entre a igreja de Roma e a Constantinopla. Em 1438 integrou uma embaixada neste sentido, à corte imperial grega. Foi legado pontifício nas dietas de Mogúncia, Nuerenberg, Frankfurt, Cardeal em 1448. Bispo de Bréscia, no Tirol italiano. Finalmente visitador e visitador e reformador dos conventos alemães. Papa em potencial, faleceu relativamente cedo, com 63 anos de idade, depois de uma vida intelectual também produtiva, com importantes publicações, além de inéditos. Escreveu muito: Da douta ignorância (De docta ignorantia, 1440), seu livro principal; Das conjeturas ( De conjecturis), da mesma data e continuação do anterior; Apologia da doutra ignorância (Apologiae doctae ignorantiae, 1449), em que respondeu aos ataques de João Wenck, reitor da universidade de Heidelberg; O profano (Idiota, 1450); Sobre a visão (De visione, 1453); Sobre o berilo, ou sobre os óculos (De beryllo, 1454); Sobre a perfeição matemática (De perfectione mathematica, 1458); Sobre o Poder ser (De possest, 1460); Peneirando o alcorão (De cribatione Alchorani, 1461); Sobre não o outro (De non alliud, 1462); Da figura do mundo (De figura mundi, 1462?); Sobre a caça ao saber (De venatione sapientiae, 1463); Do jogo de bolas (De ludo globi, 1464); Compendio (= Compendium, 1464). Notabilizou-se o livro Sobre a douta ignorância (De docta ignorantia, 1440), em que se antecipou à dúvida metódica de Descartes. Propôs que devemos começar por uma estudada ignorância de todas as coisas. Retomou o tema em Sobre as conjecturas (De conjecturis, de mesma data) e Apologia da doutrina ignorância (Apologia doctae ignorantiae, 1449), em que respondeu aos ataques de João Wench, reitor da universidade de Heidelberg. A influência de Nicolau de Cusa na Alemanha foi principalmente religiosa. A filosofia na Alemanha, de inicio limitada, ganhou terreno, a seu modo, através de Bruno, Paracelso e Leibniz. Aliás os tempos de Nicolau de Cusa foram marcados pelas grandes lutas religiosas, razão porque qualquer filosofia se sentia com dificuldade na Alemanha até os dias de Leibniz. Na França, onde ambiente lhe foi mais propício, observa-se a influência do Cusano em Bovillus, Sanchez, Gassendi e outros. Não sem demora ganhou terreno o ceticismo, e se impuseram as limitações criadas por Descartes. A Renascença e a filosofia moderna propriamente dita fogem sempre mais da moderação que o Cusano conservava.

310. A grosso modo, Nicolau de Cusa conservou do passado o neoplatonismo de Proclo (412-485) e de Pseudo-Dionísio (vd), este também um místico, tudo filtrado através de outro grande místico, Alberto Magno, e ainda do espírito crítico do nominalismo em vigor no final da Idade Média. A partir dali, Nicolau de Cusa se adiantou, através das novas doutrinas misticistas e do helenismo renovado do Renascimento. Como peculiaridade que lhe ficou própria, usou também a linguagem da matemática e das ciências naturais já então em desenvolvimento. Em consequência, tentou conciliar o velho escolasticismo com as novidades científico-matemáticas bem como com o misticismo. A visão sintética do mundo e de Deus, redundou em ser acusado de monismo panteísta; asseverou todavia, que Deus jamais se torna parte do mundo. Admitiu a revolução da terra em torno sol. Eram tais os conhecimentos matemáticos e astronômicos de Nicolau de Cusa, que em 1436 propôs a reforma do calendário Juliano. Houvesse chegado a ser Papa, a igreja católica romana talvez não iria se desacreditar depois com a escandalosa condenação da sábio Galileu, ao provar este que a terra gira em torno do sol.

311. Conhecimento místico e conhecimento raciocinativo. Atenda-se especialmente para a gnosiologia do Cusano, a partir de onde equacionou seu modo de alcançar Deus e sua natureza. Distinguiu duas modalidades de conhecimento, o da pura inteligência (intellectus), que confere ao homem a noção mística e mais exata de Deus (por onde se revelam as influências dos místicos sobre o Cusano), e o conhecimento raciocinativo (ratio), que nasce na ordem sensível, procedendo por conceitos e análises, cujos resultados são de menor valor. Aliás, este foi seu fundado platônico. A percepção intelectual dos indivíduos é direta, como quer o racionalismo radical, que em Platão equivale ao inatismo e em Agostinho de Hipona à iluminação divino-natural.

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Há um conceito do singular, como já o haviam estabelecido Guilherme de Ockham depois também afirmará Descartes, todos contra Aristóteles e Tomás de Aquino. Não obstante, admitiu que, pelo juízo, se pode estabelecer uma identidade na pluralidade, ou seja, uma relação comum a muitos indivíduos, em que um processo de abstração esquece os indivíduos, e atende somente ao universal. Com este expediente o processo raciocinativo consegue marchar em frente. Parece não conceber com precisão o universal, parecendo identificá-lo com o número indefinidamente maior. Importa advertir, que o verdadeiro universal é aquele em que a espécie prescinde simplesmente dos indivíduos singulares. A diversidade dos graus da realidade cria os gêneros e as espécies. O número se explica como a unidade dos indivíduos, enquanto comparecem como partes neste esquema, em que se formulam as relações por obra do juízo. Insistia o Cusano em esclarecer este caráter racional do número, e fazia ver que, por isso, os brutos não numeravam os indivíduos.

312. A reserva de Nicolau de Cusa aos procedimentos da razão, conforme a tendência de sua época, fê-lo sobrepor à razão analítica uma inteligência de ordem mística. Assim, ficara-lhe cômodo ressalvar os conceitos mais fundamentais da religião por meio deste outro recurso, e conservar-se coerente com fé católica que professava. Operando a razão por meio de semelhanças, não podia ela atingir a verdade com precisão, nem a dos indivíduos e nem a da suprema. Punha igualmente reservas no processo pelo qual a razão criava os universais; por esta via o Cusano considerava ao homem impedidos de alcançar o plano da divindade. Procurando saber que ignoramos a verdade exata, mostrava assim a douta ignorância. "Quanto mais formos profundamente doutos nesta ignorância, mais nos aproximamos da mesma verdade" (Douta ignorância I § 3).

313. Limitada capacidade da inteligência para a formulação dos universais. Apóia-se o arrazoado de Nicolau de Cusa na limitada capacidade da inteligência no processo mesmo pelo qual se formulam e se criam os universais. Por exemplo, a descoberta das relações entre os indivíduos numéricos, para criar o universal, resulta em unidades sempre mais amplas na pluralidade. Todavia, mesmo depois de se chegar ao máximo universal (unidade suprema do mundo cognoscível), este máximo universal ainda se mantém como unidade numerável. Ora, Deus, como máximo absoluto, transcende ao número. Não chega, portanto, a razão analítica a um conhecimento perfeitamente adequado da realidade. De modo geral não há juízo humano totalmente verdadeiro. Leia-se, o que diz: "Vemos que a igualdade comporta degraus, de maneira que uma coisa que se assemelha é mais igual a esta que a aquela, por causa das diferenças genéricas, específicas, de lugar, de influência e de tempo; é, pois, claro que não se pode achar dois, ou mais, objetos semelhantes e iguais a tal ponto de que não possam existir em número infinito objetos mais semelhantes. Por mais que as medidas e os objetos mensurados possam ser iguais, subsistem sempre diferenças. Por conseguinte, nossa inteligência finita não pode por meio da similitude compreender com precisão a verdade das coisas" (Douta ignorância, I § 3). Nem sequer aprendendo a verdade das coisas por partes, ela não se deixa alcançar tal qual é se o processo for por meio da semelhança. "Com efeito, a verdade não é susceptível de mais de menos, mas é uma natureza indivisível, e tudo o que não é a própria verdade, é incapaz de medi-la com precisão. Assim, o que não é circulo, não pode medir o circulo, por que seu ser consiste em qualquer coisa indivisível. Portanto, a inteligência que não é verdade, não apanha jamais a verdade com uma precisão tal, que não possa ser captado de maneira mais precisa que infinito; é que ocorre com a verdade o que o polígono é para o círculo: quanto maior for o número dos ângulos do polígono traçado, mais ele se assemelha ao círculo, mas jamais conseguiria igualá-lo ao círculo, mesmo quando se houverem multiplicado os ângulos ao infinito, se não resolver em identidade com o círculo. Está, por conseguinte, claro que tudo quanto sabemos da verdade, é que nós sabemos ser impossível apreendê-la tal qual é exatamente; pois verdade, que não pode ser mais nem menos que ela é, apresenta-se á nossa inteligência como uma possibilidade. A quididade das coisa, que é a verdade dos seres, fica impossível de ser atingida em sua pureza; todos os filósofos a tem procurado, nenhum a encontrou tal qual é" (Douta ignorância I §3).

314. Crítica ao conhecimento conceitual. O Cusano não só parece defender, com os tradicionais, a limitação do

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conhecimento. Sua linguagem as vezes se assemelha com a crítica bergsoniana ao conhecimento conceitual (vd 426). O conceito mediria as coisas apenas exteriormente, sem se ajustar. Embora fazendo concessões a Aristóteles e partindo de Platão, realça o Cusano de maneira nova a atividade subjetiva, insistindo no caráter essencialmente ativo do espírito; eis ainda porque preludia o conceptualismo dos modernos. A instituição intelectual não só se contenta em medir e pesar as aparências por meio do princípio de contradição; apreende as coisas a começar do ser absoluto e Uno; neste coincidem todas as coisas, motivo porque nos possibilita conhecer. Também a razão, com o auxílio do intelecto diante dos sensíveis, constrói de maneira ativa uma classificação hierárquica dos seres por meio de gênero e espécies, que não se encontram nos sensíveis. Mas a razão é inferior à inteligência; em Aristóteles e Tomás de Aquino, o intelecto (intuitivo) e a razão (discursiva), diferem apenas quanto ao modo de conhecer (Sum. th. I q.59 a. 1); no Cusano a inteligência eleva-se a uma intuição de modalidade superior, capaz de apreender mesmo o que à razão parece insociável. O sensível, não tem a mesma relação de importância para o conhecimento intelectual que em Aristóteles; apesar de admitir o intelecto como tabula rasa, nisto seguiu a Platão e preludiou o inatismo de Descartes. O espírito encontra-se equipado com um critério sem o qual não exerceria o ato cognitivo.

315. Finalmente firmado no poder da inteligência, principia o Cusano a sua filosofia a partir de cima, a saber do Uno, do Absoluto, lá onde a multiplicidade não se encontra. Este modo plotiniano de começar, também caracteriza o panteísmo idealista moderno. Em virtude deste a partir de cima, a disposição de temas de seu livro Douta ignorância, é tipicamente teológica, além de ao gosto dos platônicos:

I- Deus;

II - a criação;

III - Cristo (o retorno ou a síntese).

Embora ontologicamente aceitável para a marcha da realidade, não é para todas as filosofias, esta a marcha natural do pensamento. Os platônicos evidentemente procuram justificar este seu modo de proceder a partir do alto. Depende o Cusano desta teoria platônica da inteligência. Esta inteligência atingiria a unidade suprema, todavia não a alcançaria a razão raciocinativa. Pode-se contestar, - porque criar um Uno supremo que a própria razão não é capaz de justificar? Se não for preciso fugir da capacidade da razão, também não será necessário atribuir à inteligência uma capacidade de modalidade superior.

316. Nicolau de Cusa desenvolveu amplamente o exemplarismo de Platão e Plotino: Deus é a realidade absoluta e da qual, por imitação, derivam todas as coisas e no qual tudo se explica. Aliás, Tomás de Aquino, já assinalava este princípio no sistema aristotélico. Veja-se também como o Cusano expunha o mesmo pensamento com seus novos detalhes. "Antes de tratar a maior das doutrinas, a da ignorância, tenho por necessário estudar o que é o maior ser. Chamo de máximo, uma coisa tal que não é capaz de haver outra maior. Ora, a plenitude convém a um ser só ser; eis porque a unidade coincide com a maximidade e ela é também entendida. Ora, se uma tal entidade é absoluta de um modo universal, fora de toda relação de toda a restrição, é manifesto, visto que ela é a maximidade, que nada lhe é oposto. Eis porque o máximo absoluto é uma coisa única que é o todo, em que tudo está, porque ele é o máximo. Como nada lhe é oposto, com ele, ao mesmo tempo, coincide o mínimo; está, por isso assim, em tudo. E porque ele é absoluto, é em todo ser possível, não sofre nenhuma restrição das coisas e se impõe a todas. Este máximo, que a fé indubitável de todas as nações reverencia também como Deus, será no meu primeiro livro sobre a razão humana, o objeta que, sem jamais poder compreende-lo, me esforçarei de pesquisar, sob a orientação daquele que, só, habita numa luz inacessível" (Douta ignorância I, § 2).

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Por ali se infere que, embora os seres múltiplos se oponham entre si, podem coincidir em sua origem, em Deus, que de certo modo é todos. No infinito as diferenças se eliminam. Um quadrado cujos lados são acrescidos de 5-o. e 6-o, e indefinidamente novos lados, aproxima-se cada vez mais do círculo até coincidir. Assim ocorre com Deus, que é a união de todos contrários. O que vale no plano ontológico, também ocorre no lógico; se os processos da inteligência intuitiva se distanciam (no entender de Nicolau de Cusa), no ser absoluto se conciliam. Portanto em Deus nada se distingue, nem o homem do lobo, nem a inteligência da razão. O mundo se compreende como um desdobramento, uma explicatio de Deus. Defendeu, pois o Cusano a doutrina da analogia por outra forma, embora não no mesmo rigor. Mas, não é este mundo de contrários apenas uma textura de aspectos de Deus, como quereria o panteísmo, de que aliás o Cusano foi, talvez indevidamente, acusado. Deus em si mesmo é uno em todo o sentido. Os contrários resultam da efetividade criação embora não devam dissociar-se de Deus; dele derivam por participação e dele continuam a depender. A imagem e semelhança de Deus, não coincidem numericamente com ele. No fundo, Nicolau de Cusa não concebe com precisão o conceito de universal. Parece identificá-lo com o número indefinidamente maior. Mas, o verdadeiro universal é aquele que prescinde simplesmente dos singulares.

317. Em Cristo, como Deus encarnado, ou Logos, encontra o homem um caminho para o absoluto. Esta interpretação teológica, da qual também se ocupou o Cusano, lembra o retorno neoplatônico ao arquétipo.

B) - A MÍSTICA DE LUTERO. 7270y318. 319. O homem um iluminado por Deus. Destacou Martinho Lutero (1483-1546) as relações entre Deus e o homem, sendo este por Ele iluminado. Destacou assim o protestantismo a capacidade do homem para receber a inspiração de Deus. Lutero julgava a si mesmo um iluminado, coerente aliás com sua doutrina. A palavra de Deus se encontra na Bíblia, a qual é lida pelo homem, assistido pela graça divina. Não cabe à Igreja dar-lhe interpretações oficiais. E nem é a Igreja portadora de uma Tradição oral. Nisto pois contrariou a teologia católica. Encontrava-se Lutero no contexto do nominalismo de Ockham (vd 298), que achava impraticável o caminho para Deus através de argumentos racionais. Resta apenas a fé na palavra de Deus e sua inspiração, ou intuição mística. Se Lutero se preocupou com as humanidades, ou seja, com as letras antigas, não pretendeu senão recursos para a interpretação bíblica. Como se sabe, Lutero realizou um tradução da Bíblia, que marcou a literatura alemã. O atraso dos estudos de língua hebréia encaminhara a velha teologia para interpretações contestáveis, de sorte que Lutero, com sua erudição, adquiriu condições para respostas contundentes aos seus opositores.

320. A salvação pela fé e não pelas boas obras. Lutero não se ocupou do homem com vistas a realizá-lo como ser deste mundo. Seu ideal não fora o dos humanistas. Concentrou-se no ideal da salvação, ou seja da justificação do homem a ser salvo para o céu. Afiançou Lutero não serem necessárias as boas abras para alcançar a salvação; basta a fé, de que Cristo nos salvará; então, a dita fé efetivamente conduzirá o homem à salvação. Diferentemente, a teologia católica reclama para a salvação o binômio fé e boas obras. Quando Lutero tratou da incapacidade de vencer o pecado, pela prática das boas obras, situou-se nas radicalizações de Paulo Apóstolo; este considerava pecado quaisquer movimentos carnais e anunciava a condenação eterna para os que procediam com facilidade neste plano de coisas. Lutero, situado embora em seu rigorismo de homem de bem, observou imediatamente que um tal ideal não funcionava. Aceitando a derrota da vontade humana como um fato, aliou-se à fé simplesmente. O pessimismo moral é compensado pelo entusiasmo da esperança nas promessas do Salvador. A ascese luterana não retira o homem ao século, porque as obras não produzem a salvação. Por isso, ele viverá de acordo com a natureza. Não praticará coisas como o celibato, porque a família é da ordem natural. Todavia, apesar de não negar a natureza, não a considerou perfeita; nem a considerou como um objetivo último a alcançar, porquanto o fim é sempre o além, obcecante e exclusivo. Neste mundo o homem é escravo do pecado, porque ferido e incapaz de praticar o bem; a ser escravo do pecado, preferível é ser servo de Deus.

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"Ou escravo do pecado ou servo de Deus" diz em seu livro de Servo arbítrio, contra o humanismo de Erasmo de Rotterdam, com quem polemizou.

321. A filosofia política de Lutero merece atenção. Não podia escapar a ter uma filosofia para o campo político, porquanto se viu logo envolto nas malhas do Sacro Império, que o condenava em 1521, por ocasião da dieta de Worms, por motivo religioso. Também não podia se omitir no caso dos Anabatistas a estimulando aos camponeses a instituírem um comunismo teorético. Havendo Lutero negado a origem divina da estrutura temporal da Igreja, que fica sendo uma comunidade sem a hierarquia da igreja romana, poderia ter enveredado para uma formulação democrática desta comunidade. Em tal direção congregacionalista caminhou a calvinismo, mais que o luteranismo. Para Lutero ainda cabia ao poder civil uma função religiosa. Como poder soberano, absorvia também esta atribuição de proteção da fé e promoção do culto. A revolta dos camponeses e mesmo a perseguição que se fazia a ele mesmo, sugeriam-lhe que o poder civil não pode estar ausente da religião. Para Lutero a presença civil não é uma qualquer função de simples proteção de direito de liberdade de consciência, mas sim autoridade ampla. Contrariou a forma do medievo em que a igreja era autônoma e punha o Estado a seu serviço. Agora, o serviço missionário é da competência mesma do Estado. O absolutismo dos príncipes, pregado por Lutero, se apóia no princípio de que todo o poder vem de Deus - Alle Obrigkeit komt von oben. Trata-se de uma interpretação dada a Paulo Apóstolo, que semelhantemente falara da origem divina do poder dos governantes. Em conseqüência, não podem senão prestar contas só a Deus. Nem a igreja e nem os cidadãos poderão retirar-lhes a função. Na Inglaterra o rei Jaime II defenderá os mesmos conceitos do poder divino dos reis. Na França é o que mais ou menos se propôs o galicanismo. Nos meios católicos os jansenistas defenderam igualmente esta origem direta e a extensão absoluta do poder civil. Quanto à natureza do poder civil, entendeu-o Lutero sobretudo como força, ao usar a expressão "o gládio". E então o poder civil apresenta a fisionomia de compressão da desordem. Ao definir a função do príncipe no caso da revolta camponesa, escreveu: "Fere com a espada, esmaga, destrói, tanto quanto possas. Se na luta perderes o corpo, melhor para ti: nunca uma morte tão bela te poderá acontecer, porque morres pela fidelidade à palavra de Deus e ao serviço do amor pelo próximo".

C) - BOEHME, UM MÍSTICO E FILÓSOFO DA RELIGIÃO. 7270y322. 323. Místico inteligente, que, de sapateiro de Goerlitz, da Silésia, se fez filósofo, - Jacob Boehme (1575-1624), merece consideração por si mesmo. É notado também pela influência exercida sobre grupos religiosos, notadamente quakers (seita puritana originária da Inglaterra), e sobre filósofos alemães, como Franz von Bader (1765-1841), Schelling (1775-1854) e possivelmente também Heidegger (1889-1976). No trabalho da oficina veio a apreciar a natureza e a se ocupar de descobrir o seu íntimo, acreditando estar se valendo de fatores pré-lógicos, ou seja místicos, anteriores à mesma racionalidade. Diz no início de seus textos: "Escrito por iluminação divina – Geschrieben nach goettlicher Erleuchtung". Editou em 1612 O despontar da aurora (Die Morgenroete im Anfang), conhecido depois simplesmente por A aurora. Suas idéias criaram lhe dificuldades com a igreja luterana e as autoridades locais. Depois de uma pausa, recomeçou as publicações: Dos três princípios da essência divina (Von den drei Principien des Goettlichen Lebens, 1619), Quarenta perguntas da Alma ou da Psicologia Verdadeira (Vierzig Fragen von der Seele oder Psychologia Vera, 1620); O Grande Mistério, ou esclarecimento sobre o primeiro livro de Moisés (Mysterium magnum, oder Erklaerung ueber das erste Buch Moses, 1622); De signatura rerum, Sex puncta theosophica, Do renascimento (Von der Wiedergeburt), Conversações entre uma alma iluminada e uma não iluminada (Gespraeche einer erleuchten und unerleuchten Seele), etc.

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Obras reunidas (Saemtliche Schriften, 11 vols., 1830, reimp., 1955).

324. Acreditava Boheme haver chegado a uma ultra-ciência (mais além da essência), que alcança as indeterminações (Ungruenden) das coisas. Esta compreensão do ser na sua totalidade e procura mediante iluminação especial, inclusive contato imediato com Deus, seria, portanto, uma especial sabedoria. Pode-se contestar a Boehme, que, o que ele efetivamente fez, não fora mais que enveredar por vias mais subtis da inteligência, sobretudo da inteligência muito inteligente! Paradoxalmente esta inteligência muito inteligente, não se conheceu suficientemente a si mesma, exatamente por ser ela uma inteligência muito inteligente! Asseverou que a natureza das coisas está impressa nas mesmas, como uma espécie de sinal. Dali veio sua preocupação em determinar o "fundamento íntimo, impresso", nas coisa de que ele trata em De signatura rerum. Tal fundamento (Grund) não é apenas a coisa, - como se esta revelasse a sua essência, - mas é a mesma divindade. Deus não está acima das coisas, como um céu sobre a terra, mas se confunde com elas, revelando-se na intimidade misticamente percebida pelo filósofo. E dali cresce o pensamento de Boehme em direção teológica, ao afirmar: "quando os quatro elementos se rompem, mantém-se as raízes dos mesmos e isso é o elemento sagrado onde está o corpo de Cristo e também o paraíso, que consiste no crescente tormento gozoso; e o elemento é prazer doce e tranquilo". Deus e a felicidade se encontram em nós mesmos, isto é, se confundem com a natureza: "Eu não subi aos céus nem vi todas as obras e criaturas de Deus; mas o céu mesmo se revela no meu espírito, de modo que eu reconheço no espírito as obras e as criaturas de Deus". A conciliação dos opostos, no monismo, é encarada por Boehme, apenas incoativamente. Estabeleceu que tudo implica em um contrário, como condição de existir, como em pai e mãe, bem e mal. Em todas as coisas ocorrem duas qualidades, duas forças. "Há em todas as criaturas deste mundo uma boa e uma má sorte... Nada há na natureza onde não haja o bem e o mal, tudo gira em torno desses dois impulsos. Antes, porém de surgirem estas polarizações do bem e do mal havia o indeterminado (Ungrund). Deste Deus vivo, tanto poderia sair o bem como o mal, a se espargirem pelo universo. Deus como vida livre, tanto poderia deixar sair o bem como o mal, como ainda reabsorvê-los" (Cf. Hirschberger, História da filosofia, no item Jacob Boehme).

II – O PENSAMENTO RELIGIOSO MODERNO NATURALISTA:DEÍSMO, MAÇONARIA.

7270y325.

326. Tendeu o pensamento religioso moderno progressivamente para o naturalismo, excluindo o sobrenatural. Oferece o pensamento religioso moderno ainda outras características, de que cuidaremos logo a seguir (Art. 9-o. e Art. 10-o), que dizem respeito ao racionalismo radical de uns e ao irracionalismo intuicionista de outro). Estas outras formas não dizem diretamente respeito à oposição entre naturalismo e sobrenaturalismo. Como tendência, o naturalismo se apresentou significativamente, no movimento de idéias denominado deísmo (vd 285), logo assumido como filosofia da maçonaria (vd 289). A natureza é vista agora pelo naturalismo religioso moderno como sendo mais rica do que o sobrenaturalismo do passado supunha, porque Deus a criou com muito mais sabedoria do que o simplismo do homem comum poderia imaginar. Para o homem de espírito científico Deus deixou de ser visto como causa dos fenômenos naturais e sim como criador de suas causas, as quais por sua vez se exercem como grande maravilha. Para o naturalismo religioso Deus deixou de ser um mágico, para assumir a condição de um Criador eminentemente sábio. Deus não um simples artesão do mundo, mas um técnico dos mais eminentes. Aqueles que ainda se consideram sobrenaturalistas, reduzem cada vez mais o número dos fatos considerados sobrenaturais. O cristianismo, portador da anterior concepção sobrenaturalista, perde sua preponderância, sobretudo entre os intelectuais. O que antes, ao tempo da divisão protestante, fora apenas uma dissidência interna, agora é uma rejeição global, ou quase global de todo o corpus sobrenaturalístico. O naturalismo religioso conserva do cristianismo tão só o aspecto humano e cultural. Todavia este naturalismo religioso assume as mais variadas formas, dependendo do grau com que estabelecido e também das origens dos seus promotores.

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Há protestantes liberais em oposição aos protestantes tradicionais, conservadores de algum conteúdo sobrenatural de fé. Há católicos modernistas, católicos liberais, neo-católicos, e formas similares, contra os tradicionais continuadores da fé dogmática, de grande carga sobrenaturalista. Em tudo isto acontece, o que é abrangido de algum modo pela expressão neocristianismo.

327. As causas do naturalismo religioso moderno se encontram, entre outras, na superação do pensamento pré-lógico, graças ao desenvolvimento da lógica natural, ou seja da aplicação perfeita dos princípios de identidade e não contradição, de razão suficiente e causalidade, finalmente do uso de raciocínio perfeitamente lógico. As sobrenaturalistas são efetivamente muito fáceis em acreditar que fenômenos extraordinários sejam milagres, que o visionário fala em nome de Deus, que o indivíduo de dupla personalidade efetivamente encarna aquela outra que ele diz ser. Também é próprio das mentes sobrenaturalistas acreditar em documentos antigos, porque não são suficientemente exigentes sobre as provas de sua autenticidade. O homem moderno aprendeu a conhecer as causas naturais, sobretudo a começar da descoberta das leis mecânicas (por Galileu e Newton). Em decorrência superou as formas mais grosseiras da magia e do animismo. O homem pré-moderno, - na maioria quase absoluta sem pensamento suficientemente crítico, - fora incapaz, à semelhança das crianças da primeira infância, de conceituar adequadamente as leis naturais; colocou em seu lugar a ação imediata de uma causa inteligente, agindo com arbítrio próprio, jogando com o destino dos homens. Com elas dialogava, - fazendo oração, - dali fazendo nascer uma religião peculiarmente sobrenaturalista. Mais racionalizado, o homem moderno purifica seus conceitos religiosos, eliminando progressivamente as interpretações menos seguras. Tende consequentemente para um naturalismo. Seu Deus, - ainda que possa entendê-lo como criador das leis naturais e das causas da natureza, - não é participante imediato do que sucede; não o imagina como um ser com interferências extraordinárias e pródigo em milagres e graças, como se estivesse fazendo o jogo pedagógico das orações e da boa ou má vontade das suas criaturas. Nem sequer os fenômenos tão curiosos do subconsciente estariam fora desta ordenação natural do universo, de sorte a não interpretar os mesmos como "inspirações", revelações, ou visões, aparições. Seriam apenas uma parapsicologia, que os antigos ignoravam e que por isso os levou ao equívoco do sobrenatural religioso. A psiquiatria passou a explicar de um novo modo a queda dos epilépticos, as visões, os fenômenos de dupla personalidade, as surpresas da paranormalidade. As condições criadas pelo protestantismo (iniciado em 1517), apesar de suas diferentes formas de misticismo, favoreceram também o paulatino nascimento do naturalismo religioso. Reduzida a Igreja a uma organização espiritual, já não há Igreja temporal sobrenatural (como quer a interpretação católica). Com a organização temporal livre da Igreja, ficou também afastada a existência de uma interpretação oficialmente da Bíblia. Ficou a interpretação aos cuidados da consciência individual, de cada um, auxiliado pela iluminação que Deus lhe queira dar. Esta liberdade do indivíduo encaminhou de maneira nova diferentes modos de pensar, que geram finalmente o naturalismo religioso, começando pelo deísmo e variadas formas de protestantismo liberal e catolicismo progressista.

328. Cresceu o interesse pela teologia natural ao mesmo tempo que se desprestigiava a teologia sobrenatural, a qual por isso mesmo alterou muitas de suas colocações. A nova expressão, - teologia natural, - se vulgarizou no século 18, e ganhou ainda com Leibniz mais uma denominação peculiar, consagrada no título de um seu ensaio, - Teodicéia (1710). Formado o termo com elementos gregos, ele significa "justificação de Deus". Filosofia da religião é mais um nome, que foi ganhando importância depois de 1800. Sob esta denominação disciplinar se examina a religião, quer em seus fundamentos filosóficos (da religião materialmente), quer sua essência (da religião formalmente). A filosofia do sistema idealista de Hegel (1770-1831), ao reduzir a religião a uma fase dialética do espírito, ensejou novas perspectivas aos estudiosos da questão. Shleiermacher (1768-1834), da direita hegeliana, foi um dos mais notáveis representantes da filosofia da religião do século 19. Mas, de imediato, cuidaremos das manifestações iniciais do naturalismo moderno, como o deísmo (vd 329) e a maçonaria (vd 334).

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A) - O DEÍSMO ANTI-SOBRENATURALISTA. 7270y329.

330. O deísmo foi a primeira forma representativa do naturalismo religioso moderno. Defende uma concepção do mundo, em que Deus apenas governa por sábias leis naturais, sem necessidade de intervenções sobrenaturais. Como palavra, deísmo é de formação latina, derivada do termo Deus, significa literalmente teísmo, que, por sua vez deriva do grego Theós (= Deus). Apareceu, todavia, com finalidade primeira de distinguir entre ateísmo e teísmo não sobrenaturalista; depois deísmo passou a denominar simplesmente oposição ao teísmo sobrenaturalista. Na verdade o sentido originário é importante, porque o deísmo, antes de tudo, defende a existência de um Deus. O deísmo, enquanto nega as interferências sobrenaturais, não admite a "revelação" de conhecimentos comunicados por Deus. Rejeita a inspiração da Bíblia. Reinterpreta os fenômenos dados como "milagres". Reduz à superstição a fé no efeito espiritual ex opere operato atribuído à prática dos sacramentos (denominação de origem latina), ou dos mistérios (denominação equivalente, tomada do grego). Não aceita o deísmo a origem divina, que a Igreja (como organismo temporal) se atribuiu a si mesma. O destino do homem não é sobrenaturalístico, no sentido extraordinário de céu e de inferno. Em resumo, o deísmo não combate a religião, mas as formas que considera supersticiosas e infundadas. No contexto do deísmo também se pode praticar a religião, como efetivamente é praticada nos templos das lojas maçônicas. Supondo uma criação perfeita, o deísmo é geralmente otimista. Este otimismo será evidente sobretudo em Jean Jacques Rosseau (1712-1778), que destaca a bondade natural do homem, por ele já não concebido como natureza ferida pelo pecado original alegado pelos cristãos. O que verdadeiramente teria ocorrido não seria uma queda original do homem e sim uma posterior degeneração da religião natural substituída pela visão negativa das religiões que passaram a ter vigência. Segundo este parecer, caberia agora libertar outra vez o homem, escoimando a Bíblia de suas superstições e afastando as convicções dogmáticas depois introduzidas pela Igreja.

331. Começou o deísmo na Inglaterra, com Herbert of Cherbury (1583-1648), Lord e diplomata, ao mesmo tempo que autor de obras filosóficas e históricas, entre outras: Da verdade segundo se distingue da revelação, do verossímil, do possível e do falso (De veritate, prout distinguitur a revelatione, a verisimili, a possibili et a falso, 1654), Da causa dos erros (De causis errorum, 1645), Da religião das gentes (De religione gentilium,1663). Já no tempo de Herbert de Cherbury dois importantes filósofos negavam a revelação bíblica, a pretexto de insuficientemente fundada: Thomas Hobbes (1588-1864) e Baruch Espinoza (1632-1677). Mas, foi sobretudo no Século das luzes que os intelectuais, especialmente os maçons, aderiram à concepção deísta. Na Inglaterra, onde o deísmo nasceu, arrolam como seus representantes mais destacados: John Toland (1670-1722), autor de Cristianismo sem mistérios (1696), em que o depura sem supostos milagres ou crendices; Mathew Tindal (1656-1733), também autor de livro significativo, Um cristianismo tão antigo quanto a criação (1730) e que se fez conhecido como a "Bíblia de deísmo", insistindo que os sobrenaturalismos são corruptelas posteriores.

332. Na França destacaram-se como deístas Voltaire (1694-1778) e Rosseau (1712-1778). Os enciclopedistas em geral foram aderentes do deísmo. Na Alemanha aconteceram adesões significativas ao deísmo:

Christian Wolff (1679-1754),

Samuel Reimarus (1694-1768),

Imanuel Kant (1724-1804),

Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781).

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333. No século 19 o naturalismo religioso assumiu novas formas com o hegelianismo de direita (Shleiermacher) e com a interpretação histórico-crítica do cristianismo (Strauss, Renan, Harnack). Já não se usa denomina-los deístas, ainda que todos os sejam, mas pelas denominações mais específicas em que se envolveram. Com o avanço da antropologia, da história e progresso das teorias evolucionistas, e com as reformulações da filosofia dialética de Hegel e materialista de Feuerbach ou Marx, surgiram outras maneiras de ver a respeito da religião, todas, porém, mantendo a tendência naturalista.

B). A MAÇONARIA FILANTRÓPICA, LIBERAL, DEÍSTA. 7270y334.

335. A maçonaria, na forma definitiva e como hoje se apresenta, iniciou em Londres em 24 de junho de 1717, quando se organizou a primeira Grande Loja Simbólica, reunindo e ordenando pré-existentes. As lojas maçônicas têm uma tradição quase linear, que remonta à Idade Média, e tem mesmo inspiração em organizações similares existentes na antiguidade. Neste sentido se lembra também a sociedade dos pitagóricos. Na idade média o motivo que formava as lojas era profissional. As razões sociais e ideológicas surgiram paulatinamente, como era natural, por expansão das finalidades da associação. Os construtores de edifícios, especialmente de igrejas e catedrais, conventos e palácios, se reuniam em corporações de natureza sindical que denominavam "Oficiais" (de ofício). Havia corporações de monges e corporações de leigos; foram as dos leigos que deram origem à maçonaria. As corporações dos monges também incluíam leigos; mas estes se tornaram com o curso do tempo mais numerosos e passaram a constituir oficinas próprias. Este é o sentido de pedreiros livres " (freemasonery, ou franc-maçonnerie). A mais antiga confraria de pedreiros livres conhecida (pelo menos como constituída na forma em questão) é a que foi fundada em 1275, pelo arquiteto Erwin von Steinbach, autor da Catedral de Estrasburgo. A circunstância de se tratar de associações profissionais permitiu às lojas a seletividade, mantida até hoje. Isto lhes valeu como fator de liderança e influência, vanguardeirismo social e ideológico.

336. A transformação, que preparou as condições para as instituições de cúpula, como os organismos superiores denominados Grande Loja, ou Grande Oriente, veio em consequência do desenvolvimento social das corporações. Este desenvolvimento social deu oportunidade ao ingresso de pessoas estranhas ao ofício de construtor, e foi porque a maçonaria passou a ser dita simbólica em relação à profissão anterior dos seus membros. O primeiro caso conhecido de admissão de um membro estranho à profissão de construtor é consignado em 8 de janeiro de 1600, pelo livro de atas da Loja Mary's Chapel, de Edimburgo, quando se admitiu um certo John Boswell von Auchinleck. Difundiu-se o costume, como se depreende dum antigo manuscrito de Stone (c. 1640), "para aumento da camaradagem e recepção e captação da benquerença dos reais promotores e mecenas da real Arte (maçonaria), assim como também para reconhecimento". Neste estilo já se estabelecia, como se adiantou em 1717, a Grande Loja de Londres, a qual é dada como ponto de partida da organização moderna da maçonaria. Pelo visto, o desenvolvimento social da maçonaria destacou por primeiro seu objetivo filantrópico, este vindo do passado de mútua cooperação entre os profissionais construtores, e que agora passa à cooperação com os homens em geral, convertendo a entidade em uma organização humanitária universal. Outro objetivo de grande de destaque desenvolvido pela maçonaria foi a promoção da liberdade de pensamento, com sua atitude consequente da tolerância religiosa. Em decorrência, a maçonaria favoreceu a idéia da República e combateu os regimes absolutistas. No plano mais geral da filosofia generalizou-se nos círculos maçônicos o deísmo (vd), abandonando pois os velhos sobrenaturalismos e os ritos sacramentais, estes dados agora como superstições.

337. Difusão generalizada. A nova fisionomia social e ideológica da maçonaria favoreceu a difusão das lojas maçônicas, que já existiam por toda a Europa antes de 1717. Encontra-se no livro da confraria dos Pedreiros de Breslau, a fórmula:

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"Eu faço voto e prometo não divulgar, nem participar a ninguém a saudação dos pedreiros assim como o seu toque (aperto de mão)". Nos Estados Unidos da América floresceu amplamente a maçonaria, e em 1730 já se instituía uma Grande Loja. Na Europa Continental a nova forma de maçonaria se introduzia em 1726, na França; em 1727, em Portugal; em 1742, na Itália. Em vista dos problemas peculiares ao continente, a maçonaria européia se envolveu bastante em assuntos políticos, o que a colocou não raro em conflito com os regimes eventualmente no poder. Na França, a maçonaria se orientou para o misticismo. Aumentou o número de graus simbólicos, originariamente em número de três (aprendiz, companheiro, mestre) e estabeleceu um ritual mais sofisticado.

338. No Brasil a maçonaria remonta aos fins do século 18 por influência francesa e portuguesa. Em 1813 criava-se o primeiro Grande Oriente. Mas o Grande Oriente do Brasil, se instituía só em 1822, do qual foram Grão-Mestres José Bonifácio e D. Pedro I. Em Santa Catarina, a primeira Loja maçônica data em 1831, quando o grande oriente do Brasil foi restaurado, fundada por Jerônimo Coelho, político liberal. Dr. Blumenau, emigrado da Alemanha, era o membro da maçonaria de seu país. Hoje a mais antiga loja subsistente, é a Regeneração Catarinense, fundada em 2 de abril de 1860; o Grande Oriente, a que pertence, foi instalado em 1956. Pouco depois se instalava também na Capital do Estado a Grande Loja de Santa Catarina.

339. Dada a orientação deísta da maçonaria e a inversa doutrina sobrenaturalista da Igreja Católica, as duas organizações se conflitaram frequentes vezes. A igreja condenou a maçonaria em 1738. Repetiu a condenação cerca de 15 vezes. Não obstante, depois do Concílio Vaticano II (1963) a Igreja tolera o diálogo. Dentro de circunstâncias especiais, Bispos e Padres têm comparecido a sessões maçônicas, para conferenciar e mesmo para receber homenagens. O status social oferecido pela maçonaria tem atraído para a sua organização com facilidade aos cristãos indiferentes às querelas dogmáticas. O culto praticado pelos maçons tem sido sempre discreto, no interior de suas lojas, sem paradas de grandes massas como usam fazer as religiões tradicionais.

III – A CABALA PANTEÍSTA ATRAVESSANDO O TEMPO.7270y340.

341. Origem da Cabala. Como doutrina sistemática, formou-se a Cabala entre os judeus do século 9-o. ao 13-o. Depois disto continuou a inspirar o pensamento religioso e profano. Ideologicamente, a cabala é um panteísmo de fundo neoplatônico, tecido com a tradição judaica. Pelo conteúdo da palavra, - kabbalah – significa efetivamente tradição. Segundo pretendem interpretes judeus, a cabala, como tradição, teria sido transmitida secretamente através dos tempos, remontando a Abraão, ou mesmo a Adão. Teria Moisés lançado apenas obscuramente tais doutrinas, em seu Pentateuco, que se deverá ler, portanto, com métodos especiais. A codificação da cabala se fez em dois livros:

Sepher, Iezirah (livro da criação);

Sepher, Hazzohar (livro de luz).

342. Os métodos da leitura cabalística são desconcertantes. Alguns alegaram por exemplo, que da circunstância de iniciarem os nomes de Davi e de Adão, a alma de Adão transmigrou para Davi e deste para o Messias. Paradoxalmente, surgiu a cabala como uma reação à racionalidade da religião. Reagindo às influências da filosofia, os judeus cabalistas preferiram o dogmatismo da tradição místico-panteística e mágica contida nos escritos do

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passado de sua nação.

343. As doutrinas cabalísticas, ao alcançaram a Renascença (séculos 15 e 16), assumiram, então, formas variadas, com autores, que conseguiram algum destaque:

João Reuchlin (1445-1533),

Agripa de Nettesheim (1487-1541),

o abade João Tritêmio (+1516),

Jerônimo Cardan (1501-1576).

344. Paracelso, ou Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541), de numerosa produção literária e experiências científicas, se moveu em clima cabalístico, e chegou a conclusões novas. Suíço-alemão, nascido em Maria-Einsiedeln, cantão de Schwyz, estudou em Viena, Ferrara (Itália), e na Universidade de Basiléia. Pesquisou os minerais do Tirol. De retorno, lecionou medicina na Universidade de Basiléia, de 1526 a 1528. Suas inovações e oposição à medicina tradicional, fundadas em Galeno, Avicena, Rhazès, resultaram no seu afastamento da cátedra. Passou, a partir de 1929, a viajar constantemente pela Europa, difundindo suas novas idéias, sobretudo na Alsácia, Nueremberg, St. Gallen, Augsburgo, Viena. Teve em Salzburgo a proteção do Arcebispo, permanecendo ali até morrer, com apenas 48 anos. Obras de Paracelso: Onze tratados (Elf Tractat, 1524); O livro das coisas naturais (Das Buch von der natuerlichen Dingen, 1525-1526); Dos banhos naturais (Von der natuerlichen Badern (1525-1526); Dos minerais (De mineralibus, c. 1526); Dez livros de ...... ....... (Zehn Buecher der Archidoxen, 1526); Bertheonea: três livros de cura dos ferimentos (Drei Buecher der Wundarznei, 1528); De como preparar remédios (De modo pharmacandi, 1528); Volume de medicina Paramirum (Volumen medicinae Paramirum, 1529 impresso em 1575, uma das obras principais, em que o termo Paramirum parece um neologismo formado do grego, com o significado de "admirabilíssimo", contendo como um dos assuntos a observação clínica do doente; Da doença francesa (Von der franzoesischen Krankheit, 1529); Dos fenômenos caducos do dia a dia (?). Livro dos meteoros cadentes (Von den hinfallenden Siechtagen. De caducis liber meteorum, 1530); Paragrano (Paragranum, 1530, impressão póstuma em 1565, uma das obras principais), nome que dava às partículas mínimas para formar, por exemplo, remédios; Obra Paramirum (Opus Paramirum, 1531, impressão póstuma em 1562, também uma das obras principais); Escritos teológicos: Ceia vespertina do Senhor, da vida feliz (Theologische Schriften: Nachtmahl des Hern, De vita beata, 1530-1533); Magna filosofia (Philosophia magna, 1532, impressão em 1591, obra importante); Da doença de Berg (monte?). Livrinho sobre a peste. Da peste, 3 livros (Von der Bergsucht. Buechlein von der Pest. De peste libri tres, 1534); Sobre o banho em Oberschwytz, 1535); Prognóstico do ano vindouro XXIII (Prognósticon auf XXIIII Jahr zukuenftig. Die grosse Wunarzney, 1536); Livro sobre as doenças tartáricas (Buch der tartarischen Krankheiten, 1537); Magna astronomia ou toda a sagaz filosofia (Astronomia magna oder die ganze Philosophia sagax, 1537-1538, impressão em 1571, obra importante); Trilogia de Kaertner. Crônica do país de Kaertner. Sete defesas. Labirinto dos médicos errantes (Kaertner Trilogie. Chronik des Landes Kaertner. Sieben defensiones. Labyrinthus medicorum errantium , 1538, impressão em 1553 e 1564).

Naturalista, teósofo e alquimista, foi Paracelso um dos inovadores da Renascença. Advertiu para a íntima união da natureza e do homem, e em consequência para a importância da filosofia da natureza e para a ciência natural, todavia tudo de uma visão global monista da realidade total. Participou de idéias platônicas e gnósticas. Admitiu uma força geradora universal, a que denominou arqueu, que combinaria os elementos materiais e preservaria sempre a vida. O saber especulativo deve estar combinado com a experiência, com destaque especial para a medicina. Em suas pesquisas sobre a medicina e a pedra filosofal, Paracelsus fez descobertas químicas. Nem sempre acertando, agia como espírito liberto para novas experiências, havendo sido em muitas questões um precursor, como por exemplo, em homeopatia e farmacologia.

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Também é possível relacionar o panteísmo erudito do filósofo judeu Espinoza (1632-1677) (vd), com a cabala e assim entendê-lo no seu quadro cultural de judeu.

IV- BRUNO, O PANTEÍSTA,LEVADO À FOGUEIRA PELA SANTA INQUISIÇÃO.

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346. Introdução ao monismo moderno. O monismo, - que já existira na antiguidade (vd 200) e na Idade Média (vd 293c), - teve seu primeiro grande destaque moderno com Giordano Bruno (1548-1600). Em função a este filósofo, retornamos a alguma considerações introdutórias. Entende-se aqui o monismo metafísico (totalmente geral), distinto do monismo da natureza, que reduz corpo e alma, a duas faces da mesma realidade. E assim também se distinguem o dualismo metafísico (totalmente geral), distinto do monismo da natureza, que distinguem corpo e alma como duas realidades distintas e até opostas. É difícil conceituar o monismo metafísico ao homem simples, porquanto ordinariamente ele existe só nos setores filosóficos profissionais. Não é a rigor o monismo um ateísmo, mas uma interpretação impessoal da divindade. Este impessoal da divindade, diz contudo de maneira imprópria o que seja a divindade no monismo. A noção de pessoa envolve alguma determinação diferenciadora, e então incorre no risco de atribuir a Deus algum elemento que o diminui, retirando-lhe o caráter de intensivamente infinito e transcendente à todo o ser limitado. Há efetivamente uma aproximação entre monismo e teísmo, de difícil conceituação. Certamente o melhor teísmo é aquele que mais se aproxima do monismo metafísico, porque a personificação conduz o conceito sobre Deus a delimitações difíceis de manter. E o melhor monismo é aquele que mais de perto se aproxima do teísmo, porque a personificação contém características apreciáveis. A querela, no plano metafísico, entre teístas e monistas é de difícil solução, em vista de haver fortes argumentos favoráveis, como também desfavoráveis a uma e a outra posição. Ocorrem diferentes formas de monismo. Modernamente as principais são as que distinguem entre monismo panteísta e monismo materialista. Há também formas monísticas dialéticas. Isto supõe haver outras não dialéticas. Ocorrem também monismos idealistas; isto de novo tem a contrapartida dos monismos realistas. Historicamente, - como se advertiu, - já houve monismos na antiguidade, como os dos pré-socráticos, e os dos estóicos, neoplatônicos, e outros menos definidos. Estamos aqui a tratar dos monismos modernos. Geralmente os monistas modernos não admitem sobrenaturalismos; usam estar em choque com as religiões fundadas em revelações.

347. Giordano Bruno (1548-1600), combativo e brilhante, foi um inovador dentro da linha platônica, monista e cientificista do Renascimento, todavia precocemente trucidado pelas forças da intolerância, que então tinham a seu serviço os Estados Pontifícios. Nasceu em Nola, no então reino de Nápoles. Encaminhado à vida religiosa, entrou aos 15 anos na Ordem dos Dominicanos. Deveu fugir aos 24 anos, em virtude de suas novas idéias, consideradas heréticas. Bruno passou sucessivamente por Roma, Veneza e Pádua, até fixar-se dois anos em Genebra. A resistência calvinista o levou a conduzir-se para a França. Lecionou em Toulouse e depois em Paris, com aplauso dos liberais. O vigoroso ataque às doutrina de Aristóteles o obrigou em 1583 a abandonar também Paris. Estabeleceu-se então em Londres, sob a proteção do embaixador da França. Lecionou agora, por algum tempo, em Oxford. A seguir acolheu-se à Alemanha, onde ensinou em Wittenberg, depois em Helmstadt e Frankfurt sobre o Meno. Em 1592, já aos seus 43 anos, retornou à Itália, propalando suas idéias em Pádua e Veneza. Finalmente, em 1593 a Inquisição da Igreja Católica obteve êxito, capturando-o, mesmo fora dos limites dos Estados Pontifícios, e o enviando ao seu cárcere de Roma. Não aceitando retratar-se, foi finalmente condenado à fogueira pública, no Campo dei Fiorini. O desastre supremo que envolveu ao filósofo panteísta Giordano Bruno, queimado que foi no alto de uma fogueira, tanto mais comove, quanto mais contundente foi a estupidez da assistência piedosa aspirava o cheiro de sua carne

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aos poucos sendo queimada. Se ao menos alguém lhe deitado um balde de água, como protesto contra tamanha violência à liberdade de pensamento. Ergueu-se-lhe, quase 300 anos depois, em 1889, uma estátua, no mesmo local, onde em 1593 foi visto ser queimado pela religião oficial. Todavia agora, ao ver-se a estátua altaneira de Giordano Bruno, já eram mais amenas as maneiras de ver e os Estados Pontifícios (vd 290d), executores do crime, já não existiam, porque desaparecidos desaparecido em função à unificação da Itália. Escreveu Bruno em Italiano uma primeira série de obras:

Spaccio della besta besta trionfante (1584);

Degli heroici furori (1585).

Na Alemanha publicou uma série de opúsculos mais abstratos e matemáticos, que estão sob a influência clara de Nicolau de Cusa (vd:

De triplici mínimo et mensura (1591);

De monada, número et figura (1591).

348. A idéia monista da infinitude do mundo foi desenvolvida de maneira nova por Giordano Bruno. Havendo partido da astronomia de Copérnico (1473-1543), que desfazia a posição centrista da terra, colocou, também como este, em seu lugar o sol. Por sua vez destituiu o sol de uma posição centrista absoluta, para se imaginar que os sistemas dos corpos celestes poderão ser controlados por outros e outros centros sempre maiores, e assim ao infinito. Atenda-se que Copérnico (em De revolutionibus orbium coelestium, 1543) ainda manteve a esfera exterior fixa, que limitava o universo. Nada disto sobra no pensamento de Bruno, que assim instaura a visão moderna do mundo-universo, a se distender indefinidamente. A fisionomia do infinito de Bruno é panteísta, porque exatamente faz o mundo coincidir com a divindade; nesta condição, deveria conceber o mundo como efetivamente infinito, sem realizar uma esfera exterior como limite. Eis que uma idéia estimulou uma concepção astronômica. O infinito do mundo já houvera sido aventado por Nicolau de Cusa, de quem aliás Bruno tomou algumas idéias. Afirmara o Cusano que sendo Deus infinito, e que, de parte, sendo o mundo uma imitação dos modelos divinos, poderia este mundo ser considerado potencialmente infinito. Capaz de sempre novas imitações, a infinitude embora nunca plenamente realizada, era o mundo a estender-se potencialmente na direção do infinito. Em Bruno a infinitude do universo adquiriu feições novas e de efetiva infinidade, por tratar-se do mesmo Deus; o mundo já não é imagem de Deus, mas ele mesmo. Contudo, o monismo, que Bruno pregara, encontra sérias dificuldades diante de alguns problemas, e que outros monistas tentam explicar a seu modo. O problema central é a da unidade na multiplicidade de que Bruno se ocupa no texto De la causa, principio ed uno. Como pode, segundo ponderou, ser tudo um? O atual e o possível, a forma e a matéria, o corpo e a alma? A essência, o fim, etc? O individual seria apenas uma modificação da unidade-totalidade. Renovou, também no sentido de resolver o problema, a antiga idéia do todo, que se encontra inteiro nas partes. O máximo, então, coincide com o mínimo, como que um a repetir o outro. Quodlibet in quolibet, - conforme já asseverava Nicolau de Cusa, ou como reaparece sob outra forma em Paracelso com mãe e matrix. Espinoza continuará o esforço de resolver o problema de diversidade na universalidade monista. Desta sorte, uma tradição se vai firmando que tem como primeiros elos, Nicolau de Cusa, Paracelso, Bruno. O problema da diversidade na unidade monista se estende, aliás, à toda a filosofia sobre a divindade. Efetivamente, se Deus tudo é, como pode criar ao seu lado um mundo como entidade independente dele mesmo? O problema se dilata até à Trindade das pessoas em Deus, - como é que pode haver a multiplicidade dessas pessoas, se Deus é a unidade máxima? (vd).

349. Os corpos são dotados de forças intrínsecas, e que se exercem como capazes de explicar o movimento e outras causações. Da mesma natureza divina da matéria emanam todos movimentos e todas as determinações que os

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corpos assumem. Até certo ponto, a tese de Bruno não encontra dificuldade metafísica, porquanto no panteísmo tudo é Deus. Aqui Bruno se afastou da tese de Aristóteles, dos motores externo, que, sucessivamente, transmitem o movimento, e importam em um primeiro motor imóvel, Deus. A solução de Bruno será rediscutida pelos seus contemporâneos imediatos, afetando profundamente as filosofias não panteístas como as de Descartes, Geulincx e Leibniz, porquanto estas encontram dificuldade em estabelecer os corpos como fonte intrínseca própria de movimento . A valorização da natureza profunda, que reaparecerá em Hamann e em Goethe, Schelling e em outros românticos, fará com que Bruno seja resgatado do esquecimento à; que fora destinado pela sentença da Santa Inquisição. O gênio profundo, escondido no irracional-universal é peculiar à filosofia germânica, sobretudo da romântica. Aliás o subjetivo é também próprio de toda a filosofia moderna.

V – RELIGIÃO NO RACIONALISMO TEÍSTA CARTESIANO.7270y350.

351. Renato Descartes (1596-1650), notável filósofo, matemático e cientista, francês, nascido em la Haye (hoje La Haye-Descartes), Touraine, fez seus primeiros estudos de 1606 a 1614 no Colégio Real de La Fléche, dirigido pelos padres jesuítas. Este fato ligou Descartes com religiosos de sua época e respectivo pensamento. Depois de haver cursado direito em Poitiers, com licenciatura em 1616, entregou-se a viagens, de 1617 a 1629, com o intuito de conhecer, ganhando a vida em empregos eventuais. Assim, demorou-se inicialmente 2 anos na Holanda, mais exatamente em Leyden; serviu então ali ao exército daquele país, cujos interesses a França ocultamente apoiava. Saindo de novo a viajar, esteve na Alemanha, onde mais uma vez se engajou ao exército como forma de sustento. Seguiu finalmente para Veneza e Roma, ali cumprindo o pagamento de uma promessa à lendária Nossa Senhora do Loreto, por lhe haver ajudado a resolver suas dúvidas a respeito dos fundamentos da certeza. Aqui se constata sua crença no sobrenatural. De retorno à França, vendeu sua herança, com vistas ao próprio sustento. Indo fixar-se em 1829 na Holanda, que considerava um país sério. Ali passou a escrever, com vistas à publicação. Embora solteiro, cuidou de ter uma filha, à qual denominou nostalgicamente Francine; instalou-se com a mãe da menino, que, contudo, não viveu muito. Por último aceitou um convite da jovem rainha Catarina da Suécia, para se estabelecer em Estocolmo na condição de lhe ministrar lições. Uma pneumonia deu fim precoce ao erudito intelectual francês, falecendo já em 31 de março do ano seguinte, em pleno inverno nórdico, aos 54 anos de idade.

Obras de Descartes: Compêndio de Música (Compendium musicae, 1618); Regras para a direção do Espírito (Regulae ad directionem ingenii, 1628); O mundo (Le monde, 1633) Tratado do homem (Traité de l'homme, 1633); Discurso do método... mais a Dióptrica, Meteoros e a Geometria... (Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité , plus la Dioptrique, les Météores et la Géométrie, qui sont des essais de cete méthode, 1637), sendo o referido Discurso, apenas a introdução geral, hoje ordinariamente publicado em separado; Meditações da filosofia primeira (Meditationes de prima philosophia, in quibus Dei existentia et animae immortalitas demonstrantur 1640), seguida, na edição de 1642, de respostas mais objetivas às objeções, com tradução do livro ao francês em 1647; A pesquisa da verdade pela luz natural (La recherche de la vérité par la lumière naturelle, 1641); Princípios de filosofia (Principia philosophiae, 1644), com tradução ao francês em 1647, de Picot; Notas no programa (Notae in programa, 1648); A descrição do corpo humano (La description du corps humain, 1647-1648); Da formação do feto (De la formation du foetus, 1648); As paixões da alma (Les passions de l'âme, 1649); O nascimento da paz (La naissance de la paix, 1650), versos para um ballet; Projeto de uma academia em Estocolmo (Projet d'une académie a Stockholm, 1650). Além da Correspondência (Correspondence, edição Adam et Milhaud, PUF, 8 vols.). Como cientista, surpreendeu-se em 1633 com a condenação de Galileu pela Inquisição da Igreja Romana. Isto o levou a suspender a impressão de seu livro Do mundo. Desabafou a um antigo colega de escola, agora o religioso oratoriano Pe. Mersenne, também de destacado saber: "Isto me espantou tão fortemente, que me resolvi quase a queimar todos os meus papéis, ou pelo menos de não deixá-los ver por ninguém". Por isso, apenas postumamente foi impresso aquele livro, em 1677, um quarto de século

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depois de sua morte. Na era das fogueiras da Inquisição a imagem de quem era queimado vivo, era mais terrível do que a da crucificação de Jesus. O homem que se atemorizou com a fogueira da Inquisição haveria contudo de ter impacto em seu tempo, que passou a ser visto como principal fundador da filosofia moderna.

Mais que Platão, tratou Descartes do método, assunto aliás já em voga no início dos tempos modernos antes do Discurso do método de 1637. Aplicou, entretanto, Descartes com muito mais insistência o método no tratamento da questão gnosiológica da certeza inicial. Era preciso examinar a certeza, pelo método da dúvida universal, que consiste em deixar progressivamente como capazes de dúvida as verdades que dependesse de outra, até se chegar a uma certeza não condicionada. Este método supõe o fato de que existe alguma certeza. Mesmo esta devia ficticiamente ser posta em dúvida, para ter como resultado que, mesmo tentando duvidar, alguma coisa resta como certa. Se duvido, - disse Descartes, - não posso duvidar que esteja duvidando, isto é, que efetivamente sou eu que estou pensando. Penso, logo existo, - eis como se traduz esta situação. Partiu, pois, Descartes do fato, de termos o conhecimento imediato de que pensamos e que este cogito, se apresenta em si mesmo como certo. Por que estaríamos certos? Porque percebemos com clareza e distinção. Constituem-se, pois a clareza e distinção, as propriedades desta primeira certeza. Por isso, o critério da certeza é constituído pela evidência clara e distinta. Quais os primeiros resultado do método aplicado ao valor gnosiológico do conhecimento? O primeiro é o de que há um fato certo: o de que eu sei de minha existência. Este é o sentido da expressão, - penso, logo existo. Este momento inicial do conhecimento gera uma longa fenomenologia, cujos detalhes ocupam o filósofo.

Outras colocações fez ainda Descartes logo no fundamento, e que diferenciam sua filosofia de muitas outras. O racionalismo de Descartes é radical, porque estabeleceu que o exercício da inteligência se exerce independentemente do ser do sensível. Situa-se pois do lado de Platão e não de Aristóteles. Fez o pensamento funcionar independente da experiência, porquanto considerava inatas as idéias gerais e, a partir das quais, desenvolveu o processo filosófico. Este racionalismo de idéias autônomas, que fora praticado também pelos agostinianos e foi retomado por Espinoza e Leibniz, ficou em oposição ao racionalismo moderado de Aristóteles (origem das idéias gerais a partir da experiência singular), em oposição mesmo ao futuro kantismo, que também destacará os fenômenos sensíveis como estímulos das formas apriorísticas do entendimento. Abandonou o realismo imediato com referência ao mundo exterior. O que diretamente experimentamos e pensamos, não nos leva ao objeto real exterior à imagem. Conhecemos somente ao mesmo conhecimento. Precisamos ainda provar que estas representações têm no objeto sua causa. E se as representações exteriores, opostas ao conhecimento de si mesmo (do eu), apenas se fazem conhecer imediatamente como representações (fenômenos). Estes fenômenos, ao serem analisados, nada contêm da realidade exterior. Entretanto, Descartes, por causa do seu racionalismo radical, dispõe de conhecimento prévio do principio de causalidade; admite, por meio de prova ulterior, que, atrás dos fenômenos ocorra um objeto real, o qual funciona como causa dos mesmos. Com esta interpretação estabeleceu o realismo mediato, como característica quase geral da filosofia moderna. Com referência ao idealismo futuro, partirá ele também da negação do realismo imediato, sem todavia apelar ao realismo mediato. Ainda outras e outras inovações fez Descartes, e de que algumas criaram conflitos religiosos com opiniões estabelecidas oficialmente. Asseverou haver somente duas substâncias: extensão e pensamento, porque na análise dos objetos pensados restam apenas estas duas noções, como as mais simples e irredutíveis entre si. Identificou a substância dos corpos com sua extensão. A partir dali identificou uma espécie de atomismo e a teoria da formação do mundo mediante turbilhões.

Identificada a matéria com a extensão, conflitou com a doutrina teológica da Igreja Católica sobre a Eucaristia, segundo a qual desapareceria a substância do corpo do pão, para dar lugar a substância de Cristo, enquanto permaneceria a aparência dos acidentes do pão, inclusive de sua extensão. Foram os livros de Descartes inseridos na lista dos livros proibidos da Igreja Católica, "até que fossem corrigidos". Com referência à alma, sua essência seria o pensamento; este não seria apenas uma operação de uma faculdade, a qual, por sua vez, fosse sustentada por uma substância. As sensações seriam apenas pensamentos confusos. Quanto aos animais, uma vez considerados como não tendo pensamento e por isso não tendo alma, não passariam de máquinas bem construídas. As relações causais entre alma e corpo são as de duas substâncias completas (conforme o dualismo de Platão). De natureza irredutível e especificamente distintas, Descartes não encontrava explicação clara para esclarecer como a alma podia agir sobre o corpo, e, vice-versa, o corpo sobre a alma. A desta doutrina de

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Descartes, surgirão explicações futuras criadas pelo ocasionalismo de Arnold Geulincx (1624-1669) e pelo ontologismo de Nicolas Malebranche (1638-1715).

352. Deus na filosofia de Descartes comparece com frequência como princípio explicativo. Agora, invertendo a ordem, as coisas que se explicam invocando a Deus, se estabelecem como provas de sua existência e servem de base para estabelecer sua natureza. Três são as provas cartesianas da existência de Deus:

- a idéia de Deus supõe ao mesmo Deus (vd 222); - o imperfeito pressupõe o perfeito, Deus (vd 230); - a idéia do ser perfeitíssimo inclui apriori sua existência (argumento a priori) (vd 237).

Avaliadas em seu conjunto, estas provas da existência de Deus não apresentam nada da sistematização orgânica das cinco vias desenvolvidas por Tomás de Aquino. Mas, as duas primeiras provas cartesianas se aproximam das de Tomás de Aquino, enquanto utilizam o princípio de causalidade, para explicar fatos. A terceira, chamada depois prova ontológica, ou a priori, é rejeitada por Tomás de Aquino, e procede de Santo Anselmo. As provas da existência de Deus obedecem em Descartes à índole do seu método de redução às idéia clara e distinta. Encontram-se sob influência platônica e agostiniana, no sentido de que admitem o princípio de causalidade sob base meramente racionalística. Mais tarde, Imanuel Kant reduziu a nada os argumentos cartesianos; efetivamente, difícil é manter tais argumentos em um pressuposto racionalista.

a). Primeira prova - A idéia de Deus supõe ao mesmo Deus. Há, no entender de Descartes, no ser humana uma idéia inata de Deus. Considerando, de outra parte que as idéias são objetivas, só resta admitir que esta idéia inata nos faz conhecer efetivamente a existência de Deus. Nesta prova estão implicadas duas condições: a objetividade das idéias (que aqui se aplica a uma idéia determinada, a de Deus) e que de fato tenhamos dita idéia inata de Deus. Isto suposto, invoca-se a Deus como causa da referida idéia. Ou seja, - a idéia de um ser perfeito tem como causa adequada um ser perfeito, Deus. A existência da "idéia de Deus", posta em nós sem poder ter sido produzida por nós, supõe antes de tudo que esta idéia efetivamente não possa ser produzida por nós.

Defendeu Descartes que "a realidade objetiva de nossas idéias requer uma causa, em que esta mesma realidade esteja contida, não só objetiva, mas também formal, ou eminentemente" (Objeções e respostas, no item Razões, V Axioma). Diante disto, a idéia de Deus, corresponde a um Deus efetivo, pelo simples fato de sua idéia estar em nós. "A realidade objetiva de cada uma de nossa idéias requer uma causa na qual esta mesma realidade esteja contida, não objetiva, mas formal ou eminentemente (pelo quinto axioma). Ora, é certo que temos em nós a idéia de Deus (pela segunda ou oitava definições), e que a realidade objetiva dessa idéia não está contida em nós, nem formal, nem eminentemente (pelo sexto axioma) e que ela não pode estar contida em ninguém mais exceto em Deus mesmo (pela oitava definição). Logo, a idéia de Deus, que há em nós, exige Deus como causa: por conseguinte (pelo terceiro axioma)" (Ibidem, no item proposição segunda).

Nas Meditações Metafísicas (III) retoma a observação: "Para que uma idéia contenha tal realidade objetiva em vez de uma outra, deve, sem dúvida, tê-la recebido de alguma causa, na qual haverá pelo menos, tanta realidade formal como há realidade objetiva na idéia... E quanto mais vasta e cuidadosamente examino tudo isto, tanto mais clara e distintamente reconheço que é verdadeiro. Mas que conclusão tirarei? Esta: que se a realidade ou perfeição objetiva de algumas de minhas idéias é tanta, que claramente conheço formal ou iminentemente e, por conseguinte, que não posso ser eu mesmo a causa dessa idéia" (3-a Med.).

Outras passagens se podem encontrar, com o mesmo fundo: a idéia deverá ter uma causa como razão suficiente de si mesma, de tal sorte que, havendo uma idéia, haverá um objeto correspondente, como sua causa eficiente.

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Atenda-se sempre para prova geral que Descartes aduz para a objetividade das idéias. Ora temos a idéia de Deus. Logo, é objetiva. Em tal condição, a prova da existência de Deus, não passa de uma aplicação particular da tese geral da objetividade das idéias (veja-se o que foi estabelecido em Teoria do Conhecimento, de Descartes) (vd). Suposta a condição geral, da objetividade das idéias, a prova da existência de Deus a partir da idéia inata, de Deus, funciona, desde que amparada pelo referido contexto cartesiano. É lógico que, posta a objetividade das idéias, admita-se a objetividade da idéia de Deus, desde que tal idéia nos ocorra ("une preuve de l’existence de Dieu fondée sur l’idée de Dieu, que etait impossible dans l’empirisme thomiste, devient possible dans un inneisme d’inspiration mathematique comme celui de Descartes; nous allons voir, em outre, qu’elle était nécessaire" ( E. Gilson Études sur le role de la pensée mediévale dans la formation du systeme cartesien, Paris, 1951). Mas, também se atenda para a outra condição, a de que exista a idéia, de que se reclama a objetividade. Então pretende Descartes mostrar a efetiva ocorrência de dita idéia inata de Deus. Alega que não pode vir de mim mesmo, por mera elaboração. Lê-se em Discurso do método: "Refletindo em que eu duvidava, e que por conseguinte o meu ser não era inteiramente perfeito, porque eu via claro que era uma perfeição maior que duvidar, lembrei-me de inquirir donde aprendera eu a cogitar em alguma coisa de mais perfeito do que eu era, e a conheci evidentemente que devia ser de alguma natureza com efeito mais perfeito. Quanto aos pensamentos que eu tinha acerca de muitas coisas, eu não me preocupava... não notando nada nelas que me parecesse torná-las superiores a mim... Mas o mesmo não podia dar-se com a idéia de um ser mais perfeito que o meu; porquanto, recebê-la do nada, coisa era manifestamente impossível e, visto como não repugna menos que o mais perfeito seja um resultado e uma dependência do menos perfeito do que o nada proceda de alguma coisa, eu não podia ter tirado essa idéia tão pouco de mim mesmo. De maneira que restava ter sido ela posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu era, e mesmo que contivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter qualquer noção, isto é, para tudo dizer numa palavra, que fosse Deus" (Descartes, Discurso do método, 4-a med.).

Em Meditações Metafísicas, depois de provar a objetividade das idéias (III, 1-12), passa a considerar as idéias individualmente. Adverte que há algumas idéias que se fizeram derivar de outras. Por exemplo, da idéia de mim mesmo posso derivar substância, duração, número e semelhantes (III, 13). Mas, há uma idéia que está em mim e que não se pode derivar de mim, - Deus. "Uma só idéia resta, portanto, na qual é forçoso considerar se há alguma coisa que não tenha podido proceder de mim mesmo, e esta idéia é a de Deus. Com este nome designo uma substância infinita, eterna, imutável, onisciente... Estas excelências que em Deus reconheço são tão grandes e eminentes, que quanto mais atentamente as considero, menos me posso persuadir de que a idéia que tenha delas tenha sua origem só em mim. Consequentemente, é necessário concluir de tudo o que antes disse que Deus existe, pois ainda que a idéia de substância esteja em mim, por ser eu uma substância, não teria eu, sendo finito, a idéia de uma substância infinita, por não ter sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (III, 15).

Pode-se contestar a Descartes, que a idéia de Deus se consegue obter discursivamente, apesar de afirmar ele que ela não está contida na idéia de mim mesmo. Previne-se Descartes, afastando novas alegações. "E não devo imaginar-me que não concebo o infinito mediante uma verdadeira idéia, mas unicamente pela negação do que é finito, à maneira como compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz; pois claramente vejo, pelo contrário, que há mais realidade na substância infinita que na finita; e que, portanto, existe em mim, de certo modo, a noção do infinito antes que a do finito, isto é, antes a de Deus que a de mim mesmo" (III, 16). Concluindo "... e portanto não me resta senão dizer que esta idéia nasceu e se produziu comigo desde que fui criado, como acontece com a idéia que tenho de mim mesmo. E não deve, em verdade, parecer estranho que Deus ao criar-me haja colocado em mim esta idéia, para que seja como a marca do artesão impressa na obra" (III, 24).

b). Segunda prova da existência de Deus - O imperfeito pressupõe o perfeito, Deus. No sentido de provar, perguntou Descartes pelo autor de nossa existência. Não poderíamos ser nós, mas somente Deus. Trata-se de mais uma prova fundada no princípio de causalidade, por sua vez no princípio de razão suficiente.

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A maneira como Descartes apresenta esta prova é original, o que decorre muito do estilo adotado em seu livro Meditações metafísicas. O germe da prova já se encontra no Discurso do Método (4-a Med.), mas se acha melhor nos escritos posteriores.

Lê-se nas Meditações Metafísicas: "Passarei, pois, adiante e considerarei se eu mesmo, que tenho essa idéia de Deus, poderia existir no caso que ele não existisse. E pergunto: de que se teria originado a minha existência? De meus pais ou de algumas outras causas menos perfeitas que Deus, visto que coisa alguma pode imaginar-se mais perfeita, nem sequer igual a Ele" (3-a Med., 30). A seguir Descartes esclarece várias questões relativas à criação. Embora de direito fale apenas da criação do eu, porque, em virtude da dúvida metódica, aborda as condições como tais da criação. É assim que nesta altura já esclarece as várias questões ligadas ao tema.

Opina Descartes que se o eu fosse suficiente a si mesmo, deveria ser como um Deus. Estas condições o eu efetivamente não realiza, razão porque se deve abandonar a hipótese de um eu auto-suficiente: "Se eu fosse independente de qualquer outro ser, se eu mesmo fosse o autor de meu ser, não duvidaria de coisa alguma, não sentiria desejos, não necessitaria de perfeição alguma, pois teria proporcionado a mim mesmo todas as de que tenho alguma idéia; eu seria Deus. Não é de imaginar que os atributos que me faltam sejam porventura mais difíceis de adquirir que os que possuo, pois, pelo contrário, é bastante certo que se eu, ou seja, uma coisa ou substância que pensa, saiu do nada, isto é muito mais difícil que adquirir as luzes e os conhecimentos de várias coisas que ignoro e que não são mais que acidentes dessa substância que pensa; e, certamente, se eu tivesse dado a mim próprio o que acabo de dizer, isto é, se eu mesmo fosse o autor do meu ser, não me teria negado o que se pode obter com mais facilidade, a saber: uma infinidade de conhecimentos de que a minha natureza tem necessidade" (Descartes, Meditações Metafísicas, 3-a med., 30).

Noutro lugar, volta a insistir Descartes que a existência de Deus se demonstra pelo fato de que nós próprios existimos, ao mesmo tempo que temos em nós a idéia de Deus. "Se eu tivesse o poder de me conservar por mim mesmo, teria com maior razão ainda, o poder de me atribuir todas as perfeições que me faltam (pelos axiomas 8 e 9); pois tais perfeições não são mais do que atributos da substância, e eu sou uma substância. Mas não tenho o poder de me conceder todas essas perfeições, pois de outra maneira já possuiria (pelo axioma 7). Logo, não disponho do poder de me conservar por mim mesmo. Além disso, não posso existir sem ser conservado enquanto existo, quer por mim mesmo, supondo-se que eu tenha o poder disso, quer por outrem que tenha este poder (pelos axiomas 1 e 2). Ora, é certo que existo, e todavia não disponho do poder de me conservar por mim próprio, como acabo de provar. Logo, sou conservado por outrem. Além disso, aquele por quem sou conservado tem em si formal, ou eminentemente, tudo o que há em mim (pelo axioma 4). Ora, é certo que possuo em mim a idéia ou noção de muitas perfeições que me faltam e, ao mesmo tempo, a idéia de um Deus (pelas definições 2 e 8). Logo, a noção dessas mesmas perfeições encontra-se também naquele por quem sou conservado. Enfim, aquele mesmo por quem sou conservado não pode ter a noção de quaisquer perfeições que lhe faltem, isto é, que ele não tenha em si formal, ou eminentemente (pelo axioma 7); pois, dispondo do poder de me conservar, como foi dito agora, disporia com maior razão do poder de se dar ele próprio tais perfeições, se não as tivesse (pelos axiomas 8 e 9). Ora, é certo que tem a noção de todas as perfeições que reconheço me faltarem, e que concebo existirem apenas em Deus, como acabo de provar. Logo, ele já as tem em si todas formalmente, ou eminentemente; e assim Ele é Deus" (Objeções e respostas, em Razões, proposição terceira; Difusão E. Do Livro, p. 242). Previne-se Descartes contra uma instância, em que aborda o sentido da contingência: "Mesmo quando chego a supor que, talvez, eu tenha sido sempre como sou agora, nem por isso não posso quebrar a força desse raciocínio e não deixo de reconhecer que é necessário que seja Deus o autor de minha existência. Pois o tempo de minha vida pode dividir-se em uma infinidade de partes, cada uma das quais não depende de modo alguma das demais; e, assim, porque eu tenha existido um pouco antes, não se segue que deva existir agora, a não ser que neste momento alguma coisa me produza e me crie, por assim dizer, de novo, isto é, me conserve...

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Basta, pois, que agora interrogue e consulte a mim mesmo, para constatar se existe comigo algum poder e alguma virtude por meio da qual possa em fazer com que, existindo eu neste momento, isto é, agora, possa existir também dentro de um instante. Visto que o meu ser nada mais é que uma coisa que pensa (pelo menos aqui não se trata agora precisamente senão desta parte de mim mesmo), e tal poder estivesse em mim, é totalmente fora de dúvida que eu deveria, pelo menos, pensar e conhecer tal virtude; mas dá-se o fato de o não sentir em mim, logo, como conseqüência, conheço evidentemente que isto só pode depender de um ser completamente distinto do meu eu" (Descartes, Meditações metafísicas, 3-a med.).

À pergunta de que o eu pudesse talvez se originar "de meus pais", Descartes responde que, por sua vez, os pais, provocam o mesmo problema de origem outra vez de outros pais. Nesta oportunidade estabelece "que neste assunto não pode haver um progresso que vá até o infinito" (Descartes, Meditações metafísicas, 3-a med.). O valor da prova cartesiana baseada no princípio de causalidade ou simplesmente de razão suficiente tem o valor que estes dois princípios possam ter. Admitidos estes princípios pela filosofia de fundo platônico, aristotélico, escolástico, a prova da existência de Deus oferecida por Descartes não oferece dificuldades por este lado. De outra parte, o problema pode surgir no que se refere aos princípios dentro da mesa filosofia cartesiana. Com referência a "idéia de Deus" poderemos distinguir uma idéia imperfeita e uma idéia perfeita. Faz-se conhecer a Deus por uma idéia imperfeita, quando se apela à analogia. Os que contestam Descartes tudo pretendem explicar por este caminho. Uma idéia perfeita, que alcançaria a Deus tal qual, intuitivamente. Tal idéia talvez não a quisesse estabelecer Descartes, que, efetivamente nada mais fez do que confundir uma e outra. Com referência ao princípio de razão suficiente não parece tê-lo esclarecido suficientemente, havendo passado do ideal para o real.

c). Terceira prova da existência de Deus - A idéia do ser perfeitíssimo inclui apriori sua existência. Adverte Descartes, que é impossível separar da idéia da essência de Deus a sua existência. Pelo método da idéia clara e distinta, Descartes imprimiu cores novas ao argumento anselmiano da existência de Deus. Anselmo afirmava que a idéia de um ser perfeitíssimo implicava na existência deste ser, pois senão não seria a idéia de um ser perfeitíssimo (Poslogium). Agora em Descartes (5-a Meditação Metafísica) se insiste que Deus só pode ser concebido como existente. Vê-se clara e distintamente que em Deus a existência é inseparável de sua essência. Quase como a montanha, que não se pode conceber sem o vale, não se consegue separar a idéia de Deus, da sua existência. Logo, tendo eu a idéia de Deus, conheço a sua existência. Eis o texto original: "Se podendo eu tirar do meu pensamento a idéia de uma coisa, segue-se consequentemente que tudo quanto reconheço clara e nitidamente como devendo pertencer a essa coisa, pertence-lhe efetivamente, não posso deduzir disso uma prova e um argumento demonstrativo da existência de Deus? É bem certo que acho em mim mesmo a sua idéia, quer dizer, a idéia de um ser sumamente perfeito, como acho a idéia de qualquer forma ou maneira, conhecendo demais, que uma existência atual e eterna pertence a sua natureza, com não menor distinção e clareza que quando conheço que tudo quanto posso demonstrar de um número ou de uma forma pertence realmente à natureza deste número ou dessa forma... Vejo manifestamente que é tão impossível separar da essência de Deus sua existência, como da essência de um triângulo retilíneo o que na magnitude dos seus ângulos é igual a duas retas, como da idéia de uma montanha ou vale. De forma que não há menos repugnância em conceber um Deus, isto é, um ser sumamente perfeito mas a quem falte existência, isto é, a quem falte perfeição, que em conceber uma montanha sem vale. Porém ainda quando efetivamente eu não possa conceber Deus sem existência, bem como uma montanha sem vale, mesmo assim pelo fato de eu conceber tal coisa, não se infere que realmente exista montanha alguma no mundo. Do mesmo modo, pois, ainda, que eu conceba a Deus como existente, não se segue por isso que ele exista na mais pura realidade, pois meu pensamento não põe necessidade alguma às coisas, e, assim como só de mim depende imaginar um cavalo que tenha asas, assim, também poderia eu atribuir existência a Deus, sem que isso fosse necessariamente um motivo para que ele existisse realmente. Mas este caso ainda oculta um sofisma, de aparência de objeção, pois pelo fato de que eu possa conceber uma montanha sem vale, não se infere que exista no mundo montanha e vale, senão e apenasmente que a montanha e o

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vale, existam ou não, são inseparáveis um do outro, enquanto que não podendo conceber a Deus senão como existente, conclui-se que a existência é inseparável dele e portanto, que existe verdadeiramente. Não que o meu pensamento possa fazer com que seja assim, nem que imponha necessidade alguma às coisas, pelo contrário, a necessidade que há na coisa em si mesma, quer dizer, a necessidade da existência de Deus é que me determina ter esse pensamento, pois não sou eu livre de conceber a Deus sem existência, isto é, a um ser sumamente perfeito sem perfeição, do mesmo modo que sou livre para poder imaginar um cavalo com asas ou sem elas" (Descartes, Meditações metafísicas, 5-a med.).

No suplemento às meditações, ainda se lê, insistindo na prova: "Proposição primeira. A existência de Deus é conhecida pela simples consideração de sua natureza (título). Demonstração. Dizer que qualquer atributo está contido na natureza ou no conceito de uma coisa é o mesmo que dizer que tal atributo é verdadeiramente dessa coisa, e que se pode assegurar que ele está nela (pela nona definição). Ora, é certo que a existência necessária está contida na natureza ou no conceito de Deus (pelo décimo axioma). Logo, é verdadeiro dizer que a existência necessária está em Deus, ou então que Deus existe" (Objeções e respostas, às Meditações Metafísicas, no item Razões, p. 240, ed. Dif. E. do Livro).

Em Princípios da Filosofia, depois de repetir a prova anselmiana, aponta: "os prejuízos impedem que esta existência necessária de Deus seja claramente conhecida por todos. - Insisto que isto o crerá com facilidade a nossa mente, se primeiramente se liberar totalmente de prejuízos. Como porém estamos em todas as demais coisas a distinguir a essência da existência, e a forjar também caprichosamente várias idéias de coisas que quando nos tivermos concentrado na contemplação de um ser sumamente perfeito, duvidamos se por ventura sua idéia seja uma daquelas que forjamos arbitrariamente, ou, pelo menos, a cuja essência não corresponde existência alguma" (I, 16).

353. A natureza de Deus é a próxima etapa depois de provada a sua existência. Eis onde Descartes, mais uma vez oferece algumas peculiaridades, todavia, ora aderindo à posições tradicionais frequentes, ora algo inusitadas. O Deus de Descartes constitui-se como ser nitidamente pessoal, sem concessões ao monismo em que posteriormente derivaria o movimento racionalista por ele mesmo fundado. "Pelo nome de Deus entendo certa substância infinita, independente, sumamente inteligente, sumamente poderosa, pela qual, tanto eu como tudo o mais, se algo mais existe, tudo o que existe, ao qual nenhuma outra perfeição pode ser acrescida"... (Med. III, 27 ss.).

Descartes viu na perfeição divina muito especialmente a veracidade e a bondade. Apoiou Descartes na veracidade de Deus a última garantia da certeza das idéias inatas, claras e distintas. Pela bondade viu em Deus o espírito que não engana, nem mesmo no pensamento.

354. Voluntarismo divino. Descartes atribuiu a Deus um poder amplíssimo, dependendo dele mesmo a determinação das essências contraditórias como 2 + 2 = 5, ou como um triângulo redondo. É o voluntarismo que rejeita a tese clássica da participação da essência divina na criação. Descartes diz em suas cartas a propósito das verdades matemáticas, "as quais vós chamais eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente tão bem quanto as restantes criaturas. Seria, com efeito, falar de Deus como de um Júpiter e de um Saturno, sujeitados ao Estige e ao Destino, dizer que estas verdades são independentes dele" (15 de abril de 1630). Declara ainda que o "possível" e o "bem" também não são regras ou formas de essências prepostas ao ato da vontade de Deus, porque limitariam a potência divina. Por isso, somente são possíveis "as coisas que Deus quis que fossem verdadeiramente possíveis" (maio de 1644). Assim também "a razão de sua bondade depende daquilo que quis fazer". Estas doutrinas, em germe nos seus livros, aparece explicita apenas em suas cartas, a começar de 1630 (Breiher, Hist. de la phil., cap. sobre Descartes, IV).

Dali decorre claramente que não é possível fazer metafísica que proceda pela dedução das formas dos seres, porque estas não seguem um modelo metafísico, não tem uma ligação por participação em uma essência comum. Cada ser é um elemento por si irredutível, equívoco. A ciência racional não é possível. Apenas a intuitiva. A metafísica

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cartesiana desfaz-se, portanto, de todas as construções clássicas que uniam os seres na noção geral do ser e prosseguiam uma série complicada de desdobramento das formalidades abstratas. O voluntarismo divino é um conceito difícil de ser adequadamente entendido. Ele certamente é falso, quando coloca uma sucessividade, porque em Deus tudo é absolutamente simultâneo, sem o que não se constituiria como intensivamente infinito. Tudo depende de sua vontade, ao mesmo tempo que sua vontade depende de tudo, ao mesmo tempo que desde sempre e para todo o sempre, como ato pleno, que nunca decidiu, mas é toda a decisão. Para Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, as essências são absolutas e eternas. Platão até resolveu o problema simplisticamente, fazendo das essências algo que subsiste em um outro mundo. Parece que Descartes não entendeu assim tão rijamente eterno o seu voluntarismo divino com referência às essências.

355. O sistema racionalista cartesiano teve continuadores unilineares. Consagrou-se principalmente nas derivações divergentes como no panteísmo de Espinoza (vd 356), ontologismo de Malebranche (vd 362), mais adiante no Monadismo e harmonia pré-estabelecida de Leibniz (vd 365). Quanto ao kantismo (vd 366), foi ele uma transformação mais profunda do cartesianismo, o qual deixou de ser cultivado como um todo intocável. A teoria do conhecimento da escolástica foi também influenciada por Descartes, porque uma corrente futura adotará seu realismo mediata.

VI – ESPINOZA, UM PANTEÍSTA CARTESIANO.7270y356.

357. Baruch Espinoza (1632-1677), nascido embora em Amsterdam, era filho de judeus portugueses, por sua vez vindos da Espanha, sempre acossados pela Inquisição da Igreja Católica. Mais sensíveis à tolerância religiosa, os países protestantes se tornaram refúgio dos perseguidos, razão porque finalmente os Espinoza se acolheram à Holanda. Entretanto, dadas as divisões religiosas entre os mesmos judeus, Baruch Espinoza foi desfiliado da Sinagoga a que pertencia, dadas as inovações do seu pensamento pessoal. Quanto à tendência panteísta de Espinoza, ela já procedia da tradição de seu mesmo povo. Estava toda a comunidade judia de Amsterdam sob a influência da cabala e do livro de Zohar. Este livro ensinava a existência de uma só substância e que tudo era Deus. Foi Baruch Espinoza aluno de um rabino da exegese racionalista de Maimônides. O estudo do latim o colocou ainda em contato com as obras do panteísmo de Giordano Bruno (vd 357), já dos tempos modernos, como também do racionalismo de Descartes. Escreveu Espinoza em latim tratados rigorosamente sistemáticos: Renati Descartes principiorum philosophiae mori geométrico domonstrata (1663); Tratatus theologico-politicus (1670); Ethica more geométrico demonstrata (1677 póstuma). Recaída no esquecimento, a obra de Espinoza, em razão do seu panteísmo, voltou a ser apreciada por Fichte, Schelling, Scheiermacher.

358. A base gnosiológica do pensamento de Espinoza é racionalista cartesiana. Isto significa alcançar já na primeira análise gnosiológica, sem apoio na experiência sensível, o universal e a seguir também a existência de Deus. Finalmente, interpretou Espinoza a Deus à maneira panteísta. Partindo da noção de substância, cuja essência está nos atributos, a determinou como infinita e única, e assim já ali se encontra Deus, ao mesmo tempo que identificado com o mundo. "Por substância entendo aquilo que existe em si e se concebe por si, isto é, cujo conceito não necessita do conceito de outra coisa do qual se deva formar".

a) Dali decorre primeiramente que a substância "existe necessariamente". Se se negasse a existência real da substância, negar-se-ia a mesma substância, pois é da sua definição existir em si. A substância não tem causa; do contrário por ela se conceberia. Logo, a substância existe necessariamente. A objetividade da substância se infere, pois, do estudo da idéia clara de substância.

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b) Esta substância é "infinita", o que resulta de uma nova especulação de Espinoza. Se não fosse infinita, a substância se conceberia por outra coisa, que a limitaria, e não só pela noção de existir por si. O ente finito não se pode conceber senão como uma limitação, que é uma não perfeição, um não ente. Ora, repugna que a substância, cuja definição consiste toda em existir, seja também um não ser de certa maneira. Logo, a substância é necessariamente infinita. Chegou-se assim, à deificação da substância . Deus existe com substância infinita.

c) Esta substância é a "única". Para que exista uma segunda substância, se faz mister que se distinga da primeira, pois do contrário seriam uma e não duas. Todavia, para que a distinção se faça possível, é necessário que a segunda não possua uma perfeição qualquer que ocorra na primeira, a infinita. Aconteceria, então, que a segunda contivesse algo de não-ente, isto é, que fosse finita. Mas não é admirável tal coisa, pois que a substância por definição é infinita. Pressupõe-se que a reduplicação não seja possível. Na concepção pluralista, - Deus e mundo, - esta seria uma reduplicação.

359. A questão monista ou panteísta, já levantada por Parmênides, já fora também tratada com muita penetração por Aristóteles e Tomás de Aquino. O princípio filosófico que marca o roteiro para a sua solução, foi designado por Norberto Del Prado, religioso da Ordem dominicana, a "verdade fundamental da filosofia cristã (Frib. Helv. 1911), pela repercussão total que exerce. Tudo consiste em explicar a possibilidade da pluralidade das substâncias, ou dos seres, e verificar o fato. A explicação da possibilidade da pluralidade representa, aliás, a explicação do fato verificado. Alega-se contra Espinoza que, partindo de um pressuposto racionalista, analisava simplesmente a idéia clara, para que deste plano ideal deduzir os linhamentos de mundo real. Quem lhe poderia garantir que as leis do plano ideal também valeriam do lado de lá? Eis o mal e a ilusão do conceptualismo cartesiano, que vigorou até Hume e Kant, os quais puseram tais suposições por terra. É justo, como pretende Espinoza, deduzir a infinidade e a unicidade de Deus de substância plenamente realizada. Mas segundo os aristotélicos não repugna que haja outros modos de uma substância realizar sua existência, particularmente se pusermos esta outra substância na dependência da infinita. A introdução do poder de criar, reforça até o poder infinito de Deus. Não obstante a introdução do poder de criar oferece outros problemas, porquanto é necessário que o poder seja intrinsecamente possível. Sabe-se que Parmênides negava esta possibilidade intrínseca. Não podemos atribuir a Deus o que é intrinsecamente impossível. Resta pois decidir se á ação de criar é intrinsecamente possível.

360. Natura naturans e natura naturata. Sem abandonar a tese da substância única, admitiu Espinoza duas naturezas realmente distintas: A natureza naturante (Natura naturans), a divina, que é constituída pelos atributos, sendo absolutamente simples e imutáveis; natureza criada (Natura naturata), a criada, que é representada pelos modos, que são realidades incapazes de existir por si, mas somente em Deus, modos estes que vem a ser o mundo; Deus é ser único, mas subsiste em duas naturezas, - como natureza naturante e como natureza naturada. Segundo Descartes a essência seria representada pelos seus atributos fundamentais. Sendo Deus infinito, infinito deve ser o número de seus atributos, diz Espinoza. Entretanto nós alcançamos, pela análise da idéia de sua substância, apenas dois atributos: o pensamento e a extensão, de que se construiu este mundo. Portanto:

Deus é coisa pensante, Deus é coisa extensa (Deus est res cogitans, Deus est res extensa).

Outros mundos infinitamente numerosos poderão ainda existir, constituídos por outros tantos tipos de atributos fora do nosso alcance. Neste sentido, o mundo dos possíveis, - para Espinoza, - é paradoxalmente vasto e variado. Como se observa o apriorismo racionalista de Espinoza avança para muito longe, numa disparada fantástica, e que pode comprometer o sistema.

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O mundo propriamente dito não é constituído diretamente pelos atributos, mas pelos modos por eles criados e que neles se mantêm. Visto que não existem como substância. Ocorre aqui, em sentido quase semelhante, a emanação de Plotino. Os modos emanam dos atributos em série indefinida e imperceptível de intermediários, que têm a função de preencher a distância que vai entre a substância infinita e a limitação das coisas do mundo. Há assim, modos finitos e modos infinitos. Estes últimos derivam diretamente dos atributos, os outros por intermédio dos primeiros. Do atributo pensamento deriva a inteligência, desta, como modos imediatos, as almas. Por sua vez do atributo extensão deriva o movimento em geral, do qual prosseguem as variações modais.

361. O problema das relações entre o corpo e a alma, difícil no dualismo de Descartes, encontra mais facilidade de solução em Espinoza, em virtude da unidade que o panteísmo cria. A cada manifestação do pensamento corresponderia outra manifestação da extensão: idem est ordo idearum et ordo rerum (Etica II,7). A teoria do conhecimento, de Espinoza obedece a uma explicação também do tipo panteísta. Distinguiu três graus no conhecimento:

A imaginação, conhecimento individual e insuficiente dos modos finitos;

A razão, conhecimento geral e mais perfeito e que alcança as leis gerais e os próprios atributos;

A intuição, visão direta da substância divina, portanto a contemplação de todas as coisas sub specie aeternitatis.

A vontade, já como acontecia em Descartes, é identificada por Espinoza com a inteligência. Idéia e volição não são mais do que dois aspectos de um mesmo modo, - o pensamento, - que constrói a natureza da alma. O motivo está em que as duas funções se apresentam como inseparáveis; são por conseguintes idênticas. Descartes já afirmava que o juízo era obra comum da inteligência e da vontade. Reconhece também Espinoza que o juízo é em si mesmo obra intelectiva, e que se completa com a vontade. A moral considera este assunto apenas sob outro ponto de vista, que é o volitivo. A liberdade de que fala Espinoza não é a de indiferença, mas a simples espontaneidade (Ética II, proposição 48). "Só Deus é causa livre. Só Ele é causa livre" (Ética, prop. 17).

VII - ONTOLOGISMO, JANSENISMO, TEODICÉIA. 7270y362.

- CAP. 3 - DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO -- ART. 7-o. RELIGIÃO NA FILOSOFIA MODERNA. -

363. O ontologismo de Nicolas Malebranche (1638-1715) figura entre um dos principais desenvolvimentos imediatos em que se diversificou a filosofia cartesiana, e que tenha tido repercussões maiores na área da religião. Não muito depois ocorreu o jansenismo e a filosofia de Leibniz, criador do termo teodicéia. Filósofo e teólogo francês, Malebranche nasceu em Paris, de família bem relacionada, onde estudou um ano de filosofia no Colégio de la Marche e três de teologia na Universidade de Sorbonnne. Falecidos seus pais, entrou em 1659 na Ordem dos Oratorianos, sendo ordenado sacerdote em 1664. Não exerceu funções especiais, limitando-se praticamente ao estudo no resto de sua vida e à redação de seus escritos, através dos quais estabeleceu vasta influência. Sabe-se que em 1585, quando se revogava o Edito de Nantes, que houvera concedido em 1598 liberdade de crença aos protestantes na França, fora Malebranche um dos encarregados de pregar missão aos "novos convertidos". Obras: Pesquisa da verdade (Recherche de la vérité, 1674-1675); Conversações cristãs (conversations chrétiennes, 1677); Tratado da natureza e da graça (Traité de la nature et de la grâce, 1681); Tratado da moral (Traité de la morale, 1684); Entretenimentos sobre a metafísica e a religião (Entreteniens sur la métaphysique et sur la religion, 1688); Tratado do amor de Deus (Traité de l’amour de Dieu, 1697); Entretenimento de um filósofo cristão e de um filósofo chinês, 1708); Reflexões sobre a premoção física (Réflexions sur la prémotion physique, 1915). Escritos menores, cartas, respostas são diferentemente reunidos pelos editores. As obras completas: em torno de 20 volumes.

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O contato de Nicolas Malebranche com as obras de Descartes (+ 1650), o fez um racionalista cartesiano, num tempo em que ainda era forte a presença da escolástica já em declínio. Esta se mantém ainda com os dominicanos e os jesuítas, cuja diretriz era predominantemente aristotélica e tomista, enquanto a dos oratorianos era agostiniana, além de já influenciada pelo cartesianismo, até mesmo porque Descartes estava mais próximo de Agostinho e Platão, do que de Aristóteles e Tomás de Aquino. Foi Malebranche um racionalista radical como Descartes, enquanto como este admitiu um conhecimento intelectual independentemente de origem em dado experimental. Situou-se também no realismo mediato cartesiano. Todavia foi mais radical ainda, porque, - como já outros cartesianos, - lhe deu a explicação do ocasionalismo, segundo o qual os objetos não agem sobre os sentidos, mas ali estão por ocasião do conhecimento. Até certo ponto o ocasionalismo coere com Agostinho, porquanto este sempre destacou a ação de Deus, inclusive para a formação dos universais por efeito de uma iluminação divino-natural (vd 275). Para Malebranche os objetos já não causam os fenômenos do conhecimento, como ainda admitia Descartes; agora, Deus, por ocasião da presença dos objetos, produz estes fenômenos. O mesmo Deus causa em nós o conhecimento, porquanto só Deus é causa de tudo.

Acrescentou Malebranche ao seu ocasionalismo também o ontologismo. Vê o ser cognoscente intuitivamente a Deus, e nesta visão direta da divindade, e nela são vistas todas as coisas. A filosofia nestes termos resulta em um otimismo sem precedentes, porque em Deus somente aparece a obra perfeita. Abordando corajosamente as questões mais provocantes de seu tempo, Malebranche teve vasta círculo de leitores, influenciando a derrocada geral da escolástica no curso do Século das Luzes.

364. O jansenismo, como doutrina religiosa, se prende a vários nomes, de tendência rigorista, fundo filosófico cartesiano, e a partir dali agostiniano.

a). Jansênio Cornélio (1585-1638), ainda que anterior à Malebranche, assumiu significação apenas posterior, a partir de uma publicação póstuma, Augustinus, criada em 1640, e dada ao público depois Teólogo holandês, nascido em Leerdam. Iniciou seus estudos na Universidade de Louvain, em l602. Professor nesta universidade a partir de l6l7, liderando a teologia agostiniana contra os jesuítas. Em l636 indicado pelo rei da Espanha para bispo de Ypres (hoje na região flamenga da Bélgica), morreu pouco depois. Jansênio, reforçando Baius, reagiu contra o antigo otimismo pelagiano a respeito da vontade humana, combatido por Agostinho e a Igreja oficial, que se reacendia com o espírito da Renascença e com os jesuítas, notadamente Molina. A radicalização da posição agostiniana já ocorria com Lutero e Calvino. A escola teológica jansenista, com aspecto de um protestantismo dentro da Igreja Católica, teve desdobramentos com figuras importantes da intelectualidade francesa, como Pascal, Racine, Boileau, Madame de Sévigné, com ligações mesmo com Bossuet e Fénelon.

b). Antoine Arnauld (11612-1694), nascido em Paris, formou no grupo chamado de Port-Royal, teólogo com doutorado na universidade de Sorbonne em 1642, Padre em 1643, foi um dos principais mentores do jansenismo localizado no convento de Port-Royal de Paris. A questão, que já vinha de longa data, e tomara vulto com Angélica Arnauld, abadessa do Convento de Port-Royal-des-Champs desde 1608 e onde havia introduzido uma disciplina rigorosa, de acordo o espírito jansenista. Fundando a mesma abadessa em 1625 o convento de Port-Royal de Paris, nele veio a ser confessor, desde 1634, o Abade de Saint-Cyran, jansenista. Este, - contrário a política de Richelieu, - fora preso em 1638. Antoine Arnauld, que, desde seus estudos contatava Saint-Cyran, tomou o seu lugar no questionamento ideológico. A Igreja condenava em 1642 o jansenismo. No ano seguinte sai o livro de Antoine Arnauld, - A comunhão frequente (La fréquente comunion, 1643). Como se sabe, Antoine Arnauld adquiria ainda fama pelos demais livros,

- Gramática geral e raciocinada (Grammaire générale et raisoné, 1660), com Lancelot;

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- Lógica ou Arte de pensar (Logique ou Art de penser, 662), com Pierre Nicole, vindo a ser mencionados simplesmente por Gramática de Port-Royal e Lógica de Port-Royal, ambos os textos famosos;

- Tratado das verdadeiras e falsas idéias (Traité des vraies et des fausses idées, 1683), contra Malebranche;

- Obras completas (Oeuvres complètes, 42 vols., Lausane, 1775-1781).

No livro publicado em 1643 contra a comunhão frequente, Antoine Arnauld contrariava a um jesuíta, que houvera proposto a comunhão segundo a ceia sagrada cotidiana dos primeiros cristãos. Advertiu sobre a necessidade de proporcionar o uso do sacramento da Eucaristia com sua grandeza e não de acordo com a necessidade da alma, porque importava antes merecer ao sacramento pela prática da virtude. A orientação teológica e filosófica de Antoine Arnauld é agostiniana, com inclusões do pensamento de Descartes e de Pascal, seus contemporâneos, além de todo o esquema jansenista em que se inseriu.

365. A Teodicéia de Godofredo Guilherme Leibniz (1646-1716) não é apenas um novo nome para a filosofia da religião, porque foi escrita por um dos filósofos mais representativos da filosofia alemã, pela sua dinâmica cultural e equilíbrio de pensamento, até mesmo de pacifismo. Filósofo, matemático, físico, historiador, diplomata, nasceu em Leipzig. Filho de professor universitário, todavia órfão já aos 6 anos, foi desde logo um autodidata surpreendente, ao mesmo tempo que fazendo estudos regulares. Aos 15 anos, 1561, atingiu o ingresso na universidade de Leipzig, e já bacharel em 1663, mestre de filosofia em 1664. Graduado em direito, em Altdorf, em 1666. Ingressou no serviço diplomático do Eleitor de Mainz (Mogúncia). Assim foi que passou em Paris, os anos de 1772 até 1776, quando teve excelentes contatos com intelectuais da época. Ingressou depois, como bibliotecário, na corte do duque de Hanôver. Fez viagens de estudos a Roma e Viena. Em 1700 se transferiu para Berlim, à convite da Eleitora Sofia Carlota. Fundada a academia de Ciências da Prússia, foi seu primeiro presidente. Em 1714 esteve em Viena, onde recebeu um título nobiliárquico do Imperador. Retornando a Hanôver, ali faleceu. A maior parte dos escritos de Leibniz, autor sempre muito citado, foram ocasionais, não muito extensos, mas em grande quantidade, havendo sido reeditadas com frequência na forma de Obras completas, ou quase completas, no total cerca de 10 volumes Os livros são geralmente breves, por vezes quase como artigos. Entre outros: Sobre o principio da individuação (De principio individui), dissertação, 1663; . Praefixa est demonstratio existentiae Dei ad mathematicam certitudinem exacta, 1666); um título paralelo Profissão de fé do filósofo (Confessio philosophi, redigido cerca do ano 1773); Meditações sobre o conhecimento, verdade e idéias (Meditationes de cognitione, veritate et ideis, 1684); Discurso sobre a metafísica (Discours de métaphysique, redigido em 1686, impresso em 1846), bastante conhecido; Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias, assim como da união que há entre a alma e o corpo (Système nouveau de la nature, 1695); Correção da filosofia primeira e noção de substância (De prima philosophiae emendatione et de notione substantiae, 1696), com reparos a Descartes; Considerações sobre a doutrina de um espírito universal (Consideration d’un esprit universel, 1697); Sobre a mesma natureza (De ipsa natura, 1698); Novos ensaios sobre o entendimento humano (Nouveaux essais sur l’entendement humain, redigido em 1704), contra ensaio de título similar, de Locke, o qual falecia naquele ano, e por o de Leibniz foi editado postumamente, apenas em 1765; Ensaio de Teodicéia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal (Essais de Theodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l’homme, et l’origine du mal, 1710), a pedido da rainha da Prússia; Monadologia (Monadologie, redigida provavelmente em 1714); Princípios da natureza da graça (Principes de la nature de la grâce fondés en raison, 1719). Construiu uma filosofia racionalista, utilizando as linhas fundamentais do cartesianismo, este por sua vez mais platônico do que aristotélico. As idéias são alcançadas independente da experiência. Todavia, a tese leibniziana da idéia inata é mais moderada que a do Descartes. Não são inatas as formas atuais do pensamento, mas apenas a potência ou disposição para fazê-las surgir ao contato com a realidade. A correspondência das idéias com as realidades exteriores decorre da harmonia preestabelecida entre as idéias e as realidades. Todas as realidades são mônadas, com atividades internas. Umas são mônadas psicológicas, outras são mônadas cósmicas. A evolução de ambas as modalidades de mônadas é paralela. Entre os seres criados não não ocorre

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reciprocidade de ação, mas apenas atividade imanente. Diferentemente, pois, de Descartes, que houvera concebido os corpos como mônadas ativas, ainda que apenas com atividade imanente. Ao escrever uma justificativa de Deus, deu-lhe o nome de Teodicéia, o termo passou a significar por extensão toda a teologia natural, isto é, a filosófica. Dois são os princípios resultantes da análise racional das idéias: o princípio de contradição, que rege o possível; e o princípio de razão suficiente, que rege as existências. A partir destes princípios se formulam os argumentos da existência de Deus. Admitiu prova a priori da existência de Deus; formulada por Anselmo, foi logo depois Kant, ao refutá-la, denominada prova ontológica.

O mundo criado por Deus é o melhor possível, sendo o mal um destaque do bem, como a sombra em relação ao objeto. De alta capacidade de compreensão e espírito conciliador, ele, protestante, trabalhou no sentido de conciliar as igrejas cristãs.

VIII – RELIGIÃO NO RACIONALISMO KANTIANO.7270y366.

367. Imanuel Kant (1724-1804), sem se afastar inteiramente do racionalismo cartesiano, reduziu o relativo otimismo deste racionalismo cartesiano e de suas derivações, com isso diminuindo o valor do que se dizia a respeito de Deus e do mundo em geral. Nasceu Kant em Koenigsberg, da então Prússia Oriental, cidade que depois da anexação à Rússia passou a ser denominada Kaliningrad. Estudou na Universidade desta mesma cidade, de 1740 a 1746. Manteve-se com o magistério em casas particulares da região. Retornou à Universidade de Koenigsberg, em 1755, quando apresentou sua tese de doutorado. Foi ainda no mesmo ano admitido como docente. Subia à posição de catedrático, em 1770, com uma dissertação, - Sobre a forma e os princípios do mundo sensível e do mundo inteligível (De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis). O texto marcou época, porque nele Kant propôs a doutrina do apriorismo do tempo e do espaço do mundo sensível, e em decorrência também o apriorismo dos conceitos do mundo inteligível. Efetivamente, costuma-se dar o ano de 1770 como fim do período cartesiano da filosofia e começo de um novo período, o kantiano. Mais onze anos veio à publicidade, em 1781, a Crítica da razão pura (Kritik der reinen Vernunft). Nesta obra daria Kant plena sistemática do que vinha prenunciado na dissertação de 1770. As que viriam depois, apenas complementavam as de 1770 e 1781: Prolegômenos a toda a metafísica futura que se poderá apresentar como ciência (1783);

A fundamentação da metafísica dos costumes (1785);

A crítica da razão prática (1788);

A crítica da faculdade de julgar (1793);

A metafísica dos costumes (1797);

O conflito das faculdades (1798), sobre as relações da filosofia e teologia, no contexto da razão crítica

368. Deus apenas como uma idéia do entendimento puro. Distinguindo entre duas faculdades, a do entendimento puro e a da razão prática, caracterizou Kant ao objeto do entendimento puro como sendo apenas o fenômeno. Este simplesmente surge nos sentidos externos e é a seguir recebido nas formas a priori dos sentidos internos, - espaço e tempo, - e finalmente também nas formas a priori dos entendimento, e que são em número de 12 categorias. Estas formas a priori nunca são o objeto em si, exterior à mente; elas se encontram na mente, a qual as afirma dos fenômenos.

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O primeiro grupo de categorias, ditas da quantidade dos juízos, são unidade, pluralidade, totalidade; tais determinações não passam de formas a priori, ou seja de conceitos do entendimento, que os afirma, sem correspondente pelo lado de forma dessa mesma mente. As categorias da qualidade dos juízos impõem às coisas as formas a priori de realidade, negação, limitação. Portanto, não podemos pensar as coisas senão como se fossem reais, ainda que em si mesmas não o sejam. Sob este ponto de vista da qualidade, sempre ocorre alguma negação, como ainda alguma limitação. Prosseguindo, encontra a análise ainda as categorias de relação entre sujeito e predicado de acidente e substância, causalidade e efeito, ação recíproca. E finalmente, as categorias de modalidade, que revestem os fenômenos com os conceitos apriorísticos de possibilidade e impossibilidade, existência e não existência, necessidade e contingência. Importa sempre insistir sobre qual era a interpretação gnosiológica de Kant ao encarar o objeto do conhecimento. O sistema kantiano principia com uma forte ênfase na interpretação da natureza gnosiológica do conhecimento. Kant é cartesiano enquanto, como Descartes, admitiu que o conhecimento, no primeiro intuito, somente alcança como objeto, o fenômeno. Neste particular ambos, Descartes e Kant, diferem da posição do realismo imediato dos antigos, seja de Aristóteles, seja dos escolásticos tradicionais. O realismo imediato adverte que, já no primeiro intuito, o conhecimento atinge a realidade e não apenas o fenômeno; esta posição do realismo imediato se funda principalmente na doutrina da intencionalidade, que se exerce em forma de juízo, ao passo os fenomenistas se apóiam principalmente na idéia e na sensação como primeiro elemento do conhecimento. Assim sendo, para Kant tudo no entendimento puro são fenômenos e formas a priori, que se afirmam simplesmente. E, se se houver de criar argumentos com estes objetos, o resultado fica apenas de conteúdo mental, ou seja ideal. Acontece assim, que os argumentos da existência de Deus, provam apenas a idéia de Deus. Portanto, para Kant, a razão pura não vai além do ideal, pensando a Deus apenas como idéia de Deus, e assim também a alma apenas como idéia de alma, o mundo apenas como idéia de mundo. Teria Kant acertado em sua crítica ao objeto do entendimento puro? Como se sabe, a gnosiologia dos realistas, - tanto dos realistas mediatos cartesianos, como dos realistas imediatos anteriores (Aristóteles, escolásticos da linha clássica) acredita que o pensamento atinge a realidade, como existente pelo lado de fora da mente, - enquanto outros (sensistas, idealistas) acham que o conhecimento somente atinge um objeto, que se encontra dentro dele mesmo, e que seria apenas o outro lado do processo do conhecer, como a outra parede da mesma sala, - e estes seriam os idealistas, ditos também fenomenistas. Os racionalismos realistas como o de Platão e Aristóteles, Descartes, Leibniz, Wolff e tantos outros, não usam ser agnósticos em relação a Deus, mas o são os racionalismos idealistas. Mas ainda ali, no plano dos racionalismos idealistas, ocorrem os casos em que, por um caminho tradicional se nega a validade dos argumentos que levam a Deus, mas se introduzem outras vias; este é o caso de Imanuel Kant. Ocorrem mesmo os casos em que Deus é admitido, mas simplesmente como a idéia suprema, porquanto se declara que somente o ideal é real; este é o caso de Fichte, Schelling, Hegel. O idealismo de Imanuel Kant foi de particular impacto na filosofia moderna, que faz dele até o divisor entre seu primeiro período, dominado pelo cartesianismo, e o seu segundo período, marcado pelo kantismo. Depois de haver Kant reduzido o objeto imediato das sensações e o objeto imediato dos conceitos a representações puras, operando independentemente de uma coisa em si, pelo lado de fora da mente, - não tinha outro caminho senão dizer mais, - que o uso destas sensações e conceitos não vai mais além de sua pura representação. Também os princípios universais, resultantes da análise dos conceitos, seriam, pois afirmativas válidas somente no círculo interno da mente. Por isso, as provas da existência de Deus, através do uso de tais princípios, logicamente provariam apenas a idéia de Deus, e assim também a idéia da alma e a idéia do mundo. Neste formalismo lógico as coisas são neutras em relação à mente. Em consequência, elas não reclamam explicações postuladas a partir das perguntas geradas pelas condições internas da mente. De agora em diante, em vista da forte investida de Kant, as anteriores gnosiologias racionalistas realistas, - como de Platão e Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino, Descartes e Espinoza, - deverão melhor tentar provar, contra a advertência de Kant, que a lei da mente é a mesma das coisas, e não apenas a lei interna do processo cognoscitivo. Que são, então, as coisas? Acaso elas existem? Nem o que são, nem se existem, depende da mente, e por isso ficamos num agnosticismo racionalista intransponível a partir da mente lógica.

369. Deus como postulado da razão prática. Não obstante, - admite Kant, - a coisa em si é alcançável através da razão prática, efetivamente uma via alógica. Para Kant Deus é um postulado da razão prática. Haverá os que rejeitarão este outro caminho (os hegelianos, por exemplo), e os que o aceitarão, ainda que o reformulando (alogicistas, existencialistas, entre outros).

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Apesar de fenomenista, o sistema apriorista de Kant não exclui, como se adiantou, a existência da realidade externa. Apenas ela não é alcançada pelas faculdades de conhecimento enquanto operam com dados sensíveis sucessivamente revestidos pelas formas ditas a priori. Não exclui este procedimento a existência de um outro caminho e que dê acesso à realidade exterior. Estas outra via se procede pelos postulados da razão prática: a liberdade, a imortalidade, a existência de Deus. Igualmente não há realidade nos objetos pensados entendimento. Advirta-se preliminarmente para a inovação de Kant na classificação das faculdades da mente; importa atender para a inovação, porque dela fez depender o quadro das formas apriorísticas; além de sair da divisão tradicional das faculdades, ainda em algumas estabelece formas apriorísticas, enquanto não em outras. A faculdade do entendimento (Urteilskraft), que se limita a dizer o que as coisas são, formando pois os conceitos, opera com 12 formas apriorísticas, distribuídas em quatro grupos de três. As 12 formas apriorísticas são conceitos fundamentais, e que se denominam categorias (denominação por imitação às 10 categorias de Aristóteles). Agora o apriorismo de Kant assume o caráter amplo de idealismo, porque as categorias já não se atribuem às coisas como determinações delas mesmas, e sim como projeções espontâneas criadas pela mente. São ainda faculdades específicas: a razão pura e a razão prática. Ambas são peculiarizadas pelo exercício do raciocínio. Não apresenta formas apriorísticas a faculdade da razão pura, que opera raciocínios especulativos. Adverte, entretanto, Kant, que os raciocínios da razão pura operam com conceitos, cujos objetos não contêm dados reais, e que por isso todos os seus resultados são de validade apenas ideal; por isso, ideal é a idéia de Deus, ideal é a idéia da alma, ideal é a idéia do mundo. Portanto, sempre que se raciocina, validamente se prova a Deus, a alma, o mundo; mas, em função a estes raciocínios Deus ainda não existe realmente, nem a alma, nem o mundo que temos diante de nós. Mas contém forma apriorística a faculdade da razão prática, que opera raciocínios de ordem moral. Encontra-se a razão prática predeterminada pelo juízo enunciador do dever moral: Eu devo (Ich soll). A faculdade do juízo tem como objeto o belo, ao qual se enuncia como um juízo de avaliação (vd... Tratado do belo).

IX – RELIGIÃO NO MONISMO DIALÉTICO IDEALISTA.7279y372.

373. Depois da filosofia transcendental de Imanuel Kant (1724-1804), imediatamente se destacou o monismo dialético idealista, gerado por três grandes figuras da filosofia:

- Fichte (1762-1814), - Hegel (1770-1831), - Schelling (1775-1854).

Paralelamente ocorreu também o monismo dialético materialista (vd 390) de Feuerbach (1804-1872) e Marx (1818-1883). Ambos os monismos dialéticos, - idealista e materialista, - agitaram amplamente os parâmetros de avaliação da religião.

374. Deus no sistema idealista dialético de Fichte. Notável filósofo alemão, nasceu Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) em Rammenau, Saxônia. Dada a sua precocidade e inteligência, seus estudos tiveram a proteção do Barão von Miltitz. Cursou nas universidades de Iena (teologia), Wittenberg, Leipzig. Professor ordinário de filosofia da Universidade de Iena, em 1794. Notabilizou-se pelo seu brilho pessoal e pelas novas publicações. Depois de 5 anos teve, todavia, de deixar a universidade de Iena, ante a acusação de ser ateu, frente a um seu artigo publicado em 1798, intitulado Sobre o princípio de nossa crença num governo divino do mundo, e que servia como introdução a um texto do ateu Forberg. Seguiu então o filósofo panteísta para Berlim, onde teve uma vantajosa convivência com os círculos românticos (Friedrich Schlegel, Dorothea Veit, Schleiermacher). Lutou pela criação da Universidade de Berlim dentro dos novos conceitos da época, tendo sido nomeado em 1809 seu primeiro Reitor. Havendo tratado dos feridos de uma guerra que não viu terminar, morreu contaminado de tifo, em 29 de janeiro de 1814, pouco antes da derrota definitiva de Napoleão. Entre outras obras, publicou: Ensaio de uma crítica a toda a revelação (Versuch einer Kritik aller Offenbarung, 1792, anônima; 2-a ed. edição em 1793); Fundamentos de toda a doutrina da ciência (Grundlage der gesamten

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Wissenschaftslehre, 3 vols., 1794, com edição corrigida em 1802), sua obra principal; Sobre o destino do homem (Ueber die Bestimmung des Menschen, 1800); Instrução para a vida espiritual (Anweisung zum selingen Leben, 1806); Discursos a nação alemã (Reden an die deutsche Nation (1808-1809); Teoria do Estado (Staatslehre, 1813). O sistema de Fichte parte do idealismo de Kant, transformando-o em idealismo absoluto, sem qualquer possibilidade de uma coisa real em si. O sujeito pensante é uma consciência absoluta e livre; o ideal é toda a realidade, e portanto a própria divindade. Eis o idealismo panteístico. Inaugurou o idealismo de Fichte a forma de um processo dialético de tese, antítese, síntese. Primeiramente a consciência contempla a si mesma, descobrindo então suas determinações fundamentais. Intui sua egoidade (Ichheit). Eu sou eu (tese). Mas o eu coloca imediatamente o não-eu, o objeto, como sua negação (antítese). Mas, num terceiro momento (síntese) surgem o eu e o objeto como faces da mesma consciência, o que equivale a dizer que a realidade total é ideal e monística, um idealismo panteísta, um panegoísmo. Desenvolveu Fichte, com destaque, também uma moral, que tende para um misticismo generalizado, e uma doutrina sobre o Estado, que se caracteriza como nacional e socialista. Entretanto, o Estado se funda num contrato social livre. Destacou a nacionalidade e o caráter de Estado fechado. E assim também examinou a educação, especialmente o sentido da universidade, conceituando-a em função ao desenvolvimento do Estado.

375. Deus no sistema de Hegel. Foi Georg Johann Friedrich Hegel (1770-1831), sem qualquer dúvida, um dos mais notáveis estimuladores do pensamento moderno, como antes dele Kant. Deus comparece em sua filosofia, mas curiosamente como um momento quase final da dialética do Espírito. No monismo de Hegel, ficou Deus sendo ainda um ponto de vista abstrato do desenrolar do pensamento, o qual, em sua progressão dialética finalmente encerra sua marcha, como Espírito Absoluto. Nascido em Stuttgart, Hegel fez ali também seus estudos clássicos de liceu, com forte interesse pelas artes e a história. Estudou filosofia e teologia na Universidade protestante de Tuebingen (1778-1793), tendo sido condiscípulo de Schelling e Hoelderlin, e, como estes, entusiasta da revolução francesa. A carreira profissional de Hegel não foi inicialmente fácil, tendo exercido o magistério particular em famílias ricas e outras funções sem maior expressividade. Nestas funções esteve em Berna de 1793 a 1796; em Frankfurt de 1797 a 1800. Já como Privat Dozent, lecionou em Iena de 1801 a 1807, na Universidade, havendo conquistado esta posição com uma tese latina A órbita dos planetas. Já escrevia muito nestes primeiros anos, o que todavia veio a ser publicado somente muito depois. Em 1801 Hegel publicou um estudo brilhante, comparando os sistemas de Fiche e Schelling, a partir dos quais criaria o seu idealismo objetivo. Em Bamberg foi Diretor de um jornal de 1807 a 1808, para logo passar à Nueremberg de 1807 a 1817, como diretor de um ginásio. Em virtude de sua inteligência, logo se revelou capaz de significativas criações filosóficas. Foi ser, em decorrência de seu prestígio, professor na Universidade de Heidelberg, em 1816, e já em 1818 na Universidade de Berlim. Com mais 13 anos, findos os quais faleceu, relativamente novo, aos 61 anos, depois de haver despertado não só a admiração do rei da Prússia, como ainda a generalizada liderança mental sobre as inteligências jovens. Tranquilo, por vezes sonolento, sem atrativo exterior, tinha na mente um sistema vastamente concatenado de idéias. Obras de Hegel: Diferença dos sistemas de filosofia de Fichte e Schelling (Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie, 1801); A fenomenologia do espírito (Die Phaeomenologie des Geistes, 1807); Ciência da lógica (Wissenschaft der Logik, 2 vols., 1812-1816); Enciclopédia das ciências filosóficas em resumo (Encyclopaedie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 1817); Linhas fundamentais da filosofia do direito (Grundlinien des Rechts, 1821). Obras póstumas: Lições sobre a filosofia da religião (Vorlesungen ueber die Philosophie der Religion, 1832); Lições sobre a história da filosofia (Vorlesungen ueber die Geschichte der Philosophie, 1833-1836); Lições sobre a Estética (Vorlesungen ueber Aesthetik, 1835-1838); Lições sobre a filosofia da história (Vorlesungen ueber die Philosophie der Geschichte, 1837).

376. Basicamente Hegel foi um kantiano, mas com as reformulações do idealismo dialético de Fichte, ao qual levou à coerência final. Com vistas à idéia de Deus e da religião, importa ver tudo isto dentro do seu próprio sistema.

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Nunca foi rigorosamente um kantiano, porque como Fichte, rejeitou a coisa em si, para se estabelecer na idéia como a única realidade, e esta trabalhada pelo processo dialético, mas de maneira muito mais meticulosa que fizera Fichte. Também rejeitou a prova kantiana da existência de Deus como postulado da razão prática (vd 369). Reteve um pouco de Aristóteles, enquanto este destacava a imanência dos universais, contra a transcendência das idéias reais arquétipas de Platão. Conservou de Espinoza o princípio de que toda a determinação, ou afirmação, contém o seu contrário, ou a contradição. Estavam postos os elementos essenciais da dialética do desenvolvimento da idéia em tese, antítese, síntese. Mesmo assim, Kant foi o núcleo principal do seu sistema, porque no seu idealismo, a idéia não ultrapassa a idéia; neste particular foi um fenomenista, já como o fora Descartes, com a diferença, de que este ainda passou do fenômeno ao real, ao estabelecer um realismo mediato (vd 352). Este mediatismo não foi considerado coerente por Kant e assim também não por Hegel e nem pelos idealistas em geral. Consequentemente se firmaram no seu fenomenismo idealista. A filosofia é apenas o estudo da idéia. Os setores do saber receberam de Hegel meticuloso desenvolvimento, em que o destaque geral é a dinâmica dialética do evolver das sucessões, como se aprecia em seu livro Enciclopédia das ciências filosóficas em resumo, de 1817. A idéia progride, como se todas as idéias fossem concretamente uma só, todavia retalhadas pelas abstrações sucessivas. O devir da idéia é similar aos contrários do Logos de Heráclito (vd 199a), acrescido da processão mais sofisticada dos contrários da dialética. Em cada momento dialético se situam algumas ciências. Finalmente, antes do Absoluto aparece a menção sobre Deus e a religião. No primeiro estágio dialético, a idéia em si, ou a idéia pura, no seu momento anterior a qualquer manifestação finita, é objeto da lógica. Tem a lógica seu ponto de partida na universalidade do ser. A partir da noção mais geral do ser (tese), vai ao seu oposto o não-ser (antítese), e depois à composição de ambos (síntese). Prossegue a lógica, pelo processamento de todos os conceitos, principalmente das categorias. No segundo estágio dialético, a idéia fora de si, enquanto representação de um objeto, é o objeto da filosofia da natureza. Ao assim se exteriorizar, a idéia multiplica-se no espaço sob diferentes formas, e em consequência a filosofia da natureza, se redivide em mecânica (matéria e espaço), física (corpos), orgânica (vida). No terceiro estágio dialético, a idéia consciente de si mesma, portanto reunindo objeto e sujeito, é a filosofia do Espírito Absoluto. Com mais detalhe, a idéia, ao concentrar-se em sua realidade, assumindo consciência de si e manifestando-se como espírito, é estudada como filosofia do espírito, redividida em espírito subjetivo e individual (psicologia), espírito objetivo, ou seja da humanidade em sua vida coletiva e social (moral e direito), espírito absoluto, prescindindo do Estado e do indivíduo (arte, religião, filosofia). Como se observa, tudo o mais são detalhes de três momentos gerais da idéia. Nos detalhes da dialética, Hegel deu especial realce ao direito, à arte ou estética, à religião, abrindo um leque de variados interesses para os pesquisadores que o sucederam. A arte e a religião têm validade apenas como fase da dialética, e não como estágio definitivo do espírito, a filosofia. O Estado é concebido como absoluto.

377. A religião é deslocada para um plano secundário na dialética hegeliana, como uma fase para ser superada pela idéia do Espírito absoluto, sendo este pois este último a plenitude do todo. A secundarização da religião, por uma filosofia que se divulgou amplamente, despertou imediatamente uma preocupação enorme sobre a questão religiosa, no sentido de lhe dar uma nova solução. Desta questão se ocuparam os assim chamados hegelianos de direita e hegelianos de esquerda. A polêmica se maximizou a partir da década de 1830-1840, não vindo a ser superada nas décadas imediatas. Globalmente a preocupação religiosa como foi colocada pelos hegelianos representou um declínio das convicções religiosas, que desde tempo vinha ocorrendo, sobretudo das convicções religiosas sobrenaturalistas. Como se sabe, com deísmo (vd 359) já houvera perdido força o sobrenaturalismo, mas restava ainda a religião natural. Agora, nas concepções dialéticas, a religião natural também cedeu lugar, interpretada que estava sendo como alienação. Processada a síntese, Deus e o mundo são uma coisa só – o Espírito Absoluto (no caso do idealismo dialético) ou a matéria (no caso do monismo materialista).

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A direita hegeliana manteve o idealismo, além da dialética e do monismo. Foi eventualmente favorável à religião ao modo de Hegel e ao Governo Nacional, ou seja, como fase dialética anterior à síntese final do todo absoluto. A esquerda hegeliana conservou igualmente o monismo e a dialética. Mas substitui o idealismo pelo materialismo; e ainda rejeitou a religião, a título de ser uma alienação, bem como tendeu a combater o Estado nacional.

378. A Direita hegeliana,- ou ao hegelianismo simplesmente, - prosseguiu no caminho natural do mestre, porque. – como já se adiantou, - conservou o panteísmo na forma idealista. Deus é visto como oposto (ou distinto) do mundo. Mas esta é apenas uma projeção mental, que tudo vê primeiramente como objeto situado frente ao Eu. Uma nova consideração passará a entender, que o mundo e Deus são apenas oposições dialéticas do pensamento. Deus é distinto como antítese dialética e não totalmente distinto. Formulada a síntese, completa-se tudo o que se poderia pensar, como uma só coisa, o Espírito Absoluto (composição de mundo e Deus). O desenvolvimento de tais idéias pelos hegelianos fiéis ao idealismo, resultou na chamada "Direita Hegeliana". Nesta formulação, o cristianismo é reinterpretado culturalmente e não é o que seus seguidores pensavam. Deve ser conduzido mais avante e posto de acordo com a nova filosofia. Além disto deve o cristianismo ser reinterpretado pela ciência histórica, sendo que até historicamente não é exatamente o que pensava ser. Alistam-se nesta direção da direita hegeliana pensadores pensadores como Jorge Gabler (1786-1853), Heine Heinrich (1797-1859), A . Fr. Goeschel (+1861), Bruno Bauer na 1a fase (1809-1882), Karl Rosenkranz (1805-1879). Na Inglaterra alista-se o nome de Thomas Hill Green (1836-1882). Nos Estados Unidos, Josiah Royce (1855-1916). Na Itália, ainda que tardiamente, são hegelianos Benedetto Croce (1866-1952), Giovanni Gentile (1875-1944).

379. Frederico Schleirmacher (1768-1834), filósofo romântico e professor protestante de teologia, colaborador na Fichte na reforma da universidade de Berlim (1810), preludia o racionalismo religiosos da esquerda hegeliana. Publicou Lições sobre a religião (Reden ueber Religion, 1799) e a Fé cristã ( Der Chistliche Glaube, 1821). O cristianismo segundo Schleirmacher, não é a única religião verdadeira, ainda que a mais sublime. Concebe a convicção religiosa como um sentimento, e que temos de dependência diante do infinito. Este caráter, peculiar ao romantismo, reduz a plano secundário a revelação e de maneira geral a teologia dogmática. Por causa deste fideísmo, reduzindo a fé ao sentimento, Scheiermacher encontrou resistência em sua igreja. De outra parte, abriu novos caminhos para explicar a religião e até para lhe prejudicar o antigo aspecto de revelação sobrenatural.

380. Romantismo religioso de Schelling. Foi o romantismo um movimento estético ideológico de profundidade surgido no século 18, com penetração no século seguinte, em que o tom monístico e destaque à natureza como um todo deu oportunidade também a uma interpretação religiosa. Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) foi o mais notável dos filósofos do romantismo alemão. Nasceu em Leonberg, Wuertenberg, filho de um pastor. Aos 15 anos iniciou estudos no seminário protestante de Tuebingen, onde logo conheceu, como colegas ao poeta Hoelderlin e ao filósofo Hegel então ainda em formação. A leitura das obras de Fichte o despertaram para a filosofia. Em Leipzig estudou matemática e ciências. Em Iena filosofia com Fichte. Por iniciativa de Goethe, já aos 23 anos atingiu a condição de professor em Iena (1798-1803). Peregrinou também por outras e outras importantes universidades alemãs. Em Wuerzburgo (1803-1806) começaram as divergências com Fichte, de quem contudo manteve o idealismo dialético. Transferindo-se para Munich, ali foi secretário da Academia de Artes, e mais adiante da Academia de Ciências. Por esses anos lecionou em Erlangen (1820-1827), mas já a este tempo diminuem suas publicações e Hegel assume o comando da filosofia alemã. Criada a Universidade de Munich, assumiu uma cátedra de filosofia, agora também com uma nova diretriz doutrinária, mais cristã, em contraste com seu anterior panteísmo espinozista. Presidente da Academia de Ciências de Munich. Preceptor do Príncipe herdeiro. Preceptor do príncipe herdeiro. Em Munique também conheceu o filósofo e teólogo dialético Franz von Baader, o qual por sua vez o fez conhecer Jacob Boehme. A convite, segue em 1841 para a Universidade de Berlim, havendo lecionado ainda até 1846. Deu ali combate ao hegelianismo.

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Escreveu muito, com vários títulos de fundo religioso. Entre outros: Sobre mitos, sagas históricas e filosofemas do mundo antigo (Ueber Mythen, historische Sagen und Philosopheme der aeltesten Welt, 1793); Sobre Marcião o reformulador das epístolas de Paulo (De Marcione Paulinarum epistolarum emendatore, 1795), dissertação; Primeiro esboço de um sistema de filosofia da natureza (Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie, 1797); Idéias para uma filosofia da natureza (Ideen zu einer Philosophie der Natur, 1797); Sobre a alma do mundo, uma hipótese da alta física para esclarecimento do organismo em geral (Von der Weltseele, ein Hypothese der hoeren Physik zur Erklaerung des allgemeinen Organismus, 1798; Sistema do idealismo transcendental (System des transzendentalen Idealismus, 1800); Bruno ou sobre o princípio natural e divino das coisas (Bruno oder ueber das natuerliche und goetliche Prinzip der Dinge, 1802); Monumento do escrito de Jacob sobre assuntos divinos... (Denkmal der Schrift Jacobis von den goettlichen Dingen und der ihm in derselben gemachten Beschuldigung einer absichtlichen taeuchenden Luegen redenden Atheismus, 1812); Sobre a divindade de Samotrácia (Ueber die Goetheiten von Samotrake, 1815); Prefácio à tradução de Herbert Becker de um escrito de Victor Cousin (Vorrede zu Herbert Beckers Uebersetzung einer Schrift Victor Cousins, 1834), importante para compreender ao mesmo Schelling. Edição histórico-crítica (Historisch-kritische Ausgabe, 80 vols., a partir de 1975.

381. O monismo de Schelling. Como já se adiantou, Schelling foi uma das grandes figuras do idealismo dialético alemão, ao lado de Fichte e Hegel. Em vista de sua ênfase no objeto, ou seja na natureza (dali ter feito um idealismo objetivo, em contraste ao subjetivo de Fichte e absoluto de Hegel) , tornou-se Schelling o filósofo do romantismo. Concebeu a natureza monisticamente, como uma totalidade viva. Não há coisas mortas e que o espírito venha habitar, como quer o dualismo. A natureza se basta e se explica a si mesma. Ela é "o espírito adormecido". Por efeito da evolução, a natureza emerge, como consciência de si mesma, no homem. Já antes dos 20 anos manifestou Schelling seus pontos de vista doutrinários fundamentais. Entretanto, nos detalhes oscilaria várias vezes o seu pensamento, de sorte a se haverem podido mostrar ao menos quatro grandes fases no seu monismo e idealismo dialético e romântico. No começo está sob a inspiração de Fichte, fase de 1794-1801. Segue a filosofia da identidade, 1801-1808, propriamente schellinguiana. Continua, com uma filosofia acentuando o absoluto como sendo divino, com influências místicas provenientes de Franz von Baader e Jacob Boehme, 1809-1817. Por último acontece uma filosofia positiva (?) e de publicação sobretudo póstuma, 1827-1854, com tom anti-hegeliano.

X - AGNOSTICISMO RELIGIOSO EMPIRISTA E POSITIVISTA.7270y383.

384. O pressuposto gnosiológico do empirismo, chamado também positivismo, é o de que apenas a experiência sensível é segura, e que do seu ordenamento resulta todo o saber humano válido, sem que seja válido o que se prova apenas racionalisticamente pelos princípios fundados no ser. Neste caso a compreensão do ser simplesmente, - bem como de seus princípios, como o não contradição, - pela inteligência, não apresenta validade. Esta validade não ocorreria nem mesmo como propôs Aristóteles, ao falar da apreensão da noção do ser no sensível. Coloca-se com mais facilidade em dúvida as noções, que, segundo o platonismo e o agostinianismo medieval, opera independentemente da experiência sensível. Este racionalismo radical foi o de Platão, Plotino, Agostinho, Descartes. O outro racionalismo, dito moderado, é o de Aristóteles, Tomás de Aquino. Ao empirismo e ao positivismo se deve contestar, que provem o que afirmam (vd 391). Se o provarem, terão derrubado mais da metade de tudo os filósofos afirmaram através dos tempos, sobretudo até meados dos tempos modernos. A filosofia da religião é declaradamente impossível no empirismo e no positivismo, e fica excluída. Frente à religião ocorre o agnosticismo. No contexto empirista e positivista a religião resta simplesmente impraticável, porque suas questões metafísicas não alcançam possibilidade de prova efetiva.

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Como termo, agnosticismo é uma formulação erudita criada modernamente a partir do adjetivo grego ágnostos (= incognocível). A iniciativa foi do positivista inglês Tomas Huxley (1825-1895), que em 1869 praticava a inversão do termo gnosticismo (vd 162), já existente no início da cristandade. Devia a nova expressão significar a posição que estabelece nada ser possível decidir sobre questões metafísicas, sobretudo religiosas. O inventor visava liberar a si mesmo de ser denominado por qualquer qualificação doutrinária, como sucedia na sociedade a que pertencia. Muito depressa o termo veio a significar apenas o agnosticismo religioso.

385. Historicamente o empirismo e o positivismo são peculiarmente modernos, mas não exclusivos da modernidade. Já na antiguidade grega os sofistas, - representados por Protágoras (c. 480-411 a.C.), Górgias (480-375) e muitos outros, - se recusavam a admitir como seguro o saber que tentasse ultrapassar à sensação. Depois será também a posição do epicurismo, e ainda do prudente pirroniano, bem ainda de muitos neo-acadêmicos. Na Idade Média o nominalismo (vd 298) do sábio franciscano William Ockham (c. 1280-1349) rejeitou os universais, tornando-se um precursor do moderno empirismo. Contudo Ockham se evadiu dos limites do nominalismo através do fideísmo, apoiado na Revelação bíblica, na qual o religioso acreditava. Modernamente o agnosticismo está presente desde os primeiros dias da Renascença. Depois se formaram dois modelos de agnosticismo, - o agnosticismo empirista, positivista, pragmatista, - que tratamos aqui, - e o agnosticismo racionalista, representado por exemplo pela direita hegeliana (vd 377). Há o caso particular do agnosticismo denominado materialismo dialético (vd 390).

386. Os primeiros empiristas modernos, - de que o pai é Francisco Bacon (1561-1626), cujos seguidores foram Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1637-1704), - ainda não parecem tirar coerentemente todas as consequências do ponto de vista gnosiológico adotado. Desenvolveram uma filosofia que ainda ultrapassa a experiência; alguns até admitem a existência de Deus. Já não acontece o mesmo com o empirismo de David Hume (1711-1776), para quem sequer o princípio de causalidade apresentada validade, porquanto a experiência mostra apenas uma coisa vindo da outra, sem perceber um vínculo gerativo entre o fenômeno anterior e o posterior. O empirismo coerente admite apenas a experiência direta e as relações extrínsecas entre os dados da experiência. Em consequência afastou Hume toda a metafísica e a religião dela dependente.

387. Positivismo é apenas um novo nome para o empirismo, embora viesse a publico com inovações. Seu principal representante foi Augusto Comte (1798-1857). Semelhantemente acontece com o nome do relativismo, de William James (1842-1910).

388. A lei dos três estados: teológico, metafísico, positivo. Augusto Comte (1798-1857) procurou interpretar a maneira como surge o pensamento teológico e depois o metafísico, para finalmente derivar para o pensamento positivo. Teorizou sobre uma lei interna da evolução mental, e que expôs em seu curso de filosofia positiva (1826). A prova da lei dos três estados da mente (teológico, metafísico e científico) se processa a nível de ciência experimental e não a nível de ciência filosófica. A hipótese é erguida, para a seguir ser provada com dados tomados sobretudo à história das religiões, história do pensamento, sociologia do pensamento. Ainda que no curso da prova se conceituem elementos filosóficos, a lei dos três estados não torna Comte um filósofo, porque não trata ainda diretamente da filosofia. É difícil aceitar que o argumento de Comte seja especificamente distinto da prova diretamente calcada na observação empírica do dado presente. Comte insistiu na importância do argumento como uma prova de plenitude: "Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, é indispensável lançar de início uma vista geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, olhado em seu conjunto, pois nenhuma concepção pode ser bem conhecida senão pela sua história" (Curso de filosofia positiva, L. 1). A seguir descreveu Comte as linhas mestras da lei, que diz ser sua grande descoberta: "Estudando assim o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diferentes esferas de atividade, desde seu primeiro impulso o mais simples, até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, à qual se

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encontra sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece solidamente estabelecida, seja sobre as provas racionais fornecidas pelo conhecimento da nossa organização, seja sobre a verificação histórica resultante de um exame atento do passado. Esta lei consiste em que cada uma das nossas concepções principais, cada setor de nossos conhecimentos, passe sucessivamente por três estados teóricos diferentes: O estado teológico, ou imaginário; O estado metafísico ou abstrato; o estado científico, ou positivo... Dali três espécies de filosofias, ou sistemas gerais de concepção sobre o conjunto dos fenômenos e que se excluem mutuamente: o primeiro é o ponto de partida necessário da inteligência humana; o terceiro seu estado fixo e definitivo; o segundo é unicamente destinado a transição" (Curso de filosofia positiva, L. I).

389. A exposição de Comte progride didaticamente, mostrando como os três estados da mente evoluem:

- no teológico acontece o simples apelo à causas explicativas como que mágicas;

- no metafísico, o apelo à esclarecimentos meramente raciocinativos;

- finalmente no científico, o apelo a dados experimentalmente verificados, tudo como consequência de um espírito cada vez mais exigente.

"No estado teológico o espírito humano ao dirigir essencialmente suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos, representa os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. No estado metafísico, que no fundo não é senão uma simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos pelas forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidos como capazes de engendrar por si mesmos todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste agora em atribuir para cada um a entidade correspondente. Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e a destinação do universo, e a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para se aplicar unicamente a descobrir, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzidos agora a seus termos reais, não é mais, a partir de agora, que a ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, que o progresso das ciências tende a diminuir de número de pouco em pouco (Curso de filosofia positiva, L.1).

390. O paralelismo entre a evolução da humanidade e a do indivíduo, sempre conhecida, é todavia novo no que se refere ao detalhe em que o encaminha Comte. Depois será aplicado, por outros, também nas explicações do evolucionismo, para advertir que a sequência histórica milenar da evolução se repete na gestão de cada ser vivo. Advertiu Comte que a criança se contenta com explicações transcendentais, em que se introduz a divindade, o mito. O jovem exigindo mais, se satisfaz com causas imanentes, em que a realidade se explica pela substância e pelas essências. Finalmente o homem de idade madura se aquieta apenas com observações positivas, que lhe dêem as observações cientificamente conduzidas. "Cada um de nós contemplando sua própria história, acaso não se recorda que foi sucessivamente, quanto às suas noções mais importantes, teólogo em sua infância, metafísico em sua juventude, e físico em sua maturidade? Esta verificação é fácil para todos ao nível de seu século" (Curso de filosofia positiva, L.1). É, todavia, verdadeiramente estranho na lei comtiana dos três estados da inteligência, que o natural é começar mal. O primeiro impulso haveria de ser, pelo contrário, iniciar bem, para depois errar, na sequência.

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Não podemos estabelecer que o natural é errar, mas acidental. Se é que há conhecimento metafísico, talvez estes também se devam dividir entre os que de pronto iniciam bem, para na sequência acidentalmente errar, se houver inadvertência. A lei de Comte poderá valer para a situação posterior de desenvolvimento de conhecimento, mas não para o instante inicial do ato mesmo de conhecer. Há nesta sua apresentação da questão algo não bem definido. Admitir o erro inicial pode significar até a impossibilidade de todo o sistema gnosiológico, e que resultaria em uma aceitação do ceticismo. Assim também a filosofia da educação deveria fazer, seu reparo, quando diz, que importa acertar o primeiro ato, pois pela prática do ato se forma o hábito.

391. O que importa ao empirista primeiramente provar. A prova que efetivamente importa para o empirismo (ou positivismo) é a que diz respeito à exclusividade da observação direta. É lá que Comte deverá mostrar que o conhecimento empírico importa em uma exclusividade, com afastamento das demais formas racionais de pensar. Eis o confronto entre o empirismo e o racionalismo. Seria mesmo que o espírito humano não avança para além do que a marca da simples constatação empírica? A constatação empírica, sem dúvida, o homem a tem. Mas seria a única espécie de constatação? Não passaria a exclusividade da constatação empírica de ser postulado sem prova? A redução do conhecimento válido à elaboração de conhecimentos experimentais, - segundo a gnosiologia empirista e positivista, - apresenta, pelo menos aparentemente, algo de arbitrário e possivelmente até de impraticável. Não parece possível afirmar o empirismo e o positivismo, sem usar o que se nega. Diga-se que o empírico é mais contundente, mas não que é tão fácil declará-lo único. A apresentação de um fato em contrário poderá derrubar o empirismo. Ora, é talvez um fato que nossa inteligência constata seu eu pensante. Ou ao menos, de maneira menos determinada, constata estar pensando. Sabia Comte que deveria provar esta exclusividade. Tentou fazer sua prova depois de falar da lei dos três estados. Mas não diz mais, do que estabelecer a tese, para depois declarar, que ela é máxima incontestável. Teria ficado Comte na mera gratuidade desta afirmação? A rigor, quando se trata de provar algo pela simples observação, nada mais se pode fazer do que observar. Ou seja nada mais do que constatar, verificar, aceitar o fato. Apenas metodologicamente resta acrescentar tão só uma advertência mais consciente do que acontece, para evitar equívocos, enganos, inadvertências, mostrando, por ordem, tudo o que acontece. Eis em que consiste a fenomenologia, como método de descrição do fato, como se apresenta em "carne e osso", conforme a expressão futura de Husserl. A fenomenologia de Comte não ultrapassa de ser uma descrição elementar, sem metodologia suficientemente ampla, nem profunda. Ei-lo a falar. "Todos os bons espíritos repetem, depois de Bacon, que não há conhecimentos reais que senão aqueles que repousam sobre fatos observados. Esta máxima fundamental é evidentemente incontestável, se a gente a aplica como ela convém, ao estado maduro (viril) da nossa inteligência" (Curso de filosofia positiva, L.1). Basta um pouco de subtilidade de inteligência, para perceber que, - para afirmar a exclusividade do experimental, - já estamos afirmando algo que está mais além do experimental.

XI – AGNOSTICISMO DO MATERIALISMO DIALÉTICO.7270y393.

394 Esquerda hegeliana foi o nome de guerra assumido pelo materialismo dialético inspirado na dialética de Hegel. Foi a esquerda mais contundente, que a direita (vd 378), em virtude do seu materialismo anti-idealista, de sua ação contra a validade da religião em geral, e em consequência contra a validade do cristianismo, além de levar o debato ao campo dos problemas econômico-sociais. Em primeiro lugar, o materialismo dialético é um monismo, porque reduz o dualismo espírito-matéria a um só fator, ainda que com duas faces. O materialismo dialético, em vista do seu monismo, reduz o pensamento a uma função superior da matéria, em vez de função de uma alma especial. Neste sentido é um monismo, que não nega o espírito, mas o torna uma face da realidade, como a matéria é a outra face. O monismo do materialismo dialético não é, pois, um grosseiro materialismo mecanicista. O aspecto dialético do monismo materialista foi tomado da filosofia eminentemente dialética de Hegel. Deste não se manteve o idealismo, todavia a dialética dos contrários, como se observa, por exemplo, na oposição dos contrários nas forças econômicas e na luta de classes. Hegel teria estado de cabeça para baixo; os materialistas são Hegel virado ao certo.

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Na luta contra a religião, o materialismo dialético a interpretou como uma alienação (vd 397). A reinterpretação, efetivada pelo materialismo dialético, definindo a religião como alienação, é mais fundamental e agressiva, do que a simples negação do aspecto sobrenatural do cristianismo. Negar o sobrenatural já o faziam os deístas, mas sem negar a religião operada nos termos da filosofia. Todavia o combate do materialismo dialético à religião atingiu mormente a sobrenatural, porque é ali que se concentra o credo popular. Nesta luta em duas frentes, a esquerda hegeliana e o protestantismo liberal em geral moveram uma luta erudita contra o suposto mito mais persistente do Ocidente, - a divindade de Jesus. Na derivação para a interpretação da ação sócio-econômica, o monismo materialista dialético passou ao nome materialismo histórico (vd 398), onde aparecem os nomes de Karl Marx, Engels e mais tarde Lenine. No que se refere aos principais filósofos do materialismo dialético, destacaram-se alguns mais vastamente, e tendo destaque inicial Feuerbach (vd 395). Para a fase em que a esquerda hegeliana se ocupava com o problema religioso importam ainda os nomes alemães de David Strauss (vd 399) e Bruno Bauer (vd 400). Houve também os que atuaram nas proximidades, como o francês Ernest Renan (vd 401).

395. Ludwig Andréas Feuerbach (1804-1872) tanto foi importante para a fase religiosa, como para a social, em virtude da transição que ofereceu para Karl Marx. Nasceu Feuerbach em Landshut, Bavária, estudou sucessivamente em Heidelberg, Berlim e Erlangen, havendo escutado Hegel. Por indicação deste, trocou a teologia pela filosofia e se especializou em ciências naturais Em 1828 foi professor em Erlangen. Teve que abandonar sua cátedra em 1832, em virtude da nova direção ideológica dos seus escritos. Estabeleceu-se em Bruckberg, onde, em 1837, esposou uma mulher abastada e que lhe permitiu dedicar-se mais desembaraçadamente aos estudos e à produção literária. Incendiada a fábrica da família de sua esposa, em 1859, passou a uma vida precária nos subúrbios de Nueremberg. Obras de Feuerbach: Pensamentos sobre a morte e a imortalidade (Gedanken ueber Tod und Unsterblichkeit, 1830), sua primeira obra, editada ao tempo que lecionava em Erlangen, sendo um ataque à imortalidade pessoal; Abelardo e Heloísa (Abaelard und Heloise, 1834); Critica à filosofia de Hegel (Kritik der hegelschen Philosophie, 1839); Exposição e crítica da filosofia de Leibniz (Darstellung, Entwicklung der Leibnizschen Philosophie, 1837); Os princípios da filosofia de porvir (1843); Essência do cristianismo (Das Wesen des Christentums, 1841), sua obra mais notável, expõe sua teoria materialista e esclarece como surge a convicção da existência de Deus.

396. Metafísica materialista e a religião como alienação. A visão metafísica de Feuerbach é materialista, ainda que não seja simplesmente mecanicista. É também monista dialética, com conclusões especiais sobre a religião. No desenrolar sistemático do seu sistema, Feuerbach primeiramente afastou o idealismo hegeliano, substituindo a idéia pela realidade, que diz ser material. A inteligibilidade total do racionalismo idealista, ao pretender tudo reduzir à compreensão e em consequência à idéia, com a eliminação da autonomia do objeto, resiste falsamente ao lado empírico da natureza. Diz não convencer a alegação idealista de que a dificuldade resultava apenas de uma inadequacidade entre o conceito e a realidade singular. Feuerbach rompeu, pois, com o subjetivismo idealista, restituindo a realidade à natureza. Contra o idealismo observava ainda Feuerbach, na sua Crítica à filosofia hegeliana, de 1839, que a dialética se havia ocupado da sucessão no tempo e não da cooperação no espaço. Com esta omissão ficava lugar apenas para a história, ligada ao tempo. Não há no tempo uma explicação da natureza, pois nela não se verifica a posição do espaço com o qual a natureza não se conexiona. Assim não possui a filosofia hegeliana, os elementos próprios para esclarecer o sentido da natureza, cuja característica é a individualidade. O idealismo absoluto de Hegel, por não poder explicar satisfatoriamente este caráter da natureza individual, deve, por isso mesmo, ser abandonado. O monismo comanda a realidade total, ponderou Feuerbach. Neste particular ficou em concordância com Hegel, ainda no monismo materialista as coisas não se apresentem de modo igual que no monismo idealista. Também manteve Feuerbach a dialética dos contrários, como em Hegel, que já a tomara de Fichte. Uma lei dialética estrutura, portanto, a dinâmica da matéria, o que não fora anotado suficientemente pelos materialismos anteriores.

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Feuerbach, substituiu apenas a idéia de Hegel, pela matéria, conservando o mais essencialmente. Não ocorre na realidade senão a inversão da matéria em direção do espírito. A religião é nada mais que uma alienação. Deus é uma criação do homem, advertiu ainda Feuerbach, o contrário do que ensinara Hegel. Este fizera o Espírito Absoluto desdobrar-se de pouco em pouco até projetar-se num objeto diante de si, e criar o mundo material, ou a natureza. Para Feuerbach a matéria, ao se conscientizar, cria representações. Destas representações da matéria, uma é Deus. Portanto, Deus não passa de uma projeção exteriorizada, da noção que dela se tem na consciência. O absoluto, de que fala Hegel, existe somente como idéia, na interioridade pensante do homem. Esta consciência da representação do Infinito, apesar de efetivamente não passar de uma representação, exterioriza-se, passando o homem a acreditar equivocadamente na mesma como realidade objetiva. Desta sorte aliena-se. Portanto, a religião não se justifica, mas se explica como processo que tem origem psicológica na natureza humana. Efetivamente não passa Deus de um conceito abstrato da realidade monística a que pertence o homem e toda a natureza; em vez de manter-se nesta conceituação abstrata, a serviço desta mesma natureza monista total, equivoca-se o homem, em virtude de sua superficialidade, reduplica, exteriorizando, o conceito de si mesmo, em um novo ente, - uma divindade exterior, de fato apenas imaginativa -, da qual entra a ter receio e a qual passa a adorar.

397. O materialismo histórico de Feuerbach e Marx. Apesar da dialética, a dinâmica interna do materialismo monista de Feuerbach é reduzida. Foi onde Karl Marx (1818-1883) procurou acrescer algo ao sistema, insistindo na importância das forças econômicas. Feuerbach considerara o homem quase como se fosse apenas uma máquina, ou seja, algo que opera principalmente de modo mecânico, de acordo com uma sua expressão: "O homem é o que come" (Der Mensch ist was er isst). Fazendo do homem um produto do meio físico e da educação, esqueceu, - no entender de Marx, - de dar destaque às forças econômicas, que são alterações provocadas pelo mesmo homem.

398. David Strauss (1808-1874), teólogo protestante da escola de Tuebingen, foi mais teólogo e historiador das religiões, que filósofo. Nascido em Ludwigsburg, Wuertemberg, Baden, estudou na universidade de Tuebingen (1825-1831). Livre docente na mesma universidade de Tuebingen. Apenas publicada com ampla repercussão a sua Vida de Jesus (1835), - em que aplicou aos Evangelhos e à vida de Jesus as teorias de Hegel, - sofreu uma forte reação do protestantismo oficial, que resultou na sua destituição da cátedra. Sustentou a polêmica com novas publicações. Estava, pois, aberto o caminho para interpretações similares na área da esquerda hegeliana e do materialismo em geral, como também no campo próprio racionalismo idealista ou da filosofia e sociologia. Chamado em 1839 para a Universidade de Zurich (Suíça), também ali foi impedido por uma forte reação dos camponeses comandada por pastores protestantes, que então derrubou o governo liberal da cidade e expulsou o professor. No livro seguinte (1840-1841) Strauss rompeu claramente com a igreja, interpretando a Hegel materialisticamente, conforme à esquerda hegeliana, e assim também desenvolvendo sua filosofia da religião. Elegeu-se deputado em 1848. Entretanto suas idéias conservadoras em política também não o ajudaram, retirando-se à vida privada dedicada ao estudo. Obras: A vida de Jesus examinada criticamente (Das Leben Jesus kritisch bearbeitet, 1835-1836); A doutrina da fé cristã em sua evolução histórica (Die christliche Glaubenlehre in ihrer geschichtlichen Entwicklung, 1840-1841); O liberalismo político e teológico (Der politische und theologische liberaslismus, 1848); Ulrich von Hutten, 1858-1860, biografia do humanista e pregador protestante; Voltaire, 1870, estudo biográfico; A fé antiga e a nova (Die alte und die neue Glaube, 1872), contra toda e qualquer religião, livro que também foi criticado por Nietzsche.

399. A formação do mito de Jesus no entender de Strauss. Depois de haver reduzido a religião em geral a um

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simples produto da consciência, Strauss tinha que dar uma explicação da personagem de Jesus, diferente da que os sobrenaturalistas até então defendiam. Sua exegese racionalista reduz os fatos bíblicos e evangélicos mais extraordinários ao mito. A filosofia da religião de David Frederico Strauss considera que a idéia religiosa, de acordo com Hegel, surge como um desenvolvimento do espírito objetivo; portanto, como um estágio dialético que o desenvolvimento do mesmo espírito do homem consegue superar, em direção ao Espírito Absoluto (vd 377). Empenhou-se em demonstrar que isto acontecia com a crença na divindade de Jesus. Não se restringia apenas a mostrar com o estudo meramente crítico dos Evangelhos o seu aspecto mítico, mas orientava-se pela idéia geral da mencionada filosofia da religião. Os Evangelhos, como os documentos de qualquer outra religião, exemplificariam a formação da religião. Da vida de Jesus não sabemos nada, advertiu Strauss. Sobretudo, ele não esteve envolvido com fatos extraordinários, que pudessem ser explicados como milagres. Houve apenas a convicção messiânica em curso, a qual lhe foi atribuída. E por isso sobre ele se acumularam os elementos que constituíam este mito. Neste sentido procurou Strauss mostrar que os relatos dos Evangelhos são retirados sobretudo do Antigo Testamento, isto porque os evangelistas, ou a Igreja antiga, consideravam o Antigo Testamento como prefiguração e profetização do messias a vir. Os milagres surgiram como narrativas míticas para confirmar o papel messiânico que fora atribuído a Jesus. A interpretação de Strauss estimulou os estudos teológicos. Enquanto uns passaram a acentuar a interpretação mítica, outros seguiram o caminho intermediário, combinando a interpretação mítica com a interpretação de fatos extraordinários efetivos equivocadamente interpretados como milagres; enfim outros procuravam manter a convicção da historicidade de tudo o que os Evangelhos afirmam. O mesmo Strauss teve algumas oscilações em seu pensamento teológico. O materialismo e o liberalismo são outros e outros capítulos da filosofia de Strauss. Todavia o que tornou famoso, foi sua filosofia da religião, combinada com a aplicação corajosa à crença vigente. Defendeu Strauss ainda a revolução industrial, apoiado em idéias condutoras das aspirações contidas nos Evangelhos. Teve aqui a oposição de Marx e de Nietzsche.

400. Bruno Bauer (1809-1882) desde 1834, Privat Dozent de Teologia na Faculdade de Berlim, foi autor racionalista de Crítica da história do Evangelho de João e dos Sinóticos Fernando Cristiano Bauer (1792-1860), professor em Tuebingen, destacou-se com a publicação de Manual da história dos dogmas (1847). Determinou o Evangelho de Marcos como fonte dos de Mateus e Lucas. Seria apócrifo o assim chamado Evangelho de João.

401. Ernesto Renan (1823-1892), filólogo e historiador e filósofo francês, com sua Vida de Jesus (1863), foi o persistente divulgador da interpretação, que reduz ao mito a divindade de Jesus e de seus supostos milagres. Nascido em Tréguier, Bretagne, fora destinado inicialmente ao sacerdócio, havendo cursado filosofia num Seminário de Issy, 1841-1843, e teologia no Seminário Saint-Sulpice, de Paris, até 1845. Desistindo de consumar a carreira eclesiástica, passou à Universidade, especializando-se em língua hebraica e filologia. Doutorado de filosofia em 1852. Participou em 1860 de uma missão arqueológica à Fenícia e à Palestina. Assumiu em 1861 a cátedra de Línguas semitas, ou seja de hebraico, no Collège de France. Havendo-se referido a Jesus como apenas um homem incomparável, provocou uma grande reação, sendo mesmo afastado, em 1864, do magistério por interferência de Napoleão III, com vistas a evitar conflitos religiosos. No Governo Provisório foi restituído à cátedra. Em 1882 subiu ainda à posição de administrador do Collège de France. Já em 1878 houvera sido eleito para a Academia Francesa de Letras. Depois de falecido, foi levado em grande pompa ao Panteão dos notáveis da França. Obras de Renan: O futuro da ciência (L'avenir de la science, escrito em 1848, publicado em 1890); Averróis e o averroismo (Averroès et l'averroismo, 1852); História geral e sistema comparado das línguas semíticas (Histoire générale et systhème comparé des langues sémitiques, 1855), uma das obras principais; Estudos de história religiosa (Études d'histoire religieuse, 1857); Ensaios de moral e crítica (Essais de morale et de critique, 1859); Vida de Jesus (Vie de Jesus, 1863); Os apóstolos (Les apôtres, 1863); Questões contemporâneas (Questions contempains, 1868);

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São Paulo (Saint Paul, 1869); A reforma intelectual e moral (La reforme intellectuele et moral, 1871), escrito político no qual se inspirou o direitismo de Barr e Maurras; O Anticristo (L'Antéchrist, 1873); Diálogos filosóficos (Dialogues philosophiques, 1873); Os Evangelhos e a segunda geração cristã (Les Evangiles et la second génération chrétienne, 1877); Dramas filosóficos (Drames philosophiques, 1878-1886); Marco Aurélio e o fim do mundo antigo (Marc Aurèle et la fin du monde antique, 1881); Recordações da infância e da ;juventude (Souvenir de l'enface et de la jeunesse, 1883); Folhas soltas (Feuilles detachées, 1892), esta e a obra anterior são muito apreciadas no gênero de memórias; Os Evangelhos (Les Évangiles, 1887); História do povo de Israel (Histoire du peuple d'Israel, 5 vols., 1988-1994).

Filosoficamente moderado, esteve Renan próximo do positivismo, com muitas restrições à metafísica e sobretudo à revelação; um cauteloso ceticismo dominou seu pensamento, o que seus adversários consideraram um diletantismo fugidio. Apesar de tudo, o Deus e a religião de Renan é o resultado final de uma filosofia ainda algo racional, com uma transcendência maior que a religião da humanidade de Comte. Admitiu Renan um desenvolvimento contínuo do espírito humano. Aqui denota afinidades com o idealismo de Hegel e com o evolucionismo em geral. Neste particular Renan é dado como um dos precursores da corrente sociológica do positivismo francês, porque destaca o processo social no desenvolvimento e definição do homem, e de que Durkheim foi um dos principais representantes na França. Em política apelou à uma reforma, todavia moderada e algo conservadora. Notabilizou-se Renan pela sua competência exegética, sobretudo pela interpretação liberal dos textos bíblicos. Em decorrência Renan prestigiou na França uma difusão ampla da exegese protestante liberal alemã, em particular da do notável teólogo e historiador das religiões David Friedrich Strauss (vd 399).

XII - RELIGIÃO NO EXISTENCIALISMO. 7270y403.

- CAP. 3 - DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO -- ART. 7-o. RELIGIÃO NA FILOSOFIA MODERNA. -

404. O existencialismo é uma filosofia de tendência agnóstica, ainda que também ocorram os que tentam ultrapassar os limites do agnosticismo, chegando a Deus e à religião. O misticismo anterior era recurso alógico para atingir a Deus. Agora o mesmo alogicismo, anterior ao processo raciocinativo objetivisante, é utilizado para criar uma filosofia da existência humana. Neste sentido o existencialismo é também um novo humanismo, porque coloca o homem no centro. Não obsta que, apesar desta tendência, alguns existencialismos, como o de Gabriel Marcel (vd), tentem uma saída para Deus, incluindo-o nos resultados do seu processo misticista. Mas para a maioria dos representantes do existencialismo prevalece o agnosticismo a respeito de Deus. Vagamente permanece o monismo, em que o próprio homem projeta ser algo parecido como ser ele mesmo um Deus. Para o existencialismo a existência é anterior à essência não somente ontologicamente, mas também gnosiologicamente. Contudo, pode-se objetar ao existencialismo, que a inteligência na verdade apreende mais claramente a essência, com a qual se conecta a existência; vai pois da essência em direção à existência. Ao existencialismo importa começar a pensar, começando pela existência; tal acredita-se possível através da apreensão profunda do sujeito. Então, o que a inteligência apresenta, como estado dentro de certas coerências ou esquemas conceptuais, poderá apresentar-se de maneira neutra e mesmo absurda, em dialéticas insolúveis (para a inteligência conceptual). Já se pode antever que, dentro deste modo de pensar existencialista de anterioridade gnosiológica da existência, poderá não haver mais lugar para o conceito de Deus, segundo aquele modo elegante das provas clássicas, que o estabelecem como causa primeira e ser perfeitíssimo, eterno, imutável, etc... Deus deverá ser procurado por outro caminho, se é que este outro caminho existe; alguns existencialistas acreditam nesta outra maneira de chegar a Deus, - como já se adiantou; a validade do existencialismo encontrou contestações de filósofos sérios, os quais alegam a improcedência das críticas à inteligência objetivizante; esta teria caminhos efetivos para alcançar a existência. Também alegam os contestadores do existencialismo que a dita análise da subjetividade não é senão o trabalho mesmo da inteligência objetivizante.

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Efetivamente, na convicção existencialista muitas afirmações não passam talvez de uso abusivo das palavras, sobretudo das de ser e ente. Quando as frases assumem aspecto retórico, parecem as vezes nada mais do que coragem de afirmar o que ainda não está claro.

405. A fenomenologia, - como análise da consciência enquanto intencionalidade dirigidas a objetos,- é o método a que se limita a filosofia, enquanto não ultrapassa ao que se apresenta no instante da evidência imediata, antes de seguir para aos procedimentos raciocinativos. Ora, limitando-se o existencialismo a estes primeiros instantes da atividade cognoscitiva, é uma filosofia fenomenológica, cujos resultados não maiores que os desta primeira oportunidade. Todas as filosofias começam por uma fenomenologia, e em qualquer filosofia importa que este primeiro momento mental seja caprichosamente conduzido. Entretanto, dado o fato de se haverem estabelecido filosofias exclusivamente fenomenológicas, fez com que a moderna fenomenologia passasse a fazer que o pensamento filosófico, mais que antes, cuidasse de ser mais rigoroso e detalhado ao descrever os procedimentos gnosiológicos da mente. Assim foi que a fenomenologia se desenvolveu especialmente nas filosofias que exploram de preferência a subjetividade. A intencionalidade cognitiva é destes temas que mereceu especial atenção da fenomenologia. O intencionalismo e o psicologismo passaram a ser diferenciados como duas doutrinas opostas, ao se estabelecer a respostas à pergunta, - que é pensar. O intencionalismo, - que define o pensamento como um atender a objetos, - constitui doutrina característica da escolástica e veiculada sobretudo no final da Idade Média; intentio indica o conceito enquanto se refere a algo diferente de si, e que é o objeto. Voltou o intencionalismo a despertar a atenção dos modernos e caracteriza um tanto ao existencialismo. A noção de intencionalidade foi reintroduzida e enfatizada pelo austríaco Franz Brentano (1838-1917). Fora inicialmente padre católico e que se afastou em virtudes das dificuldades que os dogmas lhe apresentavam. Todavia seu conhecimento da filosofia escolástica o fizera estar atento a intencionalidade e à sua descrição fenomenológica. Edmundo Husserl (1859-1938), - filósofo de expressão alemã, nascido na Morávia, hoje da República Tcheca, mas ao tempo era parte do Império austríaco, - influenciou fortemente o rigor no pensamento filosófico. Separou os aspectos psicológicos e gnosiológicos da intencionalidade, desenvolvendo sobretudo este último. Desde então tiveram desenvolvimento as filosofias fenomenológicas, sobretudo as que se fundam na experiência da subjetividade. O mesmo Husserl, entretanto, não seguiu a linha do existencialismo, o qual entretanto aproveitou os desenvolvimentos que ele deu ao método fenomenológico. Husserl, ao distinguir entre essência e existência, destacou a essência, quase no sentido da idéia platônica. Neste sentido Husserl é um neocartesiano, porque manteve o valor absoluto dos universais. Todavia é apenas neo-, porque não reintroduziu a realidade como a estabelecera o realismo mediato de Descartes; este, após haver duvidado da existência do mundo atrás da representação cognoscitiva, tentou prová-la com novos recursos, que Husserl já não readmite.

406. O pré-existencialismos de Kierkegaard e de Nietzsche. O existencialismo não surgiu como uma descoberta súbita, e nem se sabe com clareza a que veio. Dão-se-lhe precursores ao longo do passado, alguns mais próximos no tempo.

a). Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855) foi um teólogo protestante dinamarquês, que operou um pensamento religioso, cujo pressuposto é o do existencialismo, como veio demais a ser amplamente desenvolvido por aqueles que o invocaram, ao mesmo tempo que a Nietzsche. Imperava ao tempo de Kierkegaard o superconceptualismo idealista do monismo idealista de Hegel, contra cuja inteligibilidade de tudo investiu diretamente, para defender em tudo o paradoxo. Substituiu Kierkegaard a inteligência especulativa pela intuição, ou seja, pela vivência, pelo contato mesmo, cujos resultados diferem das conceptualizações objetivizantes. Descrevendo a existência humana, constatou sua liberdade, seu paradoxo, seu caráter absurdo, o desespero e a angústia, seu sentido de risco e drama. Esta é a verdade e a vida autêntica, como o filósofo a constata em sua subjetividade. É falsidade a outra noção, a que foi criada pela inteligência conceptual, e é inautêntica a respectiva vida. Os estágios de vida que se oferecem ao homem são três: estágio estético (sensitivo), estágio ético, estágio religioso.

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No estágio estético o indivíduo parece desenvolver-se num clima de prazer e liberdade; entretanto nela está contido o remorso, o desespero. No estágio ético ocorre uma progressão. O sentimento do desespero ao alcançar profundidade, faz ao homem apreender a si mesmo, ultrapassando o eu finito, para alcançar seu valor eterno. A vida moral, que se estabelece, cria um liame entre os homens, - o dever. Acima do estagio ético sobrevém o religioso. A fé põe o indivíduo numa relação absoluta com Deus. Privado de todo o apoio racional, o homem vê-se diante de Deus com uma terrível responsabilidade. Decorre dali um sentimento de angústia.

b). Frederico Nietzsche (1844-1900) foi um filólogo e filósofo alemão, com alguns antecedentes eslavos, que se admira pela coragem com fez as suas afirmações. Operou com pressupostos alógicos, como depois fariam também os existencialistas. Foi similar à Kierkegaard, mas sem incluir em suas descrições existenciais a um Deus pessoal, ao qual negou. Insistindo na subjetividade, declarou enfaticamente: "Escrevi meus livros com meu próprio sangue". Contra o pensamento clássico, sobretudo de Hegel, insistiu que a unidade e a coerência sistemática simplesmente não acontecem na realidade; são uma ilusão da inteligência. A lógica é a lei da mente, não do que lhe fica pelo lado de fora. A verdade não é o que a mente julga adequado, mas é o impulso como se dá, sem lei. O pensamento e a vida não se condicionam entre si. A partir desta maneira de ver, outro fica sendo o quadro de valores, do que aquele que o modo antigo estabelecia. A realidade, - como a subjetividade a revela em primeira mão, - é múltipla e contraditória, com choques contínuos, numa dialética em que não há lugar para tudo e ocorrem superações. A realidade é um círculo sem começo e sem fim, em que o homem está condenado ao envolvimento, em que sua existência se repete, vivendo e revivendo como que um eterno absoluto. Ao homem só resta inventar seus valores, numa tensão contínua e risco permanente, num esforço de ser Deus, ele mesmo. Conhecido na Alemanha antes de Kierkegaard (1813-1855), apesar de cronologicamente posterior, Nietzsche influenciou por primeiro a formação do existencialismo. Algumas obras importantes de filósofos existencialistas não passam de comentários à Nietzsche.

407. Martin Heidegger (1889-1976), - o Papa do existencialismo, - foi o mais notável existencialista alemão, até seu tempo. Depois de conhecer a escolástica, tomou o caminho do pensamento subjetivo e alógico, não conceptual, posicionando-se numa posição de prudente agnosticismo sobre o ser atingido pela mente humana. Nascido em Messkirch, Baden, de uma tradicional família católica, foi encaminhado para realizar os estudos secundários num estabelecimento da Ordem dos Jesuítas. Ingressando em 1913 na Universidade de Friburgo de Baden, frequentou por algum tempo a teologia, como noviço a ser jesuíta, o que entretanto não consumou. Já antes de sua renúncia à vida religiosa conventual, conheceu a filosofia fenomenológica de Bolzano e de Husserl. Ainda em 1913 completou seus estudos com um doutorado de filosofia. Como Privat Dozent (livre docente) lecionou na Universidade de Friburgo em 1915 e 1916. Habilitado em 1916 por Heinrich Rickert (1863-1936), o qual influenciou seu pensamento. Mas a guerra interrompeu as atividades acadêmicas de 1917 a 1919. Prosseguiu lecionando em Friburgo até 1923. Passou à Universidade de Marburgo (Prússia) em 1923, onde permaneceu até 1928. Retornou, então, a Friburgo, como sucessor da cátedra de Husserl, que ali fora titular desde 1916. Fez deste seu posto em Baden o quartel general do existencialismo. Reitor 4 meses, na passagem do ano 1933-1934, renunciou por não concordar em demitir seus colegas professores judeus; entretanto sua indefinição frente ao nazismo deixou lugar a muitas interrogações futuras, em que entretanto é preciso distinguir entre nacionalismo e nazismo. Os países aliados que ocuparam militarmente a Alemanha vencida, da guerra iniciada em 1939, o interditaram, em 1945, de lecionar. Foi restituído à cátedra só em 1950, aposentando-se em 1952. Depois disto continuou a ocupar-se, por mais duas décadas, com seminários e cursos.

Obras principais de Heidegger: A doutrina das categorias e da significação em Duns Escoto (Die Kategorien und Bedeutungslehre des Duns Scotus, 1916), escrito de habilitação e que se refere a uma gramática especulativa (sobre os modos de significar), de autoria contestada pela crítica histórica, para atribuí-la efetivamente a Tomás de Erfurt.

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Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927), obra principal e alentada, que teve sucessivas reedições com retoques, e que fora anunciada como l-a. parte, de uma obra maior avançando até uma ontologia geral, mas que não teve esta referida outra parte; Que é metafísica (Was ist Metaphysik, 1929); Da essência do fundamento (Vom Wesen des Grundes, 1929), sobre o princípio da razão suficiente; Kant e o problema da metafísica (Kant und das Problem der Metaphysik, 1929; Da essência da verdade (Vom Wesen der Wahrheit, 1943; Caminhos do bosque (Holzwege, 1950; Introdução à metafísica (Einführung in die Metaphysik, 1953); Que significa pensar? (Was heist denken? 19..), cursos de 1951-1952; Fenomenologia e teologia (Phaenomenologie und Theologie, 1970

408. Realismo imediato. Situou-se Heidegger de pronto na fenomenologia realista de Franz Brentano (1838-1917), interpretando, como este, a intencionalidade do conhecimento como um situar-se imediato na realidade exterior, portanto na coisa em si. Não era pois um idealista. Nem um realista mediato, e sim um realista imediato. O estar no mundo define o ser humano. Isto não se prova por meio de argumento cursivo, mas é a primeira intuição e acontece desde sempre. Heidegger faz a hermenêutica deste acontecimento e toma cuidado com a linguagem ao descrevê-lo. Delimitando o uso dos termos, criou uma linguagem tecnicista para a sua filosofia existencial. Definiu a transcendência como uma transpassagem. Aquilo que realiza a transpassagem, transpassando, permanece. Trata-se de um acontecimento próprio deste ente, o do homem. Não é apenas um modo do seu comportamento. Pelo visto, a teoria do conhecimento de Heidegger começa por examinar fenomenologicamente o que nos acontece. Surge o conhecimento como um processo intencionalístico, que se move entre o sujeito e o objeto. Enquanto o sujeito transita intencionalisticamente para o objeto (o mundo), exerce uma função peculiar, a transcendência. Define-se o homem (isto é, a sua consciência), como um ser a transcender para uma direção exterior ao sujeito. Heidegger analisou esta transcendência, determinando uma série de observações, que caracterizam o existencialismo. Insistiu que a transcendência é essencial ao homem e não algo de eventual. Desta sorte, não há um homem (como consciência), que seja primeiramente uma substancialidade consciente, que, em um segundo tempo, adquire a qualidade de transcendente. O ser do homem está principalmente nesta transcendentalidade intencionalística em marcha para o objeto, de tal modo que seu modo de existir é uma inserção essencial vertida na direção do existente exterior a ele. Aumenta a importância do sujeito, como transcendência; diminui-se, sua colocação como ente em si. Principalmente aumenta o conteúdo do ente exterior. O ser humano é ex-cêntrico; o exterior é algo em si. "A transcendência, consoante a acepção terminológica que aqui esclarecemos e justificamos, designa alguma coisa que é própria do ser-aí humano, e não como um modo de comportamento possível entre outros, de vez em quando realizado, mas como constituição fundamental deste ente, anterior a todo comportamento" (Da essência do fundamento). Desde que existamos, nosso existir acontece como imediatamente situado na realidade. Ainda que se diga que a realidade é imediatamente alcançada, este é um modo de falar, porque na verdade a intencionalidade existe como um todo de ponto a ponta, ligando sujeito e objeto. Se, de uma parte, Heidegger admite o ponto de partida kantiano, que principia na consciência, não se limita à esta consciência do surgir meramente formal da notícia. A consciência é presença existencial. Portanto, Heidegger vê mais coisas na consciência do que o simples fenomenismo quer estabelecer. A intuição da existência principia dentro de si mesmo, dentro consciência, como estrutura da própria consciência. O Eu é um estar-aí, presente ao mundo. Começa, pois, a filosofia da existência, de Heidegger, na própria existência singular, como um acontecimento inicial, fenomenologicamente verificado.

409. Limites da ontologia. Manteve-se Heidegger vagamente agnóstico em relação a Deus, retido em uma fenomenologia exigente sobre o ser e a existência. Concordando embora com a gnosiologia de Kierkegaard, despojou-se de sua angustiante teologia, permanecendo com Nietzsche. Desenvolveu uma filosofia da existência, notável pela meticulosidade e pela preocupação em dar a estes detalhes a correspondente linguagem. Construiu Heidegger uma filosofia do finito, portanto uma ontologia do ser particular, ou seja da existência humana e terrestre, não vendo como caminhar mais longe. Seu existencialismo é o do ser-no-mundo, como pura

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possibilidade, sem exigências ontológicas absolutas. Em última instância, é uma interpretação imanentista da realidade, não sem alguma parecença com o idealismo. Tentou Heidegger uma ontologia fundamental, neste sentido perguntando pelos existenciais e pelo ser do ente. Depois de descrever o fato fundamental da realidade alcançada, a fenomenologia existencial de Heidegger seguiu determinando outros e outros existenciais, entre eles o da vontade e o da liberdade. A ontologia de Heidegger, apesar de mais sistemática que a de Karl Jaspers, não vai, todavia, muito longe, e ficou sendo a ontologia de um ser particular, e portanto sem os universalismos da metafísica tradicional. Ainda que ocorram tais limitações, a fenomenologia existencial penetra o mundo do ser, não se limitando aos resultados menores do empirismo. Por esta razão diferenciam-se entre si os resultados das duas filosofias, alinhando-se pois Heidegger ainda no campo da filosofia racionalista. Tratou de compreender o ser, e não apenas a estudá-lo empiricamente. A ontologia fundamental de Heidegger ocupa-se com a existência singular, mais precisamente, a partir do indivíduo pensante. Em se tratando do ser singular, a ontologia de Heidegger se aproxima em alguns aspectos da de Duns Scotus, a respeito do qual desenvolveu mesmo um estudo. Ainda que prometesse para depois uma ontologia geral, dela chegará a oferecer apenas elementos. Numa e noutra evitou seguir até conceitos generalizantes, peculiares à ontologia clássica. Desde a sua ontologia fundamental, a linguagem de Heidegger é difícil, porque caracterizada com tecnicismos, a primeira vista parecendo arbitrários. Ao homem chama existência, no sentido etimológico de ex-sistência; ao mundo exterior denominou existente, com significado tomado ao particípio. A coisa em bruto chamou ente; àquilo que se faz conhecer no ente, deu o nome ser, com uma acepção difícil de aclarar. Ao homem denominou ser-aí (Dasein); a expressão alemã também foi traduzida por estar-aí, no sentido que o verbo estar se refere à eventualidade da existência e do acontecer, diferente do verbo ser, que sugere também a essência no sentido de ser isto, ou aquilo. Em qualquer caso, o sentido fundamental de Dasein é o de estar presente, isto é, existindo ali. Ao homem, visto como ser concreto, se diz existente; mas quando entendido como ser pensante, é existência (no sentido de ex-sistência). Esta linguagem está motivada nas diretrizes que assumiu a filosofia de Heidegger. Em virtude das características do idioma alemão, notoriamente flexível, ela se apresenta mais fluente no texto original, do que nas traduções em outros idiomas.

410. Ex-sistência, in-sistência, existenciais. Heidegger esvaziou notoriamente o conteúdo do sujeito humano. Este esvaziamento é no sentido de lhe enfatizar o lado intencionalístico, como ser que praticamente nada é em si, mas apenas um situar fora da si, como ex-sistência. O espírito foi interpretado por Heidegger num sentido não psicologístico, ou seja, não substancialístico; mas numa acepção de espírito meramente gnosiológico. A insistência neste aspecto intencionalistico de ser-ali, que está inserto no mundo exterior à subjetividade, imprime um outro rumo à caracterização do ser humano, sobretudo por causa da inclusão na intencionalidade, do elemento existencial. O homem, enquanto movimento intencional para fora de si mesmo, é uma ex-sistência (como diz Heidegger em Doutrina platônica da verdade, ano 1942). Ele mesmo pouco é, porque se se situa no outro, isto é, no mundo do objeto, no ser do objeto que o ilumina. Saindo de si, soma-se ao mundo, situando-se lá. Não se situa em si mesmo (como se fosse in-sistência), mas se coloca fora de si (como ex-sistência). Este estar absorvido pelo mundo do objeto, é a essência do homem. Há uma diferença no existir do homem e no existir do ente em seu torno. O homem é uma ex-sistência. No ente em torno a existência é uma in-sistência. Desta sorte o homem é apenas existência (no sentido de ex-sistência), ao passo que o mundo é o ente simplesmente. Colocado isto em linguagem heideggeriana, ao homem se diz existência (Dasein), à coisa se chama existente (Seiende). Uma vez que o homem foi esvaziado, porque situado intencionalisticamente para o ente, a posição do mesmo homem ficou sendo apenas, - na linguagem de Heidegger, - guarda e pastor do ente. Parece que Heidegger não está suficientemente advertido, que o pensamento se realiza em duas intencionalidades, - em atenção direta (recta intentio) e em atenção reflexa (reflexa intentio). Pela intencionalidade reflexa, o homem conhece ao seu mesmo conhecimento, e com isso a si mesmo, não sendo, pois, apenas uma ex-sistência direcionada para fora de si. A caracterização da existência humana se faz buscando descobrir nela os seus existenciais. Depois de situado no mundo, como uma ex-sistência, a partir dali continua a fenomenologia de Heidegger completando a descrição, anotando o que apresenta de mais peculiar neste seu situar-se lá.

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O que, então, Heidegger supõe descobrir sobre o homem, não se reduz às categorias de Aristóteles (em número de dez) e nem às de Duns Escoto. Efetivamente, as categorias dizem respeito à essência das coisas, e não à sua existência. Aqui importa lembrar que também na ontologia de Aristóteles nem todas as noções se reduzem às categorias; estas se predicam univocamente, enquanto o ser e seus modos gerais (verdade, bondade, etc.) se predicam analogicamente. Neste campo muito sutil importa ainda lembrar que Duns Scotus tinha ainda suas particularidades, que Heidegger certamente também conhecia. Algumas dos modos gerais do ente se dizem em função à essência, como a noções de verum, unum, res, e outras em função à existência, como aliquid e bonum. Neste campo da existência se encontram os valores, e é onde se pode perguntar aqui se pode falar em existenciais, e indagar até que ponto Heidegger assim poderia ter entendido a questão.

411. Descreveu Heidegger os existenciais muito complexamente, uns após outros. Cada existencial descoberto e descrito apresenta uma estrutura, desdobrável em diferentes facetas, que a fenomenologia vai descrevendo diretamente. Os expositores destacam, ora estes existenciais, ora aqueles outros, e assim também ora esta, ora aquela faceta, como mais apreciáveis no balanço da descrição fenomenológica existencial. Também depende destas descrições o chegar, ou não chegar a Deus. Importa considerar que alguns existenciais têm um valor considerável, independentemente do enquadramento geral que receberam na filosofia existencial de Heidegger. Algumas variações do existencialismo posterior derivam da diferente apreciação valorativa dada aos existenciais. O ser-aí do homem está submetido a uma quotidianidade (alltaeglichkeit). Esta maneira de ser é um existencial, a que está intimamente ligado. Portanto é um sujeito. O homem é um eu. E é um eu-com. E assim não pode haver sujeito sem mundo. Prosseguindo, constata-se que o ser-com se exerce de dois modos: a preocupação, ou cuidado (Sorge) e a solicitude (Fuersorge). Outra série de considerações se prende ao existencial pelo qual o ser-aí se diz estar situado aqui, ou ali. À situação se prendem o sentimento de situação originária (Befindlichkeit). É algo como um sentimento de sentir o situamento ali. Ocorre aqui o sentimento de facticidade, que o ser exerce pelo fato mesmo de ser. A este sentimento de facticidade se associa o de abandono (Geworfenheit), que indica a condição, que o ser tem, de haver sido como que abandonado e atirado a si mesmo no mundo. Estas situações se impõem ao ser, como um encargo pelo qual a ele se impõe o existir, sem que houvesse escolha. Todo este complexo de modos do existir se situa como situação originária, a que o ser não pode fugir, sendo-lhe inerente como um existencial. Ao sentimento originário, enfim, se prendem dois modos de ser, que foram explorados pelas descrições dos existencialistas, desde Heidegger, mas que já os tomou de seus predecessores, - a angústia e o medo. O ser humano é uma constante possibilidade. É um ser mais, do que de fato é; é um tornar-se, que nunca pode ser definitivamente. Este existencial foi denominado por Heidegger como a interpretação (Verstehen). O nome germânico desta existencial é também traduzido por compreensão, explicação. Mas não tem aqui a acepção corrente de esclarecimento teórico. O sentido é o de que o ser humano interpreta suas possibilidades. A interpretação das possibilidades do ser humano assume as feições de projeto (Ent-wurf). Este é o encaminhamento imediato das possibilidades, que estão em busca do seu constante poder ser mais. O horizonte heideggeriano do homem é limitado, sem uma ontologia de crescente expansão. Atenda-se aqui, que, - por causa da índole do existencialismo, - não segue mais além do que se oferece a observação fenomenológica, cujos existenciais são limitadores. O mundo que o filósofo racionalista conseguia abrir, não é mais reconhecido. Afastados os conceitos generalizantes, cai todo o universo dos sistemas metafísicos e teológicos, quer da religião natural, quer da religião sobrenatural. A possibilidade mais pessoal do ser humano é a morte. Não fugiu Heidegger ao assunto da morte. Enquadrou a morte na própria caracterização do homem. Seu ser-aí é um ser para a morte. Descreveu insistentemente o sentir da morte. A angústia que esta situação provoca, leva o homem a fugir da realidade, conduzindo-o a expressar o problema, não na forma do pronome pessoal, e sim no da forma impessoal, como em -se (man), como em morre-se. O tempo e a história receberam de Heidegger uma interpretação, que diverge da de Aristóteles e Hegel. Interpretou o tempo como estrutura relacionada com o ser-aí do homem. As possibilidades, como estrutura existencial do homem, convergem para o futuro. Dali resulta que o existir humano flua em modos de temporalização. O tempo está portanto essencialmente ligado ao ser humano, como um ser para adiante. E dali

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resulta o contexto, pelo qual ocorrem o presente, o futuro e o passado, como ek-stases (Ekstasen) da temporalidade do ser. O ser do ente é o objetivo fundamental da ontologia, para a qual adverte Heidegger, sobretudo a partir de seu O que é pensar? (1954). Distendeu-se numa preliminar que diz haver sido esquecida esta pergunta, havendo ficado o ente a ser considerado simplesmente como coisa entre outras coisas. Ainda que se possa acusar muitos filósofos do alheiamento diante da pergunta principal, ela tem sido certamente considerada pela filosofia de Parmênides, Aristóteles e da Escolástica. Existência e essência é uma terminologia peculiar à ontologia e que esteve sempre no tope da ontologia tradicional. Os antecedentes escolásticos do mesmo Heidegger o fizeram, aliás, estar advertido de que o que fundamentalmente importa na filosofia é o ser do ente. O que efetivamente elevou Heidegger à categoria de grande filósofo entre os modernos foi exatamente a advertência sobre o ser do ente como principal pergunta. O ser e o nada, eis uma questão de interesse heideggeriano. Levando em conta a distinção entre nada absoluto e nada relativo, diz que o nada não é um nada total (nada absoluto), mas um nada que supõe que algo se faz do nada, quando o ente surge. Pouco se estendeu Heidegger para assuntos sociais e políticos, de sorte a dar uma aparente caracterização menos humanística ao seu todo doutrinário. Diante do exposto, o pensamento de Heidegger não passou a detalhes sobre Deus e a religião, porque com anterioridade esvaziou a realidade do ser em geral e a realidade do ser humano. Mas não excluiu nada expressamente, e ficou num prudente agnosticismo.

412. Jean Paul Sartre (1905-1980), até seu tempo, foi o filósofo existencialista mais representativo da França, além de haver sido escritor brilhante e ativista, quando não também anarquista. Nasceu em Paris, onde teve uma infância mais ou menos tumultuada: pai católico, que logo morreu, mãe protestante, que retornou à casa de seus pais, e voltou a casar aos 11 anos do menino. Primeiramente aos cuidados do avô, depois aos do padrasto, sentiu-se ao que parece um bastardo. Efetivamente, de futuro criou Jean Paul Sartre o "falso bastardo", como figura de uma de suas ficções. Entrou para a Escola Normal Superior em 1924, cursando filosofia, com agregação em 1929. Professor de filosofia no Liceu de Le Havre, de 1931 a 1933. Uma bolsa do Instituto Francês lhe deu a oportunidade de passar 1933-1934 em Berlim, onde estudou a fenomenologia (de Brentano e Husserl) e a filosofia existencialista de Heidegger, à qual aderiu definitivamente. Voltou a lecionar em liceu, de 1934 a 1939, sucessivamente em Le Havre (1934-1936), Laon (1936-1937), Neuilly-sur-Seine, Liceu Pasteur (1937-1939). Sobreveio mais um tumulto à vida de Sartre com a Grande Guerra (1939-1945), que logo de começo esmagara e humilhara a França. Arregimentado para a luta, Sartre foi preso pelos alemães em 1940, e libertado em 1-o de abril de 1941. Retornou ao magistério no Liceu de Neuilly, de onde logo passou ao liceu Condorcet. Participou da resistência clandestina à ocupação alemã. Publicando com suficiente aceitação desde 1937, ganhou sucesso, mesmo durante a guerra, no livro e no teatro. Com o Ser e o nada, em 1943, passou para a lista dos grandes filósofos do tempo. Estes resultados lhe facultaram desistir em 1945 do magistério, com licença ilimitada. Já era então um escritor de grande tiragem. Os gêneros literários, - o teatro e a ficção, - e as atitudes de que se valeu participando de agitações de massas, - tudo isto favoreceu a Sartre. A força propagandística das livrarias dele se aproveitaram e o tornaram tanto mais notório. Como escritor existencialista, foi Sartre muito mais lido do que Heidegger, e tornou o existencialismo bastante popular. Além disto, Heidegger não se ocupou com o social, tema que Sartre amplamente explorou. Ainda fundou a revista literária com engajamento político Les tempes modernes (= Os tempos modernos). Como jornalista, viajou pelos Estados Unidos da América, Rússia, Japão e outros países. Estimulou a vida existencialista do bairro de St. Germain-des-Prés. Teve a intimidade amorosa da escritora Simone de Beauvoir (1908-1986), a qual, sem tornar-se esposa, com ele por vezes viajava, como foi o caso quando esteve no Brasil. Renunciou espetacularmente ao prêmio Nobel de literatura em 1964. Sua participação em movimentos de esquerda lhe criaram problemas com a polícia. Condenou o colonialismo francês na Argélia, cujo processo de independência se consumou com o referendo popular de 1962. Por último Sartre foi pronunciadamente esquerdista, como também Simone de Beauvoir. Modificou várias vezes suas atitudes políticas em relação aos comunistas. Depois da libertação da França, 1945, colaborara com eles. Não demorou a molestá-los polemicamente. Praticando por algum tempo a literatura politicamente engajada, admitiu o

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combate à injustiça, onde quer que se manifestasse. No final voltou à cooperação clara com os comunistas, embora não ingressando no respectivo Partido. Já em 1952 havia rompido com Albert Camus, por causa da tendência anticomunista de um livro deste. Constatando também que as palavras por si só não bastam, pregou a ação violenta. Foi entretanto pouco ouvido nos distúrbios de maio de 1968. Finalmente, diabético e cego terminou seus dias não sem algum sofrimento, em 1980, sobrevivendo-lhe Simone de Beauvoir..

414. Sartre descreveu fenomenologicamente a situação imediata da existência humana. Primeiramente fechou-se no plano da fenomenologia e a seguir passou a detalhes

a) Rejeitando a validade dos resultados da inteligência especulativa raciocinativa, fechou-se primeiramente Sartre, como os demais existencialistas, no plano meramente fenomenológico da aparição do ser. Assim, o ser dum existente é o que imediatamente aparece, este ser aparece como subjetividade e liberdade, criador do ser projeto de vida e dos seus valores. Retido na fenomenologia do que imediatamente aparece, não encontra Sartre no ser aquelas muitas noções e princípios, que, diferentemente, a ontologia racionalista supõe obter. "O pensamento moderno progrediu consideravelmente ao reduzir o existente à série das aparições que o manifestam. Pretendeu-se, assim suprimir certo número das aparições de dualismos que enredavam a filosofia e que foram substituídos pelo monismo do fenômeno" (O ser e o nada, p.11). O idealismo é superado por Sartre, porque não há, - no seu entender, - distinção entre o fenômeno e a coisa em si. E assim também não há a distinguir entre existência e essência, entre ato e potência, finalmente nem entre criatura e criador. Em virtude de suas qualidades literárias e capacidade combativa, Sartre foi de uma grande influência sobre a geração do seu mesmo tempo. Multiplicou suas poucas idéias em um sem número de afirmações enfáticas e atitudes desconcertantes. Nem sempre original pelas idéias, foi certamente muito original pela expressão literária das mesmas e pelo comportamento autêntico de suas atitudes de vida. Praticou Jean Paul Sartre o existencialismo ateu, sob a influência diversificada de Husserl, Heidegger, Kierkegaard, Nietzsche, bem como de Hegel e, mais tarde, ainda de Marx na interpretação de G. Lukács. Partiu sistematicamente de uma gnosiologia fenomenológica, para tentar no mesmo nível gnosiológico da fenomenologia uma ontologia. Com frequência fez afirmações radicais, com palavras de ordem do tipo como se usam nas manifestações repetitivas das massas. É exatamente onde se encontram as originalidades de Sartre, sem que necessariamente expressem coisas provadas. No mais talvez não seja tão original, ou porque suas afirmações existenciais se encontram já em Heidegger, ou porque suas conclusões ateístas, materialistas, nihilistas, já são da tradição do pensamento europeu. "A atitude de Sartre se radica no passado, não tem nenhuma criação original filosófica e só vive do seu radicalismo" (J. Hirschberger).

b). Fez Sartre ontologia, analisando objetivamente o ser em si mesmo, ainda que sem querer sair do plano meramente fenomenológico do aparecer. Analisando ao ser, nele encontrou sua filosofia existencialista. Esta sua insistência na análise do ser em si mesmo representa um afastamento da tendência para as experiências pessoais ou subjetivas como fizera Kierkegaard. Depois de estabelecidos seus pontos de vista na análise do ser, passou a uma aplicação aos setores especiais do homem, ou seja, da antropologia. O homem o apresenta em forma de teatro ou de literatura. Há, pois, um Sartre que se ocupa sistematicamente na ontologia do ser e um outro que escreve antropologia com uma filosofia subjacente, vindo de uma exposição anterior, dedicada à análise do ser. A ontologia do ser do existencialismo de Sartre lança o problema diretamente, como o fizeram Parmênides e Aristóteles. Mas, ora vai pela solução dada por um, ora pela do outro. Negou os costumeiros dualismos admitidos em filosofia, como potência e ato, essência e existência. Repudiando a teoria aristotélica do ato e potência (para negar a potência), ficou Sartre com Parmênides . O ser já é o que ele é; nada pode sobrevir ao ser; além do ser, só há o nada, que (para Parmênides) nada é (vd 226). Nesta conceituação o ser é visto como um "ser em si". Como em-si o ser se isola simplesmente, como dado sem relacionamento, nem de possibilidade, nem de necessidade. A partir dali se desenvolve toda a ontologia de Sartre.

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Conexa com a doutrina de que o ser é o que é, está a da contingência do ser. Enquanto é, o ser não tem o ser e não recebeu o ser. Simplesmente existe, sem que haja alguma razão pela qual exista. Está como que de sobra, como um acontecimento. Neste sentido, o ser se diz radicalmente contingente. Enquanto não requer explicação, ele é inexplicável e absurdo. Mas, não no sentido de que seja impossível, e sim no de gratuito. O ente não se explica por algo maior, como se sua existência individual devesse enquadrar-se nos moldes de uma determinada natureza, ou essência. Não há estes universais metafísicos, de que tratam as filosofias racionalistas tradicionais. Os objetos simplesmente estão ali, como existências singulares, sem esquemas essenciais a programá-los. Assim sendo, vale o aforisma do mesmo Sartre: a existência precede a essência do ente. É neste sentido de arquétipos, que se entende essência, no aforismo indicado. Cada ser individual tem seu modo subjetivo de exercer uma essência (isto é, essência no sentido de modo de existir); esta essência poderá ser real. O que não há, de nenhum modo, na ordem objetiva é a essência na acepção de natureza geral (universal metafísico); sempre que isto se apresente, não passa de elaboração mental, acrescida às existências individuais como seu esquema. "O que se pretende com a afirmação de que a existência precede a essência? Pretende-se dizer que, primeiro de tudo, o homem existe, cresce, aparece em cena e só depois é que se define a si próprio. Se o homem, tal como o existencialista o vê, é indefinível, é porque de início ele é nada. Só depois será alguma coisa e ele próprio terá feito de si o que vier a ser... Não só o homem é o que ele próprio concebeu ser, mas também o que quer ser após este impulso para a existência. O homem nada mais é senão aquilo que se fez" (Sartre, Existencialismo, N. Y., 1947, p. 18). Não há sentido, ou finalismo, no universal. Se as coisas apenas são, nada tendo de potencial e de submisso à essências absolutas, não resta lugar para se cogitar em finalismos a cumprir. Não há sentido na existência. Os desígnios e planos, que parece haver na natureza, resultam de maneiras de pensar. São como que essências que apomos nos seres individuais e contingentes. Nós simplesmente escolhemos e criamos fins. Em outras palavras, somos livres, para eleger a essência que desejarmos. A liberdade radical, em que o homem se encontra envolvido, é peculiar à contingência geral do ente. Encontra-se simplesmente no mundo, cabendo-lhe escolher. Em vista da liberdade radical, encontra-se desligado de tudo, como um ser estranho, até mesmo ao seu próprio ambiente. Não havendo essências gerais, nem planos, nem sentido no ser, nada o liga no mundo, sobretudo nada liga ao homem a ele. O homem não foi, por conseguinte, criado para algo. Existe simplesmente, com a mais radical liberdade ontológica possível. Entregue a si mesmo, sob sua responsabilidade, o homem sente o medo de sua situação. É um estranho, temeroso. Não tem significado o seu viver, como também não tem sentido o seu morrer. Vive por acidente. Morre por acidente.

c). Deus é absurdo e a criação é contraditória. Isto decorre diretamente da mesma conceituação anterior feita sobre o ser. Enquanto o ser é simplesmente em si, é também radicalmente contingente. Não reclama para seu existir algo com a característica de ente necessário, como Deus. Não há relação de um ente para outro ente, a título de exigências. E assim não há relação entre o mundo e Deus; nem pode haver criação. Pode-se alegar contra Sartre que a manifestação do ser é o ser, mas não necessariamente de imediato todo o ser. Ao menos deverá deixar o conhecimento do que falta, como algo sobre que não há como se definir-se, ainda que nem a favor, nem contra. Então ficaria pelo menos num agnosticismo negativo referente a Deus e não num agnosticismo positivo, como ele pretendeu. Todavia, se o ser é contingente, fica sem sentido, buscar uma prova a respeito de Deus, porque a partir deste ser contingente nada há para seguir em frente. Se, entretanto, no ser se pudesse descobrir algum princípio não contingente, a partir deste princípio necessário poder-se-ía armar um silogismo que conduzisse a Deus. Lançado ao seu nada, somente resta ao homem criar um projeto para si mesmo, e neste projeto tender a ser Deus. "O homem é o ser que projeta ser Deus... Ser homem é tender a ser Deus ou, se, se prefere, o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus". Tudo é livre, contingente, precário: "O homem é uma paixão inútil".

d). O conhecimento é uma intencionalidade. Neste detalhe advertiu Sartre contra a interpretação do conhecimento como imagem sem objeto. E quer mesmo nesta intencionalidade determinar a natureza do homem. Distingue entre ser em si (o que é) e ser para si (o que não é e que é o caráter constitutivo da pessoa humana).

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Interpretando Sartre a intencionalidade cognoscitiva como uma espécie de nada, desenvolveu uma estranha doutrina, em que o ser cognoscente assim se torna por efeito de um processo nadificador. Frente ao ser-em si, o homem é visto como um "ser-para-si", dotado de conhecimento e liberdade. Como explicar esta modalidade de ser, dentro de um mundo logicamente desconexo e deterministico? O ser-para-si se apresenta como incompleto, contendo o nada. Diferentemente, o ser-em-si é completo. Há, pois, no homem, além de seu corpo e de seu ego, algo especificamente distinto do ser-em-si, em que consiste o especificamente humano; este especificamente humano é o nada. Não se trata de um nada colocado ao lado do em si; pois o nada, nada é. O nada, que é específico ao homem, opera no ser em si, nadificando-o. O homem é esta nadificação permanente, que age como um para-si, no âmago do em-si, como uma realidade negativa. As manifestações do para-si humano são chamadas por Sartre de ec-tase. São três:

- tendência ao nada, - a outrem, - ao ser.

Na tendência ao nada ocorre a consciência. Todo o conhecimento, por exemplo ao se contarem cigarros, é acompanhada da consciência, de que existo. Esta consciência não é em si; procede do objeto que se conhece, o qual existe antes. Se a consciência fosse um ente em si, ela teria as características do ser em si, compacto e cheio. Há, pois, uma tendência ao nada, peculiar ao ser humano. A mesma tendência ao nada se manifesta na liberdade. Aspira algo que, enquanto tal, ainda não é. Uma análise, conduzida até ao fim, revela que a essência do homem (como ser-para-si), entendida como nada, também se diz consciência e liberdade; estas manifestações são nada e não são ser-em-si. Com mais detalhe, a consciência é existência, enquanto na consciência se manifesta a existência como constituição da consciência. No ser em si (exterior) a existência precede à essência. No ser-para-si (ou ser humano), a existência é a própria essência do homem. Fica assim bem determinada a natureza da expressão existencialismo; esta insistência é mais notória em Sartre que em outros filósofos

e). Uma ética foi também ensaiada por Sartre, a partir da liberdade do homem, tarefa que deixou contudo incompleta. Os Cadernos para uma moral (Cahiers pour une morale) foram escritos em 1947 e 1948, mas impressos postumamente em 1983. Não existe moral preestabelecida a partir de uma ontologia, que previamente descubra o bem e determine a obrigação. Os valores surgem a partir da escolha. Importa ser fiel à condição de ser livre. Depois da verificação fenomenológica de que o homem surge imediatamente como sendo essencialmente livre, ele tem como ponto de partida formar livremente um projeto de vida individual. Entretanto, o projeto de cada qual se choca com o projeto dos outros homens. Tem o projeto do homem por objetivo dominar o mundo. Sendo o homem livre, pode praticar o mal. E o mundo está cheio de maus. Nas tragédias, do teatro existencialista de Sartre, uma situação existencial impõe as decisões que conduzem à liberdade. O inferno de cada um são os outros.

416. O existencialismo cristão teve também alguma voga. Não obstante a tendência monista, agnóstica, atéia do existencialismo, alguns filósofos tentaram um caminho religioso, conservando assim a linha cristã de Kierkegaard. No quadro do existencialismo cristão se encontram:

- o pensamento teológico do suíço Karl Barth, de antecedentes calvinistas; - a filosofia do alemão Karl Jaspers, de antecedentes protestantes; - a filosofia do francês Gabriel Marcel, convertido à Igreja Católica.

417. Karl Barth (1886-1968), suíço de expressão alemã, nascido em Basiléia, foi expressivo teólogo, protestante calvinista. Estudou em Berna, Berlim, Tuebingen, Marburgo. Algum tempo pastor em Genebra e em Safenwil. A partir de 1921 passou a ensinar teologia na universidade alemã de Goettingen; em 1925, na de Muenster; em 1930, na de Bonn.

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Em 1935, compelido pelo nazismo a deixar a cátedra em virtude de suas opiniões, retornou a Basiléia, onde lecionou até 1961. Na Alemanha, deu ainda, na qualidade de professor estrangeiro, lições em Bonn, em 1946 e 1947. Produziu obra volumosa, ainda que sob poucos títulos: Epistola aos romanos (Roemerbrief, 1919); O cristão na sociedade (Der Christ in der Gesellschaft, 1920); A ressurreição dos mortos (Die Auferstehung der Toten, 1924); A palavra de Deus e a teologia (Das Wort Gottes und die Theologie, 1925); A dogmática cristã (Die Christlische Dogmatik, 26 vols., 1932-1969); A teologia protestante no século 19 (Die protestantische Theologie im 19. Jahrhundert, 1947). Até 1911, ainda jovem, esteve Karl Barth vinculado ao protestantismo liberal antidogmático e modernista de Adolf von Harnack (1851-1930) (vd 433), invertendo a seguir sua posição. Procurou renovar a teologia desvinculando-a da tradição fideísta de Schleiermacher (1768-1834) (vd), para recolocá-la na reforma do século 16. Rejeitou a analogia entre Deus e a criatura, para destacar a transcendência divina, advertindo que somente é válida a via negativa de acesso a Deus, de acordo com a expressão de Kierkegaard sobre a infinita diferença qualitativa entre o tempo e a eternidade. Com o destaque da transcendência divina abriu largo espaço entre Deus e o homem. Abandonado o homem existencialmente a si mesmo, não tendo senão a fé como caminho para o alto. Cristo é o intermediário, como se diz na Epístola aos Romanos (de São Paulo) e comentada por Barth. Sua teologia foi chamada também dialética.

418. Karl Jaspers (1883-1969), diferentemente de Karl Barth, amenizou o aspecto kiekegaardiano em seu existencialismo. Nascido em Oldenburg, Karl Jaspers cursou primeiramente direito em Heidelberg e Munique; medicina em Berlim, Goetingen, Heidelberg, doutorando-se em 1909 . Profissionalmente iniciou como neurologista e psiquiatra. Assistente na clínica psiquiátrica da Universidade de Heidelberg, lecionando também sobre o tema. De pouco em pouco se encaminhou para a filosofia. Professor de psicologia em 1913 na faculdade de letras da referida Universidade de Heidelberg. De novo ali passará a professor de filosofia em 1921. Removido da cátedra em 1937 pelo governo nazista, foi reconduzido em 1945. Passou em 1948 a universidade suíça de Basiléia, onde permaneceu até o final de sua vida. Entre o muito que publicou, destacam-se: Filosofia (Philosophie, 3 vols., 1932); Razão e existência (Vernunft und Existenz, 1935); Nietzsche (1936); Filosofia da existência (Existenzphilosphie, 1937); Da verdade (Von der Wahrheit, 1947); A fé filosófica (Der philosophische Glaube, 1948); Cifras da transcendência (Schiffren der Transzendenz, 1970). Não quis Karl Jaspers denominado existencialista, ainda que desse ao seu sistema o nome de filosofia da existência. Qualquer seja a denominação que se dê à sua filosofia, ela se retém na observação direta, com uma fenomenologia que não é conduzida a uma sistematização racionalista maior, - o que típico do existencialismo. Amenizando, quer a Kierkegaard, quer ao monismo de Nietzsche, a filosofia existencial de Karl Jaspers é cuidadosa, bastante crítica para merecer o respeito com que foi recebida pelos seus contemporâneos. O homem é um sujeito que transcende a si mesmo, alcançando ao objeto, e a este como ser, ultrapassando o horizonte do mero empirismo. Fá-lo por diferentes caminhos. Pelo entendimento (Verstand) atinge o saber das ciências. Mas a existência é inobjetiva, não sendo objeto de conhecimento; experimenta-se a existência, esclarece-se, aclara-se. É a razão (Vernunft) que a esclarece. Diferentemente, ainda, a Transcendência (Deus), não é atingida pela nossa inteligência e razão; mas se atinge pela crença, pela "fé filosófica", por meio das "cifras". O homem também é um ser livre; com a liberdade atualiza suas possibilidades e se compromete com sua escolha. Em situações limites, - como a luta, a culpa, o sofrimento, a morte, - o homem toma consciência de si mesmo

419. O existencialismo cristão de Gabriel Marcel (1889-1973) atinge sucessivamente o eu, o mundo, Deus. Nascido em Paris, onde também se formou, exerceu o magistério secundário em diferentes cidades do país. Deu-se por convertido ao catolicismo em 1929.

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Publicou um Journal metaphysique, de 1914 a 1923, no qual divulgou um existencialismo independente daquele dos alemães e com influências do idealismo anglo-americano (Bradley, Royce) e do intuicionismo de Bergson. Também publicou Homo viator, 1945; O mistério do ser (Le mystère de l’être, 2 vols., 1949), entre vários outros títulos de valor. Ao destacar seu ponto de vista gnosiológico existencial, que parte da experiência subjetiva, diferente do pensamento lógico-raciocinativo, Marcel se referiu à proposição cartesiana (penso, logo existo = cogito, ergo sum), para reinterpretá-la. O que primeiramente importa, - advertiu, - não é o "penso" (= pensamento objetivizado), mas o "logo existo". Eis uma formulação tipicamente ligada a um autor francês. O existo (ou sum) é existencial; não é lógico. Está no início. "Se a existência não estiver na origem não estará em parte alguma; não há passagem para a existência, que não seja truque ou ilusão". Neste início de tudo está a sensação, que "resiste" ao pensamento (cogito). A sensação é "inobjetivável". Não é a sensação uma transmissão de mensagem. "Não é sensação materialisticamente compreendida como transmissão ou tradução de mensagem que parte de um sujeito e é captada por outro". Ela é o "sentimento corpóreo fundamental", ao modo como dizia Rosmini. Ela é o imediato fundamental com que o eu se situa e participa simpaticamente no universo. No mesmo acontecer da sensação está contido "o ser no corpo", percebido antes da objetivação pelo pensamento. Sou um "eu encarnado". "Existo encarnado, existo como capacidade: eis a situação fundamental. O meu corpo está imediatamente presente à alma, como o mundo o está ao corpo e a alma ao corpo: eis o imediato inicial, o mistério do ser". Neste contexto do mistério do ser foi fácil a Marcel referir-se ao universo e ao Eu. Mas, quer ele que também Deus esteja envolvido ali. Sem passar ao pensamento raciocinativo (ou lógico, ou objetivado) encontra Marcel no mistério ontológico algo mais que o eu e o universo. Diz ele que o sujeito é um apetite inesgotável do ser. O sujeito se envolve nesta pesquisa como uma necessidade metafísica, como uma aspiração do meu ser ao Ser, no qual se engaja e se sente assegurado. No fundo do meu eu está o outro, o Tu Absoluto, no qual se espera e ao qual se é fiel, no qual se crê e se tem fé, ao qual se ama.

XIII -INTUICIONISMOS ESPIRITUALISTAS.7270y421.

422. Religião com apoio em experiências intuicionistas. Uma série de filósofos modernos, - em que desde o século 19 se destacaram sobretudo os intuicionistas Bergson e Blondel, e um outro grupo denominado modernista - se apóia em experiências intuicionistas, com características alógicas, para desenvolverem um espiritualismo de resultado relativamente vasto. Estes intuicionismos conferem em parte com orientações com orientações já definidas anteriormente, pelos recursos adotados, e também pelos resultados atingidos. Mas, em um e outro caso também diferem. Em filosofia da religião estes intuicionismos espiritualistas são mencionados, porquanto desenvolvem doutrinas peculiares sobre Deus e sobre a religiosidade em geral. As experiências intuicionistas e alógicas dizem apoiar-se em estados de alma, ditos sentimentos, aspirações, ânsias, ações e situações similares, que se acredita exercerem alguma intencionalidade cognitiva especial. Indicações similares ocorrem em todos aqueles que operam sob a denominação de místicos. Didaticamente podem ser apresentados em dois itens:

- Intuicionismos espiritualistas, tipo Bergson e Blondel (vd 423);

- modernismo em teologia (vd 432).

A). INTUICIONISMOS ESPIRITUALISTAS TIPO BERGSON E BLONDEL. 7270y423.

424. Primeiros intuicionistas espiritualistas. Dentre os pensadores espiritualistas com apoiamento intuicionista destacaram-se inicialmente Laromiguière (1756-1837), Maine de Biran (1766-1824); Victor Cousin (1792-1867), Emile Boutroux (1845-1918).

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Mais recentemente se destacou particularmente o intuicionismo de Henry Bergson (1859-1941) (vd 425), que fora discípulo de Emile Boutroux, antes mencionado. Também se destacou Maurice Blondel (1870-1954) (vd 430), sucessor, aliás de Bergson, no Collège de France. Declara, por exemplo, Laromiguière: "Entre o grande número de idéias que são objeto das ciências metafísicas e morais, ocorrem algumas, que parecem pertencer a faculdade desconhecidas, e que parecem esconder-se na profundeza do nosso ser" (Leçons, t. I p. 36, 3 ed.). Emile Boutroux, referindo-se à necessidade de uma fonte criadora da natureza: "Deus é este ser mesmo do qual sentimos a ação criadora no mais profundo de nós mesmos, em meio dos nossos esforços para nos aproximar Dele".

425. Henry Bergson (1859-1941), filósofo e literato francês de grande projeção, deu destaque ao espiritualismo empírico-intuicionista que propôs. Judeu nascido em Paris, de pai polonês e mãe inglesa, Henry Bergson estudou no Liceu Condorcet. Ingressando em 1878 na Escola Normal Superior, atingiu a agregação em 1881, o doutorado em letras, em 1889. Professor vários anos na escola secundária, - em Angers (1881-1883), Clermont-Ferrand, Louis-le-Grand, por último no Liceu Henrique IV de Paris. Professor de filosofia na Escola Normal Superior, de 1897 a 1900, passando então ao Collège de France, com longo tirocínio, de 1900 a 1921. Eleito para a Academia Francesa (de Letras), em 1914. Prêmio Nobel de literatura, em 1927, havendo sido aliás um excelente ensaísta, com estilo brilhante. Obras de mais destaque, de Bergson: Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (Essai sur le données immédiates de la conscience, 1889), tese; A idéia de lugar em Aristóteles (Quid Aristoteles de loco senserit, com tradução francesa - L’idée de lieu chez Aristote, 1889), tese; Matéria e memória. Ensaio sobre as relações do corpo com o espírito (Matière et mémoire, essai sur la relation du corps à l’esprit, 1896) O riso, ensaio sobre a significação do cômico (Le rire, essai sur la signification du comique, 1900); A evolução criadora (L’ évolution créatrice, 1907), obra principal; A energia espiritual (L’énergie spirituelle, 1919), coleta de artigos e conferências; Duração e simultaneidade (A propósito da teoria de Einstein) (Durée et simultanéité. À propos de la théorie d’Einstein, 1922); As duas fontes da moral e da religião (Le deux sources de la morale et de la religion, 1932); O pensamento e o movimento (La pensée et le mouvant, 1934),

426. Duas fontes de conhecimento, - intuição e razão. O ponto de partida da filosofia de Bergson é admissão inicial, - depois de criticar o conhecimento conceitual, - de duas fontes desiguais de conhecimento: a intuição, descrita como procedimento alógico, capaz de atingir a realidade com mais autenticidade que a simples razão, ou inteligência, reduzida a operar a realidade apenas pelas suas relações extrínsecas, como acontece na ciência experimental. A intuição foi também comparada por Bergson ao conhecimento místico, que ele admite acontecer habitualmente, sobretudo em certos homens dotados de conhecimentos especiais. O mesmo aconteceria no processo da poesia e da percepção artística mais profunda. É a intuição o primeiro instante do conhecimento, o qual atinge, por esta primeira operação cognoscitiva o fundamento das coisas, em si mesmas, em absoluto e não apenas por relações. A filosofia é uma reflexão sobre os dados da intuição. Descobre a intuição a realidade como duração. A esta descreveu Bergson como élan vital. Finalmente por ali chega a Deus e à religião. No entender de Bergson, a duração (ou o devir) é alcançada em si mesma apenas pela intuição, e seu conteúdo, como já se adiantou, é o objeto da filosofia. Na intuição opera o homem sapiens; no outro conhecimento, o homem faber. No seu cotidiano, o homem costuma ser primeiramente um homem faber; progredindo, passa a ser um homem sapiens. Contrastando com a filosofia como reflexão sobre os dados da intuição, o outro tipo de conhecimento, peculiar à ciência, opera a partir de elementos já conhecidos, que são inter-relacionados. Que dizer sobre a distinção dos dois tipos de conhecimento destacados por Bergson?

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Efetivamente, a ciência, embora opere com dados diretamente experimentados e diretamente entendidos, depois disto não evolui mais longe que a descoberta de relações extrínsecas, também só verificados experimentalmente e assim apenas entendidos. A inteligência pura também segue para o conhecimento das relações meramente inteligíveis, em que aliás consiste grande parte da filosofia. Este outro conhecimento puro parece haver sido confundido por Bergson, com sua intuição. Esta, a intuição, nada mais é do que o momento mais sutil da inteligência comum.

427. A nova metafísica de Bergson, com base na intuição, se distancia das metafísicas amplamente desenvolvidas, não somente com a intuição inicial do ser, mas ainda com os resultados racionalísticos de do raciocínio dedutivo. Nesta nova metafísica com os resultados obtidos apenas pela intuição, a realidade é o élan vital, porque matéria e vida não são senão momentos da mesma coisa, intuída pelo conhecimento. Dito de outro modo, a realidade cosmológica se compõe de dois elementos, matéria e élan vital (corrente vital). Ali a dualidade matéria e forma do sistema aristotélico é transposta para a linguagem colorida de Bergson. Ao aproveitar o termo élan vital, Bergson quis caracterizar a índole operante deste principio, e não indicar apenas um dos tipos de élan, o da vida biológica animal. É também este o sentido de forma ou ato, em Aristóteles, ainda que Bergson o acuse indevidamente de estaticistas os sistemas antigos. Quando insiste que matéria e espírito são impulsos constitutivos da mesma duração, -da qual são os extremos, - Bergson é monista e evolucionista. Apresenta sinais aqui de haver sido influenciado pelo positivismo evolucionista de John Stuart Mill (1806-1873) (vd), um dos autores por ele preferidos inicialmente. Além disto, o reducionismo de Bergson está em favor do espírito, e não a favor da matéria. Interpretou a matéria como sendo um estágio do próprio espírito, ou seja do psíquico, quando em estado menos ativo. Portanto, a matéria é como uma degradação da vida com momentos menos ativos. O que acontece são alterações qualitativas, ora em estágio de espírito, ora em estágio de matéria. O élan vital é o devir em sua marcha criadora, como virtualidade deste devir. Direções materiais e espirituais, evoluções diferenciando-se em instintivas e intelectuais continuam sempre formas da mesma realidade. A memória é o elemento integrador dos momentos da duração. Há neste intuicionismo uma evidente oposição ao positivismo e ao empirismo em geral. De outra parte, não é um racionalismo cartesiano. Insere-se o bergsonismo na tendência de alguns filósofos modernos, que, desde Blaise Pascal (vd), se apóiam numa intuição, descrita ora mais alogicamente, ora mais ecleticamente.

428. Deus, para o intuicionismo de Bergson, é o princípio supremo e absoluto do qual se origina o impulso constante da realidade cósmica do élan vital. Comparou Bergson a Deus com um chispear contínuo a lançar os raios de uma grande luz. Nesta comparação de Bergson o Criador é como o centro de irradiação dos fogos de artifício, em que o resultado destes representaria a diversidade dos mundos Deus e o mundo são praticamente a mesma coisa, vista esta em fases diferenciadas. Este monismo, sobre o qual Bergson contudo não insistiu, foi descrito como evolução criadora. Deus é um imenso fazer-se, não é nada terminado, como se fosse todo feito (tout fait). Ele é vida sem cessar, é um agir sempre, é liberdade. Para afastar o caráter monista de tais expressões em Bergson, tem-se procurado apoio em algumas de suas cartas, que parecem dizer que a duração em Deus é diferente da nossa. Se este impulso se considerar independente do seu princípio de origem, como a água que brota da fonte, é evidente que a concepção bergsoniana se apresenta francamente teísta. Mas, a obscuridade desta parte do seu pensamento tem deixado lugar as discussões. Embora Bergson tenha declarado peremptoriamente que não era panteísta, as dificuldades poderão manter-se. Quando o jesuíta francês Joseph de Tonquédec (1868-1962) o qualificou de monista, Bergson respondeu com duas cartas, que não era monista e nem panteísta, e que seu sistema admitia um Deus criador, origem do impulso vital. As duas cartas de Bergson foram publicadas na revista Ètudes (de 20-01-1912).

429. Moral aberta e moral fechada. No sistema bergsoniano a moral surge como uma necessidade da vida, revelando-se como amor, ao modo como é alcançado pela experiência mítica e praticada pelos místicos. Esta é a moral da sociedade aberta.

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Há também a moral resultante da pressão social, a moral da sociedade fechada, produzida pela razão comum. Ao estabelecer na necessidade da vida a fonte da moral, Bergson se opôs à ética a priori de Kant, como também ao do positivismo em geral. De índole tolerante, Bergson teve relacionamento com os praticantes dos fenômenos espíritas como também com os católicos. Disse mesmo admirar o catolicismo, todavia como um aperfeiçoamento do judaísmo, em cujo contexto étnico fez contudo questão de se manter. "Minhas reflexões levaram-se cada vez mais perto do catolicismo, onde vejo o acabamento completo do judaísmo. Ter-me-ia convertido, se não tivesse visto preparar-se desde há anos (em grande parte infelizmente pela culpa de um certo número de judeus inteiramente desprovidos de senso moral) a formidável vaga de anti-semitismo que vai desabar sobre o mundo. Quis ficar entre os que serão amanhã perseguidos" (Testamento, de 8-2-1937).

430. Maurice Blondel (1861-1949), filósofo francês, nascido em Dijon, que pensara inicialmente ser sacerdote. Foi sempre um homem generoso e se fez conhecer por um sistema intuicionista denominado Filosofia da ação. Defendeu tese de doutorado em 1893. Mestre de conferências na Universidade de Lille, 1895-1896. Professor em 1897 na Universidade de Aix-en-Provence, permanecendo no posto até sua enfermidade em 1927, aumento de surdez e diminuição de visão. Continuou na mesma cidade, escrevendo sempre. Obras de Blondel: A ação. Ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência da prática (L’action. Essai d’une critique de la vie et d’une science de la practique, 1893), tese de doutorado, que teve repercussão; Do vínculo substancial e da substância composta em Leibniz (De vinculo substanciali et de substantia composita apud Leibnitium, 1972 em tradução francesa Le lien substantiel et la substance composée d’ après Leibniz, 1893), pequena tese; O processo da inteligência (Le procès de l’intelligence, 1922), em colaboração com Archambault; O itinerário filosófico de Blondel (L’intinéraire philosophique de Maurice Blondel, 1928), coletânea de textos, por F. Lefèvre; O problema da filosofia católica (Le problème de la philosophie catholique, 1932); O pensamento (La pensée, vols., 1932-1934), importante; O ser e os seres. Ensaio de uma ontologia concreta e integral (L’être et les êtres. Essai d’une ontologie concrète e intégrale, 1935); A ação (L’action, I: Le problème des causes secondes et le pur agir, 1936, II: L’Action humaine et les conditions de son aboutissement, 1937), 2 vols., sendo este livro chamado "segunda Action" para distingui-lo da obra de 1893, dita "primeira Action"; Luta pela civilização e filosofia da paz (Lutte pour la civilisation et philosophie de la paix, 1939); A filosofia e o espírito cristão (La philosophie et l’esprit chrétien, 2 vols., 1954-1950); Cartas filosóficas de Maurice Blondel (Lettres philosophiques de Maurice Blondel, 1951). Fez-se Blondel conhecer como chefe da filosofia da ação, partindo de um intuicionismo inicial, irrompendo depois para uma espiritualismo metafísico antipositivista, com aparência neoplatônica e tomista, eclética e misticista, com algumas moderações, e que o aproximam ao existencialismo cristão. A ação é um acontecimento originário, que se coloca como fato inicial. Além de acontecimento originário, a ação apresenta implicações e se estabelece com integrações com outros elementos. E assim, a ação enquanto acontece, vai revelando a realidade. Portanto, a ação enquanto revela, se institui como conhecimento da realidade; distinto do conhecimento nocional, o conhecimento pela ação atinge algo mais no objeto. No seu entender, não basta o conhecimento nocional como aquele da metafísica tomista. O misticismo se desenvolve a partir do conhecimento real. Não se trata de tomar a ação como sucesso, ao modo do pragmatismo, como quis William James, mas da ação enquanto é consciência de si mesma, e nessa consciência diga algo mais do que a simples noção. Aceita embora por muitos, a tese da ação como via originária de conhecimento foi muito contestada, o que ocupou a Blondel em defendê-la no curso de toda a sua vida e em quase todos os seus escritos.

B). O MODERNISMO EM TEOLOGIA. 7270y432.

433. Modernismo (em teologia) foi um nome pomposo para um movimento, surgido depois de 1900 entre alguns teólogos católicos de grande prestígio. Em primeiro lugar, alinha-se o modernismo entre as muitas tentativas da busca alógica da verdade.

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Por acréscimo, o modernismo também procurou mostrar a fragilidade das religiões sobrenaturalistas, sobre a cristã, ao mesmo tempo que lhes dando uma nova fundamentação, a qual seria também progressiva e universalizante. Ao se avaliar o modernismo (vd 438), importa distinguir entre duas faces das atividades dos modernistas. É possível que uns tenham sido bons filósofos, enquanto outros bons críticos das estruturas religiosas, sobretudo das que se apresentam com tendo base sobrenaturalista. Como se disse, o modernismo, aceitando as objeções aplicadas à inteligência racionalista, busca particularmente a verdade religiosa, através da via do sentimento profundo. Mas, se esta posição for reformulada, continua o modernismo ainda com suas restrições ao sobrenaturalismo oferecido por muitas das religiões. Este ponto de vista já vêm da exegese liberal. Por ambos os lados se deu o conflito do modernismo com a Igreja Católica oficial (vd 437).

434. Filósofos e teólogos modernistas ocorreram principalmente a partir do final do século 19, adentrando o seguinte, quando ocorreu a reação da Igreja Católica. Na França foram modernistas o brilhante Alfredo Firmin Loisy (1857-1940) (vd 435), Le Roy Willois, e o pastor protestantes Paul Sabatier (1858-1928), historiador, com estudos sobre a religiosidade medieval, especialmente sobre São Francisco de Assis. Na Alemanha, o movimento antidogmático de fundo modernista foi comandado pelo expressivo teólogo protestante liberal Adolf Von Harnack (1851-1930), professor em Marburgo e Berlim. Foi ainda o inspirador de Loisy, da França, já citado. Publicou: Manual de história do dogma (Lehrbuch der Dogmengeschichte, 7 vol., 1885); História da literatura antiga do cristianismo até Eusébio, 1893; A essência do cristianismo (Das Wesen des Christentums, 1900). Na Inglaterra atuou particularmente como teólogo modernista o George Tyrrel (1861-1909). Protestante convertido ao catolicismo e feito jesuíta entrou em luta com a Igreja Católica em virtude de suas novas idéias. Afastado da Companhia de Jesus em 1906, foi ainda excomungado pela Igreja em 1907. Diz-se haver-se reconciliado ao morrer. Publicou: Nova et Vetera, 1905; Mediaevalisme, 1909; O cristianismo na encruzilhada (Christiannity at the crossroads, 1909). Na Itália o modernismo se difundiu amplamente com o brilhante poeta e novelista Antônio Fogazzaro (1842-1911). Católico liberal, expressou seu modernismo em famosa novela Il Santo (1905), colocada no Index das obras condenadas pela Igreja Católica, como heréticas.

435. Alfredo Firmin Loisy (1857-1940), inicialmente sacerdote, ordenado em 1879, foi um dos protagonistas do modernismo na França, no que foi também influenciado pelo intuicionismo de Bergson. Professor brilhante do Instituto Católico de Paris, sendo que de hebraico, desde 1881, de exegese bíblica desde de 1889 a 1893, da Sorbone, de 1900 a 1904. O então Diretor e fundador do Instituto Católico de Paris, Monsenhor Maurice d’Hulst favoreceu aos professores o uso de novos métodos de tratamento da teologia cristã. Mas a Sé Romana, mantenedora do controle doutrinário dos estabelecimentos católicos, destituiu em 1893 a Loisy de sua cátedra. Foram suas obras colocadas no Index dos livros proibidos em 1903. Afastou-se Loisy definitivamente da Igreja Católica, e foi ser professor de história das religiões no Collège de France, onde, com liberdade de cátedra, lecionou de 1909 a 1926; foi também professor de história das religiões, desde 1924, na École des Hautes Études. Obras: História do Cânon do Antigo Testamento (Histoire du Canon de l’Ancien Testament, 1890); História do Cânon do Novo Testamento (Histoire du Canon du Nouveau Testament, 1891); História crítica do texto e das versões da Bíblia (Histoire critique du texte et des versions de la Bible, 1892-1893); Estudos bíblicos (Études bibliques, 1901); A religião de Israel (La réligion d’Israel, 1901); Os mitos babilônicos e os primeiros capítulos do Gênesis (Les mythes babyloniens et les primieres chapitres de la Genèse, 1901); O Evangelho e a Igreja (L’Évangile et l’Eglise, 1903), posto no Index dos livros proibidos aos católicos, havendo despertado grande polêmica;

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O Quarto Evangelho (Le quatrième Evangile, 1903), no Index; Os Evangelhos Sinópticos (L’Évangiles synoptiques, 2 vols., 1907-1908), que resultou na excomunhão do autor, pela Igreja Católica, em 1908; Jesus e a tradição evangélica (Jesus et la traditions évangéliques, 1910); À propósito da história das religiões (A propos d’histoire des religions, 1911); Os mistérios pagãos e o mistério cristão (Le mysthères paiens et le mysthère chrétienn, 1919); Os Atos dos Apóstolos (Les Actes des Apótres, 1920); Ensaio histórico sobre o sacrifício (Essai historique sur le sacrifice, 1920); A moral humana (La morale humaine, 1923); La naissance du Chistianisme (1932); As origens do Novo Testamento (Les origines du Nouveau Testament, 1936).

A Igreja cristã, segundo o modernismo de Loisy, teria resultado de uma superação da fase em que os primeiros discípulos de Jesus acreditavam em uma eminente realização do Reino de Deus. Em virtude da demora desta segunda vinda, ter-se-ia formado a organização institucional da Igreja e a cristalização das doutrinas em dogmas. Passando a um plano generalizado, Loisy admitiu que a religião evoluiria no curso dos tempos, até assumir a forma de religião universal, fundada na noção de humanidade. É essencial ao pensamento de Loisy que já no passado bíblico ocorrera a evolução dos dogmas, o que ele buscava mostrar pela exegese dos textos. Do ponto meramente filosófico, Loisy revelou tendências imanentistas.

436. Teses modernistas condenadas pela Igreja Católica. O elenco das teses típicas do modernismo se encontra no "Sílabo das proposições condenadas pela Igreja, Decreto da Sagrada Inquisição Romana e Universal, Quarta-feira, 3 de Julho de 1907..." onde são também condenadas. Dizem respeito à:

- Autoridade das decisões doutrinais da Igreja (proposições de 1 a 8), - Nova teoria sobre a Escritura Sagrada (proposições 9 a 19), - Filosofia religiosa da nova escola (proposições 20 a 26), - Cristologia de Loisy (proposições 27 a 38), - Origem dos Sacramentos (proposições 39 a 51), - Nova teoria sobre a Igreja (proposições 52 a 56), - Evolucionismo absoluto e ilimitado (proposições 57 a 65).

437. Encíclica Papal sobre o Modernismo. Deveu o modernismo preocupar a Igreja Católica, porque a vulnerava profundamente, sobretudo quanto aos novos argumentos, que passaram a afirmar sua não fundamentação. O Pio X (Papa de 1903 a 1914), em linguagem tumultuada, saiu a campo, para reafirmar o dogma católico. Neste sentido publicou a Encíclica Pascendi (1907), advertindo contra o modernismo aos cristãos e obrigando aos padres o juramento antimodernístico anual. Além disto agiu diretamente com a excomunhão pessoal emitida contra os representantes do modernismo. Conforme definiu o Papa, que o modernismo, na sua parte negativa, era agnóstico em relação sobrenatural, e que, na sua parte positiva, se apoiava numa fonte inconsistente do processo cognoscitivo, a imanência vital, a partir explicava natualisticamente os fenômenos religiosos, inclusive todo o processo do cristianismo.

a) O agnosticismo do modernismo. "Cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo. Por força desta doutrina, a razão fica inteiramente reduzida a consideração dos fenômenos, isto é, só das coisas perceptíveis e pelo modo como são perceptíveis; nem tem ela direito nem aptidão para transpor estes limites. E daí segue que não é dado à razão elevar-se a Deus, nem reconhecer-lhe a existência, nem mesmo por intermédio dos seres visíveis. Segue-se portanto, que Deus não pode ser de maneira alguma objeto direto da ciência; e também com relação à história, não pode servir de assunto histórico.

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Postas estas premissas, todos percebem com clareza, qual não deve ser a sorte da teologia natural, dos motivos de credibilidade, da revelação externa. Tudo isto os modernistas rejeitam e atiram para o intelectualismo, que chamam ridículo sistema, morto há muito tempo. Nem os abala ter a Igreja condenado formalmente erros tão monstruosos, pois que de fato o Concílio Vaticano assim definiu: Se alguém disser que Deus, um e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, seja anátema (De Revel., can. 1); e também: Se alguém disser que não é possível ou não convém que, por divina revelação, seja o homem instruído acerca de Deus e do culto que lhe devido, seja anátema (ibid., can. 2) e finalmente: se alguém disser, que a divina revelação não pode tornar-se crível por manifestações externas, e que por isto os homens não devem ser movidos à fé, senão exclusivamente pela interna experiência ou inspiração privada, seja anátema (De Fide, can. 3). De que modo porém os modernistas passam do agnosticismo, que é puro estado de ignorância, para o ateísmo científico e histórico, que, ao contrário, é estado de positiva negação, e por isso, com que lógica, do não saber se Deus interveio ou não na história do gênero humano, possam a tudo explicar na mesma história, pondo Deus de parte, como se na realidade não tivesse intervindo, quem o souber que o explique. Há entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que é o dever ser atéia a ciência a par da história, em cujas raias não haja lugar senão para os fenômenos, repelido de uma vez Deus e tudo o que é divino. E dessa absurdíssima doutrina, ver-se-á, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta pessoa de Cristo, dos mistérios e da sua vida e morte, da sua ressurreição e ascensão ao céu" (Enc. Pascendi, 6). No questionamento sobre o agnosticismo (vd 383) em religião importa distinguir entre agnosticismo em filosofia e agnosticismo referente ao sobrenatural. Neste último importa sobretudo o rigorismo epistemológico no aferimento das provas.

b). A imanência vital, como fator explicativo da origem e desenvolvimento das religiões, alegado pelos modernistas, é também denunciada por Pio X, na continuação do texto antes citado, de sua Encíclica Pascendi, de 1907. Já agora se trata de uma questão caracterizadamente filosófica, mais precisamente de gnosiologia. Como se sabe, a diversidade das gnosiologias, - realistas, idealistas, intuicionistas, misticistas, fideístas, empiristas, etc., - podem afetar a filosofia da religião. " Este agnosticismo, porém, na doutrina dos modernistas não constitui senão a parte negativa; a positiva acha-se toda na imanência vital. Eis aqui o modo como eles passam de uma parte à outra. A religião, quer a natural, quer a sobrenatural, é mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruída a teologia natural, interceptada a entrada na revelação com o rejeitar os motivos de credibilidade, é claro que se não pode procurar fora do homem essa explicação. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religião não é senão de fato uma forma da vida, a sua explicação se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princípio da imanência religiosa. Demais, a primeira moção, por assim dizer, de todo o fenômeno vital, deve sempre ser atribuída a uma necessidade: os primórdios, porém, falando mais especialmente da vida, devem ser atribuídos a um movimento do coração, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade. Esta necessidade das causas divinas não se fazendo sentir no homem senão em certas e especiais circunstâncias, não pode de per si pertencer ao âmbito da consciência; oculta-se, (porém), primeiro abaixo da consciência, ou, como dizem com vocábulo tirado da filosofia moderna, na subconsciência, onde a sua raiz fica também oculta e incompreensível. Se alguém, contudo, lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, rebenta em religião, será esta a resposta dos modernistas: A ciência e a história acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que é o mundo visível; outro interno, que é a consciência. Chegados a um ou outro destes dois termos, não se pode ir mais adiante, além destas limites acha-se o incognoscível, Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas ;visíveis, seja que ele se ache na subconsciência do homem, a necessidade de um quê divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina, e assim de certa maneira une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé, e têm-no como princípio da religião" (Enc. Pascendi, 7). Continua o documento pontifício de 1907:

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"Nem acaba aí o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois, nesse mesmo sentimento eles não encontram unicamente a fé; mas, com a fé e na mesma fé, do modo como a entendem, sustentam que também se acha a revelação. E que é o que mais se pode exigir para a revelação? Já não será talvez revelação, ou pelo menos princípio de revelação, aquele sentimento religioso, que se manifesta na consciência? Ou talvez o mesmo Deus a manifestar-se às almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? Eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da fé, essa revelação é de Deus como objeto, e também provém de Deus como causa; isto é, tem a Deus ao mesmo temo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Veneráveis irmãos, a absurda afirmação dos modernistas, segundo a qual toda a religião, sob diverso aspecto, é igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promíscua significação que dão aos termos consciência e revelação. Daqui a lei que dá a consciência religiosa, a par com a revelação como regra universal, à qual todos se devem sujeitar, inclusive a mesma suprema autoridade da igreja, seja quando ensina seja quando legisla em matéria de culto ou de disciplina" (Enc. Pascendi, 8). Pouco adiante: "O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o germe de toda religião. Este mesmo sentimento rudimentar e quase informe a princípio, pouco a pouca, sob o influxo do misterioso princípio que lhe deu origem, tem-se ido aperfeiçoando, a par com os progressos da vida humana, da qual, como já ficou dito, é uma forma. Temos, pois, assim a origem de toda a religião até mesmo da sobrenatural, e estas não passam de meras explicações do sentimento religioso. Nem se pense que a católica é excetuada; está no mesmo nível das outras, pois não nasceu senão pelo processo de imanência vital na consciência de Cristo, homem de natureza extremamente privilegiada, como outro não houve nem haverá. Fica-se pasmo em se ouvindo afirmações tão audaciosas e sacrílegas. Entretanto, Veneráveis Irmãos, não é esta linguagem usada temerariamente só pelos incrédulos. Homens católicos, até muitos sacerdotes, afirmaram estas coisas publicamente, e com delírios tais se vangloriam de reformar a igreja. Já não se trata aqui do velho erro, que à natureza humana atribuía um quase direito à ordem sobrenatural. Vai-se muito mais longe ainda: chega-se até a afirmar que a nossa santíssima religião no homem Jesus Cristo, assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Nada pode vir mais a propósito para dar cabo de toda a ordem sobrenatural. Por isso com suma razão o Concílio Vaticano definiu: Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus elevado a um conhecimento e perfeição, que supere as forças da natureza, mas por si mesmo pode e deve, com incessante progresso, chegar finalmente a possuir toda a verdade e todo o bem, seja anátema (De Revel., can. 3" ( Encicl. Pascendi, 10)..

438. Encerrando sobre o modernismo em teologia, importa considerar algo sobre suas provas no plano filosófico. Lembre-se inicialmente que ele se colocou num plano semelhante ao de William James (1842-1910), o qual levantou a hipótese da subconsciência, onde se encontraria um conhecimento de Deus que não é o meramente especulativo. Deus está presente no fundo da alma, e é impossível que Deus não se manifeste através de suas operações. A respeito de uma primeira prova do modernismo. Em criando a alma, Deus tem com ela contato. Ela toma, então, consciência de Deus por um contato imediato, por um conhecimento de ordem sentimental, que não coincide com aquele obtido especulativamente. Reforçando o argumento com a autoridade, foi recordado que Paulo Apóstolo diz: "Nele, pois, vivemos, e somos" (Atos 17,28). O modernismo apela ainda a um pensamento análogo de Tomás de Aquino (Suma teológica I. 8). O argumento sofre contestação fácil. Deus se encontra presente na alma a título de causa criadora, o que ainda não quer dizer presente como objeto conhecido. Somente uma demonstração a posteriori, remontando raciocinativamente do efeito à causa, poderá revelar a existência da causa. Apelam os modernistas a um segundo argumento, chamado prova de fato. Verifica-se que as pessoas bem preparadas têm efetivamente contato direto com Deus. Os modernistas apontam não só para sua experiência pessoal, mas também para o testemunho dos místicos. Trata-se aqui de um terreno difícil e complicado, pois os místicos são raros e rodeados de circunstâncias muito particulares. Mesmo seus conhecimentos, se poderão reduzir aos processos pela analogia e pelo raciocínio. O modernismo estabelece a experiência do divino como a base de toda a religião, inclusive do catolicismo. A revelação, de que fala a Igreja, não representa nada mais do que esta experiência religiosa fundamental que todo o homem leva em si.

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Ocorre apenas que a dita experiência não se manifesta de igual modo em todos, mantendo-se no subconsciente. Certas almas privilegiadas, como a dos místicos, profetas, especialmente Jesus, teriam tido uma consciência mais nítida. Os homens que logram experiências mais ricas, manifestam-nas aos outros. Entre muitas manifestações, a sociedade sanciona os melhores formando-se assim os dogmas. O valor dos dogmas se apresenta, pois, relativo, e portanto susceptível de alteração e reforma.

439. Conclusão geral do capítulo sobre a evolução e história dos sistemas de filosofia da religião. Muitos dos temas da filosofia da religião se apresentam polêmicos, e foram até aqui considerados historicamente, ainda que as vezes com algumas considerações valorativas. Outros aspectos históricos poderão oportunamente vir a ser aduzidos, complementando o que foi feito até aqui, como introdução ao que vai ser discutido em seu mesmo conteúdo, pelo que resta tratar:

- existência de Deus (cap. 4-o) (vd 445),

- natureza do verdadeiro Deus (cap. 5-o) (vd 493),

O temário destes dois capítulos, quando abordado como um todo, leva a denominação de teologia natural, ou teodicéia. Depois se tratará do culto.

CAP. 4SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS.

7270y445.

- Filosofia da Religião-446. Introdução. As provas da existência de Deus se apresentam muito polêmicas. Todavia umas o são mais, outras menos. Pergunta-se, pois, o que importa em uma prova da existência de Deus, para que seja válida, do ponto de vista do seu bom funcionamento. Toda prova, desde a mais simples, - que alguns querem ser a intuitiva, até a mais complexa, como a argumentativa, - tem um percurso, que podemos desdobrar, a fim de discutir por partes o que se propõe. Trata-se dos vários tempos a serem examinados. Preliminarmente importa ainda distinguir entre o aspecto formal, dito do sequencial lógico da prova, e o aspecto gnosiológico, referente à validade do conteúdo afirmado. É claro que toda a prova deverá ter uma apresentação formal impecável. Melhor ainda se a lógica, além de ser perfeita, é ainda uma lógica espontânea, que permita pensar com lógica natural, sem qualquer dos defeitos do pensamento pré-lógico (vd 13). Sobremaneira importa o pressuposto conteudístico, ou gnosiológico da prova. Os conteúdos se processam em três modalidades distintas quanto à evidência:

- como afirmativa de evidência explícita; - como afirmativa de evidência implícito; - como afirmativa de evidência virtual, como acontece numa conclusão de argumento.

Sempre que se alega um fato explícito, seu conteúdo importa ser diretamente provado, pela simples primeira constatação, e não confundido com dados que não têm tal condição. Se se apela a um princípio, que esteja implícito ao fato, importa que a análise se faça rigorosamente, para garantir o que está afirmado com tal condição. Finalmente, se se armar um argumento, para obter uma afirmação virtualmente implícita, como resultante deduzida das premissas coordenadas, ou como resultante induzida de fatos, - novamente, tudo tem de ser examinado, para que o procedimento não ofereça falhas quanto ao conteúdo que se afirma como resultado deste proceder argumentativo. Há, pois, sempre dois tempos em qualquer prova, o que particularmente importa mostrar nas provas mais complexas, que são as argumentativas, sobretudo as argumentativas dedutivas. É que sobretudo neste gênero de argumentação elas são com mais frequência tentadas para provar sua existência.

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447. Sobre os dois tempos na prova da existência de Deus. Na prova dedutiva da existência de Deus se parte, num primeiro tempo, de um princípio geral, num segundo tempo de um fato a explicar, apoiado no princípio geral, através do qual pois se encaminha a conclusão. Seja um exemplo de prova argumentativa em dois tempos e que visa a existência de Deus: Os seres contingentes requerem um ser necessário (princípio geral); Ora, os seres do mundo são contingentes (fato a explicar); Logo, os seres contingentes, do mundo, requerem um ser necessário, Deus. Primeiramente importa provar o princípio da razão suficiente, de que o contingente supõe o necessário. A seguir, no segundo tempo se requer provar o fato, que reduz os seres do mundo à situação de contingentes. Segue, - como efeito forma do antecedente (as duas premissas). - a conclusão. Esta prova depende da validade de duas premissas, a primeira é geral, a segunda é particular. Como se vê, a discussão, decidindo entre teísmo e ateísmo, importa em um percurso de dois tempos, em que o primeiro discute o pressuposto gnosiológico geral (por exemplo, o valor do princípio da razão suficiente), e o segundo a procedência do dado a explicar. O contestador poderá operar, ora no primeiro momento, ora no segundo. Assim também o teísta deverá sistematicamente ocupar-se em provar, ora a primeira premissa, ora a segunda. A distribuição didática do tratamento dos argumentos da existência de Deus segue naturalmente do desdobramentos dos mesmos em dois tempos:

- princípios gerais que levam a existência de Deus (vd 449); - Fatos a explicar pela existência de Deus (vd 478).

ART. 1-o. PRINCÍPIOS GERAISQUE LEVAM À EXISTÊNCIA DE DEUS.

7270y449. 450. As dificuldades sobre a existência de Deus se concentram nos princípios que embazam as provas. Os homens ocupados com religião descuidam notoriamente de tratar o primeiro momento gnosiológico das provas da existência de Deus. Mas é ali que se encontra o pressuposto remoto da religião. É por ele que começam as dificuldades. Não se apresenta fácil este primeiro momento, até mesmo porque implica em conceitos geralmente confusos sobre a própria gnosiologia. Aliás, pela gnosiologia começa a metafísica, depois continua pela ontologia. O exame das provas, que se supõem conduzam a Deus, não pode deixar de dar destaque ao instante inicial, do qual depende o restante.

451. Advertência sobre o caráter metafísico da questão sobre Deus. A religião é uma consideração que trata de maneira sistemática a realidade como um todo. É pela visão do todo, por onde importa começar A disciplina filosófica que trata de maneira sistemática a realidade expressamente como um todo é a metafísica. Esta se divide em:

- metafísica do conhecimento (ou gnosiologia); - metafísica do ente em si mesmo (ou ontologia).

Destaque-se o todo como todo. Nas denominações, - gnosiologia e ontologia, - o todo como um todo não está evidente no logo no primeiro impacto da enunciação, porque o interesse imediatamente se localiza em alguns aspectos. A gnosiologia realça costumeiramente a importância da certeza sobre a validade dos conteúdos pensados. Todavia, a gnosiologia, em seu tema se ocupa do ser enquanto se apresenta. Assim sendo, ocupa-se do todo dos conteúdos. O mesmo acontece com a ontologia, que se ocupa do ser, enquanto é algo é algo. A palavra Deus destaca aspectos, em que o todo como um todo não aparece no primeiro instante. Mas importa entender a Deus integrado no todo. O mesmo acontece com a religião, na qual o que primeiro importa é a consideração da realidade como um todo, ainda que ordinariamente o indivíduo não atenda a esta perspectiva de totalidade. Entretanto, a consideração sistemática ou filosófica da coisa principia com a visão da totalidade. Diante das considerações, em que advertimos sobre o todo, a noção de ser imediatamente se destaca, dela tratando a ontologia e finalmente a filosofia da religião.

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Do ser, mais precisamente dos modos do ser, deverão derivar os princípios, tanto os gerais como os derivados, sobre os quais repousam os argumentos da existência de Deus. O ser é tratado primeiramente pela gnosiologia, como objeto do conhecimento, e depois pela ontologia, atenta ao que diz o ser, quer simplesmente ele mesmo, quer pelos seus modos, do qual derivam finalmente os princípios. Dali decorre uma distribuição didática:

- preliminar sobre o ser simplesmente (vd 452); - essência do ser (vd 465); - modos gerais do ser (vd 470); - primeiros princípios do ser (vd 474).

I – PRELIMINAR SOBRE O SER SIMPLESMENTE.7270y452.

453. A metafísica do conhecimento como pressuposto remoto da religião. Não é demais insistir que o estudo do ser, e portanto de tudo, começa com a metafísica do conhecimento, - ou gnosiologia, chamada ainda teoria do conhecimento. Ora, diz a metafísica do conhecimento, que, - o que conhecemos, - tem a perspectiva de objeto. Ora, esta consideração, pela qual dizemos que algo é objeto, se caracteriza de um modo muito geral. Tudo é objeto, tudo é algo, tudo é coisa, enfim tudo é ente, tudo é ser. A metafísica do conhecimento determina, pois, que conhecer é conhecer objetos; portanto, que conhecer é uma atenção a objeto. Prosseguindo, a gnosiologia passa a sofisticar esta noção englobante, mostrando que, no aquém está o sujeito e no além o objeto, e ainda que este conhecer se exerce com as propriedades gnosiológicas de evidência, verdade, certeza. Conceituada a questão do conhecimento, importam algumas decisões gnosiológicas fundamentais sobre o ser, para dar início ao questionamento sobre Deus. Em metafísica do conhecimento se pergunta primeiramente pergunta primeiramente pela certeza alcançada. É óbvio que, no caso do ceticismo, não há como chegar a uma prova sobre Deus e nem à religião alguma. A este contexto se reduz a problemática geral do agnosticismo religioso (vd).

454. Realismo e idealismo em religião. Em metafísica do conhecimento é bastante fundamental decidir sobre se as coisas são reais (independentes da mente), ou se são apenas um fenômeno localizado no recinto mesmo da atividade cognoscente, como quer o idealismo, e formas similares de interpretação. É também óbvio, que no idealismo, os resultados os resultados sobre filosofia da religião deixam de ter a mesma objetividade que no realismo. É muito complexo e sofisticado o tratamento desdobrado realizado pela metafísica do conhecimento em tudo o que diz respeito à natureza gnosiológica do objeto. A pergunta indaga, - se o objeto conhecido é apenas objetivação subjetiva, como quer o idealismo, ou se é objeto real (independente do conhecimento), como quer o realismo. E assim, apesar do detalhamento, a metafísica do conhecimento (ou gnosiologia) vê o objeto sempre como totalidade, como coisa simplesmente, ou seja, como ente, como ser. Ao descer aos detalhes, nunca é esquecido o ponto de vista de totalidade. Comparece, pois, a gnosiologia como um pressuposto remoto da religião, porque sem objeto, sem evidência, verdade, certeza. Muito especialmente sem realidade, a religião fica praticamente sem sentido, ainda que os idealistas mesmo assim dela se ocupam. Supõe religião, em sentido forte, que Deus seja uma realidade distinta do conhecimento; sem esta distinção, Deus será apenas uma projeção do espírito pensante, ao qual o adorador ilusoriamente se aliena. Mesmo que se prove a existência de Deus, - mas em um sistema gnosiológico idealista – este Deus não passa de uma projeção mental, isto é, de um momento apenas do pensamento em marcha. Muito antes, tudo o que se disser da ontologia do ente, ainda que válido, tem apenas uma validade no interior da mente. Até mesmo haveria uma validade da religião, mas que seria interpretada apenas como um procedimento mental puro. Para o idealismo há todas estas coisas, mas reinterpretadas. O conteúdo é diferente para o realismo. Importa, por conseguinte, como pressuposto remoto da religião, determinar-lhe a situação gnosiológica. Sem isto trata-se-á de uma religião ingênua.

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455. Racionalismo e empirismo em religião. Acima foram citados o idealismo e o realismo enquanto que dividem as opiniões sobre a realidade e a idealidade do objeto. Mas ainda é de notável repercussão o divisor entre racionalismo e empirismo, que dizem respeito sobre a validade da capacidade operacional da mente. Enquanto o racionalismo admite a validade da progressão meramente raciocinativa do pensar fundado apenas nos princípios gerais, o empirismo se limita à validade do experimentalmente alcançado. Em conseqüência o racionalismo pode avançar até Deus, porque admite a validade desta progressão, e o empirismo permanece no agnosticismo do "não sabemos", porque não admite a validade da progressão racionalista, limitando-se ao experimental, o qual não logra levar até Deus. Dentro do próprio racionalismo há níveis de pensamento, em que alguns atingem Deus, e outros não. Estes outros, - como já se advertiu ao se distinguir entre idealismo e realismo, - o alcançam apenas como projeção meramente ideal do espírito. Concluindo, sobre os pressupostos gnosiológicos mais remotos da religião, cabe-nos estar sempre atentos sobre o conteúdo efetivo do conhecimento. Ali se decide por primeiro a respeito da realidade como um todo. Sendo a religião uma atitude diante do todo, uma posição crítica sobre o todo principia a definir-se no momento em que a gnosiologia define, o que efetivamente se apresenta a nós a título de conteúdo do conhecimento.

456. A ontologia, ou metafísica do ente, examina o objeto do conhecimento, atendendo a este objeto em si mesmo. Já discutida a objetividade simplesmente, - o que era tema da gnosiologia, passa-se ao novo momento da mesma questão geral do ente, sobre a sua mesma natureza. Continua, pois a questão da preliminar sobre o ser simplesmente, antes que cheguemos nos princípios do ser. Na ontologia continua a ser destacada a realidade como um todo, isto é, simplesmente como ente, e não como este ou aquele ente particular, como o ente da física e o ente da psicologia. Uma coisa é tratar do ente, e outras tratar dos setores especificados do ente.

457. Entre ente da metafísica e ente como universal metafísico (ou ente como tal). Sobre a noção de metafísica importam algumas subtilidades, começando pela distinção de ente da metafísica, ou seja do ente como um dado (como objeto material do qual a metafísica vai tratar) e ente como sendo o respectivo universal metafísico, dito dos entes enquanto contêm um substrato comum a todos eles; a este universal metafísico se diz também, ente como tal. Importa bem fazer a distinção entre ente da metafísica e ente como universal metafísico (ou ente como tal), porque os primeiros princípios (vd), que embazam as provas da existência de Deus, dependem do universal metafísico (ou seja, do ente como tal). Ao se falar em ente da metafísica (ou ainda em ente da gnosiologia e ente da ontologia) o contexto é o do ente de que ela trata como seu objeto de estudo. Então se trata do ente como dado a ser examinado, qualquer seja o resultado a que se chegue. A ontologia se ocupa do ente como um dado, do qual, em um segundo tempo, extrai a perspectiva de totalidade, e que vai ser o universal metafísico. Trata, pois, a metafísica o ente como um dado que se apresenta de primeiro intuito; sob esta perspectiva os dados primeiros do conhecimento ainda não estão elaborados, e passam a neste primeiro intuito a serem considerados simplesmente sob a perspectiva inicial de serem simplesmente uma coisa. O objeto da ontologia é o de coisas concretas, tal como são concretas as coisas de que tratam as demais ciências particulares. Diferentemente, o ente como universal metafísico (ou ente como tal) não é o ponto de partida, mas um possível ponto de chegada; uns pensam chegar lá, outros querem que isto não será possível. De imediato não discutimos se é possível chegar lá; apenas queremos destacar a diferença entre o ponto de partida e a hipótese do universal metafísico. Acontece um equívoco, quando se dá como objeto da metafísica o ente como tal (no latim escolástico ens ut sic), que seria um ente universal, extraído dos entes particulares por indução, tal como se formam os demais universais por indução. Por equívoco, dá-se como objeto da metafísica, o que já é seu resultado (aliás admitido por uns, e não por outros). Como se advertiu, - e se deve insistir nesta advertência, - o universal metafísico, não é o ponto de partida da metafísica, mas um ponto de chegada possível. Depois de atingido o universal metafísico, - com uma suficiente

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fenomenologia deste passo, - poderá haver um prosseguimento da viagem, criando-se então uma vasta metafísica, como sobre-estrutura montada sobre o ente metafísico. Mas para quem não admite sequer a chegada ao universal metafísico, resta sem fundamento tudo o mais que equivocadamente se tenha criado a partir dele. Portanto, no que se refere ao ponto de chegada, poderão discordar os resultados obtidos pelos diferentes filósofos. Os empiristas não admitem haverem chegado a um ente metafísico (universal metafísico), ao passo que os racionalistas querem ter chegado a este ente metafísico, ainda que uns o digam meramente ideal, e outros o digam efetivamente fundado ontologicamente.

458. A distinção acima reclamada deve apoiar-se no contexto, quando a terminologia diferenciada não parece garantir a clareza. Resumindo, o ponto de partida da ontologia está em todos os entes concretos situados diante de nós, - como este papel, este ferro, aquele homem, etc., - dos quais se trata do ponto de vista da totalidade, enquanto simplesmente todos existem ali. Quando se diz que a metafísica trata dos entes na sua totalidade não se diz ainda que do universal metafísico, mas da totalidade dos entes como dados concretos. Uma outra distinção, - a que ocorre entre a metafísica e as filosofias sobre seres particulares, como os físicos e psíquicos, pode de novo trazer dificuldades terminológicas. A metafísica trata dos seres como dados concretos, todavia no que apresentam simplesmente como ser. E as outras tratam destes mesmos seres, enquanto oferecem pontos de vistas menos gerais, ou seja, especiais. Posto, por exemplo, um livro, nele a física examina apenas as propriedades físicas deste objeto; a história, o tempo de sua composição; a arte literária, seu caráter como expressão de pensamento, e assim por diante; nesta mesma linha também a metafísica faz uma pergunta sobre este livro, simplesmente como ser. Mas o curioso é que tais palavras como ente, coisa, objeto são tomadas da própria ontologia e pertencem especificamente às ciências particulares. Sendo a ontologia uma ciência abrangente, sua terminologia pode passar, por empréstimo, às ciências menos gerais. Por isso mesmo as ciências menos abrangentes não têm sentido pleno sem as mais abrangentes. As ciências empíricas não funcionam sem a matemática. Nenhuma ciência consegue funcionar sem a lógica e sem a metafísica. O objeto formal, isto é, específico, ou essencial, é o preciso ponto de vista do qual se ocupa uma determinada ciência. É o ponto de vista. É o enfoque. Pelo visto, são várias as expressões que nos permitem advertir para a área de uma ciência. No caso da metafísica, ou ontologia, o enfoque é a entidade do ente. Ou seja, do ente como ente.

459. Duas espécies de abstração, total e formal. O universal metafísico é obtido por abstração, e que podem ocorrer em dois planos. Primeiramente, a abstração se faz das formas aos indivíduos. Uma vez obtida esta abstração da forma aos indivíduos, ela pode redividir-se sobre si mesma. O ente metafísico primeiramente é abstraído a todos os indivíduos concretos. Até aqui temos o ente como tal (ens ut sic). Depois, este ente, - já abstrato, - poderá redividir-se nos modos gerais do ente (ditos também transcendentais) e nos modos especiais do ente (estes especiais denominados também categorias do ente). Mas o ente resultante da universalidade criada pelo raciocínio indutivo se diz ente universal, ente metafísico (não ente da metafísica) ente como tal (ens ut sic), ente por abstração total (isto é, por abstração da forma aos indivíduos). Colocando o que entendemos por ente (ou saber) ao definirmos a metafísica, ou ontologia, podemos passar a defini-la, com mais segurança e trata-la sem equívocos. Não obstante, o caráter sutil das noções nos obriga a constantes repetições didáticas de exposição.

460. A entidade é sobretudo a existência do ente, mais do que sua essência. Mas, não há existência, sem um modo de existir, e que se diz essência. Podemos, por alargamento semântico, dizer que a entidade é a essência do ente, se em essência incluímos sua existência. O mais característico do ente é o fato mesmo de que precisa existir, antes de assumir este ou aquele modo de existir. O modo de sua essência. Por isso, a palavra essência tem de ser usada com cuidado contextual, ao afirmarmos que a ontologia é a ciência que trata da ciência do ente. Mostra-se em ontologia que a essência do ente inclui sua existência, e de que modo isto se dará diferentemente em Deus e nas demais espécies de ente. Por isso, para definir a ontologia se descobre, que dizer diretamente "entidade" é mais seguro, para não desvirtuar a definição.

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Também se admite definir a ontologia como estudo do "ser do ente". O jogo agora é a distinção entre o verbo no infinitivo e o verbo no particípio; este jogo é mais claro em algumas línguas, como por exemplo o latim, e sobretudo o Esperanto. O ser como infinitivo verbal, indica ação verbal, portanto ao ente enquanto se exerce como ente. Quando se exerce assim como ação, o ente já não é apenas ente, ele é ser, isto é ente em exercício. O ente como particípio é um adjetivo substantivado. É uma determinação, como qualquer coisa que ali está. Mesmo que o particípio substantivado continue um verbo (cujo fundo é ação), esta sua ação verbal não é o destaque, e sim uma qualificação. Diferentemente, o infinitivo verbal é por si mesmo um substantivo de ação. Pelo dito a respeito do modo substantivo e do modo adjetivo do verbo, já se pode perceber, porque se pode jogar, por vezes abusivamente, com as palavras ser, essência, existência. Os existencialistas fizeram este jogo, porque, ao insistirem na existência, a diferenciam da essência. Em filosofia da religião é também possível este jogo, podendo-se mesmo dizer que a essência de Deus é a sua existência (vd). Ou ainda, que a essência de Deus é não ter essência, mas ser existência simplesmente.

461. Importa decidir sobre o universal metafísico. Apesar de não se definir a metafísica, ou ontologia, pelo universal metafísico, ela deverá decidir sobre se este universal metafísico ocorre. Sobre este universal metafísico se fundam os modos transcendentais e finalmente os primeiros princípios, utilizados na argumentação silogística. Chegamos agora ao momento, em que importa decidir:

- Existe este universal metafísico?

- Se existe, em que condições precisamente?

Há metafísicas como a existencialista, sem universal metafísico, porque decidem contra ele. Outras a admitem, mas em deferentes níveis de validade quando ao seu conteúdo; por exemplo, a metafísica aristotélica é do ser real, a de Kant é do ser ideal e portanto inconsistente. Afinal, que decidir sobre a validade das diferentes abstrações? A abstração formal, - como já se definiu, - separa aos indivíduos das respectivas formas (ou seja de suas naturezas). Cada indivíduo possui sua individualidade, que na abstração passa a ser desconsiderada, para ser examinar apenas sua natureza. Subdividindo a forma (ou a natureza), ocorrem abstrações ditas abstrações formais, e que dividem entre si as ciências, porquanto elas passam cada uma a considerar uma distinta abstração, ou ponto de vista. A primeira de todas as abstrações foi a que separou os indivíduos e suas respectivas naturezas. Esta primeira abstração se diz abstração total. É a que por primeiro importa provar. Depois também as demais, afim de que os modos de ser e os respectivos princípios também sejam provados.

462. O problema do universal metafísico parece começar, quando, além da natureza individual de cada indivíduo, desperta a pergunta sobre se as referidas naturezas individuais também se unem em uma universal. A abstração total separa as naturezas de cada indivíduo; mas estas naturezas de cada indivíduo não podem, - sem uma prévia justificativa, - ser consideradas, como se uma única natureza as governasse por igual. Ainda que os indivíduos se multipliquem por igual, não segue necessariamente que eles sejam participantes de uma universal (universal metafísico). Todos conferem na mesma classe, sem que isto importe em uma natureza universal. Efetivamente, na ordem concreta, estes indivíduos permanecem cada qual com sua natureza. O que houve, - até aqui, - foi uma abstração (chamada total), pela qual estes indivíduos passaram a ser considerados apenas em sua natureza, e que eventualmente se mostra igual, em todos.

463. A prova do universal metafísico. A necessidade, que faz reconhecer na universalidade eventual, também uma universalidade efetiva, se prova muito precariamente, todavia suficientemente. Esta prova não se faz a partir da universalidade eventual obtida pela abstração total que retira aos indivíduos simplesmente o que têm de individualidade. Ela se dá antes disto. A prova do universal metafísico está nisto:

- sempre que pensamos, o primeiro em tudo é a noção plena do ser.

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Efetivamente, de acordo com a observação fenomenológica mais acurada, pensar é pensar ser, e não há pensar, senão pensando ser. O verbo ser é o rei posto por si mesmo. Quando se diz que a noção primeira do pensar é o ser pleno, esta plenitude pode estar em parte explícita e em parte confusa (vd 471), requerendo atenções sempre mais acuradas. O universal metafísico é uma destas noções algo confusa no primeiro instante. Pensa-se em termos de verbo ser, e este pensar ser acontece como um desabrochar paulatino, de acordo com a velocidade fenomenológica de cada um. Assim entendido o pensar, - como um pensar pleno de ser, - o universal metafísico não é conhecido após um ser individual sujeito à abstração de sua individualidade; nem o é após uma sequência infinda de seres individuais, com vista de, ao final, praticar uma indução generalizante por sobre o que parece sobrar como geral. Fosse o universal metafísico obtido por uma indução, como aquela que se pratica pelo arrolamento de fatos individuais, não chegaríamos nunca a universal metafísico do ser; esta indução a partir da sucessão de dados, como ela é praticada na ciência, nunca chegaria a um estado definitivo, porquanto valeria somente, enquanto não se encontrasse um fato em contrário. Posto entretanto que sempre pensamos por primeiro em tudo a noção plena do ser, o universal metafísico se torna a lei básica do pensamento, e nada acontece, sem que ao mesmo tempo esteja amparado por esta noção plena do ser. Nem sequer é possível referir-se ao dado individual do ser, sem primeiro entender ao próprio ser. A individualidade parece mais claramente entendida; mas é uma ilusão. O claramente entendido encontrado na individualidade já é o ser metafísico, que conduziu ao individual. Este, - o individual, - foi posto logo a seguir, e foi pensado a partir do ser pleno, surgido como dado primeiro da operação do pensar. Quando o empirista parece estabelecer sua doutrina da exclusividade do empírico, já bem antes usou da noção plena do ser. Assim também o cético, ao estabelecer que nada se sabe ao certo, - efetivamente já percorreu o caminho inicial do ser do primeiro instante metafísico, onde tudo começa.

464. O ser como universal metafísico é um problema que se levanta não só para os seres em sua totalidade numérica, como acontece na metafísica geral. Ocorrem também as aplicações particularizantes, em que a lei do mais geral se irradia para dentro de todas as particularidades. Mesmo na lógica da indução científica, - na qual se ordenam os fatos particulares sob afirmativas mais gerais, e que se denominam explicações científicas, - a lógica do ente metafísico sempre se impõe. Não se entendem ali a evidência e a verdade, senão a partir do ser metafísico. Dentro da própria filosofia, onde em princípio está a morada do ser, as mais diversas redivisões se procedem obedientes ao ser metafísico, que ali comparece pelo procedimento das aplicações e derivações. Tudo se processa determinado por aquele arquétipo. Tudo o que se disse poderá influenciar radicalmente questões como os da religião. Pelo visto, em ontologia é preciso marchar com muito cuidado, desde os seus primeiros instantes. Sem este cuidado, a filosofia da religião poderá assumir rumos distintos como consequência destes pressupostos de base. Com muito cuidado, a religião poderá elevar-se às suas verdadeiras alturas, deixando as baixadas ingênuas, embora bem intencionadas, dos proselitistas.

II – ESSÊNCIA DO SER.7270y465.

466. O existir é a realidade básica do ser, mais do que a sua essência (ou modo de existir). No momento em que passamos a atender ao seu modo de existir, começa a questão de sua essência. Atender a esta passagem de perspectiva é o momento crucial do pensamento, onde tem começo um processo, que é preciso saber conduzir. Da essência decorrem os detalhes, que são os modos de ser os primeiros princípios. A linguagem sobre o existir e sua essência muito varia, e então importa atender ao contexto. Habitualmente usamos como eminentemente geral o termo ente, e a este redividimos em existência e essência. Nesta redivisão do ente está a existência em primeiro lugar, vindo logo a seguir a essência, os seus outros modos e princípios usados na argumentação.

467. Que é o ente, basicamente? O ente é uma noção que não tem outra anterior, pela qual pode ser esclarecida.

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Tem de ser conhecido diretamente, por intuito primeiro. E de fato assim acontece, não havendo pensamento, sem que sempre se pense plenamente o ser (vd 463). É possível que nem tudo seja atingido de primeiro intuito claramente no ser. Mas, ao menos confusamente ele contém tudo o que com posterioridade dele se extrai. O que por primeiro se impõe, ao revelar-se o ente, é a sua presença, e que chamamos existência. O ente surge como objeto existente, antes de tudo. Esta situação presencial condiciona tudo o mais e não é condicionada por outra qualquer coisa que se revele, ao se tornar conhecido o ente. A existência também se diz duração. Esta é a propriedade em virtude da qual a existência permanece. A prova, de que o ente é basicamente existência, é uma verificação de evidência explicita. Impõe-se simplesmente. E não há outra maneira de abordar a questão, para definir a situação básica do ente. Portanto o ente é existência. Nesta condição tudo o que existe é ente. O não existente não é ente: é o mesmo que o não ente.

468. Que é essência?. Inclui a existência o modo de existir, chamado essência do ente. Não existe o ente, sem que exista de determinada maneira, fisionomia, forma, figura, esquema, quididade, modo de ser... Em abstrato, esta determinada maneira de existir, veio a ser denominada essência. Define-se, pois a essência como o modo de ser do existir. Ou simplesmente, a maneira de ser do ente. A essência de um ente seria, portanto, a respectiva maneira de ser. Pela forma verba, diz-se também que a essência é aquilo que o ente é. Este é, não é senão um modo do de ser do existir Assim decorre que, para responder integralmente à pergunta, - que é o ente?, - se deve responder que o ente é o que de algum modo existe. O ente é o que tem existência e possui uma essência. A entidade do ente é existência e essência. Passemos a alguns detalhes, seja dos nomes da existência e da essência, seja das relações entre existência e essência, para decidir se são partes complementares, e portanto separáveis, ou se as vezes não o são.

469. Etimologicamente existência e essência derivam de fontes distintas, o que garante uma certa distinção dos dois elementos básicos da entidade do ente. As dificuldades sempre se oferecem pelo lado da existência, porque conhecemos atendendo mais ao modo do existir, que ao mesmo existir. Por esta razão nos inclinamos a compreender a existência à maneira de essência (per modum essentiae). Existência (do latim ex-sistêntia) significa algo que tem origem (ex-significa origem) e que se mantém (sistêntia de si-stere = reter, estabelecer). A raiz dominante é sta- (no indo-europeu com o sentido básico de estar de pé). Assim aparece no latim em stare (estar de pé). No latim, mas sobretudo nas línguas neolatinas, o tempo conserva o sentido existentivo, de algo que tem origem, e se mantém existindo, e que em determinado momento poderá deixar de existir. Em "está quente" e "é quente", aparecem as duas modalidades, a existentiva e a essencial, de se fazer referência a algo, seja pelo seu mesmo existir, seja pelo seu modo de existir. Essência deriva de outra radical, de menor conexão com a idéia de existência e muito mais com o modo de ser do existente. Deriva da radical indo-européia, es – com, o sentido de ser, como no verbo ser (esse, no latim). Por isso mesmo, sua acepção básica é modal e qualificante, como se observa no juízo, que predica o sujeito. No latim, a forma vigente foi esse (ser, no infinitivo) e não ens (sendo, no particípio). Da forma vulgar essere (ainda hoje mantida no italiano), derivou ser, em português. Em ambos os casos ocorreu a substantivação, como em "o ser" e "o ente". A forma participial latina ens (de que o genitivo é entis) teria sido utilizada a primeira vez por César (na informação de Prisciano), sob a alegação de que o verbo esse poderia ter o seu particípio ens, tal como já o possuíam os seus compostos, entre eles posse, que o tem em potens. Outros (como Quintiniano) atribuem a iniciativa ao retor Sérgio Flávio (Cf. Foceline, Totius latinitatis lexicon, no verbete ens). Em vista da ação, que a forma participial indica, passou ens (ente) a ter um significado mais concreto, tanto como verbo, como na posição de substantivo. Por isso, ser é mais próximo de essência e ente mais de existência. Dali o perguntar pelo ser da existência, ou pelo ser do ente, como equivalente de essência do ente e essência do existir. A inversa não teria sentido, como existência do ser e existência da essência estas últimas maneiras de expressar somente se validam, porque usadas assim sofrem uma alteração semântica que as coloca dentro de um novo contexto.

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III - MODOS GERAIS DO SER.7270y470.

471. A partir dos modos gerais do ser os princípios decorrentes. Chegamos finalmente à pergunta direta sobre os modos gerais do ser, a partir dos quais iremos aos princípios decorrentes. Estes modos gerais se dizem do ente com universal metafísico, ou seja, do ente como tal. Suposto o ente universal, este oferece modos de ser, a partir dos quais finalmente se vão conhecer os princípios do ser, com os quais se estruturam as provas silogísticas da existência de Deus. As provas da existência de Deus são de alto comprometimento e devem estar atentas aos seus pressupostos remotos situados nesta parte da ontologia, referente aos modos gerais do ser e nos princípios deles derivados. Uns e outros têm o mesmo valor que anteriormente houver sido atribuído ao ente metafísico ao ente metafísico e respectiva essência. Se se tiver dado valor efetivo ao ente metafísico, poderão seus modos e princípios considerar-se com igual efetividade. As partes valem pelo todo, e o todo é a soma das partes. Para sistematizar aos modos e logo a seguir aos princípios, podemos começar,

- ora atendendo ao ente em si mesmo, e o dividindo em existência e essência,

- ora atendendo ao ente em comparação, e o redividindo em absoluto e em relativo.

472. Modos gerais do ser: a. Em função ao ente em si mesmo e sob o ponto de vista da existência, o ente se diz coisa (res, no latim).

Sob esta perspectiva o ente é realidade. b. Em função ao ente em si mesmo e sob o ponto de vista da essência, o ente se diz algo (aliquid, no latim).

Sob esta perspectiva o ente se delimita, como sendo isto e não aquilo. c. Em função à comparação e sob o ponto de vista da existência, o ente se diz bom (bonum, no latim).

Nesta comparação o ente surge como um valor que convém existir; quando de acordo, realiza a bondade ontológica.

d. Em função à comparação e sob o ponto de vista da essência, o ente se diz verdadeiro (verum, no latim). Nesta comparação o ente surge como um valor ideal; quando de acordo, realiza a verdade ontológica.

473. Deus realiza os modos gerais do ente de maneira eminente. Por isso é:

- em função ao ente em si mesmo e a existência, Deus é a coisa, ou res máxima, ou seja a realidade máxima (existência plenamente eterna);

- em função ao ente em si mesmo e a essência, Deus é algo, ou aliquid máximo, ou seja, é a si mesmo plenamente (essência intensivamente infinita), sem ser nada do que não é divino.

- em função à comparação, e sob o ponto de vista da existência, a Deus convém ao máximo o seu existir, realizando a totalidade da bondade ontológica (a santidade);

- em função à comparação, e sob o ponto de vista da essência, a Deus convém ao máximo a sua verdade, realizando plenamente a verdade ontológica (a perfeição).

Didaticamente, importa dizer que, por parte de Deus, a realização eminente dos modos gerais do ser é apenas uma antecipação sobre sua noção (vd 493). Requer-se ao mesmo tempo provar sua existência, e para isto precisamos buscas nos modos gerais do ser os princípios para gerar as provas.

IV – PRINCÍPIOS GERAIS DO SER.7270y474.

475. Princípios são afirmações inarredáveis e que fundam nos modos gerais de ser, e em última instância no universal metafísico do ente. Precisamos mostrar como se processa este basamento sobre o ser, e como os princípios se multiplicam a partir dos modos do ser, para finalmente usa-los legitimamente numa argumentação sobre Deus.

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Comparado com o seu contrário, o ser exclui este seu contrário. O ser, por isso, é uno (unum, no latim), isto é, une-se consigo mesmo. Não se une com o seu contrário. Nesta comparação do ser com o seu contrário, apresenta-se o ser na forma de um juízo, que afirma a si mesmo e exclui o contrário. Os juízos, que afirmam o ser em si mesmo e o excluem do seu contrário, se multiplicam pelos modos gerais de ser, em:

Princípio de razão suficiente (referente à coisa, dita do ente enquanto existência);

Principio de não contradição (referente à algo, dito do ente enquanto essência);

Principio de dever ser bom (referente à coisa dita do ente enquanto existência);

Princípio da verdade ontológica (referente à verdade, dita do ente enquanto essência).

Cada um destes princípios pode ingressar em derivações. Por exemplo, o princípio de causalidade é uma derivação do princípio mais geral da razão suficiente.

476. O que importa para a filosofia da religião não é em primeiro lugar como se ordena o quadro geral dos primeiros princípios e derivados, mas sua fundamentação. Apoiados no ente como universal metafísico, dependem, pois, do nível de validade que se atribui a este ente. Uma vez feita a justificativa dos princípios, poderão eles ser utilizados como premissas nas provas da existência de Deus. Sem esta justificativa, caem todos os referidos argumentos. Kant, por exemplo, que reduziu aqueles princípios a meras elaborações da razão pura, na qual ditos princípios não passam de juízos sintéticos a priori, reduziu à inanidade os referidos argumentos (vd 368). Depois de eliminadas as vias até Deus através dos princípios, somente resta apelar às vias alógicas. Foi o que fez o mesmo Kant, ao estabelecer a Deus através da razão prática (vd 369). O mesmo tentaram outros por vias místicas e análises fenomenológicas da experiência pessoal. Também estes caminhos deverão finalmente ser discutidos e levados a uma decisão pró, ou contra.

ART. 2-o. FATOS A EXPLICARPELA EXISTÊNCIA DE DEUS.

7270y477.478. Ordenamento das provas da existência de Deus. Aparentemente ocorre uma certa desordem no elenco das provas dadas até para a existência de Deus. Algumas se reduzem às outras. Depois de catalogadas, é possível distingui-las em provas a priori e provas a posteriori, Sob outro ponto de vista, poderão ser distinguidas também em provas racionais (da razão objetivizante) e provas subjetivas (do pensamento alógico). Mas, todas as provas subjetivas são redutíveis à classe das provas a posteriori. Desde Kant, sobretudo na tradição kantiana, se entende por conhecimento a priori aquele que logicamente não depende de um fato de experiência; conhecimento a posteriori aquele que dele depende. Na tradição escolástica, eram ditas demonstrações a priori aquelas que concluíam do ontologicamente anterior, como a causa para o posterior efeito; ou como a natureza para suas propriedades. Diziam-se, inversamente, demonstrações a posteriori, aquelas que concluíam do ontologicamente posterior, como a propriedade ou o efeito, para a natureza ou causa. O argumento a priori da existência de Deus apresentado por Santo Anselmo (1033-1109) não depende de um fato da experiência e por isso é dito a priori no sentido kantiano da palavra.

479. A inoperante prova a priori da existência de Deus se funda em uma consideração de conceitos, sem apoio em fatos a explicar. Santo Anselmo, depois seguido por Descartes (1596-1650) e Leibniz (1646-1716), pretendeu extrair do conceito de perfeição, a necessidade da existência de Deus: o mais perfeito existe. "O insensato tem que convir que tem no espírito a idéia de um ser acima do qual não se pode imaginar outra coisa maior...

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E, sem dúvida alguma, este objeto acima do qual não se pode conceber nada maior, não existe na inteligência somente, porque, se assim fosse, se poderia supor, pelo menos, que existe também na realidade, nova condição que faria a um ser maior que aquele que não tem existência mais que no puro e simples pensamento. Por conseguinte, se este objeto por sobre o qual não há nada maior estivesse somente na inteligência, seria, contudo, tal que haveria algo acima dele, conclusão que seria legítima. Existe, por conseguinte, de um modo certo, um ser acima do qual não se pode imaginar nada, nem no pensamento, nem na realidade. O que assim existe, não se pode cogitar que possa não existir... Existe, portanto, verdadeiramente um ser por cima do qual não podemos levantar outro, e de tal maneira que não se pode sequer pensá-lo como não existente; este ser és tu, Senhor Deus meu" (Anselmo, Proslógion c.2-3). Rejeitaram o argumento a priori da existência de Deus, Tomás de Aquino e Kant, como um trânsito impossível do lógico, para o real. A prova a priori, se assemelha contudo a uma das provas a posteriori, a que se apóia no princípio de que o grau inferior de perfeição requer o grau seguinte, e assim até o Máximo; ora, como o grau inferior de perfeição é um fato, existe também o máximo (Deus). É pois a prova a priori uma espécie inacabada de prova a posteriori (= veja n 225).

480. As provas a posteriori, da existência de Deus, e que usualmente se consideram viáveis, se estruturam com a alegação de um fato concreto, interpretado em função a um princípio geral. Através deste princípio, o fato reclama uma explicação que, finalmente, se dá, mediante a aceitação de uma razão de uma extrínseca, - Deus. Os fatos alegados, com maior procedência e mais ou menos irredutíveis entre si, são cinco na seleção de Tomás de Aquino, de onde serem cinco as provas de existência de Deus alegadas. Chamam-se também "cinco vias", em vista da imagem que nos dão de cinco caminhos que conduzem ao alto. Pela ordem com que os tratou Tomás de Aquino, são as abordadas a seguir.

481. 1-a Via para Deus: prova pelo movimento. Do movimento, como um fato não explicável, por si mesmo, se infere a existência de Deus, na condição de motor imóvel, e que move. Já Platão reclamava um Demiurgo como causa do movimento do mundo (vd 216). Mas apenas em Aristóteles o argumento ficou claro (Física 266a 5; Metafísica 1072a 25) (vd 225). Nova formulação receberá do Tomás de Aquino, que o colocou o argumento de Deus como Primeiro Motor, também como 1-a. via. Começa, colocando como primeira premissa o fato a explicar, - o movimento; a seguir alega o princípio de que o movimento supõe um motor imóvel inicial. Dali conclui para Deus, como sendo o referido motor imóvel: "É certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo [fim da primeira premissa]. Ora, todo o movimento por outro o é [segundo premissa, da qual segue a prova]. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato; assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira, cálido potencial, em cálido atual, e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois cálido atual não pode simultaneamente ser cálido potencial, mas é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois, tudo o que é movido há de sê-lo por outro. Se, portanto, o motor também se move, é necessário seja movido por outro, e este por outro. Ora, não se pode assim proceder até ao infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por conseqüência, outro qualquer; pois os motores segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. [Segue a conclusão] Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus" (Suma teológica, P. I, Q.2, a.3, trad. de A. Corrêa). A prova, da 1-a, via se funda, portanto, no princípio: o móvel é movido em última instância por um motor imóvel. E no fato sem explicação em si mesmo: o mundo é móvel. Conclui. O mundo móvel é movido, em última instância por um motor imóvel.

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482. As contestações feitas ao argumento da 1-a via para Deus, incidem contra a universalidade absoluta do principio, de que móvel é movido, em última instância, por um motor imóvel. Os platônicos, não atentos à teoria do ato e potência de Aristóteles, concebiam a alma como capaz de mover, sem ser movida e sem ser infinita como Deus.

483. 2a Via para Deus: prova pela subordinação essencial das causas eficientes. Procede-se da causa eficiente (com ação sobre o ser das coisas), fato que ocorre sem ter em si a explicação. Deve, então, o fato ter a explicação em outro, que surge como causa primeira não causada. Texto de Tomás de Aquino: "Descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível, que uma coisa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma, o que não pode ser. Mas é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito: pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média, e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e, como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média, nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus" (Suma teológica I,2,3).

484. As dificuldades apresentáveis contra a 2-a via de acesso a Deus se situam na circunstância de que a relação de causa e efeito não seria um fato diretamente constatável. O que observamos diretamente é a sensação e não a causação. A partir dali a prova começa a sofrer suas primeiras dificuldades. O empirismo, sobretudo a partir de David Hume (1711-1776) (vd 386), adverte contra o princípio de causalidade. E assim outros e outros, por exemplo Immanuel Kant (1724-1804), que reduziu este princípio a uma categoria a priori do entendimento, de onde resultava que o Deus para o qual concluía, não passava de um Deus-idéia (vd 368). A defesa da 2-a. de acesso a Deus envolve em primeiro lugar uma prova direta do mesmo princípio de causalidade. Com mais detalhe, uma resposta às objeções de Hume e Kant, fundados respectivamente a teorias gnosiológicas por eles defendidas.

485. 3a Via para Deus: prova pela existência de seres contingentes. Apóia-se este argumento em Avicena (980-1037) (vd 222), retomado por Tomás de Aquino, no fato de que há coisas contingentes, cuja natureza não apresenta razão suficiente do seu existir em si mesmas. Em virtude da universal exigência da razão suficiente, deverão ter esta razão de ser em outro. Na apresentação de Tomás de Aquino: "Vemos que certas coisas podem ser e não ser, podendo ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres de tal natureza, pois o que não pode ser, algum tempo não foi. Se, portanto, todas as coisas podem não ser, algum tempo nenhuma existia. Mas, se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria, pois o que não é só pode começar a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir, e portanto, nada existiria, o que, evidentemente é falso. Logo nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário, ou tem de fora a causa da sua necessidade, ou não tem. Mas não é possível proceder ao infinito, nos seres necessários, que têm a causa da própria necessidade, como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde, é forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros; e a tal ser, todos chamam Deus" (Suma teológica I, 2,3).

486. Contestando à validade da 3-a via de acesso a Deus, alega-se ser difícil mostrar que o mundo como um todo seja contingente. A contingência é um conceito meramente inteligível e não percebido diretamente como um fato. Não sabemos se o mundo certa vez tenha desaparecido, para poder dizê-lo contingente. E e assim também não temos notícia, que efetivamente algum dia tenha começado. Importa, portanto, ponderar, como se o mundo nunca tenha desaparecido e que nunca tenha começado. Neste condicionamento, não temos como claramente estabelecer a contingência do mundo como um todo.

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Embora admitido o princípio da razão suficiente, não é a primeira vista claro, que o mundo como um todo não tenha em si mesmo esta razão suficiente. Além disto esta prova chamada da 3-a via se reduz à segunda; ou inversamente, a 2-a via parece redutível à terceira. Então, o princípio de causalidade seria apenas uma derivação do princípio de razão suficiente.

487. 4a Via para Deus: prova pelos graus de perfeição dos seres. Um fato como a diversificação dos entes em graus, - como seja a multiplicidade, a composição, a imperfeição e outras variadas determinações, - pode oferecer uma consideração situada no plano da contingência. O fato de haver graus no ente, que se diversifica, é um acontecimento gratuito e que não se explica por si só; o fato deverá buscar sua razão de ser num ente liberado desta situação, e que seja infinito. Um ser assim é Deus. O que se diz dos graus de perfeição, é dito da forma constitutiva do ser. Por isso, o argumento se diz da causa formal. Texto de Tomás de Aquino: "Encontram-se nas coisas, em proporção maior e menor o bem, a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora, o mais e menos se dizem de diversos atributos enquanto se aproximam de um máximo, diversamente; assim o mais cálido é o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto, algo verdadeiramente ótimo e nobilíssimo e, por consequente, maximamente ser; pois as coisas maximamente verdadeiras são maximamente seres, como diz o Filósofo (Aristóteles em o II livro da Metafísica 1,2). Ora, o que é maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um ser, causa do ser, e da bondade, e de qualquer perfeição em tudo quanto existe, e chama-se Deus" (Suma teológica, I, 2,3).

488. O Argumento embazado nos graus de perfeição está condicionado à possibilidade da infinitude. A importância do argumento apoiado nos graus de perfeição, ou seja na forma do ser, está em que ele conduz ao conhecimento da infinitude de Deus (vd 528). Se pudéssemos provar ser impossível a infinitude de Deus, cairia também o argumento dos graus de perfeição levados ao infinito. Mas, parece não haver senão que admitir a infinitude. Semelhantemente, importa provar a possibilidade intrínseca da criação, para se poder perguntar por um Criador, ao modo do contexto do dualismo metafísico.

489. 5a Via para Deus: prova pela ordem do mundo. Por último a multiplicidade dos seres oferece mais um fato não explicado em si, a saber a ordem. O finalismo do mundo, reclamando uma justificativa, conduz mais uma vez a pensar em um ser superior, Deus. Texto de Tomás de Aquino: "A quinta [via] procede do governo das coisas. Pois vemos, que algumas, como os corpos naturais, carecentes de conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui de operarem sempre, ou frequentemente do mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta, que chegam ao fim, não pelo acaso, mas pela intenção. Mas os seres sem conhecimento não tendem ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e inteligente, como a seta pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente, pelo qual todas as coisas se ordenam ao fim e a que chamamos Deus" (Suma teológica, I, 2,3).

490. As dificuldades da verificação do finalismo inteligente, - ainda que o finalismo seja um argumento representativo na prova da existência de Deus, - importa em muitas dificuldades. Ele requer o argumento requer o afastamento preliminar de todas as outras explicações. A unidade da natureza pode explicar muitos fenômenos maravilhosos. O processo de seleção natural muito explica, e mesmo este processo de seleção se reduz em última instância à lei da unidade da natureza. Constata-se facilmente o finalismo da natureza. A unidade dos impulsos sob medida produz efeitos sempre iguais e que finalmente dá a impressão inversa de finalismo. A proporção entre causa e efeito explica a ordem das coisas, sem um apelo imediato a um finalismo de orientação externa.

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De outra parte, é possível tentar reduzir as leis naturais a um finalismo último, e que importe então a um ser inteligente absoluto, Deus.

491. O acesso imediato a Deus pela via do conhecimento subjetivo é, em princípio, operacionalmente possível, mas requer prova adequada. Operacionalmente, a via de acesso a Deus a partir do indivíduo pode ser interpretada como ocorrendo, ou naturalmente, ou sobrenaturalmente. Entende-se um conhecimento subjetivo natural de Deus, se ele ocorre a partir de algo existente no mesmo indivíduo, de cuja análise ele segue até Deus (vd 438). Tal é, por exemplo, o modo de entender do fideísmo, por exemplo de Schleiermacher (vd 379), do modernismo (vd 434), dos mais diversos misticismos, como o de São Boaventura (vd 294f), de Nicolau de Cusa (vd 311) de vários intuicionismos (vd 423). O conhecimento subjetivo sobrenatural de Deus é aquele que se interpreta como vindo por comunicação direta daquele outro lado. Assim o entendem os que se dizem haver recebido revelações, tais como os profetas e visionários de toda a espécie quando apresentam o que viram e ouviram como mensagem enviada por Deus.

492. Difícil provar o acesso imediato a Deus, como asseveram os visionários, os místicos, os fideístas e toda a espécie de intuicionistas. Apesar da credibilidade fácil que se tem operado nesta área da religião, referente ao acesso a Deus pela via do conhecimento subjetivo, - seja natural, seja sobrenatural, - é contudo difícil mostrar que tal via de acesso a Deus ocorra. Contudo, é por este caminho de acesso a Deus pela via do conhecimento subjetivo, que operam costumeiramente as religiões tradicionais. Por isso mesmo, elas se apresentam tão inseguras. Juntadas todas religiões deste caráter, elas se constituem de uma vasta parafernália de crenças, entre si discordantes, todavia analógicas, porquanto dizem mais ou menos as mesmas coisas, por caminhos diferenciados. Uma filosofia da religião seriamente conduzida, deve exigir sempre as provas muito bem conduzidas, sempre que se trate de doutrina sobre Deus, que se funde na subjetividade, quer natural, que sobrenatural. Quer se trate da mensagem dos intuicionistas (vd 421), quer dos existencialistas cristãos (vd 416), quer dos modernistas (vd 433), quer dos fideístas (vd 379), quer ainda dos dos místicos, quer dos visionários, quer dos que se dizem profetas de Javé, ou profetas de Alá, ou de quem se diga Filho de Deus, - nenhuma destas mensagens será legítima, sem a mais efetiva prova (vd 438). Aos fenômenos das experiências religiosas subjetivas não se pode dar imediatamente a interpretação de reveladores do mesmo Deus. Os que se apresentam como profetas e receptadores de revelações, - não basta que digam serem tais. Precisam provar estritamente o que dizem, já que se sabe que as perturbações psíquicas podem ocorrer. Os visionários, os mais diversos, inclusive fundadores de religiões, podem não ter sido mais que vítimas de perturbações psíquicas, até mesmo do fenômeno de dupla personalidade. Sempre que se trata de informações antigas, - como é o caso dos escritos sagrados de um grande número de religiões, - há o problema da integridade com que se transmitiram. Além disto, quem nos garante que ditos homens bem intencionados não foram vítimas de falsas impressões? Poderão até ter sido epilépticos inteligentes. Paulo Apóstolo, de quem se diz haver caído do cavalo e ele mesmo declara ter tido visões, poderá não ter tido esclarecimento suficiente para julgar sobre o que lhe acontecia. E que dizer dos milagres, aos quais se atribui o papel de confirmação? Geralmente são afirmados simplesmente, sem maior exame. Epistemologicamente, o milagre nunca se consegue levar a uma prova definitiva, porquanto depende de uma indução; ora, é impossível levar uma indução mais além de ser uma hipótese de explicação provável, válida enquanto não surgir um dado em contrário.

CAP. 5SOBRE A NATUREZA DO VERDADEIRO DEUS .

7270y493.

- Filosofia da Religião -

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494. Advertência sobre a dificuldade do tema. A maioria dos que se ocupam com Deus, não sabe sequer aproximativamente como ele verdadeiramente é. Melhor é saber pouco sobre Deus, do que conceituá-lo erradamente. Os que muito falam em Deus, podem estar falando a respeito dele com lamentável errância. O Deus verdadeiro talvez não seja o seu Deus. Importa saber qual é o verdadeiro Deus, para dele fazer o nosso Deus. Devem as religiões cuidar em aprofundar o conhecimento sobre o que Deus efetivamente é. E porque as religiões tradicionais não costuma fazê-lo suficientemente bem, acontece, que a maioria delas são um lixo. Trata-se de uma situação cultural, da qual não há como de imediato se desfazer. Algumas religiões tradicionais, desde a antiguidade clássica, vem tentando fazer a melhoria de seus conceitos, apelando à exegese alegórica dos seus textos sagrados. Um Deus falseado não interessa aos homens. Um Deus que devêssemos desejar que não existisse, este efetivamente não existe. Um Deus adequadamente conceituado, somente este poderá ser candidato a ser nosso Deus. Um outro Deus, só devemos combatê-lo. Didaticamente, sobre a natureza de Deus, ocorre-no perguntar sobre:

as limitações do conhecimento sobre Deus (Art.1o-.) (vd 496); a essência de Deus (Art.2-o.) (vd 512); atributos de Deus (Art.3-o) (vd 520).

ART. 1-o. LIMITAÇÕES DO CONHECIMENTO SOBRE DEUS.7270y496.

497. A natureza de Deus se conhece a partir das provas da sua existência. Estas provas, depois de garantidas, dão a oportunidade, não somente de conhecer a existência de Deus, mas permitem ainda uma progressão no sentido de alcançar algo mais, sobre a sua natureza e ainda sobre os seus atributos. Temos agora uma espécie de inversão da direção dos argumentos, a dizerem o que Deus é:

Motor imóvel, reclamado como gerador do movimento: Causa incausada, reclamado pela série das causas; Ser necessário, reclamado pelos seres contingentes; Ser máximo, reclamado pelos graus de perfeição; Ser inteligente, reclamado para determinador dos fins ordenam o mundo.

A partir destas primeiras noções se desdobra o conhecimento maior da natureza de Deus. Ainda que Deus, - por causa de sua infinitude, - nos escape à apreensão imediata, Ele se nos faz conhecer através das provas que conduzem indiretamente a ele. Retomamos a estas provas, uma a uma, - já não para provar sua existência, - mas para obter mais alguns conhecimentos, agora sobre sua natureza, e depois ainda sobre os seus atributos. Supostas válidas estas provas, elas são, pois, o caminho, - não só para a sua existência, como também para o desvendamento da sua natureza. Duas características se anotam em nosso conhecimento sobre Deus. Ele é:

- por analogia (vd 498); - por predicação imprópria (vd 505).

I – O CONHECIMENTO DE DEUS SE DÁ POR ANALOGIA.7072y498.

499. A primeira característica a ser notada a respeito de Deus, comparado globalmente com os demais seres, é uma aproximação por analogia e não por univocidade. Ainda que sejam ser, existam e tenham certa essência, com propriedades diversas, ambos – Deus e o mundo – se opõem de tal maneira entre si, que mal se podem comparar. Senão vejamos, seguindo o resultado das provas:

1) De um lado, o ser supremo é imóvel e capaz de mover; De outro, o mundo é incapaz de dar o impulso inicial.

2) De um lado, o ser supremo é causa incausada e causa primeira da série de causas; De outro, o mundo é causado e incapaz de dar o impulso primeiro.

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3) De um lado, o ser supremo é ser necessário e razão suficiente dos seres contingentes; De outro, o mundo é ser contingente e sem possibilidades de exercer sua razão suficiente.

4) De um lado, o ser supremo é ser máximo e explicativo dos seres com graus: De outro lado, o mundo é uma escala de seres limitada a graus e sem condição de estabelecer seus graus simplesmente.

5) De um lado, o ser supremo é ser inteligente e capaz de instituir a totalidade dos fins que ordenam os seres não inteligentes; De outro lado, o mundo é ser não inteligente e com tudo ordenado inteligentemente aos seus fins.

500. Na sequência acima, - que obedece didaticamente à seriação das cinco vias ou provas da existência de Deus,- na qual Deus e os demais seres dele dependentes se situam em planos opostos, que se aproximam apenas pela analogia. Não se encontram, pois, ao nível da univocidade Sobre Deus cabe conceituar, portanto, apenas em forma de conceitos analógicos, quando o conceituamos a partir dos demais seres. É análogo aquilo que em parte é igual e em parte não é. Assim sendo, o análogo permite conhecer o analogado, sem que seja identificado pelas mesmas medidas.

502. Sob o ponto de vista meramente lógico e de terminologia, acontece um jogo de normas e denominações, ao qual é preciso estar atento quando se trata de conceitos que se refiram ao mesmo tempo a Deus e às demais entidades. A analogia faz com que um conceito se refira em parte igual e, em aparte não. É possível operar atento a um aspecto, com desatenção a um outro; se isto acontece em argumentações, poderá conduzir a resultados desconcertantes. Deus é análogo com o mundo, mas não é como o mundo, nem é como o sol, nem como o homem. Similar ao conceito de analogia é o de transcendência. O primeiro é de derivação grega (anà logía), com o sentido de proporcionalidade. O segundo é de formação latina (transcendere = ir além, subindo). Há efetivamente uma proporção (isto é, uma analogia) entre os conceitos, que se referem a Deus e aos demais seres, ainda que não se situem no mesmo plano de univocidade. E assim acontece também uma ultrapassagem (isto é, uma transcendência), quando se passa dos conceitos dos seres limitados para o de um ser situado na inversão, como imóvel movente, incausado causante, e assim por diante.

503. Para os que provam a Deus por vias subjetivas, - como os que operam pelo misticismo, pelo fideísmo, pela subjetividade existencialista, ou mesmo pela revelação que supõem terem recebido, - o problema da analogia e da transcendência continua o mesmo. Chamar-se-á Deus, somente a aquele ser eminentemente diversificado, que mantém apenas analogia com as demais coisas. Mas agora certamente é mais fácil confundir Deus com algo maior que o indivíduo, por exemplo, com o universo, ou mesmo com uma figura humana extraordinária. Tal equívoco acontece com os visionários mais ingênuos, quando, por exemplo, vêem a Deus como se fosse uma grande luz, ou como um pomposo rei sentado em um enorme trono.

II –CONHECIMENTO DE DEUS SE DÁ COM IMPROPRIEDADE.7270y505.

506. A segunda característica a ser notada, na comparação entre os conceitos que se fazem sobre Deus e sobre os demais seres, é o fato de conhecermos com propriedade apenas a estes demais seres. É a partir destes demais seres, que se vai, por cálculo raciocinativo, até Deus. Resta-nos, então, o conhecimento de Deus como impróprio, enquanto os conhecimentos dos demais seres, é próprio. Por exemplo, denomina-se pai em sentido próprio, ao pai terreno, no quadro de uma família. Mas, denominar de Pai, a Deus, já é uma predicação imprópria. O uso da linguagem imprópria é válida, desde que se atenda às diferenças semânticas que distinguem o próprio e o impróprio. Não obstante, a diferença entre a predicação própria e a imprópria agrava o problema da analogia.

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507. O jogo entre o mais e o menos analógico, o mais e o menos próprio dos conhecimentos sobre Deus determina três posições fundamentais em relação à ciência sobre Deus: Radicalmente distante das noções próprias aos demais seres, aproximando-se da equivocidade; Radicalmente próxima, aproximando-se da univocidade; Proporcionalmente igual e diferente, situando-se da analogia média. Comparados os dois níveis de noções, estas são, entre si, ou equívocas, ou unívocas, ou análogas.

508. Aproximando-se da equivocidade, ocorre a tendência platônica, - sobretudo neoplatônica, como a de Plotino, - da distinção radical dos conceitos que tratam das coisas divinas e das não divinas Deus seria praticamente inapreensível. Não teria sequer contato com os seres inferiores, de sorte a se dever estabelecer um intermediário, ou mesmo uma série de intermediários. No alto estaria Deus, como sendo o Uno. Deste derivaria o Logos. Por sua vez, deste segundo derivaria a Alma do Mundo. No âmbito da Alma do Mundo surgiriam as almas individuais e por último, inteiramente degradada, a matéria corpórea. Eis o contexto onto-gnosiológico, em que, com algumas transformações, se formou a doutrina da Trindade, do Deus cristão. Diz-se então que através do Logos, - este interpretado como sendo Jesus, - foi salvo o homem.

509. Aproximando-se da quase univocidade, estabelece-se a posição oposta aos analogistas, no que se refere aos conceitos sobre Deus e sobre os demais seres. Este modo de conceituar se encontra nos indivíduos de menor vigor mental, que com simplismo tratam das coisas divinas, ainda que o possam fazer com muita piedade. Arrola-se aqui também o antropomorfismo que projeta para Deus as imagens humanas. Então Deus é como um homem, mais particularmente um homem de sexo masculino (influência machista), de idade avançada (porquanto dura através dos tempos). Já o filósofo pré-socrático Xenófanes de Colófon (c. 570-475 a. C.) censurava a Homero e a Hesíodo o haverem atribuído aos deuses até mesmo os vícios humanos, como furtos, adultérios, enganos. Os povos primitivos se imaginaram deuses nacionais, dotados de patriotismo, ao ponto de acompanhá-los na guerra e mandar matar seus inimigos. Sua linguagem distingue sempre o nome comum de Deus e o nome pessoal. Este nome pessoal era pronunciado com respeito especial. Para os antigos hebreus Eloim (plural de El) era o nome comum. Javé indicava o nome pessoal, e que não devia ser pronunciado em vão. Ainda nas guerras do tempos modernos, não faltam os de cada lado, que se imaginam que Deus abençoa os seus canhões e espera que Deus receba nos céus imediatamente aos heróis caídos no campo de batalha.

510. Para os analogistas de centro, tudo há em Deus e por isso nada há nas demais coisas, sem que, de algum modo, haja relação com ser divino. Mas ocorrem aqueles aspectos cuja analogia se mantém ao nível do formal e aqueles em que a relação é apenas potencial. A inteligência, por exemplo, existe formalmente também nos seres humanos; a diferença é a elevação ao infinito da inteligência em Deus. Encontram em Deus apenas potencialmente (como seu criador) os aspectos não eleváveis ao infinito, como as perfeições essencialmente limitadas (suponhamos, por hipótese, que sejam essencialmente limitadas as sensações, as cores etc.). Por isso, não podemos dizer que Deus, em sentido próprio, vê e escuta; nem podemos dizer que Deus é colorido, ou que é como uma luz brilhante. Nem existe uma coisa que se diga ser a palavra de Deus, senão em sentido impróprio. Concluindo, sobre o que se refere à nossa limitação no conhecer a Deus, - porque é um ser muito diferente daqueles que conhecemos e em função dos quais nos referimos a ele, - o que importa, por conseguinte, é estabelecer uma doutrina sutil sobre a analogia, para com ela dar tratamento adequado a tudo o que se refere à sua natureza.

ART. 2-o. A ESSÊNCIA DE DEUS.7072y512.

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513. A pergunta sobre a essência de Deus se encaminha a partir das provas de sua existência. Como provas elas ainda não oferecem explicitamente sua essência, mas a implicam. Tais provas, quando se trata das provas, a posteriori, alegam fatos particulares, em cuja base se coloca Deus como explicação. Então este aparece como o imóvel, o incausado, a razão suficiente, o grau máximo, o ser inteligente gerador da ordem universal. Contudo, tais indicativos não chegam a ser a essência mesma de Deus. A expressão "Deus é um ente por si" (ens a se) equivale a "Deus é um ente incausado"; por isso, ela também não se refere à essência de Deus. Na busca da essência de Deus a pergunta se formula assim, - qual é o constitutivo formal de Deus?. Nesta linguagem, o termo formal, significa essencial. Ou, constitutivo formal, o mesmo que constitutivo essencial. No mesmo sentido também se pergunta pela natureza, ou ainda pela natureza específica. A investigação sobre a essência (ou sobre a forma, ou ainda sobre o constitutivo formal, ou sobre a natureza, ou sobre a natureza específica) de Deus deve partir de uma consideração ontológica anterior sobre o ser em geral. O mais geral dos constitutivos do ser é o seu existir. A pergunta sobre a essência de Deus começa portanto pelo seu existir. Mas, usualmente se costuma distinguir entre existência e essência. E então parece paradoxal, que se pergunte pela essência, quando ordinariamente entendemos que a existência seja anterior à essência. Mas o primeiro que se diz do existir é a essência (seu modo de existir). Em Deus poderá não ser o primeiro após a existência, e sim uma coincidência. Então Deus poderá ter como essência a própria existência. Haveria então duas maneiras de existir: a de Deus, em que a essência coincide com a existência; a dos demais seres, em que a existência é determinada aditivamente, diferenciando-se mais profundamente entre si a existência e a essência. Agora, a pergunta se encaminha com precisão: - qual o modo de existir de Deus e qual o modo de existir dos demais seres? Dada uma vez a resposta sobre o modo de existir de Deus, - e considerando que a essência não é senão o modo do existir, no caso o modo de existir básico, - teremos chegado à essência de Deus ou, seja ao seu constitutivo formal, à sua natureza, à sua qualificação específica.

514. A essência de Deus, - ou sua natureza essencial, - encontra-se na existência simplesmente. Importa conceituar esta tese sobre a essência de Deus, para depois devidamente prová-la (vd 518). Ordinariamente dividimos a natureza de algo em existência e essência; então entendemos a essência como o modo da existência, e então este moda determina a esta existência. Quando assim determinado, um ser passa a existir como um tal e tal ser. Assim entendida, a essência significa uma limitação, um tipo de forma, uma feição, uma especificação. Em Deus a essência não pode ser entendida exatamente assim, ou seja como uma determinação limitadora. Em Deus não há limitação, que seja uma tal e tal forma, tal e tal feição, tal e tal especificação. Nada o determina em termos de limitação. É preciso, então conceber a Deus como determinação liberada de limitação. E isto somente é possível se for concebido como uma existência simplesmente liberada a si mesma. A linguagem agora se apresenta paradoxal: Deus é existência sem essência, no sentido de que sua essência é a mesma existência. Neste outro sentido a essência de Deus é não ter essência, quando esta for concebida como determinadora. Deus é uma essência pura, isto é, sem delimitação, sem modo determinado de se exercer. Na linguagem paradoxal da divindade é possível dizer tudo de Deus, desde que se desconte o defeito limitador. Assim Deus é Motor, desde que seja Motor Imóvel (como disse Aristóteles). Deus é Pai, desde que se desconte a limitação que o sentido próprio desta noção contém. Assim por diante, Deus é Mãe, Deus é Homem, Deus é Mulher. O mal desta linguagem paradoxal está em que ela não costuma ser usada com o desconto do defeito que contém. Mas, feito o desconto, ela conduz efetivamente a Deus, porque destaca nele o elemento bom que cada nome poderá conter. Em Deus estão todos os modos, todas as determinações; inclusive estão em Deus as determinações limitadoras, mas agora apenas potencialmente, como capaz de produzi-las. E porque Deus é capaz de produzi-las, lhe é próprio de fato as produzir, criando este vasto mundo, ainda que livremente. Assim acontece, mais uma linguagem paradoxal, - que com os necessários descontos, - é válida: Deus é a Luz; Deus é o Sol; Deus é a vastidão; Deus é a Vida; Deus é o Eros; Deus é a Paz.

515. A essência de Deus como existência liberada ao infinito. A essência em Deus nada delimita, - como já se advertiu. Nos demais seres porém a essência determina limitadoramente.

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Usa-se dizer que a essência é aquilo que é (quid est). Mas este "aquilo que é" facilmente induz a pensar que a essência é um sujeito, que se hipostasia como princípio possuidor. Melhor é dizer, que a essência é o modo segundo algo é. Melhor ainda é dizer que a essência é o modo do existir. Há modos menos fundamentais, que chamamos qualidades, de que não tratamos agora; todavia é na mesma linha da qualidade que se encontra a essência, a qual é um qual... e qual modo de ser, mas dito de um qual... e qual modo de ser fundamental. Chegamos finalmente a um resultado: a essência de Deus é seu modo liberado de existir, o mesmo se diz negativamente, - a essência do ser Deus é seu modo de existir sem determinações limitadas. O existir de Deus dispara ao infinito, numa liberação em todas as direções modais do existir. Deus é dotado de infinito número de modos, porque não se restringe a nenhum deles. Deus é sempre o puro existir, liberado de quaisquer outras determinações particularizantes da essência. Deus é a subsistência. Eis aqui uma outra linguagem, cujo sentido é o mesmo que o da existência pura e simples. Importa distinguir entre subsistência (que é existir simplesmente sem limitações, e existência pura) e existência por si (ens a se, que é um existir incausado).

516. Entre essência de Deus e atributos de Deus. Posta uma essência de Deus, dela decorrem diretamente atributos, dos quais também importa tratar. Em função a estes atributos, diz-se por exemplo, que Deus é infinito, eterno, onipresente, sábio, bom, e assim por diante. Frente à mesma essência de Deus, os atributos não se confundem com ela. O critério de distinção entre a essência de Deus e o atributo é o da dependência. Uma noção que dependa de outra, tem a esta outra como mais fundamental, e se esta de outra, seguimos em frente, até encontrar a mais fundamental, a essencial, a qual então estará provada como sendo a essência (vd 518).

517. Opiniões sobre a essência de Deus. A pergunta direta pela essência de Deus foi colocada principalmente pelos filósofos e teólogos escolásticos. Já os filósofos gregos abordaram a questão da essência de Deus, ainda que de trânsito. Os filósofos cristãos retomaram o assunto e o conduziram a resultados apreciáveis.

a) Platão (417-347 a.C..), por ocasião do mito da caverna e da contemplação das verdades ideais, declarou que Deus é o bem (Rep. 518 b). Os neoplatônicos cristãos, como Pseudo-Dionísio, desenvolverão esta imagem de Deus. Com referência ainda a Platão, importa acautelar-nos, porque sua doutrina sobre as relações entre Deus e o bem não são claras. Contesta que a bondade supõe o ente. A mesma dificuldade ocorre na afirmativa de que Deus é liberdade como essência (Secrétan, Lequier).

b). Aristóteles (384-322 a.C.) concebeu a Deus de maneira dinâmica, destacando-o não somente como motor imóvel que move, mas ainda como pensamento de pensamento (noéseos noésis), mas de um pensamento sempre em ato e não de um pensamento em potência a passar ao ato. Elogiou à Anaxágoras por haver introduzido um ser inteligente entre os elementos de que compõem as coisas. E diz mais: "È claro que ele (o pensamento) é a mais divina de quantas coisas parecem divinas" (Met. 12,9).

c) Tomás de Aquino (1225-1274) destacou a essência divina como sendo sua condição de ser subsistente (esse subsistens), isto é, como existência não limitada por uma essência. Existência e essência são uma só coisa em Deus (sem distinção real); a existência de Deus não é recebida em uma essência; é irrecebida (irrecepta). Duns Escoto (1266-1308) colocou como essência de Deus sua entidade infinita. Esta noção se opõe diretamente ao caráter finito dos demais seres. Para ele a divisão fundamental do ser é finito e infinito. Para Guilherme de Ockham (c.1280-1349) e sua escola nominalista a essência de Deus é a soma de todas as perfeições (cumulus omnium perfectionum). Esta afirmativa está no contexto nominalista, segundo o qual os universais não têm função e os conceitos não se podem derivar uns dos outros no que concerne à essência divina. Escolásticos modernos, como os dominicanos João de Santo Tomás, Gonet, Billuart, defendem com Aristóteles o pensamento como constitutivo formal de Deus. Ainda que admitam seja o ente subsistente, querem que a natureza essencial deste ente subsistente seja exatamente a inteligência em ato.

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518. Prova-se a essência divina como existência subsistente. Neste sentido se mostra que Deus se distingue de tudo o mais pela subsistência e que que esta subsistência não depende dos demais atributos. Aquilo que faz Deus distinguir-se de todo os demais entes é a circunstância de existir sem limitações modais vindas da essência. As demais coisas em primeiro lugar são limitadas pela essência em que se colocam.

a) Com referência aos atributos, como a infinitude, imensidão, simplicidade, etc... decorrem da subsistência, e não vice versa. Em sendo Deus subsistente, passa a ser também infinito, imenso, simples, etc... Na verdade, sendo um existir por si, não se limita, de onde decorre ser infinito, imenso, simples, etc. Designar de outro modo a divindade, que não pela sua subsistência (Deus é o subsistente), seria indicá-lo apenas por uma atribuição, e já não pela essência. Com esta advertência acauteladora Deus também se denomina o Infinito, o Imenso, o Uno, o Imutável, o Eterno, e assim por diante. Possuindo embora vários nomes, somente o de subsistência é eminentemente essencial.

b). Na condição de existente subsistente, Deus é perfeitíssimo, porquanto nada limita o existir considerado assim. Se a essência de Deus fosse colocada em algo que se distinguisse da sua existência, haveria um existir circunscrito e esquematizado como uma determinada maneira. Todavia, se a essência, em Deus, coincidir com a mesma existência, esta limitação deixa de ocorrer. A substância não se restringe a um modo determinado de existir. Portanto, sua essência é o mesmo existir. Mui diferentemente, o como da existência dos seres limitados, é um tal e qual modo de existir. Portanto, o existente finito, enquanto ligado a um modo determinado de existir, possui essência particularizada, que não se confunde com o existir simplesmente. Enquanto o subsistente, Deus não se particulariza, não tem essência particular. Deus não é círculo, não é quadrado, nem longo, nem curto. Não é nem alma, nem corpo. Nem homem, nem mulher. Não tem olho, nem olhos. Não ouve, nem escuta. Não se move, nem está parado... Deus não tem determinações, que o prendam a esta, ou a aquela maneira de ser. Deus subsiste simplesmente.

519. Deus não é, pois, nada daquilo que o fez ter sido situado pelos ingênuos acima das nuvens, com vasto olhar, ouvido atento às preces e cânticos. Deus não é aquele Senhor majestático da imaginação, que inspira os solenes rituais da fumaça de incenso se elevando ao alto. Muitas coisas se podem dizer de Deus em linguagem figurada, mas importa atender à figuração e não à impropriedade da figura (vd 514).

ART. 3-o. ATRIBUTOS DE DEUS.7072y520.

521. Posta uma natureza, - como a de Deus, cuja essência é a sua subsistência, - dela decorrem diretamente atributos. Diz-se, neste sentido, que Deus é, entre outras coisas, infinito, eterno, onipresente, sábio, bom. Como tema a ser examinado, importa analisar o conceito mesmo de atributo em Deus, o que em parte já foi lembrado (vd 516), para mostrar sua distinção frente à mesma essência de Deus e como ainda se integra na mesma. Na continuidade do tema, ainda há a classificar os atributos divinos e analisar a cada um. Dali a distribuição didática:

- Natureza geral dos atributos de Deus (vd 522); - atributos próprios, isto é, exclusivos, de Deus (vd 526); - atributos comuns, isto é, não somente de Deus (vd 536).

I – NATUREZA GERAL DOS ATRIBUTOS DE DEUS.7270y522.

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523. Mesmo que haja pouca distinção entre a essência de Deus e seus atributos, em virtude de sua total integração na unidade divina , - eles contudo suficientemente se distinguem e devem ser examinados. Dizem-se atributos, porque se atribuem à natureza, a qual fica sendo seu sujeito. E se dizem propriedades, porque caracterizam a este sujeito como coisa que lhe é própria e o torna identificável. A decorrência dos atributos ou propriedades é uma causação formal, cujos efeitos permanecem na imanência da própria causa e a aperfeiçoam. Este é o caso da inteligência, cujo pensamento permanece na mesma. Também este é o caso da vontade, cuja volição também permanece na faculdade. Diferente é a causação na ordem da causa eficiente, que produz efeitos fisicamente separados. Assim se dá na produção do agricultor, do pedreiro, do fabricante. No ser divino a decorrência dos atributos é de menor distinção, que nos seres finitos. Em um e outro caso ocorre maneira diferente de se processar o atributo, de sorte a haver uma diferença de analogia; atribui-se de modo diferente um atributo a Deus, que a um ser finito. A essência de Deus encerra as propriedades ou atributos como partes integrais de sua essência, ainda que com alguma distinção. Nas demais coisas não acontece tal integração; nelas as propriedades são decorrências, que se dizem, ainda que por efeito formal, com uma distinção maior. O exercício das propriedades é diferente em Deus e nas demais coisas, que se dá contudo com analogia, em parte igual e em parte diferente. Por isso podemos dizer, por exemplo, que Deus é inteligente e que o homem é inteligente, ainda que não operem o pensar do mesmo modo. Não se trata apenas da diferença de dimensão, mas do processo mesmo do conhecer. Num é por ato puro, noutro é por operação intencional com maior distinção entre sujeito e objeto conhecido. O motivo porque a essência de Deus integra as demais propriedades resulta do fato da sua mais completa indivisibilidade. Uma vez liberada a existência ao infinito, ela não encontra entraves e tudo invade como sendo de seu domínio. Em Deus a diferença entre os atributos e o sujeito portador é menor, que nos demais seres. Assim em Deus, vontade e inteligência se identificam na ordem real; e assim também estes atributos operativos, estando sempre em ato, estão praticamente identificados com os atributos entitativos propriamente ditos. Resta, -usando a linguagem escolástica, - a distinção virtual menor. A diferença entre o sujeito portador e o atributo é menor em Deus, que nos demais seres, quer se trata dos atributos próprios e comuns, quer dos entitativos e comuns. Não se pode, por conseguinte, configurar a Deus ao modo humano. Enquanto o homem é como que uma variada gama de propriedades, que se comportam dissociadamente, em Deus acontece a unidade da diversidade. Em Deus cada atributo é o máximo, e ao mesmo tempo os infinitivos atributos são como um só. A dificuldade que a homogeneidade divina oferece para distinguir entre si os atributos, é amenizada por duas circunstâncias: temos nomes distintos para eles, e também pensamos ao modo humano. Entretanto, - quando o assunto é Deus, - devemos não nos deixar enganar, nem pelos nomes distintos, nem pelo modo humano de pensar.

524. A convertibilidade de umas propriedades em outras é a consequência da integração de todas as propriedades na essência divina. Deus, em sendo bom, é bom ao infinito. Em sendo verdadeiro, o é ao infinito. Resulta que a infinita bondade é a infinita verdade, e inversamente. A convertibilidade das propriedades de Deus permite mesmo dizer, que a essência de Deus está em cada uma, sem com isto criar problemas reais, senão a obrigação de atender à lógica interna dos significados. Efetivamente, por falta de atenção aos significados, poderá ter ocorrido que filósofos e teólogos tenham posto a essência de Deus, não na existência subsistente (ou existência pura), mas no bem, no pensamento, na infinitude, na a-seidade (do latim a seitas). Os indivíduos religiosos mais simples, - quando limitados pelo pensamento conjuntural (vd 37), - vêem a Deus apenas pelos seus atributos, como criador, justiceiro, remunerador, salvador, protetor, pai, etc., nunca como o subsistente. Eles concebem a Deus enquanto está para a criatura, e não a Deus enquanto é antes de tudo um ente em si mesmo. A convertibilidade das propriedades divinas tudo permite, ainda que se deva fazer com as cautelas postuladas pela analogia.

525. Classificam-se os atributos de Deus, de acordo com vários pontos de vista.

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Destaca-se a classificação do ponto de vista extrínseco, em que se comparam os atributos de Deus e os dos demais seres. E então os atributos de Deus são ditos:

- próprios, quando exclusivos de Deus;

- comuns, quando compartilhados com os demais seres.

No primeiro caso, são, por exemplo, próprios só de Deus ser Ele um infinito real, ser Ele um imutável, ser Ele algo em estado de ato pleno. No segundo caso, são, por exemplo, comuns a Deus e ao homem serem inteligentes, livres, naturalmente bons. Também se classificam os atributos do ponto de vista do conteúdo, em entitativos e operativos (estes como inteligência e vontade). Os atributos são exclusivos, quando são próprios de Deus. Por exemplo, ser infinito real é dito só de Deus. Outros atributos não são exclusivos de Deus. Ambos merecem consideração, porque ambos são divinos. A combinação de uma e outra classificação, admite restrições como:

- atributos entitativos exclusivos de Deus (vd 526); - atributos operativos comuns a Deus e aos outros seres (vd 537).

Ocorre uma peculiaridade nos atributos não exclusivos, porque, a partir deles, a criatura é partícipe de Deus. Estes outros, pelos quais o homem é partícipe de Deus, incorrem em especial validade para o exercício da religião. Na medida que cresce o homem neles, mais reproduz em si a glória objetiva de Deus. E se o fizer conscientemente, também glorificará subjetivamente a Deus (vd 569).

II– ATRIBUTOS PRÓPRIOS, EXCLUSIVOS DE DEUS.7072y526.

527. São atributos entitativos próprios de Deus, entre outros:

- infinitude (vd 528), - unicidade (vd 529), - simplicidade (vd 530), - ubiquidade (vd 531), - imutabilidade (vd 532), - eternidade (vd 533), - necessidade (vd 534), - absolutidade (vd 535).

Entre os atributos operativos, se mencionam a onisciência, sabedoria, bondade. Em filosofia da religião há atributos que geram mais polêmica, outros são de maior interesse conforme a questão enfocada.

528. A infinitude de Deus é o mais destacado atributo divino. Em Deus o infinito é intensivo, ou seja, em todos os sentidos. Dizer infinito equivale a dizer perfeito, no sentido de maximamente completo. Mas o infinito se pode também dizer sob um só ponto de vista, e portanto, até certo ponto, em abstrato. O exemplo mais comum desta modalidade de infinito, é o infinito quantitativo espacial. Então infinito é o que se estende indefinidamente, sob este ponto de vista. Subdistingue-se entre infinito espacial real e infinito espacial imaginário, dito também infinito matemático. Haveria um infinito espacial real? Para dizer que não, teríamos que perguntar como é o limite exterior do mundo, - por exemplo, se é um exterior esférico, - e como fica com o que a imaginação pode imaginar mais além. Para dizer que sim, teríamos explicar como isto é possível. Teríamos perguntar ainda, como fica Deus nisto tudo. Também se diz infinito no plano da forma, ou infinito no plano da essência. Então infinito é o que não se limita por qualquer determinação qualificante. Este é o infinito que se atribui a Deus, portanto no sentido de maximamente ser. O infinito em Deus é real (ou atual) e não potencial (ou imaginativo).

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O infinito potencial o imaginamos acontecer no espaço (ou na matemática), ou em qualquer outro elemento ao qual imaginamos pode acrescer algo, ainda que de fato isto não aconteça. O tempo futuro é potencialmente infinito, ainda que ele não tenha ainda ocorrido. Como decorre da natureza de Deus o atributo da infinitude? O argumento que prova a existência de Deus pelos graus de perfeição (vd 487) conduz diretamente ao máximo de perfeição da forma, e portanto ao infinito intensivo, ou seja ao ser infinitamente perfeito. O argumento, que está apoiado na causa formal, é portanto aquele que mais adequadamente conduz a Deus. Este argumento não somente reclama sua existência, como ainda o revela pela sua natureza essencial. Mas a compreensão interna do infinito como atributo da natureza de Deus se procede a partir da noção de Deus como ser subsistente. Em primeiro lugar Deus é a existência pura, sem determinação modalizante, ou seja, sem qualquer outro elemento. A decorrência desta liberação da existência é o infinito. Uma coisa leva à outra e não pode ser concebida sem a outra. Há uma relação de causa formal e de efeito formal entre a existência e sua infinitude. Deus não tem qualquer determinação limitante, nem de quantidade, nem de outra qualquer categoria; a consequência formal é a sua infinitude intensiva.

529. A unicidade de Deus decorre de sua infinitude, mui coerentemente. Só Deus é infinito real, de tal sorte que não pode haver dois infinitos neste plano O infinito que está primeiro, este é necessariamente o único, por não caber mais o outro. Enquanto é infinito, Deus também é único. Todos aqueles que imaginaram muitos deuses, o fizeram porque não conceberam a Deus como adequadamente infinito. O masdeísmo (vd 125), o orfismo (vd 129), gnosticismo (vd 162) e o maniqueísmo (vd 136), com seus dois princípios supremos - o bem e o mal - não subsiste, porque são inconsequentes. Importa distinguir entre Deus único e ser único, no sentido de monismo metafísico, pelo qual Deus e o mundo são, em última instância um só ser. A unicidade é um conceito tão desobstruído de dificuldades. É o monismo uma hipótese que não pode ser abandonada sem exame, até porque o muitos o praticaram. Ali estão o monismo de Buda (vd 188), dos pré-socráticos, desde Tales (vd 200), de Plotino (vd 262), de Giordano Bruno (vd 348), dos Estóicos (vd 237), de Espinoza (vd 356), dos idealistas dialéticos (vd 372) A multiplicação dos indivíduos é algo difícil de explicar. Se houvesse dois sujeitos infinitos, seriam iguais e se confundiriam, deixando de ser dois. Para que os seres finitos se multipliquem, também ocorre uma dificuldade. A mesma natureza, para que se rejeita em diferentes sujeitos, precisa de uma razão para isto; a razão deverá ser dupla: causa externa, que crie os indivíduos, e causa interna, que intrinsecamente dê tal possibilidade. Com referência à causa interna, ergueu Aristóteles a teoria de matéria e forma no plano da natureza, para fazer da matéria o princípio individuador. Desenvolveu Tomás de Aquino a idéia de que todo o anjo é de uma espécie diferente, porque. Se fosse para multiplicar os anjos dentro da mesma espécie, isto somente seria possível se os anjos fossem materiais. Sobretudo em Deus não se pode conceber dita composição de matéria e forma, para multiplicá-lo em muitos deuses. E como explicar a multiplicidade, - Deus e mundo, - afastando globalmente o monismo metafísico? Depois de admitido o fato da multiplicidade, resta apenas arranjar uma teoria explicativa. O fato da multiplicidade é admitido, porque de um lado se tem um mundo de multiplicidades em que a característica apresentada é a de seres compostos de ato e potência; de outro lado, se tem o argumento que prova a existência de um Deus sem composição de ato e potência.

530. A simplicidade, e ainda o problema da Trindade das pessoas divinas. No sentido de indivisão, a simplicidade é um importante atributo divino, ao qual importa atender para uma correta noção de Deus. Não basta concebê-lo como único; deverá ser simples, sem divisão, sem estruturas como cabeça, corpo e membros, sem aspectos como rosto, olhos, coração. A concepção cristã de Deus na forma de três pessoas implica em duplo problema. O primeiro é o não conceber as três pessoas como três deuses. Este primeiro problema o dogma oficial procurou resolver pela afirmativa de se tratar de três pessoas detentoras de uma só natureza divina. Ario (256-336), fundador do arianismo, o resolveu, concebendo o Logos (segunda pessoa) como criatura, ainda que criada antes do mundo material. Inversamente os modalistas de Sabelius, do 3-o. século, propuseram que se trata apenas de perspectivas ou modos, mas não três pessoas. De sorte não haveria quebra da unicidade divina.

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O segundo problema, o mais grave, é o de como manter a simplicidade de Deus sem renunciar à fórmula das três pessoas em uma só natureza. O dogma oficial procurou reduzir ao mínimo ao mínimo a diferenciação das três pessoas, sem todavia reduzi-las a um modalismo puro. Para discutir sistematicamente a simplicidade de Deus, convém apoiar-se em uma terminologia. Escolasticamente se classificam as distinções em: distinção real e distinção da razão. Esta se redivide em distinção virtual maior e distinção virtual menor. Em Deus não pode haver distinção real das partes componentes, como por exemplo, de matéria e forma. Em princípio isto representaria a possibilidade de decomposição. Ainda requeira um poder aglutinante das partes. As perfeições de uma parte não seriam infinitas; nem as da outra. Finalmente, a divisão em partes está contra a essência mesma de Deus, que o faz ser um existir liberado de determinações; ora, ter partes, é uma determinação. Também não pode haver em Deus uma distinção de razão virtual maior, porque igualmente ela implicaria em determinações de essência a limitar a existência; esta não pode estar delimitada. Quando acontece uma distinção virtual maior? Ela é uma distinção de razão com fundamento na coisa, a qual, embora não tenha distinções em si, estas são contudo distinguíveis, pela razão; por isto ela é virtual. Se uma noção não implica a outra, de sorte a permitir uma separação perfeita, a distinção virtual é maior (com fundamento perfeito); se entretanto, as noções distinguidas se implicam uma à outra, a distinção virtual é menor (com fundamento imperfeito). Em última instância, a distinção virtual maior se funda em uma distinção real. É difícil dar exemplos por causa de complicações como esta: no ser humano a distinção entre a natureza e a inteligência é virtual maior; em Deus somente poderá ser virtual menor, porque nele não pode haver uma distinção virtual com fundamento perfeito como acontece no ser humano, entre a inteligência e a natureza a que pertence. A simplicidade de Deus não pode admitir atributos que simplesmente não se impliquem, como os da distinção virtual maior. As distinções de razão em Deus somente poderiam ser de categoria virtual menor. Apesar de não precisarem ser sinônimas, tais noções se distinguem, mas se implicam. Por exemplo, a justiça de Deus e a misericórdia de Deus são distintas, mas por serem infinitas, a justiça inclui a misericórdia, e esta aquela. Para que isto aconteça, a distinção terá de ser apenas virtual menor; a distinção se dá então com fundamento imperfeito, implicando-se uma noção à outra. A doutrina da Trindade divina, como é que estabelece as distinções entre a natureza divina e as pessoas divinas? Com que distinções se distinguem as pessoas entre si? O dogma cristão procura esclarecer teologicamente, que as três pessoas se reduzem às relações (de paternidade, de filiação, de espaçarão, respectivamente), definindo estas relações como não dividindo em componentes de distinção real frente à natureza divina; as pessoas se distinguiriam apenas pelo modo de possuírem a mesma natureza, - o Pai como a possuindo simplesmente, o Filho como a tendo recebido do Pai, o Espírito Santo, como a tendo recebido dos dois precedentes (vd 540). Esclarecer assim, - pelos modos de possuir a natureza divina, - para resolver o problema da multiplicidade das pessoas em Deus, é, pelo menos, a intenção do teólogo cristão. Os complicadores da Trindade não cessam aqui, porque a multiplicidade das pessoas vai influenciar ainda a maneira de se formular o culto (vd 590), porquanto o dirigir-se a Deus, se faz às pessoas, e então à qual delas como termo final? (vd 597). Neste expediente as pessoas não se constituiriam de algo absoluto; então haveria distinção real; elas se constituem de algo relativo, que são as relações de paternidade, filiação e espaçarão. Assim entendidas, pretende a doutrina que as pessoas divinas se distinguiriam realmente entre si. Mas nenhuma pessoa se distinguiria realmente da natureza divina. As pessoas divinas se distinguiriam da natureza divina pela distinção de razão com fundamento na coisa. Não basta, entretanto, arranjar uma explicação para possibilitar a hipótese da multiplicidade das pessoas divinas. Importa ainda provar, que isto aconteça efetivamente em Deus. Até ali não chega a filosofia. Pode haver conseguido provar a possibilidade da Trindade, mas não o fato. Este, - como se advertiu, - fica por conta do sobrenaturalismo dos que invocam haver acontecido a revelação a respeito.

531. A ubiquidade de Deus adequadamente entendida. Começa-se entender erradamente a ubiquidade de Deus por falta de noções claras sobre espaço e lugar. Deus não está em lugar algum, porque o lugar é uma determinação peculiar a um corpo. Lugar é uma relação circunscritiva ao meio ambiente. É a determinação pela qual um ente se diz dentro ou fora do outro. Deus não tem esta condição de estar dentro ou fora. Ainda que Deus tenha relação de presença nos objetos do mundo, de sorte a se poder dizer que em todos os lugares (ubiquidade de Deus), esta relação é de um gênero muito especial. Não tem sentido imaginar-se Deus mais em cima, que em baixo. Em termos metafísicos é isto sem-sentido.

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Por razões antropológicas, o em cima é mais nobre. Por isso nasce o proceder imaginativo de um Deus honrosamente situado em cima, num alto céu. Não obstante às descobertas astronômicas, à imagem de Deus situado nas alturas, persevera pertinazmente em todos os rituais religiosos, oficiais e domésticos.

532. Imutabilidade de Deus. Mesmo operando, Deus não muda. O que faz desde sempre o decidiu e mantém ativamente sua decisão. A Deus nada se pode acrescentar e nada subtrair. Decorre este atributo de sua infinitude; sendo infinito, desde sempre tudo contém. Em sendo sempre infinito, em momento algum pode deixar de ser algo, de sorte que em todas as hipóteses se mantém imutável, tanto em seu ser, como em suas operações. Que valeria então a prece do rezador ingênuo, pedindo, ora isto, ora aquilo? Dentro do conceito imutabilidade divina, tais orações só teriam sentido, se Deus desde toda eternidade se houvesse condicionado a ter criado um mundo conforme as inúmeras preces dos homens.

533. Eternidade de Deus adequadamente entendida. Deus não começa e nem acaba. Dura sempre, como uma determinação que lhe é intrínseca. Agora a do atributo da eternidade é uma decorrência da existência divina, a qual, em princípio dura sempre. Que é existir? É estar fora do nada. E enquanto está fora do nada, permanece, dura, mantém-se. Durar deriva de duro, sugerindo que o duro permanece. O tempo é uma duração, com a nuance de duração que se altera. Em contraposição, eternidade é a duração permanente, sem novidade. Como determinação, o tempo é intrínseco às coisas, enquanto duram. Não há um tempo absoluto, no qual mergulham as coisas. Esta coisa de túnel do tempo é uma abstração da mente, e que a imaginação compõe no espaço. Divide-se o tempo em presente, passado, futuro. De certo modo também a eternidade tem presente, passado e futuro, mas sempre iguais. Não se pode afirmar que Deus não tem passado, presente, futuro. Mas, que o passado, presente e futuro de Deus são sempre iguais de sorte a ter o passado, como seu presente; e assim o presente, como seu futuro. Inversamente, o futuro como presente e o presente como passado. Conhece Deus o passado e o futuro, porque, sendo o seu presente igual ao passado e ao futuro, no presente conhece o seu passado e o seu futuro. Mais difícil é explicar como Deus conhecerá os futuros atos livres dos seres humanos. Em relação ao tempo dos demais seres, o futuro não está presente senão na parte permanente. E então surgem perguntas sutis: Como é que Deus sabe do futuro das partes novas? Se as criaturas humanas são livres, como é que poderá saber o que elas decidirão no futuro? Eis questões que agitam a moral e a religião. Acreditam uns haver predestinação, enquanto outros a negam.

534. Necessidade intrínseca de Deus. Tanto é Deus uma existência necessária, porque os demais seres dependem dele, quanto é uma existência necessária porque ele em si mesmo é intrinsecamente necessário. Os fatos finitos, uma vez que existem reclamam a existência de Deus sua explicação. Esta é a necessidade extrínseca de Deus. A outra é a necessidade intrínseca de Deus, da qual agora cuidamos. Suponhamos a hipótese de que os demais seres não existam, ou que, em algum tempo anterior ao surgimento destes fatos, nada houvesse, senão Deus. Então cabe a pergunta, se também Deus em si poderia simplesmente também não existir? Ter-se-ía então o nada absoluto. Poder-se-ia conceber uma situação, em que nada haveria, nem os demais seres, nem o mesmo Deus. Estamos agora numa problemática difícil de colocar em termos explicativos. Nós não temos como chegar adequadamente à necessidade intrínseca de Deus, senão a partir da sua necessidade extrínseca. Nosso conhecimento da necessidade intrínseca de Deus resta, pois, como um conhecimento inadequado da mesma. Todavia é o suficiente, para que cheguemos a saber que a anterior existência intrínseca deverá também ocorrer. Efetivamente parece ocorrer aqui um paradoxo. A pergunta pelo nada absoluto depende de uma condição anterior a estes princípios fundados no Deus de fato existente. Enquanto condicionados assim, os princípios não poderão ser usados para discutir uma pergunta sobre questão situada logicamente em um momento anterior.

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Este momento anterior ao próprio Deus é impossível até mesmo como hipótese a discutir. A questão se resolve a partir do Deus atualmente existente; para que exista agora, precisou derivar de uma situação que anteriormente também fora necessária. Não temos como decidir a partir de um princípio absolutamente anterior ao próprio Deus. A necessidade intrínseca de Deus se relaciona com o seu caráter de ser único (vd 529), e é único, por ser infinito (vd 528). Em sendo único, Deus tem de ter em si mesmo a sua necessidade, e, por tê-la em si mesmo, é intrínseca. Ainda, em sendo único, Deus não é condicionado à coisa alguma, sendo pois absoluto (vd 535). A necessidade intrínseca de Deus passa a transmitir sua necessidade a tudo o que dela depende. O mundo, apesar de contingente em si mesmo, se torna necessário, enquanto a necessidade divina o sustentar; e deixa de ser necessário, quando terminar de ser sustentado. Por isso, ninguém outro tem poder para destruir substancialmente o quer, que seja. E se o mundo se transforma dinamicamente, foi porque lhe foi dada esta lei. A escatologia (vd) final de tudo é possível acontecer e na forma como Deus quiser. Mas, nada há na natureza para que a escatologia seja reconhecida como uma lei natural e de que trate a filosofia da religião. Entretanto, as religiões sobrenaturalistas e salvacionistas afirmam ter a revelação desta escatologia. Dela se ocupa o zoroastrismo (vd 127), o cristianismo, tendo Agostinho de Hipona criado em função a ela uma teologia da história (vd 276). Na Idade Média se anunciou mesmo a escatologia do Espírito Santo (vd 293). Transfere-se a necessidade intrínseca de Deus inclusive à racionalidade das coisas. Estas são racionais, enquanto reduplicam a racionalidade divina. Tomás de Aquino colocou na natureza divina o fundamento dos universais, bem como dos princípios, ou axiomas, na natureza divina. Procurando o preciso fundamento da racionalidade, o voluntarismo, como o de Henrique de Gand (vd 294e), Duns Escoto (vd 296) e Descartes (vd 354), coloca a última razão da racionalidade e eternidade dos princípios na vontade divina; sendo esta imutável e eterna, os referidos universais também se tornam imutáveis e eternos. Nisto tudo importa levar em contra a convertibilidade dos atributos de Deus, inclusive dos atributos operativos (vd 524), e em consequência desta integração de todas as propriedades na essência divina, pode-se dizer que tudo depende de sua razão, como também de sua vontade, e ainda de sua essência intrínseca necessária.

535. Deus o Absoluto. Isto significa que Deus não tem relações reais para fora de si mesmo. Sua plenitude sendo total, não o dependiza nem de um ser anterior, nem maior, nem menor, como os seres finitos. Nem é mais feliz com um universo criado por ele, nem é menos feliz se não o tivesse criado. Nem mesmo se sentiria solitário se existisse inteiramente sós; nem se torna mais feliz e maravilhado com a imensidão do universo. Sequer os bons lhe aumentam as alegrias e os maus lhe fazem tristeza. Assim acontece, porque Deus é efetivamente absoluto. A absolutidade de Deus fica praticamente fora do alcance das mentes simples. Estas conceituam a Deus pelas suas relações para fora. Para um simplista Deus não existe em primeiro lugar para si mesmo como Deus. Ele existe conjunturalmente como Senhor do universo, como Ser supremo a governar os homens, como o Justiceiro para reclamar o fiel cumprimento de suas ordens, como o Pai que recompensa os filhos pela suas obras, como o centro do culto dos homens, quer a terra, quer no dos justos. Imaginou-se um poeta, que Deus teria criado o mundo, por que se teria sentido sozinho; teria dito então: farei um mundo para que me agrade, me honre, me ocupe com ele. Este Deus de relatividade, gerado pelas mentes simples deve ser substituído pelo Deus verdadeiro. Do ponto de vista de Deus seria então o mundo uma paixão inútil? Paradoxalmente, para Deus nada é inútil. Por causa da absolutidade de Deus, para Ele tudo é superabundância, tudo é gratuidade. Não estando ligado a nada por necessidade, tudo faz por amor. Não pelo amor de concupiscência, de interesse próprio, mas pelo amor de benevolência, simplesmente por querer bem a cada coisa que cria. Se o mundo glorifica a Deus, esta glória é nada mais que a face externa da criatura. Nesta condição, o mundo tem um sentido em si mesmo, ainda que não necessário à divindade. A absolutidade divina é pouco considerada por aqueles que reduzem a Deus a um Demiurgo (ou carpinteiro) mal sucedido em sua obra, e que depois se ocupará a concertá-la mediante milagres aqui, revelações acolá, exigência rituais para todos os dias. No curso dos séculos algumas religiões tradicionais foram reduzindo o número dos milagres aceitos como válidos. As narrativas fabulosas foram sendo reduzidas à história heróica criada pelas versões populares e de gênero épico. O deísmo (vd 330) surgido no século 16 foi a primeira reação drástica às crenças sobre as intervenções sobrenaturais na história, restituindo a Deus o seu atributo de absolutidade. De pouco em pouco as religiões tradicionais vão também destacando a Deus como O Absoluto, que não depende de nada, e portanto não precisa de servos, mas em torno do qual todos somos a sua glória.

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III – ATRIBUTOS NÃO EXCLUSIVOS DE DEUS.7072y536.

537. Os atributos comuns a Deus e aos demais seres são aqueles que podem ocorrer em ambos os lados, ainda que não na mesma condição. Sempre que se fala em modos do ser, - como nos modos gerais do ser (os transcendentais) e nos modos especiais do ser (as categorias), - estamos no quadro dos atributos comuns a Deus e aos demais seres. Isto acontece, porque, sempre que se fala do ser simplesmente (vd 453), este atinge a tudo, portanto a Deus e aos referidos demais seres. E assim também é atingido pelos modos gerais do ser (ou transcendentais) (vd 470) e de certa maneira também pelos modos especiais do ser (ou categorias). A maior advertência para os atributos comuns a Deus e às criaturas se encontra na faixa dos operativos. Operativamente, todos podem ser sábios e bons, ainda que Deus só em grau eminente e os demais em grau relativo. Na faixa dos atributos entitativos, - comuns a Deus e às criaturas, - estão as determinações como substância e pessoa, vida e espírito.

538. Sistematicamente se distingue entre:

- imperfeições, - perfeições mistas, - perfeições puras.

a) As imperfeições nunca ocorrem em Deus. Tais são, por exemplo, a limitação, a mutabilidade, a dependência, a feiúra, a dor, o vício etc., que por definição, ele exclui diretamente e convém não ter.

b) As perfeições mistas, que já contêm algo de perfeição, somente cabem em Deus virtualmente, porque este as possui sob uma outra forma e que é mais perfeita, sem mistura com um elemento menos perfeito. Por exemplo, conhecer através de impressões que os objetos deixam na faculdade conhecimento, a partir dos quais se processam abstrações conceituais, juízos e raciocínios, é uma perfeição mista, com delimitações, sendo por isto tal modo de conhecer tipicamente humano. Deus, ao conhecer de modo eminente, intui direta e simplesmente em si mesmo os objetos. Este conhecimento intuitivo-divino contém virtualmente todas as formas cursivas de conhecer. Deus não lineariza o seu pensamento, justapondo conceitos, compondo sujeitos e predicado em forma de juízos, organizando premissas para argumentar. Ele, por si mesmo, é a expressão de tudo.

c) Perfeições puras são as que, em seu conceito, não se dizem, nem da imperfeição, nem da perfeição mista. Então Deus formalmente possui tais perfeições puras, ao passo que as criaturas as possuem apenas em graus inferiores. Mas ocorrendo em ambos denominam-se atributos comuns. São perfeições puras todas as noções transcendentais (ou modos gerais do ente) como ser, existência, essência, unidade, coisa, algo, bondade, verdade, beleza, etc. Estas perfeições puras se verificam em Deus e nos demais seres, ainda que em condições diferentes. São também perfeições puras diversas noções superiores das categorias (ou modos especiais do ente), tais como substância, vida, conhecimento, espírito. De novo podemos mostrar que comparecem como atributos comuns em Deus e nos demais seres, apesar das diferenças de nível de participação. Passemos a considerar as perfeições puras, primeiramente as transcendentais (ou modos gerais) depois as categoriais (ou modos especiais).

A – As perfeições transcendentais de Deus. 7072y539. 540. Deus é uma unidade. E como entender a Trindade de pessoas? Também todos os seres finitos são, cada qual, a sua unidade.

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Entende-se aqui por unidade um dos modos dos modos transcendentais do ser (vd 470), pelo qual ele se diz ser ele mesmo, e não outro. É como quando se diz que o ser apresenta propriedades, umas chamadas transcendentais, outras categoriais. Similar, todavia distinto, é o conceito de unicidade (vd 529), no sentido de único, por não haver outros. É o fato, em virtude do qual um ser não é um indivíduo entre vários. O ente, como unidade, não é distinto de si mesmo. Nem é idêntico aos outros entes, porque todos são a sua unidade. A partir desta unidade se estabelece o princípio de não contradição:

- o ente se une a si mesmo, não se une ao que ele não é.

Equivale a dizer: - o que é, ao mesmo tempo que é, não pode ser o seu contrário.

Mas, a unidade dá-se de um modo eminente em Deus e de outro modo nos demais seres. Há, pois, que tratar aqui sobre:

- como a unidade se dá em Deus, e qual a diferença com a unidade que se dá nos demais seres.Nos seres finitos, o que mais se observa é a unidade de composição. Ela ocorre em vários graus. Quanto maior o número de componentes, mais frágil é a unidade. Em Deus ocorre uma unidade interna eminente. É sumamente indiviso. Tudo nele se identifica com o todo. Foi a doutrina cristã da Trindade (vd 530) mencionada como geradora de sérias dificuldades para a simplicidade divina. Agora ela comparece outra vez para ser vista em função à unidade divina, que internamente deverá ser de absoluta simplicidade. Esta absoluta simplicidade, deve ocorrer ao menos em sua natureza, ainda que não se diga da sua pessoa. Por isso, a especulação teológica tem procurado definir as pessoas divinas sem envolver a natureza, de sorte a determina-las como simples relação de processão, diferenciando-as pelos modos de posse da natureza: o Pai possui a natureza sem a ter recebido, o Filho como quem a recebeu do Pai, por último a terceira pessoa, dita Espírito Santo, como quem a recebeu das duas primeiras. Finalmente, a infinitude de Deus obriga a perguntar se a unidade divina não envolve de algum modo demais seres? Não parece válido dizer que existe algo ao lado de Deus. Surge agora a proposição do monismo panteísta, segundo a qual Deus e o mundo são uma só unidade, ainda que com diversidades. De um lado, em nome da unidade, parece que tudo se integra em Deus, de outro lado parece que a integração de tudo em Deus conflita com a unidade mencionada. Os teístas apresentam suas razões; os panteístas também as suas. E a polêmica se mantém num campo em que as decisões são difíceis em virtude de sua subtilidade.

541. Deus é verdadeiro (ontologicamente) no sentido de que obedece a um modelo, mas em que o modelo é ele mesmo. Deus como que se espelha em si mesmo, por ser toda a perfeição. A verdade é um termo que se diz em relativo, em que o termo de comparação para Deus não pode estar senão nele mesmo. O contrário acontece nos seres finitos, os quais podem ter um termo exterior segundo o qual se dizem verdadeiros ou falsos. Deus opera necessariamente de maneira racional. Ora, assim racionalmente operando, não pode criar senão em vista a um modelo, o que não poderá de novo ser senão ele mesmo. Por isso, o mundo é criado como sua imagem. Em decorrência o mundo fala de Deus, e é portanto sua glória objetiva (vd 569). Os seres não racionais operam segundo o impulso que lhes foi dado. Mas aquele que lhes deu o impulso, criou este impulso segundo um modelo. Desta sorte, pois, até os seres irracionais pelas suas forças físicas e instintos, operam racionalmente, em função a uma racionalidade objetiva exterior. Esta racionalidade objetiva exterior, - que se apresenta como unidade da natureza, - é uma lei natural, quando vista assim exteriormente a partir do Criador. Pela mesma razão, uma máquina opera racionalmente porque ordenada exteriormente pelo homem que a construiu. Esta racionalidade externa da máquina se apresenta sobretudo admirável nos aparatos eletrônicos, os quais conduzem com extraordinária velocidade a mensagem recebida. A mesma racionalidade exterior se constata na assim chamada memória genética. As forças contrárias da natureza criam certos equilíbrios, cuja estabilidade não pode contudo ser considerada como um estágio definitivo. Uma evolução contínua desmantela conjuntos anteriores e instaura novos conjuntos. A chamada "lei natural" quando dita de conjuntos estáveis é uma ilusão. A lei natural propriamente dita fundamentalmente existe apenas nos impulsos simples de um sistema. O resto é um jogo de forças em estágios diferentes de evolução e com sucessos cada vez maiores.

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Os fracassos são apenas aparentes fracassos, porque efetivamente são a seleção de novas oportunidades. Resta ao homem somente criar um projeto viável, seja para transformar individualmente a sua biologia e cultura, seja mais vastamente para mudar as espécies animais, inclusive a do próprio animal humano, seja até para implodir montanhas e continentes, ou mesmo para explodir os próprios astros, recriando outros mundos, - tudo de acordo com uma admirável mega-ecologia racionalmente controlada.

542. Deus é a bondade (ontológica), enquanto convém a si mesmo existir. Sendo existência liberada ao infinito, Deus dispõe de tudo o que lhe convém. Para ser feliz, não precisa de criar outros seres. Mas, sendo estes outros seres convenientes a si mesmos, suas existências poderão ser incluídas no amor de benevolência (vd 535). Como já se disse, Deus, por causa da sua absolutidade, não está ligado a nada por necessidade. Age, não pelo amor de concupiscência, de interesse próprio, mas pelo amor de benevolência, criando simplesmente por querer bem a cada coisa que faz surgir do nada.

543. Deus é o belo. Que é o belo senão a perfeição em destaque? Ora, Deus é exatamente isto, - o belo em destaque. Assim sendo os termos máximos em que tudo ocorre em Deus, o destacam como o mais belo, sendo o modelo insuperável de todas as coisas belas que nele se espelham. O belo agrada. Por isso, Deus, - como o mais belo e o modelo supremo de todas as coisas, - é nosso agrado supremo. Mas, para que este agrado supremo ocorra, importa conhecer a Deus, - conhecê-lo pelas vias que conduzem à sua existência e conhecê-lo ainda na meditação dos atributos que lhe são próprios, bem como ainda reconhecê-lo na glória objetiva dos seres deste nosso mundo, particularmente na realização pessoal de nós mesmos. O belo divino, - como advertimos se conhece na meditação sua existência e natureza. E ainda nos seres do mundo enquanto representam a sua glória exterior. A ciência, pela qual o homem conhece a natureza, não é um orgulho, - dedicar-se à ciência é também um dedicar-se ao conhecimento daquilo que é a glória objetiva externa de Deus. O progresso da civilização, com os mais diversos avanços tecnológicos, não é uma arrogância do ser humano, - é um operar com as coisas santas largadas por Deus no espaço imenso.

B – As perfeições categoriais de Deus. 7072y544. 545. O conceito de categoria, ou de modos especiais do ser, está condicionado pela predicação unívoca operada. A categoria é sempre atribuída univocamente, e por isso o que uma categoria diz, não inclui o que é dito pela outra. As noções entre si são estanques. Assim é que se distinguem as categorias do ser, arroladas por Aristóteles, em número de dez: substância, quantidade, quantidade, relação, tempo, lugar, posição, ação, paixão, ter, ou hábito. Como é que ficam tais noções categoriais em Deus? Certamente de maneira muito diferenciada como acontece nos seres finitos. Deus é substancial e não algo acidental. Na noção vulgar de substância, ela é o que está sob os acidentes. Este estar sob os acidentes acontece com os seres finitos. Como substância, não se encontra sob acidentes, porquanto nada é acidental em Deus. Nele importa apenas a definição essencial de substância, como ser que existe em si e não em outro, nem mesmo sob outros, como os acidentes. Mas, o que é acidental nos seres finitos pode ser concebido de um modo inteiramente novo em Deus. Há a qualidade em Deus, mas não de maneira a qualificar por delimitação. Há; tempo em Deus, mas simplesmente como duração pura e eterna. Há ação em Deus, mas como ato puro. Sobre as noções categoriais se podem fazer mais considerações, com vistas ao aperfeiçoamento da especulação sobre a natureza divina.

546. Deus como pessoa. Ao conceito de substância e de relação se alia o de pessoa (sujeito ou indivíduo ao qual se atribui algo). Distinguem-se as pessoas e os indivíduos, porque são noções de predicação unívoca. Este caráter é geral a todas as categorias. Mais restritivamente, o conceito de pessoa se liga ao de substância, como sujeito que está sob os acidentes. A maneira humana de pensar, que se processa sempre mediante juízos, destaca a existência do sujeito.

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Até quando dizemos uma só palavra, como por exemplo, "livro", na verdade formulamos um juízo (com sujeito e predicado):

- "isto é um livro".

Na sequência de novas afirmações, passamos o predicado para o lado do sujeito:

- "este livro é belo",

- "este belo livro é meu",

- "este belo livro meu é grande"... e assim por diante.

Existiria mesmo o sujeito? Poderia tratar-se de mera estrutura da atual condição do pensamento humano. Os empiristas negam-se simplesmente a aceitar conceitos puramente racionais (como o da substância), que escapam à experiência. Como se constata, a doutrina sobre o sujeito se condiciona a uma tomada de posição gnosiológica. Mas, suposto que a substância exista, e que o sujeito seja real, seguiremos em frente (mas conscientes de que estamos argumentando dentro de certos pressupostos gnosiológicos). Uma fenomenologia do que acontece em nós mesmos nos leva a crer na construção, de que temos um eu (sujeito psicológico de atos de conhecimento). Este eu seria sujeito do conhecimento, que, como intencionalidade, marcha na direção do sujeito. Pessoa é um sujeito racional (definição do Boécio). Há muitos sujeitos. Toda a substância é um sujeito, tanto de si mesma, como dos acidentes que eventualmente a rodeiam. Mas este sujeito recebe a denominação especial de pessoa somente quando for racional. Estejamos advertimos que substância não é o mesmo que sujeito; dentro da substância podemos distinguir entre sujeito e sua natureza; é, sobretudo a natureza que a faz ser substância. Finalmente, a pergunta a que queríamos chegar é a de, – como ocorre a pessoa em Deus. Sendo Deus uma substância racional (natureza racional) é também uma pessoa; tem a pessoa divina a função de ser da natureza divina (ou seja da divindade). Em virtude da individualidade da natureza divina, não pode haver um distanciamento entre sua pessoa e sua natureza. Contrariamente, na natureza humana o situamento da pessoa em relação à natureza humana é pouco clara, aparentemente ao menos há muita distância entre a pessoa e a natureza por ela possuída. Deus, como pessoa, não é pois apenas uma natureza opaca, como que sem dono. Afirma-se fortemente como personalidade. Eis o que é difícil de enfatizar; todavia é este o ponto alto da divindade. Deus é pessoa com um forte olhar a estender-se a todos os espaços internos da divindade. Também como pessoa Deus se põe diante do universo; nesta condição está como sujeito possuidor, ao qual o universo é atribuído. Para Deus o universo é o "meu" universo; ou seja, o universo dele. Assim é, ainda que o universo seja uma criação dispensável de sua parte. Entretanto, não o criou Deus por um descuido. Nem o deixa largado a si mesmo. O universo, para Deus, é sempre o "meu" universo. Se o universo o glorifica, ele o tem como a "minha" glória. Mas é, sobretudo internamente que a pessoa divina se exerce como sujeito ao qual toda a natureza infinita se atribui. Como pessoa Deus é toda a sua natureza, conhece-a para si, e a quer para si. Aqui se introduz de novo o dogma cristão da Trindade, agora como uma dilatação da vida da pessoa divina. Ao modo como o esclarecem os seus teólogos, a referida pessoa divina teria gerado outra, ao qual transfere (ao mesmo tempo, que a conserva) a natureza divina, finalmente a primeira e a segunda ainda teriam dado origem a uma terceira pessoa que em comum participa da natureza divina. As três pessoas, seriam distintos sujeitos a possuírem a mesma natureza; cada uma de um modo diferente: uma como pai, outra como filho, a terceira de modo peculiar (sem retransferir).

547. Deus como substância espiritual, ou espírito. Não se pode imaginar Deus como uma substância a receber determinações de qualquer espécie. Assim sendo não pode ser concebido como matéria, sempre que se entenda a matéria como recebedor da determinação de alguma forma. Não é Deus um corpo, quando este é entendido como determinado dentro de um espaço. Deus não é um boi, como o boi Ápis, dos velhos egípcios. Deus não é um velho, quando imaginado como um sábio de cabelos brancos, ou como

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um hábil oleiro a moldar o corpo de Adão, e depois o de Eva. Deus não é como um Sol, como fora imaginado pelos adoradores de Mitra. Deus não como cosmos imenso, como poderia pensar um astuto admirador da imensidão. Entretanto esta posição entre espírito e matéria não se apresenta tão clara quanto a primeira vista parece, e em decorrência se passa a criar uma oposição muito radical entre as noções sobre Deus e as dos corpos materiais. Então surge a imagem falsa que Deus, ao criar a matéria fabricou praticamente o Diabo. Não sabemos precisamente o que é a matéria e nem há uma oposição direta entre matéria e espírito. Muitas afirmações neste campo não passam de conjeturas e podem ser falseadoras daquilo que Deus efetivamente criou. Descritivamente, matéria é o que se manifesta em torno de nós, como que de fora, aos sentidos. Muito têm os sentidos de subjetivo. Praticamente, quase só sabemos da matéria aquilo que os sentidos subjetivamente lhe acrescentam. Campos de força, com manifestações localizadas são apreciados subjetivamente como se fossem partículas. Efetivamente, partículas podem não existir, senão como uma formulação pragmática para a ciência física. O espírito certamente existe como operação psíquica. Mas, teria esta operação psíquica uma base substancial distinta da substância da matéria? Não há razões claras para dizer que a matéria não seja capaz de exercer operações psíquicas, e que portanto o físico e o psíquico estejam montados na mesma base substancial. Equaciona-se o problema sobre duas hipóteses: de uma lado estaria o monismo, em que matéria e vida (inclusive psiquismo) seriam faces da mesma substância; de outro lado estaria o tradicional dualismo, em que matéria e fida são duas modalidades de substância, irredutíveis entre si. Quando os dualistas estabelecem simplesmente que a matéria é incapaz de se exercer como suporte das operações psíquicas, estão predefinindo o que seja a matéria, apesar de; não a conhecerem suficientemente. A respeito de Deus, não podemos defini-lo, nem como a matéria, por causa de suas delimitações pela forma, - como já advertimos, - e como o espírito dos seres limitados. Porque também aqui acontecem as limitações. Em Deus tudo existe de maneira eminente, quer do que resta de maneira eminente no ser da matéria, quer do que resta de maneira eminente do ser do espírito humano. Haveria na matéria perfeições puras que possam existir em Deus? Certamente que sim, sobretudo se elevarmos o conceito da matéria, não a concebendo como se fosse o Diabo. As propriedades, quer da matéria, quer da psique do ser humano, quer da vida animal e vegetal, quando, - por causa de suas limitações não couberem formalmente em Deus, - contudo estão em Deus potencialmente.

548. A inteligência, a vontade, a potência de Deus são seus atributos operativos. Mas as operações em Deus se confundem com a natureza, distinguindo-se apenas por uma distinção de razão virtual menor. O conhecer e o querer divino escapam a todos os esquemas particularizantes. Não se distinguem realmente da divina e nem se multiplicam. Deus é um só pensar e um só querer. Não pensou Deus, ontem e novamente hoje. Só um ato de pensamento há nele, desde toda a eternidade. Deus não tomará conhecimento no fim do mundo, pois sempre tudo conheceu. Um só ato de conhecimento é a divindade. Nem julgará Deus algum dia os vivos e os mortos. Seu conhecimento e julgamento é um só ato puro.

549. O objeto do conhecimento divino é antes de tudo o próprio Deus. Não se mede a grandeza do saber divino, pelo número de conhecimentos resultantes de seu olhar sobre o vasto universo. Maior é o próprio Deus. Seu conhecer é maior olhando para si mesmo, do que quando se a abre para o cosmos astronômico. A partir de si, Deus conhece o mundo. Não o descobre, como algo que se revela a partir de fora.

550. O objeto da vontade divina é primeiramente ele, o bom Deus. Bom é o que é apreciável. Antes de tudo, apresenta-se boa e apreciável a natureza divina. Em Deus desejo, a felicidade, o amor tem por objeto a divindade em si mesma, em primeiro e principal lugar. Por acréscimo Deus, pode querer, desejar, fazer feliz e amar o restante, o mundo, e os seres humanos. Nada precisando acrescentar a si, como objeto do seu querer divino, o mundo somente poderá ser desejado gratuitamente, como objeto dum amor de benevolência.

551. A potência ad extra, de Deus, não é passiva, como se algo fizesse para interesse complementar de sua própria natureza. Uma vez que Deus é infinito, nada faz para completar a si mesmo.

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Sua potência ad extra é exclusivamente criativa, com vistas ao ser criado em si mesmo. Neste sentido, Deus cria simplesmente por amor ao ser criado, sem que vise interesse para o próprio Deus. Importa este conceito para definir a religião apenas como uma glória de Deus, e não como um serviço em benefício deste mesmo Deus. Ninguém foi criado para ser servo de Deus, como se Deus fosse um Senhor, com servos a seu serviço para produção de bens úteis. O mundo de Deus não é como uma empresa de economia, destinada à produção de bens úteis. Pelo visto, a expressão servo de Deus cabe apenas em uso analógico, para dizer, por exemplo, que o servo é inferior ao seu senhor, como a criatura é inferior em relação seu criador. Neste caso importa usar corretamente a analogia, para não confundir a religião propriamente dito com o encargo da servidão, em vez de senti-la como espetáculo divino.

552. Difícil entender a possibilidade da criação, e portanto como se possa entender a potência ad extra de Deus, ao exercer esta criação. Partindo do fato que a criação acontece, tem-se que tentar conceituá-la. É difícil explicar, como a criação em si mesma seja possível.

- Como é que algo poderia surgir inteiramente novo, na ordem da existência?

- E como poderia caber algo novo, ao lado de Deus, se Deus em princípio é toda a existência?

Por sobre uma linha infinita não parece poder-se traçar uma nova linha. Talvez ao lado? Mas, se Deus é infinito, não existe nada vazio ao lado; portanto, já haveria as linhas infinitas de ser em qualquer lado. O monismo metafísico, sobretudo o panteísmo, tenta explicar todas as variações do mundo, como aspectos de uma só grande entidade, - Deus, incluindo o mundo como um dos seus infinitos modos de ser. Dado o caráter infinito de Deus, caberia também esta variação em seu todo, a saber, o mundo que ali está. De acordo com Espinoza (vd 356) em Deus haveria muitos modos, dos quais conhecemos dois, o espaço e o pensamento. Sendo eles o próprio Deus, não são ainda toda a divindade.

553. Explicação intrínseca de como se dá a criação, - as criaturas como modos limitados da existência de Deus. A partir da criatura se chegou a provar a existência de Deus, e inversamente a partir de Deus se explica a criatura intrinsecamente. Já antes que se fale em criação de uma coisa nova, surge a condição de que ela necessariamente repete algo do preexistente, e que se encontra no mesmo Deus. Efetivamente, sendo Deus uma natureza infinita, e sendo esta essencialmente infinita existência, nada mais pode haver, sem que seja ele. Parece, que a criação apenas se pode entender, como um outro modo de existir, daquilo que antes já existia. A criatura passa, então, a ser criada, repetindo algo do existir divino preexistente. Ela contém algo de Deus, mas cuja criação se dá no momento do seu novo modo de existir. Nesta tentativa de explicação da criação ocorre uma coesão muito íntima entre Deus e sua criação. Outras tentativas apenas fazem afirmações enfáticas, sem efetivamente provarem o que dizem. Analogamente, já é assim que se tenta compreender a Trindade (vd). Se Deus Pai possui toda a natureza divina (ou seja, todo o existir simplesmente), passa o Filho a existir como um novo modo de possuir esta natureza, a qual recebe integralmente do Pai, sem que este se desfaça dela. Neste sentido, as pessoas divinas se distinguem simplesmente pelo modo infinito de exercerem a existência infinita, enquanto que as criaturas se distinguem pelo modo finito de a exercerem. Deus apenas pode agir ad extra para criar algo que o repete, como que ao seu lado. Tal ação é a criação, pela qual se institui novo sujeito e respectiva forma (essência).

554. Concluindo sobre a natureza de Deus, ficou claro que Ele é muito diferente, em todo o gênero, dos seres particulares e do que deles imaginamos. O Deus, como a imaginação o criou, não existe, e nem precisamos cuidar dele. O verdadeiro Deus é o existente liberado ao infinito. Deste façamos a nossa religião.

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II ParteFILOSOFIA DA RELIGIÃO

" DA RELIGIÃO COMO CULTO"7270y555.

556. Introdução geral à religião como culto. Até aqui, a religião foi tratada apenas materialmente, pelos seus fundamentos, a saber a existência de Deus (vd 445) e sua natureza (vd 493).

Há certamente muitos envolvimentos na religião e que são denominados por um termo bastante genérico, - culto. Neste plano eminentemente geral se versa a religião como expressão cultual, que poderá ser tão só e principalmente interior à mente, e ainda exterior e por vezes até coletivo. Em planos mais específicos, o culto se manifesta em atos bem conhecidos, - adoração, reparação, prece, ação de graças, além dos detalhes referentes à visões, contato com os espíritos e culto aos santos. Dali resultou, conforme já anunciado (vd 11B) a divisão didática dos temas referentes à religião formalmente, ou seja como culto:

- da religião formalmente como expressão interna e externa (cap. 6) (vd 558); - a oração na religião (cap. 7) (vd 616); - a oração como adoração, reparação, prece, ação de graças, (cap. 8) (vd 675); - a meditação e contemplação, como métodos de oração (cap. 9) (vd 720); - visões, contato com os espíritos e culto aos santos (vd 737).

CAP. 6DA RELIGIÃO FORMALMENTE,

COMO EXPRESSÃO, INTERNA E EXTERNA.7270y558.

- Filosofia da Religião -559. Ingressando no estudo da religião formalmente, cuidamos primeiramente, - em um capítulo geral, - da sua expressão simplesmente, ou seja, da religião como algo que o homem exerce, ou pratica. Nesta perspectiva geral, cuidamos tanto de sua expressão interior, como exterior. Dali resulta a divisão didática:

- exercício interior da religião (vd 560); - exercício exterior da religião (vd 597).

ART. 1-o - EXERCÍCIO INTERIOR DA RELIGIÃO.7072y560.

561. A essência da religião já está toda na expressão interior, exercida pela mente. É bastante pacífico que a religião, em essência, consista na glória de Deus enquanto exercida conscientemente, pela criatura, e isto se exerce já essencialmente na expressão interior. O destaque principal da religião se situa na glória de Deus, enquanto esta é exercida pela criatura. A gloria é um conceito de muitas conotações, de que são essenciais umas, e acidentais outras. Cuidaremos didaticamente do tema, nos seguintes quatro três itens:

- a religião como conscientização de si como glória de Deus (vd 563); - análise maior sobre a glória (vd 572); - Dever ético da prática da religião (vd 586). - Complicadores de culto em religião salvacionista (vd 590).

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I – A religião como conscientização de si como glória de Deus.7072y563.

564. Não fosse o sabor da auréola da glória, muitas coisas os homens não as fariam. Mas, porque resultam em glória, são feitas com todo o esforço. A glória é, pois, algo agradável e desejável. Por vezes a glória é passageira, sendo dada então como sem importância e até mesmo como ilusão desrecomendada em virtude do esforço e tempo dispendidos. Outras vezes a glória se faz com coisas pequeninas, e então parece banal. A glória produz satisfação, com aparência de vaidade e orgulho; por isso não faltam os que a desaconselham como vã. Todas as características acima são nuances acidentais da glória, que a podem fazer apreciável. Mais no fundamento a glória oferece ainda mais, e que a torna eminente. Não obstante tudo o que possa acontecer eventualmente com a glória, ela é o que de mais digno se pode aspirar. A glória tem fundamento metafísico. Envolve toda a divindade e é o fim último externo do homem. Efetivamente, por mais paradoxal que pareça, o homem é também uma glória de Deus. Enfim a glória se confunde com a própria religião. Nenhuma glória é desprezível, desde a parte mais singela à mais elevada. A glória é como que uma sucessão de degraus, em que o precedente é necessário para o seguinte. Tudo na glória é válido e a faz ser muito desejada. Há algo que em todos os seus graus se encontra sempre presente e que a define essencialmente e em que consiste também a religião no que tem de principal.

565. Definição da glória. Mais essencialmente, - que é a glória? A definição já vem de Cícero, - a glória é um certo brilho. Uma vez que a glória é um certo brilho, ela é manifestativa do ente que em que ela reluz. O brilho da glória é manifestativo de algo. Eis um primeiro elemento da glória. É neste aspecto manifestativo que devemos insistir. É no seu caráter manifestativo que está um seu elemento essencial. Há uma aproximação, portanto, entre o conhecimento e a glória. Ora, o que brilha, se manifesta aos olhos. A palavra brilho está aqui em sentido metafórico. Se as coisas brilham aos olhos, por metáfora dizemos que brilham também à mente. Na imaginação, este certo brilho assume a forma como que de uma auréola, que destaca aquele que a tem. Agostinho de Hipona dirá que a glória é uma boa notícia com louvor (clara cum laude notítia). De novo aparece aqui uma ligação com o conhecimento na palavra usada "notícia". As definições mencionadas destacam o aspecto noticiante. Aquilo que se manifesta vem a nós como uma informação. O que brilha chega aos olhos e mesmo à inteligência. O que se louva, tem de ser antes manifesto. A glória apresenta algo, que se faz conhecer. De fato, quem busca a glória procura fazer-se conhecido àqueles junto dos quais se gloria.

566. A glória verdadeira. É condição da glória a perfeição do objeto glorificado. Sem esta condição, ela é uma falsa glória. Na glória o objeto em questão requer, pois uma condição, em virtude da qual exatamente se faz glorioso. Por isso, a glória é um certo brilho, que deriva do objeto e lhe manifesta esta condição. Também por isso se diz que a glória é uma notícia com louvor, ou seja, um louvor pelo que o objeto contém de especial. A perfeição é o estado do objeto que se manifesta glorioso. Os destaques podem ser a grandeza, a beleza, a força, o sucesso, o valor, a correção moral, a habilidade, etc. Quando a perfeição envolve uma ação e um esforço, esta perfeição passa a ocorrer quando a realização se concretiza. O potencial se aperfeiçoa ao ser levado ao real. Em Deus o real já desde sempre acontece; mas nos seres limitados a realização se busca continuamente, e assim a sua perfeição é oscilante e a glória consiste num brilhar de conquistas renovadas.

567. Importa ainda atender à gloria como linguagem e ainda a outras linguagens que a ela se associaram. O termo glória vem do latim, onde tem a mesma forma e o mesmo significado que no vernáculo português. A carga imaginativa que envolve o contexto da glória converteu a noção ainda em algo mais complexo, encobrindo cada vez mais aquilo que contém de mais metafísico, enriquecendo-a, todavia.

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568. Equivalentes de glória, - culto, fama, homenagem, honra, religião. Também outras denominações foram surgindo, de acordo com as nuances destacadas pela crescente complexificação de glória. Assim acontece que a linguagem da religião, como expressão interior e exterior, não se limita apenas ao conceito de glória e ao verbo glorificar.

a) Culto (do indo-europeu kwel –círculo), derivado da forma latina colere (cultuar), contém o sentido de "ocupar-se com". Dali evoluiu para um ocupar-se como homenagem. Desta sorte, culto passou a ser um serviço mais complexo, cujo sentido final é o de prestar homenagem, ou praticar a glória do cultuado. Centralizou-se finalmente o culto como designativo deste mesmo serviço, quando praticado em função a Deus. E assim culto (vd 601) ficou sendo uma linguagem específica do relacionamento do homem para com a divindade, sobretudo para a expressão exterior, de que estão próximos os significados de rito e liturgia.

b) Fama, do latim fari, fatus (= falar, prognosticar, de onde fama e famoso) é um equivalente de glória, ou de notícia com louvor, ou de certo brilho, com a nuance de difusão da notícia. Mais exatamente, fama é o que de bem se fala, a respeito de alguém.

c) Homenagem, do indo-europeu khem (= terra), de onde derivam as formas latinas e neolatinas húmus, humilde, humano, homem, finalmente homenagem, é a glória, com expressa iniciativa de atribuir ao homenageado aquilo, que o faz brilhar. Pela sua origem etimológica, a homenagem se faria ao homem. Depois se estendeu a Deus.

d) Religião combina o culto com alguns pressupostos doutrinários. Termo polissêmico, religião, ora destaca o culto, ora os pressupostos doutrinários. Quando se diz que alguém é indivíduo muito religioso, o destaque é o culto. Quando a declaração é a de que pertença à seita tal ou tal, a denominação é doutrinária, ainda que esta caracterização envolva também o respectivo sistema ritual de culto; neste sentido se diz religião judaica, religião cristã, religião islamita, religião budista. Etimologicamente, o termo religião deriva provavelmente, e de acordo com Cícero (106-43 a. C.), do latim re-legere (= retornar, revolver, voltar pelo mesmo caminho). Neste sentido sugere considerar algo com cuidado e atenção. Em interpretação posterior, que se atribui ao escritor cristão Lactâncio (3-o. século), o termo religião derivaria de religere (religar). Não obstante ser menos segura esta outra interpretação, ela aponta para algo peculiar à religião, qual seja a de ligar o homem com Deus. Não obstante, a interpretação de Cícero, definindo o termo religião como um considerar algo com atenção, melhor se aproxima do significado essencial.

e) Honra, do latim honor (= honra, respeito, crédito), através do verbo honrar, passou a significar também o culto. Neste sentido, a prática da religião é um honrar a Deus.

f) Em virtude da aproximação entre o conhecimento e a glória, difundir o conhecimento sobre alguém, pode, em consequência, glorificá-lo. Por isso também se verificam expressões com "bom conceito", "bom nome", no mesmo sentido de fama e honra.

569. Glória objetiva e glória formal. Há a distinguir entre glória objetiva e glória formal e aplicar estes dois conceitos de base em religião. Por parte dos seres sem o exercício do conhecimento a glória é apenas objetiva, porquanto não é do conhecimento deles mesmo. Manifestativa porém diante dos seres conscientes, é contudo uma glória. Um exemplo similar ao de glória objetiva é o da expressão artística. A arte exprime objetivamente, sem ter ela consciência própria, sendo apenas interpretada por quem a aprecia. Não sabem as palavras mesmas, que elas são portadoras de notícias. Apenas os indivíduos conhecedores do código lingüístico as entendem, captando-lhes a mensagem.

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Assim é o grande mundo da natureza inconsciente, ao menos aparentemente. Ela é manifestação apenas objetiva da glória do seu Criador. É pois glória objetiva de Deus toda a coisa por ele criada. Sua glória está nas estrelas, nas alvoradas, nos panoramas, nos vargedos, nas plantas, no microcosmo e no macrocosmo. Mas esta glória objetiva passa a ser consciente para os intérpretes. Glória formal é a denominação por vezes usada para expressar a glória conscientemente assumida. Significa que a glória é tomada em sua essência expressa, consciente por parte de quem possui as condições de a apreender como manifestação.

570. A religião como glória acontece no ser racional, quando conscientemente assume a condição de perceber, que ele mesmo é uma glória para Deus. Começa a haver a religião, quando, - conforme se disse de começo (vd 461) – a glória de Deus é exercida conscientemente pela criatura. Portanto, quando a criatura se vê a si mesma e a todos os seres criados, como a glória de Deus, isto é, como manifestativos dele. Importa que cada um, pessoalmente, se conscientize, do seguinte: - enquanto ele mesmo cresce e se vai realizando ou se desenvolvendo, ou se formando ou se educando,- é, e cada vez mais, uma glória de Deus; - enquanto interpreta cognoscitivamente todas as demais coisas como manifestativas de Deus, mais uma vez glorifica a Deus; - enquanto traduz artisticamente a glória de Deus em ações exteriores, com palavras, música, pintura, escultura, cerimônias litúrgicas, exerce, ainda por mais um modo, não obstante apenas de expressão artística, a glória de Deus. Nestas três coisas, - eis toda a religião.

II – Análise maior sobre a glória.7072y572.

574. A glória, de que se ocupa a religião, é enfatizada geralmente a partir da criatura para Deus: é a criatura que, - atenta à sua finalidade externa, - glorifica a Deus. Mas, do ponto de vista ontológico tudo começa pelo lado do mesmo Deus, o qual também tem a glória. Ainda que não houvesse ocorrido a criação, a glória também envolveria a Deus. É a glória um atributo de todo o ser, do qual é manifestativo. Quanto maior o ser, maior a sua glória. Deus é o máximo, sendo pois máxima a sua glória.

575. A investigação pelas 4 causas do ser. Importa atender a um esquema sistemático de exposição, para desenrolar todo o contexto em que se dá o ser de Deus e sua glória. Advertiu Aristóteles que a natureza total de um ser se determina pelas suas 4 causas. Neste contexto, causa tem um sentido mais amplo, que o de causa eficiente, que é apenas uma das 4 indica indicadas, de que as outras 3 são a causa final, a causa formal e a causa material. A noção mais geral de causa significa todo e qualquer constitutivo que faz algo ser ser tal ente. Então conhecer a um ente pelas suas 4 causas, significa ter dele um conhecimento exaustivo. Duas das 4 causas são constitutivas intrínsecas, a saber a causa formal e a causa material. As outras duas são constitutivas extrínsecas, a saber a causa eficiente e a causa final. O principal num ente é sua causa formal (constitutivo interno), e que eventualmente pode estar determinando uma causa material, em que está recebida. Importa, contudo também uma causa eficiente, que garante a efetividade das causas formal e material. Por último, a causa final, representa o para que tudo acontece. Responder, portanto, plenamente sobre o tema, - o que é um ser?, - importa dizer o que ele é, do ponto de vista de suas 4 causas, - formal e material, eficiente e final. Resta nada mais a indagar e responder, depois de concluída esta perfeita sistemática. Em Deus e nos seres finitos não têm as noções das 4 causas o mesmo alcance. Tudo se dá, todavia, por analogia. A causa formal, não acontece em Deus como nas criaturas. Deus não foi causado por outro; somente poderá ser considerado como causa de si mesmo; esta causa de si mesmo se entende como tendo sua razão suficiente, tanto agora, como desde sempre. Quanto à causa formal, de novo, não acontece em deus como nos demais seres; Deus não tem forma em virtude da qual obedeça a uma certa estrutura, porquanto está liberado de todas as determinações, isto é, de todas as formas, de todos os modos de ser, de toda a essência definida. Não obstante, por analogia, há uma forma de ser deus: a maneira de ser Deus consiste precisamente nisto, de estar liberado, como existência sem essência, como ser simplesmente subsistente.

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Enfim, se pergunta pela causa final em Deus. Novamente não existe finalmente em Deus no mesmo sentido que acontece nos demais seres. Estes outros seres, por serem criados, dependem de sua finalidade externa, estabelecida pela causa eficiente, que os criou. Qualquer causa inteligente, ao produzir algo, tem em mente realizar algo, e, enquanto busca este algo, tem nisto um objeto, ou seja, uma finalidade. Ora, Deus não é produzido por outro, e por isso uma finalidade exterior não lhe adveio por esta via. Não obstante Deus não é ente sem finalidade; ele é finalidade em si mesmo. Do mesmo modo Deus é concebível como causa de si mesmo (razão suficiente por si só), esta causa divina tem igualmente em Deus sua finalidade. Tivesse Deus por finalidade apenas o de ser a causa do mundo, não teria em si mesmo finalidade, e seria em si mesmo inútil, como uma vã paixão.

576. A questão da finalidade apresenta ainda mais complexidades. Há uma finalidade externa e outra interna. Os seres criados apresentam com, certa clareza, estas duas finalidades: internamente buscam o próprio bem estar (dito também satisfação, prazer, felicidade), extremamente, são a manifestação da causa eficiente que os produziu, manifestação que também se denomina glória. Esta manifestação externa, que os seres criados representam, para a causa eficiente que lhes deu origem, contém ainda novas complexidades. Também a utilidade é um fim externo, que a causa eficiente poderá ter em vista, que em última instância se reduz ao mesmo gênero de manifestação da causa eficiente. Em Deus ocorre a finalidade da felicidade como fim interno; já o dissemos das demais coisas. Mas em Deus se trata de uma felicidade perfeita, como acumulação atual de todos os bens. Diferentemente ainda do que acontece com a felicidade dos demais seres, nos quais ela é apenas um estado de espírito, em Deus a felicidade se confunde com seu mesmo ser como um todo. Portanto, entre a felicidade divina e as felicidades dos seres particulares, há apenas analogia; ela não ocorre ao modo da predicação unívoca, ou seja, não acontece de maneira igual em Deus e em nós. Há a glória divina, de que cuidaremos primeiramente, e a glória do mundo que glorifica a Deus, da qual nos ocuparemos um pouco depois. Em ambos, a glória é externa; mas não é do mesmo modo. Em Deus não se trata de uma glória para outro, como a criatura é a glória do outro, ou seja do seu criador. Em Deus a glória divina é manifestação de si mesmo, para si, do mesmo modo como Deus é conhecimento de si mesmo para si. Há um para... todavia este para... é um para si. Portanto há um termo de referência, ainda que diferente que o da criatura. Algo é semelhante e algo é diferente, conforme a regra da analogia.

577. A glória atinge o ser em sua totalidade. Não há ser sem glória. Apenas o nada, - até certo ponto também a deficiência, - não têm a glória. É que todo o ser manifestativo de si mesmo, e tudo o que ele é, se diz perfeição. Na proporção que se manifesta, brilha e dá noticia de si mesmo, todo o ser produz glória. O ser menor, por mínimo que seja, algo contém para manifestar como glória. Deus, enquanto se manifesta a si mesmo, é o máximo de perfeição. Comparece glorioso em infinito grau ao seu mesmo conhecimento. Também este é infinitamente capaz de apreender toda aquela perfeição. Igualmente os demais seres, enquanto se expressam em seus níveis limitados de ser, até este nível atingido, realizam uma glória, que é a sua glória e ainda são a glória de outras como daqueles que os geraram. Se, são obras, manifestam a glória dos seus operantes, - sejam estes artistas, sejam operários, sejam eventuais obrantes, sejam até mesmo simples pensadores. Aqueles que geram filhos, ou educam a outros, também têm no resultado a sua glória. Finalmente, na hipótese que, direta ou indiretamente, todos os seres finitos dependem da operação divina, são também as manifestações de Deus, e, por conseguinte a glória de Deus. A realidade total, - Deus e o mundo, - constitui-se em um quadro geral de glória, porquanto a glória atinge a totalidade do ser, já que todo o ser é manifestativo de si mesmo. Suposto que existam espíritos bons (anjos) e espíritos maus (diabos) até mesmo estes últimos, enquanto são ser, glorificam objetivamente a Deus, porque a glória atinge o ser na sua totalidade. Apenas se pode imaginar que os espíritos maus não exercem glória formal, porque não têm a intenção de a exercer.

578.A glória se liga intimamente com a noção de idéia exemplar. Uma ação colocada racionalmente se faz antecipar do prévio conhecimento do objeto a realizar.

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Deus, ainda que ato puro, age, mesmo nesta condição, sempre racionalmente, e portanto com uma idéia exemplar à vista. O mesmo poderá acontecer com os seres finitos, dotados de ação livre. Quando capazes de agir racionalmente, o fazem em função a uma idéia exemplar. Até a ação instintiva obedece a um esquematismo natural, sendo pois um processo objetivamente racional, com uma idéia exemplar à vista, para observa dita ação exteriormente. Para ser livre, uma ação deve antecipadamente conhecer seu objetivo para poder escolher entre as diversas opções. Toda a ação livre, colocada com idéia exemplar precedente, tem por finalidade externa reproduzir esta idéia exemplar em um novo ser. Este novo ser estabelece a si mesmo como algo próprio, sendo então o que é. Mas, ao mesmo tempo é também uma notícia da idéia exemplar segundo a qual foi produzido. Este é seu fim externo, porque se orienta para fora de si, em direção da causa geradora. Na hipótese da criação, as criaturas são manifestações da idéia exemplar segundo a qual o Criador as fez. Nesta condição elas são manifestativas daquela idéia exemplar. Mas em Deus a idéia exemplar coincide com ele mesmo, por ser um ente simples e infinito. Deus é exemplar enquanto imitável dos mais variados modos. Por parte de Deus a idéia exemplar é uma só. Por parte das criaturas resultantes de sua imitação poderá ser múltipla. Ainda que se possa distinguir entre Deus mesmo e Deus como idéia exemplar, a criatura que resultou é notícia duplamente, - da idéia exemplar e de Deus, - porquanto concretamente são a mesma coisa. Em Deus a idéia exemplar coincide em concreto com ele mesmo, ao passo que na criatura há uma distância entre a idéia e a faculdade que a tem.

579. Coincidência concreta da glória e da felicidade. Na criatura há uma coincidência importante no que se refere aos fins, e que permite glorificar a Deus ao mesmo tempo que buscando a felicidade. Materialmente isto é, concretamente, coincidem o fim interno e o externo. A coincidência oferece uma notável vantagem. Porque na medida que o ser busca a si mesmo (desenvolvendo-se e se tornando feliz), também realiza o fim externo (ou seja a glória ). Quanto mais o homem se realiza, maior é a glória, a sua e a de Deus. Igualmente a infinidade interna de Deus como ser, equivale externamente a uma glória infinita. Com referência à religião, importa acentuar que o homem louva a Deus quando cuida de si mesmo, porquanto, na mesma medida que evolui internamente, se torna externamente uma notícia de Deus. São duas faces da mesma coisa concreta; não é possível uma sem a outra. Pela efetivação dos fins internos, o homem alcança os externos. Está entendido que o homem se exerça conscientemente, para que a glória exercida não seja apenas objetiva, mas também uma glória formal. Ao mesmo tempo que se realiza como ser, assume conscientemente o glorificar a Deus. Ao contemplar o mundo (as estrelas, as nuvens, as plantas, as flores etc.) igualmente em tudo ele se adverte que tais coisa constituem a glória de Deus, ao mesmo tempo que são algo em si mesmas. Esta conscientização poderá ser formulada em palavras (oração vocal). Todavia a formulação em palavras não é essencial à glória de Deus, ainda que tenha a sua conveniência, conforme oportunidade, se mostrará. Precisamos isolar esta formulação verbal, como secundária, porque ela poderá facilmente desvirtuar a essência da religião. Pó confundirem a religião com a sua exteriorização não atendem alguns para o sentido mais profundo da mesma. Para situar corretamente a religião importa sempre advertir que materialmente os fins externo e interno coincidem, de tal sorte que não se louva adequadamente a Deus senão pela realização dos fins internos. Os verdadeiros filhos de Deus são felizes ao mesmo tempo, que o glorificam. Ao mesmo tempo, que vivem ao máximo, todavia conscientes, do que isto significa em termos de totalidade, são ao máximo religiosos.

580. O falso rigorismo. A não compreensão da complementaridade dos fins, interno e externo, viciou toda a ética tradicional, com um falso rigorismo. Tal aconteceu com o orfismo, o platonismo, as religiões de práticas ascéticas. Não é pela renúncia penosa de um fim interno, que mais facilmente se alcança o fim externo, mas pela sábia conjugação de ambos. A concepção deformada o fim externo, conceitua que o homem prática a glória de Deus, como um sair de si, devendo abandonar algo de sua natureza. Entende que a transcendência mental seja uma evasão da finitude, como um encaminhar-se para um álibi. Sobretudo se insensibiliza pelo lado humano, rejeitando a matéria, sobretudo o prazer do sexo, por ser este o mais forte. Exalta o celibato como um estado de perfeição, porque o entende como aquele em que melhor se poderia prestar serviço a Deus. Ainda que o argumento possa acidentalmente valer, como por exemplo para o soldado na guerra, ele não vale no quadro geral da glória de Deus.

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A moral deste tipo tradicional vive a ilusão da pomba, mencionada por Kant: "A leve pomba, enquanto em seu livre vôo fende o ar, de que sente a resistência, poderia imaginar, que mais sucesso teria ainda no vácuo. Efetivamente, porém não poderia voar sem o ar a lhe resistir sob as asas". E assim, o homem, sem ser por meio daquilo que ele é, não poderia realizar a glória prevista pela natureza. Finito que é, a transcendência para o Infinito, a fará por meio do finito. Apenas o finito, nele existente, poderá glorificar objetiva e formalmente o Infinito. Não se exige mais dele. Nem será mais perfeito, se tentar coisa supostamente melhor. Não será, portanto, pela destruição do finito, que o homem glorificará o infinito. Também não será pela eliminação de alguns dos aspectos do finito, como o da rejeição de sua sexualidade, que louvará o Infinito. Há um só instrumento para o verdadeiro louvor prestado pelo ser finito, - manter-se no finito e fazer cresce este finito, em toda a sua plenitude de realização humana, com vistas ao ser humano integral, e tudo isto de maneira consciente do ponto de vista do finalmente externo. Só há um meio de transcender ao infinito, - as asas, do finito. Não existe como lançar-se no espaço infinito, pelo abandono das asas do finito. Também não voa bem a ave com asas prejudicadas pela excessiva grandeza. Assim também o homem finito, não louva a Deus, senão com a plenitude objetiva e atualizada de suas efetivas potencialidades. A transcendência se atinge pelo exercício da finitude, tal como ela é, sem falso rigorismo, mas pela sábia combinação dos fins, - interno e externo, - ou seja, da felicidade interna, esta já entendida externamente como glória de Deus.

581. Religião como ontologia da finitude, e que seja vigorosa, eis o que importa para ser fiel à mesma finitude. Sem esta ontologia da finitude não poderá haver uma religião verdadeiramente perfeita. A via religiosa pela negação da finitude é o falso atalho, por onde se desencaminham os piedosos superficiais. A religião verdadeira é uma exaltação da finitude, em pleno embalo da atualização das potencialidades, como Deus as lançou na existência. Religião não é negatividade e nem alienação. É presença luminosa do finito, na plena rescendência das suas virtualidade todas em realização, ao mesmo tempo, que formalmente o homem é consciente do seu finalismo externo último. À medida que o homem atualiza as suas potencialidades naturais, plenifica o retrato de Deus no plano da criação. Entender a religião como uma ontologia da finitude pode parecer que os simples não têm a possibilidade de atingir um estado religioso perfeito. Efetivamente, os simples não têm acesso ao estado religioso perfeito, mas o poderão atingir até um certo grau, e progredir sempre, com o auxílio do esclarecimento buscado com constância. Importa que os simples não sejam alcançados por falsos pregadores. Estes falsos pregadores são numerosos, até costumam ser bem intencionados. Em religião das massas foi sempre assim, - os que sabem menos conduzem aos que sabem pouco, e chamam heréticos aos que sabem mais.

A adoração, que é tão só um aspecto da glorificação, enquanto reconhece a Deus como supremo ser, é desvirtuada ao esquecer que a principal ênfase da glória prestada pelo homem a Deus consiste na sua realização objetiva. Tem-se, pois, que interpretar com cuidado a afirmativa do grande pregado Lacordaire: "A adoração é o aniquilamento de si mesmo, diante de um ser superior" (Pensées choisies, 20). A distorção religiosa também se dá ao se acentuar o relacionamento com Deus, através do sentimento do temor: "Os que adoram a Deus, apenas porque o temem, adorariam também o Diabo, se lhes aparecesse" (Tomás Fuller). Enfatizando a justiça divina, a religião primária e tradicional se concentra em práticas de "satisfação" à divindade ofendida, em vez de se centrar a glorificá-la.

582. Antes do louvor em palavras, importa em primeiro lugar pensar corretamente a glória de Deus, e mais que isto, em viver ativamente esta sua glória. A perfeição religiosa não consiste, - como já se advertiu, - em renunciar à vida ativa, para nos reduzir a uma situação contemplativa meramente laudatória. A religião plena, conforme já havemos insistido, não consiste em renunciar a atualização de potencialidade naturais, sejam as inferiores (como as da sexualidade), sejam as superiores (como à posse de bens e ao uso livre da vontade), a pretexto de liberar tempo para uma atitude laudatória. No brilhar de plena consciência e na sua atividade para obter a felicidade (vd 579), leva o indivíduo sua religião à plenitude.

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583. Os fins externos menores, como a utilidade e similares, que se exercem de um ente em função a outro, são de ordem entitativa e já não de simples modelagem geral da ação. Desta sorte, os entes se condenam externamente uns em relação a outros para se complementarem. Tais fins externos, ditos menores e que são de ordem entitativa, somente podem ocorrer entre seres finitos e limitados. Apenas por causa de suas limitações é que podem coordenar-se em todos compostos maiores. Não há fins externos menores entre Deus e as criaturas. Os fins externos menores, em detalhes, são examinados pela ética especial. Nesta são postos em destaque os deveres entre os homens, quer familiares, quer sócias, quer políticos. Em qualquer das hipóteses, o caráter geral das obrigações nasce do princípio básico do finalismo externo ocorrido entre os seres limitados. Em virtude deste princípio fundamental se afasta o individualismo em todas as circunstâncias. Ainda que os fins externos sejam a coroa de todos os fins, sendo a glória a agradável notícia que os seres dão de si mesmos, os fins menores, como a utilidade e a filantropia, constituem o arrimo das coisas e pessoas, coordenando-se entre si. O triunfo retumbante, eis a que tudo conduz.

584. Culto pela declaração antecipada de intenções. A ação realizadora tem uma sequência no tempo, e que permite momentos de intenção expressa e que depois se cumprem com a intenção conservada implicitamente. Por este expediente a glória formal (a consciente) pode ser antecipada, pela declaração de intenções. Propõe-se então o ser racional, antecipadamente a praticar de futuro todas as suas ações, por exemplo as daquele dia, tanto para seu bem interno, como ainda para a glória de Deus. Alguns praticam esta antecipação de maneira muito sistemática, exercendo a chamada oração da manhã, as vezes também a oração da noite, bem como a oração de antes das refeições. Alguns se utilizam para isto de formulários, outros de um momento de concentração. Na verdade, é possível distanciar, no tempo, a glória objetiva e a respectiva conscientização que converte a glória objetiva em formal. É que o ato humano e a consciência do seu fim externo podem ser exercidos separadamente no tempo. Isto de faz, anunciando previamente que os atos futuros serão exercidos com a intenção de que sejam para a glória de Deus. Costuma o homem religioso declarar as intenções do curso do seu dia, dizendo que tudo fará para a glória de Deus. A glória formal é assumida na antecipação por declaração, e a glória objetiva se efetivará no curso do dia, no instante, em que os atos respectivos, anunciados na oração, se realizarem. A mais perfeita glória formal é a que se exerce ao mesmo tempo, que o ato se realiza. Não obstante, a ação e a intenção concomitantes, podem ambas ser previstas e antecipadamente decididas. Quando a antecipação ocorrer, a intenção persiste com atenção habitual, podendo voltar a ser atual, de tempos em tempos.

585. Fim atual, fim habitual, fim interpretativo, é como se classificam os fins em função ao fim formal. O fim atual tem uma atenção expressa no instante da execução. Neste caso, ao mesmo tempo que o ato se exerce, a glória de Deus está também na expressa intenção do ato. Eis a melhor maneira de praticar a religião. Portanto não importa, neste sentido essencial, ir a um templo, embora outras razões também o recomendem. O fim virtual tem uma decisão anterior, expressamente tomada, para o ato, e que no decurso do ato não continua a influir, mas que não foi retirado, ainda que não conte mais com a expressa atenção de quem o exerce. Em se tratando da glória de Deus, é a decisão de a exercer, por deliberação antecipada, como exatamente declara o homem em oração. O processamento da finalidade virtual é semelhante. A execução, embora suspensa, ao ser retomada, não tem alteração do fim inicialmente estabelecido. Finalmente, no caso do fim interpretativo, não ocorre nenhuma eleição, mas haveria se a pessoa chegasse a se advertir sobre a questão. Nesta última modalidade de comportamento a glorificação de Deus não alcança o nível daquelas outras formas anteriormente indicadas. Todavia é o que com frequência acontece, no viver cotidiano, cheio de azáfamas e absorventes preocupações. Pelo visto, o distanciamento no tempo da eleição formal do fim externo (a glória) e de sua expressão objetiva resultam em um complexo sistema de interações. A compreensão perfeita de todo o sistema garante a cada qual uma religião plena.

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É claro que só um adiantado estado filosófico consegue elevar o espírito humano à um tão elevado e sofisticado espírito religioso.

III – Dever ético da prática da religião.7072y586.

587. Pergunta-se pelo preceito ético da religião. A prática da religião, no sentido de expressão interior, é um preceito ético, no mesmo sentido como são todos os preceitos da ética, - desde que admitida como fim externo da criação a glória de Deus. Não parece que o preceito ético da religião ultrapasse os limites da expressão interior, apesar da tendência expontânea da prática exterior, inclusiva da artística. No sentido de prática da expressão ritual exterior, certamente não cabe nenhum preceito ético natural. Ainda que seja uma tendência, a tradução exterior não é naturalmente impositiva. Finalmente, cada qual tem o direito natural de seguir a consciência que eventualmente tenha formado da religião, no mesmo sentido que se diz direito de liberdade de pensamento. Efetivamente, diverge muito a religião de pessoa para pessoa, tanto no essencial, como no acidental.

588. A prática da religião sem exercício exterior obrigatório, talvez seja o melhor caminho, apesar do que acontece usualmente nas religiões tradicionais. Não se trata de repudiar o exercício exterior da religião, mas de deixá-lo entregue à sua espontaneidade. A obrigação da religião exteriorizada costuma ser imposta pelos seus fundadores e pelas suas autoridades, geralmente autocráticas. Nas religiões tradicionais é típica a crença em um elenco de ritos, entre os quais usa constar um cerimonial purificatório. O mais frequente ritual purificatório é o do batismo. Praticado nas religiões arianas, na Índia e na antiga Pérsia, passou aos ocidentais, primeiramente aos órficos e aos pitagóricos. Os judeus praticavam o rito purificatório da ablução das mãos. Mas alguns dos judeus, os da seita dos essênios, - talvez por influência neopitagórica, - aderiram ao batismo, que depois passou também aos cristãos (vd 156). Tendo o cristianismo o caráter de religião salvacionista, foi lhe dada a rigorosíssima obrigação condicionante, pela ordem atribuída a Jesus e dada aos seus discípulos: "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem crer e for batizado, será; salvo. Mas, quem não crer, será condenado" (Marcos 16, 15-16). Algumas práticas meramente cultuais também costuma haver entre as religiões tradicionais, que as usam considerar obrigatórias. Tem destaque a guarda de um dia na semana. Os judeus guardam, desde a antiguidade, o sábado. No curso do Império Romano o dia de domingo era um dia mais ou menos especial. Por causa do uso romano, os cristãos, - porque acreditavam haver ocorrido neste dia a ressurreição de Jesus, - tiveram facilidade de consagrar este primeiro dia da semana, como dedicado ao culto. A Igreja Católica se julga com o direito de estabelecer normas sub grave em detalhes do culto e de sua liturgia. Estabeleceu a grave obrigação da frequência à missa aos domingos. Também determinou o jejum e o da abstinência de carne em certos dias do ano, bem como o da reza diária de algumas orações aos seus ministros. O dizer tão vulgarizado "praticar a religião" admite, portanto duas acepções. Uma, a fundamental, significa praticar o que é essencial à religião. Consiste apenas na ativa conscientização mental do fim externo último do homem, à glória de Deus. Nesta acepção essencial, praticar a religião significa o reconhecimento prévio da existência de Deus e de que a glória é o da criação. Posto isto, a doutrina é levada à prática, pelo exercício da atualização humana conscientizada. Esta é toda a religião essencialmente. Quem pratica a religião em espírito, jamais é hipócrita. O outro sentido, o menos importante e acidental, porém o mis conhecido pelos superficiais, consiste em entender por prática da religião, o exercício da expressão manifestativa exterior. Nesta acepção, a prática de religião é constituída de gestos, palavras, cerimônias, rituais litúrgicos. Este outro sentido, o exterior, também é bom, desde que bem conduzido, Pode acontecer, entretanto, que religiosos primários multipliquem e convertam o exercício exterior da religião em atividade penosa e em estafante dissipação de tempo. É claro que a pregação religiosa deve enfatizar o primeiro sentido, o da prática essencial da religião, integrada na vida mesma do indivíduo. A religião integral não precisa muito dos templos, mas de uma boa filosofia na cabeça.

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589. O exercício do culto como um direito de todos. Mesmo com limitações, e até com erros, o culto é um direito subjetivo dos que o praticam, em decorrência da liberdade de consciência, isto é, de pensamento. A limitação eventual do direito de culto religioso apenas poderá ocorrer, quando o seu exercício prejudicar a terceiros. Não há por exemplo o direito de matar a terceiros, como sacrifício a ser ofertado. Pode o culto simplista dar-se apenas por falta de desenvolvimento, e portanto sem erro (vd 581). Ele também poderá ser simplista pela inclusão de erro doutrinário, e assim costuma acontecer. As diversificações religiosas por divergências doutrinárias diversificam logicamente também o culto, porque este não é senão a expressão da doutrina de fundamento. É por isso, que o culto varia desde os seus elementos mais simples, até as complicações trinitárias. O culto praticado pelos indivíduos mais simples está condicionado a um contexto assaz imaginoso, emotivo e superficial. Para eles Deus é um ser antropomórfico, de costume entronizado regiamente no centro do alto céu. A complicação para o simples aumenta, ao multiplicar os deuses. Mais ainda se complicou para os simples a religião ao se lhe ser apresentada a sutil doutrina teológica da Trindade, porquanto não conseguem conceituar adequadamente três pessoas divinas em função apenas ao modo de possuírem a mesma natureza de Deus. Neste plano, houve na Idade Média quem propusesse um Reino do Espírito Santo, superando o de Jesus. O antigo pagão multiplicava os deuses e os fazia coincidir com as forças da natureza, atrás das quais se encontrava o respectivo Deus, também com uma figura antropomórfica. Os espíritos dos mortos, de que alguns seriam santos, sempre tiveram função na religião dos simples. A doutrina dos anjos passou a ser mais um complicador, e que veio da religião zoroástrica dos antigos persas, para o judaísmo recente, e dali para os essênios e cristãos. A diversificação religiosa e do culto correspondente mais uma vez ocorre, quando alguns admitem que Deus tenha falado (por revelação sobrenatural), de sorte a estabelecer direções precisas para o destino humano, com as respectivas práticas rituais e culto. E assim acontece haver, ao lado da religião natural, uma religião sobrenatural. Esta dupla, - natural e sobrenatural, - para o homem simples, acontece sem maior preocupação com as provas. Geralmente o simples adere à primeira religião sobrenatural que for apresentada, sobretudo se for salvacionista. Importa, por isso, uma consideração de maior detalhe neste campo, já que é nele que labutam quase todas as religiões tradicionais do mundo. Todavia, nos vamos concentrar em um só destes modelos religiosos, - o cristão, - ficando os demais conhecidos por alguma analogia, e também pela introdução histórico-crítica às religiões (vd 049) e à história da filosofia da religião feita inicialmente em capítulo especial (vd 196).

IV- COMPLICADORES DO CULTO EM RELIGIÃO SALVACIONISTA.7270y590.

591. Complexificação operacional em religião. Apresenta-se enorme a diversificação das religiões sobrenaturalistas, sobretudo quando elas assumem o caráter de religião salvacionista. A consequência imediata do exercício de tais religiões, sobretudo das salvacionistas, é a sua complexificação operacional. Ela chega a ser tão grande, que se pode levantar a pergunta globalizante, - se por isso mesmo o todo fica sendo duvidoso, porquanto parece sem sentido que Deus tenha tornado tão complexo, o que a sua grande sabedoria poderia ter tornado mais simples e praticável. Entretanto é contudo possível que tenha eleito esta imensa complexidade. Uma consequência dos complicadores do exercício das religiões sobrenaturalistas, sobretudo as salvacionistas, é da necessidade de um pessoal burocrático especializado, como o dos sacerdotes. A eles se creditam poderes rituais especiais, atribuições autocráticas sobre a comunidade, competência muito específica para ler os livros sagrados em línguas da remota antiguidade e hoje difíceis até para os especialistas. O resultado final é o da transformação destas religiões em gigantescas estruturas planetárias, algumas até com organização diplomática, acordos políticos, quando não assumindo o poder civil. Destacamos a seguir complicadores do exercício do culto cristão, localizados em dois pontos:

- doutrina da Trindade (vd 590);

- a economia cristã da graça da salvação (591);

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Estes complicadores são tais, que são poucos os cristãos, que, no exercício de sua religião, os vivenciam talvez adequadamente, conforme cabe em seu credo.

592. No culto a presença adequada das três pessoas da Trindade divina, - Pai, Filho e Espírito Santo, - requer um conhecimento teórico preliminar sobre as mesmas, e que se apresenta muito difícil. Importa entender como esta doutrina se enquadra na simplicidade divina (vd 530). E ainda como se caracteriza cada pessoa na unidade divina, uma como Pai, outra como Filho, outra ainda como Espírito Santo (vd 540). Tudo isto sem contar com o problema da prova, que ampara toda esta doutrina, quer como um todo, quer em seus detalhes (vd 276). Não basta dizer que isto resta para o especialista. Uma religião somente se pratica, vivendo-a em seus mesmos termos. Colocada a preliminar sobre a doutrina, importa mais um passo, - que é o do culto, e este como um dever ético da prática da religião (vd 580), o qual tem de ser efetivado, não obstante os complicadores oferecidos. O culto a Deus se dirige, como referência, à sua pessoa. Mas, na crença cristã elas são três. Surgem imediatamente perguntas questionantes:

- a que pessoa nominalmente por primeiro, a qual em segundo e a qual por último? - ou a todas as pessoas ao mesmo tempo, sem diferenciar o modo de sua personalidade?

Importa descobrir uma base, para decidir. Eis a tese do culto cristão:

O Pai é o termo final ao qual se dirige o culto cristão.Assim acontece, porque as pessoas se distinguem pelo modo como se lhes atribui a natureza divina. O Espírito Santo tem o modo de a haver recebido das duas pessoas que lhe são anteriores. O Filho tem o modo de a haver recebido da primeira pessoa. O Pai finalmente tem o modo de a haver simplesmente. Portanto, pela ordem lógica, - a qual define a Trindade Cristã, - e o Pai o referencial principal do culto cristão. Apesar da importância que alguns pregadores possam atribuir à graça e a um possível drama da mesma, não é possível retirar do centro do culto ao mesmo Deus, de cuja glória deverá ocupar-se em primeiro lugar a religião. No caso do cristianismo o termo final do culto não é o Cristo Redentor, costumeiramente expresso pelo crucifixo. No contexto da Trindade divina, o referencial último é o Pai, como o principal na ordem da processão das pessoas divinas. Dito conclusivamente, - a religião cristã é o todo, em que o Pai tem a proeminência. Ainda que a Trindade tenha dado muito a discutir e seus teóricos tenham procurado com ela explicar teologicamente a posição de Jesus e do Espírito Santo como pessoas divinas, este culto, como um todo trinitário, não se tem expressado muito na comunidade cristã. Apesar do que acontece, importa ter claro, que somente é cristão aquele que efetivamente crê na Trindade, em cujo se fez batizar. No calendário litúrgico da Igreja Católica se anota, para o Domingo depois do de Pentecostes a Festa da SS. Trindade. Enquanto alguns falam no Espírito Santo, outros ao Pai, a maioria parece falar em Jesus, e por toda a parte penduram o Crucifixo. Há ainda os que divagam sobre, - se a preferência deve ser a imagem do Crucifixo, ou se a de Jesus Ressurgido. Na Idade Média ocorreu uma relativo desenvolvimento do culto ao Espírito Santo, ao ponto de provocar o movimento dos espirituais. Este culto assumiu então formas, cuja ortodoxia despertou dúvida. O aspecto tradicionalista de algumas das formas atuais das festas do Espírito Santo se relacionam com o seu culto medieval.

593. A economia cristã da salvação. O culto à Trindade se envolve com todo o contexto da economia cristã da graça, em que o Filho é imolado e o Pai é o termo final do culto, conforme se exporá a seguir. Há no enredo desta questão uma complicada história, e que surge agora como um dos complicadores da religião cristã. Nos detalhes, esta história não é rezada do mesmo modo por estas ou aquelas seitas cristãs, e por isso temos de expor a questão generalizando. No decorrer da vida terrestre, - o homem deverá exercer ambas as finalidades, - a externa, glorificando a Deus, portanto fazendo religião, e a interna, praticando as virtudes.

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As religiões salvacionistas apresentam esta prática da religião como uma habilitação para uma outra vida, a ser realizada em um lugar denominado Céu. Além de lugar feliz, é concebido geralmente como o contraste com um outro, denominado Inferno, destinado aos que não se salvam. Com tantos detalhes, a prática da religião assume aspecto de um sistema, denominado economia da salvação. A preocupação da economia cristã da salvação costuma encaminhar esta função para o fim interno; mas, o que no culto religioso verdadeiramente importa é enfatizar a glória de Deus, como fim externo. O egoísmo, que costuma conduzir ao ser humano, leva geralmente a uma distorção do finalismo total. As religiões salvacionistas correm pois o risco de serem antropomorfismos, sem que o sejam necessariamente. Com Lutero ocorreu um retoque na economia cristã da salvação. O salvacionismo contudo ficou como a grande ênfase. Restringiu Lutero a condição para alcançar a salvação à fé. Dizendo que basta a fé para a salvação, já não a condicionou às boas boas obras, ainda que admitindo que o correto seja praticá-las.

594. A graça divina e seu drama. É a graça um estado de reforço sobrenatural extraordinário, que os indivíduos costumam acreditar receberem de Deus, por acréscimo às forças naturais da vontade e inteligência humanas. As religiões tradicionais, como a cristã, acreditam que esta graça sobrenatural extraordinária é necessária é efetivamente necessária, e que é obtida por quem crê e a pede em oração. O nome graça contém já no seu étimo o sentido de dádiva sem a contrapartida do pagamento. No contexto cristão se distinguem duas espécies de graça, a de estado permanente e a eventual. A graça santificante é a que se recebe como um estado permanente de eleição divina; ela é um recebimento gratuito, e que eleva o homem de um estado natural para um sobrenatural. Ela depende de Deus, mas teria sido prometida a todo o homem que crê e se deixa batizar. Acontece a infusão da graça santificante com o batismo. Pode ser perdida por efeito de um pecado grave. Volta a ser recebida pelo arrependimento. Algumas Igrejas cristãs, como a católica, condicionam o efeito do pecado grave ao rito da confissão auricular, para efeito de perdão sacramental. A graça auxiliar é a que opera eventualmente como reforço sobrenatural das operações da mente e da vontade. Ela é prometida em grau suficiente para a salvação, segundo a crença cristã, aos que praticam adequadamente a virtude e realizam a prece. O drama da graça é um detalhe curioso frequente nas religiões primitivas. O homem teria estado inicialmente na graça de Deus, para depois haver caído deste estado de elevação como consequência de algum pecado. Costumam as religiões primitivas também admitir um sistema de salvação. Tais religiões se dizem por isso mesmo salvacionistas. Este salvacionismo se estabelece mui variadamente. Neste quadro se encontram as práticas de purificação das antigas religiões da Índia e da Pérsia. Do zoroastrismo (vd 122) da Pérsia derivaram cedo, para o Ocidente, as práticas de purificação, que caracterizaram o orfismo (vd 129), o pitagorismo e neopitagorismo (vd 251). O judaísmo e o cristianismo narram o pecado original como tendo ocorrido no Paraíso, onde o homem teria comido do fruto proibido. As consequências teriam alcançado todos os descendentes, os quais teriam passado a nascer em estado de natureza decaída. Acrescenta-se ao drama da graça a vinda de um Salvador, ungido por Deus para salvar a humanidade. Dali o termo Messias, que no hebraico significa Ungido, dentro do contexto como se diz "ungido rei". Finalmente na tradução grega Messias é Kristós, nome, o mais frequente na religião cristã, e que dele tomou o nome.

595. O sacrifício redentor oferecido por Jesus ao Pai Eterno. Eis mais um complicador ocorre no culto cristão. A redenção, que se diz ter sido operada por Jesus Cristo, não é apenas uma disposição ritual de salvar através do batismo aos que nele crêem. O batismo é apenas uma aplicação dos efeitos de um ato redentor anteriormente realizado. Não é o batismo que redime. O que redimiu foi o sacrifício redentor oferecido por Jesus ao Pai Eterno. Havendo morrido na cruz, esta morte foi interpretada como sendo um sacrifício oferecido a Deus Pai. Atribuindo-se à Jesus a posição de Filho de Deus, teria então a segunda pessoa divina praticado um sacrifício de efeito a nível de divindade. Neste contexto, o dogma cristão quer que o sacrifício oferecido ao Pai Eterno teria tido efeito infinito, capaz de apagar todos os pecados da humanidade, mas principalmente aquele atribuído a Adão, devendo à geração humana à antiga promessa da imortalidade feliz. A Epístola aos Hebreus, atribuída ao Apóstolo Paulo, se ocupa em comparar os sacrifícios do templo judeu com o novo sacrifício de Jesus, com vistas a destacar a superioridade do deste último.

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O sacrifício de Jesus faz lembrar também os sacrifícios humanos dos antigos cananeus, e mesmo o de Isaac, pedido por Deus, e depois contudo suspenso (Gênesis 22). Todo o contexto do sacrifício cristão se envolve com imagens cruéis, peculiares à barbaridade antiga. Não obstante, a introdução do uso do pão e vinho, pelos essênios, cujo ritual foi herdado pelos cristãos, amenizou bastante o contexto deste sistema de expressão religiosa. E mais, o curso dos tempos será fechado em um tempo determinado para dar lugar a juízo final, quando se efetivará o Reino de Deus, de que Jesus seria o chefe. Enquanto esta escatologia (vd) não acontecer, haverá no mundo incoativamente um reino cristão, ou seja uma Igreja, sob o comando de um Vigário de Cristo. Os complicadores do culto cristão, pelo que se vê, são muitos, sem contar os complicadores resultantes dos desentendimentos dos mesmos cristãos entre si, sobre tais assuntos.

ART. 2-o. - RELIGIÃO COMO EXPRESSÃOEXTERIOR, RITUAL E LITÚRGICA.

7072y597.598. É nas manifestações exteriores que a religião apresenta sua vasta presença, quer no mundo circunstancial de cada indivíduo, quer nas manifestações coletivas, ao ponto de assumir formas culturais marcantes No seu instante essencial, no interior mental do indivíduo, pode a religião manter-se alheia ao conhecimento dos demais. Todavia, ao ser exteriorizada por este mesmo indivíduo, ela passa ao campo em que pode fazer-se percebida pelas outras pessoas. Com isso ocorre também a possibilidade de se organizar a manifestação religiosa coletiva. Didaticamente, uma análise detalhada deste fenômeno da expressão exterior da religião, - ao mesmo tempo que acentuando o interesse especificamente filosófico, - se encaminha por dois níveis de abordagem:

- Natureza da expressão exterior da religião (vd 599); - Em especial da oração vocal e outras formas de culto (vd 605).

I – NATUREZA DA EXPRESSÃO EXTERIOR DA RELIGIÃO.7270y599.

600. A expressão religiosa como gênero de arte. O objeto de qualquer expressão interior pode ser expresso também exteriormente, por meio de matéria sensível. A ciência da arte se ocupa desta expressão exterior. O som é a matéria sensível aproveitada pela música e pela linguagem. A cor é utilizada pela pintura. A forma (disposição das partes no espaço) é empregada pela escultura. Mas a matéria sensível (som, cor, forma) não é tudo na arte; estes elementos são portadores de uma expressão. Efetivamente, na arte há um significante (portador) e um significado (conteúdo). Pelo assunto expresso, a arte se divide em gêneros, por causa da influência do referido assunto sobre sua expressão exterior. Assim acontece que a expressão exterior da religião é um gênero de arte. O gênero religioso da arte é diferente das demais expressões. São artistas os que riem no palco e são também artistas os que glorificam a Deus. Mas não praticam o mesmo gênero de arte.

601. Os termos culto, rito, liturgia. Apesar do seu parentesco com a arte em geral, a religião criou sua terminologia própria, de que são bem conhecidos os termos - culto, rito, liturgia. De uso não bem definido, ora indicam subgêneros de expressão, ora são apenas nuances do mesmo significado geral.

a) Culto, que sugere "ocupar-se com" (vd 568a), é um termo vago em relação à expressão interior e exterior da religião. Mas é sobretudo para a expressão exterior que se usa o termo, utilizado assim na religião como expressão exterior. Dali definições como a seguinte "culto é conjunto de atos pelos quais a religião se exprime" (Regis Jolivet). Firmou-se o termo como linguagem específica quase exclusiva da religião.

b) Rito (do latim ritus) procede de mesma raiz indo-européia ar- que ocorre em arte (no latim ars, artis, com o sentido fundamental de juntar articular). No latim ritus, significa cerimônia, costume, etiqueta, passado nesta forma ao uso da religião. Conservando-se como uma espécie de termo (ordinariamente conservadora), o termo rito

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desapareceu nos demais usos da língua.

c) Liturgia, do grego leitourgia, com o sentido de serviço público, é também uma palavra que se conservou como arcaísmo no linguajar do culto religioso, enquanto que para o serviço público em geral desapareceu. O termo liturgia se reserva sobretudo para o culto religioso formalizado como regra para todo um grupo que o pratica.

602. A ênfase das manifestações religiosas exteriores varia, conforme ao desenvolvimento mental dos indivíduos. São mais pronunciadas nas crianças e espíritos primários. As manifestações religiosas das pessoas esclarecidas costumam ser mais discretas e podem chegar a uma quase nulidade, sem que isto afete o desenvolvimento religioso interno da mente. A propósito da ênfase religiosa popular importa não nos iludir com as aparências como se elas denotassem uma forte religiosidade. "O tambor, apesar de todo o barulho que faz, está somente cheio de ar" (Zoroastro). Mais conteúdo tem a religião discreta do intelectual conhecedor de Deus e de como se exerce a sua glória. O primarismo religioso de uma cidade, - ainda que não necessariamente, - pode estar refletido na altura das torres dos seus templos, no comprimento de suas procissões, sobretudo na altissonância uníssona das vozes cantantes, bem como no ruído dos tambores e tamborins da orquestra que toca, e ainda no berreiro das palavras de ordem dos pregadores carismáticos estimulando que a massa as repita como aclamações piedosas altissonantes. Haja deuses pagãos para aturar algumas destas situações, porquanto o Deus verdadeiro não tem ouvidos para ouvir e nem olhos para ver! Culturalmente, todavia, não há como de imediato melhorar isto. O fluxo aos assim chamados centros de romaria e lugares sagrados é peculiar dos simples. Faz bem a eles, em virtude do estágio de desenvolvimento em que se encontram Este fluxo aos centros de peregrinação faz bem, não somente às aspirações das lideranças carismáticas. Está também a serviço do turismo sustentado, bem como dos cultivadores do folclore. Não obsta que as expressões religiosas enfáticas se convertam em sofisticada expressão artística. Então adquirem um novo valor, o estético, que as torna legitimamente estimadas aos que se encontram ao nível mental delas. O primitivismo se reflete nas religiões organizadas, nas épocas em que se concentram em preceituar expressões exteriores de culto de grande ação, como nas datas redondas, como nas festas anuais do calendário, nos jubileus, nos centenários. O desenvolvimento mental do povo moderno resultou em uma crescente melhoria ritual, ainda que decresça o seu interesse pelo caráter emotivo exterior das grandes expressões, como da eloquência exterior da arquitetura dos seus templos e da pomposidade das manifestações coletivas. Uma religião liberada de preceitos referentes à expressão exterior é o ideal cada vez mais desejado. As mentes evoluídas passaram a esta liberação muitas vezes por conta própria, abandonando como irreais velhos preceitos enfáticos em que insistem ainda reacionariamente os tradicionalistas e conservadores. Paulatinamente as igrejas cedem a este espírito da época, autêntico sinal da evolução mental dos tempos, inclusive em religião.

603. A justa medida da religiosidade exterior. Não se mede o exercício da religião, do homem mentalmente evoluído, pela sua prática exterior, mas pela interior. Não é muito exato dizer que a religião e a oração constituem comunicação exterior ou colóquio verbal do homem com Deus. O conceito da glória formal, - em que consiste a religião essencialmente, - não inclui a exteriorização verbal. Mesmo para a prece não é preciso fazê-la por palavras. Deus conhece o pensamento e qualquer outro sentimento antes de se manifestar em expressão exterior. Não precisa portanto de comunicação ritualizada com palavras e gestos. Pode-se mesmo dizer que não importa muito a oração exterior, porque Deus sabe melhor do nós, sobre as nossas verdadeiras necessidades. A expressão exterior da religião deixa até de ter sentido e é redundante, quando interpretada como comunicação entre o homem e Deus. Se algo puderem significar as palavras articuladas da prece como comunicação, esta significação ocorre apenas da parte do homem, quando erradamente se imagina a Deus com formas antropomórficas, como se ele somente o pudesse entender ao expressar-se com palavras e gestos.

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Também da parte do homem as palavras dão a oportunidade de praticar a prece coletiva. Neste caso as palavras devem soar, não para que Deus as ouça, mas para os indivíduos se possam ouvir uns aos outros, a fim de viabilizar a ação conjunta. Há religiões e ordens religiosas com tendência a serem muito preceituosas. Cercam o indivíduo com um cinturão pedagógico, de prescrições numerosas e até de penalidades disciplinares, insistindo mesmo na sua gravidade. A liberação é a tendência dos devotos em evolução. Em vez de preceituosas, sejam as normas reduzidas apenas a orientações, ou guias. Ordinariamente, a melhor expressão exterior, - ainda que não sempre, - poderá ser somente a que o mesmo indivíduo elege, e não aquela que as normas litúrgicas, apesar de sua relativa validade, mandam executar como um repetitivo realejo, tocado sempre pelo mesma linguagem e pelo mesmo canto litúrgico. O desenvolvimento da personalidade é conduzida pela sua diretriz ideal, de saber e liberdade de ser. Este ideal do saber e da liberdade de ser melhor se atinge e ganha com as opções livres. Depois de preparada filosoficamente para o exercício da religião e formada no cumprimento do dever ser ético, a pessoa é melhormente religiosa quando libertada de preceituações pedagógicas. Os persistentes devotos das práticas religiosas exteriores, e respectivos pregadores da religião exteriormente bitolada, incorrem facilmente na perda da noção de equilíbrio nas medidas. Tais pessoas perdem por vezes o interesse pela justa glória humana e se tornam por vezes inclusive anti-estéticas, anti-sociais. Tornam-se desajustadas e provocam observações irônicas. "Essas pobres devotas são de desesperar-nos com os seus tocados. A perda do bom gosto é um dos defeitos inseparáveis de sua hipócrita devoção" (Balzac, Uma dupla família). Importa afastar-se desta deficiente noção sobre a religião. Entenda-se que a religião combina o fim externo do ser, com o seu fim interno. Na verdade, a glória de Deus, que a criação realiza como seu fim externo, coincide objetivamente com seu fim interno (vd 579), portanto a religião com a felicidade humana. No caso do homem este fim interno está na realização plena da personalidade. Esta, ao conquistar mais ser, não age na direção inversa do ser menos, - nunca do menos, como acontece nos piedosos desajustados, anti-estéticos, faltos de bom gosto, menos humanos. "Ah, por ser devoto, não sou menos homem" (Molière, Tartuffe, ato III, cena 3, verso 966).

604. As eventuais vantagens da religião exteriorizada todavia ocorrem. Em princípio, a obrigação ética natural da religião se refere apenas à expressão interior, mental (vd 586). Apesar da não obrigação ética da expressão exterior da religião, ela contém vantagens, que a tornam mesmo recomendável, por vezes até pedagógicas. Todavia esta recomendalidade não se deverá converter em norma de estrita obrigação, e nem deve ser uniformizada. Se para as crianças a oração vocal puder ser de efeito pedagógico, pratique-se tal tipo de oração na medida que for conveniente, e seja progressivamente omitida na proporção que a utilidade não se fizer sentir. A expressão exterior, como comunicação de pessoa para pessoa, é algo próprio do ser humano. A arte é uma sua tendência espontânea, porque por meio dela a pessoa se exterioriza, bem como nela ainda encontra vantagens de comunicação, catarse, ludicidade e esteticidade. Ainda que Deus não precise de uma tal espécie de manifestação religiosa exterior, porque em princípio conhece tudo a partir dos mesmos pensamentos, as pessoas têm nela suas vantagens subjetivas. Do ponto de vista da comunicação, os homens somente podem expressar-se coletivamente, se primeiro se exteriorizarem. E assim outras e outras vantagens se estabelecem na exteriorização. Mas seja uma exteriorização espontânea e não por força de normas disciplinares. Esta liberalização importa, até porque muito diferem entre si as pessoas.

II – ORAÇÃO VOCAL, SACRIFÍCIOE OUTRAS FORMAS DE REZAR.

7270y605.606. A oração vocal, uma vez justificada, importa em ser examinada, com vistas a sempre melhor conceituá-la e aperfeiçoá-la. Para bem conceituar a oração vocal importa manter a idéia de que a outra forma, - oração mental, - continua sendo sempre a melhor. Convém assim ser praticada só na intimidade, todas as vezes que possível, o que sucede com facilidade em momentos de maior emoção, alegria, ou tristeza. Mas o objeto espiritual das orações não se consegue manter sempre à vista. As faculdades humanas atingem de preferência as coisas sensíveis.

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Cabe então, apelar a um apoio concreto para o conteúdo espiritual da oração, exteriorizando-a pela verbalização, e mesmo por outros expedientes mais, como pelo gesto e mesmo pela atitude de ajoelhar-se. O principal recurso da expressão exterior humana é o das palavras, reproduzindo em sons os enlevos e as necessidades da alma. Os sentidos recebem uma ocupação idêntica à do espírito e às atenções se unificam. Além disto, as palavras, em vista de sua sequencialidade, linearizam e ordenam o pensamento. Outros recursos mais, - como já se sugeriu, - dispõe a religião exteriorizada, como o dos gestos, composição da atitude do corpo, e ainda de local adequado, disposição arquitetônica do recinto (o templo), etc. Coroando todos os expedientes da exteriorização da expressão religiosa, resta ainda o culto coletivo, levando de arrastão a expressão do indivíduo nele integrado. Tem o efeito de manter uma sociedade inteira em atenção constante, e interesse contínuo para todo o contexto das realidades espirituais.

607. Motivação exterior versus aridez espiritual. O apelo à exterioridades se manifesta conveniente em casos extraordinários, como quando ocorre o que se denomina aridez espiritual. Nestas circunstâncias a dificuldade é as vezes tão grande, que a razão não consegue ultrapassar à repetição maquinal das palavras. Uma oração assim terá, pelo menos, o valor de ser uma tentativa de boa vontade, que se repetirá até retornarem as boas disposições. Mais razoável, todavia, é cuidar então da motivação que leva à oração; esta motivação é anterior à oração, e pode consistir num estudo. Oração sem motivação é um sem-sentido. Para demonstrar a conveniência dos formulários não é preciso recorrer aos casos extraordinários. Nas circunstâncias comuns as almas piedosas se servem de devocionários, em que lêem as fórmulas mais adequadas a lhes exprimirem os sentimentos e idéias que por si sós não conseguem ter, mas sabem pela experiência poderem obter com a leitura. Aos poucos o espírito vai despertando, até atender realmente a Deus. A necessidades das fórmulas não está em Deus, como se ele exigisse determinados protocolos sem os quais não nos atendesse. "Deus não precisa de tudo isto (exterioridade); mas precisamos nós, para esforçar a vivificar a nossa fé, apaga-se a chama da lâmpada quando já se lhe não deita mais óleo; desaparece o mais nobre e sincero entusiasmo, quando perde a ocasião de manifestar-se exteriormente. Este fato é bem conhecido pelos psicólogos modernos. Se pensamentos sombrios vos começarem a invadir a alma, forçai o rosto ao sorriso; não tardarão em apresentar-se ao vosso espírito pensamentos alegres. O artista, que, no palco imita a cólera, não raro efetivamente se encoleriza. É sabido que fatos desta ordem sugerem a certos psicólogos a idéia de considerar, a feição como uma sensação das modificações corporais periféricas. Embora seja conclusão demasiado prematura, não deixa o fato de ser verdadeiro: a atitude do corpo exerce grande influência sobre a vida psíquica. Eis porque a verdadeira devoção interior normalmente adotará certos gestos exteriores para exprimir seu pensamento de modo visível" (Paul Siwek – Em busca de Deus, pg. 147, Ed. Saraiva 1944).

608. Há graus de atenção para se rezar com o auxílio de uma fórmula. Três são os processos assim discriminados em relação ao grau de atenção usado.

a). O primeiro grau de atenção não atende ao sentido, nem ao objeto na oração escrita, mas tão só à pronúncia exata dos vocábulos. Apesar de sua limitação, é suficiente este grau de atenção, por ter no fundo o intuito prévio de honrar a Deus. Há momentos de importância humana em que não se consegue mais. As orações costumeiras não ultrapassam por vezes o primeiro grau de atenção, quando não decaem até na distração total. Esta costuma ser também a oração das crianças. Rezam com confiança fórmulas de que nada entendem, como sucede realmente com o final da primeira parte da Ave Maria dos cristãos. Aqui não se trata de uma confiança de objeto definido, mas apenas de uma vaga sensação da presença de Deus ou de seus santos. Também os cantores entoam hino de louvor, geralmente sem pensar no conteúdo do canto. Assim também os tocadores de instrumentos. Almas litúrgicas recitam salmos enigmáticos, ou acompanham o ritual do sacrifício da missa em uma linguagem que em parte não entendem.

b). O segundo grau de atenção acompanha o significado dos termos da fórmula recitada. Método proveitoso que é, granjeará ainda maiores proveitos, se de tempo em tempo se substituírem as fórmulas, - na medida que se tornarem rotineiras, - por outras, buscadas com zelo nos devocionários, ou elaboradas pessoalmente.

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Menos difícil seria, porém e constitui sem dúvida louvável iniciativa, decorar os elementos essenciais da oração e, mediante isto, acostumar-se, de quando em quando, rezar sozinho, com termos próprios e espontâneos.

c). O terceiro grau de atenção consiste em considerar o objetivo da oração em geral, - como sentimentos de adoração, prece, reparação e ação de graças, - enquanto a boca vai pronunciando as palavras da fórmula. Assim fazem os que, - como no clássico Rosário de Ave-Marias, - repetem maquinalmente as palavras, enquanto se ocupam do contexto geral da oração. Sem atenderem ao sentido local dos vocábulos, meditam ao invés sobre os mistérios da vida de Jesus. Em alguns manuais se pode encontrar o conteúdo dos 15 mistérios, com redação ad hoc, para cada Ave Maria. Com este procedimento se medita sobre a vida e a paixão de Jesus e as passagens mais importantes de Maria, sua mãe. Similar é a atenção, praticada em algumas religiões orientais, que rezam fazendo girar uma roda, ou um tambor, em que previamente se coloca o texto escrito da adoração, ou prece. Não muito diferente é a visita a lugares ditos sagrados. Caberá a cada um pessoa escolher o grau de atenção, que mais lhe aprouver como método de oração e de acordo com suas forças. O essencial é estabelecer alguma relação com Deus. Os três graus de atenção podem também trocar-se, confundir-se, interromper-se, de acordo com as disposições momentâneas.

609. Adequacidade dos textos de oração. É importante que os textos de oração oral sejam ajustados a uma reta noção filosófica da religião. O que existe sobre oração formulada pode ser de qualidade mental inferior, até porque a maioria dos que se utilizam deles são os simples. Assim estão ao nível dos que mais buscam os devocionários e dos que os escrevem. Devocionários com antropomorfismo generalizado e um sentimentalismo sem elevação ao transcendente habitua as almas devotas a um falso contexto. Um devocionário para os simples, somente poderá ser simples, mas não deverá ser falso. Tarefa difícil esta dos devocionários. A oração vocal precisa de textos efetivamente metafísicos, e então já são poucos os que a eles se adatam. Mesmo quando se trata de poesia religiosa, precisa elevar com suficiente adequação as imagens conotadas.

610. O sacrifício é uma expressão religiosa exterior, mediante uma ação ritual concreta, e que consiste na oferta de algo a Deus, usando como sinal da oferta a imolação final do referido objeto. Historicamente, o sacrifício foi praticado primitivamente pelos que imolavam ovelhas e bois, inclusive pessoas. Esta forma primitiva do sacrifício está hoje praticamente superada, porque ninguém mais imola ovelhas e bois, para queimar em louvor do Altíssimo. Entretanto, o sacrifício se pode operar também com outras formas, como derramar líquidos e eliminar por efeito de ingestão alimentar. Acrescem-se ainda entre estas outras formas o sacrifício pela via das simbolizações. Subsiste ainda o sacrifício, com alguns elementos simbólicos no seu contexto, na forma cristã da santa ceia, - denominada também missa, - na qual se usa o pão e o vinho. Também subsiste ainda o sacrifício em diferentes religiões primitivas africanas, com novas derivações nos países para onde foram transpostos escravos negros. Ocorrem estas transformações nas formas do sacrifício como expressão religiosa, porque o gesto de destruição do objeto envolve aspectos de violência. Também ocorre o caráter anti-ecológico da matança de animais. Isto certamente não entusiasma aos ecologistas. De maneira mais abrangente, - contra o uso do sacrifício, -ocorre ainda o paradoxo de adorar a Deus pela destruição do que ele mesmo criou, e entregou para que tivesse a sua finalidade interna de existir, de se realizar e mesmo de ser feliz. Finalmente, o ritual do sacrifício, em sua condição de ação concreta, é contundentemente uma expressão religiosa exterior. De outra parte, - como se tem advertido, - a expressão religiosa é essencialmente uma expressão interior. A tendência evolutiva do homem religioso está nesta sua religião interior, e não tende a progredir nos atos de exteriorização. É notório que as pessoas assistam ao cerimoniais da Missa desatentos ao seu lado sacrificial. Não obstante, como ritual religioso, o sacrifício é um recurso de expressão exterior da religião, com alto efeito, por causa de sua ação ritual concreta muito enfática. De outra parte, seus complicadores importam em ser adequadamente tratados. Nas imolações se deve, pelo menos, ressalvar o direito de terceiros, não imolando por exemplo, vidas humanas.

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611. O sentido da imolação, ou destruição, no sacrifício. Tem esta imolação, ou destruição, por finalidade significar a entrega de algo a Deus, reconhecendo-o como supremo senhor. Pela ação do imolar, ou destruir, o homem se desfaz do uso do objeto sacrificado, porque já não entende como seu, e sim de Deus. Etimologicamente, aliás, o termo sacrificar (sacrum facere) significa tornar sagrado. Não importa como se faça a destruição, que pode ser por imolação (no caso de ser vivo), por derramamento (no caso de líquidos), por ingestão à maneira de alimentos (no caso de carnes, cereais, líquidos), por queima (no caso de velas de cera). O sacrifício mais contundente é sempre aquele por derramamento de sangue. Nisto tudo concorrem também simbolismos culturais os mais diversos, e que não são os mesmos em cada época e nem os mesmos conforme os países, variando sobretudo com o desenvolvimento mental das pessoas.

612. Missa e comunhão por acréscimo. A ingestão, praticada por ocasião do sacrifício, poderá assumir ainda outras funções rituais. Ocorre então um somatório do sacrifício com demais outras funções, como é o caso da ceia sagrada dos cristãos, quando interpretada como sacrifício e logo também como sacramento da comunhão. Efetivamente, nesta condição se conserva entre os cristãos, sobretudo católicos, a interpretação duplamente ritual do da ceia sagrada, ou missa: ela é um sacrifício, mas também um sacramento produtor da graça de reforço espiritual. Distinga-se, para entender mais este complicador do culto cristão, entre a imolação da vítima e a ingestão da mesma pelos participantes do cerimonial. A mera ingestão é o ritual que se chama comunhão. Esta comunhão é o que se diz ser um sacramento, ou seja um ritual que opera efeitos pelo simples fato de ser praticado (ex opere operato). No caso, a comunhão produz o reforço espiritual do comungante. O sacrifício está representado pelo ritual da consagração, pelo qual o pão e o vinho transformados, expressam a morte de Jesus. Aqui se tem o que por primeiro acontece. Adicionalmente é praticado o sacramento da comunhão, - como já se disse. Acredita, pois, o participante do sacrifício da missa, - em que sua parte é a ingestão, - de que tenha, por efeito sacramental, o fortalecimento espiritual sobrenatural. Na missa católica o sacrifício se mantém, de acordo com a respectiva crença, sob a seguinte forma: O pão é convertido em corpo de cristo e o vinho em sangue de Cristo (pela real transubstanciação), de tal sorte que a dualidade dos elementos lembra a morte de Cristo, cujo corpo derramou sangue. Para o calvinismo, o pão e o vinho apenas simbolizam o corpo e o sangue de Jesus sem real transubstanciação. Está suposto que o indivíduo creia nalguma destas conceituações teológicas. Mas, desde que creia, - e isto supõe que saiba porque crê, - tudo se torna coerente na sua maneira de praticar exteriormente a religião. Mas, por causa dos complicadores da fé cristã (vd 595), talvez seja menor o número dos que chegam a tudo entender exaustivamente, que o dos que apenas incoativamente.

613. O sacrifício como expressão de adoração. A entrega a Deus, de um objeto, - como na operação imolatória do sacrifício, expressa um reconhecimento de sua posição diante do mundo. Este ato enfático, o seu operador a Ele adora, aplaca, solicita, agradece. Nestas funções do sacrifício sobretudo se destaca a adoração, porque a ação ritual da destruição da vítima tem como finalidade primeira significar a entrega a Deus, como reconhecimento de sua posição suprema de senhor de tudo. O sacrifício pode não se destacar como expressão a mais adequada do ponto de vista de tradução do pensamento para o exterior. Sua ênfase é todavia notória, por causa do caráter concreto da ação mediante objeto concreto, podendo este ser muito valioso, como o caso de grandes animais sacrificados, ou mesmo, - como acontecia no passado, - de pessoas humanas. No sacrifício cristão, o objeto é o mesmo Cristo. E como os cristãos acreditam ser ele a segunda pessoa da Trindade, neste contexto passa a ser um objeto valiosíssimo. Jesus, quando interpretado como sacrificado na cruz, tem como fundo os sacrifícios humanos dos cananeus, e de que o de Isaac (Gênesis, 22) é um exemplo, ainda que não consumado. O sacrifício de Jesus se diz ter como figura os sacrifícios judeus, que a cada manhã e tarde abatiam ovelhas sob o altar do templo, praticando, pois, um sacrifício matutino e outro vespertino, para adorar a Deus.

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Finalmente os essênios passaram à oferta do pão e do vinho, que trocaram pelo cordeiro. A nova prática passou diretamente aos cristãos, que lhe deram a interpretação de sacrifício do mesmo Jesus, por que o julgam presente sob as aparências do pão e do vinho. Os textos dos Evangelhos, em que se ampara a interpretação da ceia cristã como sacrifício, enredam-se em controvérsias, que dividem aos mesmos cristãos. Uns o dizem realmente presente, enquanto outros o consideram presente apenas simbolicamente. E os que dizem estar ele presente realmente, novamente se dividem, naqueles que o acreditam presente só no momento do cerimonial da ceia, enquanto outros (os católicos) o dizem presente também após, e por isso fazendo a chamada guarda do Santíssimo, com lamparina acesa dia e noite. O que temos buscado mostrar, foi em que sentido o tema se liga ao conceito de sacrifício como oração, e sobretudo de adoração. Os detalhes estritamente teológicos e sobrenaturalísticos, já não pertencem à filosofia da religião. Todavia importa que os respectivos crentes provem aquilo em que acreditam.

614. A poesia religiosa, com frequência sugere a glória como fim primeiro da criação e elemento integrante da oração. Alguns cânticos de glória se fizeram conhecidos no culto religioso. É clássico Cântico dos três mancebos do livro do Profeta Daniel. Também é admirável o Cântico do sol, da lavra de São Francisco de Assis. No ritual litúrgico da missa católica encontram-se o Glória, e o Sanctus, que a música sacra visou de modo especial.

615. Destaca-se a beleza rústica do Cântico dos três mancebos, do livro de Daniel (3,52-88), apesar de sua possante monotonia, comparável apenas à exuberante repetitividade dos espetáculos da natureza. Na primeira parte só os mancebos louvam ao Senhor. Na segunda convidam a todas as criaturas, uma a uma as criaturas celestes, as forças do ar e vicissitudes do tempo, as criaturas irracionais, os homens, para encerrar com os seus próprios nomes.

1-a parte do cântico (louvor dos mancebos).Bendito sois, Senhor, Deus de nossos pais; digno de ser louvado e sobre-exaltado para todo sempre. E bendito é o vosso santo nome e glorioso; digno de ser louvado e sobre-exaltado para todo o sempre. Bendito sois no templo de vossa santa glória; e digno de supremo louvor e glória para sempre. Bendito sois no trono do vosso reino, e digno de supremo louvor e exaltação para sempre. Bendito sois vós, cujo olhar penetra os abismos, sentado sobre os querubins. E digno de ser louvado e super-exaltado para sempre. Bendito sois no fundamento dos céus, digno de louvor e glória para sempre.

2-a parte do cântico (convite às criaturas).Obra do Senhor, bendizei todos ao Senhor. Louvai-o e sobreexaltai-o para sempre.

I - Anjos do Senhor Bendizei ao Senhor.Céus, bendizei ao Senhor. Águas todas que estais acima dos céus, bendizei ao Senhor. Exército do Senhor, bendizei ao Senhor. Sol e lua, bendizei ao Senhor. Estrelas do céu, bendizei ao Senhor.

II – Chuva e orvalho, bendizei ao Senhor.Ventos todos bendizei ao Senhor. Fogo e calor, bendizei ao Senhor. Algidez e fria, bendizei ao Senhor. Rocios e chuvas, bendizei ao Senhor. Gelo e geada, bendizei ao Senhor. Saraiva e neves, bendizei ao Senhor. Noites e dias, bendizei ao Senhor. Luz e trevas, bendizei ao senhor. Raios e nuvens, bendizei ao Senhor.

III – Bendiga a terra ao Senhor.

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Montanhas e colinas, bendizei ao senhor. Plantas todas que germinam na terra, bendizei. Fontes bendizei ao Senhor. Mares e rios, bendizei ao Senhor. Monstros e tudo o que se agita nas águas, bendizei ao Senhor.

Louvai-o e sobreexaltai-o para sempre.Aves todas do céu, bendizei ao Senhor. Feras rebanhos, bendizei ao Senhor. Louvai-o e sobreexaltai-o para Sempre. Filhos dos homens, bendizei ao Senhor. Israel, bendizei ao Senhor. Sacerdotes do senhor, bendizei ao Senhor. Servos do senhor, bendizei ao Senhor. Espíritos e almas dos justos, bendizei ao Senhor. Santos e humildes de coração, bendizei ao Senhor. Ananias, Azarias, Misael, bendizei ao Senhor.

Louvai-o e sobreexaltai-o para sempre.

CAP. 7A ORAÇÃO NA RELIGIÃO.

7270y616.

- Filosofia da Religião -617. A oração é um dirigir-se diretamente a Deus como pessoa. É essencial à linguagem da oração este direcionamento de pessoa a pessoa, em que o termo da direção é a pessoa superior, mas sempre tratada como pessoa. Como se sabe, Deus é pessoa (vd 546). Mas nem tudo em Deus é pessoa. Por isso, o âmbito da religião é mais vasto, que o da oração. Toda a oração é religião, mas nem tudo em religião é oração. 618. A glorificação de Deus (finalismo externo exercido pela criatura) pode ser vista sob perspectivas diversas, na oração, e que usam ser denominadas por dois binômios:

- adoração e reparação, - prece e ação de graças.

Em qualquer dos casos, a glorificação de Deus, na oração, mantém o caráter do direcionamento a ele como expressamente como pessoa. Os conceitos, - adoração e reparação, prece e ação de graças, - são em si mesmos claros, podendo todavia ser tratados com maior detalhe. Dão então oportunidade à divisão didática deste capítulo em 4 artigos:

- da adoração em detalhe (vd 619); - da reparação em detalhe (vd 625); - da prece em detalhe (vd 655); - ação de graças em detalhe (vd 666).

A divisão pelos dois binômios – adoração e reparação, prece e ação de graças - toca as bases da religião. Por isso, embora adequadamente se digam partes da oração, equivalem praticamente também a partes da religião. Mas em todas estas perspectivas sempre ocorre a iniciativa mais pronunciada da pessoa, uma das quais se dirige a outra, à que lhe é superior. Como se depreende do exposto, esta sequência de partes da oração não constitui divisão sistemática da glória de Deus. Trata-se de perspectivas destacadas que, por suas características, podem ser exercidas até separadamente.

ART. 1-o. - DA ADORAÇÃO EM DETALHE.7072y619.

620. A adoração é uma atitude antes de tudo mental em relação a Deus. Pode exteriorizar-se em simbolizações como o ajoelhar e oferecer sacrifício, além do uso de palavras. Todavia a adoração é em primeiro lugar uma expressão interna da mente. É a adoração a parte da oração e da religião em geral que mais destaca a Deus mesmo. As outras partes se referem aos interesses da criatura como reparadora, pedinte e agradecida.

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Mesmo que os rezadores mais se preocupem com estas outras partes da oração, elas implicitamente supõem a adoração e com ela se harmonizam. Entre as partes mencionadas, é a primeira, - a da adoração, - a que mais se aproxima dos fundamentos da religião como glória de Deus. Destaca a adoração a excelência do objeto adorado, - Deus, - que é reconhecido como um ser máximo, ao qual tudo se submete. A glória não é em primeiro lugar o que a adoração declara. Ela é manifestativa. É a manifestação divina, enquanto ela é um certo brilho. A religião como glória não destaca em primeiro lugar o contraste entre o Senhor e o servo, como acontece na adoração. Por acréscimo, pois, convém incluir na adoração a glória, a fim de que um se torne um exercício religioso mais completo.

621. A adoração frente às demais partes da oração. Importam a harmonia, a complementação e o equilíbrio entre as partes da oração, tudo sempre tomando a adoração como referencial maior. Há os eternos adoradores, como também os exagerados reparadores. Há ainda os que apenas pedem favores, ou somente agradecem. Os reparadores correm mesmo o risco de se tornarem mórbidos penitenciários, como se fosse algo muito importante o que fazem como reparação. O menos mau dos exageros é o da eterna adoração. Esta implicitamente inclui as demais partes da oração e da religião em geral. Para a correção destas desarmonias, descomplementações e desequilíbrios, requer-se pôr mais atenção na parte principal da oração, - a adoração, - com ela comparando as demais. A reparação, - segunda parte da oração, - indica a reconstituição de algo devido, e que não foi devidamente executado. No caso em espécie, a adoração não exercida devidamente pode ser reparada por um novo ato de culto substituindo um ato menos bem exercido, ou simplesmente estabelecendo aquele que fora totalmente omitido. A prece, - terceira parte da oração, - solicita a um ser exterior e de maior poder, algo em falta. Implica a prece na aceitação da superioridade do ser ao qual se pede. Em consequência, a prece se exerce como um ato, cujas implicações, - apesar do seu finalismo externo visando aquisição de um bem, - importa em uma adoração implícita. A ação de graças, - quarta parte da oração, - é um reconhecimento da gratuidade dos dons recebidos. Nesta condição, complementa a prece, ao mesmo tempo que implica em um ato de adoração. Realizada cada parte da oração de acordo com a sua definição, resultam a harmonia, a complementação e a harmonia entre a adoração e reparação, entre a adoração e a prece, entre adoração e a ação de graças, tendo no ponto mais alto de referência a primeira. A reparação, como se advertiu, é apenas um reordenamento de um culto, não devidamente cumprido. Também a prece e ação de graças são complementares, porque esta última é um estar grato pelo que se recebeu. Há um agradecer o que se recebeu sem pedir; desta sorte, a ação de graças se expande mais amplamente.

622. Momentos da adoração. No destaque a Deus realizado na adoração procura-se opor, em dois momentos, o máximo do divino e o mínimo da criatura. No primeiro momento, pois, da adoração, se considera a natureza divina em si mesma, sobretudo em seus atributos (vd 520). Estes são muitos, podendo-se destacar o da infinitude (vd 528) e ainda o de seu caráter absoluto (vd 535). Supõe por conseguinte a adoração um esforço filosófico, no sentido de compreender a Deus e sua condição de ser máximo. Quanto mais profunda esta filosofia sobre a divindade, melhor a adoração. Já então nos estendemos não somente sobre todos os seus atributos, como ainda buscamos penetrar em sua mesma natureza (vd 512), como ente que é por essência a própria existência e criador da existência dos seres finitos. No segundo momento, a adoração visa considerar a finitude das coisas criadas, sua precariedade de alternativas, dependência essencial. Por acréscimo, a criação deve ser apreciada como manifestação da glória divina, ainda que esta manifestação seja apenas finita. Os seres criados, não obstante sua finitude, são, apesar de tudo, glória de Deus. Surgidos como manifestação divina, a este título estamos envolvidos, de certa maneira, no vasto manto divino, e a este título somos algo de sua decoração e proteção. Por isso a adoração destaca também a criação como glória divina.

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Se nossa adoração seguir por uma boa filosofia, vamos nos conscientizar religiosamente que há uma coincidência entre nossa glória e a nossa felicidade (vd 579), bem como que há uma coincidência entre a nossa felicidade e a glória objetiva de Deus. E assim conscientizados do que acontece, a glória que as criaturas de Deus exercem objetivamente, se converte em glória formal em nós mesmos. Vivendo a consciência de sermos glória de Deus, estamos em ato de adoração.

623. Adorar é filosofar. Quanto melhor se adora, mais se filosofa. De outra parte, importa bem filosofar, com vistas a bem adorar. A perfeição da ciência filosófica se alcança pela sistematização, e que aqui é a filosofia da religião bem conduzida. O adorador de Deus segue pois os mesmos caminhos da sistematização filosófica, quando esta se ocupa com Deus. Portanto um adorador perfeito se torna um filósofo de Deus. O adorador imperfeito, ainda que seja de boa vontade, faz sua exaltação da divindade poluir-se aqui e ali com antropomorfismos. Um adorador imperfeito torna a imagem de Deus defeituosa, como o pintor que reproduz mal uma fisionomia perfeita.

624. A idolatria é um máximo de imperfeição, porque passa a confundir Deus com a imagem que dele se fez. Em princípio não é mau tentar a criação de uma imagem de Deus, quer atinja esta imagem maior perfeição, quer menor. O que não pode acontecer é confundir a Deus com a própria imagem que dele se criou. Pedagogicamente poderá acontecer que o melhor mesmo é evitar a imagem sempre que ela coloca em perigo o reto uso da mesma. Mas, não se pode de outra parte ser radicalmente contra a imagem, embora se deva ser contra a idolatria. O velho judaísmo tendeu ao combate da imagem e sobre ela se narram até castigos que se supõe terem acontecido (vd 651). Os cristão passaram também por períodos iconoclastas (vd 133). Igualmente são contrários às imagens os islamitas (vd 166). Basicamente a intenção de todos os iconoclastas é boa, ainda que não devam ser iconoclastas, porque assim agem com radicalismo e por vezes até com fanatismo os direitos de outros credos, quando não até da história cultural. Importa adorar a Deus com uma boa filosofia. Sejamos bons filósofos, para que Aquele, ao qual adoramos, seja efetivamente o verdadeiro Deus.

ART. 2-o - DA REPARAÇÃO EM DETALHE.7072y625.

626. No sentido óbvio, reparação é um fazer de novo, para restabelecer o estado anterior de uma coisa. Etimologicamente, do latim re-parare, significa preparar de novo. A reparação indica a reconstituição de algo devido, e que não foi devidamente executado. O assunto ingressa na área da religião e mesmo da oração, quando uma adoração não exercida devidamente pode ser reparada por um novo ato de culto substituindo um ato menos bem exercido, ou simplesmente estabelecendo aquele que fora totalmente omitido. Assim há reparações a fazer nas coisas ordinárias, e também no exercício da religião. O tratamento didático do da reparação pode ordenar-se em dois itens: - conceito da oração reparatória (vd 628); - em especial da reparação vicária cristã, essencial ao cristianismo, exercida por Jesus, como redentor (vd 638).

I – CONCEITO DA ORAÇÃO REPARATÓRIA.7270y628.

629 O campo da reparação é maior que o da adoração. Repara-se não só a omissão de adorar, mas também a omissão de todo o bem obrigatório. O fim interno das operações dos seres conscientes é a felicidade e o fim externo a sua glória. Um rompimento deste finalismo pode ser seguido de uma reparação; esta reparação consiste no restabelecimento da ordem anterior, de tal maneira que volta a haver o encaminhamento das operações humanas que geram a felicidade e a glória, tanto em favor da criatura, como de seu criador.

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A reparação é similar à educação que, de reposição em reposição, atinge o estado certo do proceder humano. Assim explicada, a reparação é uma iniciativa lógica, e convém tomá-la para todas as malformações, quer se trate de casos particulares, quer do caso geral da religião.

630. Reparação sob preocupação da ira divina. Uma concepção de Deus como cioso de sua glória, justiceiro e negociador na distribuição de benesses de acordo com o comportamento dos humanos, pode conduzir a uma preocupação do homem com a reparação, com vistas a evitar a ira divina e a restabelecer o crédito para de novo receber vantagens em vida e após a morte. Tal acontece facilmente nos dualismos radicais, de forte oposição entre entre o bem e o mal, entre o espírito e a matéria. Mas também acontece por simplismo. O homem simplista pode interpretar as catástrofes como aviso da divindade irritada. Assim, como castigo, já fora interpretado o dilúvio mesopotâmico, tanto pelos mesmos mesopotâmicos, como depois pelo autor do texto bíblico. Também se encontram nos profetas bíblicos interpretações, que dão como castigos as pestes e as nuvens de gafanhotos, inclusive os desastres militares, que deram fim aos reinos da Israel e de Judá. Em nossos tempos o teólogo judeu e de expressão alemã Martin Buber (1878-1965), indagou se o morticínio dos judeus sob o regime nazista, tinha alguma relação com a doutrina da justiça de Deus. Nas doutrinas transmigracionistas, ou órficas, surgidas na antiguidade e que perduram ainda hoje, mais um elemento contribui para arrefecer o espírito de reparação. Os males do presente, dados como inexplicáveis em indivíduos retos, foram interpretados por estas doutrinas milenares como castigo de crime cometido em uma vida anterior. Nesta concepção, a divindade, sempre cobradora dos direitos, subordina a todos ao castigo, de sorte que paulatinamente tudo se vai purificando pela via da reparação. As doutrinas iluministas de todos os tempos destacam a pureza de espírito como condição facilitante para a inspiração divina. Em decorrência recomendam a prática a reparação. Todo o drama da salvação, tecido pelas convicções zoroástricas, órficas, bíblicas, deve ser examinado cuidadosamente, de encontro a uma situação sociológica favorável a tais doutrinas reparacionistas. Dificuldades notáveis se oferecem para as religiões salvacionista reparacionistas, desde que examinada pelos critérios da sociologia do pensamento. Válida em si mesma, a doutrina da reparação tendeu a exorbitar-se em episódios de enredo dramático. As doutrinas da salvação, através da reparação, que são intrínsecas às religiões do Oriente Médio, - de onde veio o cristianismo, - hão de ser, tratadas com cautela.

631. O que importa reparar. A preocupação com a reparação sob pressão de infundados motivos pode desviar o procedimento normal das constantes reparações a proceder aqui ali. É natural que os defeitos ocorram, e precisamos estar atentos, para sempre corrigi-los, reparando-os também no plano da vida religiosa. O principal em religião é a glória formal, em virtude da qual o indivíduo assume conscientemente que tudo é manifestativo de Deus. Ele tem de envolver-se com a glória de Deus ativamente. Não fazê-lo seria, ou repudia-lo diretamente, ou simplesmente não tomar conhecimento dele. Esta situação reclama do indivíduo a reparação. A reparação em assunto complexo, como o da religião, envolve elementos de difícil apreensão. Se estes elementos forem inadequadamente apreendidos, podem resultar em distorções ao ser praticada a reparação. Estas distorções marcam diferentemente a vida dos indivíduos e até diferenciam entre si as religiões tradicionais, umas mais rijas em seus rituais purificatórios e salvacionistas, outras mais liberais. Importa, por conseguinte, determinar onde as distorções ocorrem, devolvendo o conceito da reparação à sua lisura conceitual e lógica.

632. O pecado (do latim peccare = cometer uma falta), no sentido formal (intencional) é a intenção direta do cometer a falta. Materialmente, o pecado é a falta apenas como concretamente ela se dá. Em religião a falta principal é a desatenção à glória de Deus. É um pecado formal, se ocorre a intenção expressa de não admitir aquela glória, repudiando-a .Sem esta intenção o pecado é apenas material; nesta condição o pecado é uma falta sem culpa. Tem uma condição semelhante à glória objetiva (não consciente), que também não contém intenção.

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Uma falta sem culpa poderá ocorrer, por exemplo, se a pessoa não tem conhecimento de que a glória de Deus é um fim da criatura; ou se esta pessoa tem um modo filosófico de pensar sobre a questão. No sentido teológico, pois, o pecado se diz em primeiro lugar da renúncia à glória de formal. Tudo o mais se apresenta como pecado apenas quando de algum modo se conecta implicitamente com este sentido principal. Se, por exemplo, a glória (fim externo) se identifica concretamente com a felicidade e mais objetivos internos do indivíduo, estes podem ser necessários em função a conseguir aquele. Na medida que os seres finitos se desenvolvem, são também, a glorificação de Deus. Inversamente, na proporção que renunciam este desenvolvimento, deixam de o glorificar. Devem, então, ser reparadas as faltas internas de seu desenvolvimento, para, em decorrência reparar a glória de Deus. O pecado, que inverte a direção da glória de Deus, se desfaz pela reversão reparadora.

633. O perdão, eis mais um conceito relacionado com a reparação. Efetivamente, a reparação parece postular, pelo outro lado, a concessão do perdão, a ser concedido pelo ofendido. Pergunta-se, - que significa exatamente o perdão? É difícil estabelecer o perdão como algo mais do que a reparação. Além disto, o perdão divino não o podemos constatar plenamente através de nenhuma especulação racional, senão esta, a de que a reparação basta. Perdoar consiste em desobrigar de reparar. Posta a reparação, tudo se encerra, não havendo perdão a solicitar. No proceder humano, quem pede desculpas, supõe que o ofendido deva completar o processo da reparação pela concessão do perdão. Pergunta-se, - haveria um liame entre o ofensor e o ofendido, de tal maneira que somente o ofendido encerraria a reparação como definitiva? Do ponto de vista prático, o ofendido poderá nada mais fazer do que obrigar ao ofensor reparar o defeito. Então, reparar não inclui receber o perdão, mas é apenas atender à obrigação de repor. O perdão verdadeiro é desobrigar de repor.

634. O castigo. Poderia ainda o ofendido, após a reparação, acrescer um castigo, penalizando o indivíduo, mais do que lhe impor o dever da reparação? Castigar simplesmente, isto é, impor algo mais que a reparação, é um elemento difícil de defender. O máximo que se pode admitir no castigo é interpretá-lo como expediente pedagógico. Em vista do castigo previsível, deixa-se de cometer um mal. Finalmente importa alegar o princípio, segundo o qual não se pode praticar um outro mal, para corrigir um mal precedente. Por isso, o castigo só tem sentido se ele é operado por meio de algo bom. Ora, o bom é em primeiro lugar a reparação do mal. Castigue-se pois, obrigando ao delinquente a reparar o mal feito, isto é, obrigando-o a refazer o bem. Outra coisa é a prisão do criminoso. Agora se trata de uma defesa praticada pela sociedade civil, para que o delinquente esteja impedido de repetir o mal. A reparação que se pode impor ao delinquente é exatamente lhe impor aquilo que exatamente lhe falta, - a educação, para que adequadamente conviva na sociedade. Em vez de lhe dar um castigo, organizem-se os presídios como escolas, no mesmo padrão que as que ocorrem entre os cidadãos livres. Haja pois aquilo que se pode denominar Universidade do Presídio, com o respectivo Reitor e professores.

635. Reparação por reposição. Uma reparação pode ser feita pela reposição da mesma obra e ainda por outra espécie de ação valiosa. Esta reposição por outra ação valiosa admite variadas maneiras de proceder, e por vezes é mais prática. Isto já acontece no relacionamento humano, por exemplo, quando se repara um prejuízo pelo equivalente em moeda. Em linguagem civil, este refazer é o pagamento de multa, - quantia de dinheiro equivalente ao mal praticado. Não obstante, a reparação pela mesma obra é evidentemente a mais precisa e de acordo com o princípio da glória de Deus, realizada internamente pela criatura; quanto mais perfeita em si mesma a criatura melhor manifesta seu exemplar divino. Nos atos repetidos da vida humana a reparação é mais fácil; quem age mal, volta simplesmente a agir bem. Todavia não é fácil repara quando o ato é em si mesmo incapaz de ser reposto, como no caso do morticínio.

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Na reparação por substituição poderá aliar-se a imaginação em virtude da qual as coisas penosas parecem assumir caráter de mais valor. Toda a ação contém, em si mesma um esforço e representa uma soma de trabalho. Todavia este caráter penoso não dá nenhum conteúdo ontológico maior à ação reparatória, apesar da tendência de alguns para a reparação de tal índole.

636. A penitência. Por vezes o esforço penoso se isola, e a reparação se processa com a penitência (abstinência, jejum) obtida diretamente. Este tipo de reparação certamente não contém valor ontológico, ainda que possa ter alcance pedagógico e ser um exercício para a virtude. É que não está a reparação do tipo penitência destituída de algum valor subjetivo, porque adverte ao espírito para uma reformulação mental. A falta do conteúdo ontológico não recomenda, contudo, a penitência como sendo a melhor via de exercer a reparação. Prefira-se então algo positivo, em vez do simples esforço penoso. Eis também a razão porque os criminosos não devem receber pena (castigo) mas tão só ser isolados da sociedade, que deles simplesmente se defende. Quando possível, imponha-se a eles reparar o mal feito. Por acréscimo, mostre-se que o mal não compensa, em virtude da reparação que lhes é imposta e na forma como ela o é. Uma prisão para os criminosos não é uma penitenciária como se a usa denominar. É antes uma reparadoria. Por acréscimo, ela é uma casa de correção, uma escola de reeducação. A lei não prefira o nome Penitenciária e sim denominações como Reparadoria social, Reeducandário e similares.

II – A REPARAÇÃO REDENTORA CRISTÃ.7270y638.

639. A reparação vicária ocorre quando se imagina uma transferência para alguém, que assume praticar o que há a reparar. Tal é o caso dos pais, que pagam pelos filhos menores delinquentes. Tal foi ainda a reparação por intermédio de um bode expiatório, sobre o qual se punham as mãos para simbolizar a transferência dos pecados, e depois se o mandava para o deserto, onde era atirado do alto de uma espelunca. Assim também imaginou o profeta Isaías a transferência reparatória, quando descreveu ao futuro Messias como incumbido da reparação dos pecados do povo. Similarmente, os cristãos se imaginam a Jesus como aquele que reparou, por seus sofrimentos e morte, os pecados da humanidade, a qual por si não seria capaz de uma reparação suficiente. A reparação vicária está pois presente no cristianismo e lhe é essencial. Entretanto é preciso não perder de vista outros aspectos mais positivos da religião, inclusive da cristã. Importa que a especulação teológica cristã seja provada, a fim de que adquira validade. Como se sabe, ela se tornou um enredo bastante complexo, que envolve todo contexto da pessoa de Jesus e da Trindade das pessoas divinas. Neste complexo Jesus é dado como ser humano, no qual se teria encarnado a segunda pessoa da Trindade, ou seja o Logos, palavra usada por João Evangelista. Ofereceu a Segunda Pessoa, - encarnada em Jesus, a Deus Pai um sacrifício expiatório, em que a matéria do holocausto era sua parte como ser humano. O sacrifício se consumou na cruz, sobre o Calvário, em que os instrumentos teriam sido os judeus. Este sacrifício teria tido valor infinito em virtude de seu caráter de pessoa divina. Em consequência teria reparado a todos os pecados, mesmo do futuro, e ainda desde Adão. A aplicação dos benefícios da reparação, operada por Jesus, começa, - conforme a crença cristã, - pelo batismo. Neste sentido a ordem de Jesus aos seus discípulos foi bastante taxativa: "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem crer e for batizado, será salvo, mas quem não crer será condenado" (Marcos, 16, 15-16). Os cristãos protestantes destacam a importância da fé; os católicos insistem também nas boas obras. Sem estes procedimentos ninguém se salvaria, apesar dos méritos infinitos do sacrifício de Jesus. O enredo é bastante complexo, e nem todo o cristão, o conhece, Não faltam os que, ao conhecê-lo, não o assumem, e então descobrem que efetivamente não consumaram a condição de cristãos, que se lhes quis dar.

640. O profeta Isaías deu ao Messias a imagem de expiador dos pecados dos outros. Viveu Isaías sob os reis de Acaz e de Ezequias, por volta dos anos 730 a 700 a.C., quando ainda subsistia o reino de Judá e foi o reino de Israel

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(ou Samaria) tomado em 722 a.C. pelos de Nínive, Assíria. Descreveu o Salvador como se fosse um daqueles cordeiros imolados no altar do templo de Jerusalém. "Desperta, desperta, põe teus adornos, Sião, veste teus trajes de gala, Jerusalém, cidade santa! Porque não mais verás penetrar em tua casa nem incircuncisos, nem impuros. Sacode a poeira que te cobre, levanta-te Jerusalém e reina, desvencilha-te das cadeias que te prendem o pescoço, filha de Sião. Porque eis o que diz o Senhor: Vós fostes vendidos gratuitamente e sereis resgatados sem pagamento. Porque eis o que diz o Senhor Deus: Meu povo desceu outrora do Egito para ai habitar, depois a Assíria o oprimiu sem motivo. E agora que faço eu aqui, diz o Senhor, já que meu povo foi levado gratuitamente? Seus opressores soltam brados de triunfo, diz o Senhor, e meu nome é ultrajado todo o dia, sem cessar. Por isso meu povo vai saber meu nome: naquele dia compreenderá que sou eu quem diz: "Eis-me aqui!"

"Como são belos, sobre as montanhas, os pés, do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação, que diz a Sião: Teu Deus reina! Ouve! Tuas sentinelas elevam a voz, e todas juntas soltam alegres gritos, porque vêem com seus próprios olhos o Senhor voltar a Sião. Prorrompei todas em brados de alegria, ruínas de Jerusalém! Porque o Senhor compadece-se de seu povo, resgata Jerusalém. Senhor descobre seu braço santo aos olhares das nações, e todos os confins da terra verão o triunfo de nosso Deus. Parti, parti! Retirai-vos daí, não toqueis nada de impuro! Deixai estas paragens, purificai-vos, vós que levais os vasos do Senhor; porque não partireis com precipitação, não vos retirareis como fugitivos, porquanto diante de vós irá o Senhor, e o Deus de Israel seguirá à retaguarda. [Humilhações expiatórias e triunfo do Servo] Eis que meu Servo prosperará, crescerá, elevar-se-á, será exaltado. Assim como, à sua vista, muitos ficaram embaraçados... - tão desfigurado estava que havia perdido a aparência humana.

Assim o admirarão muitos povos; os reis permanecerão mudos diante dele, porque verão o que nunca lhes tinha sido contado, e observarão um prodígio inaudito. Quem poderia acreditar nisto que ouvimos? A quem foi revelado o braço do Senhor?

Cresceu diante dele como um pobre rebento enraizado numa terá árida; não tinha graça nem beleza para atrair nossos olhares, e seu aspecto não podia seduzir-nos. Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele.

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Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidade, e carregou com nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele, fomos curados graças às suas chagas. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, seguíamos cada qual nosso caminho; o Senhor fazia recair sobre ele o castigo das faltas de todos nós. Foi maltratado e resignou-se, não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu a boca). Por um iníquo julgamento foi arrebatado. Quem pensou em defender sua causa, quando foi suprimido da terra dos vivos, morto pelo pecado de meu povo? Foi-lhe dada sepultura ao lado de facínoras e ao morrer achava-se entre malfeitores, se bem que não haja cometido injustiça alguma e em sua boca nunca houvesse mentira. Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo pelo sofrimento; se ele oferecer sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade duradoura, prolongará seus dias, e a vontade do Senhor será por ele realizada. Após suportar em sua pessoa os tormentos, alegrar-se-á de o conhecer até ao enlevo. O justo, meu Servo, justificará a muitos homens, e tomará sobre si suas iniquidades. Eis porque lhe darei parte com os grandes, e ele dividirá a presa com os poderosos, porque ele próprio deu sua vida, e deixou-se colocar entre os criminosos, tomando sobre si os pecados de muitos homens, e intercedendo pelos culpados" (Isaías, 52,13 – 53,12).

650. A reparação vicária uma preocupação cristã. É a reparação vicária uma preocupação inerente ao cristianismo e que se observa entre os cristãos desde os primeiros escritos do Novo Testamento, porque com frequência citam neste sentido ao profeta Isaías e outros. Dentre estes os cristãos o destaque à reparação vicária foi desenvolvido particularmente por Paulo Apóstolo. Na Epístola aos Hebreus, que ordinariamente lhe é atribuída, analisou o sacrifício reparatório de Jesus em favor da humanidade. Oferecido a Deus Pai, a cuja direita agora Jesus se encontra sentado, diz que o efeito do seu sacrifício é eterno. Diz mais, que era superior aos sacrifícios expiatórios do templo judeu. Estes nem eram suficientes e já não continuam necessários, em vista da superioridade daquele de Jesus. "A Lei [do Antigo Testamento], por ser apenas a sombra dos bens futuros, não sua expressão real, é de todo impotente para aperfeiçoar aqueles que assistem aos sacrifícios que se renovam indefinidamente cada ano. Realmente, se os fiéis, uma vez purificados, não tivessem mais pecado algum na consciência, não teriam cessado de oferecê-los? Pelo contrário, pelos sacrifícios se renova cada ano a memória dos pecados. Pois é impossível que o sangue de touros e de carneiros tire pecados.

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Eis porque, ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. Então eu disse: Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo do livro), venho ó Deus para fazer a tua vontade (Salmo 39, 7ss). Disse primeiro:

tu não quiseste, tu não recebeste com agrado os sacrifícios nem as ofertas, nem os holocaustos, nem as vítimas pelo pecado (quer dizer, as imolações legais).

Em seguida ajuntou: Eis que venho para fazer a tua vontade.

Assim, aboliu o antigo regime [Antigo Testamento] e estabeleceu uma nova economia. Foi em virtude desta vontade de Deus, que temos sido santificados uma vez para sempre, pela oblação do corpo de Jesus Cristo. Enquanto todo sacerdote se ocupa diariamente com o seu ministério e repete inúmeras vezes os mesmos sacrifícios que, que não conseguem apagar os pecados, Cristo ofereceu pelos pecados um único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para sempre à direita de Deus. Onde espera de ora em diante que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés (Salmo 109, 1). Por uma só oblação se realizou a perfeição definitiva daqueles que recebem a santificação. É o que nos confirma o testemunho do Espírito Santo. Depois de ter dito:

Eis a aliança que, depois daqueles dias, farei com eles – Oráculo do Senhor: imprimirei as minhas leis nos seus corações e as escrevereis no seu espírito, acrescenta: dos seus pecados e das suas iniquidades já não mais me lembrarei (Jer. 31, 33s).

Ora onde houve plena remissão dos pecados não há porque oferecer sacrifícios por eles" (Epístola aos Hebreus, 10, 1-18).

651. A reparação é uma constante na religião cristã segundo é praticada pela Igreja Católica. Apesar da redenção por Jesus, os pecados (graves) ficam presos ao sacramento da confissão auricular, quando então recebem efetivo perdão. Ainda assim, mais outras penas temporais (ou penitenciais) são impostas pelo ministro de confissão (ou confessores). Tal penitência costuma ser a obrigação de fazer mais algumas orações. Mas pode ser qualquer uma. Na Freguesia de N. Sra. da Conceição, da Lagoa, na Ilha Santa Catarina, afirmava a tradição popular, que o Pároco impunha como penitência plantar algumas ramas de mandioca, e que por isso na região se multiplicou o produto e aconteceu a melhoria do hábito de trabalho agrícola junto aos pescadores. O Concílio de Trento (1545-1563), reagindo à abertura protestante (1517), foi categórico: "Tenhamos bem presente que a penitência imposta por eles (os confessores) não sirva só para guarda da vida nova (recuperada em virtude do sacramento) e como remédio das enfermidades espirituais; mas também como pena e castigo das culpas cometidas, pois o poder das chaves não é dado aos sacerdotes só para desatar, mas é também para ligar" (Sessão XIV, cap. 8). Em favor da doutrina das penas temporais, alega-se o testemunho da Sagrada Escritura, o que entretanto parece apenas um argumento operando por analogia. Adão teve o perdão do pecado (Sabedoria 10,2), mas foi sujeito a fadigas e à morte por castigo do mesmo (Gênesis, 3,17). Aos israelitas foi também perdoada a idolatria no deserto, graças a intercessão de Moisés junto a Deus, mas foram excluídos da terra prometida, entregue apenas aos descendentes. Davi, acusado de grave delito familiar, soube do profeta Natan a certeza do perdão, mas teve por castigo e reparação, a morte do filho que então lhe nascera e a rebelião na família quando também morreu o filho revoltado Absalão. Pedro também foi perdoado por Jesus, mas igualmente fez penitência em lágrimas. Os livros sagrados acentuam frequentemente a expiação do crime em forma de penitências demoradas em jejuns, prantos, cilícios, imposição de cinzas sobre a cabeça para provocar incômodos. A constante reparatória se repete na missa católica, em que o participante é levado a se associar ao celebrante, já no inicio do ritual, pela reza do Confiteor (termo latino que se traduz por confesso-me).

652. Para o cristão o sacrifício da missa é, antes de tudo, um ato de adoração, mas um ato de adoração, posto à disposição para cobrir os pecados dos homens, portanto também um ato satisfatório. O caráter reparatório da adoração é assunto explicitado frequentes vezes no decurso deste sacrifício, particularmente na consagração do vinho... "que por vós e por muitos será derramados em remissão dos pecados" (Mateus 26,28).

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No texto habitual da missa foram inseridas orações que a idéia de reparação dos pecados, tanto na forma de arrependimento pessoal, como na reparação vicária através do sacrifício de Jesus. Eis o Confiteor da missa:

"Eu me confesso a Deus todo poderoso, à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado João Batista, aos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, a todos os Santos e a vós irmãos, que pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras e obras; por minha culpa, por minha culpa, por minha máxima culpa. Portanto, rogo à Bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao Bem-aventurado João Batista, aos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, a todos Santos e a vós irmãos, que rogueis por mim ao Senhor, nosso Deus".

O aspecto reparatório torna a reaparecer explicitamente no começo do da parte da missa denominada Ofertório, quando o celebrante do ritual descobre o cálice, retirando por primeiro a patena. Com as duas mãos a ergue com a oferta, e passa a rezar assim:

"Aceitai, Pai santo, onipotente, eterno Deus, esta hóstia imaculada, que, eu, vosso indigno servo, ofereço a vós, meu Deus vivo e verdadeiro, por meus inumeráveis pecados, ofensas e negligências. E por todos os circunstantes, mas também para todos os fiéis cristãos, vivos e defuntos, a fim de que aproveite a mim e a eles, para a salvação à vida eterna. Amém."

Depois oferece com idêntico espírito de satisfação, o cálice de vinho, dizendo: "Ofereço-vos, Senhor, o cálice da Salvação, suplicando a vossa clemência, que suba com suave fragrância, à presença de vossa majestade, para a salvação nossa e de todo o mundo. Amém".

A nota expiatória domina todo o percurso do sacrifício da missa. Mais para o fim, já depois da consagração, surge inopinadamente a imprecação muitas vezes encontrada em João Evangelista e no profeta Isaías, e ao mesmo tempo expressiva:

"Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo, têm piedade de nós".

ART. 3-o. - DA PRECE EM DETALHE.7072y655.

656. A prece, em religião, é a parte da oração que pede a Deus. A abrangência do conceito de prece permite também significar pedido a outros seres, aos quais se atribui capacidade de nos conceder algo. Assim acontece também haver prece aos Santos, aos espíritos em geral, aos superiores em geral. Essencialmente, pois, a prece consiste na solicitação de algo a um ser exterior e de maior poder. Implica a prece na aceitação da superioridade do ser ao qual se pede. Em consequência, a prece se exerce como um ato, cujas implicações, são de finalismo externo. A prece contém implicitamente uma adoração, porque reconhece a superioridade do ser invocado, sobretudo quando se dirige a Deus.

657. Encômios à prece. Os escritos piedosos tecem frases admiráveis e sedosas, que, embora pouco digam de sua fundamental real, advertem para diferentes propriedades da mesma. Diz-se: Que a prece é o precioso perfume que a alma religiosa diariamente exala do turíbulo da sua olorosa humildade; Que a alma, quando verifica estar fraca e incapaz, encontra logo na prece a chave dos tesouros divinos; Que a prece, apenas recitada, modera a ira de Deus, suaviza a sua justiça, dobra o seu coração, volvendo-o todo para ela;

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Que a prece nos liga ao céu, nô-lo abre e faz descer as graças de Deus; Que a prece nos assegura o céu, sendo penhor de salvação. E assim por diante.

658. É difícil provar a possibilidade de uma prece ser atendida. Em alguns casos isto se mostra muito claro. Se pedimos que uma pedra atirada ao ar, ali se conserve flutuando, podemos constatar que nossa prece não foi ouvida. Se pedimos coisas mais razoáveis, por exemplo, que uma chuva excessiva suspenda seu fluxo, outra vez isto não acontece, senão depois da mudança das condições meteorológicas. Para as criaturas simplistas, que concebem a natureza comandada apenas por forças animistas, em que tudo depende arbítrio, faz muito sentido a prece, pois ela fala à estas forças que decidem por decisões de vontade. Entretanto, o mundo talvez não seja um sistema animista e nem mágico. Leis governam as estruturas o grande mundo físico, químico, biológico. Uma simples alteração provocada pelo atendimento de uma prece repercutiria no equilíbrio todo. Estas alterações seriam aos bilhões, porquanto são outros tantos os bilhões os rezadores. Por causa da prece dos bilhões de seres humanos, o mundo seria como um oceano de ondas crispadas e desordenadas. Então os milagres de Deus seriam a todo o momento necessários, mas um mundo assim comprometeria a sabedoria do Criador. Portanto, provar a possibilidade do atendimento da prece não é assim tão fácil. E se alguém achar que foi atendido, e se examinarmos bem o sucedido, sempre aparece a possibilidade de haverem ocorrido fatores, que nos escapam ao conhecimento. Milagres que se dizem haverem acontecido, se reduzem geralmente a fatos, ou mal observados, ou envolvidos nestes fatores fora do nosso conhecimento.

659. Para salvar a possibilidade da prece, tem-se proposto os mais variados arranjos explicativos, considerando a infinita potência de Deus as explicações encontram alguma fresta para se tornarem possíveis. As explicações certamente são engenhosas, ainda que raramente de visível sabedoria. Para salvar a prece alguns opinam, que ela teria alcance apenas em assuntos de interesse mais próximo do pedinte, levando-o por exemplo, a boas inspirações, a bons pensamentos, à boas intenções. Eis aí um engenhoso subterfúgio. Tais assuntos de interesse mais próximo do pedinte dependem também de situações de fundamento bioquímico. Finalmente ditas inspirações, pensamentos e boas intenções vão por sua vez provocar reflexos no mundo exterior.

660. A prece atendida ab aeterno. Ao ser atendida, qualquer seja a prece, o deverá ser desde sempre. Assim também os atos eminentemente livros do ser humano se acham sob controle divino desde o todo sempre. Seja em que dimensões Deus atenda, - quer a prece, quer a ocorrência dos atos livres, - não podemos escapar do princípio de que Deus tudo tem decidido desde toda a eternidade (ab aeterno). Efetivamente, não podemos rezar para que Deus mude agora os planos eternos de sua sabedoria a nosso respeito, mas para que mereçamos merecer aquilo que desde o início dispôs dar em previsão à nossa prece no futuro. Neste sentido previsional a prece é metafisicamente possível de ser atendida. Mas, a partir da simples possibilidade não segue que de fato o seja. Se criou Deus as vontades livres, elas efetivamente estão previstas desde toda a eternidade em tudo o que elas efetivamente elegerão, ainda que seja difícil explicar como isto suceda; sobre esta questão dividiram-se as opiniões explicativas. Se Deus mandou praticar a prece, também a atenderá, porque tem condição de prever este atendimento desde toda a eternidade. Mas é preciso provar duas coisas: que efetivamente tenha mandado praticá-la; e que tenha dado a medida, sobretudo para não transtornar o mundo com as preces dos rezadores de toda a espécie. Deus não se propõe coisas sucessivas, a maneira dos homens que querem uma coisa depois outra. Deus é um só ato puro, e este ato é eterno e imutável. Sua duração é sem sucessividades, por anterioridade e posterioridade de tempo. Por isso em Deus embora existam o passado, o presente, o futuro, não diferem entre si. Não se alterando, não podem diferir. Neste sentido somente. Por isso, em Deus não há passado, nem presente, nem futuro. O tempo consiste numa duração de sucessividades, ao passo que em Deus esta duração é inalterável, sem sucessividades. Pelo seu passado conhece o seu mesmo presente; pelo seu presente conhece o seu futuro, simplesmente porque não ocorrem mudanças. Deus é duração imutável, que não pode mudar para melhor, porque sempre está no ápice, da perfeição do ser, inclusive da sabedoria.

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Nas coisas criadas a sucessividade é o efeito de substituição contínua. Nas substituições as unidades ficarão forçosamente colocadas em anterioridade, donde a noção de passado, presente e futuro. Não acontece nada disto em Deus, qualquer coisa que faça ao longo de sua duração inalterável, já fora decidida desde a base de sua eternidade. Assim, se Ele decidiu às nossas orações futuras, esta decisão também se processou ab aeterno, porque ab aeterno as tomou em consideração. Da mesma forma estaria resolvido ab eterno a não atender os que rezam? Um pedido de nossa parte não pode significar, pois, uma alteração nos planos providenciais de Deus. Pelo contrário, pode encontrar-se nos seus planos que nós façamos pedidos, aos quais tenha levado em conta. Já antes que façamos uma prece, Deus já sabe melhor do que nós, o que nos falta. Por isso houve o filósofo que disse: Não peço a Deus, e neste sentido não rezo, porque Ele sabe melhor do que eu o que me falta.

661. A questão de como Deus atende a prece tem dado lugar a muitas especulações. Ela praticamente é o mesmo que pedir um milagre. Não haveria diferença entre o que representa o atendimento a uma prece, que entre o que se usa chamar milagre. Para Deus as coisas estão de tal modo, desligadas do tempo, que até se poderia falar, ainda que com alguma ingenuidade, em uma oração de efeito retroativo, conforme aparece no relato de C. M. Herédia S.J.:

"O que podemos pedir não está limitado nem pelo tempo, nem pelo espaço. Podemos pedir não só coisas presentes e futuras, mas também, coisas passadas, como se a oração tivesse força rotativa. O fato que vamos narrar nô-lo contou Eminentíssimo Cardeal Hayes, de Nova Iorque, um dia em que conversávamos sobre este tema da oração. Mr. Thompson fazia poucos anos tornara-se católico, tendo sido antes um grande agnóstico. Sua conversão fora verdadeiramente sincera, e era, na época a que referimos, fervorosos crentes. Tinha, porém, um sentimento profundo, porque no tempo da sua infidelidade se havia oposto tenazmente ao batismo de seus filhos, e uma filhinha, a quem amava estremecidamente, morrera sem receber o batismo. Agora que era crente, esta falta do tempo de sua incredulidade perseguia-o como um pesadelo, veio um dia visitar-nos e contou-nos sua aflição inconsolável. – Que poderei fazer, Padre, disse: que poderei fazer por minha filhinha? – Pois pode o Senhor orar por ela – Respondeu-se-lhe. – Mas de que pode servir-lhe minha oração, se morreu sem o batismo? – O Senhor peça a graça por ela, e deixe-a nas suas mãos. – Mas que pode fazer Deus por ela, se isto passou e não tem remédio? – Mas não vê o Senhor – respondemos – que para Deus não há passado, nem futuro? – De sorte que, se pedir agora por minha filhinha ela se salvará? – Não ponho assim a questão, - respondemos sorrindo; mas Deus, para quem todas as coisas são presentes, vendo a oração que o senhor faz agora por sua filhinha, pode, conforme nossa moda de dizer, tê-la tomado em conta, antes que o senhor a tivesse feito, e de modo ou outro, haver salvo sua filhinha, pois a Deus não faltam caminhos para isso, ainda que para nós estejam ocultos.

- Muito consolado com esta explicação, afastou-se o nosso amigo resolvido a bombardear o céu com suas orações em favor de sua filhinha, com o mesmo fervor que no primeiro dia, decidido a continuar assim até o fim da vida. Já havíamos esquecido aquele assunto, quando um dia veio o nosso amigo, transfigurado de felicidade, dizer-nos – Padre, Deus ouviu em fim minha oração, minha filhinha salvou-se e está no céu... Pensávamos que o pobre homem havia perdido o juízo, mas logo nos inteiramos do acorrido. – Imagine, Padre, que Betsy chegou ontem e logo veio visitar-me. E quem é Betsy? – Uma antiga criada irlandesa, que tivemos durante muitos anos, até pouco antes de morrer minha filha. – E que então?.- Pois veio visitar-me, e, quando soube que me havia feito católico, abraçou-me e deu-me beijos de pura alegria. – Como Deus é bom – pedi muito para que se convertesse, enfim deu-me o gosto de poder vê-lo. Continuamos falando de várias coisas, e naturalmente contei-lhe minha aflição, porque minha filha havia morrido sem ter recebido o batismo. Que filhinha? Perguntou-me. Pois Myrthle, a quem você queria tanto bem... – Myrthle morreu sem ter sido batizada? – Pois não o impedi eu até a última hora? – Sim, Sim, Sim, - respondeu a boa irlandesa; - e crê que serviram de alguma coisa as suas proibições? Crê que eu teria feito caso dela? Não falava mais nada. Sem que o senhor o soubesse, levei-a para ser batizada na matriz. Agora eram minha vez de abraça-la. – Será possível? – Tão possível como cá estou, e, se quiser prova, vamos à matriz e ali poderá ver o assentamento do batismo de Maria Myrthle. E tirando um papel entregou-me o bom amigo. Era o atestado de Batismo de sua filhinha.

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Sua oração tivera efeito retroativo" (C. M. Herédia, S. J., Uma fonte de energia, tradução brasileira, pg. 5759, Editora Vozes de Petrópolis, 1944)

Não há como provar que o efeito retroativo de um eventual batismo derivasse da oração de Thompson; apenas mostra que houve lugar para ter sido, sem que de fato o fosse. Aliás, o rito do batismo obrigatório nas religiões salvacionistas, tem apresentado as mais variadas dificuldades à validade do sistema em si mesmo. O caso acima apresentado não é senão mais um complicador para o velho rito, sobre cujos detalhes se dividem as opiniões.

662. Seria a prece obrigatória por lei positivo-divina? Não é possível estabelecer a obrigatoriedade da prece a partir de uma análise filosófica. A prece está perfeitamente integrável no plano da providência divina; por isso se torna possível, mas talvez não obrigatória. Somente poderia sê-lo em virtude de uma disposição positiva de Deus. Como o alimento e o exercício físico conservam o corpo sempre apto para o trabalho, poderia Deus ter feito que também a alma teria de se alimentar de contínuo da graça, adquirida mediante a prece, para manter-se igualmente apta para a execução de seu múltiplo dever de louvar, reverenciar e servir a Deus, como também conservar-se longe de pecado e no crescimento constante da própria santificação pelo assunto da graça santificante.

663. Uma prova sobre a obrigação da prece, como disposição positiva de Deus, importa em ser prova adequada, com rigor epistemológico. Se já é difícil provar a possibilidade de Deus para atender as preces (vd 558), mais difícil ainda é provar que ele tenha imposto a obrigação de praticá-las. Alguns textos bíblicos do Novo Testamento são taxativos:

"É preciso orar sempre" (1. Timóteo, 2,8); "Orai para não cairdes em tentação" (Lucas 22,40); "Pedi e recebereis" (João 16,24); "Orai sem cessar" (Tess., 5,7).

Mas é preciso provar, que a Bíblia sempre diz a verdade. E se não sempre, é preciso provar, quando diz a verdade, e quando não a diz. E se diz sempre a verdade, importa determinar precisamente qual a verdade. Quando forem possíveis vários modelos de exegese, - literal, ou alegórica, - é preciso provar qual a que está valendo para cada afirmação. Exceto as primeiras graças, tais como a vocação para a fé e o estímulo para a penitência, os ensinamentos dogmáticos católicos têm como certo, que Deus não concede ao cristão, em regra geral, outras graças senão pela condição da prece. A graça da perseverança final, - sem a qual todo o resto teria sido vão, por se ter pulverizado com o fragor da queda no pecado, - figura mesmo como a graça mais difícil de se obter, segundo a doutrina salvacionista mencionada. É dogma católico de que o homem sempre receberá as graças suficientes, próxima ou remotamente, para vencer o pecado, mas desde que as peça. Por isso, embora seja verdade que muitos sucumbem, por não terem a graça, ou a força, tal ocorre, não porque Deus tivesse negado a graça, mas porque culposamente não foi pedida.

ART. 4-o. - DETALHES SOBRE A AÇÃO DE GRAÇAS.7072y666.

667. A oração, no seu exercício de pessoa a pessoa, termina pela ação de graças. Consiste no reconhecimento de que o dom recebido é gratuito e portanto depende da boa vontade de quem o concedeu. Agradecer é um ficar grato, expressão que lembra gratuito. Efetivamente, ficamos gratos por coisas gratuitas. O objeto do agradecimento não se limita aos benefícios que a prece eventualmente atendida trouxe ao pedinte. O agradecimento se estende a todos os benefícios que atingem o ser humano, principiando pela sua existência. Usualmente o agradecimento se faz acompanhado do sentimento de satisfação e amor, que tornam agradável a ação de graças.

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Entretanto, este aspecto afetivo não é parte essencial da mesma. Em decorrência desta afetividade concomitante a ação de graças se configura como um cenário de alegria e beleza. Considera-se o espetáculo de alegria entre pessoas que se fizeram o bem e se agradecem. O mesmo estado de alegria poderá ocorrer entre Deus e a criatura, ao considerar esta a gratuidade de tudo o que recebeu, direta ou indiretamente. É mais manifesta a gratuidade dos benefícios recebidos dos pais, que por isso se tornam a imagem que projetamos para Deus, visto então também como pai supremo. Sabem os bons filhos quanto de amor desinteressado exerceram os seus pais. Quanta dor, quanto trabalho, quanto esforço, quanta paciência, quanto carinho, quanto encorajamento. Estas imagens vão se transpondo para Deus, finalmente invocado como "Pai nosso..." Mas é preciso não exagerar nestas transposições, porque entre os humanos e Deus há apenas analogias remotas. No exagero das transposições poderão ocorrer mesmo imagens negativas. Quem, por exemplo, tiver um pai autoritário e de muita cólera, poderá fazer esta imagem a respeito de Deus, o qual ele visualizará como um tirano justiceiro, que, na mesma proporção que recompensa, também castiga com odienta crueldade. Ora, Deus não é nada disto!

668. Na ação de graças o que importa destacar. Em primeiro lugar importa destacar a gratuidade da criação, principiando pela existência, - como já se adiantou. O ato divino de criação pode ser apenas gratuito, por não haver mérito da criatura para ser criada. Nem mesmo os atos da criatura estabelecem um direito de recompensa. Não se trata de um contrato, como entre trabalhador e empresa, os quais operam por contrato. A gratuidade de Deus é generosa, exercida com amor. Na essência divina tudo coincide concretamente, de sorte que a bondade se exerce ao mesmo tempo, que a potência criativa de sua vontade. Deus cria, pois, com amor. O amor de Deus na criação é desinteressado, porquanto não cria para ter vantagem pessoal. Deus tudo possui com anterioridade, de sorte a não intencionar interesse na criação. Seu amor não é pois de concupiscência (vd), mas de benevolência (vd). Na criação tudo começa com a predestinação à existência. Ser, ou não ser, - eis a questão central. Porque existimos? Podíamos também não existir. Se Deus se decidiu a criar os homens, mas não a todos, porque criou precisamente a nós; deixando no fundo do nada tantos milhões de outros seres possíveis. No contexto cristão, - para os que tem tal crença, - ocorreu ainda a elevação à ordem sobrenatural da graça. Esta, embora de caráter acidental, é mais sublime, tanto que um santo do céu vale mais que todos os condenados do inferno. A redenção do pecado, os benefícios da Igreja, a participação no Reino de Deus, - tudo neste plano da elevação ao estado sobrenatural, constituem elementos para a ação de graças. No plano da natureza, há a agradecer o corpo e a alma, a cultura, os mais diversos favores particulares. E quantos novamente não possuem estes mesmos favores! Quem os tiver, tem motivos inumeráveis de se rejubilar com Deus.

669. A meditação ajuda a recordar os benefícios de Deus, um a um, porque a ação de graças tudo deverá abranger. O hábito de agradecer é uma virtude. Na vida social as pessoa educadas repetem com um espontaneidade extraordinária o "muito obrigado", "ou muito abrigada", depois de qualquer serviço, por menor que seja. No plano da espiritualidade poderá ocorrer a mesma espontaneidade, numa contínua ascensão de atos de agradecimentos, como incenso oloroso à divindade benfazeja.

670. O que Deus não concede. Há coisas que desejaríamos agradecer a Deus e ele não as concede, nem por previsão dele, nem como atendimento à nossa prece . Estaria Deus indiferente diante das catástrofes que liquidam sumariamente milhares de vidas? Os grandes terremotos matam impiedosamente, e eles já aconteceram às centenas. Os estragos das tempestades e enchentes geram situações dramáticas em que Deus parece um personagem ausente. As epidemias levam à morte principalmente aos frágeis, aos pobres, sobretudo às crianças. A debilidade dos seres humanos é tal que um grande número morre antes de vir a luz, ou logo no primeiro ano de vida. Mesmo os que vivem mais, finalmente são colhidos pelo desastre supremo, - a morte. Nem prece individual, nem a coletiva consegue de Deus o afastamento de tantos males fatais.

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A inadimplência de tantos benefícios que logicamente parecem dever ocorrer, por vezes não estimula o exercício nem da prece, nem da ação de graças. Especulações filosóficas buscam lançar esclarecimento sobre o mal, todavia sempre com dificuldade. Uns opinam que a nada Deus é obrigado, e que, ao oferecer algo, não está obrigado a tudo. De outra parte, parece difícil aceitar que Deus dê, mas com defeitos internos na coisa dada, como se desse rosas mas com espinhos, milagres mas incompletos. Assim geram-se as crianças, mas deixando-as sofrer e chorar, por vezes ainda com doenças que as levam à morte atroz. E finalmente todos nós morremos. Diante de; um mundo assim, de perspectivas tão negativas, - como agradecer? Há as religiões que pregam um céu eterno, que compensaria a catástrofe coletiva que derruba sistematicamente aos seres humanos. Mas importa provar isto com todo o rigor. Opina-se também que a vida ocorre em todas coisas, e que portanto nada efetivamente morre, de sorte a emergir de novo a vida que parecia ter desaparecido. Então estaríamos existindo desde o início de todos os tempos, e continuamos, embora sempre sob novas maneiras de viver, a existir ao logo de todo o futuro. Nesta hipótese, em que nada é morto e nada morre totalmente, já éramos sempre vivos, embora não tenhamos memória disto, e continuaremos vivos, embora também sem levar a memória do presente que nos aflige. E assim continuamos de transformação em transformação, sem morte individual, sem emigração do espírito, mas como os ciclos sucessivos da mesma onda.

671. O hino clássico de ação de graças dos cristãos, criado em latim, é Te Deum Laudamus (A Ti Deus louvamos). Pode ser cantado solenemente nas festas de fim de ano e depois de acontecimentos importantes e felizes. As frases se sucedem em paralelismo a maneira dos salmos e cânticos bíblicos. O argumento é a ação de graças, referida inicialmente a Deus e depois às pessoas distintas da Trindade.

672. O hino: Deus eterno, a Vós louvor. O mesmo argumento da ação de graças, foi retomado por um poeta germânico e posto em poesia moderna com estrofes. A letra alemã (Grosser Gott ich lobe dich) é extraordinária. Na tradução portuguesa o verso também consegue majestade, e chega a ser impressionante. Com música de acordes cheios adquire grandiosidade inconteste. Acompanhado do corrilhão de sinos, sua grandiloqüência cresce. Quando menino, assim escutei a primeira vez, em texto alemão, sem jamais te-lo esquecido.

Depois também apreciei em português, e logo o reconheci:

"Deus eterno, a Vós louvor, glória à vossa Majestade! Anjos e homens com pavor Vos adoram, Deus – Trindade!

Santo, Santo a Vós sem fim Cante amor de Serafim!

Pai Eterno, a criação, Que chamaste Vós do nada, Que sustenta vossa mão, Com acorde imenso brada:

"Quem me fez foi vosso amor, Glória a Vós, Pai-Criador". Filho Eterno, nosso irmão, Vossa morte deu-nos vida, Vosso sangue salvação. Toda a igreja agradecida.

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Louva, exalta a Vós, Jesus, Glória canta à Vossa Cruz.

Deus Espírito! Sol de amor! Cercam-vos infindos Santos, Qual de um íris o fulgor. Honrai-vos de eternos cantos.

Nós também, com santo ardor, Celebramos vosso amor.

Grande Deus! Que justo só, Santo sois e só bondade, Nós, que somos cinza e pó. Suplicamos: Pai, piedade!

Vosso Filho, nosso irmão. Seja a nossa gratidão."

CAP. 8MÉTODOS DE ORAÇÃO.

7270y675.

- Filosofia da Religião -

- Oração vocal e mental -676. Métodos como modos de operar. As operações, - no caso das faculdades humanas em exercício religioso, - podem ser examinadas do ponto de vista meramente operacional. Elas podem distinguir-se pela diversidade material das mesmas operações e ainda pelo modo de operar, ou seja pelo método. Dali decorrem didaticamente os seguintes títulos para estudo: Então acontecem formas operacionais, que importa examinar conhecidas por:

- a oração vocal como método (vd 679); - a oração mental como método (vd 684). - a meditação como método de oração (vd 691). - a contemplação como método de oração (vd 714).

677. Os objetivos a alcançar e o esforço de eficácia. Com referência aos métodos como modos de operar, é possível também distinguir entre os objetivos (ou fins) a serem alcançados pelos métodos de oração e o esforço de eficácia que se lhes busca imprimir. Desta sorte conseguimos equacionar os temas que preocupam os que tratam desses métodos. No que se refere aos objetivos (ou fins) dos métodos de oração, eles são determinados por diferentes facetas que se podem buscar separadamente na glória de Deus, como aquelas que distinguem as partes da oração denominadas adoração e reparação, prece e ação de graças. Quanto ao esforço que eficientiza os métodos de oração ele pode dizer respeito, ora à atenção e às distrações a controlar; ora ao estudo (dos fins de religião, como glória de Deus), quer por meio de textos adequados, quer pela escuta de conferencistas, quer pelo desvinculamento do trabalho, dos negócios de família, para concentração maior no estudo. Circunstâncias as mais diversas interagem nas operações humanas, e que tornam os métodos usados muito especiais, quase singularizados. O estudo sistemático dos métodos de oração é todavia um só, ainda que se desprendem notoriamente das formas práticas exercidas por cada pessoa que pratica a religião. Diverge a meditação praticada pelo budista e aquela pelo cristão, e assim também de budista para budista, de cristão para cristão, conforme a circunstância cultural de cada um e sua índole pessoal.

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ART. 1-o. - A ORAÇÃO VOCAL COMO MÉTODO.7270y679.

680. A expressão exterior pode aperfeiçoar a interior. Ainda que a religião seja antes de tudo a sua expressão interior, importa reconhecer que esta expressão interior pode ganhar muito, quando se passa a entender em que sentido a expressão exterior, - sobretudo a espontânea, mas as vezes até a de formulário, - pode aperfeiçoar aquela. Eis quando a oração vocal deve ser examinada como método. A expressão artística, - e a expressão religiosa é uma tal expressão ainda que de um gênero especial, - oferece a vantagem de ordenar o caráter explosivo do pensamento e de controlar a dispersividade das sensações. Efetivamente, o pensamento é explosivo, por ser rápido, e suas imagens são abstrativas, por atingir o objeto sob muitos ângulos, os quais são colocados em termos de sujeito e predicado. A formulação vocal ordena o pensamento e em consequência garante à oração uma certa ordem. A expressão exteriorizada estabelece uma sequência dos objetos conhecidos, criando uma ordenação valiosa. Assim sendo, há vantagem ao pensarmos alto, com palavras, ou mesmo com palavras escritas. Estas palavras vão sendo linearizadas ao mesmo tempo que vão sendo colocadas sobre o papel, obrigando ao pensamento explosivo a uma certa ordem exterior. Vantagem semelhante acontece, quando anotamos em palavras as sensações. Estas costuma ser dispersivas, sobretudo porque são conotativas, ou associativas. Postas em palavras, a dispersividade das sensações passa a ser controlada. Consequentemente, a oração vocal, - porque subordina os pensamentos a uma certa ordem e os sentimentos a certo controle, - também adquire uma sequência ordenada de pensamentos e controle das imagens sensíveis. Se isto acontece exatamente porque ela é uma oração vocal, esta passa a recomendar-se como um método, pelo menos para os que mais precisam do ordenamento das idéias e controle da sensibilidade. Há pois razões para haja quem prefira as fórmulas vocais de oração, bem como tudo aquilo que é culto externo em religião, em especial a liturgia quando bem conduzida pelos ministros que atuam nos templos.

681. Espécies de oração vocal, a espontânea e a de formulário. A oração vocal é espontânea quando criada no ato mesmo em que é exercida. Este método de oração vocal é o mais rico, entretanto difícil para os que não têm palavra fácil. A verbalização do pensamento e das sensações é um dote que diverge bastante de indivíduo para indivíduo, tanto por diferença de índole, como de cultura. Há os que tendem a ser atores, e há os que desejam estar na platéia. Há os que escrevem e são escritores, e há os que de preferência lêem e são leitores. Há os que se apresentam como pregadores, e há os que se fazem ouvintes. Importa que cada um adequadamente cumpra o seu papel, seja como como produtor, seja como consumidor.

682. Variedades de oração vocal. São frequentes as orações vocais aprendidas de cor. Elas são praticamente orações espontâneas, sobretudo quando breves. Tais orações se sabem de cor, quase com a mesma espontaneidade da língua, a qual também é algo que se aprendeu decorando. A oração cristã mais recitada de cor é a que se fez conhecer pelas suas palavras iniciais, -Pai nosso. Acontece a oração vocal de formulário, quando o texto é tomado pronto, e recitado a partir do livro. Quanto possível haja diversidade de formulários, inclusive diversidade litúrgica, de sorte a restar a espontaneidade da eleição de uns sobre os outros. A seguir o rezador se adapta ao texto. Como já o conhece, após a primeira leitura, voltará sempre a ele quando assim preferir.

ART. 2-o. - A ORAÇÃO MENTAL COMO MÉTODO.7270y684.

685. Oração sem formulários. Como método, a oração mental é a interna e silenciosa oração, pela qual se eleva a alma a Deus, dispensando, pelo menos em parte, as fórmulas escritas. Dá-se inteiramente no cubículo discreto da consciência, destacando principalmente o que é mais essencial na religião, a qual é sobretudo um exercício interior da mente (vd).

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Não tem a oração mental a intenção de excluir as outras modalidades de oração. Ela simplesmente aproveita aqueles momentos em que a mente se inclina a encerrar-se em sua interioridade. Depois ela volta espontaneamente ao seu exterior. O ser humano é assim mesmo, - ora se encerra em sua casa, ora sai a ver gente. Ora busca a privaticidade, ora o convívio. A oração mental tem portanto suas horas especiais. Então ela é a elevação intencional da alma a Deus. Então se constitui um esforço especialmente espiritual, todavia espontâneo e desejado, podendo, então, dispensar o mundo barulhento das exterioridades materiais, que passam por alguns instante a não servir de natural acompanhamento. Na oração mental, sem o ruído das palavras no recinto da consciência, tudo se torna mais espiritual. Mas é preciso habituar-se a ficar sem as vantagens do apoiamento da expressão exterior, senão a espiritualidade pura se desfaz em desatenção. Quando isto acontece, precisa-se voltar à oração vocal como apoio (vd 680). Num jogo de vantagens a se alternarem, ora a oração poderá ser um exercício silencioso do espírito, ora um cavalgar eficiente montado sobre palavras.

686. A ordem interna da oração mental é a que divide em; Adoração, pela qual reconhecemos em Deus a nossa origem, dependência constante e principal fim, ao qual glorificamos; Reparação, com que se refazem os atos praticados com defeito, principalmente os que resultaram em desdouro, ditos pecados; Prece que faz buscar na bondade divina o auxílio necessário; Ação de graças, pela qual se reconhece a origem dos dons na generosidade de Deus. Em todas estas partes da oração realizada no silêncio da mente a alma se desvincula do aparato das exterioridades humanas para rezar com pureza de espírito.

687. A conveniência da oração mental, eis em que ainda importa insistir. Apesar das vantagens da expressão exterior, há também aqueles instantes em que a oração puramente interior se faz convenientes. Desfeito o barulho das palavras, o indivíduo entra em um clima favorável à reflexão. A preocupação dos afazeres, o corre-corre das ruas, os noticiários, os propagandistas a chamar de todos os lados, - tudo isso leva o homem de lugar para lugar. Nunca o deixa parado. A excitação de nervos é contínua. O homem moderno, talvez menos que os antigos, vive porém com mais intensidade. Mas precisa cuidar que esta intensidade seja reflexa, como é próprio do espírito desenvolvido, cujo estágio perfeito é o espírito crítico. A serenidade é um relaxamento da tensão nervosa. Sente-se, então a si mesmo. Nota-se o próprio peso e se começa a sentir o contato das mão com os objetos que tocam. O olhar é menos intenso e pára mais tempo sobre coisas menos interessante. O homem severo vê as folhas das árvores como são verdes, belas, frescas. Vê o próprio tronco, que para o exercício é apenas um obstáculo para desviar. Constata que a natureza se envolve num burburinho, que dura o dia todo. Antes ele não observa. Agora escuta mais e gesticula menos. É o avesso de homem preocupado, que cumprimentava sem notar o calor da mão, que não observava a cor dos edifícios, que trabalhava um dia inteiro sem notar se o céu era nublado ou azul. Voltado à serenidade, aprecia o mundo como uma totalidade em que ata a glória de Deus vai aparecendo, até tornar-se um grande brilho manifestativo do criador. É o momento em que a oração mental adquire definição.

688. A firmeza da atenção importa na oração mental. Muito mais que a oração vocal, preocupa-se na oração as distrações. São as distrações pensamentos e imagens que nos alheiam do objeto ao qual havíamos proposto como tema de atenção. No fulgurar incessante das idéias e das informações é possível manter uma certa direção, mas não de todo disciplinada e única. O rezador se propõe, ao fazer um exercício religioso demorado, manter o melhor possível sua atenção no único termo escolhido, o religioso.

689. O tema da atenção espiritual pertence ordinariamente à categoria dos objetos impróprios da inteligência, para os quais a atenção é menos espontânea. Importa distinguir entre os objetos próprio e os impróprios do conhecimento.

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O ser do sensível é o objeto de quem pensa; quando caminha para abstrações maiores, eleva-se ao plano dos objetos impróprios, que são pensados a partir dos próprios. O verdadeiro pensamento abstrato não se desliga jamais do seu concreto sensível, de sorte que não há uma distração total no processo cognoscitivo. Do ponto de vista da fadiga, a atenção aos objetos próprios é espontânea; a elevação o plano abstrato cancã. Por isso, temos fácil prazer ao dispersarmos a vista sobre um campo florido e nele ocuparmos nossos pensamentos; o turismo, em tal condição é sempre repousante. Mas, o esforço de assimilação da ciência e da filosofia, como se expõe em aula ou nos livros, é penoso. Por isso, passado algum tempo, retornamos ao concreto sensível dos seres singulares, que exatamente os que ocupam nos horários de recreio. A religião eleva a atenção na direção de objetos abstratos. Quanto mais exata, mais abstrata é. Os símbolos, quando corretamente interpretados, conduzem ao significado espiritual, que não se exerce com espontaneidade. Por conseguinte, o exercício da religião, da oração, da adoração, da reparação, da prece, da ação de graça, requer um esforço de atenção. De espaço em espaço a religião, em qualquer de suas operações, reclama pausa. Ocorrem aquelas que se fazem por dicotomização rápida (pequenas distrações), com a retomada imediata da atenção, e aquelas que se procedem programaticamente pelo revezamento dos horários de oração e de trabalho.

ART. 3-o. - A MEDITAÇÃO COMO MÉTODO DE ORAÇÃO.7072y691.

692. A meditação é um método de oração a que os religiosos mais dedicados dão considerável importância. Consiste num trabalho sobretudo mental de pesquisa com vistas a conhecer o melhor possível os elementos que conduzem à glória de Deus. Trata-se de um esforço total de oração, atingida em todas as suas partes, como adoração e reparação, prece e ação de graças. A oração mental e a meditação diferem entre si, apear da aproximação que seus nomes sugerem. Geralmente a meditação vem mais em auxílio da oração mental, do que da oração vocal. Ao mesmo tempo que se reza mentalmente, a meditação vai oferecendo elementos. Na oração vocal, com formulários, estes já oferecem o pensamento pronto, e o esforço consiste apenas em interpretar o melhor possível a profundidade das conceituações contidas nas palavras. Um estudo mais exaustivo da oração como método de oração recomenda considerar em separado:

O lado meramente raciocinativo da meditação (vd 695); O lado afetivo da meditação (vd 703); O objeto da meditação (vd 708).

I – O lado meramente raciocinativo da meditação.7072y695.

696. A meditação poderá ser descrita como uma atenção em progresso, ou ainda como um estudo, inclusive filosófico e científico, visando sempre a oração integral.

a) Como uma atenção em progresso, a atenção e ser alcançada pela meditação se distingue da atenção ordinária, a qual normalmente já possuímos. Reduz-se a atenção ordinária àquela informação, que, sem novo esforço, temos do objeto visado; em oração, é a atenção com a qual a mesma oração é feita em qualquer momento. A atenção em progresso consiste num trabalho de penetração dos motivos que levam à oração. Quem medita se concentra no ser das coisas enquanto estas são manifestativas de Deus, e portanto sua glória; atende ao que não está adequado à glória de Deus propondo-se a restabelecê-la pela reparação. E assim também em conseqüência deste propósito, faz preces para obter forças e finaliza com ação de graças pelo conseguindo.

b). Como um estudo, a meditação é um esforço de pesquisa e reflexão sobre a religião e suas implicações. É uma filosofia da religião. Por acréscimo no caso dos crentes de uma revelação, a meditação é também uma teologia. Mas a meditação se ocupa da filosofia da religião e da teologia dentro de um contexto operacional maior, no qual não somente se busca o saber pelo saber. E sim ainda a intenção laudatória efetiva da oração.

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Considerando que o desenvolvimento mental das pessoas se ergue a diferentes níveis (primário, médio, superior). O objetivo final da meditação é encaminhar-se sucessivamente, a partir do primário, ao médio e finalmente ao superior. Não é o que se alcança num dia. Mas deve ser o propósito último.

697. É costume envolver as tarefas com uma preparação e uma conclusão à maneira de moldura. Tradicionalmente, a moldura da oração do cristão é o sinal da cruz. A meditação pode ainda receber uma série de outros cuidados, com o fim de garantir-lhe o máximo rendimento. A preparação da meditação constitui-se principalmente de três iniciativas, donde se ter uma preparação remota. Outra próxima, e ainda uma imediata.

a). Consiste a preparação remota na manutenção de uma vida habitualmente boa, principalmente no desejo da perfeição. Um dos objetos da meditação é a perfeição. Aperfeiçoar a oração é aperfeiçoar a vida com a qual se glorifica a Deus. O fim externo (a glória de Deus) e o fim interno (da felicidade) coincidem em concreto. O desejo de perfeição deve ser eficaz e onde isto primeiro se mostra é na decisão firme de promover periodicamente a meditação (ainda que entendida esta no sentido mais amplo possível) todos os dias, ou ao menos nos dias de culto dominical e festivo.

b). A preparação próxima cuida já das meditações uma por uma, isto é, de um programa de assunto para as meditações. A preparação próxima mínima é aquela que tem o cuidado de no fim de cada meditação fixar o tem da seguinte. Uma preparação maior consiste em ler previamente uma explanação do tema para a reflexão.

c). A preparação imediata da meditação é o cuidado mais importante e menos essencial ao seu sucesso. Consiste em ligar o tema da meditação com os pré-requisitos sistemáticos em que se encontra inserto. Tudo está dentro de um sistema, de sorte que o tema não pode ser tratado isoladamente. Um elemento importante é sempre Deus, o qual deve pois ser conectado com o tema em meditação e mesmo deve ser vivido como presente, pois o objetivo final da reflexão é a oração.

698. Como tornar a Deus presente na meditação? Uma argumentação conduz a ele. Aqueles tópicos que mais impressionam ao meditador são os primeiros a tornar presente a ele a divindade. Esta presença raciocinativa de Deus é a base de todas as demais considerações. Há também os modos ajustados à fantasia, que espacializa a presença de Deus e a amoldam ao formalismo humano. Por exemplo, imaginar-se uma sala real, onde se situam as três pessoas divinas, como se fossem três reis, cada qual sobre seu trono. É um tanto imbecil, ou mesmo muito imbecil. Mas nossos templos obedecem todos a este esquema da imaginação da massa. Neste contexto, imagina-se ainda no ar os anjos; conforme a visão do profeta Isaías, a cantarem Santo! Santo! O Apocalipse de João, o livro que coroa a bíblia cristã, oferece outros e outros espetaculares recursos imaginativos para a presença de Deus. É claro que estes procedimentos têm de ser apreciados como alegóricos.

699. A preparação imediata da meditação, com a introdução da presença de Deus, inclusive com preces para o bom sucesso da mesma, podem fazer-se com formulário vocal. Um texto de Afonso de Ligório (1696-1787), prestigiado com o título Santo Doutor da Igreja Católica, serve exemplo: "Ó meu Deus, eu me prostro diante de vossa divina majestade. Reconheço-me de todo indigno de comparecer perante vossa divina presença; confiado contudo em vossa divina bondade ouso dirigir-me a vós, invoco vosso santo nome, meditar em vossa santa lei, a fim de conhecer sempre melhor a vossa santíssima vontade e sempre mais facilmente cumpri-la. Refreai as distrações do meu espírito. Ilumina-me a memória. Esclarecei o meu entendimento a fim de que eu saiba o que deva fazer, ou deixar no interesse de vossa glória e de minha santificação.

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Movei-me ao mesmo tempo, a vontade, para que eu deteste de todo o coração as minhas faltas passadas e me resolva a tudo o que de fim exigirdes. Concedei-me o conhecimento cada vez mais perfeito, de Jesus, meu divino mestre e rei, a fim de que o ame sempre mais fielmente e assim a seu exemplo, - sempre mais magnânimo e generoso, - trabalhe luta e sofra. Amém.

700. A meditação propriamente dita é a reflexão sobre o tema escolhido, para exame, com vistas aos motivos da oração. Ela, - a meditação, - não é, pois, a oração em si mesma, a sim tudo aquilo que se torna motivo da mesma. Todavia esta oração também é feita no final, ou vai mesmo sendo feita intervaladamente no percurso da meditação. Entreatos de louvor ou adoração, reparação, prece, e ação de graças são como as cristas de ondas, que de espaço em espaço emergem do fluxo da meditação em desenvolvimento.

a). A meditação conduz portanto em primeiro lugar à adoração. Os motivos da adoração se revelam progressivamente, na medida que Deus é descoberto, pela reflexão, como supremo senhor e a criatura como dependente. Deus surge como princípio sem o qual nada existe e por cuja bondade tudo se faz. Deus também aparece como fim último de todas as coisas e de si mesmo. Também sendo externamente a manifestação da divindade e por isso a sua glória.

b). A reparação também é um resultado da meditação, a qual. Mostrando os defeitos, a meditação põe de manifesto a conveniência de recompor a situação. Em decorrência, apresse-se a indivíduo a reparar o mal e voltar à prática perfeita dos objetivos do ser humano, inclusive dos fins externos relativos à glória de Deus.

c). Os motivos da prece são postos sempre a vista pela meditação. Uma vaga percepção da precariedade das forças humanas é destacada, e em função a isto se passa a desejar de Deus um reforço. Não somente se trata da prece que solicita a cura de males, como na reparação e na doença. Também pede o ser humano, força maior do que a ordinária que lhe é natural. No contexto cristão, pede finalmente a graça sobrenatural.

d). Com referência à ação de graças, a meditação revela que tudo o que somos, é gratuito e portanto objeto de agradecimento. Por obra da meditação, Deus passa a ser amado profundamente, como fonte de todo o bem. Pelo exposto, a meditação torna mais esclarecida e integral, mais correta e menos ingênua, mais sistemática e menos eventual.

701. As operações mentais (conceito, juízo, raciocínio) são os instrumentos da meditação, devendo ser utilizados de acordo com a lógica e a metodologia. A perfeita meditação não é apenas um piedoso vagar da mente. É um esforço sério, que somente não utiliza os processos eruditos da lógica e da metodologia quando o meditador não tiver desenvolvimento para tanto. A eficácia depende do desenvolvimento mental, a que todo o homem deve aspirar, o que pressupõe uma boa filosofia da religião.

a). A primeira operação mental é o conceito. Este é um simples olhar a coisa (sem ainda afirmar e sem negar), formando-se assim uma imagem mental, além da imagem sensível. O conceito se diz idéia, quando é visto como modelo segundo o qual uma coisa é feita. Em princípio esta primeira operação poderia ser todo o conhecimento; em Deus este primeiro olhar tudo contém. Não acontece o mesmo com o conceito humano. Entretanto conseguir conceitos (ou idéias) já é muito. Podemos desdobra-los por meios de abstrações que se fazem às coisas concretas, menores e em outros maiores. Metodologicamente, analisamos dividindo e classificando; sistematizamos, Compondo e definindo.

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A meditação deve, pois, analisar e sistematizar os conceitos, criando portanto, divisões e classes, composições e definições. Com recursos utilizados sistematicamente pela meditação (ou seja pelo estudo), os assuntos da religião (e da oração) passam a se desenvolver rumo à perfeição.

b). Pela operação do juízo a mente afirma, ou nega, atributos a um sujeito. Agora tem desenvolvimento a reflexão que analisa fatos pois todo o fato chega a nós como uma afirmação. A análise dos juízos também descobre os implícitos, estabelecendo-os como princípios (ou axiomas). Começam a se manifestar os valores, como os do bem e da verdade (ontológica). Deus passa a ser considerado como fonte ou fundamento eterno das afirmativas. Sem ele o plexo dos princípios não se firma.

c). Mas é na operação de raciocínio que se encontra os maiores recursos da meditação. Juntando fatos singulares, em que um elemento comum vai progressivamente se elevando como sempre presente, o raciocínio induz como definitiva aquela verdade (enquanto não surgir fato em contrário). Diferentemente, a dedução parte de uma afirmativa geral (como por exemplo o princípio da razão suficiente) para envolver fatos particulares e julga-los. Considerando que há fatos contingentes no mundo e dizendo que requerem uma razão suficiente explicativa, o raciocínio deduz que tal razão suficiente é Deus. Estes e outros exemplos mostram como opera a meditação, utilizando a operação do raciocínio, quer sob forma de indução, quer sob forma de dedução.

II – O lado afetivo da meditação.7072y703.

704. O saber agrada. E assim normalmente a meditação também agrada aos que a praticam. Não é pois a meditação apenas uma seqüência de frias operações da razão, que conceitua, julga e raciocina. Além de seu apoio sobre as sensações e imagens da fantasia, também desenvolve dentro de um clima afetivo. No curso de suas paixões, em diferentes situações, o homem exerce amor, ódio, desejo, aversão, alegria, tristeza, audácia, temor, esperança, desespero, cólera, vergonha, inveja, emulação, admiração, intranqüilidade, - conforme toda a lista de uma conhecida classificação das paixões em número de dezesseis. Admitem os afetos diferentes graus de intensidade. Em alguns estados de alma e despertar da inclinação efetiva se manifesta normal, Em outros, - ou se encontra amortecido, e então ocorre a aridez espiritual, - ou se apresenta notavelmente manifesto, e então se dão as consolações espirituais.

705. As causas da variação efetiva no curso da meditação, se deve em primeiro lugar à impressão vinda do objeto, ora claramente atingindo, ora como deficiência. Cabe a cada qual determinar onde se encontre em seu caso pessoal a causa principal de sua variação efetiva e conseqüente aridez espiritual. Podem as causas da variação afetivas e encontrar no excesso de atividades da operação mental. Então é preciso descansar e descobrir a medida adequada para a atividade meditacional. Não estão descartadas as disposições constitucionais do indivíduo. Então as variações afetivas já não dependem diretamente do objeto e nem do volume de ação. Uma vontade amortecida não amortecida não consegue desenvolver disposições intensas, fortes e entusiásticas, mesmo defronte a um objeto rico de perspectivas. Ao contrário, quando a vitalidade constitucional é grande, os afetos inclinações, paixões, sentimentos, etc., se revelam prontamente intensos. É grave a aridez por morbidez física. Ninguém ignora, por certo, quando se fazem ressentir as energias pelos abalos da saúde do corpo. Dores de cabeça, perturbações digestivas, noitadas de sono escasso, depauperamento imprevisto pelo excesso de trabalho material ou mental, permanência num templo excessivamente quente e de ar viciado, provocam aridez transitória. O estado de aridez se diz permanente, quando ocasionado por um esgotamento prolongado dos pulmões e dos nervos. Certos temperamentos, tem uma frieza constitucional quase permanente. Penitências rigorosas sem critério podem levar a uma aridez prejudicial.

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706. As consolações espirituais são o avesso da aridez do espírito. A natureza é de tal sorte que as agruras se revezassem com alegrias tanto mais intensa. As consolações podem ter por feito estabilizar definitivamente a devoção. Embora venham depois período menos favoráveis, estas serão levedas de vencida, graças à força adquirida anteriormente.

III – O objetivo da meditação.7072y708.

709. Importa escolher adequadamente os temas sobre os quais meditar, cada qual tem as suas necessidades, para evoluir com segurança.

710. O objeto da meditação varia com os estágios aperfeiçoativos alcançados pelo indivíduo. Tradicionalmente, por influência neo-platônica, se têm distinguido três vias, denominadas respectivamente via purgativa, via iluminativa, via unitiva. a). Encontram-se na via purgativa as pessoas cuja faina se concentra na extirpação dos vícios. É portanto o estágio dos iniciantes. A tonalidade da meditação dos que se encontram na vida purgativa é a maldade do pecado e não a glória de Deus. Procuram as faltas e delas se arrependem, finalizando com um propósito em relação ao bem.

b). Na via iluminativa se preocupa o homem com a prática positiva do bem, exercitando-se nas virtudes. As preocupações são, portanto, menos negativas.

c). Na via unitiva se encontra a posição dos perfeitos. A virtude já é um habito. O progresso situa-se num novo plano, qual seja o de praticar o melhor bem, isto é, o melhor entre as coisas boas. É típica da via unitiva a adoração, ou louvor constante de Deus. A mente se encontra num estado de atenção atingida e passa a praticar simplesmente a contemplação, que se encontra mais além da meditação estudiosa.

711. Uma conclusão é a moldura final da meditação. Terminada qualquer tarefa, costuma-se dar-lhe um acabamento, ao qual se chama conclusão. Consiste a conclusão da meditação em agradecimento e esperanças. Em todo o curso da meditação, de espaço em espaço, emergem, como cristas de onda, as manifestações da oração (louvor ou adoração, reparação, prece e ação de graças). Tudo isto novamente acontecerá em caráter terminado na conclusão.

ART. 4-o. - A CONTEMPLAÇÃO COMO MÉTODO DE ORAÇÃO.7270y714.

715. A contemplação opera com atenção adquirida e conservada, como um estágio posterior ao da atenção ainda em desenvolvimento peculiar da meditação. Consiste sobretudo na atenção constante às coisas como totalidade em que Deus é o elemento principal. As criaturas não são vistas apenas em si mesmas, ao modo da atenção comum. E sim em relação ao criador, em cuja manifestação elas se constituem. O estudo de contemplação é próprio das pessoas santas.

716. Ocorrem, entretanto, graus de atenção adquirida e conservada. Pessoas de menor desenvolvimento mental poderão ter uma presença constante de Deus, como ainda do criado por ele; mas suas conceituações permanecem todavia singelas e por vezes até ingênuas. A perfeita contemplação é que atinge as noções de presença de Deus e de suas relações com o mundo de maneira adequada e sistemática. Somente um estudo maior, ou seja uma excelente meditação, em termos de filosofia da religião, poderá levar até lá.

717. A glória de Deus, a atenção a ser adquirida e conservada. Como método de oração, a constante atenção ao

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contexto da religião permite a fácil manifestação de louvor a Deus, como ainda o exercício de todas as suas facetas de adoração e reparação prece e ação de graças. A manifestação mais espontânea é a da glória de Deus, que se exerce com tal concentração no principal, que já não surge como ação separada da adoração e reparação, da prece e a ação de graças.

CAP. 9CULTO AOS SANTOS, VISÕES E CONTATO COM ESPÍRITOS.

7270y720.

- Filosofia da Religião -721. Eis uma peculiaridade da religião popular: Santos, espíritos, visões. Efetivamente, o culto aos santos, o contato com os espíritos dos mortos, bem como visões, constituem temas relacionados com a religião. Estes detalhes restam ainda para serem abordados nesta filosofia da religião, o que faremos cuidando de alguns aspectos de fundamento, neste sequência de dois artigos:

- Culto aos santos (vd 722); - Visões e contato com os espíritos (vd 737).

ART. 1-o. O CULTO AOS SANTOS.7270y722.

723. Santos canônicos. Na imagem popular algumas figuras humanas crescem de importância no após a morte e passam a ser invocadas. As religiões institucionalizadas tendem a dar destaque oficial aos mortos, considerados em vida eminentemente virtuosos. Destacam também àqueles que eventualmente foram heróis ou mártires da crença em questão. Costuma-se apontar também para a ocorrência de milagres atribuídos à intercessão do virtuoso e heróico morto. Como é sabido, a crença nos milagres creditados aos santos, têm sido sempre muito fácil. Em função a esta facilidade multiplicaram-se os taumaturgos, de que se fizeram bem conhecidos o antiquíssimo Orfeu e muito depois Santo Antônio de Pádua. Já as antigas religiões praticavam o procedimento, pelo qual eram destacados alguns dos mortos, por sobre o espírito dos demais. Em alguns casos, se denominava, a este procedimento oficialidador, de divinização. Retomaram os cristãos o culto aos mortos mais destacados, primeiramente em favor de seus mártires. O que inicialmente surgira com base popular, assumiu depois o caráter oficial, por via de uma declaração canônica.

724. Ainda que se fale do culto aos santos em geral, ocorre quase sempre uma preferência, por este, ou aquele santo. Esta preferência incide por vezes bastante especificamente sobre certa pessoa mais qualificada no panteão dos santos intercessores. No Egito antigo, bem como depois no mundo helênico e romano, o culto incidiu fortemente sobre a deusa Isis (ou Ise). Com o prevalecimento da religião cristã, passou a ter este lugar Maria, Mãe de Jesus. Em decorrência passamos a uma divisão didática, para considerar:

- o culto dos Santos em geral (vd 725); - culto à Maria, a SS. Mãe de Jesus (vd 732).

I – DO CULTO AOS SANTOS EM GERAL.7270y725.

726. Certa vez, após os desabamentos provocados por uma grande tempestade, viu-se que a imagem de São Sebastião permanecia incólume em seu nicho incrustado numa parede quase toda arruinada, exceto naquele ponto. Os jornais estamparam a fotografia daquele cenário. Disse um dos leitores:

-"Milagre ! A estátua do Santo escapou do desastre." Disse outro:

-"Presença inútil! Pois o santo não protegeu sequer o templo que lhe fora erguido!"Assim é sobre esta coisa de culto aos santos. Cada qual tem sua opinião, uns a favor, e praticam vastamente este culto, enquanto outros são contra. Seja por causa de uns, seja por causa de outros, importa levantar a questão.

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727. As criaturas, que por hipótese participam de propriedades e poderes de Deus, assumem por isso mesmo condições para receberem um culto de admiração. Elas se habilitam por esta razão para serem suplicadas na prece dos que admitem a hipótese. Em virtude da distância entre Deus e as criaturas, estabelecem-se também diferenças de linguagem:

A Deus se adora; Aos santos se venera.

Semelhantemente aos pais se respeita, aos heróis da pátria, aos mortos em geral se comemora, aos ilustres na política e eminentes no saber e nas artes se enaltece e se elogia. Há sob estas palavras, a um tempo, a diversidade, que efetivamente ocorre, e a aproximação, que igualmente acontece, porque fundamentalmente se trata sempre de um culto, seja, um finalismo externo, em virtude do qual os seres se subordinam a algo superior a eles mesmos.

728. Na conceituação cristã dos santos ocorrem diversidades entre católicos e protestantes. Estes últimos, depois depois de surgidos em 1517, colocaram freio ao culto dos mesmos e que se houvera desenvolvido muito no curso da Idade Média. Por isso a igreja católica reafirmou sua doutrina no Concílio de Trento (sessão 25). Certamente o alcance limitado das pessoas simples faz com que o culto aos santos seja simpático. Praticam-no com prejuízo da divindade. O irrompimento do protestantismo, qualquer seja a validade de suas doutrinas, contribuiu para a revisão do culto aos santos.

729. Funda-se o culto aos santos na tradição e em passagem bíblicas. Este fundamento ocorre em proporções não fáceis de determinar, até porque a Bíblia estava sob a influência de uma filosofia superficial, em que dominava o antropomorfismo. A tradição cristã esteve inicialmente também sob a influência pagã do mundo helênico-romano, cuja diversidade de deuses e entidades intermediárias influenciaram certamente seus atos de culto. A devoção à Ise, divindade feminina egípcia, depois largamente difundida no mundo helênico-romano, ofereceu o padrão para o culto à Virgem Maria. O culto aos santos (ou aos mortos) ponteia em diferentes passagens bíblicas (Gen. 18, 23; 20,7; Ex. 32,10; Atos 27,24; e 37; Rom. 15,30). Os anjos e defuntos oram pelos homens (Tob. 12,12; Zac. 1,12; 2Mac. 15,12). Os anjos sabem de nossas necessidades e preces (Tob. 13; Lc. 15,7). A doutrina da "comunhão dos santos" (ou da igreja como sociedade) ampara o princípio de que uns poderão ajudar aos outros, e assim pela prece de uns em favor dos demais. Os santos seriam todos os componentes da comunidade, quer vivos, quer mortos. Estes últimos, os mortos, poderiam ser invocados como poderiam interceder pelos que restam vivos. Quanto a Jesus, seria o intercessor principal junto a Deus Pai, e depois dele Maria, por seu através, finalmente os demais santos. Esta doutrina contém um sabor neoplatônico, pela qual Deus seria excepcionalmente transcendental, ao ponto de necessitar intermediários, o Logos (ou o verbo) e sucessivamente outros.

730. Alegam-se dificuldades racionais contra o poder de intercessão dos santos junto de Deus. Para que estabelecer uma intermediação, se, se admite o acesso direto da oração a Deus? Sobretudo não parece que os santos possam interceder, sem que o próprio Deus crie neles a capacidade deste exercício, de sorte a exigir-se um triplo trabalho: ida ao santo, ida do santo a Deus, criação da capacitação destas duas idas. Assim também os anjos, se eles sabem das nossas necessidades, precisaram ser capacitados para isto, como também de serem capacitados de ouvir a nossa prece. Finalmente Deus sabe melhor que os santos e os anjos, e melhor do que nós mesmos, o que efetivamente nos falta. Não obstante o aspecto de incoerência em todo este processamento, poderia contudo Deus elegê-lo no seu sistema de economia. Esta possibilidade certamente alegra a todos os ingênuos, quando se ocupam do assunto. Mas a simples possibilidade nada prova sobre a economia efetivamente eleita por Deus.

II – CULTO Á MARIA, A SS. MÃE DE JESUS.

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7270y732.733. Admira como cristãos destacam o culto à Maria, a Mãe Santíssima de Jesus. São numerosos os templos que levam seu nome. E em todos os demais conta com altares. Maria também está presente num grande número de visionários e visionárias, que a vêem com as características étnicas da gente de seus país. São assaz conhecidas as visões de N. Sra. de Lourdes e de N. Sra. de Fátima. Recebe também títulos, conforme o aspecto sob o qual é mais invocada, - N. Sra. das Necessidades, N. Sra. do Perpétuo Socorro, N. Sra. da Saúde, N. Sra. dos Navegantes. Inclusive é invocada como N. Sra. do Parto; neste particular, parece ter tomado o lugar à Ise, invocada pelas mulheres na antiguidade egípcia e helênico-romana. Paradoxal é o título de Virgem e Mãe! Este título, peculiar da doutrina católica, e contestado por outros grupos religiosos, tem levado a discussões violentas. Um político sensato, lamentando o que acontecia, falou certa vez: Creio na Virgem Mãe. Entretanto preferível teria sido, que somente ela soubesse a respeito! Acreditava ele, que, se assim fosse, a devoção à Maria certamente seria mais pacífica!

734. A doutrina da mediação universal de Maria, por isso denominada também Medianeira de todas as graças, eis o que mais se lhe atribui. Esta doutrina não se encontra, - diz um eminente teólogo, - nas fontes escritas "nem implícita, nem explicitamente" (Hervé). Em favor da mediação universal de Maria fizeram alguns progredir uma interpretação especial das palavras de Jesus à sua mãe, por ocasião das bodas de Caná. "Celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus. Também foram convidados Jesus e os seus discípulos. Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Eles já não têm vinho. Respondeu-lhe Jesus: Mulher, isso nos compete a nós? Minha hora ainda não chegou" (João, 1-5). Outra tradução diz: - "Mulher que há entre mim e ti? Ainda não chegou a minha hora". Colocadas estas palavras em combinação com mais outras ditas por Jesus ao pé da cruz, parecem aludir mais expressamente à meditação universal de Maria (Terrien, Vogt). Importa acautelar-se com interpretações frágeis e sofisticadas, principalmente se não pertencerem a uma interpretação de longa tradição e universalmente difundida. O critério da tradição cristã válida, é a que existe universalmente no espaço horizontal e universalmente no espaço temporal. Uma crença local ou surgida na cabeça de alguns intérpretes não detém esta validade requerida pela tradição alegada como de fé. A mãe de Jesus havia feito um pedido e ele como que a despediu: - "Mulher que há entre mim e ti? Ainda não chegou a minha hora". O texto não é claro! Especula-se que Jesus, na vida pública, agia independentemente de sua mãe; sua vez de ajudar viria depois, quando a redenção já se tivesse dado; e se agora a vai atender na meditação feita, é só exceção, como que para revelar quão poderoso iria ser o poder da meditação que depois receberia para sempre. Especulação artificiosa?! Há os que advertem, que a expressão "Mulher" se usava no tratamento das rainhas e senhoras de destaque, e que revela o afastamento entre Jesus e Maria na vida pública, quando pois a familiaridade desaparecia. A frase seguinte é um dizer hebraico, que pode significar certa displicência, mais ou menos favorável, conforme a circunstância. Tem-se advertido especialmente sobre a última parte – "ainda não veio a minha hora," – porque é costume de João atribuir a certos termos um significado místico, e é o que parece suceder também aqui. "Hora", em seu Evangelho significa o momento supremo da redenção. E portanto, Jesus, ao responder a Maria, não quis absolutamente informá-la de que a "hora" ainda não chegada, fosse a hora dos milagres. De novo uma especulação artificiosa?! Alega-se ainda que a hora viera, porque fez um milagre e continuou a fazer outros mais. Tratava-se, porém, da "hora" da redenção. E se Jesus diz não haver chegado a hora, parece dizer que um dia ela virá, e que então terá chegado também a hora de Maria interceder na qualidade de Medianeira a de todas as graças. Quando aquela hora teria realmente chegado, Maria e João se encontram sob a cruz do Redentor, Jesus falou: Mulher, eis ai teu filho, ao discípulo: Eis aí a tua mãe. Estas palavras teriam dado agora o efetivo começo à função de Maria.

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A inserção das palavras ditas a Maria e João lembram tratar-se de alguma coisa extraordinária, como só poderia ser no momento supremo da redenção donde se ter a impressão de que aquelas palavras pertencem aos últimos acabamentos da obra redentora. Se antes e depois se fazia referência às profecias, talvez aqui se fizesse igual referência, e então poderíamos pensar no proto-evangelho (Gênesis). Em que vem declarado que também a mulher, mãe do Redentor, pisará a cabeça da serpente do pecado. Mas todas estas considerações estão condicionadas à prévia aceitação das profecias referidas. As razões indicadas talvez não tenham força conclusiva tomadas por partes. Mas a teriam talvez tomadas em conjunto, combinadas ainda com a tradição, ainda que também esta não seja clara? É difícil aceitar que se imponha à humanidade uma doutrina cujas fontes sejam precárias.

ART. 2-o. VISÕES E CONTATO COM ESPÍRITOS.7270y737.

738. Assunto secundário em religião, todavia envolvente. Visões e contatos com os espíritos separados, - qualquer seja a validade de tais crenças, - não representam assunto essencial em religião, mas têm envolvimentos fáceis com ela. Os visionários, - sejam os que dizem haver visto a Deus, ou os anjos, ou os espíritos separados dos mortos, - conseguem geralmente serem acreditados. Todas as religiões tradicionais costuma estar comprometidas com este contexto. De Jesus se diz ter ele tido visões, inclusive do Demônio e dos anjos: "Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo Demônio. Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois teve fome. O tentador aproximou-se dele e lhe disse: Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães [...]. O Demônio transportou-o à cidade santa, colocou-o no ponto mais alto do templo, e disse-lhe: Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo [...]. O Demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo, e a sua glória, e disse-lhe: dar-te-ei tudo isto, se, prostrando-te diante de mim, me adorares. Respondeu-lhe Jesus: Para trás Satanás, pois está escrito, - Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás. Em seguida o Demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo" (Mateus, 4,1-11). Os que acreditam em espíritos, com os quais pensam estabelecer contato, os classificam em bons e maus. Haveria anjos bons e maus. Finalmente os espíritos separados dos homens seriam também bons uns (os bem-aventurados ou santos), maus outros (os condenados ou réprobos). Por esta via entra a questão religiosa, porque se usa acreditar que os bons servem a Deus, do qual seriam mensageiros e junto do qual intercederiam em favor dos vivos; inversamente se acredita que os maus resistem a Deus e conduzem os vivos ao mau caminho mediante a inspiração chamada tentação. Resta pois, indagar sobre a autenticidade das visões e de que mais acrescentam sobre religião.

739. Visões, talvez anomalias. Os fenômenos extraordinários alegados pelos visionários e pelos que afirmam o contato com os mortos, poderão ser reduzidos a anomalias, e que a psicanálise procura analisar melhor. Ainda que as visões em princípio são possíveis, importa primeiramente garantir, que tenham resultado de uma anomalia. E quando se trata de narrativas distantes no tempo, importa garantir também a historicidade das mesmas. As imagens e vozes do subconsciente são facilmente confundidas como sendo aparições e revelações dos mortos, e então efetivamente não houve aparições e revelações de outros espíritos. A complexidade com que estes fenômenos se dão, pode verdadeiramente surpreender. Considera-se, por exemplo, como as imagens do subconsciente interferem no movimento do corpo. Os movimentos conscientes se processam com imagem antecedente. Ora, se o subconsciente fornece imagens e estas eventualmente se ligam ao corpo, provocam movimentos, como aqueles que se observam em algumas pessoas quando dormem e sonham. Em casos raros provocam o uso da palavra e podem acionar a mão para escrever e pintar. O sonambulismo é um elenco deste tipo de imagens motoras. Indivíduos paranormais, epilépticos, doentes, ou ainda influenciados por drogas, tóxico, álcool, etc., estão sujeitos a situações de grande excepcionalidade. Podem então ser interpretados como tendo contato com os espíritos. Conforme as circunstâncias, poderão ser interpretados como profetas e mensageiros de Deus. Isto acontece sobretudo quando, o que dizem, eventualmente contém elementos válidos, e que eles mesmos posteriormente conseguem desenvolver como uma teologia racionalizada.

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740. Equacionando o problema do contato dos vivos com os mortos. Haveria contato dos vivos com os mortos? O problema começa com a mesma colocação da questão, que assume aspectos diferentes, se o ponto de partida é o do dualismo (corpo e alma separáveis), ou se é do monismo (corpo e alma duas faces da mesma realidade). Não entender as questões de corpo e espírito sob o fundo da distinção entre monismo e dualismo resulta em superficialidade e mesmo em ingenuidade. Importa advertir que a questão dos espíritos, é mais fácil de ser admitida, na pressuposição do dualismo, que separa notoriamente corpo e alma. Os que interpretam o corpo e a vida ao modo do monismo, os consideram faces da mesma realidade, e com isso resta praticamente descartada a questão dos espíritos dos mortos soltos por ai. Em consequência, tudo o que se conta destes espíritos reclama uma outra explicação.

741. Vida e espírito na doutrina dualista. A vida e o espírito separados como substância diferente da substância matéria supõe sempre o dualismo irredutível entre um e outro plano. Desta sorte corpo e espírito poderão separar-se realmente, porque em princípio é próprio do conceito de substância poder subsistir por si. Assim sendo, já se imagina que o espírito poderia conviver por algum tempo e depois retirar-se, tendo por efeito a morte do corpo, o qual fica sem seu motoro. Na hipótese do dualismo, o homem é uma composição de corpo e alma, como dois elementos irredutíveis, dos quais um penetra ao outro, mais ou menos como um espectro entra na máquina para fazê-la mover-se. A morte seria nada mais que a separação da alma, que deixaria de operar no corpo, por falta de condições para ali permanecer. Segundo Platão, a alma se define como um ser capaz de mover-se por si, e em consequência moveria o corpo. Entretanto Platão nunca explicou como é que seria possível haver uma alma a mover-se por si. Nem explicou como seria possível uma alma espiritual mover um corpo material, porquanto são coisas sem se proporcionarem. Este último problema preocupou seriamente a Descartes. Para resolvê-lo dualistas posteriores apelaram ao ocasionalismo (vd 363) e à harmonia preestabelecida (vd 365). Acredita-se também em espíritos sempre separados. Por exemplo, os anjos, de que falam as religiões persa, judaica, cristã, islâmica e outras. Bastante difundida é também a doutrina de que almas separadas e mesmo espíritos sempre separados (como o anjo mau denominado Diabo) podem excepcionalmente encarnar-se nos seres humanos, juntamente com a alma que já possuem; nesta oportunidade transmitiriam mensagens especiais e mesmo operariam fisicamente. Algumas formas da teologia cristã interpretam a Jesus como tendo um alma criada junto à qual se estabeleceu o espírito da segunda pessoa divina; haveria, pois, em Jesus dois espíritos, - o da alma humana e o de Deus. Nas religiões orientais, nas africanas e nas indígenas, se admitem incorporações similares dos espíritos nos corpos humanos. Quaisquer sejam as formulações sobre as relações entre o corpo e o espírito, elas sempre dependem da pressuposição dualista não provada adequadamente, de que matéria e espírito sejam duas substâncias distintas. Como provar este dualismo? O negativismo, que se apoderou das doutrinas dualistas, é peculiar à maioria das religiões antigas, que se transferiu inclusive para as filosofias pitagóricas e platônicas, tende a denegrir a matéria como sendo má e a ser eliminada. Mas este modo de definir a matéria como um dualismo irredutível apriorístico, porque efetivamente ninguém a conhece integralmente. Também Aristóteles, ordinariamente mais prudente nas afirmações, estabeleceu a irredutibilidade da matéria e da vida psíquica, separando-as como duas substâncias. Mas, se até agora ninguém conhece exatamente a matéria, não há como excluir dela a capacidade para as operações psíquicas. O estabelecimento de que a matéria é capaz apenas de operações mecânicas, é defini-la arbitrariamente. Em consequência todas as filosofias do dualismo espiritualista e todas as religiões dependentes da tese, - que distingue alma e corpo como irredutíveis, - dependem de uma hipótese não de todo segura. Efetivamente, as chamadas provas da existência da alma, como distinta substancialmente do corpo, estão sob suspeita. E assim também suas doutrinas sobre o contato com os espíritos separados, sobretudo em se tratando de almas separadas (desencarnadas), não alcançam validade absoluta (vd).

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742. Vida e espírito na doutrina monista. Passemos a considerar também em particular a hipótese da matéria dotada de operações vivas e mesmo psíquicas. Excluído o dualismo radical de corpo e alma, de sorte a tudo ser vivo, esta hipótese facilita o processo da natureza, em que ora dos seres ditos mortos se passa para os vivos, e ora vice-versa, dos vivos para os ditos mortos. Neste monismo, não há seres efetivamente mortos, porque todos estão vivos desde que o mundo começou. A exclusão do dualismo pode mesmo permitir uma hipótese extremista, em que o predomínio é do psiquismo. Propôs Bérgson que apenas existe vida e não matéria, de tal sorte que a matéria não seria mais do que um dos estágios da vida considerada em um momento de menor atividade. Efetivamente, não sabemos o que seja a matéria, para definitivamente excluir uma outra hipótese, a de que a matéria, além de suas funções mecânicas, exerça funções vivas e mesmo psíquicas. Se por definição a matéria apenas puder exercer funções mecânicas, fica em princípio excluída sua possibilidade de ser geradora de atividades vivas e psíquicas. Mas esta exclusão pode estar sendo feita preconcebidamente, sem prova efetiva.

743. Conceituações divergentes de vida, alma, espírito. Suposto que haja uma só espécie de substância na natureza e que exerça as várias funções, inclusive as espirituais, teríamos mesmo que ajustar as tradicionais definições de vida, alma, espírito, porque ordinariamente se encontram postas em contexto dualista Importa ir mesmo mais longe distinguindo mais fundamente entre um significado entitativo e outro gnosiológico. Espírito, em significado substancial (ou entitativo, ou ontológico) significa uma realidade; o significado gnosiológico de espírito expressa uma operação de conhecimento (ou seja de psiquismo). Toda operação acompanhada de conhecimento seria psíquica. O termo alma (no grego psiké) designaria, na interpretação dualista, o espírito humano no sentido de substância irredutível ao corpo. Mas o adjetivo espiritual se refere mais genericamente à operação psíquica. Nesta maneira de definir aos termos, seria compreensível falar em materialismo espiritualista, para estabelecer que se trataria da hipótese em virtude da qual a matéria também seria capaz de exercer funções psíquicas. O mesmo diria a expressão: materialismo panpsiquista. Quanto a panpsiquismo (sem matéria), seria a teoria segundo Bérgson. Contudo, na interpretação monista, cabe também usar o termo alma. Neste caso, a reinterpretação não a entende como irredutível, mas como sendo aquela face de uma realidade, em que também participa a matéria, igualmente reinterpretada. Nesta hipótese abrangente cabe também, de forma reinterpretada, a evolução da natureza, sem que haja saltos, pois desde o início o sistema conta com os dois níveis da realidade. Toda a realidade é dotada de vida e psiquismo. A vida manifesta seria apenas o emergir do que já existe desde sempre. Progressivamente as organizações se tornariam psiquicamente cada vez mais manifestativas, até alcançarem os níveis de seres vivos adiantados como os animais superiores e o homem. Trata-se de uma hipótese frágil, todavia apreciável pela abrangência com que consegue estabelecer caminhos explicativos para as variações da natureza. A vida seria eterna, apenas sem memória direta sobre o seu passado. E seria eterna, também para o futuro, porque os mesmos indivíduos não morrem nunca, apesar da aparência de sua morte. De tempos em tempos voltam a emergir para um novo ciclo superior.

744. A morte no contexto do monismo da natureza. Como sugere a hipótese do monismo, a morte talvez não seja uma separação de corpo e alma. E sim apenas um desmonte de organizações altamente complexas, sem que a vida e o psiquismo em si mesmo desapareçam substancialmente. Neste caso não se trata de uma verdadeira morte, não haveria a morte total. A organização da vida nada mais seria que um vai e vem de oportunidades exercidas por um mesmo indivíduo, o qual vive sempre, ora mais vivo, ora menos vivo. Se restasse a memória desses sucessivos procedimentos, teríamos como saber diretamente por que estágios já passamos. Resta entretanto a memória indireta, a qual não é senão a ciência e a filosofia, quando algo dizem deste possível passado e possível futuro. Na hipótese monista, somos o mesmo indivíduo desde o começo do mundo, e continuaremos a sê-lo para o futuro. Nunca nos encarnamos e nem nos desencarnamos, porque numa tal hipótese espírito e matéria são duas faces da mesma coisa. Apenas emergimos a afundamos, sem nunca morrer até o fundo. Importa advertir que, - se se quiser usar o temo materialismo panpsiquista, - este não é idêntico ao materialismo puramente mecanicista. Para este último simplesmente não há espírito especificamente distinto da mecanicidade.

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A rigor, o materialismo mecanicista nunca foi defendido por filósofo de qualidade. Nem é alegado por filósofos dualistas sérios. O materialista espiritualista não diz que tudo termina com a morte, porque o psiquismo está nas unidades desagregadas e não no todo em que elas antes se organizavam. Diferentemente, para o dualismo em que a alma e o corpo são elementos separados, a alma se situa no todo do organismo e não necessariamente em cada partícula do corpo. Quanto às crenças sobrenaturalistas, e mesmo às salvacionistas, elas não impossíveis em uma e outra interpretação da natureza ao modo dualista e monista, ainda que tenham de ajustar seus conceitos, para um e outro caso.

745. A comunicação dos espíritos no contexto do monismo da natureza. Dentro da hipótese do monismo da natureza, a comunicação dos espíritos também se estabelece, mas de modo adequado à hipótese em questão e talvez até mais facilmente. Importa não fazer da matéria um espantalho para o espírito. A ilusão a respeito da matéria já principia no momento em que se é dominado pela imagem ingênua de um mundo visto apenas como um amontoado de átomos distanciados por espaços vazios. Efetivamente as partículas poderão ser apenas áreas em que se manifestam os objetos. O que verdadeiramente poderá estar acontecendo seriam campos materiais contínuos. O espaços entre as partículas não é vazio, porquanto nele também se manifestam as forças fundamentais da natureza, de que a atração ou gravidade é um dos mais evidentes. O que não acontece nestes espaços vazios é o fenômeno das partículas, mas poderá haver outras realidades, diferentes das partículas. Em sendo assim, a comunicação, seja a corpórea, seja a vivente e psíquica, também se situam sob esta outra base que não a das partículas. A comunicação entre o corpo e a vida se entende com mais facilidade no contexto monista, porquanto, neste caso, a matéria e o espírito pertencem à mesma realidade substancial, sem aquela irredutibilidade radicalizante do dualismo. Havendo somente unidades em que matéria e espírito são realidades não irredutivelmente distanciadas, a comunicação da matéria estabelece também a comunicação espiritual. A interpretação monista da natureza clareia também porque todo o conhecimento superior começa na experiência sensível. Não parece claro, que haja um conhecimento autônomo, - independente da experiência sensível, - como quer o racionalismo radical do platonismo, do agostiniano, do cartesianismo, ou mesmo do fideísmo e do misticismo. Como se sabe, o conhecimento intelectual do ser, - no sistema de Aristóteles e de Tomás de Aquino, depois até no de Kant, - principia pela presença do fenômenos sensível.

747. Concluindo e encerrando nossa exposição sobre filosofia da religião, retornamos à uma observação inicial, em que dizíamos haver iniciado este tratado ao tempo de nossa juventude, e que foi nosso primeiro livro (vd 4). Depois de muitas vezes retocado, estamos satisfeitos de havermos chegado, depois de 6 décadas, ao seu final. Pronto, o livro está agora ali, como nossa oração, Àquele que achamos ser o verdadeiro Deus. Afinal, porque tanto tempo? É que não há religião verdadeira sem uma boa filosofia na cabeça. Ora, para isso importa tempo. Neste assunto de filosofia da religião, - dada a sua alta complexidade, - a experiência recomenda uma certa tolerância prática na condução dos temas mais candentes Muito do que discutimos e apresentamos, o foi dentro de pressupostos hipotéticos, mesmo quando não o tenhamos declarado expressamente. Quem admitir os pressupostos, terá aquelas conclusões como coerentes. A logística das conclusões será evidentemente outra, se houver alteração em alguns dos pressupostos. Quando ficamos cautelarmente em hipóteses, apenas as explorando em suas consequências, sabemos pelo menos aonde elas podem conduzir. E assim, com hipóteses principia a ciência. Temos sempre insistido em definir a religião como uma visão de conjunto sobre o todo, e portanto como algo importante. Mas se o todo é constituído de muitas partes, - em que nem as partes são bem conhecidas, - não podemos garantir uma conceituação geral segura, mas condicionada às hipóteses utilizadas. Se nas partes muito ainda há de mistério, no todo o mistério ainda será maior. A prudência científica e filosófica em assuntos de religião já vem de Protágoras, o maior dos sofistas gregos da antiguidade, conhecido também pela sua sabedoria: "Dos deuses não estou em condição de saber, - nem se existem, - nem se não existem, - nem quais são. Efetivamente muitas coisas impedem sabê-lo: não só a obscuridade do problema, mas a brevidade da vida humana". Não é preciso fazer sectarismo doutrinário, com o saber que se possa adquirir em filosofia da religião.

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A liberdade de opinião é um direito fundamental da pessoa humana. Por falta da tolerância religiosa foram praticadas muitas mortes. Devem os humanos poder dialogar sobre todas as coisas, como irmãos. Devem sabê-lo fazer, principalmente quando se trata das coisas do Altíssimo, - mais alto que todas as estrelas, mais vasto que todas as distâncias do universo, mais sábio que todo o saber humano.

Evaldo Pauli.